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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS MESTRADO EM LETRAS ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA A EPOPEIA NA CONTEMPORANEIDADE: O “IMPÉRIO” DE BLOOM, EM UMA VIAGEM À ÍNDIA, DE GONÇALO M. TAVARES Mestranda: Isabele Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira Orientadora: Profa. Dra. Silvia Helena Niederauer Co-orientadora: Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian Frederico Westphalen, outubro de 2015.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS

MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A EPOPEIA NA CONTEMPORANEIDADE:

O “IMPÉRIO” DE BLOOM, EM UMA VIAGEM À ÍNDIA,

DE GONÇALO M. TAVARES

Mestranda: Isabele Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira

Orientadora: Profa. Dra. Silvia Helena Niederauer

Co-orientadora: Profa. Dra. Ilse Maria da Rosa Vivian

Frederico Westphalen, outubro de 2015.

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Isabele Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira

A EPOPEIA NA CONTEMPORANEIDADE:

O “IMPÉRIO” DE BLOOM, EM UMA VIAGEM À ÍNDIA,

DE GONÇALO M. TAVARES

Dissertação de Mestrado apresentado ao Programa de Pós-graduação em Letras – Mestrado em Letras, área de concentração em Literatura Comparada, sob a orientação da Profa. Dra. Silvia Helena Niederauer, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras.

Frederico Westphalen, outubro de 2015.

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UNIVERSIDADE REGIONAL INTEGRADA DO ALTO URUGUAI E DAS

MISSÕES CÂMPUS DE FREDERICO WESTPHALEN

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS

MESTRADO EM LETRAS

ÁREA DE CONCENTRAÇÃO EM LITERATURA COMPARADA

A EPOPEIA NA CONTEMPORANEIDADE:

O “IMPÉRIO” DE BLOOM, EM UMA VIAGEM À ÍNDIA,

DE GONÇALO M. TAVARES

Elaborada por

Isabele Corrêa Vasconcelos Fontes Pereira

Como requisito parcial para a obtenção do grau de

Mestre em Letras

BANCA EXAMINADORA

_____________________________________________

Profa. Dra. Ilse Maria Rosa Vivian - URI (Presidente/Co-orientadora)

_____________________________________________

Prof. Dr. Anselmo Peres Alós - UFSM (1ª arguidor)

____________________________________________

Profa. Dra. Rosângela Fachel de Medeiros - URI (2ª arguidora)

______________________________________________

Frederico Westphalen, outubro de 2015.

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Dedico este trabalho aos meus quatro avós, Leopoldo Ayres

de Vasconcelos (in memoriam), Aylton Pereira, Norma

Elizabeth Corrêa Vasconcelos e Laura Fontes Pereira não

só pela gênese e descendência, mas pelos ensinamentos

sensíveis sobre os eventos e valores que construíram o meu

caráter e a minha essência.

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AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a pessoas e instituições pelo apoio nesta fase de

estudos da minha vida.

Agradeço, primeiramente, aos meus pais e irmãos pelo amor

incondicional dedicado a mim. Pelo incentivo, pela paciência e pelo amparo.

Agradeço à minha família pelas orações e energia positiva empenhadas em mim

e em minhas viagens a Frederico Westphalen.

Agradeço aos meus amigos pelo carinho constante e pela cooperação

quando necessária.

Agradeço aos colegas do Mestrado, Gabriela Coletto, Josefina Toniolo,

Camila Stuelp e André Calegari, pela colaboração acadêmica e pela amizade.

Agradeço aos meus alunos da Universidade Federal de Santa Maria,

pelos votos de sucesso.

Em especial, agradeço a Odemir Tex Jr. pelas dicas acadêmicas e

estético-textuais, também pelo carinho, paciência e cumplicidade.

Expresso a minha gratidão à professora Silvia Niederauer pelo

acompanhamento de meu crescimento pessoal e intelectual. Pelas orientações

acadêmicas, pelos conselhos, pela energia empenhada não somente neste

trabalho, mas em todos os que realizamos juntas em nossa caminhada desde a

graduação até o Mestrado.

Menciono também um agradecimento especial à professora Ilse Maria da

Rosa Vivian por sua generosidade e delicadeza em assumir juntamente comigo o

compromisso deste trabalho. Agradeço a ela por me proporcionar dois

sentimentos que em muito aprecio em sua personalidade: o amor à Literatura e a

dedicação à profissão.

Agradeço aos demais professores do Mestrado, Lizandro Calegari,

Denise Almeida, Maria Thereza Veloso, Luana Teixeira Porto, Ana Paula Teixeira

Porto, pela contribuição intelectual em meu desempenho e pela partilha de

saberes que embasarão o meu conhecimento e a minha carreira.

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Por fim, agradeço às instituições que colaboraram para o enriquecimento

da minha formação profissional. Em primeiro lugar, à Capes, que financiou os

estudos do Mestrado. Em segundo, à URI, por proporcionar esse estudo. E, em

terceiro, à UFSM, pela compreensão quanto aos afastamentos em função da

minha formação.

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RESUMO

Com o intuito de identificar e discutir os elementos que permitem reconhecer, a

partir de Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário) (2010),

de Gonçalo M. Tavares, a dimensão da épica contemporânea, propõe-se, neste

trabalho, uma investigação teórica sobre a transformação do gênero épico ao

longo da história da literatura, de modo a verificar como se concebe esse gênero

na contemporaneidade. Além disso, pretende-se analisar, com base em caráter

bibliográfico e comparatista, o texto literário Uma Viagem à Índia (2010) e discutir

de que maneira ele sistematiza as características da epopeia clássica. Logo, a

narrativa do lusófono Gonçalo M. Tavares pode vir a ser um exemplo da nova

formação literária no que tange ao gênero épico, por sua percepção hodierna

sobre a realidade e sua capacidade de gerar hibridismos e intertextos relevantes

para a literatura.

Palavras-chave: Literatura Comparada. Gênero Épico. Contemporaneidade.

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RESUMEN

Con el objetivo de identificar y discutir los elementos que permiten reconocer, a

partir de Un Viaje a la India: melancolía contemporánea (un itinerario) (2010), de

Gonçalo M. Tavares, la dimensión de la épica contemporánea, proponese, en

este trabajo, una investigación teórica sobre la transformación del génereo épico a

lo largo de la historia de la literatura, de modo a verificar como se interpreta ese

género el na contemporaneidad. Además de eso, pretendiese analizar, com base

en carácter bibliográfico y comparatista, el texto literario Un Viaje a la India (2010)

y discutir de que forma él sistematiza las características de la epopeya clásica.

Luego, la narrativa del portugués Gonçalo M. Tavares puede ser un ejemplo de la

nueva formación literaria con respecto al género épico, por su percepción

moderna sobre la realidad y su capacidad de engendrar hibridismos e intertextos

relevantes para la literatura.

Palabras-clave: Literatura Comparada. Género Épico. Contemporaneidad.

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 10

1 TRANSFORMAÇÕES DA NARRATIVA: DA ÉPICA AO ROMANCE 15

1.1 GÊNESE GREGA 15

1.2 ADVENTO DO ROMANCE 30

1.3 ROMANCE: FORMATO CONTEMPORÂNEO 49

2 O IMPÉRIO ÉPICO DE BLOOM NA CONTEMPORANEIDADE 65

2.1 VIAGEM À ÍNDIA: A MÍMESIS CONTEMPORÂNEA 65

2.2 ITINERÁRIO DA NARRATIVA: NOVOS DISPOSITIVOS 70

2.3 BLOOM, O SUJEITO MELANCÓLICO 78

CONSIDERAÇÕES FINAIS 85

REFERÊNCIAS 90

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INTRODUÇÃO

O presente trabalho busca contribuir com os estudos realizados na Linha

de Pesquisa 1 do Mestrado em Letras, Área de Concentração em Literatura

Comparada, da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões

(URI), Câmpus de Frederico Westphalen, a qual integra um corpo de estudos

sobre a Literatura, História e Memória. O estudo e análise apresentados

subsequentemente se inserem nessa linha, pois recuperam, via texto literário, as

relações entre a literatura e a história entendendo os discursos como construções

socioculturais, entre realidade e ficcionalidade. Sendo assim, compreende-se o

espaço desses discursos como lugar de identidade na subjetividade humana,

capaz de estreitar os diálogos que compõem o campo da representatividade

estética.

A partir desta temática, o trabalho pretende desenvolver, sob o viés

conceitual da tradição dos gêneros literários e sua transformação, uma análise de

objeto literário, comparando os discursos, observando os elementos de

aproximação e afastamento, quanto à proposta ficcional e à problemática da

contemporaneidade.

Para tanto, a metodologia utilizada apresenta caráter bibliográfico e será

realizada a partir do estudo e sistematização de pressupostos acerca do tema

escolhido, no presente caso, o ponto referencial será a obra do escritor português

Gonçalo M. Tavares, Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um

itinerário) (2010). Assim, faz-se necessária abordagem teórica e discussão

histórica acerca dos valores e práticas sociais ao longo do tempo e suas

representações no campo literário.

Para delinear esse estudo, busca-se descrever, refletir e discutir, com

base no corpus, as implicações entre homem e realidade e suas representações

no gênero épico. Traçando, desta forma, um perfil comparatista como

metodologia, destaca-se as marcas que se referem à construção do texto, aos

valores transmitidos pelas expressões artísticas, elementos da tradição literária

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como mímesis, verossimilhança e articulações típicas de um discurso

contemporâneo.

Assim posto, na literatura, como nas demais áreas artísticas, houve um

crescente desenvolvimento em termos estéticos no decorrer da história e das

transformações sociais desde as grandes narrativas épicas até a

contemporaneidade. Os estilos literários, por exemplo, variaram em forma e

conteúdo de acordo com os valores estéticos de cada nova geração. Dependeram

ainda das tradições e particularidades das sociedades a que pertenciam. Nesse

contexto, Ian Watt (2010) aponta o século XVIII como o momento em que ocorre a

passagem do pensamento coletivo, retratado nos épicos, para a experiência

individual, assim oferecendo suporte para a transformação das narrativas que

culminariam no romance moderno.

Partindo do pensamento medieval baseado nos ensimesmados feudos,

as novas técnicas de cultivo e a necessidade de comercialização dos produtos

excedentes levaram as populações camponesas à comercialização e às

aglomerações humanas rústicas, os burgos. Esses locais ofereceram um espaço

propício à troca de informações e ideias e um consequente progresso do

pensamento, o que desaguaria nos avanços intelectuais do Iluminismo.

Pensamento esse que valoraria a figura do homem como principal agente criador

e transformador do seu meio. Estava criada a cena para a inscrição do homem,

agora moderno, como figura central e individualizada no fazer literário.

Nos centros urbanos, nas formas de trabalho, na técnica empregada na

maioria das atividades, nos meios de comunicação e na reprodução editorial em

massa - espaço aberto com a criação da imprensa por Gutenberg –

fragmentaram-se os valores das organizações coletivas em individualizações. O

homem passou a preocupar-se com o seu eu e seus aspectos subjetivos. Isso

teve forte impacto nas artes de modo geral, principalmente na arte literária.

O crescimento urbano, alimentado cada vez mais pelo mercantilismo,

suas transações comerciais e humanas, colaborou definitivamente para o

aceleramento das tecnologias em seu tempo. Desse mesmo modo, as formas

narrativas moldavam-se à velocidade e às demandas da sociedade. O tempo dos

grandes fastígios nacionais havia decantado. O lugar das grandes civilizações

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tinha dado espaço ao sujeito hodierno com a incompletude e a incompreensão

frente ao mundo que se avizinha, como bem apontou Watt (2010, p.13), ao

afirmar que a “concepção moderna da busca da verdade [tornou-se] (...) uma

questão inteiramente individual”.

Sendo assim, há uma gama de motivos pelos quais a literatura vem

sofrendo tais modificações e renovações. O gênero épico, sobre o qual trata este

estudo, transmutou todas as suas partes constitutivas, desde a forma estética e

aspectos narrativos, até em quesitos externos advindos do meio social que ele

representava.

