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A FICÇÃO DOCUMENTAL:

Marker e a ficção da memória1

Jacques Rancière

Partindo da análise do filme O túmulo de Alexandre, de Chris Marker, Jacques Rancière

discute a ressignificação das imagens na construção de uma ficção histórica pelo

cinema documentário.2 O autor destaca, na poética de Marker, as relações de

ressonância e dissonância entre os signos que levam ao entrelaçamento do próprio

signo do cinema com a história do século 20.

O túmulo de Alexandre,3 assim se intitula o filme de Chris Markerdedicado à memória do cineasta soviético Alexandre Medvedki-ne, nascido com o século4 e morto na época da Perestroika. Falarem “memória” é, de imediato, estabelecer o paradoxo do filme.Ele não pode, de fato, assumir a tarefa de “conservar” a lembran-ça de um autor cujas obras não vimos e cujo nome nos é pratica-mente desconhecido. De resto, os compatriotas de Medvedkinenão tiveram mais oportunidades do que nós de assistir a seus fil-mes. Consequentemente, não se trata de conservar uma memó-ria, mas de criá-la. Desse modo, o enigma do título remete ao pro-blema da natureza do gênero cinematográfico que chamamos dedocumentário. Isso nos permite, num atalho vertiginoso, ligarduas questões: o que é uma memória? O que é o documentário como gênero de ficção?

Comecemos por algumas evidências que, para alguns, ainda podem parecer paradoxais. Uma memórianão é um conjunto de lembranças da consciência. Dessa forma, a própria ideia de memória coletiva seriavazia de sentido. A memória é um certo conjunto, um certo arranjo de signos, de vestígios, de monumen-tos. O túmulo por excelência, a Grande Pirâmide, não guarda a memória de Quéops. Ele é essa memória.Provavelmente se dirá que tudo separa dois regimes de memória: de um lado, o dos poderosos governan-tes do passado – alguns dos quais só têm de real o cenário ou o material de suas sepulturas; do outro, o domundo contemporâneo, que não cessa, inversamente, de registrar os testemunhos de existências quais-quer e dos acontecimentos mais banais. Quando a informação é abundante, supõe-se que a memória

DOCUMENTARY FICTION: MARKERAND THE FICTION OF MEMORY | Basedon the analysis of Chris Marker’s movieLe Tombeau d’Alexandre, aka The LastBolshevik, Jacques Rancière discussesthe resignification of images in buildinghistoric fiction through documentarycinema. The author highlights in Mark-er’s poetry the relations of resonanceand dissonance between the signs lead-ing to the entrelacement of the cinema’sown sign with 20th-century history. | Fic-tion, memory, documentary cinema,20th century, image.

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ficção

memória

cinema

documentário

século 20

imagem

Alexandre MedvedkineFrame do filme Le tombeau d'Alexandre,de Chris MarkerCaptura de tela

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transborde. Ora, as circunstancias nos mostramque isso não acontece. A informação não é a me-mória. Ela não se acumula para a memória, ela tra-balha em seu próprio benefício. E seu interesse éque tudo seja esquecido imediatamente, demodo que só se afirme a verdade abstrata do pre-sente e que ela, a informação, assegure sua potên-cia como a única adequada a esta verdade. Quan-to mais os fatos abundam, mais se evidencia suaindiferente semelhança. Mais se desenvolve, tam-bém, a capacidade de fazer de sua intermináveljustaposição uma impossibilidade de concluir,uma impossibilidade de neles ler o sentido de umahistória. Para se negar o que aconteceu, como osnegacionistas5 nos mostram na prática, não há anecessidade de negar muitos fatos; é suficienteomitir a relação que há entre eles e que lhes ofere-ce consistência histórica. O reino do presente dainformação rejeita como fora da realidade aquiloque não participa do processo homogêneo e indi-ferente de sua autoapresentação. Ele não se satis-faz em rejeitar imediatamente tudo no passado.Ele faz do próprio passado o tempo do duvidoso.

A memória, portanto, deve constituir-se indepen-dentemente tanto do excesso quanto da escassezde informações. Ela deve se construir como liga-ção entre os dados, entre a evidência dos fatos e ovestígio das ações, como o � ������� �

��� ����,6 o “arranjo de ações” mencionadoem Poética, de Aristóteles, e que ele chama demythos:7 não é o “mito” relacionado ao incons-ciente coletivo, mas à fabula e à ficção. A memóriaé uma obra de ficção. A boa consciência históricapode, aqui, denunciar novamente o paradoxo eopor a sua paciente busca da verdade às ficçõesda memória coletiva, que forjam os poderes emgeral e os poderes totalitários em particular. Mas a“ficção”, em geral, não é a bela história ou a vilmentira que se opõem à realidade ou que se que-rem fazer passar por ela. Fingire não significa ini-cialmente fingir, mas forjar. A ficção é a prática dos

