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Raphael Henrique Mota Guilarducci A Escola e o Esporte: análise do macrocampo esporte e lazer em um programa de educação integral em tempo integral. Lavras-MG 2016

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Raphael Henrique Mota Guilarducci

A Escola e o Esporte: análise do macrocampo

esporte e lazer em um programa de educação

integral em tempo integral.

Lavras-MG

2016

Raphael Henrique Mota Guilarducci

A Escola e o Esporte: análise do macrocampo esporte e lazer em um

programa de educação integral em tempo integral.

Monografia apresentada à Universidade Federal de Lavras, como parte das exigências do Curso de Educação Física, para a obtenção do título de Licenciado.

Orientador Dr. Bruno Adriano Rodrigues da Silva

Lavras-MG 2016

Raphael Henrique Mota Guilarducci

A Escola e o Esporte: análise do macrocampo esporte e lazer em um

programa de educação integral em tempo integral.

Monografia apresentada à Universidade Federal de Lavras, como parte das exigências do Curso de Educação Física, para a obtenção do título de Licenciado.

Aprovada em:________de_____________de 2016 Prof. Dr. Fábio Pinto Gonçalves Dos Reis

Orientador Dr. Bruno Adriano Rodrigues da Silva

___________________________________________

Lavras-MG 2016

Para Guila, Vivi e Marlene, pois somente agradecê-los seria pouco.

Agradecimentos Em primeiro lugar gostaria de expressar minha gratidão às políticas

de democratização do acesso ao ensino superior promovidas na última

década. Essas ações tornaram o ensino superior um sonho possível para nós,

estudantes das escolas públicas. Agradeço à Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelos 35 meses na

condição de bolsista do Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à

Docência e 15 meses como bolsista do Programa Ciência sem Fronteiras.

Agradeço ao meu pai e às minhas mães: Cláudio, Viviane e Valéria,

pelo apoio, carinho, trabalho e luta para tornar esse momento possível. Ao

meu irmão, Gustavo, pela amizade e companheirismo. Agradeço "in

memorian" à minha avó Marlene, por quem guardo um amor eterno.

Agradeço à Laura: pelo amor, pelas brigas, por me aturar e estar sempre

comigo, apoiando e incentivando, mesmo quando estávamos em países

diferentes. Aos meus tios e primos por todo o suporte.

Agradeço aos amigos do "estadual", pela sincera amizade de longa

data. Aos amigos do CSF-143, pelo companheirismo em tudo que vivemos

juntos.

Agradeço ao meu orientador Bruno, pela atenção e experiências

formativas.

Agradeço a todos professores(as) que contribuíram para a minha

formação nas escolas: Jardim Encantado, Escola Estadual Bias Fortes e

Escola Estadual Professor Soares Ferreira. Agradeço em especial à

professora Betty e o Professor Rubinho pelo forte incentivo recebido.

Agradeço a todos professores(as) que contribuíram para a minha formação

na Universidade federal de Lavras. Agradeço em especial aos professores:

Bruzi, Cláudio e Fábio, por terem ampliado os meus horizontes.

Agradeço a todas as pessoas que contribuíram com a pesquisa.

Por fim, agradeço a todos não mencionados que foram importantes

nesse processo.

"O Educador que se nega no plano ideológico e político, se nega também como educador" (Florestan Fernandes)

Resumo

O presente trabalho articula a instituição escolar e o esporte, mais especificamente a presença do esporte no âmbito dos programas de educação integral em tempo integral. O objetivo geral é analisar a oferta do esporte em um programa de educação integral em tempo integral realizado por uma instituição escolar da rede estadual de Minas Gerais, situada no município de Lavras, destacando os elementos estruturais e pedagógicos e identificando as possibilidades e conflitos relacionados às práticas esportivas. Foram utilizados dois instrumentos metodológicos: i) a revisão de literatura acerca dos temas do esporte, da escola e da educação integral em tempo integral a partir de um olhar sociológico; ii) o estudo etnográfico da escola pública que consistiu em observações das oficinas de esporte do programa de educação integral em tempo integral, de anotações no caderno de campo e de entrevistas semiestruturadas com os profissionais envolvidos no programa. Os resultados da pesquisa indicam a falta de recursos para a realização das atividades programa; uma relação direta e conflituosa entre os aspectos macroestruturais do programa desenvolvido pela SEE/MG e as ações pedagógicas dos professores na escola; inúmeras limitações nas oficinas de esporte e lazer que representam uma negação ao direito de acesso a essa prática.

Palavras Chave: Escola. Esporte. Educação integral em tempo integral.

Sumário

1 Introdução....................................................................................................8 2 A escola em foco........................................................................................13 2.1 As instituições escolares: entre a autonomia e a dependência. ...............13

2.2 A escola como grupo social: um diálogo com Antonio Candido ...........15 2.3 Educação integral em tempo integral......................................................22

2.4 Educação em tempo integral: duas vertentes distintas............................26

2.5 Apontamentos sobre o programa “Mais Educação” ...............................29

3 O esporte em foco. .....................................................................................34 3.1 Explicando ao narrador esportivo porque não temos gladiadores no terceiro milênio..............................................................................................34 3.2 Características do esporte .......................................................................36

3.3 O esporte no país das maravilhas............................................................41

3.4 Conflitos no esporte ................................................................................43

3.5 O esporte e a escola ................................................................................48

4 Análise do macrocampo esporte e lazer no projeto de educação em tempo integral ..........................................................................................................53 4.1 Contextualização Inicial..........................................................................53

4.2 Observações do cotidiano de uma escola pública da rede estadual no município de Lavras......................................................................................55

4.3 O projeto de educação integral em tempo integral realizado na escola 63

4.4 Relações entre a escola e a educação integral em tempo integral...........65

4.5 O não lugar do macrocampo de esporte e lazer no projeto de educação em tempo integral .........................................................................................68 5 Conclusão ..................................................................................................78 Referências Bibliográficas............................................................................81

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1 Introdução

É recorrente em trabalhos acadêmicos e também no fazer científico

certo processo de desconexão entre a pesquisa e a pessoa que a conduziu.

Muitas vezes esse modo de produção científica descaracteriza o sujeito que

conduz o estudo, trata-o como algo irrelevante nesse processo.

Algumas áreas do conhecimento, em especial, aquelas vinculadas às ciências

humanas e sociais, demonstram uma maior abertura para se pensar a ciência

como algo construído pelos seres humanos e, portanto, algo que toca o

sensível, o subjetivo e que estabelece uma relação com o campo das

experiências de cada sujeito.

Considero importante ressaltar essa questão, de modo a esclarecer

que a realização desse trabalho somente é possível pelas experiências que

tive ao longo da minha vida e da minha formação profissional no curso de

licenciatura em Educação Física da Universidade Federal de Lavras (UFLA).

Os resultados dessas experiências são responsáveis pelo lugar em que estou.

Dessa forma, nos próximos parágrafos destacarei elementos da minha

trajetória acadêmica que me levaram a projetar esse trabalho.

Destaco três importantes espaços que frequentei antes da

universidade que são fundamentais na minha formação como sujeito. O

primeiro é o espaço familiar. Sou filho de professores que iniciaram as

suas carreiras no ensino básico e posteriormente ingressaram no

ensino técnico federal e superior, atuando também como pesquisadores.

Cresci acompanhando os passos dos meus pais dentro da comunidade

científica e sempre recebendo um grande incentivo para os estudos. O

segundo espaço refere-se à escola. Durante toda a minha vida escolar

frequentei escolas públicas e vivenciei a diversidade que existe nelas, sem

contar também todos os seus problemas de infraestrutura e funcionamento.

O terceiro espaço formador que destaco é o esporte. Passei por

diversas modalidades como a natação, a capoeira, o futsal, até chegar aos 11

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anos ao tênis, modalidade que pratiquei por toda a minha adolescência. Com

o tênis estabeleci uma relação para além do lazer, fui por três anos atleta da

Federação Mineira de Tênis (FMT). Em grande medida, as experiências que

tive como atleta na adolescência foram responsáveis pela escolha da

Educação Física para a minha formação profissional

Ao longo da minha curta trajetória acadêmica tenho estabelecido

contato com dois temas de investigação na área da Educação Física, a escola

pública e o esporte. Além das disciplinas cursadas na área da Educação, que

são componentes obrigatórios nos currículos da licenciatura em Educação

Física, tenho também uma considerável experiência no Programa de Bolsa

de Iniciação à Docência (PIBID), fomentado pela Coordenação de

Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Fui

bolsista desse programa por aproximadamente três anos, no subprojeto

Interdisciplinar e de Educação Física, atuando em instituições escolares

públicas. Ao longo desse tempo desenvolvi projetos no ensino regular e em

um programa de educação integral em tempo integral.

Em relação ao tema do esporte, tenho experiência com as

disciplinas cursadas durante a minha formação na UFLA.

Também participei do grupo de estudos "CIVITAS: Corpo, Cidade e

Práticas Sociais", onde o diálogo entre o campo da Educação e a temática

do esporte fazia-se presente. Fui bolsista no Programa Ciência sem

Fronteiras (CSF), fomentado pela CAPES e pelo Conselho Nacional de

Pesquisa (CNPQ). Durante a minha participação no CSF morei por um ano e

três meses nos Estados Unidos da América, onde realizei o intercâmbio

acadêmico em um dos campus da California State University. No período

em que estive em mobilidade acadêmica dediquei meus estudos à sociologia

do esporte e às questões econômicas contemporâneas.

Foi a partir dessas experiências relatadas que iniciei a elaboração

deste trabalho de conclusão de curso. Para tal, algumas delimitações foram

importantes. O presente trabalho articula a instituição escolar e o

10

esporte, mais especificamente a sua presença no âmbito dos programas de

educação integral em tempo integral.

O objetivo geral é analisar a oferta do esporte em um programa de

educação integral em tempo integral realizado por uma instituição escolar da

rede estadual de Minas Gerais, situada no município de Lavras, destacando

os elementos estruturais e pedagógicos e identificando as possibilidades e

conflitos relacionados às práticas esportivas.

Entre os objetivos específicos destacamos três: i) analisar as

dinâmicas sociais dentro dessa instituição escolar, ii) analisar as

características estruturais do projeto de educação integral em tempo integral

realizado pela instituição e iii) analisar a presença do esporte no referido

projeto com base em alguns preceitos da sociologia crítica do esporte.

As relações entre o esporte e a escola são temas recorrentes de

pesquisa. Entretanto, ao refletirmos sobre a presença do esporte na educação

integral em tempo integral identificamos uma necessidade de investimento

em pesquisas. Ao buscar os termos escola e esporte na base de periódicos

CAPES encontramos 351 resultados. Quando buscamos os termos Educação

integral em tempo integral e esporte foram encontrados apenas sete

resultados.

Esse cenário de uma relativa escassez de estudos juntamente a

algumas características dos programas de educação integral em tempo

integral que, normalmente utilizam o esporte, aponta para a importância de

pesquisarmos a sua inserção nessa modalidade de ensino.

Habitualmente, esses programas atendem os estudantes em

vulnerabilidade socioeconômica. Nesse aspecto a análise dos princípios que

norteiam as bases desses programas é fundamental, na medida em

que podemos questionar o modelo de sociedade que está implícito nessas

experiências esportivas dentro da escola pública, assim como considerar qual

o entendimento de educação está em voga.

Além disso, como em outros momentos havia a mediação da

disciplina escolar educação Física em relação à prática esportiva, na

11

atualidade, em função da presença desses programas, o esporte está presente

também por meio de oficinas realizadas no contraturno escolar, nem sempre

ministradas por professores de educação física. Por isso a necessidade de

debatermos a natureza deste tipo de procedimento. Investigando as

condições que permeiam as oficinas de esporte na educação integral em

tempo integral e o papel que essa prática corporal tem desempenhado na

formação dos estudantes dessa modalidade de ensino.

Trabalhamos com a hipótese de que existem conflitos entre o que

está exposto na legislação dos programas de educação integral em tempo

integral e o que de fato acontece durante as suas ações pedagógicas. É

possível que, em virtude das características desses programas, haja um

significativo distanciamento entre a legislação e a realidade da escola

pública.

Diante do que apresentamos até aqui, consideramos adequada a

utilização de dois instrumentos metodológicos para a construção da

pesquisa: i) a revisão de literatura acerca dos temas do esporte, da escola e

da educação integral em tempo integral a partir de um olhar sociológico; ii) o

estudo etnográfico da escola pública que consiste em observações do

cotidiano das oficinas esportivas da educação integral em tempo integral e

anotações em um diário de campo que nos ajudará a melhor compreender as

relações sociais que se estabelecem dentro daquela instituição. Também

aplicaremos entrevistas semiestruturadas juntos aos profissionais que atuam

no programa de educação integral em tempo integral (pedagogos,

professores de Educação Física, Diretor e trabalhadores voluntários).

Com a utilização desses dois instrumentos metodológicos esperamos

alcançar os objetivos propostos no trabalho. A análise etnográfica caminhará

de modo a buscar um entendimento das relações construídas no referido

programa de educação integral em tempo integral que supere as aparências,

que possa entender essas relações além da superficialidade. Somente com a

busca desse entendimento que podemos nos aproximar de dimensões mais

profundas do real, dimensões que consigam romper com identificações e

12

panoramas superficiais e possam propiciar uma reflexão mais rica (IANNI,

2011). Nesse sentido, a revisão de literatura tem um importante papel, pois a

reflexão será construída tendo como suporte produções acadêmicas que se

voltaram e se preocuparam em desmistificar os temas abordados por esse

trabalho.

Em conformidade com os objetivos estabelecidos e com os caminhos

metodológicos dividimos o trabalho em três capítulos: o primeiro sobre

aspectos que envolvem as instituições escolares e a educação integral em

tempo integral; o segundo sobre aspectos referentes à sociologia do esporte;

e por fim, o terceiro, sobre a pesquisa realizada em uma escola pública da

rede estadual de Lavras, onde analisamos a oferta do esporte no macrocampo

de esporte e lazer de um programa de educação integral em tempo integral.

13

2 A escola em foco

Neste capítulo a instituição escolar será o nosso objeto de reflexão.

O capítulo se divide em duas partes principais. No primeiro momento,

analisaremos a estrutura das instituições escolares considerando os diversos

aspectos que dela fazem parte. O objetivo é entender o modo como as

relações sociais se estruturam dentro desses espaços. Posteriormente, nosso

olhar será direcionado para o contexto da educação em tempo integral,

analisando algumas das especificidades dessa modalidade educacional.

2.1 As instituições escolares: entre a autonomia e a dependência

A escola historicamente é um espaço onde determinados

conhecimentos, valores e concepções sobre a sociedade são construídos de

forma sistematizada. Embora todas as escolas tenham as características

citadas acima como elementos estruturantes, encontramos nos sistemas

escolares uma grande divergência no que se refere à seleção de quais

conhecimentos, valores e concepções são priorizados. Essas divergências

ocorrem em virtude do momento histórico e das particularidades de cada

país, região e das características da sociedade em que a escola está inserida.

"O sentido da prática educacional é culturalmente definido e

institucionalmente regulamentado de acordo com as peculiaridades

estruturais do sistema no qual ela se exerce" (PEREIRA & FORACCHI,

1979, p.254).

Sobre a prática educacional enquanto atividade institucionalmente

regulamentada é relevante o entendimento da escola como um grupo

instituído. Segundo Znaniecki (1979):

Empregamos a expressão grupo instituído para designar grupos que são, essencialmente, produtos da cooperação de seus membros, mas cujas funções coletivas e posições são, em parte, instituídas por outros grupos sociais. Isso não quer dizer que o grupo assim instituído

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se torne uma parte integrante da organização e da estrutura do grupo instituidor; significa, simplesmente, que este último reconhece o primeiro como um grupo e submete algumas funções daqueles a sanções positivas e negativas. (ZNANIECKI, 1979, P.104)

O Estado é a principal organização que regulamenta e delimita o

papel da escola em nossa sociedade. Outras instituições e formas

organizacionais também atuam diretamente sobre as escolas. Não é raro

encontrarmos instituições escolares orientadas por instituições religiosas,

militares ou que fazem parte da dimensão privada da educação escolar, com

códigos próprios e que regem centenas de escolas em diversas regiões do

país (ZNANIECKI, 1979).

Por isso, a instituição escolar é estruturada a partir de tensões entre

as suas relações sociais internas e as demandas exteriores. Não é correto

dizer que os sujeitos que fazem parte do cotidiano escolar não possuam certo

grau de autonomia nas formas de relacionar-se e nos caminhos e objetivos

postos pela escola. Nesse mesmo sentido, seria igualmente equivocada uma

concepção sobre a escola que atribua uma autonomia absoluta aos sujeitos

escolares (estudantes, professores, e funcionários da escola) (ZNANIECKI,

1979).

Portanto, as escolas nas suas relações internas juntamente com as

demandas de instituições regulamentadoras constroem o processo de

escolarização, estabelecendo os objetivos e os caminhos que serão

percorridos. As relações das escolas com as instituições regulamentadoras

podem assumir diferentes formas, desde uma relação construtiva e benéfica

para ambas as partes até relações extremamente conflituosas que

demonstrem disputas de poder entre as partes envolvidas (CANDIDO,

1979).

Como exemplo bem atual de conflito nessas relações podemos citar

as ocupações de escolas, realizadas por estudantes secundaristas, no estado

de São Paulo no primeiro semestre de 2016. Nessas ocupações os estudantes

fizeram diferentes reivindicações. Entre as principais, destacamos: as

15

melhorias na estrutura física das escolas, participação dos alunos nas

decisões que afetam as escolas, investigações referentes à supostas práticas

ilegais nas licitações da merenda escolar e a não reestruturação (fechamento)

das escolas, conforme anunciada pelo governador Geraldo Alckmin (PSDB).