Partindo do objeto literário Uma Viagem à Índia: melancolia

contemporânea (um itinerário) (2010), de Gonçalo M. Tavares, pretende-se

delinear a análise sobre a obra em questão, a observar de que maneira o texto

estabelece vínculo com o gênero épico na contemporaneidade. A partir disso,

ambiciona-se investigar os processos transformacionais existentes entre o gênero

épico e o texto mencionado, tomando por base alguns aspectos da epopeia

clássica, como a mímesis, o ambiente atrelado aos fatores sociais, a estrutura

narrativa e o sujeito como personagem ficcional. Sob tais circunstâncias, vê-se a

necessidade de realizar um pequeno panorama do desenvolvimento do gênero

épico, dos novos valores estéticos e de mundo com os quais se depara.

A discussão se valerá de um apanhado de teorias clássicas sobre os

temas acima propostos, e suas transformações no decorrer da história ao alcance

do século XX. Os principais teóricos que serão utilizados para embasar os

argumentos de análise e discussão são: Platão (2004) e Aristóteles (2014),

Jeanne-Marie Gagnebin (1993), Nelly Novaes Coelho (1986), Georg Lukács

(2000), Ian Watt (2010), Walter Benjamin (1994), Theodor Adorno (2008), Giorgio

Agamben (2013), Dany-Robert Dufour (2005). Mediante tais referências, almeja-

se realizar um debate teórico e analítico verificando em que as teorias contribuem

e ratificam a presença do gênero épico na contemporaneidade.

Exposto isso, tem-se como propósito fundamental identificar e discutir os

elementos que permitem reconhecer, a partir de Uma Viagem à Índia: melancolia

contemporânea (um itinerário) (2010), de Gonçalo M. Tavares, a dimensão da

épica contemporânea.

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A partir desse macro objetivo, os objetivos específicos subdividem-se em:

Traçar uma linha histórica-transformacional sobre o gênero épico desde os seus

primórdios na cultura grega até a atualidade, verificando como se concebe o

gênero épico a partir do olhar conceitual da contemporaneidade. Além disso,

pretende-se analisar Uma Viagem à Índia1 (2010), de Gonçalo M. Tavares e

discutir de que maneira o texto apresenta traços da epopeia clássica com base

nos elementos mímesis, ambiente histórico-social, sujeito como personagem e

estrutura narrativa e os converte em reflexos estéticos e estilísticos na

contemporaneidade.

Partindo da importância da arte estética definida por Nelly Novais Coelho

(1986) como manifestação para o reconhecimento de mundo enquanto elemento

vital da essência humana entre a realidade comum e o indizível, a perspectiva

artística une-se à formação literária para dar voz à percepção.

Considerando a formação literária, há que localizá-la quanto aos novos

tempos, valores, comportamentos sociais e estéticos que geram novas

manifestações artístico-literárias. O texto Uma Viagem à Índia (2010), de Gonçalo

M. Tavares, constitui-se como um exemplo dessa nova formação literária no que

tange ao gênero épico, por sua percepção hodierna sobre a realidade e sua

capacidade de gerar hibridismos e intertextos relevantes para a literatura.

Tavares (2010) ousa repaginar o gênero épico, cuja forma, desde a

Antiguidade, era regida por estruturas rígidas. Por isso, intenta-se, nessa

pesquisa, investigar a narrativa Uma Viagem à Índia (2010), de Gonçalo M.

Tavares, em diálogo com a epopeia clássica.

Os gêneros contemporâneos, em suas configurações atuais, borram as

fronteiras de suas estéticas e se embaralham, por vezes, permutando elementos

entre distintas formas de manifestações literárias. Esse é outro motivo que

justifica a escolha da temática proposta para este trabalho. A hibridização

caracteriza os gêneros da literatura atual. Nesse sentido, a área dos estudos

1 TAVARES, Gonçalo M. Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário). São

Paulo: Leya, 2010. A partir de agora, designar-se-á apenas parte do título: Uma Viagem à Índia, a data de publicação e as respectivas páginas.

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literários, em tempos de liquidez, de acordo com Bauman (2001), flutua ante

essas novas concepções artísticas.

Assim, sob a forma da estética híbrida, entre verso e prosa, epopeia e

romance, encaixa-se ou desencaixa-se o “Império” de Bloom e as suas incertezas

a respeito de sua vida e da grande viagem que executa rumo à Índia e/ou em

busca do conhecimento de si mesmo.

Sistematicamente, dentre as partes componentes do presente estudo,

projetar-se-á a seguinte estrutura:

1 – Transformações da narrativa: da épica ao romance:

Para essa seção, busca-se estabelecer sob o enfoque teórico a transformação da

acepção de narrativa desde a gênese grega até o romance como formato

contemporâneo das grandes narrativas.

2 - O Império épico de Bloom na contemporaneidade:

Projeta-se, para esta parte, a análise do texto Uma Viagem à Índia (2010), de

Gonçalo M. Tavares, com vistas a verificar como o texto sistematiza os traços da

epopeia clássica com base nos elementos supracitados e os converte em reflexos

estéticos e estilísticos na contemporaneidade.

O roteiro da viagem de Bloom – ida e volta de Lisboa à Índia – mostra a

peregrinação do sujeito por um encontrar-se a partir da transição ante as mais

diferentes situações de interpelação do mundo. Adiante, será discutido com mais

propriedade essa viagem de Blom, que parte, a princípio, sem um objetivo sólido

que o leve a realizar tal viagem, durante os acontecimentos bons e ruins que

ocorrem durante a sua estada em diferentes países. Ele perambula no seu

autoconhecimento e, a partir do momento em que a narrativa ganha contornos de

epopeia, sucumbe a uma planificação não mais de um coletivo e de sua nação,

mas de um sujeito e de suas incertezas.

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1 TRANSFORMAÇÕES DA NARRATIVA: DA ÉPICA AO

ROMANCE

O corpo forma um texto. Esse texto é lido

Pelos outros e há livros de que se gosta

e outros não.

No fundo, cada vida, no geral, não é mais

do que um estilo literário

(TAVARES, 2010, p. 107).

1.1 GÊNESE GREGA

O gênero épico é uma das mais antigas manifestações literárias. Ele

surgiu da necessidade dos homens contarem os seus grandes feitos vividos nas

batalhas, em aventuras grandiosas ou, ainda, retratar uma pretensa época de

ouro de seus fastígios nacionais. Acredita-se que as pequenas comunidades se

reuniam para narrar e cambiar experiências, e que tais eventos eram relatados

oralmente por aedos (na Grécia antiga eram os poetas ou cantadores que,

acompanhados de cítara, recitavam os feitos épicos) para um número

considerável de espectadores. O verso, por seu facilitado jogo mnemônico (ritmo

e rima, principalmente), auxiliava esta memorização. Nelly Novaes Coelho (1986)

define o gênero como algo a ser recitado em versos para um público, ritmo em

tom grandioso, acima do comum retratando um mundo das grandes ações que

atuam no mundo exterior e o transformam.

Frente à lírica e ao dramático, o épico mostra essa capacidade rebuscada

de, por meio de grandes feitos, narrar a sociedade e, junto com ela, os valores

que a permeiam. Nesse contexto, deve-se ater para a realidade da época em se

tratando da gênese grega, aproximadamente séculos V e IV a. C.: a sociedade

era formada por uma ampla comunidade, os membros pertencentes a ela

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possuíam laços de parentesco, a terra era um bem comum e a divisão não se

dava por meio de classes, o poder pertencia ao pater, homem mais velho da

comunidade.

Em conexão com esses valores, caminhava toda a manifestação artística

a revelar a preocupação dessa origem de mundo com o exterior: as cidades, o

físico, a beleza. A literatura revelava os acontecimentos dessa ordem nos três

gêneros clássicos, o lírico, o épico e o dramático.

A poesia épica deve girar em torno de assunto ilustre, sublime, solene, especialmente vinculado a cometimentos bélicos; deve prender-se a acontecimentos históricos, ocorridos há muito tempo, para que o lendário se forme ou/e permita que o poeta lhes acrescente com liberdade o produto da sua fantasia; o protagonista da ação há de ser um herói de superior força física e psíquica, embora de constituição simples, instintivo, natural; o amor pode inserir-se na trama heroica, mas em forma de episódios isolados; e, sendo terno e magnânimo, completar harmonicamente as façanhas de guerra (MOISÉS, 1982, p. 184).

A maior manifestação literária do gênero épico deu-se fisicamente com as

obras escritas de Homero, que formam em conjunto Ilíada e Odisseia; as duas

epopeias situadas como textos-exemplos da vasta gama de qualidades

grandiloquentes da Antiguidade, possuem extrema importância para a base da

literatura, pois, advindo daí, surgem os primeiros relatos pela voz do poeta da

narração da vida humana.

O enfoque das epopeias clássicas em enaltecer homens de grandes

virtudes é refletido na forma narrativa, uma vez que se apresenta certo

detalhamento/descrição de batalhas e grandes viagens, através do

engrandecimento da supremacia da força e da astúcia sob a fraqueza e o

desânimo do adversário:

Sendo a epopéia uma longa narrativa literária de caráter heróico, grandioso e de interesse nacional e social, ela apresenta, juntamente com todos os elementos narrativos (o narrador, o narratário, personagens, tema, enredo, espaço e tempo), uma atmosfera maravilhosa que, em torno de acontecimentos históricos passados, reúne mitos, heróis e deuses, podendo-se apresentar em prosa [...] ou em verso [...] (SOARES, 2000, p. 39).

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Angélica Soares (2000) menciona os pontos de articulação que

personificam na literatura as feições da epopeia, assim como as suas partes

constituintes: Proposição; Invocação; Dedicatória; Narração; Epílogo. A

Proposição propõe, introduz o tema a ser apresentado; a Invocação é a parte que

convida as divindades que auxiliem a memória do poeta a retomar a narrativa; a

Dedicatória oferece o poema a alguém; a Narração, parte mais ampla do texto,

narra os feitos heroicos dos personagens; o Epílogo, por fim, encerra a epopeia

(MOISÉS, 1982, p 184).

Outro aspecto importante da estrutura da epopeia refere-se à organização

dos versos em sílabas métricas:

O primitivo metro das epopéias era o hexâmetro dactílico (composto por seis medidas semelhantes ao dedo: uma sílaba longa e duas breves). O hexâmetro era mantido até o último verso. Esta simetria estaria em acordo com a inalterabilidade de ânimo exigida do narrador épico, que se devia manter distanciado dos fatos. Por isso, na terceira pessoa, limita-se a apresentá-los como acontecimentos passados. A substituição posterior do hexâmetro das epopéias homéricas pelo verso decassílabo, ainda longo e narrativo, sustenta o tom solene e a grandiloquência próprios do épico (SOARES, 2000, p. 40).

O tom solene e a grandiloquência (o exagero das ações) garantiam a

plasticidade dos eventos; nelas, o poeta propunha-se a isentar-se totalmente das

ações em busca de uma maior claridade. Era a tentativa estilística de colocar-se

como um mero espectador. Mesmo o sentimento mais interno sucumbia à

projeção de imagens mais nítidas e claras (SOARES, 2000, p.41).

Os primeiros indícios teóricos sobre o gênero épico – pelo que se tem de

registros escritos – aparecem nos discursos retóricos de Platão (2004) e seu

discípulo Aristóteles (2014). Esses registros não têm uma data definida, figuram

os séculos IV e V antes de Cristo e são os primeiros documentos importantes

para o campo estético-literário, que comentam a arte de sua época postulando os

seus conhecimentos filosóficos sobre uma espinha normativa que sustenta os

formatos dos gêneros até a atualidade.

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Para tanto, em meio ao berço das teorias filosóficas a respeito do mundo

e da organização social para o bem da coletividade, nasciam, também, os

preceitos basilares para a edificação da literatura ocidental.

Platão é o precursor no que tange à organização teórica que rege não só

a literatura, mas as artes em geral. Cedeu espaço em seu discurso para a

literatura articulando sobre a verdade, a verossimilhança, a mímesis e os gêneros

clássicos.