meios de arte para construir um ‘”sistema” deações representadas, de formas agregadas, de sig-nos que se respondem. Um filme “documentário”não é o oposto de um “filme de ficção”, porquenos mostra imagens saídas da realidade cotidianaou de documentos de arquivos sobre aconteci-mentos confirmados, em vez de empregar atorespara interpretar uma história inventada. Ele nãoopõe o já dado do real à invenção ficcional. Sim-plesmente o real não é, para ele, um efeito a se pro-duzir, mas um dado a compreender. O filme do-cumentário, portanto, pode isolar o trabalhoartístico da ficção dissociando-o daquilo que a elefacilmente se identifica: a produção imaginária deverossimilhança e de efeitos do real. Ele pode levaro trabalho artístico a sua essência: uma maneirade decupar uma história em sequências ou de edi-tar histórias, de ligar e separar as vozes e os cor-pos, os sons e as imagens, de esticar ou comprimirtempos. “A ação começa hoje em Chelmo”: a pro-vocante frase com que Claude Lanzmann iniciaShoah8 resume bem essa ideia de ficção. O esque-cido, o negado ou o ignorado que as ficções dememória querem certificar opõem-se a esse “realda ficção” que assegura o reconhecimento em es-pelho entre os espectadores da sala de cinema eas figuras da tela, e entre as figuras da tela e aquelasdo imaginário social. Contrária a essa tendência areduzir a invenção ficcional aos estereótipos doimaginário social, a ficção de uma memória se ins-tala na distância que separa a construção do senti-do, o real referencial e a heterogeneidade de seus“documentos”. O cinema “documentário” é umamodalidade de ficção ao mesmo tempo mais ho-mogênea e mais complexa. Mais homogênea por-que aquele que concebe a ideia do filme é tambémaquele que o realiza. Mais complexa já que geral-mente encadeia ou entrelaça séries de imagensheterogêneas. Desse modo, O túmulo de Alexan-dre encadeia cenas filmadas na Rússia de hoje, de-poimentos de entrevistados, atualidades de ou-trora, fragmentos de filmes da época – de autores

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e destinações diversas, desde O encouraçadoPotemkin9 aos filmes de propaganda stalinista,passando pelos filmes do próprio Medvedkine –,todos reintegrados em outra trama e eventual-mente conectados por imagens virtuais.

Com esses documentos reais, escrupulosamentetratados com intenção de verdade, Marker pro-duz uma obra cujo teor ficcional ou poético é –fora qualquer julgamento de valor – incompara-velmente superior ao mais espetacular dos filmes-catástrofe. O túmulo de Alexandre não é a lápideque cobre o corpo de Alexandre Medvedkine.Também não é uma simples metáfora para avaliara vida de um cineasta militante e, por seu intermé-dio, fazer o balanço do sonho e do pesadelo sovié-ticos. Sem dúvida, o túmulo de Alexandre tambémpossui valor de metonímia para nos falar de outrotúmulo que simboliza a esperança sepultada, a sa-ber, o mausoléo de Lênin. Mas é precisamente poropção “ficcional” que este último não é represen-tado aqui, e é ‘metonimizado’, por sua vez, por essacabeça abatida em torno da qual comemoram osativistas reunidos contra o governo comunista noverão de 199110 e sobre a qual, em seguida, as crian-ças brincarão sem cerimônia: essa cabeça de co-losso faraônico com enormes olhos interrogado-res é de Felix Djerzinski, o homem que Lênin,dizia-se recentemente, havia nomeado chefe dapolícia política porque, como todo polonês, pro-vara demasiadamente em sua carne os horroresda policia czarista e portanto jamais recriaria umapolícia com essa imagem…

Um túmulo não é uma pedra. Também não é umametáfora. É um poema, como se escrevia no Re-nascimento, e cuja tradição Mallarmé11 retomou.Ou, ainda, uma peça de música em homenagem aoutro músico, como se compunha na época deCouperin ou de Marin Marais12 – tradição revividapor Ravel. O túmulo de Alexandre é um documen-to sobre a Rússia de nosso século porque é um tú-mulo nesse sentido poético ou musical, uma ho-

menagem artística a um artista. Mas é também umpoema que responde a uma poética específica.Ora, há duas grandes poéticas, suscetíveis, aliás, dese subdividirem e, eventualmente, se entrecruza-rem. A clássica, aristotélica, é uma poética da açãoe da representação. Nela, o centro do poema éconstituído pela “representação de homens queagem”, ou seja, pela encenação do texto por umou mais atores que expõem ou mimetizam umasequência de ações ocorrida aos personagens se-gundo a lógica que faz coincidir o desenvolvimen-to da ação com uma mudança de sorte ou de sa-ber de seus personagens. A essa poética da ação,do personagem e do discurso, a era românticaopôs uma poética dos signos: o que faz a histórianão é mais o encadeamento causal de ações “se-gundo a necessidade ou a verossimilhança” teori-zada por Aristóteles, mas o poder de significaçãovariável dos signos e dos conjuntos de signos queformam o tecido da obra. Em primeiro lugar, há opoder de expressão pelo qual uma frase, uma ima-gem, um episódio, uma impressão isolam-se paraapresentar, a si próprios, a potência de sentido –ou de ausência de sentido – de um todo. Em segui-da, há o poder de correspondência em que dife-rentes regimes de signos entram em ressonânciaou em dissonância. É ainda o poder de transfor-mação pelo qual uma combinação de signos sefixa em um objeto opaco, ou se manifesta em umaforma de vida significativa. Finalmente, é a potên-cia de reflexão em que uma combinação se torna apotência de interpretação de outra ou, ao contrá-rio, deixa-se por ela interpretar. A combinação

Frame do filme Le tombeau d'Alexandre, de Chris MarkerCaptura de tela

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ideal dessas potências foi formulada na ideiaschlegeliana do “poema do poema”: o poema quepretende levar a uma potência superior uma poe-ticidade já presente na vida da linguagem, o espíri-to de uma comunidade ou mesmo as dobras e es-trias da matéria mineral. Desse modo, a poéticaromântica se desenrola entre dois polos: ela afir-ma simultaneamente a potência de enunciaçãoinerente a todas as coisas mudas e o poder infinitode o poema se multiplicar ao multiplicar suas for-mas de enunciação e seus níveis de significação.