Em resposta, o poder executivo do estado de São Paulo utilizou o recurso da

violência policial na tentativa de controlar as ações dos estudantes, criando

pouco espaço para o diálogo entre as partes envolvidas1.

O caso ocorrido em São Paulo evidencia que a autonomia da

instituição escolar é relativa. No entanto, as relações internas e os interesses

dos sujeitos escolares são fundamentais e constituintes dessa instituição.

Algo que vem sendo negligenciado em municípios, estados e na própria

união, na medida em que historicamente eles respondem com violência a

qualquer sombra de contestação das condições básicas de funcionamento das

escolas.

Nesse sentido, são as dinâmicas internas à escola que serão

analisadas, sem perder de vista, portanto, que ela é um grupo social

instituído (ZNANIECKI, 1979).

2.2 A escola como grupo social: um diálogo com Antonio Candido

Neste tópico apresentaremos uma análise da escola como grupo

social. A análise será feita com base no diálogo com o texto intitulado "A

Estrutura da Escola" de Antonio Candido (1979).

Esse autor começa seu texto argumentando o papel protagonista dos

sujeitos escolares nas dinâmicas internas à instituição e que por isso a escola

não é determinada apenas por instituições exteriores, como já havíamos

identificado na seção anterior. Para ele:

1 Link com uma reportagem da Revista Carta Capital sobre as ocupações das escolas no Estado de São Paulo, disponível em: <http://www.cartaeducacao.com.br/reportagens/o-que-restou-das-ocupacoes-nas-escolas-em-sao-paulo/>. Acesso em: 10/05/2016

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(...) a estrutura total de uma escola é todavia algo mais amplo, compreendendo não apenas as relações ordenadas conscientemente, mas ainda, todas que derivam da sua existência enquanto grupo social. Isto vale dizer que ao lado de relações oficialmente previstas (que o legislador toma em consideração para estabelecer as normas administrativas), há outras que escapam à sua previsão, pois nascem da própria dinâmica do grupo social escolar. Deste modo, se há uma organização administrativa igual para todas as escolas de determinado tipo, pode-se dizer que cada uma delas é diferente da outra, por apresentar características devidas à sua sociabilidade própria. (CANDIDO, 1979, P. 107)

Assim, é importante que os educadores e pesquisadores que

empreendem esforços para estudar a realidade de um contexto escolar

superem uma visão sobre a escola que considera apenas a parte normativa.

Pois, se as escolas fossem o reflexo absoluto de legislações e determinações

exteriores não seria necessária a investigação de suas relações internas.

Chegaríamos, seguindo tal linha de raciocínio, a uma conclusão errônea de

que todos os contextos escolares seriam iguais, não havendo particularidades

ou diferenças.

Nas relações internas da escola existem diversas tensões. Entre essas

tensões, destacamos as relações construídas envolvendo de um lado

professores e administradores da escola e do outro os estudantes. De acordo

com Candido (1979), os professores juntamente com a parte administrativa

da escola exercem um conjunto de pressões que atendem mais aos interesses

da organização social do que aos interesses dos alunos. Nessa relação

tensionada os discentes buscam formas de dar expressão a sua sociabilidade

própria. Como resultante deste processo criam-se movimentos de resistência

e/ou de acomodação. Tais movimentos envolvem os professores,

administradores e os estudantes, expressando formas de sociabilidade

diversas dentro da escola.

Para investigar essas formas de sociabilidade o autor apresenta

algumas características da escola como grupo social. Candido (1979)

restringe sua análise a um estabelecimento escolar que atenda a três critérios:

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(1) possua ciclo primário e secundário (atual ensino básico); (2) haja

coexistência de sexos; (3) tenha uma tradição escolar. A partir disso o autor

divide sua análise na investigação das formas de agrupamento e dos

mecanismos de sustentação desses agrupamentos.

Candido (1979) apresenta cinco formas de agrupamento. A primeira

delas é o agrupamento por idade. De acordo com Candido, esse método de

agrupamento é facilmente identificável na escola. Sua forma mais explícita é

caracterizada pelo grau de distanciamento existente entre os adultos

envolvidos nas atividades escolares e os estudantes. Entre os próprios

estudantes é comum a criação de diferentes grupos que tendem a seguir um

equilíbrio entre as faixas etárias, onde há uma organização de alunos de

séries próximas e do mesmo nível de escolarização. O autor destaca que a

idade não assume apenas um caráter biológico, ela expressa também uma

característica social. O avançar dos anos é visto como um processo de

maturidade biológica e social. Nesse processo, a internalização de

conhecimentos, valores e dos papeis sociais vão se expandindo e assumindo

características próprias.

A seguir o texto aponta o agrupamento por sexo. Mais uma vez

Candido (1979) indica que o sexo também pode ser analisado pelo caráter

social, estando vinculado a ideia de gênero. Os sujeitos se agrupam

conforme suas identificações de gênero, buscando a afirmação dos interesses

próprios ao grupo. Temos nesse aspecto uma forma de tensão muito presente

dentro da escola que se manifesta de diferentes formas. A disputa de

meninas pela legitimidade de espaços na escola, como a quadra utilizada

para o futebol ou a luta pelo direito de usar shorts, algo presente em diversas

escolas, são dois exemplos de tensões que fazem parte de certos

agrupamentos femininos.

Os grupos associativos são a terceira forma de agrupamento.

Diferentemente dos dois primeiros agrupamentos, os grupos associativos não

têm ligação com fatores biológicos. Eles são criados a partir do livre

interesse dos estudantes, caracterizando uma forma mais consciente de

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participação. Candido (1979) indica que de acordo com a idade os grupos

associativos estabelecem vínculos em diferentes níveis de intensidade, sendo

os grupos infantis mais voláteis e os juvenis mais estáveis. O autor classifica

esses grupos em três tipos principais: recreativos, intelectuais e cooperativos.

Os dois primeiros tipos são de fácil entendimento, o próprio nome

atribuído já indica a natureza das ações realizadas pelo grupo, o estudo e a

recreação. Já o terceiro grupo, segundo Candido:

São cooperativos - à falta de melhor nome - os agrupamentos cujos membros, voluntariamente associados, concorrem para uma finalidade comum, que sendo embora de benefício pessoal, é definida segundo o interesse geral do grupo. Interesse que pode ser o prestígio, privilégio, prazer, subversão, mas se subordina a princípios mais ou menos definidos de auxílio mútuo ( CANDIDO, 1979, p. 116).

Temos nos grupos cooperativos um forte vínculo entre os seus

participantes. Os rituais estabelecidos pelo grupo orientam grande parte das

ações dessa forma de agrupamento. De acordo com Candido (1979), esses

grupos são os mais difíceis de serem identificados e estudados, pois tem

como uma de suas principais características a discrição, sendo as atividades

realizadas em sigilo.

Como quarta forma de agrupamento, Candido (1979) apresenta o

"Status". Esse modo de se agrupar indica uma estratificação e hierarquização

dos estudantes que se baseia principalmente na forma de sociabilidade

interna. Ou seja, um aluno tratado como "especial", colocado em uma

posição de destaque em determinada escola pode não ter a mesma forma de

tratamento em outro contexto escolar.

O "Status" está condicionado aos valores, características e traços

sociais legitimados como desejável pela maior parte dos sujeitos escolares.

Para exemplificar, em uma escola onde a maioria prioriza o alto desempenho

nas disciplinas, um estudante com elevado rendimento acadêmico ocuparia

um lugar de destaque positivo. Se esse mesmo aluno se transferisse para uma

19

escola onde a maioria dos estudantes valorizam ações subversivas, a posição

ocupada na hierarquia escolar e o status certamente se alterariam.

A última forma de agrupamento citada pelo autor são os grupos de

ensino. Os grupos de ensino se remetem as salas de aulas, onde a maior parte

das atividades pedagógicas ocorrem. Essa forma de agrupamento dá origem

às outras citadas anteriormente. Isso se explica pelo caráter diversificado que

um grupo de ensino possui. Muitas vezes fazemos a análise do agrupamento

pela sua unidade e elementos em comum, mas se tratando dos grupos de

ensino é extremamente importante analisar as diferenças e conflitos

existentes entre os sujeitos que o compõe.

Após descrever as formas de agrupamento, Candido (1979)

investigou as estratégias que mantém a sustentação desses agrupamentos nas

escolas. De acorde com o autor existem quatro mecanismos de sustentação, o

primeiro deles é a liderança. A liderança pode ser dividida em dois tipos

distintos, uma exercida pelo educador e outra exercida pelo educando.

O educador é um líder institucional, as condições das instituições

escolares possibilitam aos professores um lugar de referência e liderança.

Segundo Candido (1979), a liderança dos educadores se funda

principalmente em três elementos: idade, força e posição. Esses elementos

são indissociáveis na constituição da liderança exercida pelos professores.

A idade, como apontamos, assume uma marca social, onde os

professores são considerados como sujeitos de maturidade superior em

relação aos estudantes. A distinção entre as idades juntamente com as

condições institucionais, conferem aos professores o uso da coerção,

constituem força e poder aos educadores. Já o prestígio está vinculado ao

status, que certamente é influenciado pelas condições de força e idade. Cabe

ressaltar que, enquanto a distinção de idade e o uso da força são

características asseguradas institucionalmente a todos os professores, o

prestígio demonstra um viés mais pessoal, estando relacionado às

personalidades individuais de cada educador.

20

A liderança por parte dos estudantes é exercida principalmente pelo

prestígio. Aos alunos não são asseguradas características institucionais que

promovam grandes distinções entre eles. Há certas regalias e posições

especiais conferidas aos estudantes que demonstram um comportamento

considerado adequado às demandas institucionais. Independente disso, a

lideranças entre os estudantes requer a legitimidade dos mesmos, isso

justifica situações em que os líderes estudantis escolhidos pela escola

exercem menos influência do que outros estudantes considerados marginais

dentro da estrutura escolar.

O segundo mecanismo de manutenção dos agrupamentos são as

normas de conduta escolar. Existem dois tipos de normas principais, as que

regem a conduta do educador e as que regem a conduta do educando.

Segundo Candido (1979):

A conduta do educador se enquadra em determinadas normas, que correspondem a três ordens diferentes de expectativas: as da comunidade, as do grupo docente e administrativo, as do educando. (p. 123).

Temos a partir da tensão entre essas três diferentes ordens de

expectativa a formulação das normas de conduta dos professores. Em relação

as normas de conduta dos estudantes, o processo é similar. As ordens de

expectativa mencionadas também estruturam a conduta dos discentes. As

expectativas dos estudantes possuem grande relevância nesse processo.

Muitos dos comportamentos desviantes e marginalizados exprimem uma

insatisfação com as normas impostas e demonstra um desejo de mudança,

uma busca por novas relações entre as imposições administrativas e a

posição dos estudantes na escola.

As sanções são a terceira forma de manutenção dos agrupamentos. O

autor cita três espécies de sanções: administrativas, pedagógicas e grupais.

Segundo Candido (1979), as sanções administrativas e pedagógicas são

preestabelecidas, enquanto as grupais se desenvolvem pelas interações que

ocorrem dentro da escola. Todas as formas de sanções podem reger tanto o

comportamento dos estudantes como o dos professores. O autor indica que

21

as sanções se orientam por práticas de exclusão, correção ou prestação. A

expulsão da escola, a reprovação em uma disciplina e a cópia dos erros em

uma avaliação são exemplos dessas sanções que:

(...) têm por finalidade punir o comportamento do aluno ou educador que se desvie do que a legislação escolar e os regulamentos internos determinam.(...) As pedagógicas visam não à conformidade do comportamento à norma administrativa, mas à aprendizagem. (CANDIDO, 1979, p.125)

As sanções grupais são mais difíceis de definir. Essas sanções são

desenvolvidas internamente pelos estudantes, podendo se dirigir aos colegas

ou aos educadores e administradores da escola. Essas sansões reforçam as

concepções predominantes entre os estudantes, onde comportamentos por

parte dos professores, administradores ou entre os próprios alunos podem

sofrer diversas formas de represália. Entre as formas de represália podemos

citar a exposição ao ridículo, agressões físicas, exclusão do grupo social,

dano a pertences materiais, etc.

O último mecanismo de sustentação dos agrupamentos são os

símbolos. Candido afirma que:

a importância do sistema simbólico de uma escola, inclusive a sua tradição, se manifesta nitidamente no conjunto de sanções impostas aos neófitos- os calouros- sujeitos a todas as partes do mundo a provações que vão de simples caçoada de meninos às práticas brutais e deprimentes das escolares superiores. (CANDIDO, 1979, p. 127).

Assim, parte das relações nas escolas são construídas a partir de

elementos que não se encontram em suas normas internas ou regimentos.

Existem formas simbólicas que exercem grande influência no

comportamento dos sujeitos. Por exemplo, entre os estudantes o ato de

acusar um colega perante a administração ou professores da escola tem um

valor simbólico muito forte. Em muitos contextos escolares os alunos são

incentivados, pelo regulamento, a apontar práticas marginais. Contudo, o

valor simbólico de denunciar um companheiro de escola é algo fortemente

recriminado entre a maioria dos discentes. Nessa situação, muitas vezes, a

22

questão simbólica do ato exerce mais influência no comportamento dos

alunos que a regra imposta pela instituição.

Buscamos nesse tópico apresentar um panorama dos aspectos

relacionados à estrutura da escola, pois consideramos isso importante para

análise do cotidiano escolar que faremos no terceiro capítulo deste TCC. Por

ora, no entanto, vamos analisar o tema da educação integral em tempo

integral que também é parte constituinte desse estudo.

2.3 Educação integral em tempo integral

Os empreendimentos e ações direcionadas ao desenvolvimento de

propostas de educação integral em tempo integral no Brasil não são recentes.

Há um considerável número de experiências que foram realizadas em níveis

municipais, estaduais e federal. Essas ações se estruturaram através de

iniciativas do setor público e privado. Um resgate da trajetória histórica

dessas ações é extremamente relevante. Contudo, pelos limites desse

trabalho, nós iremos apresentar brevemente algumas das ações que tiveram

maior destaque no contexto da educação integral no Brasil, direcionando as

atenções, predominantemente, para o contexto atual.

Primeiramente, é relevante demarcar que não há uma definição única

sobre o que é a educação integral em tempo integral. Existem diferentes

correntes político-ideológicas que expressam concepções e objetivos

distintos sobre ela. Se pudermos apontar um consenso entre essas correntes,

diríamos que elas buscam uma formação mais completa. Todavia, ao

analisarmos as diferentes concepções encontramos modelos de sociedade e

expectativas diversas ao que concerne a formação completa dos seres

humanos e os fins sociais da educação. De acordo com Coelho apud Silva

(2016):

Na história da educação brasileira o tema da educação integral em tempo integral encontra-se presente de modo recorrente, embora seja utilizado a partir de matrizes ideológicas diferentes e às vezes antagônicas. Podemos citar: as conservadoras, que defendiam a

23

“espiritualidade, o nacionalismo-cívico e a disciplina” presentes, por exemplo, nas experiências educacionais desenvolvidas pela Ação Integralista Brasileira e por diferentes ordens religiosas; as liberais, que defendiam a igualdade educacional como uma das formas de sustentação da igualdade democrática caso, por exemplo, das experiências educacionais vinculadas aos pioneiros da Educação Nova no Brasil e de toda a tradição decorrente deste movimento a partir da década de 1920; e as socialistas, que baseavam suas experiências no entendimento de que educação deveria ser vista como um meio de emancipação social, um instrumento de construção de igualdades, caso das escolas sindicais vinculadas aos grupos anarquistas e marxistas (COELHO apud SILVA, no prelo, p. 1).

Como exposto as concepções conservadoras, liberais e socialistas

apresentam pontos de congruência, mas podemos identificar inúmeros

pontos conflitantes entre elas. Nesse aspecto Coelho (2009, p. 85) indica que

essas três ideologias: conservadorismo, liberalismo e socialismo são

“divergentes enquanto visões de mundo, forjam, obviamente, crenças,

hábitos, construções epistemológicas adequadas a essa tríade de olhares e,

portanto, diferentes entre si.

Entre as diferentes concepções de educação integral em tempo

integral presentes na história da educação brasileira destacamos a de Anísio

Teixeira, na medida em que foi por meio desse intelectual da educação que

as primeiras iniciativas que associavam a educação integral ao tempo

integral foram desenvolvidas no âmbito do ensino público (COELHO,

2009).

A proposta construída por Anísio Teixeira possui uma concepção

liberal. Têm como fundamento a igualdade de oportunidades entre os

sujeitos de trajetórias e classes sociais diversas e busca o fortalecimento do

regime democrático e a formação crítica dos estudantes, preparando-os em

aspectos sociais e também para o mercado de trabalho. Teixeira vislumbrava

em sua proposta, a partir da educação, aprimorar as condições para o

crescimento econômico e industrial do país. Segundo Silva (2015):

Partindo de uma concepção de democracia que se baseava na igualdade de oportunidades associada à

24

meritocracia, Anísio Teixeira entendia ser possível combater os privilégios históricos presentes na sociedade brasileira por meio da educação e, em especial, por meio da instituição escolar. Para ele, a construção da democracia poderia ser vista como uma “conseqüência material e social do regime industrial moderno” (p. 9)

A estrutura espaço-temporal das instituições escolares era dividida

em dois setores, segundo o modelo pensado por Anísio Teixeira: "O da

instrução, propriamente dita, ou seja da antiga escola de letras, e o da

educação, propriamente dita, ou seja da escola ativa" (Teixeira, 1959, p.82

apud COELHO, 2009, P. 91). Como exposto, esse intelectual da educação

dividia as instituições escolares em um setor para o que chamamos de ensino

regular, ou nas palavras do autor, “trabalho convencional de classe”. Ficando

o segundo setor destinado às atividades socializantes, que envolve a

educação Física, educação artística, trabalhos manuais e artes industriais.