Ao longo desse discurso, o que abastece este estudo ademais da

composição social épica, por assim dizer, são as asserções a respeito da

literatura e a sua formação. Ao tratar da literatura, Platão (2004) a dividiu em três

gêneros: o gênero épico, o lírico e o dramático. O gênero épico deveria se ocupar

das narrativas dos feitos de grandes heróis. O gênero lírico ficaria a cargo das

emoções do poeta, algo que poderia distorcer os valores de plenitude de uma

república racional. E o gênero dramático que funcionaria para a encenação de

histórias a um grande público:

Sócrates – A tua observação é corretíssima, e creio que agora vês com clareza aquilo que não pude demonstrar-te antes: que na poesia e na prosa existem três gêneros de narrativas. Uma, inteiramente imitativa, que, como tu dizes, é adequada à tragédia e à comédia; outra, de narração pelo próprio poeta, encontrada principalmente nos ditirambos; e, finalmente uma terceira, formada da combinação das duas precedentes, utilizada na epopéia e em muitos outros gêneros (PLATÃO, 2004, p. 86).

Dentre o discurso platônico (2004) sobre a asserção do gênero épico

destaca-se o seu caráter integralizador, sua linguagem em versos que narrava em

cantos os afazeres bélicos de uma sociedade que necessitava se organizar

geográfica, estrutural e politicamente. Por isso, a narração em versos convidava

as musas para cantarem os feitos de grandes homens, homens estes que podiam

representar as sociedades em todos os seus segmentos, visto que eram sujeitos

de caráter elevado, pois tinham em mais alta consideração a honra, a verdade e a

glória.

Os detalhes das batalhas, apregoava Platão (2004), não escapavam à

narração do poeta, escudos, armas, estratégias, bravuras e batalhas, além da

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astúcia de heróis em longas aventuras marítimas. Essas passagens acometiam o

discurso épico, porque, a partir do momento em que as antigas nações

necessitavam de consolidação e agrupamento das populações, esses feitos

heroicos, amparados nos valores de honradez e de coletividade, enalteciam a

importância do povo permanecer unificado:

Sócrates - Partiremos até que os seus defensores que não são poetas, mas que amam a poesia, falem por ela em prosa e nos demonstrem que não é apenas agradável, mas também útil, ao governo dos Estados e à vida humana. E iremos ouvi-los com boa vontade, visto que será proveitoso para nós se ela se revelar tão útil como agradável (PLATÃO, 2004, p. 337).

Esses hinos épicos em exaltação ao ambiente de guerra confirmavam as

necessidades organizacionais da gênese da urbe, coletivos sociais em que o todo

prevalecia à parte. Glorificavam-se os atos heroicos de homens que lutavam por

esse todo, como exemplo da maneira como os princípios configuravam um

caráter homogêneo sob a sociedade.

A linguagem por meio de versos das epopeias era propícia para o

compartilhamento em público, pelo fácil apreendimento mental. O poeta cantava

os feitos de heróis em suas aventuras e desventuras; enquanto o público

entusiasmava-se, enaltecia esses acontecimentos e os heróis como homens

superiores, tipologicamente modelar de um grupo social. Tudo era favorável, de

certa forma, ao pensamento e ações coletivas, sempre voltando à estética literária

épica para o bem de todos. Sendo assim que o tempo narrado nas epopeias do

gênero épico deveria obedecer a um parâmetro de acontecimentos históricos de

tempos remotos, distantes daqueles em que se narrava - o tempo passado.

Platão (2004) dialogava sobre a organização política, a organização

civilizatória, a organização jurídica e o bem precioso do ser humano: a emoção

expressa pela arte. Não somente a literária, mas a arte como pintura, escultura,

música, dança, e interpretação.

Contudo, nos comentários sobre a arte e a educação dos homens,

discutia-se sobre ensinamentos postulados por histórias e fábulas que

apontassem para a verdade, a justiça e a coragem. Priorizavam-se os grandes

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feitos que estabelecessem o bem e o engrandecimento do povo. Por isso, os

heróis são os representantes mais fieis dos objetivos sociais antigos:

Sócrates – E para que eles sejam corajosos, por acaso não lhe devemos dizer palavras que façam com que receiem o menos possível a morte? Ou crês que nunca será corajoso alguém que abrigue esse medo dentro de si? (PLATÃO, 2004, p.75).

Seja com a finalidade de entretenimento, seja pela própria catarse, ou

ainda, como instrumento moralizante, os objetos, cada qual a sua maneira,

satisfaziam as necessidades intrínsecas por meio da estética literária;

transbordavam a essência do ser humano enquanto indivíduo sociável

pertencente a uma comunidade:

Se quisermos, assim podemos abordar aqui o segredo do helenismo, sua perfeição que nos parece impensável e a sua estranheza intransponível para nós: o grego conhece somente respostas, mas nenhuma pergunta, somente soluções (mesmo que enigmáticas), mas nenhum enigma, somente formas, mas nenhum caos. Ele ainda traça o círculo configurador das formas aquém do paradoxo, e tudo o que, a partir da atualização do paradoxo, teria de conduzir à superficialidade, leva-o à perfeição (LUKÁCS, 2000, p. 27).

O que Lukács (2000) menciona é justamente a inexistência de

incompletudes do sujeito frente ao mundo. Na gênese grega, as aspirações

voltavam-se para o bem coletivo, por isso, nesse período, os enigmas pertenciam

ao cosmos e aos deuses. Entidades que, posteriormente com as novas

racionalizações sobre o ser, não serão mais o centro do universo.

O estilo épico continha uma ideia de completude e as transcendências da

alma se direcionavam para o partilhamento social. Essa perfeição remetia ao não

questionamento do funcionamento do mundo e dos organismos presentes nele.

Da alma individual, nada se sabia nessa época, os heróis das epopeias clássicas

viviam por detrás de suas armaduras e não há relatos das reflexões geradas por

suas psiquês. As atitudes exibidas como exemplos de tal era identificam a

preocupação humana totalmente direcionada para o ambiente exterior:

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A Ilíada e a Odisséia, epopeias escritas por Homero, o maior poeta da Antiguidade, são exemplos de poesia voltada para o mundo exterior. Poesia onde domina o episódio e onde Homero fala de tudo o que é humano: as lutas guerreiras, as fadigas físicas, a fome e as comidas; o amor em sua expressão física; o comportamento moral; etc. Seja na Ilíada, cheia de batalhas e lutas pessoais que culminam com o encontro de Aquiles e Príamo; ou na Odisséia, tecida das viagens fabulosas de Ulisses pelo Mediterrâneo em busca da Pátria, Homero focaliza a vida do homem em sua estreita dependência dos deuses; deuses que, afinal, têm vida e paixões inteiramente semelhantes às dos homens; porém, o que preocupa é o homem em seu existir exterior; não é o mistério da vida (CARPEAUX apud COELHO, 1986, p. 113 – 114).

Os textos literários refletem a imagem de um mundo que se sentia

completo e perfeito. Os abismos não passavam de feixes entre rochas com

quedas mortais, “quando a alma ainda não conhece em si nenhum abismo que a

possa atrair à queda ou a impelir a alturas ínvias” (LUKÁCS, 2000, p. 26). Os

seres respeitavam os seus heróis e viviam em plena harmonia se não fossem as

guerras e disputas bélicas por territórios, que mesmo com notoriedades

sangrentas constituíam-se parte integrante da alma épica:

Espíritos mais profundos, empenhados em coagular em aço purpúreo o sangue que lhes brota e forjá-lo em couraça, para que suas feridas permaneçam eternamente ocultas e seus gestos de heroísmo tornem-se o paradigma do verdadeiro e futuro heroísmo, a fim de que o novo heroísmo seja por ele desperto, comparam a fragmentariedade de sua figuração com a harmonia grega e os próprios sofrimentos, de que brotam suas formas, com os sonhados martírios que precisam da pureza grega para ser pacificados (LUKÁCS, 2000, p. 27).

Tudo parecia perfeito, a vida não era questionável diante dos enigmas

que se interpunham ante os homens. Os deuses, eles sim eram os responsáveis

por calcular, abrandar ou asseverar o destino dos mortais que os alimentavam

com a crença, o temor e o respeito.

A temperança deveria prevalecer para que se chegasse a um rumo

crescente no estágio da cidade. A partir do momento em que se tinham homens

raciocinando para o bem da coletividade, a República, ambicionada por Platão

(2004), solidificava os seus tijolos imaginários pelo caminho do bem e não por

uma viela de vícios e egocentrismos. E o discurso do gênero épico recitado em

versos pela forma de tramas epopeias era a maneira de identificar a

verossimilhança ante os ideais planejados para a urbe.

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Em se tratando de Grécia Antiga, Platão (2004), pensou e formulou

discursos sobre uma idealização do estado. A constituição da pólis, o local de

pertencimento do cidadão, patrício, deveria primeiramente advir do entendimento

sobre os preceitos morais e políticos com que cada um haveria de se comportar.

Foi nesse ínterim, inclusive, que o filósofo “expulsou” os poetas de sua cidade

perfeita. O carácter subversivo destes livres pensadores poria em risco o bem-

estar de seus moradores. Assim, a epopeia auxiliava neste entendimento de

cidadão, e os benefícios para a pólis:

Sócrates – O que causa o nascimento a uma cidade, penso eu, é a impossibilidade de que cada indivíduo tem de se bastar a si mesmo e a necessidade que sente de uma porção de coisas; ou julgas que existe outro motivo para o nascimento de uma cidade? Adimanto – Não. Sócrates – Portanto, um homem une-se a outro homem para determinado emprego, outro ainda para outro emprego, e as múltiplas necessidades reúnem na mesma residência um grande número de associados e auxiliares; a esta organização demos o nome de cidade, não foi? Adimanto – Exatamente. Sócrates - Porém, quando um homem dá e recebe, está convencido de que a troca se faz em seu proveito. Adimanto – Sem dúvida. Sócrates – Construamos, pois, em pensamento, uma cidade, cujos alicerces serão as nossas necessidades (p. 54).

Não há como fugir, em algum instante que seja, da organização coletiva.

Pelas sábias palavras de Platão (2004), para construir uma cidade, um precisa do

outro para abastecer as trocas na edificação da sobrevivência autossuficiente e

duradoura. A linguagem racional, manual e espiritual apontava o caminho exterior

às entranhas do mundo, com propensão a criar e desenvolver todos os pilares

pelos quais eram regidas as primeiras civilizações: Verdade, Justiça, Temperança

e Coragem.

Esses pilares eram a base do pensamento ocidental. A verdade nutria a

forma pela qual os homens deveriam comunicar e transparecer a vida que

levavam perante o todo. A justiça aprimorava o acordo tácito entre homens e as

suas ações. A temperança gestava a mente para que ela não sucumbisse ao

desejo e à emoção do instinto. E a coragem, frente às próprias ações cotidianas,

deveria caminhar junto ao homem para que o medo não o enfraquecesse frente

aos mistérios ainda não descobertos.

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Daí concluí-se o avançado entendimento que Platão possuía sobre o

poder transformador – tanto moralizante como educativo – da arte, neste caso

específico sobre o gênero épico e suas epopeias.

Assim, tramaram-se os primeiros tecidos teórico-retóricos em contexto

filosófico. Aí, nos entremeios do fiar oratório, a malha das concepções pelas quais

se deveriam reger uma cidade e os seus cidadãos incorporou em sua estampa

valores essenciais para uma vida com temperança:

Sócrates - Temos assim três virtudes que foram descobertas na nossa cidade: sabedoria, coragem e moderação para os chefes; coragem e moderação para os guardas; moderação para o povo. No que diz respeito à quarta, pela qual esta cidade também participa na virtude, que poderá ser? É evidente que é a justiça (PLATÃO, 2004, p.130-131).

Essas sociedades básicas careciam de valores para crer, de ideais para

obedecer, de nortes para seguir, de deuses para temer e de homens para

vangloriar. E a representação épica, através das epopeias, prestava-se

perfeitamente a tais finalidades, e coube a Platão e seus seguidores a tarefa

primordial de apontar os fenômenos discursivos, a fim de orientar sua construção

e constituição.

Dentre os seguidores do mestre Platão o de maior destaque, sem sombra

de dúvidas, foi Aristóteles, A ele coube pontuar, em sua Poética (2014), as

principais diferenças entre a tragédia e a epopeia (e ainda a comédia). De acordo

com Lígia Militz da Costa (1992, p. 12):

A Poética reconhece explicitamente como gêneros somente a tragédia, a epopeia e a comédia, o seja, as espécie miméticas que implicam a transformação do caráter do modelo (homem comum) para melhor (tragédia e epopeia) ou para pior (comédia).