Ao mesmo tempo, ela complica o regime de ver-dade da obra. A poética clássica constrói uma tra-ma cujo valor de verdade decorre de um sistemade conveniências e de verossimilhança que pres-supõe, ele mesmo, a objetivação de um espaço-tempo específico de ficção. E é essa objetividadede ficção que arruina o herói romântico por exce-lência, Dom Quixote, quando ele quebra as mario-netes de mestre Pedro. À separação entre ativida-des sérias e lúdicas, ele opõe a obrigação decoincidir o Livro com o mundo, o que, antes de sero desatino de um leitor de romances, é o desatinoda cruz cristã. A poética romântica substitui o es-paço objetivado da ficção por um espaço indeter-minado de escritura: de um lado, este se dá comoindiscernível de uma “realidade” feita de “coisas”ou de impressões que são elas mesmas signos quefalam por si; de outro, ao contrário, ele se dá comoo espaço de um trabalho de construção infinita,próprio para elaborar, por seus arcabouços, seuslabirintos ou seus desníveis, o equivalente a umarealidade sempre muda.

Arte moderna por excelência, o cinema é a arteque, mais do que qualquer outra, ou sofre o confli-to, ou experimenta a combinação das duas poéti-cas. Combinação do olhar do artista que decide edo olhar mecânico que registra, combinação deimagens construídas e de imagens submetidas, ge-ralmente ele faz desse duplo poder um simples ins-trumento de ilustração a serviço de um sucedâneo

da poética clássica. Inversamente, porém, o cine-ma é a arte que pode elevar a sua maior potência oduplo recurso da impressão muda que fala e damontagem, que calcula as potências de significa-ção e os valores de verdade. E o cinema “documen-tário”, desembaraçado por sua própria vocaçãopara o “real” das normas clássicas de conveniênciae de verossimilhança, pode, mais do que o cinemadito de ficção, jogar com as concordâncias e dis-cordâncias entre vozes narrativas e as séries deimagens de época, de proveniência e significadosvariáveis. Ele pode unir o poder da impressão, o po-der de enunciação que nasce do encontro do mu-tismo da máquina e do silêncio das coisas, com opoder da montagem – em um sentido amplo, nãotécnico, do termo – que constrói uma história e umsentido pelo direito que se atribui de combinar li-vremente os significados, de ‘re-ver’ as imagens, deencadeá-las de outro modo, de restringir ou dealargar sua capacidade de sentido e de expressão.O cinema-verdade e o cinema dialético – o trem deDziga Vertov13 que passa sobre o operador deitadonos trilhos e o carrinho de bebê do EncouraçadoPotemkin que desce com implacável lentidão ascélebres escadarias de Odessa – são as duas facesde uma mesma poética. Poeta do poema cinema-tográfico, Marker os recoloca em cena. Ao combi-nar os planos do Encouraçado Potemkin com osplanos dos passantes que hoje descem as mesmasescadas, ele nos faz sentir o extraordinário artifícioda câmera lenta eisensteiniana que dramatiza emsete minutos a descida em grande velocidade deuma escada – que um passante normal desceriaem 90 segundos. Mas ele também nos mostra a in-finita diferença entre esse artifício da arte que pon-tua um momento histórico e os artifícios da propa-ganda que nos apresenta um amistoso sósia deStalin colocando seu nariz no motor em pane deum trator. A precipitação desacelerada do movi-mento, operada por Eisenstein, participa de umasérie de operações sobre o espaço e o tempo, ogrande e o pequeno, o alto e o baixo, o comum e o

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Frame do filme A felicidade, de Alexandre MedvedkineRetirado do filme Le tombeau d'Alexandre,de Chris MarkerCaptura de tela

singular. Ela participa de um sistema de figuras queconstroem o espaço-tempo da Revolução. Dessemodo, a ficção de Eisenstein é uma ficção produto-ra de história. O sósia de Stalin é apenas um sósia deStalin, uma ficção do poder.

Entre as imagens do presente, as ficções da artesoviética e as do poder stalinista, existe, portanto,um diálogo de sombras que organiza as seis “car-tas” endereçadas no presente por Chris Marker aofalecido Alexandre Medvedkine. Às vezes, comonessa reencenação da emblemática sequência doemblemático filme da Revolução, ele coloca naprosa do presente as imagens do passado. Às ve-zes, inversamente, parte da tal “coisa vista”, dehoje, para a história do imaginário de um povo. Emuma igreja de Moscou, a câmera fixou imagensque “falam por si”: uma celebração religiosa, idên-ticas àquelas do passado pela pompa e cerimôniados ornamentos, pela fumaça dos incensos e peladevoção das eternas babuskas. Mas ela tambémse detém num rosto qualquer, um velho homem,que não é exatamente um velho devoto comum:entre a assistência, há um homem que possui,como Alexandre Medvedkine, a idade do século ecujo nome, como o seu, sem dúvida não “diz” nadaao espectador ocidental: o tenor Ivan Kozlovzki.14

Essa permanência sobre um rosto que não se ree-xaminará mais opera, entretanto, duas coisas si-multaneamente: ela coloca o passado comunistae o presente pós-comunista na mesma trama deuma história mais antiga, aquela que gerou asgrandes óperas do repertório nacional. Mas elatambém devolve a Medvedkine um duplo – quan-do desenha furtivamente um díptico essencial àconstrução da “ficção de Alexandre”.