A proposta de Anísio Teixeira é relevante na história da educação

brasileira, por isso suas ações para uma educação pública de qualidade

merecem destaque. A referida proposta também apresenta algumas

limitações no que tange ao seu modelo de educação integral em tempo

integral. Coelho (2009, p. 91) indica que a diferenciação entre as atividades

ditas escolares e as atividades diversificadas realizadas no contraturno

caracteriza uma concepção de educação integral em tempo integral em que a

formação completa não é vista integralmente.

Avançando algumas décadas e chegando a década de 1980 temos

outra proposta de educação integral em tempo integral que gostaríamos de

destacar. Referimo-nos aos Centros Integrados de Educação Pública

(CIEPs), concebidos pelo antropólogo Darcy Ribeiro. A proposta formulada

por Darcy Ribeiro teve como uma de suas influências as experiências

organizadas por Anísio Teixeira. Há uma semelhança entre as propostas no

que se refere ao oferecimento de atividades que vão além daquelas

pertencentes ao ensino regular.

25

Contudo, o modelo proposto por Darcy Ribeiro é diferente do de

Anísio Teixeira porque promovia ações mais integradas. As atividades

realizadas na concepção de Anísio Teixeira eram separadas entre

"convencionais de classe" e “socializantes". Na estrutura proposta por Darcy

Ribeiro há uma mescla dessas atividades nos tempos e nos espaços

escolares.

Sobre a estrutura do modelo proposto por Darcy Ribeiro, temos:

três blocos. No bloco principal, com três andares (...) as salas de aula, um centro médico, a cozinha e o refeitório, além das áreas de apoio e recreação. No segundo bloco, fica o ginásio coberto, com sua quadra de vôlei/basquete/futebol de salão, arquibancada, e vestiários. Esse ginásio é chamado de Salão Polivalente, porque também é utilizado para apresentações teatrais, shows de música, festas etc. No terceiro bloco, de forma octogonal, fica a biblioteca e, sobre ela, as moradias para alunos residentes (RIBEIRO, 1986, p. 42 apud COELHO, 2009 p. 92).

Os dois modelos de educação integral em tempo integral citados até

aqui se caracterizam entre os principais e mais marcantes na história

brasileira, no entanto, ambos tiveram um alcance nacional reduzido. As

experiências de Anísio Teixeira foram realizadas no Rio de Janeiro e na

Bahia ainda na primeira metade do século XX, enquanto a proposta de

Ribeiro contou com a construção de 500 prédios escolares no estado do Rio

de Janeiro durante as duas décadas finais do mesmo século XX. Essas

experiências demonstram que pensar a educação integral como um direito

universal é algo que enfrenta diversas barreiras, entre elas, as relacionadas

aos investimentos e aos recursos necessários para implementação de tais

propostas.

Apresentamos esses dois modelos de forma bastante breve, mas tal

apresentação nos ajudará nas discussões seguintes. Nos próximos tópicos

iremos abordar mais algumas questões relacionadas à educação integral em

tempo integral e ao final do capítulo, apresentaremos a ação integral do atual

programa do governo federal intitulado “Mais Educação”.

26

2.4 Educação em tempo integral: duas vertentes distintas

A educação integral em tempo integral no Brasil tem se estruturado a

partir de duas vertentes distintas. A primeira delas é denominada de “escolas

de tempo Integral”, enquanto a segunda vertente é chamada de “alunos em

tempo integral”. O próprio nome atribuído a essas vertentes já nos possibilita

inferir as diferenças fundamentais entre elas.

Segundo Cavaliere (2009) a vertente “escola em tempo integral”

caracteriza-se por uma tendência em investimentos no interior das

instituições escolares, visando uma compatibilidade entre as demandas da

educação integral e as condições estruturais das escolas. Tornando possível,

as ações de professores e alunos, no âmbito de uma educação que se

pretende ampliada, tanto em aspectos de conteúdo quanto de tempo escolar.

Já a vertente “alunos em tempo integral” caracteriza-se por uma

tendência de articulação com outras instituições, preferencialmente ligadas à

comunidade escolar, que possibilitem atividades no contraturno do ensino

regular. Essa vertente busca a realização das atividades para além do espaço

da escola, utilizando outros locais, públicos ou privados.

Como podemos identificar, os programas de educação integral

citados anteriormente, formulados por Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro

fazem parte da vertente “escola em tempo integral”. Segundo Silva (no

prelo):

(...) existe uma predominância da vertente “escolas em tempo integral” até transição dos anos 1980/90 e que a partir desse momento ganham destaque no cenário nacional às experiências elaboradas a partir da vertente “alunos em tempo integral”, culminando com uma ascensão dessa vertente no final da primeira década do século XXI, em função do programa Mais Educação (p. 4).

Silva (2016) aponta em seu artigo o crescimento da vertente “alunos

em tempo integral” ocorrida no início do século XXI até o momento atual.

Essa vertente exige de nós um olhar mais atento, não só pela sua presença na

27

maioria dos programas educacionais desenvolvidos na atualidade, mas

também por algumas implicações resultantes da forma como ela é

estruturada.

Ressaltamos que não há problema algum no incentivo da criação de

relações sólidas entre a escola e outros espaços públicos e privados,

próximos ou não, da comunidade escolar. A utilização desses espaços para o

desenvolvimento de atividades escolares voltadas para a cultura, a arte, o

lazer, o esporte e diversas outras práticas educativas é importante, visto as

dificuldades que estão presentes no cotidiano das escolas públicas. A

apropriação desses espaços por sujeitos de diferentes correntes ideológicas,

raças, crenças, gêneros e valores a nosso ver é extremamente relevante para

a construção de uma sociedade com base democrática e estruturada a partir

do diálogo.

Dito isso, partiremos agora para algumas implicações negativas, ou

ao menos questionáveis, que permeiam a vertente “alunos em tempo

integral”. De acordo com Cavaliere (2009):

A escola fundamental brasileira, especialmente aquela voltada para as classes populares, sempre foi uma escola minimalista, isto é, de poucas horas diárias, pouco espaço e poucos profissionais. O incremento desses três aspectos pode significar o fortalecimento de suas capacidades como agência de socialização e de difusão cultural, entretanto, nenhum deles tem valor em si mesmo e só adquirem sentido educativo quando articulados em um projeto que formule os papéis que a escola brasileira pode hoje cumprir, compreendendo seus limites e contradições e as possíveis e necessárias articulações com outras instituições e processos sociais (CAVALIERE, 2009, p. 51).

As escolas públicas brasileiras são permeadas por diversos conflitos

e problemas estruturais. A grande maioria das políticas públicas e ações

voltadas para a educação entram em constante tensão com a precariedade

estrutural de nossas escolas. Nesse sentido, a educação integral, através da

vertente “alunos em tempo integral” tem cada vez mais deslocado as ações

para espaços exteriores à escola. Há um diálogo com diversas instituições

28

públicas e privadas. Tal diálogo visa tornar possível a realização de um

projeto que, muitas vezes, encontra diversos fatores que limitam a sua

realização dentro do espaço da escola.

Esse contexto caracteriza um primeiro questionamento. Por que os

programas educacionais que adotam a vertente “alunos em tempo integral”

geralmente não promovem um fortalecimento estrutural da escola pública?

Nesses programas não são incentivadas mudanças estruturais nas escolas que

poderiam melhorar as condições para professores e alunos construírem suas

práticas. Além disso, a vertente “alunos em tempo integral” aponta para uma

concepção de educação integral em tempo integral que não supera a

fragmentação do ensino. Temos nessa vertente o ensino regular, realizado na

escola e no contraturno as práticas consideradas “diferenciadas”.

Não se restringindo aos aspectos apontados acima, encontramos

outros problemas relacionados à vertente “alunos em tempo integral”. Os

acordos firmados com instituições privadas devem ser cuidadosamente

analisados. As instituições privadas possuem códigos e valores próprios,

que, muitas vezes, podem entrar em conflito com as políticas que visam uma

educação a serviço de uma reorganização da sociedade pautada na busca

pela igualdade e justiça social.

Cabe ressaltar também que as atividades realizadas pelos programas

baseados na vertente “alunos em tempo integral” selecionam os professores

e regentes das oficinas pelo viés do voluntariado. Isso causa problemas

como: desistência repentina do voluntário, quebra no processo das atividades

e até falta de adequação entre a formação desses sujeitos em relação as

demandas exigidas pela oficina. Nesse sentido, sintetizando grande parte das

questões apontadas neste tópico, Cavaliere (2009) argumenta que:

A troca com outras instituições sociais e a incorporação de outros agentes educacionais são fundamentais para o enriquecimento da vida escolar, mas as formas alternativas de ampliação do tempo educativo que não têm como centro a instituição, expõem-se aos perigos da fragmentação e da perda de direção. E, principalmente, ronda-lhes o risco de que, ao invés de servirem à melhoria da qualidade da ação educacional, atuem

29

aprofundando ainda mais a precarização da educação. (p. 61).

Apresentamos neste tópico duas vertentes distintas da Educação em

Tempo Integral. A vertente "escola em tempo integral" e "Aluno em tempo

Integral". No tópico seguinte discutiremos algumas questões relacionadas ao

programa Mais Educação. O respectivo programa é, atualmente, o que

possui maior visibilidade no contexto da educação integral brasileira.

2.5 Apontamentos sobre o programa “Mais Educação”

O programa "Mais Educação” foi instituído pela portaria

interministerial nº 17/2007 e pelo decreto nº 7.083 que integra as ações do

Plano de desenvolvimento da Educação (PDE). Esse programa foi criado

como o intuito de "induzir a ampliação da jornada escolar e a organização

curricular, na perspectiva da Educação Integral" (BRASIL, 2009, p. 4). De

acordo com a legislação, fica estabelecido como educação básica em tempo

integral, as jornadas escolares igual ou superior a 7 horas diárias.

De acordo com o manual operacional do programa, as ações do

"Mais Educação" buscam a diminuição das desigualdades educacionais e a

valorização da diversidade cultural brasileira. Entre as estratégias do

programa destacamos o incentivo à "ampliação de tempos, espaços,

oportunidades educativas e o compartilhamento da tarefa de educar entre

profissionais da educação e de outras áreas" (BRASIL, 2009, p. 4). O

programa incentiva, além da participação dos profissionais da educação, o

diálogo com sujeitos da comunidade, com as famílias envolvidas e com os

demais atores sociais. Ficando todos os participantes sob a coordenação da

escola na figura de um professor previamente selecionado para isso.

Entre as bases do "Mais Educação" fica explícito o incentivo ao

desenvolvimento de atividades que ocorram além do espaço escolar,

buscando relações com outros espaços da comunidade e do município. Os

documentos oficiais que se referem ao “Mais Educação’’ estabelecem alguns

30

objetivos centrais do programa. Segundo o manual operacional o programa

Mais Educação visa fomentar projetos e ações socieducativas que sejam

oferecidas gratuitamente à crianças e aos jovens, seguindo as seguintes

orientações:

I. Contemplar a ampliação do tempo e do espaço educativo de suas redes e escolas, pautada pela noção de formação integral e emancipadora; II. Promover a articulação, em âmbito local, entre as diversas políticas públicas que compõem o Programa e outras que atendam às mesmas finalidades; III. Integrar as atividades ao projeto político-pedagógico das redes de ensino e escolas participantes; IV. Promover, em parceria com os Ministérios e Secretarias Federais participantes, a capacitação de gestores locais; V. Contribuir para a formação e o protagonismo de crianças, adolescentes e jovens; VI. Fomentar a participação das famílias e comunidades nas atividades desenvolvidas, bem como da sociedade civil, de organizações não governamentais e esfera privada; VII. Fomentar a geração de conhecimentos e tecnologias sociais, inclusive por meio de parceria com universidades, centros de estudos e pesquisas, dentre outros; VIII. Desenvolver metodologias de planejamento das ações, que permitam a focalização da ação do Poder Público em territórios mais vulneráveis; e IX. Estimular a cooperação entre União, Estados, Distrito Federal e Municípios. (BRASIL, 2014, p. 5)

No que se refere as ações pedagógicas, o "Mais Educação" é

articulado em diferentes macrocampos: (1) acompanhamento pedagógico;

(2) comunicação, uso de mídias e cultura digital e tecnológica; (3) cultura,

artes e educação patrimonial; (4) Educação ambiental, desenvolvimento

sustentável e economia solidária e criativa/educação econômica (educação

financeira e fiscal); (5) esporte e lazer; (6) educação em direitos humanos;

(7) Promoção da saúde. As escolas participantes do programa têm o direito

de escolher quatro atividades entre os sete macrocampos, sendo que as

atividades do primeiro macrocampo são obrigatórias.

Cada um dos macrocampos citados possui suas próprias ementas e

conteúdos programáticos. Como o foco desse trabalho está principalmente

direcionado às questões relacionadas ao macrocampo de esporte e lazer, nós

31

não iremos aprofundar nos conteúdos dos demais campos. Restringiremos a

apresentação ao macrocampo do esporte e lazer.

No referido macrocampo são ofertadas diversas opções de

atividades. As práticas esportivas possuem um lugar de destaque nas

atividades do macrocampo, sendo oferecidas como opção atividades das

seguintes modalidades: atletismo, badminton, basquete, basquete de rua,

futebol, futsal, handebol, natação, tênis de campo, tênis de mesa, voleibol e

vôlei de praia. São ofertadas algumas práticas corporais de luta: judô, karatê,

luta olímpica, taekwondo. E completando a lista das 22 atividades ofertadas

temos: corrida de orientação, ginástica rítmica, recreação e

lazer/brinquedoteca, xadrez tradicional, xadrez virtual e yoga/meditação2.

Para a realização das atividades citadas alguns pressupostos e

orientações metodológicas estão previstas. O manual operacional indica que

as atividades devem buscar a interdisciplinaridade e se pautar a partir do

contexto social dos sujeitos, considerando-os como produtores de

conhecimento. As atividades também devem se orientar por práticas que

possibilitem a criatividade, autonomia, cooperação e participação de todos os

estudantes. Temos ainda, o incentivo ao desenvolvimento de valores éticos,

políticos e estéticos. Onde se busca a construção de relações democráticas

em que a diversidade seja, não apenas respeitada, mas valorizada. A

expectativa apresentada pelos documentos é de que o programa Mais

Educação consiga contribuir no processo formativo de sujeitos críticos

capazes de "intervir e problematizar as formas de produção na sociedade

atual" (BRASIL, 2014 p. 8). Referindo-se especificamente ao macrocampo

do esporte e lazer o documento apresenta a seguinte assertiva:

Atividades baseadas em práticas corporais, lúdicas e esportivas, enfatizando o resgate da cultura local, bem como o fortalecimento da diversidade cultural. As vivências trabalhadas na perspectiva do esporte educacional devem ser voltadas para o desenvolvimento

2 Fizemos a separação das atividades em conformidade com a Base Nacional Curricular Comum onde esportes, ginástica e lutas são grupos de conteúdos distintos.

32

integral do estudante, atribuindo significado às práticas desenvolvidas com criticidade e criatividade. O acesso à prática esportiva por meio de ações planejadas, inclusivas e lúdicas visa incorporá-la ao modo de vida cotidiano (BRASIL, 2014, p. 15).

Podemos perceber que as bases para as práticas do macrocampo do

esporte e lazer entram em conformidade com as orientações gerais do

programa. Essa coerência é fundamental para que se caminhe na direção dos

objetivos esperados. Em suas bases o "Mais Educação" demonstra uma

amplitude de possibilidades e potencial de melhoria da educação. Contudo, a

realidade da implementação do programa muitas vezes não corresponde as

expectativa do Estado e dos atores envolvidos.

Após considerar alguns elementos que fundamentam o "Mais

Educação", é possível relacionar o respectivo programa com questões que

discutimos anteriormente. Podemos caracterizar o "Mais Educação" como

um programa de educação integral em tempo integral que segue a vertente

"alunos em tempo integral". A justificativa de tal caracterização encontra-se

no grande incentivo às atividades realizadas em espaços exteriores à escola,

na busca de agentes comunitários e de voluntários para a realização das

oficinas. Ou seja, temos um quadro onde as instituições escolares públicas

não recebem grandes investimentos e mudanças estruturais3.

Tal cenário remete aos problemas citados anteriormente que fazem

parte de programas que seguem a vertente "alunos em tempo integral".

Temos uma inadequação entre os recursos empregados pelo Estado e as

demandas, tanto estruturais quanto de recursos humanos. Como alternativa a

eminente falta de recursos direcionados, usa-se o argumento de incentivar as

relações entre a esfera pública e privada, entre a escola e a comunidade, para

que se criem condições de realizar o programa. Demonstrando uma tentativa

3 A título de exemplo, segundo o manual operacional do programa "Mais Educação", uma escola em que até 500 alunos participem do projeto receberá a quantia de R$3.000,00 em verba de custeio e R$1.000,00 em capital. Os valores indicados visam o ressarcimento de despesas com transporte e alimentação dos monitores, aquisição de materiais pedagógicos, além de outros bens e materiais necessários ao desenvolvimento da atividade

33

de deslocar funções que são do Estado para outras esferas da sociedade.