Assim, Aristóteles (2014) introduzia a ideia de mímesis e indicava o que

cada gênero deveria seguir como modelo. Caberia ao gênero épico a exaltação

dos homens superiores e modelares de um coletivo. Desta forma o destaque ficou

sendo Homero como grande autor de poemas nobres. A ele destina louvores em

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função de suas ações narrativas revelarem espaços a outras figuras –

personagens – pela voz descaracterizada do próprio poeta.

Mais preciosista ainda, colocava a epopeia como representação de

homens de caráter superior e representativa de tempo não mensurado, enquanto

que a tragédia deveria representar homens comuns (ou igual a maioria) e ter a

duração do sol.

Contudo, o que de mais persistiu na obra de Aristóteles (2014) foi sua

tentativa de apresentar as representações do mundo através de seu conceito

central, a mímesis. Tal conceito perpassou todos os tempos e até hoje é objeto de

estudo e tem servido de inúmeros motivos para debate e discussões entre

pensadores e estudiosos contemporâneos.

Desde Platão, a mímesis (ou mimese) se centrava na representação de

algo real figurado em outro eixo, o ilusório, que imitava a realidade existente. Para

ele, esse conceito ultrapassava o entorno artístico e ganhava uma dimensão

maior do que o conceito de imitação. De acordo com Jeanne-Marie Gagnebin

(1993, p.68):

Talvez consigamos entender melhor esse conceito platônico não tanto pelo viés da imitação, mas tomando por base o objeto paradigmático. Em oposição à nossa visão moderna (e romântica), que vê na arte principalmente uma criação subjetiva, que realça o caráter inovador da subjetividade do gênio, a visão antiga insiste muito mais na fidelidade da representação ao objeto representado: é ele, o objeto, que desencadeia, por sua beleza, o impulso mimético. A arte tenta aproximar-se dele com respeito e precisão e, por isso, é sempre figurativa, nesse sentido amplo, "mimética".

O que Jeanne-Marie Gagnebin (1993) afirma é justamente o valor da

representação na Antiguidade. Não era permitido aos artistas criarem além do

caráter real que uma obra espelhava. A nova obra deveria ser fiel ao evento

retratado; portanto, a mímesis funcionava como o reflexo do mundo concreto.

Platão (2004) descreve o estilo, o tema e a forma além dos três tipos de

discursos de como se apresenta a fala poética (p. 84-85). Ao passo que, em sua

retórica articula argumentos sobre a caracterização dos gêneros literários, recai

no diálogo sobre a arte pela imitação: “Sócrates – Portanto, tenho a impressão de

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que tanto este quanto os outros poetas realizam sua narrativa por intermédio da

imitação” (p. 85).

Para Platão, a mímesis só é admitida quando mencionar a narração de

poetas que optem pelas fábulas de homens virtuosos e nelas descrevam o

heroísmo de representantes de coletivos que primem pelos valores considerados

por ele, como os primordiais pela manutenção da harmonia social:

[...] Quando vemos Homero ou qualquer outro poeta trágico imitar um herói na dor, que, no meio dos seus lamentos, se estende numa longa tirada ou canta ou bate no peito, sentimos, como sabe, prazer. Acompanhamos tudo isso com a nossa simpatia e, no nosso entusiasmo, louvamos como um bom poeta aquele que, no mais alto grau possível, provocou em nós tais disposições (PLATÃO, 2004, p.335).

Platão, em A República (2004, p. 324), resiste à mímesis, visto que ela

não é o real, apenas o reproduz. O filósofo chama de imitador o artista,

designando a sua “produção afastada três graus da natureza”. O primeiro grau

dirige-se à criação de Deus, o segundo à do artesão e o terceiro à do artista.

Segundo sua concepção estaria a arte afastada da essência real das coisas:

“sendo assim, a imitação está longe da verdade e, se modela todos os objetos, é

porque respeita apenas a uma pequena parte de cada um, a qual, por seu lado,

não passa de uma sombra” (PLATÃO, 2004, p. 325).

A sua filosofia definia a imagem poética ou plástica como reprodução da

vida. E, em meio a essa reprodução, se perderia o caráter de veracidade do

objeto representado. Pouco compreenderia o público se a narrativa contada

realmente existia ou se os poetas, inventivos em enredos por utilização de

artifícios da linguagem, estariam faltando com a verdade. Para ele, isso era algo

problemático:

Sócrates – Devemos, assim, considerar agora a tragédia e Homero, que é seu pai, visto que ouvimos certas pessoas dizerem que os poetas trágicos são versados em todas as artes, em todas as coisas humanas relativas à virtude e ao vício e até nas coisas divinas. Dizem elas que é necessário que o bom poeta, se quer criar uma obra bela, conheça os assuntos de que trata, pois, de outro modo, não será capaz de criar. Precisamos, assim, ver se essas pessoas, tendo deparado com imitadores desta natureza, não foram enganadas pela contemplação das suas obras, não notando que estão afastadas no terceiro grau do real e

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que mesmo desconhecendo a verdade, é fácil executá-las, porque os poetas criam fantasmas, e não seres reais, ou se a sua afirmação tem algum sentido e se os bons poetas sabem realmente aquilo de que, no entender da multidão, falam tão bem (PLATÃO, 2004, p.325-326).

Platão (2004) estabeleceu uma linha de definição entre realidade e ficção,

o que é verdadeiro e o que é imitação e transportou isso para o texto artístico.

Pela leitura que Jeanne-Marie Gagnebin (1993) faz dos pressupostos teóricos de

Platão acerca da mímesis, fica claro que o filósofo “estabelece as regras às quais

uma história boa deve obedecer, tanto no seu conteúdo como na sua forma”

(GAGNEBIN, 1993, p.69). Conforme Platão, essas regras se posicionam em favor

de valores como a verdade, a virtude, a coragem e a veracidade (2004, p. 337):

Declaremos, porém, que, se a poesia imitativa puder provar-nos com boas razões que tem o seu lugar numa cidade bem policiada, vamos recebê-la com alegria, porquanto temos consciência do encanto que ela exerce sobre nós, mas seria ímpio trair o que se considera a verdade.

Portanto, subjacente ao discurso de Platão (2004) está a noção de que a

arte mimética deve obedecer à verdade. E essa verdade deveria ser uma lei para

a república ideal. Toda a retórica do filósofo é tecida sob os alicerces de bens de

valia para a vida em comum nos agrupamentos sociais. Por isso, ele admite na

cidade somente “os hinos em honra dos deuses e os elogios das pessoas de

bem” (p. 336-337).

A cultura do fazer literário deve à imitação o pódio representativo das

relações humanas:

Como vários comentadores ressaltaram, a própria filosofia de Platão repousa profundamente sobre uma concepção mimética do pensamento: trata-se, para o filósofo, de sempre traduzir e reproduzir o paradigma ideal. Há portanto em Platão um gesto mimético originário que ele deve distinguir a qualquer preço da atividade mimética artística ilusória. No diálogo Sofista, ele diferenciará entre várias formas de μίμησις: uma filosófica, que representa autenticamente as essências, e as outras, produtoras de simulacros, que devem ser combatidas e rejeitadas (1969, 235 c) (GAGNEBIN, 1993, p. 69).

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Gagnebin (1993) refere a mímesis por Platão confirmando o olhar do

filósofo sobre a representação da essência das formas de modo que exaltasse

somente a grandiosidade do real, combatendo as interpretações que gerassem

representações produtoras de simulacros e homens inferiores. Por isso, ele elege

o gênero épico como grande manifestação artística a captar a vida, a exemplo de

enaltecimento dos homens superiores.

Com a divisão entre gêneros proposta por Aristóteles (2014), comprova-se

a existência dos gêneros básicos de sobreposição do discurso artístico sobre a

emoção da vida humana. O filósofo, contemporâneo e discípulo de Platão, em A

Poética Clássica (2014, p.19), não questiona a representação do real, mas o meio

em que os gêneros são imitados, os objetos a serem imitados e a maneira como

são imitados:

A epopeia, o poema trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do citareiro, todas vêm a ser, de modo geral, imitação. Diferem entre si em três pontos: imitam ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira diferente e não a mesma.

Isso evidencia não só a arte imitativa com que a literatura representa o uso

de palavras, mas também as três vertentes básicas de como ela se articula para

figurar o seu material criativo. A característica que as une é a própria imitação,

visto que apontam direções diferentes quanto a aspectos particulares de suas

constituições do ponto de vista de aristotélico (2014).

De Platão a Aristóteles, ocorrem algumas alterações no que tange à

mímesis. Enquanto que para Platão (2004) a arte da imitação era tratada com

certos reveses, para Aristóteles (2014), se mostrava algo natural ao homem e

necessária para amparar as manifestações literárias explícitas em ações poéticas.

Gagnebin (1993) explica a diferenciação do conceito de mímesis para

Platão e Aristóteles. Mesmo ambos traçando normativas de como deve ser o

processo mimético, Platão pende para o lado da verossimilhança ao extremo,

enquanto que seu discípulo, Aristóteles, para uma maior liberdade na imitação,

permitindo que a criação cresça dando novos contornos ao objeto reproduzido:

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A poética de Aristóteles também será normativa, como todas as estéticas clássicas, mas as suas normas advêm do emprego apropriado das palavras, dos ritmos, da trama à finalidade de beleza da obra, não em vista da sua fidelidade a um modelo exterior. Assim, podemos notar que, contra Platão, que falava em paradigma e em mímesis, Aristóteles fala em mímesis e em mimeisthai, ligando o êxito da representação artística não à reprodução do modelo, mas sim ao desenvolvimento integral e harmonioso da faculdade (δύναμις) mimética (p.70).

Verifica-se, neste sentido, que, conforme o discurso de Aristóteles, os

atos miméticos são a base da cognição humana. Dessa forma, a mímesis é

promovida a elemento central do fazer artístico segundo a sua voz filosófica

(2014, p. 21- 22):

Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da imitação – e todos têm prazer em imitar.

Segundo sua concepção de mímesis, ele concede, em relação a Platão,

mais espaço à criação, pois acredita que, subjacente à imitação, está a criação

como fórmula para o conhecimento. Conforme Gagnebin (1993, p. 71), “ao

descrever esse ganho de conhecimento, Aristóteles insiste na sua característica

de reconhecimento”, isto é, no conceito-chave de semelhança. A obra refletirá o

real, assemelhar-se-á com ele a partir de contornos estéticos.

A semelhança perpassa os elementos estruturais do texto poético, bem

como os objetos retratados. Fundem-se na obra, forma e conteúdo, retratando os

eventos do mundo real. Novas fontes de criação e conhecimento, dessa forma,

são disponibilizadas, possibilitando prazer e fruição através da linguagem, assim

como afirma Gagnebin (1993, p.71): “Poderíamos dizer, nesse sentido, que o

impulso mimético está na raiz do lúdico e do artístico. Ele repousa sobre a

faculdade de reconhecer semelhanças e de produzi-las na linguagem”.

Contudo, ambos os filósofos contemporâneos entre si – Platão e

Aristóteles – concordavam que tanto a forma quanto o conteúdo retiravam do

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real a essência que compunha as obras reproduzidas pelos artistas para relatar

com maior ou menor autonomia de criação os acontecimentos de sua época:

O conceito de mimese – ao mesmo tempo imitação poética - abarca não só o problema da representação, ou seja, das complexas relações entre arte e realidade, mas também apresenta-se como fundamento da gênese artística, ligada à tendência natural do homem para imitar, o que lhe confere prazer e conhecimento (cf.Aristóteles,1993, p.27). A mimese tem, portanto, uma vinculação antropológica, aspecto pouco salientado nas teorias miméticas, preocupadas antes em discutir o modo como a realidade se apresenta na obra, tendendo a leitura para uma nítida polarização, que ora privilegia as estruturas internas do texto, ao gosto das teorias imanentistas, ora as estruturas da realidade exterior, como preferem as teorias sociológicas (OLIVEIRA, 2003, p.181).

Essa polarização mimética, da qual fala Rejane Oliveira (2003), carrega

no sentido humano uma tentativa de reflexão e compreensão de seu meio através

da arte. Entre os elementos que servem à mímesis, a parecença com o real

revela na verossimilhança um componente basilar não somente para as

manifestações épicas, como todas as organizações estético-estilísticas.