De fato, tudo opõe essas duas figuras. Medvedkineatravessou sua vida, seu século, na empreitada defazer desse século e da terra soviética o tempo e olugar da encarnação da palavra de Marx. E ele osatravessou fazendo filmes comunistas, devotadosao regime e a seus dirigentes – que, no entanto, não

permitiram que o povo soviético visse. Ele inven-tou o cine-trem15 para entrar nos colcozes16 e nasminas, filmar a obra e as condições de vida dos tra-balhadores ou os debates de seus representantes,e imediatamente mostrar-lhes sua obra e suas fa-lhas. E ele conseguiu isso com excelência: essas im-placáveis imagens de alojamentos abandonados,de campos de árvores mortas e de comitês de bu-rocratas foram rapidamente repousar em arqui-vos nos quais só agora pesquisadores começam aencontrá-las. Em seguida, ele colocou sua vervecômica e surrealista de Felicidade17 a serviço da po-lítica de coletivização agrária. Mas o escárnio dasautoridades, sacerdotes e koulaks18 ia além de suapossível utilização para ilustrar uma “ideologia”19

qualquer, e o filme não foi lançado. Ele ainda come-morou, em Nova Moscou,20 o urbanismo oficial. Oque, no entanto, o levou a se divertir à custa dos ar-quitetos com uma montagem de trás para a frente,que nos mostra a destruição dos novos edifícios ea reconstrução da Catedral do Salvador? O filmefoi imediatamente interditado. Ele teve que renun-ciar aos seus e fazer os filmes dos outros, os filmesque qualquer um podia realizar para ilustrar a políti-ca oficial da época, celebrar os cortejos à glória deStalin, denunciar o comunismo chinês ou elogiar,pouco antes de Chernobil, a ecologia soviética.

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Ivan Kozlovzki passou o século e sua vida de outromodo. Ele cantou Tchaikovski, que já era amado naépoca dos czares e que Stalin preferia aos músicosda vanguarda comunista. Ele cantou Rimski-Kor-sakov e Moussorgski, e particularmente Boris Go-dunov,21 composta a partir da obra do poeta rus-so por excelência, do poeta também ele amadopelo regime soviético, esse outro Alexandre quetinha por nome de família Pushkin. Nessa emble-mática história do tsarévitch22 assassinado e dosangrento usurpador deposto por um impostor,ele cantou o papel do Inocente e a profética cenafinal em que este chora, sobre a noite impenetrá-vel, a dor e a fome que esperam o povo russo. Elepassou sua vida e seu século a refazer as fábulas doséculo 19 que nos antecipam cada revolução traí-da e cantam o sofrimento de um povo eterna-mente condenado à sujeição e ao engano. E ele ofaz diante dos oficiais comunistas que não deixa-ram de preferir essas histórias e essas músicas àsobras da vanguarda comunista. A permanênciasobre seu rosto mudo não irá revelar apenas a fur-tiva contraimagem de outra vida no século sovié-tico. Ela vai inscrever-se em uma ficção de memó-ria que é o combate entre duas heranças: umséculo 20 que herda um século 19 em oposição aum outro. Certamente também esses dois “sécu-los” estão entrelaçados e desdobram, um e outro,suas metamorfoses, contradições e retrocessospróprios. E entre as duas imagens do cantor, entreo velho homem rezando na catedral e o lamentodo Inocente no palco do Bolshoi, Marker inseriunão só uma história de padres ortodoxos – as se-quências ferozmente anticlericais de a Felicidade–, mas também outro encontro de séculos, de ho-mens e de religiões: ele inseriu a memória da cava-laria vermelha, em que Medvedkine acompanha ojudeu e futuro fusilado Isaac Babel23 nas fileirasdos cossacos de Boudienny.

Desse modo, a identidade ficcional da vida de umcineasta comunista e a vida do século e da terra co-

munistas diferem completamente do fluxo de umahistória linear, mesmo se as “cartas” a AlexandreMedvedkine sigam formalmente a ordem cronoló-gica. A primeira nos fala da Rússia na época czarista,a segunda dos primeiros tempos soviéticos, a ter-ceira das atividades de propagandista de Medved-kine com a epopeia do cine-trem, a quarta, atravésdas desventuras de Nova Moscou, dos tempos dostalinismo triunfante, a quinta da morte de Med-vedkine na época da Perestroika e do fim da URSS.Mas a primeira carta desregula previamente a cro-nologia quando põe todas as épocas juntas. Elaapresenta outra história de vida e morte, que a sex-ta esclarece quando nos oferece as imagens daverdadeira morte, da morte em vida de AlexandreMedvedkine filmando em 1939 as grandes celebra-ções stalinistas, com o título de Jeunesse florissan-te.24 Desse modo, o filme se constrói no intervaloentre duas mortes, uma real e outra simbólica. Efaz, de cada um de seus episódios, uma mistura es-pecífica de tempos. A polissemia do título já indicaessa pluralização da memória e da ficção. Porquehá pelo menos quatro Alexandres em um úniconome. A visita ao túmulo de Medvedkine é efetiva-mente desviada para o espetáculo de uma multi-dão que, na lama do degelo, se apressa para cobrirde flores a sepultura de um Alexandre mais ilustre,o czar Alexandre III. Essa imagem, porém, comoaquela das pompas religiosas de Moscou ou deKiev, não é o mero equivalente visual de “Socieda-de! Tudo restaurado!”25 do poema de Rimbaud. Arelação das duas sepulturas não é um simples sinô-nimo de esperança sepultada e de vingança do ve-lho mundo. Ela codifica, desde o início, a estruturanarrativa do filme – que não realiza a passagem li-near da Rússia czarista à revolução, e de sua dege-nerescência à restauração dos valores antigos,mas reúne três Rússias em nosso presente: a de Ni-colau II, a soviética e a de hoje. Três Rússias que sãotambém três eras da imagem: a Rússia czarista dafotografia e do desfile sem escrúpulos dos grandesdiante dos pequenos; a Rússia soviética do cinema

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e da batalha de imagens; a Rússia contemporâneado vídeo e da televisão.