Silva (2015) explicita esse contexto:

(...) a perspectiva do programa Mais Educação, ao não colocar num primeiro plano as necessidades imediatas da escola pública que, aqui no Brasil, são eminentemente estruturais, visto o seu inacabado processo de universalização, não só negligencia isso, como também atribui à comunidade responsabilidades que não estão, pelo menos nesse momento, dentro de sua alçada. (SILVA, 2015 p. 15).

Apresentamos nesse tópico algumas bases e fundamentos do

programa Mais Educação. Nós iremos retomar e aprofundar os conflitos

apontados até este momento no capítulo final quando descreveremos o

contexto de uma experiência realizada em uma escola estadual do município

de Lavras, Minas Gerais. Na parte final deste TCC nós investigaremos esses

conflitos com mais propriedade. Tendo em vista a possibilidade de recorrer à

literatura apontada, relacionando-a, com as observações e diálogos

realizados juntamente aos integrantes da referida experiência.

34

3 O Esporte em foco

Neste capítulo iremos abordar algumas questões relacionadas ao

Esporte. Partiremos de noções preliminares sobre este fenômeno social a fim

de delimitar o seu surgimento. Após isso, seguiremos para algumas análises

das suas características enquanto objeto da prática cotidiana dos indivíduos.

Ao final do capítulo, apresentaremos alguns conflitos que estão presente no

fenômeno esportivo, refletindo sobre a sua inserção no meio escolar.

3.1 Explicando ao narrador esportivo porque não temos gladiadores no

terceiro milênio

Nas transmissões feitas pela televisão do

Ultimate Fighting Championship4, popularmente conhecido como UFC, o

narrador Galvão Bueno, da Rede Globo, faz referência aos atletas do UFC

como os gladiadores do terceiro milênio. Há uma tentativa do narrador de

comparar as lutas do UFC com algumas das práticas corporais romanas que

ocorreram há mais de dois mil anos atrás. Obviamente a intenção do

narrador, ao tratar os atletas como gladiadores, caminha no sentido de criar

uma atmosfera para as lutas do UFC enfatizando seu elevado grau de

violência, habilidade e força.

Com essa breve introdução, apresentamos as questões que serão o

elemento central desta seção: (1) por que não temos gladiadores no terceiro

milênio? (2) As práticas corporais realizadas pelos gladiadores são

consideradas como esporte? (3) O UFC é um esporte?

Entre os estudiosos do fenômeno esportivo existem divergências

quanto ao período histórico em que essas práticas surgiram. Thomas (1991,

apud STIGGER, 2005, p. 11) sintetiza essa divergência em duas correntes. A

4 O Ultimate Fighting Championship (UFC) é uma competição de Artes Marciais Mistas, que envolve estilos de luta como: Jiu Jitsu, Boxe, Wrestling, Muay Thay, Karate, entre outras.

35

primeira defende que o que denominamos como esporte tem suas origens

nos tempos mais remotos da civilização antiga e média (ideia continuidade).

A segunda corrente advoga que o esporte começou a surgir no século XVIII

(ideia da ruptura) a partir do advento da modernidade. Neste trabalho

entendemos que o que hoje conhecemos como esporte tem suas origens na

Inglaterra do século XVIII, nesse caso, mais próximo da corrente que

defende a ideia de ruptura, sendo o esporte um fenômeno moderno.

Conforme apresentado por Stigger (2005) alguns autores, como

Guttmann (1979) e Mandell (1986), analisam o esporte como um elemento

que foi se transformando ao longo da história, das civilizações antigas até o

momento atual. Para esses autores há uma ênfase maior nas semelhanças

dessas práticas ao longo do tempo, quando comparado com as diferenças que

elas apresentam entre si.

No que concerne aos padrões gestuais, de fato podemos identificar

congruências entre muitas práticas corporais e jogos antigos com algumas

das modalidades esportivas atuais. Entretanto, ao destacamos o contexto e as

finalidades dessas práticas corporais ao longo da história, identificamos que

o esporte, a partir da modernidade, se distingue de todas as outras práticas

corporais existentes em outras civilizações. Os sentidos e significados

atribuídos ao esporte que surge na Inglaterra do século XVIII são diferentes

em relação aos jogos e práticas corporais realizados na antiguidade e idade

média.

As características do esporte na época moderna se constituem a

partir de conjunturas econômicas, sociais e políticas muito particulares e

específicas daquele momento. Essas conjunturas, o modo de vida dos

cidadãos e a forma como a sociedade foi articulada rompe com os modelos

anteriores de sociedade. Portanto, pensar o esporte na Inglaterra dos séculos

XVIII e XIX, e a sua propagação para outros países a partir de meados do

século XIX e início do século XX, nos leva a considerar as características da

sociedade em que essas práticas estão inseridas, e ainda, as finalidades e

usos do esporte nessa sociedade.

36

Dessa forma, respondendo as nossas perguntas iniciais entendemos

que não é possível pensarmos em gladiadores do terceiro milênio. O

contexto das práticas corporais romanas pouco, ou nada, se assemelha às

práticas esportivas de hoje. Assim, diante dessa concepção sobre o esporte

podemos afirmar que os jogos realizados pelos gladiadores não são

considerados como esporte, em contrapartida, o UFC é composto por todas

as características do que concebemos como esporte.

Mas afinal o que é o esporte? Responderemos essa pergunta ao

longo das próximas seções. Apresentamos aqui, apenas algumas noções

preliminares. A seguir o trabalho analisará as características do esporte e

quais os sentidos e significados dessa prática na sociedade moderna.

3.2 Características do esporte

Tendo como base a obra de Guttmann (1979), apresentaremos as

características do esporte. Como exposto anteriormente entendemos o

esporte como um fenômeno que se desenvolveu a partir do século XVIII na

Inglaterra e por isso discordamos desse autor quanto à concepção de

continuidade do esporte, das civilizações antigas até os dias atuais. Todavia,

consideramos pertinentes os seus apontamentos sobre as características do

esporte na Modernidade. Guttmann em seu livro "From Ritual to Record" indica que o esporte

na modernidade apresenta sete características: (1) secularização; (2)

Igualdade; (3) Especialização; (4) Racionalização; (5) Burocracia; (6)

Quantificação e (7) Recorde.

A primeira característica apontada pelo autor é a secularização. A

palavra secularização é derivada de secular, que no sentido atribuído pelo

autor, significa aquilo que se contrapõe aos dogmas, ou as ordens religiosas.

Portanto, a primeira característica do esporte, diferentemente de outras

práticas corporais ao longo da história, é a sua autonomia em relação às

crenças, e às demandas religiosas. Como afirma Guttmann (1979, p. 25), "Os

37

esportes modernos são atividades parcialmente praticadas com fim em si

mesmo e parcialmente com outros fins igualmente seculares". Não há nas

práticas esportivas, culto ou referência, aos objetos religiosos.

É recorrente por parte de alguns indivíduos envolvidos com o

esporte, sejam eles atletas, técnicos ou espectadores, a atribuição de

determinados acontecimentos do esporte a interferências de ordem religiosa.

Cabe esclarecer que essas crenças não invalidam a característica de

secularização do esporte. Ainda que alguns, individualmente ou

coletivamente, se orientem por alguma crença ou dogma, não há

comprometimento da autonomia do esporte em relação à religião. O esporte,

mesmo diante dessas situações se organiza de forma independente.

A segunda característica do esporte é a igualdade. Guttmann (1979)

aponta a igualdade no esporte moderno em dois sentidos. O primeiro é

expresso pela abertura do esporte moderno a qualquer indivíduo,

independente de gênero, raça ou classe social. O segundo sentido está

relacionado com a estrutura da prática esportiva, que busca condições

igualitárias para todos os competidores. Inferimos, por isso, que é possível

aventarmos a igualdade de oportunidades.

Uma análise mais profunda do esporte, no entanto, facilmente nos

leva relativizar essa igualdade como uma de suas características. É sabido

que nas práticas relativas ao fenômeno esportivo uma influência

considerável da economia faz com que as suas condições de acesso e

desenvolvimento sejam destoantes entre as diferentes classes sociais.

A terceira característica analisada pelo autor é a especialização. O

esporte se desenvolve em um cenário onde a divisão de tarefas e a

fragmentação da atuação dentro do seu sistema são fortemente incentivadas.

Entre as modalidades esportivas existem habilidades diversas, e mesmo entre

um único esporte há a criação de posições dentro do jogo que atendem

demandas específicas e limitadas.

A especialização no esporte está diretamente ligada ao processo de

profissionalização, extrapolando os limites da quadra, campo ou local onde a

38

atividade acontece. A especialização também está presente em outros

espaços relacionados ao esporte. Esse processo atinge os técnicos, os

empresários e gestores e outros profissionais envolvidos. Cada indivíduo

dentro do esporte, atleta ou não, é treinado e educado para desempenhar, da

forma mais eficaz possível, uma parte dentro do todo.

Seguindo a nossa descrição das características do esporte, a

racionalização aparece como a quarta característica apontada no livro “From

Ritual to Record”. O processo de racionalização dentro do esporte expressa a

relação lógica existente entre meios e fins na prática esportiva. A principal

forma de assegurar essa racionalização dentro do esporte é a criação de

regras estabelecidas e legitimadas pelos seus participantes.

As modalidades esportivas assim como as regras que as constituem

são culturalmente determinadas a partir de decisões orientadas

racionalmente. Não há espaço na estrutura esportiva para o místico ou para o

que não possa ser empiricamente verificável. Mesmo que tenhamos uma

estrutura formalmente racional dentro do esporte, muitos comportamentos

entre os participantes não se originam de ações racionalmente orientadas.

Independente dessas ações irracionais, o caráter de racionalização do

esporte prevalece. Um bom exemplo disso é o modo como o tenista sérvio,

Novak Djokovic, executa o fundamento do saque. O ato de quicar a bola

mais de 10 vezes antes da sua realização teve que ser modificado em função

de mudanças nas regras da modalidade. A Associação dos Tenistas

Profissionais (ATP), com intenção de encurtar o tempo das partidas,

estipulou uma regra em que o tenista tem 25 segundos para realizar o saque

após o final da disputa do ponto anterior. Com isso, Djokovic sofreu

algumas penalizações por ter excedido o tempo de saque e teve que adequar

o seu ritual à nova regra racionalmente criada.

A quinta característica do esporte é a burocratização. A

administração, estruturação e gestão das modalidades esportivas são

construídas e controladas por instituições reguladoras. Esse processo de

39

burocratização dos esportes tem dois objetivos como aponta Guttmann

(1979):

Uma das principais funções da burocracia é estabelecer as regras e regulamentações como universais. Outra função é facilitar a rede de competições, que geralmente progridem do âmbito local, através de competições nacionais, chegando às competições mundiais.5 (p. 46, tradução nossa).

Como Podemos notar, a burocratização no esporte busca uma

padronização das práticas, para assim controlar e expandir o esporte

globalmente. É neste aspecto que instituições como a Federação

Internacional de Futebol (FIFA), Associação dos Tenistas Profissionais

(ATP), Federação Internacional de Voleibol (FIVB), entre outras, atuam em

seus respectivos esportes.

Nesse contexto, é pertinente citar a forte atuação da FIVB em

mudanças nas regras do voleibol. Muitas dessas alterações foram realizadas

com o intuito de expandir as possibilidades de contratos televisivos em

diversas competições desta modalidade esportiva. Tais alterações têm entre

seus principais objetivos aumentar o valor de mercado do voleibol no

cenário global. Segundo Marchi Júnior (2005):

O processo de inclusão da televisão no campo esportivo exigiu das entidades diretivas do voleibol uma readaptação da modalidade aos conceitos de competitividade, emotividade, dinâmica e duração das partidas(...) a introdução de novas regras certamente aprimorou o layout da modalidade como produto de comercialização para as redes de televisão, haja vista a redução do tempo de transmissão das partidas, em média, de 25% nos jogos masculinos e 15% nos femininos (p. 158).

A sexta característica do esporte é a quantificação. Praticamente

todas as ações durante os jogos esportivos são transformadas em número; a

quantidade de “aces” em um set, o percentual de passes corretos em um

5 One of the most important functions of bureaucracy is to see that rules and regulations are universal. Another is to facilitate a network of competitions that usually progress from local contests thought national to world championship.

40

período de tempo, o número de golpes que atingiram o adversário em um

round, etc. Essa quantificação das ações leva a um processo de comparação

entre os atletas, entre os times. Dentro desse processo de comparação

chegamos à última característica do esporte, o recorde.

De acordo com Guttmann (1979) o recorde permite que a

competição vá além do momento em que o jogo acontece. Com

quantificação e a instauração da ideia do recorde, se estabelece uma

comparação entre diferentes momentos, entre o passado e o presente. O

recorde no esporte, dessa forma, fomenta ainda mais o processo de busca por

graus extremamente elevados de rendimento, pela busca de técnicas e

padrões gestuais próximos à perfeição.

Essa relação em que a concepção do recorde amplia a competividade

existente no esporte se evidencia em grande parte das modalidades

esportivas. O recorde faz com que um atleta que seja o número um do

ranking mundial de determinada modalidade possa ser comparado

quantitativamente a outros atletas da mesma modalidade ao longo da

história. Dessa forma, cria-se em muitos contextos uma concepção onde a

busca e a expectativa dos atletas e consumidores do esporte não se limita em

ser o melhor de sua época.

É desejável que o atleta supere todos os seus concorrentes diretos e

também todos aqueles que já encerraram suas carreiras. A comparação entre

o presente e o passado é possibilitada pelas formas de quantificação e

recorde. Tais características do esporte apresentam instrumentos objetivos

para a realização das análises de desempenho dos competidores, sendo eles

contemporâneos ou não.

Analisamos neste tópico as sete características que Guttmann (1979)

atribui ao esporte moderno. Elas foram apresentadas separadamente com

intuito de facilitar o entendimento sobre a constituição do fenômeno

esportivo. Todavia, é importante ter clareza de que estas características se

relacionam, umas mais e outra menos, mas a relação entre elas está sempre

presente.

41

Não é possível conceber o recorde sem o processo de quantificação,

e nesse sentido a especialização esportiva tem uma posição de destaque ao

buscar o rendimento excelente. A secularização e a racionalização do esporte

se constituem juntas dentro de uma estrutura burocrática, uma vez que ela

busca criar normas de padronização e igualdade de condições dentro do

esporte. Esses foram apenas alguns exemplos de como essas características

estão articuladas.

Até aqui delimitamos o que consideramos como esporte e quais são

suas características. No próximo tópico iremos apresentar algumas

concepções e conflitos que perpassam esse fenômeno moderno.

3.3 O esporte no país das maravilhas

Na sociedade existem diferentes concepções sobre o esporte, nos

dois primeiros tópicos apresentamos algumas delas. Entre as representações

sociais acerca do esporte uma das mais legitimadas remete a uma visão

acrítica que tende a superestimar as possibilidades e benefícios das práticas

esportivas. Não reconhecendo os limites e conflitos que permeiam essas

práticas. Nesse caso o esporte caracteriza-se apenas como um lugar de

virtudes que não está condicionado aos diferentes problemas da sociedade

moderna.

Essa visão, também chamada de concepção "salvacionista", atribui

ao esporte a expectativa de solução de vários problemas sociais, tais como: o

uso de substâncias ilícitas, criminalidade, falta de disciplina, desigualdade no

acesso ao lazer, entre outras questões. De acordo com Silva et al. (2010)

baseando-se nas ideias de Melo (2005):

esta perspectiva salvacionista do esporte surge como discurso legitimado das políticas públicas de esporte, para afastar o jovem da criminalidade. Tal autor (MELO, 2005) critica essa concepção por se tratar de uma lógica meritocrática e individualista da resolução de problemas. O esporte do ponto de vista salvacionista associa o setor a uma espécie de messias salvador, capaz de libertar e mascarar todas as mazelas sociais. (p. 6)

42

A concepção “salvacionista” do esporte está presente no discurso da

mídia, no senso comum e até entre as políticas públicas de esporte

formuladas pelo Estado. Temos um exemplo dessa concepção na passagem

abaixo:

O menino que nasceu na Rocinha, uma das maiores comunidades do Rio de Janeiro, podia ter jogado futebol, como tantos outros garotos do local, mas se apaixonou pelo tênis (...) Através do esporte Fabiano enxergou o mundo com mais possibilidades e começou a sonhar(...), (diz Fabiano) Tudo que eu queria fazer era esporte, eu ficava o tempo todo pensando em esporte e estudo. Isso me deixou longe de ficar na rua pensando besteira, então (o esporte) mudou totalmente minha vida (...) Em Fevereiro foi inaugurada a escolinha do Fabiano de Paula, e é claro que teria que ser aqui na Rocinha. (trecho da reportagem do esporte interativo com o tenista Fabiano de Paula.)6

Não negamos a possibilidade de o esporte ser parte da solução dos

problemas sociais e até promover a ascensão socioeconômica de alguns

indivíduos. Entretanto, as estórias de sucesso através do esporte mascaram a

realidade por trás desse fenômeno. O esporte institucionalizado apenas

oferece condições de sucesso a uma parcela mínima entre os seus

participantes.

E nesse aspecto as concepções "salvacionistas" do esporte destacam

apenas o lado positivo e narram a estória dos vencedores. Os conflitos e

derrotas, que correspondem a maior parte das relações dentro do esporte, não

são questionados por essas perspectivas acríticas. O título deste tópico faz

uma alusão a estas questões.