Sendo assim, retoma-se o tema central das epopeias de modo a salientar

a fábula que perpassava pela grandiloquência das aventuras de heróis, expostas

por uma formação de batalha ou o deslocamento de uma grande viagem. Devido

aos acordos e desacordos entre os homens, sucede, pois, que uma guerra é um

jogo composto de táticas e estratégias que fomentam o avanço ou o recuo de

tropas com as quais se disputará em prol de valores coletivos que protegem algo

maior que a própria vida, a noção de origem, de pertencimento e de pátria, algo

que vangloriava os homens astutos durante as narrações do épico.

Dentre esse(s) tema(s), em que o poeta tinha certa liberdade criadora em

função do enlace entre história e ficção, emergia a lenda de um herói. O herói,

portanto, personagem principal da epopeia, continha todas os adjetivos almejados

– força, astúcia, honradez, caráter -. Vale dizer que a ação guardava ao herói

inúmeros conflitos dentro da narração épica, todos vencidos por ele, já que era

um homem superior, com a certeza de empenhar o desfecho num final feliz.

Primava-se, na gênese grega, por ações em tom magistral executadas

pelos homens que constituíam o todo. Destacavam-se alguns nomes tidos como

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heróis históricos que representavam esse ideal de honra, bravura e glória. Assim

eram os heróis épicos, figuras imponentes que apareciam em meio à multidão

para inflar no coletivo os deveres e os pensamentos mais elevados, com a

finalidade exemplar de apresentar um modelo de postura e caráter, os quais

deveriam ser seguido por todos.

Aos homens comuns, restava o ardor impulsionado pela chama heroica da

astúcia e da coragem, símbolo dos clássicos ideais épicos. A literatura

sobrepunha aos anseios humanos a língua de fogo forjada pelas aventuras

ficcionais. Engendrava na prosa em versos a fruição e o povoamento da mente

humana de pensamentos auspiciosos.

Assim como nas epopeias, os personagens humanos que povoavam o

ocidente do continente europeu habitavam um plano em que os deuses

assemelhavam-se a eles. É por isso que a figura do círculo imperava ante o

tempo, o espaço e os mitos. Em uma dualidade entre bem e mal, heróis, homens

comuns e homens de baixa índole, nasce a criação literária com a epopeia como

texto chave para abrir a porta da metafísica grega, envolta em uma filosofia

pensante sobre os impulsos da plenitude.

Mediante tamanha perfeição, ao passo que o exterior se acercava de

plenitude, as civilizações se desenvolviam.

1.2 ADVENTO DO ROMANCE

Da gênese literária ao advento do romance passou-se pouco mais de um

milênio. O globo terrestre transformou-se e o ser humano juntamente com ele. Em

razão da alteração dos principais valores que permeavam as sociedades antigas,

período antes de Cristo até o final da Idade Média, a literatura, assim como as

demais artes, reinventou-se. Ao pensar na origem dos ideais gregos comparados

aos do início do Renascimento, tem-se um salto considerável em relação à

composição da sociedade e do próprio homem como ser pensante e motivador de

ações.

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Historicamente, as rudimentares comunidades, dos séculos anteriores a

Cristo, foram se acercando de boas terras e ali permaneceram na constituição

dos primeiros centros urbanos ao entorno do Mar Mediterrâneo na Eurora.

Enquanto abasteciam os seus clãs de alimentos, a arte de manejar com

instrumentos, plantações e tecidos foi se aprimorando até a organização das

cidades. O instinto deu lugar à razão. Esta deveria ser aprimorada a fim fazer

avançar o escopo humano pela inteligência e não pelas ações puras e impulsivas.

Desta data, figuram as raízes da literatura ocidental, Antiguidade clássica, que

tinha na epopeia a primeira manifestação narrativa.

Com a modificação do sistema político grego que geria os ideais

europeus pela coletividade da polis, para o romano com a noção de terra e

propriedade, insuflou-se a ideia de posse individual. Mediante a isso, a influência

religiosa do Cristianismo atingiu Roma e foi oficializada em todo o Império

Romano, nutrindo as bases do anseio teocêntrico. Sendo assim, a arte literária

restringiu-se, durante a Idade Média, às manifestações sacras e incursões do

gênero lírico, e do romance cortês (por volta do século XII):

É principalmente neste último que vemos como o romanesco e a fantasia se misturam à epopéia e começam a surgir as aventuras extravagantes e maravilhosas, onde o herói encontra mágicos e encantadores, luta com monstros e viaja em países feéricos. Essas narrativas rudimentares mostram a predominância do mundo idealizado, imaginário, sobre o real. O que nelas predomina é uma imaginação estranha, quase tocando à magia, onde a natureza se submete aos caprichos dos encantadores, onde os heróis viajam ao país dos mortos e afrontam os mais terríveis perigos por amor às suas damas (COELHO, 1986, p.123).

Aos poucos, o aumento populacional acabou por desagregar as

comunidades primitivas. Mesmo com a ruptura dessas comunidades organizadas

em grandes clãs, os valores de coletividade continuaram a imperar durante os

séculos da Antiguidade enquanto o polo central do continente europeu era Roma.

Esses valores se estenderam até o final da Idade Média com o término do

feudalismo e o princípio mercantilista, nova prática-econômica da Europa em

plena Idade Moderna com o surgimento dos Estados-nacionais.

A divisão da população em classes sociais foi um fator decisivo para os

laços coletivos começarem a ruir e a distinção pelo poder político favorecer a

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aristocracia em detrimento dos demais. Esse pensamento eurocêntrico serve para

amparar o descortinamento dos fatores históricos que definem a transformação

da literatura.

Durante a Era Clássica entres os séculos XV e XVIII, os movimentos de

renovação da civilização europeia registraram a substituição do mundo medieval

pelo mundo moderno de acordo com Coelho (1986, p. 131). No decurso dessa

era, passou-se pelo Renascimento, Classicismo e Barroco, períodos que

esforçavam-se em estabelecer “uma ordem racional não apenas no pensamento,

mas também na sociedade, nos costumes, na vida, enfim” (COELHO, 1986, p.

131).

Posto isto, o Renascimento projetava uma volta à Antiguidade greco-

latina quanto ao segmento artístico-literário. Já o Classicismo buscava, tanto na

poesia como no teatro, pôr o homem em evidência, sua essência humana, suas

relações interiores e o herói amoroso (COELHO, 1986), como fez na epopeia Os

Lusíadas, de Luiz Vaz de Camões - um grande marco da produção épica. O

Barroco, ademais de alimentar as estruturas e temas dos períodos anteriores,

lança o jogo da dualidade estética, algo que só encontrará maior aproximação

entre arte e real no Neoclassicismo, pertencente à fase seguinte.

Com a implementação do Iluminismo, o período das Luzes pôs o homem

como centro do poder da razão, buscou apurar o conhecimento da natureza a fim

de torna-la útil em seu favor, promover intercâmbios intelectuais e reagir contra a

intromissão do Estado e da Igreja. Em âmbito literário, essa nova onda cultural-

intelectual encontrou no romance o novo formato ascendente do gênero épico.

Acreditando na força motriz da literatura frente aos problemas do mundo,

os autores do século XVIII utilizaram o romance como espaço de exposição dos

novos conflitos narrativos que agora habitavam o interior humano. Ao passo que a

epopeia apontava o exterior como horizonte dos argumentos narrativos, o

romance dirigia-se em deslocamento introspectivo.

A literatura acompanhou tal transformação político-econômico-religiosa

durante o Feudalismo e enclausuramento Medieval, mercantilismo burguês e

Renascimento antropocentrista, até a Idade Moderna das Revoluções Industriais

Capitalistas, a era da técnica e das Grandes Guerras:

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A literatura do mundo ocidental tem as suas raízes na Antiguidade greco-latina, apresentando até hoje quatro grandes momentos ou Eras: Medieval, Clássica, Romântica e Contemporânea. Elas obedecem a essa classificação, segundo os seus marcos divisórios (COELHO, 1986, p. 112).

Neste contexto, nasce o romance, voltado ao entretenimento e à distração

no final do século XVIII e início do XIX, situando-se entre a arte romântica e a

realista, preparado para lidar com o público leitor que agora clama por uma

atividade individual, ao passo que as sociedades adquirem formações familiares

no isolamento do seu próprio círculo social.

Com o progresso das ciências, com o domínio da técnica e o

desenvolvimento industrial, o trabalho do homem foi cedendo espaço ao

maquinário e os seus afazeres cotidianos ficaram restritos no ambiente exterior.

Sendo assim, passou-se a olhar para o interior e preocupar-se com o individual e

os seus interesses pessoais. Esse egocentrismo, resquício do antropocentrismo

renascentista, direciona a psiquê ao singular e à vontade própria que caracteriza

a Era Moderna:

É, portanto, no século XVIII, quando se delineiam as coordenadas da sociedade erguida sobre o dinheiro, o trabalho e a revolução agroindustrial, isto é, a sociedade burguesa que renovou o antigo mundo clássico-aristocrático, que o romance encontra seus temas e cria novos processos narrativos. A literatura de ficção deixa de ser apenas uma narrativa maravilhosa que decorre em plena atmosfera idealizada e fora da realidade objetiva para se transformar em uma testemunha de observação, de confissão e de análise emotiva do homem em suas relações com o mundo que o cerca, ou melhor, com seu grupo social (COELHO, 1986, p. 112).

A literatura transformou-se. Por ser representativa no âmbito de

desvendar o substrato das novas sociedades via discurso estético, as transições

foram irrevogáveis. Para tanto, se teve que adaptar o olhar sobre o texto literário

em tom de revelação da nova demanda narrativa frente a situações inusitadas de

dramas essencialmente humanos, com personagens que mais pareciam de carne

e osso do que de papel e tinta: cometendo erros, vivendo sob o julgamento social,

e buscando a sua própria concepção de verdade.

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É desse modo que analisa Ian Watt (2010, p. 34):

O método narrativo pelo qual o romance incorpora essa visão circunstancial da vida pode ser chamado seu realismo formal; formal porque aqui o termo “realismo” não se refere a nenhuma doutrina ou propósito literário específico, mas apenas a um conjunto de procedimentos narrativos que se encontram tão comumente no romance e tão raramente em outros gêneros literários que podem ser considerados típicos dessa forma. Na verdade o realismo formal é a expressão narrativa de uma premissa [...] que está implícita no gênero romance de modo geral: a premissa, ou convenção básica, de que o romance constitui um relato completo e autêntico da experiência humana e, portanto, tem a obrigação de fornecer ao leitor detalhes da história como a individualidade dos agentes envolvidos, os particulares das épocas e locais de suas ações – detalhes que são apresentados através de um emprego da linguagem muito mais referencial do que é comum em outras formas literárias.

O realismo apresentado por Watt (2010) parte do pressuposto de

desvendamento dos entremeios da sociedade moderna e suas aspirações

subjetivas, por isso da utilização dessa nomenclatura para fazer menção a essa

característica fundamental do romance: trazer em sua estrutura o reflexo do meio.

Por constituir um relato completo e autêntico da experiência humana, uma das

grandes transformações foi a alteração de épico em narrativo (com os formatos

romance, conto, novela).

De acordo com Watt (2010), o romance se fez no realismo, contrário ao

idealismo das escolas anteriores. O estudioso faz associação com os heróis

pouco convencionais na literatura que brotam como ladrão em Defoe, hipócrita

em Richardson e fornicador em Fielding:

Entretanto esse emprego do termo “realismo” tem o grave defeito de esconder o que é provavelmente a característica mais original do gênero romance. Se este fosse realista só por ver a vida pelo lado mais feio não passaria de uma espécie de romantismo às avessas; na verdade, porém, certamente procura retratar todo tipo de experiência humana e não só as que se prestam a determinada perspectiva literária: seu realismo não está na espécie de vida apresentada, e sim na maneira como a apresenta (WATT, 2010, p. 11).

Deste modo, o romance esbarra no realismo que, por sua vez, tende a

seguir as demandas contemporâneas da sociedade, “[...] o romance estabelece

com a realidade um permanente intercâmbio” (MOISÉS, 1982, p. 152). Mantém

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essa dependência sine qua non com a experiência inovadora do individualismo.