Isso já estava implícito em uma das primeiras ima-gens do filme: na Petersburgo de 1913, os gestos au-toritários de um oficial ordenando que o povo tireo chapéu à passagem da nobreza. É necessáriocompreender o que nos diz Marker quando pedepara não esquecer “esse gordo que ordena aos po-bres que saúdem os ricos”: não se trata, metafori-camente, de reter a imagem que ontem legitimou aopressão e que hoje poderia “desculpar” a revolu-ção soviética. Trata-se, literalmente, de não esque-cer, de pôr essa imagem dos grandes que desfilamdiante dos pequenos ao lado de sua contraima-gem, os grandes desfiles soviéticos dos pequenosdeclarados grandes – ginastas, crianças, colcozia-nos –, diante dos “camaradas” da tribuna oficial.Marker não se diverte em simplesmente pôr emdesordem os sistemas temporais estabelecidos – aordem cronológica simples ou os clássicos relatosem flashback. A estrutura narrativa constrói nopresente uma memória que é o resultado do en-trelaçamento das histórias de dois séculos. Issoestá explícito na imagem de Ivan Kozlovzki cantan-do o Inocente, no encontro com o terceiro Alexan-dre, Alexandre Sergueievitch Pushkin. Mas Alexan-dre é também, e sobretudo, o nome doconquistador por excelência, o nome do príncipemacedônio que, por subjugar a Grécia antiga, es-tendeu seus limites às fronteiras das terras habita-das e assim construiu sua imortalidade histórica.Também é, igualmente, o nome do morto ilustrecujo túmulo procura-se encontrar, em vão, há milê-nios: um “nome de Alexandre” que dá a essa sábiahistória de homônimos sua incompletude, que re-laciona o túmulo-poema ao túmulo ausente, doqual sempre pode ser visto como uma alegoria.

Assim a história “clássica” de fortuna e de infortú-nio, de ignorância e de saber, que liga a vida de umhomem à epopeia soviética e a sua catástrofe,toma a forma de uma narrativa romântica que,

como os poemas escritos por Mandelstam26 naaurora da revolução, revolve a “terra negra dotempo”.27 Liberar nosso “século de argila” dos ma-lefícios do precedente e lhe conceder ossaturahistórica era, recordemos, a grande preocupaçãode Mandelstam, aquele que guiava, nas estruturasnarrativas de seus poemas, o entrelaçamento dopresente soviético e da mitologia grega, da toma-da do Palácio de Inverno com a tomada de Troia.28

Se a estrutura do “túmulo” de Marker se mostramais complexa, não é simplesmente porque o ci-nema dispõe de meios de significação diferentesdaqueles da poesia. É em função de sua própriahistoricidade. O cinema é arte nascida da poéticaromântica, como que por ela pré-formada: umaarte eminentemente adequada às metamorfosesda forma significante que permitem construiruma memória como entrelaçamento de tempo-ralidades deslocadas e de regimes heterogêneosde imagens. Mas também é, em sua natureza artís-tica, técnica e social, uma metáfora em ato dostempos modernos. Ele próprio é uma herança doséculo 19, uma conexão do século 20 com o 19, ca-paz de unir essas duas relações de século a século,esses dois legados que mencionei: o século deMarx dentro daquele de Lenin; o século de Pus-hkin e de Dostoievski dentro do de Stalin. De umlado, está a arte cujo princípio – a união do pensa-mento consciente e da percepção sem consciên-cia – foi pensado 100 anos antes das primeirasprojeções públicas, no último capítulo de Sistemado idealismo transcendental, de Shelling. De ou-tro, há a culminância de um século de descobertastécnicas e científicas que queriam migrar das ilu-sões da ciência do entretenimento para o registro,através da luz, dos movimentos ocultos ao olhohumano. Ele foi, na época de Étienne Marey, o ins-trumento de uma ciência do homem e de uma in-vestigação da verdade científica contemporâ-neos da era do socialismo científico. A era em queAlexandre Medvedkine nasceu parecia ter encon-trado seu fim em uma nova indústria da ilusão e do

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entretenimento popular. Quando, porém, ele che-gou à idade adulta, o poder da ciência e o poder daimagem estavam juntos novamente, como o po-der próprio ao novo homem, do homem comu-nista e elétrico: comunista porque elétrico; elétri-co porque comunista. A escritura da luz tornou-seao mesmo tempo o instrumento prático e a metá-fora ideal da união entre o poder da ilusão, o poderda ciência e a potência do povo.

O cinema, em resumo, era a arte comunista, a arteda identidade entre a ciência e a utopia. E, nos anos20, não só na Moscou revolucionária de Vertov ede Eisenstein, de Medvedkine e de Dovjenko,29 mastambém na Paris estetizante de Canudo, de Dellucou Epstein,30 as combinações de luz e movimentodescartariam os comportamentos e os pensa-mentos do velho homem. O cinema era esse ápicedo século 19 que deveria instituir a ruptura do sécu-lo 20. Ele foi esse reino das sombras convocado ase tornar o reino da luz, essa escritura do movimen-to que, como e com a ferrovia, se iria identificarcom o próprio movimento da Revolução. Dessemodo, O túmulo de Alexandre é a história cinema-tográfica dessa dupla relação do cinema com a erasoviética: é possível fazer a história do século sovié-tico através do destino de seus realizadores, atra-vés dos filmes que fizeram, dos que não fizeram, da-queles que foram forçados a fazer não só porqueeles testemunhariam um destino comum, masporque o cinema como arte é a metáfora ou o pró-prio resultado de uma ideia de século e de umaideia de história que foram politicamente incorpo-radas à era soviética. A proposta de Marker respon-de, a sua maneira, àquela da História(s) do cinema,de Godard. Ambas nos propõem ler a história denosso século não através da história, mas das his-tórias ou estórias do cinema, que não é somentecontemporâneo do século, mas parte constitutivade sua própria “ideia”. Elas nos propõem ler em es-pelhamento o parentesco entre a usina de sonhossoviética e a usina de sonhos hollywoodiana, e pen-