Há entre essas concepções um enorme reducionismo acerca da

realidade e um entendimento determinista sobre os possíveis benefícios do

esporte para a superação de problemas sociais. Idealizando de forma

6 Reportagem do Esporte Interativo: Da rocinha para o Mundo! Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RSK9uKYbE_Q. Acesso em: 22 de abril de 2016.

43

inconsistente os sujeitos e a sociedade em que o esporte está inserido.

Correia (2008, p. 115) reitera que:

Na expectativa de solucionar problemas e mazelas sociais, em muitas ocasiões, a educação física, o esporte e o lazer são incorporados como objetos ou instrumentos de projetos, dotados de “boas” e “más” intenções. De uma forma ou de outra, muitas vezes, esses projetos não dão conta de atingirem objetivos tão grandiosos, pois, muitas vezes, não conseguem efetivar simples mudanças na realidade local.

Conforme exposto, muitas vezes é atribuído ao esporte algo que ele

isoladamente não pode solucionar. Uma análise mais profunda sobre o

esporte nos revela, em oposição à visão salvacionista, muitos conflitos

existentes. Alguns desses conflitos serão abordados nos próximos

parágrafos.

3.4 Conflitos no esporte

Entre os conflitos existentes dentro do campo esportivo serão

destacados, de forma breve, as questões de gênero, raciais e

socioeconômicas. Como discutimos anteriormente, certas concepções sobre

o esporte o tratam como um meio de inclusão e superação dos problemas

sociais. No entanto, será que de fato o esporte é um espaço promotor de

inclusão e solução problemas sociais ou o esporte é mais um elemento onde

esses problemas se evidenciam?

O esporte se estrutura, como uma de suas características, por uma

igualdade formal de oportunidades, conforme expomos na segunda seção

deste capítulo. Essa igualdade formal tem como um dos seus sentidos o

direito universal de acesso às práticas esportivas, independente das questões

socioeconômicas, de gênero e raciais. Entretanto, na prática, não é bem

assim.

As questões socioeconômicas ocupam um lugar de destaque dentro

do fenômeno esportivo. O esporte surge no século XVIII, na Inglaterra,

44

como uma expressão da classe burguesa e aristocrata da época, sendo

utilizado por essa elite como forma de distinção em relação às camadas

populares. Inicialmente as práticas esportivas tiveram como principal espaço

as escolas frequentadas pela elite. A seguir inicia-se um processo de

associativismo esportivo. Temos nessa época as primeiras manifestações da

institucionalização do esporte.

Na estrutura do esporte, enquanto uma prática corporal

originalmente destinada à elite, a questão do amadorismo representa um

fator determinante. Segundo Bracht (2005):

As classes dominantes (burguesia e aristocracia) fizeram da apologia ao amadorismo uma estratégia de distinção social; nele, no amadorismo, estava presente o ethos aristocrático- atividade realizada pelo simples prazer de realizá-la, sem fins úteis, desinteressada, a arte pela arte. (...) O ideário amadorista era um ideal que confrontava os interesses dos trabalhadores; instrumento de distinção de classe; exercício de violência simbólica. (p.100)

No avançar do processo histórico do esporte o amadorismo foi sendo

superado pelo processo de profissionalização. Tal processo levou a sua

maior democratização. Com a profissionalização do esporte tivemos uma

relativa abertura dessa prática corporal às camadas populares. A

profissionalização também contribuiu para a espetacularização do fenômeno

esportivo, algo marcante nos dias atuais.

Embora o processo de democratização do acesso ao esporte seja algo

evidente, a relação das elites com as práticas esportivas foi mantida sob as

bases de um considerável grau de distinção em relação às classes populares.

Bracht (2005) aponta que com o processo de democratização do esporte a

elite passa a se distinguir pelas modalidades esportivas praticadas. Algumas

modalidades requerem recursos financeiros inviáveis para as classes

populares.

A vestimenta e material utilizados nas modalidades esportivas

elitizadas também são mais uma forma de distinção sobre as práticas mais

popularizadas. Identifica-se, ainda, uma diferença nos padrões gestuais das

45

modalidades elitizadas, uma vez que é possível perceber uma maior

valorização da elegância e beleza dos gestos em detrimento da força e

musculatura atlética.

O esporte também se configura como um fenômeno social onde as

desigualdades de gênero se evidenciam. Altmann (2015) identifica que os

conflitos de gênero fazem parte da trajetória histórica dessa prática corporal.

Historicamente, a experiência esportiva é originalmente masculina, não apenas porque praticada por homens, mas também porque imbuída de valores e significados tidos como masculinos, tais como coragem, força, velocidade, combatividade, companheirismo, superação (...) o esporte adquiriu um lugar de importância na constituição da masculinidade (p. 140).

Dessa forma, a prática esportiva entre as mulheres foi construída a

partir de resistência feminina (ALTMANN, 2015). Desses movimentos de

resistência e quebra de paradigmas derivaram outros conflitos. Ao romper

com a representação da fragilidade feminina, incorporando valores

considerados masculinos, muitas mulheres passaram a sofrer preconceitos

relacionados à orientação sexual.

A homofobia no esporte é recorrente, uma das formas que ela

assume refere-se a uma não adequação de muitas mulheres a concepção do

gênero feminino entendido como frágil, meigo e delicado. Entre as atletas

que se adequam ao padrão "esperado", descrito acima, há uma constante

erotização de seus corpos. Onde a beleza é, muitas vezes, mais destacada do

que as qualidades técnicas no esporte. O que demonstra uma concepção

machista onde o corpo da mulher é tratado a partir de uma objetificação

sexual (WOODS, 2011)

Os conflitos de gênero no esporte são evidentes. Contudo, não

podemos caminhar apenas na vitimização da mulher nesse campo. O conflito

gera resistência e através da resistência muitas mulheres escreveram e

continuam escrevendo a história do esporte. Vitimizar e assumir o lugar da

mulher no esporte a partir de uma suposta passividade nos leva a negação do

46

protagonismo feminino e a importância das lutas por igualdade de gênero na

história das práticas esportivas (ALTMANN, 2015).

Conflitos raciais também estão presentes no esporte. Baseando-se

em casos de sucesso através do esporte, é recorrente o argumento de que

esse campo é um dos principais caminhos para a ascensão social de minorias

raciais7. Sendo o esporte um espaço de empoderamento desses grupos.

Podemos dizer que tais afirmações não são equivocadas, tendo em vista que

em alguns momentos o esporte realmente exerce esse papel. Porém, em

outros vários momentos o esporte é mais um espaço onde os conflitos raciais

se evidenciam.

Reconhecemos a importância da luta de atletas negros(as) por

condições mais justas nas relações que tangem o esporte e a sociedade.

Justamente por reconhecer a luta desses atletas é que precisamos lançar um

olhar crítico sobre o esporte. Encontramos no fenômeno esportivo vários

relatos de ofensas e injúrias raciais sofridas por atletas negros. De acordo

com Silva (2007, p. 4):

As críticas dirigidas aos jogadores brancos, em sua maioria, atacam principalmente o jogador como atleta. No entanto, as críticas dirigidas aos jogadores negros e mestiços, em grande parte, carregam o estigma do racismo e atacam principalmente o jogador como pessoa e não como atleta, ou seja, são críticas étnicas.

Para além das ofensas racistas direcionadas de forma explicita a

esses atletas, há no esporte outros problemas relacionados às questões raciais

que são menos explícitos. De acordo com Eitzen (2012), embora em algumas

modalidades esportivas haja grande representatividade dos negros, como o

basquete, futebol americano e o próprio futebol em uma escala mundial.

Outras modalidades, como o golfe e o tênis, a participação negra é muito

reduzida. Segundo Gregório e Melo (2015):

7 O termo minorias raciais, neste trabalho, não indica menor representatividade em quantidade de indivíduos. É sabido que em diversas regiões do Brasil a população de negros é a mais representativa. O termo minorias é empregado pensando nas relações de poder dentro da sociedade. Historicamente as posições de poder foram exercidas majoritariamente por homens pertencentes à elite branca.

47

Analisando a história da população negra no esporte brasileiro, podemos perceber que ela conseguiu se inserir e ter uma boa representatividade em alguns esportes. Uma pequena parte dos negros consegue, através do esporte, alcançar uma ascensão social. Mas, embora o desempenho dos negros seja reconhecido em certos esportes, ele ficou restrito somente à algumas modalidades, devido à falta de recursos financeiros, que reforça a diferença social e o preconceito racial. (p 10)

Também encontramos outras formas discriminatórias no contexto do

esporte. A carreira profissional de muitos atletas possui como característica

uma pouca durabilidade. Um dos principais fatores que encurtam a carreira

desses indivíduos são as elevadas demandas em aspectos físicos e

emocionais aos quais os atletas são submetidos. Com isso é comum que

muitos atletas aposentados busquem uma continuidade no esporte através de

cargos em comissões técnicas e na parte gestora e administrativa das

modalidades esportivas.

Nesse sentido, Eitzen (2012) e Gregório e Melo (2015) apontam que

há uma falta de representação negra em tais cargos. Segundo Eitzen (2012),

há um predomínio de atletas negros em modalidades como o basquete e o

futebol americano. Contudo, ao analisar os cargos técnicos e administrativos

dessas modalidades, identifica-se apenas um pequeno percentual de

representação negra. De acordo com o autor, entre os técnicos e gestores

negros ainda há uma defasagem salarial em relação a cargos semelhantes

ocupados por indivíduos caucasianos.

As questões raciais que constituem o esporte institucionalizado

demonstram dois caminhos distintos. Por um lado, temos no esporte um

espaço de protagonismo negro. Em diversos esportes os atletas negros são as

principais referências e modelos de sucesso. O esporte para muitos desses

atletas representou uma alternativa de ascensão e valorização social.

Todavia, não podemos olhar o esporte apenas sob esses aspectos. As práticas

esportivas ainda são permeadas por diversos conflitos e relações racistas que

devem ser analisadas e enfrentadas de modo a tornar o espaço esportivo

realmente democrático. Assim como no aspecto de gênero, muitos atletas

48

negros(as) também construíram suas histórias no esporte através de uma

constante luta por direitos.

Os conflitos aqui apontados merecem um maior investimento.

Contudo, por questões objetivas deste trabalho não nos delongaremos. A

breve revisão aqui apresentada será útil para as análises realizadas no

terceiro capítulo desta monografia.

3.5 O esporte e a escola

Até aqui delimitamos o que consideramos como esporte, passamos

pelas características do esporte enquanto fenômeno moderno. Apresentamos

brevemente alguns conflitos que o permeiam. A partir de agora discutiremos

algumas questões introdutórias relacionadas ao ponto de contato entre os

dois temas estruturantes desse trabalho, o esporte e a escola.

As últimas décadas caracterizaram-se por um movimento de

democratização do acesso à escola pública. Nesse processo foram

incentivados inúmeros programas sociais voltados para a universalização do

direito de estudar. Entre esses programas podemos citar o Bolsa Família,

Mais Educação, as Políticas de ação afirmativa nas universidades, o

Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (PIBID), o

Programa Caminho da Escola, entre outros.

Todas essas ações caminham na busca de uma educação escolar

mais inclusiva com o intuito de alterar o status quo da sociedade. Levando

isso em consideração, entendemos que a inserção do esporte na escola deva

ocorrer a partir de uma reflexão das práticas esportivas à luz de um modelo

escolar inclusivo e que possibilite a conscientização e a busca por relações

sociais mais justas, despidas de preconceitos e segregação.

Pensar a prática esportiva a partir dos ideais citados acima nos leva a

vários conflitos e problemas. Como destacamos na seção anterior o esporte

institucionalizado se constitui em um campo onde o modelo de sociedade

aponta para relações centradas em uma figura masculinizada, sendo o

49

esporte um fenômeno onde também existem práticas de distinção entre as

classes sociais e uma reprodução de comportamentos racistas e

homofóbicos.

Além desses conflitos, o esporte institucionalizado também reproduz

muitos dos valores disseminados na sociedade capitalista. Sobre o caráter

educativo do esporte institucionalizado Bracht (1992, p. 63) afirma que:

O esporte educa. Mas, educação aqui significa levar o indivíduo a internalizar valores, normas de comportamento, que lhe possibilitarão adaptar-se à sociedade capitalista. Em suma, é uma educação que leva ao acomodamento, e não ao questionamento. Uma educação que ofusca, ou lança uma cortina de fumaça sobre as contradições da sociedade capitalista. Uma educação a serviço da classe dominante.

Como percebemos, o esporte institucionalizado entra em contradição

com os preceitos de uma educação transformadora. Além disso, o esporte de

rendimento promove na escola uma ampla valorização da técnica a serviço

do desempenho máximo. Isso faz com que uma minoria, que apresenta

habilidades superiores à média, tenha experiências de sucesso. Enquanto a

maior parte dos alunos são excluídos da prática. Esse cenário caminha na

contramão de uma prática pedagógica democrática, que permita uma

experimentação da cultura corporal de movimento8 por todos os alunos.

Superar a estrutura do esporte institucionalizado na escola é algo

desafiador. Temos na sociedade a prática institucionalizada do esporte como

algo hegemônico. Nossos conhecimentos prévios sobre a prática esportiva,

os veículos midiáticos, muitos espaços de prática do esporte, como as

escolinhas esportivas, apresentam a prática institucionalizada como a única

8 Gaya e Torres (2008, p. 54) apresentam a cultura corporal de movimento como "um campo de estudos próprio para a investigação, para expressão, para o ensino-aprendizagem, para a promoção de conhecimentos e de discursos sobre as múltiplas manifestações e expressões da corporalidade humana. Bracht (1992, p.16) reitera que a cultura corporal de movimento não se refere a qualquer movimento. "É o movimento humano com determinado significado/sentido, que por sua vez, lhe é conferido pelo contexto histórico-cultural".

50

forma possível de experimentação. A própria Educação Física escolar, em

muitos contextos, reforça essa lógica (BRACHT, 1992).

Contudo, a escola pode e deve ser um espaço de produção cultural,

por isso o esporte deve ser compreendido como apenas mais um elemento da

cultura. O caráter sociocultural dessa prática nos dá abertura para

ressignificações e transformações desse fenômeno, buscando outros sentidos

e significados. Estamos certos de que o esporte na escola não precisa ser o

reflexo do esporte institucionalizado. É possível pensarmos em outras

formas de praticar esporte, é possível pensar em um esporte escolar, ou

esporte da escola como aponta Vago (1996, p. 4):

A ideia central defendida é a de que a escola pode produzir uma cultura escolar de esporte que, ao invés de reproduzir as práticas de esporte hegemônicas na sociedade (...) estabeleça com elas uma relação de tensão permanente, intervindo na história cultural da sociedade.

A relação de tensão indicada, entre uma prática esportiva com os

códigos da instituição escolar e a prática esportiva no formato

institucionalizado, expressa que o esporte de rendimento não deve ser

simplesmente ignorado na escola. Enquanto forma hegemônica de prática

esportiva, ele deve ser criticado, analisado e estudado. Os estudantes têm

como direito o aprendizado dos sentidos dessa prática, seja nas aulas de

educação física escolar, ou em outros espaços em que o esporte está presente

na escola.

Dialogando novamente com Vago (1996 p.15):

Não se trata, então, de agir apenas para que a escola tenha o "seu" esporte. Trata-se de problematizar a prática cultural do esporte da sociedade (que é, ao mesmo tempo, o esporte da e na escola), para reinventá-lo, recriá-lo, reconstruí-lo, e, ainda mais, produzi-lo a partir do específico da escola, para tencionar com aqueles já citados, que a sociedade incorporou a ele (e para superá-los). Não sendo mesmo possível à escola isolar-se da sociedade, já que a escola é, ela mesma, uma instituição da sociedade, uma de suas tarefas, então, é a de debater o esporte, de criticá-lo, de produzi-lo... e de praticá-lo

51

Enquanto prática institucionalizada um dos sentidos mais marcantes

do esporte é o predomínio de regras que estabelecem uma padronização nas

modalidades esportivas. Essas regras geralmente são definidas de forma

unilateral pelas instituições regulamentadoras. O esporte na escola não

precisa se submeter às normas dessas instituições. É possível estabelecer

uma relação de tensão permanente, conforme apontado por Vago (1996).

Ao trabalhar com o esporte na escola o(a) professor(a) não precisa

ignorar as regras institucionais do esporte. Por outro lado, é desejável que se

estabeleça uma prática pedagógica que supere uma assimilação irrefletida

dessas regras, onde o esporte seja apenas um mecanismo de

disciplinarização. Educando os sujeitos para acomodamento e não

questionamento (BRACHT, 1992).

Nesse sentido, Volkamer (1987) e Kunz (1996) citados por Oliveira

(2007) apontam que as regras institucionais do esporte devem ser refletidas

em três diferentes níveis. O primeiro nível se resume a apreender e

memorizar as regras. Em um segundo plano busca-se aprender o sentido que

a regra exerce durante a prática esportiva: criar tensão, tornar o jogo mais

dinâmico, entre outros sentidos possíveis. O terceiro plano configura-se

como um aprofundamento do sentido da regra, onde se buscam explicações

que vão além do momento da ação de praticar o esporte (p. 26). Um exemplo

da reflexão de terceiro nível é construirmos um entendimento do sentido de

determinadas regras do voleibol a partir de demandas comerciais e

televisivas.