Essas possibilidades inventivas que o romance permite são capazes de moldar

uma cultura com ênfase na originalidade, unicidade e novidade, visto que o

romance se sustenta em histórias baseadas no âmago do humano:

Todas as metamorfoses do real, todas as formas de conhecimento cabem no perímetro do romance, assim transformado numa espécie de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Dessa conjuntura promana a sua função gnoseológica: mais conhecimento que entretenimento, o romance permite ao escritor construir um projeto ambiciosamente globalizante das multiformes experiências humanas, e ao leitor, desfrutá-lo de modo privilegiado, sem risco para a sua própria existência; conhecer o leitor; não existe, nos quadrantes da criação literária, meio mais completo para se chegar a uma imagem totalizante do Universo (MOISÉS, 1982, p. 452).

Na esfera de discussão sobre o romance, alguns elementos de sua

configuração ganham destaque, haja vista a sua importância na constituição do

estilo. Primeiro, reporta-se a um aspecto aludido por Ian Watt (2010): a

individualidade dos personagens narrativos. Retomando a epopeia clássica, tinha-

se como personagens os heróis, alguns personagens nomeados, somando os

deuses e as criaturas divinas. Não existia individualização dos seres. Há

momentos na Ilíada, por exemplo, em que se descrevem apenas números e mais

números de vítimas da Guerra de Troia.

O romance difere neste aspecto quando atribui qualidades específicas

para cada ser. Ele chama para a literatura a responsabilidade de atribuir

fidelidade à ambientação do real:

O conceito de particularidade realista na literatura é algo geral demais para que se possa demonstrá-lo concretamente: tal demonstração demanda que antes se estabeleça a relação entre a particularidade realista e alguns aspectos específicos da técnica narrativa. Dois desses aspectos são de especial importância para o romance: caracterização e apresentação do ambiente; certamente o romance se diferencia dos outros gêneros e de formas anteriores de ficção pelo grau de atenção que dispensa à individualização das personagens e à detalhada apresentação de seu ambiente (WATT, 2010, p. 18).

Afora a particularização identitária, a dimensão temporal adquire

reverberações tipicamente individuais, ao contrário do tempo e ambiente cíclicos

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gregos que geriam esses elementos literários sem específicidades, pensando no

coletivo, no metafísico. Sendo assim, a fragmentação de tempo, típica das causas

e efeitos da memória, aparece no texto romanesco assim como os fluxos mentais

de passado e presente:

Já examinamos um aspecto da importância que o romance atribui à dimensão tempo: sua ruptura com a tradição literária anterior de usar histórias atemporais para refletir verdades morais imutáveis. O enredo do romance também se distingue da maior parte da ficção anterior por utilizar a experiência passada como a causa da ação presente: uma relação causal atuando através do tempo substitui a confiança que as narrativas mais antigas depositaram nos disfarces e coincidências, e isso tende a dar ao romance uma estrutura muito mais coesa. Ainda mais importante, talvez, é o efeito sobre a caracterização da insistência do romance no processo temporal. O exemplo mais evidente e extremo é o romance de fluxo de consciência, que se propõe apresentar uma citação direta do que ocorre na mente do indivíduo sob impacto do fluxo temporal; em geral, porém, mais que qualquer outro gênero literário, o romance se interessou pelo desenvolvimento de suas personagens no curso do tempo. (WATT, 2010, p. 19).

Os elementos narrativos que compõem o estilo expuseram e impuseram

um código dorsal para o romance ser reconhecido como tal. Contudo, esse código

não segue uma normativa. A gestão de cada trama fica a cargo do autor e das

preferências dos seus leitores. A era da técnica e suas mudanças, que segundo

McLuahn (1979) surgem da tentativa de transformar, reproduzir ou mesmo

documentar as experiências humanas, e a consequente mudança estrutural de

uma sociedade, dispõe ao formato epopeia-burguesa “nova dimensão à

representação da realidade”, de acordo com Watt (2010, P. 26), que descreve a

técnica do “close up” cinematográfico já do século XIX como subproduto a ser

utilizado nas veias do romance.

No presente contexto, o espaço também é fator elementar para a

localização dos sujeitos geograficamente. Acompanhante inseparável do tempo,

ele molda a personalidade narrativa descritiva. A coordenada temporal

fundamenta a posição das ações da trama, bem como os deslocamentos de

personagens. A imprecisão dos fastígios épicos nada tem a haver com o rigor do

detalhamento espacial romanesco.

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Os atributos empenhados na descrição do romance mostram de imediato

a dedicação literária em transpassar do real para a ficção. Ao voltar à análise

transformacional para o período da epopeia clássica, verifica-se a totalidade

cercada de prismas que a ancoravam a uma distância remota do próprio tempo:

Totalidade do ser só é possível quanto tudo já é homogêneo, antes de ser envolvido pelas formas; quando as formas não são uma coerção, mas somente a conscientização, a vinda à tona de tudo quanto dormitava como vaga aspiração no interior daquilo a que se devia dar forma; quando o saber é virtude e a virtude, felicidade; quando a beleza põe em evidência o sentido do mundo (LUKÁCS, 2000, p. 31).

Na elaboração do relato da vida moderna, arquitetam-se conflitos

inimagináveis que a mente consegue construir via discurso literário. Isto é, a

focalização do romance no sujeito, nos seus anseios e atribuições permite ler o

psicológico humano nos mínimos detalhes, como se fosse possível enxergar o

pensamento com uma lente de aumento a expor o sentimento incrustado na

introspecção humana:

Descobrimos em nós a única substância verdadeira: eis porque tivemos de cavar abismos instransponíveis entre conhecer e fazer, entre alma e estrutura, entre eu e o mundo, e permitir que, na outra margem do abismo, toda a substancialidade se dissipasse em reflexão; eis porque nossa essência teve de converter-se, para nós, em postulado e cavar um abismo tanto mais profundo e ameaçador entre nós e nós mesmos (LUKÁCS, 2000, p. 30-31).

Ao que tudo indica, esse absolutismo narcisista de admirar pela leitura a

sua própria estética, possibilita a experimentação de diversos tipos de vida. Esse

é o grande fascínio que brota com a estética realista do século XIX, a busca

arguta e profunda pelo desvendar mais oculto do interior do ser humano, já que

sobre o que é externo a grande técnica desmistificou.

Ao mencionar na arte literária as transformações que levaram o formato

principal do gênero épico a aparecer pelas veias do romance, remete-se, ao

público leitor, que, para Watt (2010), contribui severamente para a eclosão do

romance como prática de entretenimento do novo comportamento moderno:

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[...] o realismo formal do romance envolveu uma ampla ruptura com a tradição literária vigente. Vários fatores contribuíram para que essa ruptura ocorresse na Inglaterra antes e mais completamente que em outro país, e dentre eles teve considerável importância a mudança que se processou no público leitor do século XVIII (WATT, 2010, p. 37).

Os fatores de que fala Watt (2010) sobre os quais afetou a metamorfose do

objeto literário e o desenvolvimento do público leitor convergem, inicialmente,

para o avanço do jornalismo que publicava os romances em formato de folhetins,

e tornava a cópia (reprodução) algo possível e próximo daqueles que podiam

arcar com a aquisição de livros.

Ainda em se tratando de público leitor, a lenta escolarização do povo fez

com que os semianalfabetos compreendessem apenas as ficções em suas

próprias línguas sem o rebuscamento de termos latinos e muito menos da

inversão sintática dos versos clássicos.

Outro ponto a salientar é o interesse demasiado pelos eventos comuns do

cotidiano. Diferentemente da epopeia clássica, o que abastece as narrativas

modernas é a própria aventura humana e a luta diária pela sobrevivência em meio

às emoções individuais. Por esse motivo, o novo centro dos conflitos narrativos é

o interior humano e as sinuosidades psicológicas:

O próprio termo [individualismo] é recente, tendo surgido em meados do século XIX. Sem dúvida em todas as épocas e em todas as sociedades houve “individualistas” no sentido de egocêntricos, singulares ou independentes com relação às opiniões e aos hábitos vigentes; entretanto o conceito de individualismo envolve muito mais que isso. Pressupõe toda uma sociedade regida basicamente pela ideia da independência intrínseca de cada indivíduo em relação a outros indivíduos e à fidelidade aos modelos de pensamento e conduta do passado designados pelo termo “tradição” - uma força que é sempre social, não individual. A existência de tal sociedade depende evidentemente de um tipo especial de organização política e econômica e de uma ideologia adequada; de modo mais específico, depende de uma organização econômica e política que proporcione a seus membros um amplo leque de escolhas e de uma ideologia baseada não na tradição do passado, mas na autonomia do indivíduo, sem levar em conta o status social ou capacidade pessoal. Em geral se concorda que a sociedade moderna é individualista nesses aspectos e que das muitas causas históricas de seu surgimento duas têm fundamental importância: o advento do moderno capitalismo industrial e a difusão do protestantismo, sobretudo em suas formas calvinista ou puritana (WATT, 2010, p. 63-64).

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Por motivo desses eventos, que levaram à modernização do espírito

humano com vias à individualização do meio, a literatura, assim como as outras

artes, sucumbiu a essa fração social. As páginas de suas histórias completaram-

se de dramas existencialmente humanos.

A narração, que parte do enredo, apresenta a descrição da vida dos

personagens, dos objetos e de suas ações um determinado tempo e espaço sob

o olhar de um narrador. No romance do século XIX, era comum a narrativa

apresentar enredos com princípio, meio e fim claramente delimitados de acordo

com Soares (2000, p. 45). Normalmente, a estrutura seguia essa linha

organizacional que iniciava pela introdução dos elementos da narrativa, as

circunstâncias do enredo e prosseguia com o conflito, a fiar um encadeamento de

fatos que chegava ao clímax como ponto máximo da ação e conhecia no epílogo

o fim da narrativa.

Recuperando a preocupação de Watt (2010) em discutir o problema da

identidade individual de cada personagem, tem-se aí a inferência de que era de

interesse dos romancistas do XIX manter um status epistemológico, nomeando

todos (ou quase todos) os personagens que apareciam nos enredos. Além de dar

uma tonicidade estrutural de particularização da trama, os nomes próprios

mantém a função social de personificar pela expressão verbal a identidade de

cada indivíduo a fim de pontuar a individualização dentro da vida cotidiana das

pessoas.

Por conseguinte, a valorização dos indivíduos instaura no público leitor uma

aproximação com as narrativas e seus personagens. Watt (2010) comenta, a

partir daí, importantes condições que faziam com que a individualização

mantivesse acessas as convicções de verdade ficcional. As condições de

enaltecimento do sujeito são perceptíveis nos próprios títulos que nomeiam a

narrativas dirigindo a atenção para a vida particular.

Em comparação com o romance, a epopeia, segundo Lukács (2000)

corresponde a um tempo anterior da consciência individual. O destino das

epopeias voltava-se para a coletividade. É importante ressaltar essa diferença

entre coletivo e individual, uma vez que o coletivo se valia de uma realidade

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baseada na totalidade. Em contrariedade, o individual injeta a unidade do sujeito,

característica marcante do romance na estética da e Era Moderna.

Ainda em comparação épico-romance, percebe-se que a narrativa épica

tendia para a objetividade. Isto é, as epopeias atentavam para a criação do

mundo tal como ele se parecia aos olhos do narrador. Mesmo assim, ao narrar, os

autores épicos davam vida a personagens e a episódios com um pouco mais de

liberdade criadora para além dos simples relatos de confrontos bélicos e de

grandes viagens. Dentre os elementos que compunham as narrativas orais

estavam o tempo, o espaço, os personagens, a história e o narrador, aquele que

conta a história para o público. Posteriormente, esses elementos se reelaboram

conforme os acontecimentos e interpelaram a arte de narrar pelo romance

instaurado, mediante os movimentos romântico-realistas:

O círculo em que vivem metafisicamente os gregos é menor do que o nosso: eis porque jamais seríamos capazes de nos imaginar nele com vida; ou melhor, o círculo cuja completude constituiu a essência transcendental de suas vidas rompeu-se para nós; não podemos mais respirar num mundo fechado. Inventamos a produtividade do espírito: eis porque, para nós, os arquétipos perderam inapelavelmente sua obviedade objetiva e nosso pensamento trilha um caminho infinito da aproximação jamais inteiramente concluída. Inventamos a configuração: eis porque falta sempre o último arremate a tudo que nossas mãos cansadas e sem esperança, largam pelo caminho (LUKÁCS, 2000, p. 30).