sar, dentro do desenvolvimento do marxismo esta-tal e do cinema industrial, uma mesma zona de con-flito entre duas heranças de séculos. O método,sem dúvida, é diferente. Godard utiliza os recursospróprios à escritura videográfica para deixar idênti-cos, na tela, os poderes do quadro negro e os da co-lagem pictórica e, assim, dar nova forma ao “poemado poema”. Enlouquecendo a máquina dedicada àinformação, ele opera pela saturação da imagem epelo zigue-zague entre imagens. Em uma mesmaunidade “áudio-visual”, ele superpõe uma imagemde um primeiro filme, outra retirada de um segun-do, a música de um terceiro, uma voz provenientede um quarto e cartas retiradas de um quinto. Ecomplica esse entrelaçamento com imagens origi-nárias da pintura, e o pontua com um comentárioatual. Propõe cada imagem e a combinação de ima-gens como um jogo de pistas que se abrem em múl-tiplas direções. Ele constitui um espaço virtual deconexões e ressonâncias indefinidas. Já Markeropera da maneira dialética: compõe séries de ima-gens (testemunhos, documentos de arquivos, clás-sicos do cinema soviético, filmes de propaganda,cenas de ópera, imagens virtuais…), que organiza deacordo com os princípios propriamente cinemato-gráficos da montagem, para definir momentos es-pecíficos da relação entre o “reino das sombras” ci-nematográfico e as “sombras do reino” utópico. Àsuperfície plana de Godard ele opõe uma hesitaçãoda memória. Mas, ao mesmo tempo, ele está sujeito,como Godard – e ainda mais do que ele –, a esse apa-rente paradoxo que obriga a pontuar, pela voz auto-ritária do comentário, o que ‘dizem” as imagens que“falam por si” e os entrelaçamentos das séries deimagens que constituem o cinema como metalin-guagem e como “poema do poema”.

Esse é, efetivamente, o problema da ficção do-cumental e, através dela, da ficção cinematográfi-ca em geral. A utopia primeira do cinema foi aque-la de uma linguagem – sintaxe, arquitetura ousinfonia – mais adequada do que a linguagem das

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palavras para se aliar ao movimento dos corpos.Essa utopia não deixou de ser confrontada, tantono cinema mudo quanto no cinema falado, comos limites dessa capacidade falante e com todosos retornos da “velha” linguagem. E o cinema “do-cumental” sempre esteve preso entre as ambigui-dades do “cinema-verdade”, as artimanhas dialéti-cas da montagem e o autoritarismo da voz dodiretor – voz geralmente em off31 que duplica, emsua continuidade melódica, as sequências de ima-gens heterogêneas ou pontua, passo a passo, osentido que é necessário dar a sua presença mudaou a seus arabescos elegantes. O pedagogo dialé-tico Marker raramente se privou de nos sublinharseja a evidência apresentada pela imagem “em si”,dessa que nossa memória tende a esquecer ouque nosso pensamento reluta em conceitualizar,seja, ao contrário, a insignificância ou a ambivalên-cia da imagem solitária e a necessidade de esclare-cer suas possíveis leituras. O túmulo de Alexandreé uma ficção de memória, uma memória entrela-çada do comunismo e do cinema. Mas essa ficçãode uma memória construída pelos meios da artenão se deixa afastar de uma “lição sobre a memó-ria”, de uma lição sobre o dever de lembrar, cons-tantemente ritmada por essa voz que nos avisa sernecessário não esquecer essa imagem, que é ne-cessário ligá-la a outra, olhá-la mais de perto, relero que ela nos dá a ler. Antes que o cineasta nos de-monstre visualmente o artifício eisensteiniano –pela montagem alternada de planos do Encoura-çado Potenkin e de planos de passantes contem-porâneos que descem mais devagar e mais rápido,ao mesmo tempo, as mesmas escadas –, essa de-monstração foi antecipada, tornada redundantepela explicação do professor. O que, entretanto,sem esse comentário, seria, inversamente, de difí-cil leitura. O “documentário” não para de jogar es-sas remessas de uma imagem ou de uma monta-gem de imagens – que deveriam falar por sipróprias –, com a autoridade de uma voz que, aolhes garantir o sentido, também as enfraquece.

Sem dúvida, essa tensão atinge seu máximo quan-do a ficção histórica documental passa a identifi-car-se a um filme do cinema acerca de seu própriopoder de história. E a ficção da “carta” endereçadaao morto é aqui o meio de assegurar à voz do co-mentador essa indivisível autoridade.