Promover reflexões acerca das regras institucionalizadas do esporte

dentro da escola fornece oportunidades de questionamento e aquisição de

conhecimento sobre o esporte. Possibilitando aos alunos uma apropriação do

esporte que vá além da sua forma institucionalizada e que caminhe na busca

de uma interpretação mais profunda deste fenômeno. Sendo o esporte,

enquanto prática institucionalizada, uma oportunidade para a ressignificação

e criação de formas próprias de experimentação dessa prática corporal.

52

Nessas outras formas de experimentação do esporte é relevante que

se estimule um diálogo entre as práticas esportivas e os objetivos da

educação e da escola. Promovendo um espaço de democratização do esporte,

onde diferentes sujeitos possam ser protagonistas, superando as exclusões

por gênero, raça, desempenho físico-técnico e por classe social. Segundo

Kunz citado por Betti (1999) "a transformação didática dos esportes visa,

especialmente, a que a totalidade dos alunos possa participar em igualdade

de condições, com prazer e com sucesso, na realização desses esportes"

(KUNZ, 1991, apud BETTI, 1999, p. 27).

A partir dos apontamentos de diversos autores que investigam as

relações entre a escola e o esporte fica explícito que as práticas esportivas

precisam passar por transformações dentro da instituição escolar. Tendo em

vista que o esporte de rendimento possui inúmeras características que

contradizem os pressupostos de uma educação inclusiva. No próximo

capítulo retomaremos essas discussões ao analisar o macrocampo de esporte

e lazer no programa de educação em tempo integral investigado.

53

4 Análise do macrocampo esporte e lazer no projeto de educação em

tempo integral

Nos capítulos anteriores apresentamos algumas reflexões sobre o

esporte e a escola. Passaremos agora para a análise de como o esporte se

estrutura em um contexto escolar específico. Nosso recorte investigativo

abordará predominantemente a presença das práticas esportivas no

macrocampo de esporte e lazer do programa de educação integral em tempo

integral realizado na escola onde a pesquisa foi conduzida.

Ressaltamos que a pesquisa foi realizada com a autorização da

direção escolar e que todos os participantes envolvidos nas entrevistas

assinaram um termo de consentimento livre e esclarecido. O nome da escola

onde a pesquisa foi conduzida e a identidade dos participantes será mantido

em sigilo para evitar a exposição ou alguma forma de constrangimento.

Iniciaremos as reflexões deste capítulo com uma contextualização

sobre o município de Lavras, Minas Gerais. Em sequência, apresentaremos

algumas análises sobre o espaço escolar pesquisado. Posteriormente,

direcionaremos o foco para o programa de educação integral em tempo

integral, chegando ao elemento central de nossa pesquisa, que se refere à

presença do esporte no respectivo programa.

A justificativa de trazer o elemento central da pesquisa ao final deste

capítulo se encontra na necessidade de construirmos uma base teórica sobre

os temas abordados, conforme fizemos nos capítulos iniciais. Também é

relevante a apresentação das dinâmicas sociais internas à instituição escolar

em que o programa de educação integral em tempo integral está inserido,

uma vez que há uma relação indissociável entre o referido programa e a

escola. Nessa relação existem conflitos e especificidades que precisam ser

abordados.

4.1 Contextualização Inicial

54

O município de Lavras está situado no sul de Minas Gerais,

aproximadamente a 230 quilômetros da capital Belo Horizonte. De acordo

com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)9, Lavras

possui 100.243 habitantes. Com relação ao Índice de Desenvolvimento

Humano (IDH), o respectivo município atingiu a marca de 0,782 em uma

escala que varia de 0 a 1. Segundo a escala do IDH, valores entre 0,7 e 0,8

são considerados altos.

Lavras possui um IDH elevado em comparação com a média

nacional e estadual. O Brasil registra um IDH equivalente a 0,755, enquanto

Minas Gerais possui uma média correspondente a 0,731. O IDH referente a

Lavras confere a este município o quinto maior índice entre as 853 cidades

do estado de Minas Gerais.

O produto interno bruto (PIB) per capita de Lavras é equivalente a

20.965,27 reais (dados 2013). No aspecto referente ao campo da economia10,

Lavras é a 17° cidade de maior desenvolvimento econômico em Minas

Gerais (dados 2010). Quando avaliada a questão educacional, o respectivo

município ocupa o 4° lugar entre as cidades mineiras. Esses dados

apresentados têm como base os constituintes do índice de desenvolvimento

humano referentes à educação e à economia.

Ainda sobre a educação municipal, Lavras possui 31 escolas de

educação infantil, sendo 21 da rede pública e 10 da rede privada. No ensino

fundamental são 37 escolas, sendo 26 da rede pública e 11 da rede privada.

No ensino médio existem 16 escolas, sendo 7 da rede pública e 9 do setor

privado. A partir desses números podemos constatar que nos anos iniciais do

processo de escolarização até a etapa final do ensino fundamental há uma

maior oferta de escolas públicas em comparação ao número de escolas

privadas. Na educação infantil e fundamental aproximadamente 69% das

9 Disponível em: http://www.cidades.ibge.gov.br/xtras/perfil.php?lang=&codmun=313820, Acesso em: 10 de maio de 2016. 10 Disponível em: http://www.atlasbrasil.org.br/2013/pt/ranking/, Acesso em: 10 de maio de 2016

55

escolas são da rede pública. Em contraste, no ensino médio apenas 44%

pertencem ao setor público (IBGE).

No que tange o número de estudantes matriculados, há na educação

infantil e no ensino fundamental uma grande predominância de matrículas

nas instituições públicas, aproximadamente 80,3%. No ensino médio a

porcentagem de matrículas no setor público apresenta uma considerável

redução, correspondendo a 71,7%. Interessante notar que entre as 16 escolas

de ensino médio do município, as sete pertencentes à rede pública atendem

mais de 70% dos estudantes. Em contrapartida as nove escolas do setor

privado ficam responsáveis por menos de 30% dos alunos (IBGE). Esses

dados apontam a necessidade de pesquisas que investiguem possíveis

relações entre o contexto descrito e a qualidade da educação nas instituições

públicas de ensino médio no município em destaque.

No ensino superior o município de Lavras é atendido,

principalmente, pela Universidade Federal de Lavras (UFLA). Outras

instituições de nível superior também impactam o aspecto educacional da

cidade, entre elas destacamos o Centro universitário de Lavras, a Faculdade

Presbiteriana Gammon e a Faculdade Adventista de Minas gerais, entre

outras instituições privadas de menor impacto.

Como podemos perceber a cidade de Lavras possui bons indicadores

de desenvolvimento humano entre os municípios de Minas Gerais. Ambos os

aspectos, econômicos e educacionais, são importantes para o lugar de

destaque que o município ocupa quando comparado a outras cidades.

Contudo, a investigação e análise de um contexto escolar específico pode

nos levar a disparidades e desacordos entre o que encontramos no aspecto

macroestrutural e nos componentes da realidade que estrutura uma

instituição escolar em específico. É nesse caminho que seguiremos no

próximo tópico.

4.2 Observações do cotidiano de uma escola pública da rede estadual no

município de Lavras.

56

Durante dois meses realizamos observações referentes ao contexto

escolar de uma escola pública da rede estadual de Lavras. A escola em que

realizamos a pesquisa atende aproximadamente 500 estudantes do ensino

fundamental e médio. A referida instituição escolar opera em dois turnos, os

estudantes do ensino fundamental I frequentam a escola no turno da tarde e

os alunos do ensino fundamental II e médio no turno da manhã. Temos

também a realização de atividades de educação integral em tempo integral,

onde parte dos alunos das séries iniciais do ensino fundamental frequentam a

escola nos dois períodos.

Consta no registro de matrículas que 387 estudantes frequentam a

escola no turno da manhã. Desse total temos: 180 estudantes no ensino

fundamental II, 182 no ensino médio e 25 estudantes do ensino fundamental

I que participam do programa de educação integral em tempo integral. O

turno da tarde possui um número significativamente inferior de estudantes.

São 127 crianças matriculadas no ensino fundamental I.

Em relação ao Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

(IDEB)11, a escola apresenta os seguintes resultados, indicados pela tabela

abaixo:

Tabela 1- Resultado obtido/ Meta estipulada- IDEB Ensino Fundamental12 (Continua)

11 "O Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) foi criado pelo Inep em 2007 e representa a iniciativa pioneira de reunir em um só indicador dois conceitos igualmente importantes para a qualidade da educação: fluxo escolar e médias de desempenho nas avaliações. Ele agrega ao enfoque pedagógico dos resultados das avaliações em larga escala do Inep a possibilidade de resultados sintéticos, facilmente assimiláveis, e que permitem traçar metas de qualidade educacional para os sistemas. O indicador é calculado a partir dos dados sobre aprovação escolar, obtidos no Censo Escolar, e médias de desempenho nas avaliações do Inep, o Saeb – para as unidades da federação e para o país, e a Prova Brasil – para os municípios." (INEP). Disponível em: http://portal.inep.gov.br/web/portal-ideb/o-que-e-o-ideb. Acesso em: 23 de junho de 2016. 12 Legenda Tabela 1: 1-Resultado EF I: resultado obtido pela escola no Ensino Fundamental I; 2- Meta EF I: meta estipulada pelo MEC para o Ensino Fundamental I da respectiva escola; 3- Resultado EF II: resultado obtido pela escola no Ensino Fundamental II; 4- Meta EF II: meta estipulada pelo MEC para o Ensino Fundamental II da respectiva escola.

57

Ano 2005 2007 2009 2011 2013

1- Resultado EF I 3.6 3.9 4.7 4.8 4.6

2- Meta EF I __ 3.7 4.0 4.5 4.7

3- Resultado EF II 3.7 3.9 4.2 2.8 4.3

4- Meta EF II __ 3.7 3.8 4.1 4.5

Fonte: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP). (Conclusão). De acordo com a tabela podemos observar que a escola se manteve

acima da meta estipulada pelo MEC até a avaliação de 2009, demonstrando

um aumento progressivo nos índices obtidos. Em 2011 o Ensino

Fundamental I se manteve acima da meta, porém, o Ensino Fundamental II

ficou abaixo. O índice do Ensino Fundamental II na avaliação de 2011

obteve uma queda brusca, caindo de 4.2 para 2.8. Em 2013 observamos que

o Ensino Fundamental I e II obtiveram índices abaixo da meta estipulada.

Diante de tal contexto podemos constatar que a partir de 2011 a escola

passou a ter dificuldades para atingir as metas estipuladas pelo MEC, mas

quando comparamos os resultados de 2005 com os de 2013 percebemos que

a escola obteve índices significativamente melhores na avaliação mais

recente.

A escola em que conduzimos a pesquisa situa-se em um bairro com

características muito particulares e isso impede uma simplificação na

caracterização socioeconômica da respectiva região. Por um lado a escola

atende famílias predominantemente advindas de classes populares, em

situação de vulnerabilidade socioeconômica. Há no respectivo bairro,

moradores vivendo em condições precárias de habitação, alimentação, saúde

e educação. A criminalidade também é um fator presente no cotidiano da

região, atividades de tráfico de drogas e furtos são recorrentes. Outros crimes

também foram registrados na região, incluindo homicídios13.

13 A criminalidade é um fator tão presente na região que certo dia durante as observações das atividades do programa de educação integral em tempo integral, alguns alunos com idades entre 5 e 7 anos, compartilharam as suas experiências. Uma menina contou a professora que seu tio foi assassinado com seis tiros, sendo

58

O bairro também apresenta um contraste socioeconômico, em função

da sua proximidade em relação à UFLA, uma vez que isso atraiu parte dos

alunos daquela universidade, aparentemente de classe média, convivendo

com indivíduos em situação de pobreza. Há no bairro uma quantidade

significativa de repúblicas estudantis (casas e apartamentos). Caminhando

pela proximidade da escola identificamos a discrepância entre residências

que possuem um padrão de qualidade elevado, enquanto em outras há alguns

metros de distância foram construídas com um padrão extremamente

inferior14.

Figura 1- Imagem de satélite Escola/UFLA

Fonte: Google Earth

É preciso cautela ao fazer qualquer tipo de generalização, mas em

maior grau, podemos afirmar que a escola onde o estudo foi conduzido

atende predominantemente as classes populares. Tal afirmação se baseia nos

dois na cabeça e quatro na região da barriga. Outros alunos mencionaram brigas e assaltos realizados nas proximidades de suas casas, onde foram utilizadas armas brancas. A aparente naturalidade com que essas experiências foram narradas indica que elas fazem parte do cotidiano desses estudantes. 14 As análises das características da região onde a escola está inserida baseiam-se também nas minhas próprias experiências como morador da respectiva região por um período de aproximadamente quatro anos. Além disso, parte das informações foram extraídas do caderno de campo utilizado durante a pesquisa.

59

diálogos que tivemos com os sujeitos escolares e nas observações realizadas,

tanto na escola, quanto na região onde ela está inserida. Com essa exposição

sobre o contexto que circunda a escola e com a apresentação preliminar de

quais sujeitos integram a instituição em análise, podemos agora, direcionar

nossos olhares para o interior dessa instituição escolar.

Estruturalmente a escola analisada possui características que são

comuns entre as instituições públicas de ensino. Ao entrarmos na escola

percebemos uma defasagem estrutural, o prédio escolar assim como os

materiais e recursos disponíveis indicam o contexto de simplicidade e falta

de investimentos que é característico em diversas instituições da rede pública

de educação básica. Há um grande número de estudantes dentro de um

espaço escolar reduzido. Em pouco mais de dez salas de aula são realizadas

atividades com estudantes desde o Ensino Fundamental até o Ensino Médio.

A parte exterior da escola conta com uma quadra poliesportiva e um

pequeno pátio, constantemente disputado entre os alunos.

Uma das características marcantes da escola analisada é que seus

espaços estão sempre trancados por grades e portões. Ao entrar na escola, na

recepção, existe um cômodo onde há um portão, frequentemente trancado,

que possibilita o acesso às salas de aulas e outros espaços da escola: cantina,

biblioteca, secretaria, sala do dentista, banheiros. Nesse cômodo há uma

janela, com grades de ferro, voltada para a secretaria. Nesta janela faz-se o

primeiro contato com os profissionais da escola15.

Ao receber a permissão para passar pelo portão chega-se a área

central, onde as atividades escolares acontecem, com exceção das atividades

de educação física e horta escolar. A quadra poliesportiva e a horta

encontram-se em uma área aberta e para acessá-las é preciso passar por mais

um portão que permanece trancado. Os banheiros da escola também ficam

trancados. O acesso ao banheiro faz-se mediante a um pedido de abertura da

15 As informações sobre o espaço escolar são baseadas nas observações realizadas na escola e nas anotações do caderno de campo, obtidas durante o processo de pesquisa e coleta de dados.

60

porta direcionado aos profissionais que trabalham na escola e após a sua

utilização o banheiro é novamente trancado. As salas de aula são trancadas

quando os estudantes estão realizando atividades na área externa.

Durante o trabalho de campo percebemos a razão dessa organização

escolar exposta no parágrafo acima: os alunos tentam, e alguns conseguem,

acessar o espaço externo da escola com o objetivo de participar da educação

física de outras turmas ou de pular o muro e sair da escola. Além disso, com

receio de que ocorram furtos ou outras práticas ilícitas as salas de aula e os

banheiros são trancados, como dissemos acima.

Além desse controle, a escola ainda conta com um sistema de

câmeras. A ideia da parte administrativa da escola é disciplinar os

estudantes, uma vez que o desrespeito as normas estabelecidas é constante.

Contudo, no tempo que passamos na escola realizando o trabalho de

campo essas medidas mostraram-se pouco eficientes. Reconhecemos que a

escola precisa estabelecer práticas disciplinares para que as ações

pedagógicas possam transcorrer. As ações tomadas pela administração

buscam melhorar as condições nas relações de ensino-aprendizagem.

Entretanto a imposição e rigidez geram muitos conflitos que por vezes

resultam em comportamentos opostos ao que se espera.

Nossas observações no espaço escolar possuem um limite. Durante a

pesquisa realizamos observações nas áreas comuns da escola, nas aulas de

educação física e atividades de esporte e lazer do programa de educação

integral em tempo integral. Entretanto, a pesquisa não investigou as relações

que ocorrem no interior das salas de aula, que é o local onde os estudantes

realizam a maior parte das atividades.

Nos espaços em que tivemos permissão de realizar observações foi

possível identificar formas de agrupamento que se aproximam dos

apontamentos de Candido (1979). Segundo esse autor, existem cinco formas

de agrupamentos que estão relacionados à idade, ao sexo, ao status, aos

grupos de ensino e aos agrupamentos associativos, conforme apresentamos

no primeiro capítulo desse trabalho.

61

Na escola investigada os agrupamentos por idade, sexo e grupos de

ensino se destacam. No turno da manhã a escola recebe estudantes de

diversas faixas etárias, do primeiro ano do ensino fundamental até o terceiro

ano do ensino médio. Como exposto, alguns estudantes do ensino

fundamental I frequentam o primeiro turno como participantes do programa

de educação integral em tempo integral. Os agrupamentos por idade, sexo e

grupos de ensino são facilmente perceptíveis. A maior parte do tempo os

jovens se organizam em coletivos de mesmo sexo e nível de ensino, com

uma tendência a se agruparem com indivíduos da mesma turma.

Entretanto, certas situações rompem com essas formas de

agrupamento. Nos intervalos e nas aulas de educação física os casais de

namorados costumam ficar próximos, muitas vezes os casais formados

pertencem a grupos de ensino distintos. Além disso, como a escola possui

apenas uma quadra poliesportiva, temos em diversas aulas de Educação

Física práticas de futsal e vôlei realizadas em conjunto por alunos do Ensino

Fundamental e Médio.