Lukács (2000) fala em completude. Para o indivíduo moderno, a

completude é um sentimento distante. As novas formas econômicas pelas quais

passou o ser humano após o mundo grego antigo – feudalismo, mercantilismo,

capitalismo - incrustou em sua essência uma ânsia constante pelo fazer, pelo

produzir, pelo lucrar. Isso ratifica justamente o contrário do círculo metafísico de

completude em que viviam os gregos:

Nosso mundo tornou-se infinitamente grande e, em cada recanto mais rico em dádivas e perigos que o grego, mas essa riqueza suprime o sentido positivo e depositário de suas vidas: a totalidade. Pois a totalidade, como prius formador de todo fenômeno individual, significa que algo fechado pode ser perfeito; perfeito porque nele tudo ocorre nada é excluído e nada remete a algo exterior mais elevado; perfeito porque nele todo amadurece até a própria perfeição e, alcançando-se, submete-se ao vínculo (LUKÁCS, 2000, p. 31).

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Sendo assim, Lukács (2000) menciona o salto do “simbolismo épico” para

a “análise psicológica” romanesca. A arte literária extrapola as problemáticas do

sujeito, exibe um panorama do mundo atrelado a determinado formato estético,

nesse caso, o romance em ascensão. Por isso, ultrapassa a qualidade de cópia e

se lança nas particularidades, nos anseios e nos dilemas que afligem o meio

social e o ser humano no seu individual:

[...] o herói do romance, nasce desse alheamento em face do mundo exterior. Enquanto o mundo é intrinsicamente homogêneo, os homens também não diferem qualitativamente entre si: (...), mas o maior dos heróis ergue-se somente um palmo acima da multidão de seus pares, e as palavras solenes dos mais sábios são ouvidas até mesmo pelos mais tolos. A vida própria da interioridade só é possível e necessária, então, quando a disparidade entre os homens tornou-se um abismo intransponível; quando os deuses se calam e nem o sacrifício nem o êxtase são capazes de puxar pela língua de seus mistérios; quando o mundo das ações desprende-se dos homens e, por essa independência, torna-se um símbolo através delas e dissolvê-las em símbolos; quando a interioridade e a aventura estão para sempre divorciadas uma da outra (LUKÁCS, 2000, p. 66 – 67).

Esse arquétipo heroico caminhou por séculos como modelo de homem a

ser seguido. Nele, os homens viam-se refletidos, pois o herói clássico suscitava

um fervor grandioso mediante as suas ações e a composição do seu caráter nas

epopeias. Os fatores históricos mencionados transformaram essa acepção de

herói como homem superior em homem comum cheio de incertezas diante dos

dramas da existência moderna. Tal como afirma Nelly Novaes Coelho (1986, p.

109), isso significa:

Focalizar dentro dessa evolução o tema do Herói, ou melhor, o ideal de homem proposto pela sociedade de cada época, situados ambos (evolução poética e ideológica) dentro dos marcos históricos que os delimita no tempo. E ao falarmos em marcos histórico pensamos em datas-chave que servem como divisor de águas das épocas, e não em delimitar cada período num compartimento estanque. Mudança alguma, na vida ou na arte, faz-se do dia para a noite, mas é sempre resultado de uma longa fermentação que, em dado momento, explode. É mais ou menos o momento dessa “explosão” que, historicamente, é assinalado como um marco divisório. Estaremos nesse percurso evolutivo nos defrontando – implícita ou explicitamente – com três elementos: o estético, o ideológico e o histórico. Os valores e desalvores da literatura através dos tempos resultam dessa mescla (grifo do autor).

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Coelho (1986) afirma a transformação do herói como um dos grandes

marcos evolutivos do gênero épico. Os elementos que menciona, estético,

ideológico e histórico permutam valores que se interpõem como determinantes

para mudanças realmente consideráveis no âmbito das artes.

O gênero épico concebia uma estética puramente imitativa, que deveria,

além de exaltar o homem superior, enaltecer a sua bravura como exemplo para a

sociedade que priorizava o coletivo. A extensão da corrente de pensamento

clássica pouco a pouco, mediante as diferentes formas de interpelação de mundo,

transformou-se em uma estética em que o homem é o centro das suas próprias

decisões. Sendo assim, em meio às lutas de reconhecimento das populações,

dos Estados Nacionais, do desbravamento de territórios longínquos e do

desfraldar dos grandes mistérios do mundo via aperfeiçoamento da técnica, viu-se

o sentido de coletividade ruir.

A maior de todas as aventuras da Era Moderna é a luta diária do

aperfeiçoamento da técnica e da tecnologia. As epopeias

chegaram ao apogeu do romance. Esse formato narrativo é o atual representante

do épico, que cedeu a sua configuração inicial para uma nova estética realista

introspectiva.

O aspecto motivador de todas essas alterações fixou-se, principalmente,

na ganância humana. A vontade de engrandecer por conta de domínio territorial,

domínio humano por imposição da força, aquisição de metais preciosos, gestão

de máquinas, produção de bens de consumo, aperfeiçoamento da técnica e

descobertas científicas só criaram um sujeito vazio, em conflito consigo e com

tudo a sua volta.

Em meio ao exposto, há uma gradação histórica acompanhada pela

modificação de princípios, linguagens e ideologias, como bem postulou Coelho

(1986). O salto gradativo entre epopeia e romance não aconteceu de uma hora

para a outra, há uma gama de motivos pelos quais as narrativas clássicas

geraram os romances e isso decorreu principalmente em função dos fatores

sociais:

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Ao sair em busca de aventuras e vencê-las, a alma desconhece o real tormento da procura e o real perigo da descoberta, e jamais põe a si mesma em jogo; ela ainda não sabe que pode perder-se e nunca imagina que terá de buscar-se. Essa é a era da epopeia. Não é a falta de sofrimento ou a segurança do ser que revestem aqui homens e ações em contornos jovialmente rígidos (o absurdo e a desolação das vissitudes do mundo não aumentaram desde o início dos tempos, apenas os cantos de consolação ressoam mais claros ou mais abafados), mas sim a adequação das ações às exigências intrínsecas da alma: à grandeza, ao desdobramento, à plenitude (LUKÁCS, 2000, p. 26).

Lukács (2000) enfatiza os valores que permeiam a era da epopeia em

contraposição com os novos rumos do romance. O sofrimento e a insegurança

aparecem nos enredos problemáticos oriundos da passagem histórica pelo

desenvolvimento e degradação de diferentes instituições (Igreja, Estado, família).

Lidar com a inconstância do cosmos gera o caos existencial tipicamente moderno:

O romance é a epopeia de uma era a qual a totalidade extensiva da vida não é mais dada de modo evidente, para a qual a imanência do sentido à vida tornou-se problemática, mas que ainda assim tem por intenção a totalidade (LUKÁCS, 2000, p. 55).

O formato da épica segue o rumo consequente dos avultos sociais que

permearam a condição humana. Sobre a narrativa em versos, por exemplo,

Lukács (2000, p. 55) menciona que o verso não é um constituinte último, tanto

para a épica quanto para a tragédia, mas sim um sintoma profundo, um divisor de

águas no que diz respeito aos dados históricos rebatidos pela literatura. Ele

enobrece o herói e o protege mediante arranjo sintático desvelado pela prosa

simples referencialista, conforme afirma Lukács (2000, p. 55 - 56):

O verso trágico é duro e cortante, isola e cria distâncias. Ele reveste os heróis com toda a profundidade de sua solidão oriunda da forma, não permite surgir entre eles outras relações que não as de luta e aniquilação; em sua lírica podem ressoar o desespero e a embriaguez do caminho e do fim, pode brilhar o caráter incomensurável do abismo sobre o qual oscila essa essencialidade, mas jamais irromperá – como por vezes a prosa o permite – um trato puramente humano e psicológico entre os personagens, jamais o desespero se tornará elegia e a embriaguez, aspiração por suas próprias alturas, jamais a alma poderá tentar sondar o seu abismo com vaidade psicológica e admirar-se com complacência no espelho da própria profundidade.

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Os fragmentos do romance, ao contrário das características métricas da

epopeia expostas por Lukács (2000), vão, pouco a pouco, lapidando o verso que

ocultava sob ângulos obtusos o cerne genitor do pensamento heroico a ponto de

arrancar-lhe o escudo, a armadura e deixar-lhe à deriva, desnudo nos blocos em

desordem em que se ajeitam os sujeitados.

Em sequência disso, Lukács (2000) aponta a fusão do estético ao ético.

Exemplifica a mímesis nas catástrofes românticas, ou seja, em meio à mudança

de valores do mundo moderno, tornou-se cada vez mais complicado manter-se

uma ideia de unidade. Forma e conteúdo, apesar de retratarem fatores externos

ao texto, gradativamente se afastaram da noção de totalidade, que se perdeu no

vazio da corrupção do mundo.

Ian Watt (2010) trata da necessidade de as características do romance

estarem atreladas às novas formas literárias, pois o romance foi um dos formatos

narrativos que mais sofreu alterações a respeito de influências exteriores ao texto,

ancoradas no âmago da natureza social humana. O autor procura elucidar de

modo sistemático o eixo nuclear da variação literária a considerar as variações

entre os apegos coletivos da humanidade.

Confirma-se que, para Lukács (2000), o reflexo estético apreende as

propriedades simbólicas de um dado período histórico-social. Por isso, suas

congruências textuais indicam o conteúdo da mímesis romanesca centrado na

dinâmica social, pois as relações pessoais e de trabalho privilegiavam, naquele

momento, a convivência em sociedade, ainda que o sujeito começasse a pender

para o seu próprio ‘eu’:

Toda a forma artística é definida pela dissonância metafísica da vida que ela afira e configura como fundamento de uma totalidade perfeita em si mesma; o caráter de estado de ânimo do mundo assim resultante, a atmosfera envolvendo homens e acontecimentos é determinada pelo perigo que, ameaçando a forma, brota da dissonância não absolutamente resolvida. A dissonância da forma romanesca, a recusa da imanência do sentido em penetrar na vida empírica, levanta um problema de forma cujo caráter formal é muito mais dissimulado que o das outras formas artísticas e que, por ser na aparência questão de conteúdo, exige uma colaboração talvez ainda mais explícita e decisiva

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entre forças éticas e estéticas do que no caso de problemas formais evidentemente puros (LUKÁCS, 2000, p. 71).

Esse gênero organizava o mundo e o narrava segundo sua ambição de

revelar as contradições do ser e sua alocação no espaço. Deriva-se dele a

narração dos conflitos humanos. O romance advém dessa cultura épica,

aprimorando-se de acordo com as demandas sociais e tendo o seu apogeu em

meio à sociedade burguesa do século XIX.

Sendo assim, uma questão importante se impõe, segundo Cláudio Magris

(2009, p.1016): “pode-se imaginar o romance sem o mundo moderno?”. E ele

mesmo confirma que o romance é o mundo moderno, quer dizer, o romance

reflete em seus meandros o labirinto da vida cotidiana moderna. Logo, traduz para

as linhas narrativas toda a transfiguração do real para o ficcional.

O romance surge dessa narração oral da epopeia e de sua estética. Ao

fundir essas duas características, nasce a prosa romanesca, que se centra no

leitor, exige fins objetivos, adequando-se ao progresso social e, cada vez mais, à

especialização em oposição à formação completa para um desenvolvimento

amplo. Segundo Magris (2009, p. 1015-1016):

[...] não por acaso, pois o romance é expressão daquela modernidade radical, daquele mundo moderno que ele celebrava como progresso e como afirmação do espírito – a história como história da liberdade, o liberalismo libertado de dogmatismos políticos e religiosos e assim por diante – mas que a sua natureza mais íntima impedia-lhe de compreender e compartilhar o modo de ser e de sentir, as transformações da sensibilidade e da própria subjetividade em sua relação com o mundo, a empoeirada, parodística, por vezes degradada, mas aventurosa e radicalmente nova odisseia.