A questão, entretanto, não tange somente à difícilrelação entre pedagogia e arte. Ela chega ao cernedesta poética romântica a qual pertence o cine-ma: a conjunção do poder de palavra conferido àscoisas mudas com o poder de autorreflexão atri-buído à obra. Sabe-se como Hegel havia contesta-do radicalmente essa pretensão em Lições estéti-cas.32 Em sua opinião, o poder da forma, o poderde “pensar-fora-de-si” próprio à obra, era contra-ditório com o poder de autorreflexão próprio aopensamento conceitual, ao “pensamento-em-si-mesmo”. A vontade de identificar um e outro sótrazia à obra a demonstração de virtuosismo, umaassinatura individual – ou a remetia ao interminá-vel jogo simbolista entre forma e significado, emque um era sempre o eco do outro. Quando o ci-nema se dá como cinema do cinema e identificaesse cinema do cinema com a leitura de um sécu-lo, ele se arrisca a ficar preso em meio às infinitasremessas entre as imagens e os sons, as formas eos significados que assinalam o estilo godardiano,e o poder da voz que comenta, que marca o estilode Marker. Evidentemente, os últimos filmes desteassinalam a consciência dessa aporia e a vontadede a ela escapar. O que Level Five33 particular-mente evidencia. Para construir a ficção de umamemória em torno da Batalha de Okinawa e doterrível suicídio coletivo em que os guerreiros ja-poneses obrigaram os colonos de Okinawa a re-produzir a honra japonesa,34 ele rompeu, delibera-damente, com o equilíbrio adequado à obradocumental. Primeiramente, confiou ao compu-tador o cuidado de produzir, à maneira de um jogode vídeo, as imagens do passado que são confron-tadas, de acordo com os princípios da montagem

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dialética, às imagens do presente ou às vozes dosentrevistados. Ele faz desse computador um per-sonagem de ficção: memória, túmulo e mesa dejogo, o que permite relacionar os recursos do jogode vídeo com a estratégia dos generais japonesese aquela do jogo Go.35 Mas Go é também o emble-ma do filme O ano passado em Marienbad,36 cujoautor, Alain Resnais, é também aquele do “do-cumentário” Nuit et brouillard37 e da “ficção” Hi-roshima mon amour.38 E Level five é, em determi-nada medida, a refilmagem de Hiroshima monamour na era do computador. O casal de amantesfoi substituído por um casal singular: o computa-dor e uma mulher que, por meio dele, dialoga como amante desaparecido. Mas essa amante de fic-ção tem um estatuto muito particular. De umaparte, ela não passa da ficcionalização de uma fun-ção poética: aquela da voz que comenta. Essa vozem off, geralmente masculina e autoritária, é aquirepresentada, ficcionalizada e feminilizada. Mas oé de modo bem específico: a “heroína” Laura saiela própria da ficção cinematográfica, da mesmamaneira que sua homônima, a heroína do filme dePreminger,39 sai do seu quadro para tornar-se umacriatura viva. Além disso, sabe-se que a celebrida-de de Laura está relacionada a esta primeira frase:“Jamais esquecerei a tarde em que Laura morreu”,que se revelará, por inversão, como a sentença deuma pessoa morta sobre uma viva.

Desse modo, a ficção de uma memória duplica-seao infinito, e o documentário revela-se, mais doque nunca, como a efetivação de uma poética ro-mântica que elimina toda a aporia do “fim da arte”.A memória de um dos crimes mais monstruososdo século e da história se identifica, em Level Five,a uma ficção da ficção da ficção. Mas essa multipli-cação ficcional do sentido também parece cor-responder a um empobrecimento material daimagem. A irrealidade sem aura, própria à imagemsintética, comunica-se com as imagens de origensdiversas que o filme reúne. E a multiplicação dos

níveis de ficção e de sentido encontra seu lugar nabanalidade do espaço videográfico. A tensão en-tre as “imagens que falam” e as palavras que as fa-zem falar revela-se, definitivamente, como umatensão entre a ideia da imagem e a matéria figura-da. E aqui não se trata de um dispositivo técnico,mas poético. Com as armas do vídeo, Godard faz ocontrário de Marker: ele traz para a glória do íconea alegre desordem das palavras e das imagens. Eleeterniza, ao reunir os fragmentos de ficções do sé-culo, o reino – espiritual e plástico – das sombrascinematográficas, herdeiras das figuras pictóricas.Em Marker, nesse caso mais próximo da arte dainstalação, é, ao contrário, a imagem como opera-ção de reunião e de desvio que se afirma, em detri-mento do esplendor material do reino das som-bras. Desse modo, o “poema do poema” encontra,na época das avaliações de um século e das revo-luções técnicas da imagem, duas figuras muitopróximas e radicalmente opostas. Um túmulocontra o outro, um poema contra o outro.

Tradução Analu CunhaRevisão técnica Inês de Araújo

NOTAS

1 Jacques Rancière, La fiction documentaire: Markeret la fiction de la mémoire. In: La fable cinématographi-que. Paris: Seuil, 2001. Originalmente publicado como Lafiction de memoire: À propos du Tombeau d’Alexandrede Chris Marker, Trafic, 29, Spring, 1999: 36-47 (N.T).

2 O autor agradece a Sylvie Astric, que suscitou seu in-teresse por esse filme e pela ficção documental em umaprogramação da BPI [Bibliothèque publique d'informa-tion] no Centro George Pompidou.

3 Le tombeau d’Alexandre no original, filme produzidoem 1993. A palavra tombeau também carrega um senti-do de elegia, homenagem. Nos países de língua inglesa, otítulo do filme foi traduzido para The Last Bolshevik. Ofilme se estrutura em seis “cartas” de Marker a Medved-kine distribuídas em duas partes: O reino das sombras eAs sombras do reino (N.T).

4 Alexandre Medvedkine (Penza, Russia, 1900-1989).Durante a Guerra Civil foi comandante da Cavalaria Ver-melha e responsável por um jornal satírico do teatro doregimento. A partir dos anos 30, passa a se dedicar ao ci-nema com temas políticos e sociais.