Em nossas observações os agrupamentos por status e grupos

associativos foram menos perceptíveis. Especificamente nas aulas de

educação física foi possível identificar uma relação de status relacionada ao

desempenho esportivo. Os estudantes que se destacam nas práticas

esportivas exercem uma liderança sobre os demais alunos no transcorrer da

aula. Constatamos também uma aproximação entre esses estudantes em

outros espaços da escola, sugerindo uma forma de grupo associativo com

base em práticas recreativas, mais especificamente, voltados para a prática

de diferentes modalidades esportivas.

Entre os alunos do último ano do ensino médio foi possível perceber

alguns agrupamentos com fins intelectuais. Tais agrupamentos aparentam ter

como principal objetivo uma preparação para o Exame Nacional do Ensino

Médio (ENEM) que, atualmente, é a principal oportunidade de acesso ao

ensino superior.

62

Dentre as formas de agrupamento identificamos muitos conflitos,

entre os quais destacamos os confrontos motivados pela idade e gênero. A

escola onde realizamos a pesquisa possui uma grande demanda por espaços.

Essa escassez leva a uma disputa interna pelo o uso dos lugares. Na maioria

das vezes essas disputas pelo espaço terminam com um domínio dos

indivíduos mais velhos e do sexo masculino.

Conforme apontamos no capítulo um, as formas de agrupamento

possuem mecanismos específicos de sustentação. Candido (1979) apresenta

quatro mecanismos de sustentação dos agrupamentos: liderança, normas de

conduta, sanções e símbolos. Com relação a esses aspectos identificamos

uma forte presença das normas de conduta, sobretudo as que se referem à

postura dos estudantes. Como apresentado anteriormente, temos na escola

uma rigidez em determinadas ações que visam adequar as posturas ao padrão

de comportamento esperado. E nesse caminho as sanções constituem uma

relação íntima com as normas de conduta, uma vez que ao identificar

práticas destoantes usa-se como recurso estratégias de correção do

comportamento considerado inadequado.

A liderança também está presente nas relações dos sujeitos

escolares. Entre os estudantes existe uma liderança exercida por aqueles que

possuem um status elevado. O status na escola é conferido a alguns alunos

com base em diferentes aspectos. Entre os que mais exercem influência no

contexto observado destacamos o desempenho esportivo, o padrão de beleza

estabelecido e os comportamentos marginalizados.

Com relação aos valores simbólicos percebemos uma forte

demarcação de gênero. Nos tempos e espaços observados ficou nítido que as

mulheres precisam constantemente reafirmar seus direitos. Do contrário

sofrem uma limitação na utilização desses espaços e uma forma de controle

sobre seus corpos que não é vista entre os homens.

Além disso, há uma disputa simbólica relacionada à ideia de

pertencimento. Diversas práticas que romperam com as normas escolares

demonstraram uma finalidade de demarcar o território, de apropriar-se

63

daquele espaço como um lugar da juventude, não sendo apenas regido pelos

professores e administração escolar.

Análises mais profundas dessas relações são necessárias, já que

nossas observações foram restritas a uma parcela dos tempos e espaços da

escola o que dificulta uma investigação dos grupos associativos e da

influência que as formas de status e valores simbólicos exercem entre os

sujeitos escolares. Retomaremos algumas questões aqui apontadas durante as

análises do programa de educação integral em tempo integral.

4.3 O projeto de educação integral em tempo integral realizado na

escola

As atividades de educação integral em tempo integral realizadas na

escola estão vinculadas ao programa educacional desenvolvido pela

Secretaria Estadual de Educação de Minas Gerais (SEE/MG). Os recursos

financeiros advêm da SEE/MG, mas não só, e as atividades oferecidas

seguem os macrocampos apresentados no Manual Operacional do programa

Mais Educação (SEE/MG, 2016). Como vimos no primeiro capítulo, esse

programa foi desenvolvido pelo governo federal como um mecanismo

indutor da ampliação do tempo de permanência dos alunos na escola e para

tal foi desenvolvido o Manual Operacional de Educação Integral (MOEI)

que é atualizado anualmente. Dessa forma, o programa realizado na escola se

estrutura sob a influência desse programa.

A aproximação entre o programa de educação integral em tempo

integral realizada pelo Estado de Minas Gerais e o programa Mais Educação

foi iniciada com a troca da gestão estadual ocorrida em 2015. Na gestão do

Partido dos Trabalhadores (PT), liderada pelo governador Fernando

Pimentel, o programa de educação integral em tempo integral do Estado de

Minas Gerais passou por algumas reformulações.

Nesses primeiros passos de uma nova etapa de Educação Integral em Minas Gerais, acreditamos ser prioridade a aproximação das ações da SEE/MG ao

64

Programa Mais Educação, cumprindo suas orientações e aprofundando o debate sobre a política de Educação Integral. (SEE/MG, 2015 P. 5).

Os documentos que versam sobre a educação integral em tempo

integral da SEE/MG apontam, assim como o PME, para a construção de

“vínculos comunitários” na execução das suas atividades Seguindo a

tendência atual, onde os modelos de educação integral em tempo integral são

formulados predominantemente em conformidade com a vertente "alunos em

tempo integral", como vimos no primeiro capítulo do estudo. Nesse caso, os

investimentos são direcionados apenas para a ampliação do tempo dos

alunos sem acréscimos no tempo do professor e na estrutura de

funcionamento da escola (CAVALIERE, 2009).

De acordo com a SEE/MG as ações do projeto visam:

(...) construir de forma democrática e participativa uma política de Educação Integral para todos os estudantes Mineiros. Portanto, uma Educação que não seja somente assumida pelo Estado, mas, sobretudo, abraçada pelas comunidades que com suas particularidades e regionalidades busquem contribuir para a garantia da ampliação da jornada educativa. Uma educação de tempos e espaços ampliados com ofertas formativas diversificadas, garantindo uma educação pública de qualidade. (SSE/MG, 2015, p. 5).

Segundo as bases apontadas, a SEE/MG estabelece os principais

pressupostos do programa, que incluem: revitalização das atividades

pedagógicas no tempo de permanência na escola ou sob sua

responsabilidade; concepção de educação que envolve a superação de turnos;

currículos que acolham as realidades locais; escola inserida no contexto

social; intersecções dos saberes acadêmicos e populares; a escola como

espaço de construção do sujeito; desenvolvimento das múltiplas dimensões

da identidade humana como uma das grandes finalidades da escolarização

básica.

Esses pressupostos orientam as atividades realizadas nos

macrocampos. O programa de educação integral em tempo integral da

SEE/MG estabelece os mesmos macrocampos do Programa Mais Educação,

65

são eles: (1) acompanhamento pedagógico; (2) comunicação, uso de mídias e

cultura digital e tecnológica; (3) cultura, artes e educação patrimonial; (4)

Educação ambiental, desenvolvimento sustentável e economia solidária e

criativa/educação econômica (educação financeira e fiscal); (5) esporte e

lazer; (6) educação em direitos humanos; (7) Promoção da saúde16. Entre os

macrocampos também há uma correspondência no que se refere aos

conteúdos programáticos dos dois programas.

As escolas que recebem o projeto são contempladas com atividades

de quatro macrocampos distintos. De acordo com a Legislação da SEE/MG17

os macrocampos de orientação pedagógica e esporte e lazer são obrigatórios.

Cabe a escola escolher os demais macrocampos com suas respectivas

oficinas. A legislação também estabelece que as atividades em um programa

de educação integral em tempo integral com 25 módulos de 50 minutos

sejam dividas em: 15 módulos com a participação da professora regente,

atuando principalmente na orientação pedagógica; quatro módulos para as

atividades de esporte e lazer; e outros seis módulos divididos entre as demais

oficinas escolhidas pela escola.

A escola onde realizamos a pesquisa estruturou o programa de

educação integral em tempo integral com base nos macrocampos de

acompanhamento pedagógico, esporte e lazer, educação em direitos

humanos e educação ambiental. No próximo tópico apontaremos algumas

questões que interferiram no cotidiano deste programa.

4.4 Relações entre a escola e a educação integral em tempo integral

O programa de educação integral em tempo integral realizado pela

escola atende atualmente uma turma composta por 25 alunos do ensino

fundamental I, com idades que variam entre cinco e nove anos. A

16 Macrocampos destinados às instituições escolares urbanas. 17 Legislação em conformidade com o documento orientador das ações de educação integral no Estado de Minas Gerais: ampliação de tempos e espaços educativos, versão II. Ver referências bibliográficas para consultar o documento.

66

composição dos estudantes segue um equilíbrio entre os gêneros, durante as

atividades temos uma quantidade similar de meninos e meninas. Seguindo as

bases apontadas pelo programa Mais Educação, a maioria dos estudantes

advém de famílias em situação de vulnerabilidade social e são beneficiárias

do bolsa-família.

Ao fazer referência às questões observadas no cotidiano escolar

(tópico 4.2), pouco analisamos as atividades do programa de educação

integral em tempo integral e isso expressa um significado. Ao analisarmos as

dinâmicas dentro do espaço escolar ficou nítido que as atividades do

programa de educação integral em tempo integral são secundárias em

relação às atividades regulares do Ensino Médio e Fundamental II. Existe

uma predominância desses níveis de ensino, em função deles ocuparem o

mesmo espaço onde são desenvolvidas as atividades do programa de

educação integral em tempo integral com os alunos do ensino fundamental I.

Durante nossas observações identificamos que a atuação dos

profissionais envolvidos na educação integral em tempo integral aponta para

um trabalho realizado com seriedade e dedicação. Contudo, ele é

secundarizado quando analisado diante do contexto estrutural da escola,

conforme indica um professor que atuou no projeto por dois anos no

macrocampo de esporte e lazer.

Como tem muitas turmas o projeto deixa a desejar na parte estrutural, ele fica meio para "escanteio". Pode ver, o projeto quase não utiliza a quadra coberta, ele fica utilizando um espaço aberto lá atrás, totalmente sem estrutura. Mas é o que nós temos. Como eu te falei, em 2014, eu procurei parcerias fora da escola para trabalhar com os meninos, porque a escola já está cheia de atividades. Teria que adequar o espaço da escola para as atividades do projeto. (Professor I).

Outra professora do programa de educação integral tempo integral

também relatou dificuldades em relação ao uso do espaço na escola:

Eu acho que teria que ter um espaço exclusivo para os meninos do projeto. A sala que nós usamos não é compatível com a realização do projeto, muitas vezes outras pessoas precisam usar a sala. Eu acho assim, já

67

que adotaram o projeto na escola tem que ter uma estrutura. Eu tenho muita dificuldade de sair com eles e utilizar a parte externa porque está sempre cheio (Professor III).

Com base em nossas observações e nos diálogos com os sujeitos

escolares constatamos esse movimento que secundariza as atividades do

programa de educação integral em tempo integral, em função dos problemas

estruturais da escola naquilo que tange os seus espaços. Entre as disputas por

espaço existentes na escola observamos relações em que primeiro são

atendidas as demandas do Ensino Médio e Fundamental II. A educação

integral em tempo integral é residual. Tais conflitos evidenciam relações de

poder que privilegiam as modalidades de ensino com maior contingente de

alunos, sendo os aspectos etários e de gênero significativos nesse processo.

O contexto descrito nos faz retomar algumas concepções sobre a

vertente "alunos em tempo integral" apontada por Cavaliere (2009) e Silva

(no prelo). As escolas que aderiram ao programa de educação integral em

tempo integral estruturado pela SEE/MG recebem um grande incentivo para

buscar relações com outros espaços na comunidade e no município. O que na

maioria das vezes resulta da falta de estrutura e de investimento nas

instituições escolares para atender as necessidades desta modalidade de

ensino. Como exposto na fala do diretor da escola observada:

A proposta do projeto é que se extrapole os muros da escola. A gente tem tentado fazer parcerias, espaço físico adequado nós não temos. Atualmente o projeto funciona em um auditório, mas as vezes é necessário usar esse espaço para alguma palestra, aí a turma é deslocada para outros lugares. (Diretor).

Além da demanda por espaço, também foram relatados problemas

com aquisição de materiais necessários para a realização das oficinas. Isso

demonstra mais uma vez as dificuldades que envolvem a execução das

atividades do programa de educação integral em tempo integral. Tal situação

exige ainda mais dos profissionais envolvidos, uma vez que é preciso buscar

incessantemente alternativas para tentar contornar os problemas relativos ao

68

programa. Nesse aspecto, ressaltamos a dedicação dos profissionais

envolvidos com o programa que, apesar das dificuldades usam a criatividade

e sempre aparecem com alternativas que possibilitam o andamento das

ações.

Consideramos tais características como fundamentais para o

desenvolvimento das atividades de educação integral em tempo integral,

mas, ao mesmo tempo, ressaltamos que antes de se fazer qualquer exigência

à esses profissionais é preciso que o Estado cumpra o seu papel de

financiamento adequado das instituições escolares. A criatividade e

competência para superar problemas não deveria ser a constituinte maior das

ações pedagógicas. Estes elementos devem ser pensados juntamente a um

contexto que promova condições estruturais adequadas para os fazeres

docentes e discentes.

4.5 O não lugar do macrocampo de esporte e lazer no projeto de

educação em tempo integral.

Abordaremos neste tópico dois aspectos referentes ao macrocampo

de esporte e lazer. O primeiro aspecto é uma continuação do que tratamos no

tópico anterior. Identificaremos as questões estruturais para a realização das

oficinas de esporte e lazer na escola. Em um segundo momento,

apresentaremos algumas reflexões sobre o papel desempenhado pelo

macrocampo de esporte e lazer no respectivo programa de educação integral

em tempo integral, apresentando algumas concepções e olhares que foram

direcionados ao esporte no capítulo II, e identificando as relações

construídas pelos sujeitos a partir dessas práticas.

O esporte possui um lugar de destaque nesse macrocampo, sendo a

prática corporal mais citada na legislação. Cabe ressaltar que embora o

regimento separe esporte e lazer como categorias distintas, dependendo da

forma como o esporte é concebido ele pode ser entendido como uma

manifestação lúdica. Sendo também uma atividade de lazer.

69

A legislação do programa de educação integral em tempo integral

apresenta diversas opções de atividades para o macrocampo de esporte e

lazer. São indicadas 22 atividades distintas: incluindo 12 modalidades

esportivas, 4 modalidades de lutas e outras 6 atividades diversas que incluem

práticas recreativas, jogos e outras práticas corporais18. É evidente que a

realização de tais atividades está vinculada a condições estruturais mínimas e

aquisição de materiais necessários para a experimentação dessas práticas.

Nesse aspecto, as oficinas de esporte e lazer realizadas pela escola se

constituem dentro de um cenário que envolve grandes conflitos. A

instituição escolar investigada possui apenas uma quadra poliesportiva e um

pequeno pátio. Esses espaços são ocupados de segunda à quinta-feira pelas

aulas de educação física do ensino regular. Na quadra poliesportiva ficam os

homens jogando futebol. No pátio os professores improvisam uma estrutura

para a realização da prática do voleibol, lugar ocupado predominantemente

pelas mulheres. Tal cenário indica um domínio masculino do espaço, onde a

idade, habilidade e força também são fatores que influenciam as relações de

poder.

Esse contexto onde as atividades esportivas expressam

desigualdades em aspectos de gênero, idade, força e habilidade também foi

identificado por Altmann (2015). Os resultados da pesquisa obtida por essa

autora indicam que:

(...) a análise da ocupação do espaço físico escolar mostra que, por meio do esporte, meninos ocupavam espaços mais amplos do que as meninas, podendo-se observar uma exclusão das meninas das quadras de futebol durante os recreios. Todavia, elas não eram as únicas excluídas daquele espaço, e o motivo de sua exclusão não era apenas o fato de serem mulheres, mas também o de serem consideradas mais fracas e menos habilidosas. Esses dois atributos, adicionados à idade, funcionavam como critérios de exclusão também para meninos. Em síntese, gênero, idade, força e habilidade- dentre outros possíveis critérios- formavam um emaranhado de exclusões vividas em aulas e recreios (ALTAMANN, 2015, p. 100).

18 As atividades foram descritas no capítulo um deste trabalho.

70

Em virtude da situação descrita, as oficinas de esporte e lazer, que

são realizadas as quintas e sextas-feiras, somente utilizam os espaços da

quadra poliesportiva e o pátio no dia em que não há aulas de educação física

no ensino regular. Metade das oficinas são realizadas no auditório, mesmo

espaço onde se realizam as ações de orientação pedagógica. A professora de

esporte e lazer sempre planeja suas oficinas buscando superar a falta de

espaço adequado. Porém, é inegável que a falta de estrutura física impede a

realização de diversas atividades do macrocampo de esporte e lazer. Durante

as oficinas realizadas no auditório identificamos predominantemente

atividades com jogos de tabuleiro e dança.

Além da inadequação do espaço disponível para a realização das

oficinas de esporte e lazer também há um grande problema em relação ao

uso dos materiais adequados:

As dificuldades vividas pelo projeto são principalmente por conta de material. Material é precário não tem quase nada. Eu to falando de materiais básicos: bola, corda, bambolê, coisas simples (Professor I).

A precariedade existente para a realização das oficinas de esporte e

lazer indica um não direito de escolha entre muitas das opções estabelecidas

no respectivo macrocampo. A realidade do programa demonstra que o

direito de escolha somente é possível quando a escola busca parcerias com

outras instituições. Quando essas parcerias não se consolidam fica

assegurado apenas a garantia de atividades que apresentam demandas

reduzidas, tanto em aspectos estruturais quanto materiais. Demonstrando que

o programa de educação integral em tempo integral não democratiza ou

garante o direito de acesso à modalidades esportivas que vão além da

realidade do ensino regular. As atividades esportivas relatadas durante as

ações do programa de tempo integral são, basicamente, as mesmas

praticadas nas aulas de educação física.

O professor de Educação física que atuou no programa de educação

integral em tempo integral ressaltou que trabalhava com recreação, futebol e

71

atletismo. Sendo a prática dos referidos esportes realizadas fora da escola. O

atletismo era realizado na Universidade Federal de Lavras e o futebol em um

campo situado próximo à escola.

Temos assim o primeiro contexto de não lugar do macrocampo de

esporte e lazer. O não lugar expresso em seu sentido literal, caracterizado

pela falta de estrutura da escola para receber as oficinas e pela incerteza

quanto a viabilidade na utilização de espaços exteriores à escola. O não lugar

do macrocampo de esporte e lazer indica uma condição grave de desamparo

em relação ao programa de educação integral em tempo integral como parte

do direito de acesso à educação e ao esporte.

O referido macrocampo juntamente com o de orientação pedagógica

são obrigatórios. A escola que adere o programa de educação integral em

tempo integral da SEE/MG precisa, entre as exigências, realizar oficinas

nestas áreas. Isso expressa a fragilidade na relação com os órgãos

instituidores, tendo em vista que até as ações consideradas como obrigatórias

encontram grandes problemas para sua viabilização.

O outro aspecto que ressalta o não lugar do macrocampo de esporte

e lazer está vinculado ao papel que as oficinas deste macrocampo possuem

dentro da instituição escolar. De acordo com a professora responsável por

estas oficinas há uma dificuldade em afirmar as possibilidades formativas de

suas práticas pedagógicas e da Educação Física em geral:

Uma das minhas dificuldades hoje é a escola entender que a Educação Física não é só "rolar bola". A dificuldade que eu tenho com as crianças, que você mesmo observa, elas chegam e não conseguem me ouvir. Só querem saber de bola. Eu tenho muita dificuldade em dar aulas teóricas, em trabalhar tudo aquilo que a Educação Física envolve (Professor II).

A concepção da escola acerca do papel do macrocampo de esporte e

lazer no programa de educação integral em tempo integral caminha na

contramão do que Coelho (2009, p. 85) indica como uma natureza do que

denominamos de educação integral, que segundo a autora seria "uma

72

perspectiva que não hierarquiza experiências, saberes, conhecimentos. Ao

contrário, coloca-os como complementares e fundamentados no social.

O que identificamos em relação às oficinas de esporte e lazer foi

uma recorrente submissão às demandas do macrocampo de orientação

pedagógica. Tal submissão aponta uma relação hierarquizada, conforme

expressa um professor que atuou no âmbito dessas oficinas:

O esporte é crucial nesse projeto, pois é algo que os meninos gostam. Com isso a gente consegue cativar o aluno e trazê-lo para o nosso lado. Com isso muitas vezes eu chegava na sala e a regente de turma dizia que um aluno estava dando problema. Eu conversava com o aluno e dizia que se ele não comportasse e fizesse as atividades de orientação pedagógica iria perder “x” atividades de esporte. O importante no esporte é isso aí, a gente consegue trazer o aluno para o nosso lado (Professor 1).

O papel do esporte e lazer neste contexto encontra-se como uma

simples ferramenta facilitadora das ações do macrocampo considerado mais

importante. O esporte e lazer nesse aspecto não são caracterizados como um

direito aos estudantes, conforme estabelece a legislação do programa. As

oficinas, diante de tal lógica, são tratadas como uma espécie de "prêmio" aos

alunos que respeitam as regras estabelecidas. Através do esporte e lazer cria-

se o que Candido (1979) atribui como sanção pedagógica, onde os alunos

inaplicados são punidos com o não direito a determinadas atividades.

Nesse caminho também podemos identificar uma concepção

funcionalista do esporte e lazer. É atribuído ao esporte o papel de promover

um auxílio na apropriação das normas institucionais. As práticas corporais

de esporte e lazer são pensadas a partir de uma tentativa de controle dos

estudantes, buscando a "docilização" de seus corpos. Bracht (1997) indica

essa forma de relação construída através do esporte na escola:

Assim, podemos dizer que a socialização através do esporte escolar pode ser considerada uma forma de controle social, pela adaptação do praticante aos valores e normas dominantes como condição alegada para a funcionalidade e desenvolvimento da sociedade (BRACHT, 1997, p. 61).

73

Entretanto, em oposição às concepções predominantes na instituição

escolar, observarmos nas oficinas realizadas inúmeros momentos que

rompem com essa lógica em que o esporte é tratado como algo de menor

importância ou segundo uma representação funcionalista. Essas rupturas

foram identificadas nas ações pedagógicas da professora e nas dinâmicas

sociais dos estudantes. Percebemos alguns conflitos nas ações pedagógicas,

onde em determinados momentos ocorreram tentativas de disciplinar os

estudantes através das práticas e em outras muitas ocasiões em que as

atividades concentraram-se sob as bases de uma educação democrática e

transformadora. Esses conflitos e certas contradições são expressão do fazer

docente.

A escola deve ser um lugar de autoria dos estudantes, mas não deixa

de ser o lugar onde se concebe a ideia de ordem. Entendemos que um dos

grandes desafios nas práticas docentes é encontrar um equilíbrio onde haja

uma autonomia assistida aos alunos, mas que não se caracterize como

“espontaneismo” pedagógico ou como práticas autoritárias.

Os conflitos que identificamos durante as observações, referentes a

práticas controladoras e outras que possibilitam o debate, o questionamento e

a expressão dos estudantes, constituem um posicionamento que demonstra a

responsabilidade e compromisso da professora com o fazer docente e com a

formação dos estudantes. Mesmo diante de um contexto de precariedade

para a realização das ações. As contradições que encontramos em

determinadas ações pedagógicas nos mostram que as oficinas de esporte e

lazer se configuram como um espaço de possibilidades. Contrariando o papel

que a instituição atribui a essas oficinas. Nos próximos parágrafos

descreveremos aspectos que demonstram os potenciais formativos dessas

práticas pedagógicas.

Todas as ações desenvolvidas no âmbito do esporte buscaram uma

ressignificação das práticas esportivas, rompendo com o modelo de esporte

institucionalizado ou de rendimento. Segundo Guttmann (1978), o esporte

enquanto fenômeno moderno se constitui com base em sete características:

74

secularização, igualdade formal de chances, especialização, racionalização,

burocracia, quantificação e recorde. Elenor Kunz (2010, p. 125) aponta que

"o esporte ensinado nas escolas enquanto cópia irrefletida do esporte de

competição ou de rendimento só pode fomentar vivências de sucesso para a

minoria e o fracasso ou a vivência de insucesso para a maioria".

Nesse sentido, as ações pedagógicas relacionadas às práticas

esportivas buscaram uma adequação do esporte às bases democráticas.

Reconstruindo as características do esporte dentro das oficinas. A professora,

por meio de suas ações pedagógicas, fez com que as estruturas burocráticas

do esporte, enquanto expressão de sua forma institucionalizada, fosse

desmantelada. As concepções de racionalização, especialização,

quantificação e recorde também foram questionadas, de modo a relativizar a

competição existente nas práticas esportivas. Os processos de secularização

e igualdade permaneceram, sendo que a igualdade atribuída às práticas

superou o seu sentido expresso apenas formalmente.

O esporte, dessa maneira, foi reconstruído de acordo com os códigos

e sentidos de uma escola inclusiva. Concebendo a instituição escolar como

um espaço de produção cultural. Aproximando as práticas esportivas das

ideias de Vago (1996, p. 12):

Cabe-lhe, então, ao tratar do esporte, produzir outras possibilidades de se apropriar dele — é o processo de escolarização do esporte — e, com isso, influenciar a sociedade para conhecer e usufruir de outras possibilidades de se apropriar do esporte. Buscar uma tensão permanente entre o espaço social da escola e o espaço social mais amplo. É isso que caracteriza um movimento propositivo da escola em suas relações com outras práticas culturais da sociedade.

Durante as experiências esportivas todos os estudantes tiverem

condições plenas de participação e não apenas os que demonstravam maior

domínio físico e técnico da modalidade.

Em uma das oficinas, por exemplo, a professora adaptou o

revezamento com bastão, prova do Atletismo, às condições reais dos alunos.

Nitidamente a professora buscou uma configuração entre as equipes onde

75

houvesse um equilíbrio físico e técnico. Após dividir as equipes uma

menina, de forma bastante insegura, recorreu a professora dizendo que ela

era ruim em corridas e que não queria participar.

Diante de tal relato a professora interrompeu a aula e criou em

conjunto com os alunos um clima de tranquilidade, encorajando os

estudantes e afirmando que o mais importante era que cada um corresse da

melhor forma possível, sem se preocupar com o resultado final da equipe.

Essa postura da professora assegurou a participação de todos os alunos.

Entre grande parte dos estudantes foi possível notar que o resultado final não

era a maior preocupação deles, mas sim a possibilidade de experimentação

da prática proposta e o prazer possibilitado pela ação de correr e ser

protagonista da atividade.

Além de apresentar valores que rompem com a forma

institucionalizada do esporte, as relações construídas durante as oficinas, na

maioria das vezes, superaram as exclusões por gênero. Todas as vezes em

que alguém afirmava que determinada atividade era somente para os

meninos ou que surgia a ideia de dividir a turma por gênero, a professora

intervia e dialogava com os estudantes. Durante os diálogos era afirmado o

direito de todos os estudantes participarem da oficina, independente do

gênero, faixa etária ou habilidade. E que todos deveriam brincar juntos.

Essas ações demonstram que as oficinas de esporte e lazer

apresentam potenciais formativos que superam a concepção presente na

escola, que atribui ao esporte um papel funcionalista e/ou de simples

ferramenta para auxiliar as ações de orientação pedagógica. Essas práticas

pedagógicas que se propõem ao diálogo, que atribui o direito de participação

a todos os alunos podem levar ao “empoderamento” de sujeitos que

tradicionalmente sofrem alguma forma de exclusão, dentro e/ou fora da

instituição escolar. É evidente que exclusões por habilidade no esporte,

assim como exclusões por gênero na sociedade em que vivemos são questões

estruturais complexas, onde não há respostas e caminhos simples.

76

Contudo, ações pedagógicas que trabalham com os estudantes a

valorização da diversidade, o direito universal de acesso às atividades, a não

exclusão, seja ela por qualquer fator, contribuem para o questionamento e

para não naturalização de práticas injustas. A naturalização de desigualdades

e injustiças é algo extremamente presente em nossa sociedade. E nesse

aspecto, Bracht (1997) afirma que o esporte em diversos contextos contribui

para esse processo injusto:

Um dos papeis que cumpre o esporte escolar em nosso país, então, é o de reproduzir e reforçar a ideologia capitalista, que por sua vez visa fazer com que os valores e normas nela inseridos se apresentam como normais e desejáveis. Ou seja, a dominação e a exploração devem ser assumidas e consentidas por todos, explorados e exploradores, como natural. (p. 61).

Consideramos, portanto, que esses momentos de questionamento, de

incentivo às reflexões, realizados durante as oficinas de esporte e lazer,

possam levar esses estudantes a buscarem outras relações dentro da

instituição escolar, ainda que outros tempos e espaços da escola reforcem

práticas excludentes. É possível que as ações realizadas no macrocampo de

esporte e lazer promovam entre os estudantes uma busca por equidade que

fomentem embates dentro e fora da instituição escolar. Atendendo assim,

alguns pressupostos do programa de educação integral em tempo integral.

Principalmente os que se referem à escola como espaço de construção do

sujeito e ao desenvolvimento das múltiplas dimensões da identidade humana

como uma das grandes finalidades da escolarização básica.

Diante do exposto retomamos a concepção de um não lugar do

macrocampo de esporte e lazer no projeto de educação integral em tempo

integral. As ações construídas através do esporte são consideradas pela maior

parte da instituição escolar como algo de menor valor. O esporte, assim, é

inferiorizado duplamente: em aspectos estruturais e de investimento e

também enquanto elemento cultural constituinte da educação integral em

tempo integral.

77

Apesar do não lugar ocupado pelo esporte nesse programa

educacional temos, por parte da professora do respectivo macrocampo, uma

atuação que contraria as concepções da escola e o abandono dos órgãos

instituidores em relação a essas práticas. Mesmo em um contexto de falta de

incentivos, o esporte, através da apropriação e trato pedagógico da

professora apresenta potenciais formativos. Talvez, a maioria dos sujeitos

envolvidos no programa de educação integral em tempo integral não perceba

tais potenciais, mas eles estão presentes. Por vezes, escondidos atrás de uma

conjuntura que os mascaram.

Identificar esses potenciais formativos diante de tal contexto nos

indica mais uma vez que a escola é construída através de suas práticas

cotidianas. Muitas vezes tais práticas superam o contexto precário de

investimentos das instituições de fomento, proporcionando experiências

significativas aos estudantes que se beneficiam dessas atividades.

78

5 Conclusão

No decorrer deste trabalho caminhamos por alguns aspectos que

constituem as instituições escolares, a educação integral em tempo integral e

o fenômeno esportivo. Elencamos essas temáticas de forma a identificar os

pontos de contato entre elas, refletindo sobre alguns limites e possibilidades

das oficinas de esporte e lazer em um programa de educação integral em

tempo integral. Tais limites e possibilidades nessa interface foram pensados,

portanto, à luz de um contexto escolar específico.

Após a realização de nossas análises, determinadas questões e

conflitos tornaram-se evidentes e isso possibilitou que chegássemos à

algumas conclusões que apresentaremos como um fechamento deste

trabalho. No entanto, vale destacar que tais conclusões são provisórias e

possuem relação apenas com o contexto de análise dessa pesquisa.

No programa de educação integral em tempo integral que

investigamos ficou nítida a falta de recursos para a realização das atividades

e para o cumprimento dos objetivos estabelecidos pelos órgãos instituidores.

Tal fato se expressou nos diálogos e nas ações dos sujeitos envolvidos com a

educação integral em tempo integral naquela realidade escolar pesquisada.

A precariedade dos investimentos recebidos pelo programa

demonstrou uma relação direta e conflituosa entre os aspectos

macroestruturais do projeto desenvolvido pela SEE/MG e as ações

pedagógicas dos professores. A qualidade pedagógica das oficinas

ministradas também está relacionada às garantias que deveriam ser

asseguradas pelo Estado na posição de órgão instituidor, mas na prática isso

não ocorre.

Nesse aspecto, recorrendo às duas vertentes das políticas atuais

voltadas para a educação integral em tempo integral, "alunos em Tempo

Integral" e "escola em tempo integral", apresentadas por Cavaliere (2009),

identificamos alguns pontos de contato com o programa analisado. Pela

79

legislação do respectivo programa de educação integral em tempo integral

poderíamos caracterizá-lo de acordo com a vertente "alunos em tempo

integral". Contudo, após observarmos a realidade que compõem as ações da

educação integral na referida instituição escolar devemos considerar algumas

questões que se aproximam da vertente “escolas em tempo integral”.

Embora a legislação explicite um incentivo para que se busquem

ações fora do espaço escolar, o que identificamos no respectivo projeto foi o

desenvolvimento das atividades predominantemente no interior da escola. O

que nos levaria a caracterizá-lo dentro da vertente "escola em tempo

integral”. Porém, tal vertente pressupõe uma adequação e um investimento

estrutural que seja compatível com as demandas da educação integral em

tempo integral e isso não existiu na escola pesquisada.

Diante desse cenário, chegamos à conclusão de que o respectivo

programa não pode ser enquadrado apenas por uma das vertentes. Quase a

totalidade das ações são realizadas no interior da escola, apesar dos

problemas estruturais. Ao mesmo tempo, a legislação incentiva o uso de

espaços externos à escola, mesmo que ela esteja em uma localidade onde

esses espaços não estejam presentes de maneira significativa na realidade do

programa.

O que fica evidente é que independente do lugar que o programa

ocupa entre as duas vertentes, a característica de precariedade para o

desenvolvimento das ações é um traço invariável. Sendo um fator que

constantemente dificulta as ações pedagógicas, tornando parte dos objetivos

estabelecidos pela SEE/MG inviáveis.

Com relação a presença do macrocampo de esporte e lazer no

programa, chegamos ao entendimento que há um desacordo entre o que está

previsto na legislação e as concepções da instituição escolar sobre essa

temática. O esporte e lazer são colocados em uma posição de inferioridade

nas ações do programa. Essa inferioridade contradiz o lugar de destaque que

este macrocampo ocupa na legislação, sendo uma das áreas obrigatórias.

80

A legislação prevê que o esporte e lazer contribuam para uma

formação integral do aluno, incentivando o desenvolvimento da criticidade e

criatividade. O que identificamos durante nossas análises foram

representações funcionalistas sobre o esporte repercutidas principalmente

pela parte administrativa da instituição. Tais concepções sobre o papel do

esporte buscam através dessas práticas o desenvolvimento de posturas

adequadas às normas institucionais, na maioria das vezes de forma acrítica.

Entretanto, ao analisarmos as oficinas de esporte percebemos que as

práticas pedagógicas superam as concepções funcionalistas. O esporte foi

trabalhado de forma a estimular o questionamento e a lançar dúvidas sobre

as formas de relação predominantes no cotidiano escolar. Demonstrando que

tais oficinas são um espaço com vida, onde os sujeitos têm a possibilidade de

expressar os seus anseios e construírem as suas identidades.

81

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