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5 O negacionismo é a negação ilegítima de determina-do fato histórico (N.T.).

6 Em grego no original: Systimaton pragmáton – o es-quema das coisas (N.T.).

7 M ythos – ������ (N.T.).

8 Documentário de nove horas sobre o Holocausto,lançado em 1985 (N.T.).

9 Filme dirigido pelo cineasta russo Serguei Eisenstein(1898-1948), em 1925 (N.T.).

10 Cena de O túmulo de Alexandre (N.T.).

11 Stéphane (Étienne) Mallarmé (França, 1842 – 1898)(N.T.).

12 François Couperin (França, 1668 – 1733) e Marin Ma-rais (França, 1656 –1728). (N.T.).

13 Dziga Vertov, nascido Denis Abramovich Kaufman(Rússia, 1896-1954) (N.T.).

14 Ivan Kozlovsky (Ucrânia, 1900-1993) (N.T.).

15 Projeto realizado por Medvedkine entre 1930 e 1934ao converter um trem com recursos para filmar, revelar,montar, projetar e debater com a população os mais de50 filmes produzidos. Auxiliado por atores, montadorese técnicos, Medvedkine circulou pela União Soviética re-gistrando operários, camponeses e mineiros com o ob-jetivo de “filmar o que não está dando certo, mostraraos interessados e, a partir de amanhã, debater imedia-tamente com eles e filmar novamente em uma semana,um mês mais tarde, para avaliar as mudanças. Disponívelem <www.kinoglaz.fr/u_fiche_person.php?lang=fr&num=186> e consultado em setembro de 2010.

16 Kolkhozes no original; propriedades rurais coletivas,típicas da antiga União Soviética, nas quais os campone-ses formavam cooperativas de produção agrícola (N.T.).

17 Comédia de 1934 (N.T.).

18 Na Rússia czarista, designação pejorativa para oscamponeses que possuíam grandes fazendas nas quaisempregavam trabalhadores agrícolas assalariados (N.T.).

19 “ligne” no original.

20 Filme de 1938 (N.T.).

21 Ópera em quatro atos de Modest Mussorgsky (Rús-sia, 1839-1881) baseada no drama homônimo de Alexan-dre Pushkin (Rússia, 1799-1837) sobre a vida de BorisFeodorovitch Godunov (1551-1605), czar da Rússia entre1584 e 1598 (N.T.).

22 O filho mais velho do czar, em russo no original (N.T.).

23 Isaac Babel (Rússia, 1894-1940), jornalista e escritor,publicou Contos de Odessa e A cavalaria vermelha (N.T.).

24 Filme de 1939 (Tsvetushchaya yunost – Juventudeflorescente) (N.T.).

25 Société! Tout est restauré!” tradução livre (N.T.).

26 Rancière se refere ao poeta russo Óssip Mandelstam(Polônia, 1891-1939), autor de O rumor do tempo e Via-gem à Armênia, São Paulo: Editora 34, 2000 (N.T.).

27 No original, “terre noire du temps” e, em seguida,“siècle d'argile”. Referências à terra negra russa e ao uni-verso poético de Mandelstan. (N.T.).

28 Cf. J. Rancière. “De Wordsworth à Mandelstam: lestransports de la liberté”, in La Chair dits mots, Paris: Gali-lée, 1998.

29 Alexandre Dovjenko (Ucrânia, 1894-1956) (N.T.).

30 Louis Delluc (França, 1890-1924), Jean Epstein (Po-lônia, 1897-1953) e Ricciotto Canudo (Itália, 1879-1923).

31 Em inglês no original (N.T.).

32 Leçons d'esthétique no original. No Brasil, Cursos deestética (4 volumes) São Paulo: Edusp, 2001 (N.T.).

33 Nível cinco em português. Filme de 1997, com Cathe-rine Belkhodja no papel de Laura, a programadora decomputador que precisa finalizar um jogo de estratégiainiciado por seu falecido ex-amante. Suas dificuldadesse concentram na histórica Batalha de Okinawa, o nívelcinco do jogo (N.T.).

34 A Batalha de Okinawa foi uma das mais sangrentas daSegunda Guerra Mundial: após o combate com as tropasamericanas, sem alimentos e abandonados pelo gover-no, o Exército Imperial japonês induziu a população localao suicídio coletivo como alternativa à rendição.

35 Jogo de tabuleiro de origem oriental (N.T.).

36 Filme de 1961 (N.T.).

37 Noite e neblina no Brasil. Filme sobre a SegundaGuerra Mundial lançado em 1955 (N.T.).

38 Filme de 1959 com roteiro de Marguerite Duras sobreo relacionamento entre uma francesa e um japonês (N.T.).

39 Otto Preminger (Áustria, 1906-1986) produtor ediretor de cinema austríaco que atuou nos EUA, dirigiuLaura em 1944 a partir do romance de Vera Caspary. Nele,um detetive investiga a morte de Laura e se sente atraídopor sua imagem, retratada em uma pintura (N.T.).

Jacques Rancière (Argel, 1940), é professor defilosofia na European Graduate School em Saas-Fee,Suíça, e professor emérito de estética e política na Uni-versidade de Paris VIII, onde lecionou de 1969 a 2000.Entre suas últimas obras publicadas no Brasil estãoPolíticas da escrita (Editora 32, 1995), O desentendimen-to (Editora 34, 1996), O mestre ignorante (Autentica,2004), A partilha do sensível (Editora 34, 2005) e O in-consciente estético (Editora 34, 2009).