Para Dostoievski (apud MAGRIS, 2009, p. 1017, grifo do autor), “Dom

Quixote seria suficiente, sozinho, para justificar a humanidade aos olhos de

Deus”. Dom Quixote surgiu como precursor do romance moderno. Miguel de

Cervantes não só escreveu um dos grandes clássicos da literatura como ajudou a

afirmar o estilo romanesco que viria a substituir a epopeia, cuja forma, já

agonizante, desapareceria no século XVIII, com o advento da Revolução

Industrial:

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Em nada o romance é tão característico de nossa cultura como na forma pela qual reflete essa orientação típica do pensamento moderno. E. M. Foster considera o retrato da “vida através do tempo” como função distintiva que o romance acrescentou à preocupação mais antiga da literatura pelo retrato da “vida através de valores”; Spengler atribuiu o surgimento do romance à necessidade que o homem moderno “ultra-histórico” sente de uma forma literária capaz de abordar “a totalidade da vida”; mais recentemente Northrop Frye vê a “aliança entre tempo e homem ocidental” como a característica definidora do romance comparado com outros gêneros (WATT, 2010, p. 23).

O romance nasce de uma desconexão dos valores antigos de

coletividade. Reproduz, de acordo com Watt (2010), a vida e a cultura moderna,

em sua maioria urbana e emblemática. O romance rompe com a tradição literária

e leva como herança a capacidade narrativa do gênero épico, contudo, numa

prosa contundente sobre o indivíduo e suas mazelas inseparáveis da essência

subjetiva da modernidade. Segundo o texto Narrador, de Walter Benjamin (1994,

p. 202):

[...] poucas formas de comunicação humana evoluíram mais lentamente e se extinguiram mais lentamente. O romance, cujos primórdios remontam à Antiguidade, precisou de centenas de anos para encontrar, na burguesia ascendente, os elementos favoráveis a seu florescimento.

Essa experiência só foi possível porque a realidade passou a ser

percebida pela utilização dos sentidos e percepção de mundo via estética literária.

Na visão de Magris (2009, p. 1020), “o romance é com frequência uma mistura de

celebração crítica da modernidade; o que mais conta é que, assim, esta última se

torna sua respiração, a circulação de seu sangue”. Vindo da camada burguesa, o

romance corporifica a realidade desse grupo como protagonista discursivo do

mundo moderno. Traduz em seu âmago o consumo, vértice entre produção e a lei

da oferta e da procura. Instaura na literatura este mecanismo do mercado, o

consumo, tornando esse gênero uma produção de massa, processo que se

manifesta indispensável aos novos tempos (p. 1021). Watt (2010) completa a

ideia de que a literatura se instaurou como objeto mercadológico via público leitor:

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Ao pesquisar os efeitos dessa mudança na literatura não se deve esperar nenhuma manifestação muito direta ou extraordinária dos gostos e aptidões da classe média, pois de qualquer modo sua predominância entre o público leitor preparava-se havia tempo. Entretanto parece que a mudança do centro de gravidade do público leitor provocou um efeito geral interessante para o surgimento do romance. O fato de a literatura do século XVIII se dirigir a um público mais amplo deve ter diminuído a relativa importância daqueles leitores que dispunham de instrução e tempo ocioso suficientes para se interessar, profissional ou semiprofissionalmente, pelas letras clássicas e modernas; e em contrapartida deve ter aumentado a importância relativa daqueles que desejam uma forma mais fácil de entretenimento literário, ainda que gozasse de menor prestígio entre os intelectuais (p. 50 – 51).

Rumo ao consumo, a temática dos primeiros romances admite a nova

função do dinheiro como conflito narrativo. “A nova concepção do dinheiro é

indissolúvel do gênero literário por excelência que narra essa modernidade

capitalista, o romance” (MAGRIS, 2009, p. 1022). Não é por acaso que a literatura

se volta para temas dessa natureza, porque em virtude dessa nova valoração, o

sujeito se forma/transforma/deforma em mero instrumento da modernidade

capitalista.

O capitalismo, modelo político-organizacional em que o individual

prevalece sobre o coletivo, juntamente com o lucro, com a cultura de obter a

vantagem sobre o outro, teve forte influência sobre a transformação dos modelos

convencionais narrativos da vida. Nesse ambiente, prima-se, portanto, pelo

melhor do eu, em detrimento da pluralidade:

Essa transmutação dos pontos de orientação transcendentais submete as formas artísticas a uma dialética histórico-filosófica, que terá porém resultados diversos para cada forma, de acordo com a pátria apriorística dos gêneros específicos. Pode ocorrer que a mudança afete apenas o objeto e as condições de sua configuração, mantendo intacta a relação última da forma com a sua legitimação transcendental da existência; surgem então meras alterações formais que, embora divirjam em cada detalhe técnico, não ferem o princípio último da configuração. Mas é possível que a mudança se dê justamente no principium stilisationis do gênero, que tudo determina, e assim torne necessário que à mesma intenção artística - condicionada de modo histórico-filosófico – correspondam formas de artes diversas (LUKÁCS, 2000, p. 36-37).

Georg Lukács (2000) ressalta o respaldo das artes nessa nova

transmutação de orientações, conforme caminham os acometimentos do mundo e

à medida que as eras progridem. Justamente, não se esperava que logo as artes,

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criativas e criadouras de novas frentes e interpretações, ficassem restritas a

modelos antigos de representação da sociedade que, também, transformou-se,

assim como seus governos e comportamentos.

Vive-se com o romance do século XVIII “um laboratório da indeterminável

análise que decompõe cada unidade, a começar pelo indivíduo; um observatório

de incerteza, da indeterminação, do caos probalístico que marcam a civilização

contemporânea” (MAGRIS, 2009, p. 1023). Menciona-se, nesse caso, a imprensa

que subverte os jornais diários em práticas da vivência e da busca incessante por

informações de todos os cantos do mundo, uma célebre intérprete da crise da

modernidade, senão a causadora da falência das antigas estruturas narrativas.

Nas palavras de Benjamin (1994, p. 202):

[...] verificamos que com a consolidação da burguesia – da qual imprensa, no alto capitalismo, é um dos instrumentos mais importantes – destacou-se uma forma de comunicação que, por mais antigas que fossem suas origens, nunca havia influenciado decisivamente a forma épica. Agora ela exerce essa influência.

Em contrapartida ao caráter desagregador causado pelo surgimento do

romance na vida moderna, ou vice-versa, lhe é peculiar uma propriedade

inegável: a universalidade:

O romance é a peripécia dessa busca, a odisseia de sua desilusão ou chegada, apesar de tudo, à plenitude de sentido; nascido da desagregação da épica, ele – principalmente o grande romance oitocentista - é também reconstrução de uma qualidade dela, de uma totalidade de vida (MAGRIS, 2009, p. 1024).

A totalidade de vida, a qual refere Magris (2009), alude à relação entre

sociedade e ideologia que mantém os conflitos narrativos mediante a busca de

uma identidade própria, individualista em tempo e espaço singulares

(particulares). Em consonância com a unidade de vida do ser humano, germina o

sentido mítico-religioso. Em síntese, o romance é em si mesmo um confluente

paradoxo: “É tecido com as relações do moderno e simultaneamente abarca-o em

uma nova totalidade” (p. 1025).

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1.3 ROMANCE: FORMATO CONTEMPORÂNEO

A arte sempre esteve relacionada à atividade humana, à capacidade do

ser de se mostrar criativo frente ao mundo que o cercava. Nada mais era do que

manifestações estéticas que tinham por objetivo despertar o olhar e o culto para

algo comum. Expunha a valorização da realidade em esculturas, pinturas,

músicas, danças, literatura e arquitetura.

A Antiguidade clássica promovia o culto ao equilíbrio físico-intelectual

que, com o passar dos séculos, se perdeu. Muitas foram as transformações que

acometeram o mundo de maneira geral. Novos valores surgiram e outros

entraram em decadência à medida que a organização dos indivíduos se

concentrou, em sua maioria, nos centros urbanos; que o homem passou a ser o

centro dos estudos da ciência e da subjetividade humana; e que as políticas

voltaram-se para a aquisição de bens individuais, contrárias aos ideais de

coletividade:

Quando Marx empreendeu a análise do modo de produção capitalista, esse modo de produção ainda estava em seus primórdios. Marx orientou suas investigações de forma a dar-lhes valor de prognósticos. Remontou às relações fundamentais da produção capitalista e, ao descrevê-las, previu o futuro do capitalismo. Concluiu que se podia esperar desse sistema não somente uma exploração crescente do proletariado, mas também, em última análise, a criação de condições para a sua própria supressão (BENJAMIN, 1994, p. 165).

O modo de produção capitalista prevê uma organização econômica com

base no lucro e na propriedade privada. Nesse sistema, torna-se comum a

subdivisão em classes e a relação proprietário-empregado (operário). A produção

leva a classe operariada a trocar a mão-de-obra pelo capital para manter a sua

subsistência. Contudo, não se percebe os entremeios que são subjacentes a essa

ordem político-social não só no segmento social, mas cultural e estético.

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Voltando para a arte, se verificou uma tendência transformacional até as

atuais condições produtivas. Isto é, sob influência política e econômica, muitos

foram os acontecimentos que acometeram a passagem da Antiguidade para a

Modernidade inclusive no campo artístico. A arte continuou a ser considerada

uma manifestação relacionada à atividade humana. Quanto mais aumentou a

possibilidade de se chegar à perfeição e atingir o poder de mercado, mais se

perdeu em autenticidade.

Walter Benjamin (1994, p. 166) debate justamente sobre as mudanças da

arte e sua transformação no contexto capitalista entre o século XIX e XX. Vê a

história da arte como um processo em mutação:

Em sua essência, a obra de arte sempre foi reprodutível. O que os homens faziam sempre podia ser imitado por outros homens. Essa imitação era praticada por discípulos, em seus exercícios, pelos mestres, para a difusão das obras, e finalmente por terceiros, meramente interessados no lucro. Em contraste, a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente.

A ascensão do romance como novo formato do gênero épico se instala

mediante um processo para o qual as sociedades convergem a partir do século

XIX, principalmente a europeia, centro decisório no que tange às mutações

históricas. Contudo, esses arsenais transformacionais iniciaram alguns séculos

antes com a aspiração à comercialização, às trocas de mercadorias e aos

descobrimentos de novos continentes.

Após grande era Medieval, o ideal humanista destronou a centralidade da

Igreja e do Estado. Um exemplo desses acontecimentos nas artes é a figura do

homem passando a se presentificar nas mais diversas manifestações. Sendo

assim, as mudanças acometeram o mundo e os novos sistemas de governo,

através da economia, assediaram a ambição humana com bens de consumo e

produção:

É muito difícil situar o momento em que essa mudança de orientação passou a afetar a sociedade como um todo – provavelmente não foi antes do século XIX. Mas com certeza o movimento começou muito

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antes. No século XVI a Reforma e o surgimento dos Estados nacionais desafiaram de forma decisiva a homogeneidade social da cristandade medieval e, nas famosas palavras de Maitland, “pela primeira vez o Estado absoluto deparou-se com o indivíduo absoluto” (WATT, 2010, p. 64).

Essas transformações, sobre as quais discorreu Watt (2010),

enfraqueceram os princípios tradicionais, geridos pelo poder do Estado e da

Igreja. Foi uma caminhada lenta até que o indivíduo conquistasse espaço

decisório pelo controle de si. Mesmo assim, com a conversão do mercantilismo a

capitalismo industrial, esse indivíduo absoluto perdeu a vez para o trabalho árduo

dentro das fábricas como combustível operário.

As manifestações literárias pulsaram juntamente com o coração do

homem ante ao inóspito ambiente que a urbanização proporcionava. Frente ao

comércio e à indústria, as asserções cotidianas deparavam-se com a ruína do

tradicional, posto o novo reinado, centrado no indivíduo, de acordo com Ian Watt

(2010, p. 64-65):

As classes comerciais e industriais, que desempenharam papel fundamental na criação da ordem social individualista, haviam conquistado maior poder político e econômico, e tal poder já começava a se refletir no campo da literatura. Vimos que as classes médias urbanas se tornavam muito mais importantes na composição do público leitor; e ao mesmo tempo a literatura começava a considerar favoravelmente o comércio e a indústria.

Ambientaram-se as narrativas nesses universos solitários do isolamento

moderno, digno de homens que lutavam pela sobrevivência na “selva de pedra”,

expostos aos choques sociais imediatos, à ditadura do consumo e incompreensão

de si mesmo. O mundo caminhava rumo à autonomia caótica:

Nas esferas literária, filosófica e social, o enfoque clássico no ideal, no universal e no coletivo deslocou-se por completo e ocupam o moderno campo de visão sobretudo o particular isolado, o sentido apreendido diretamente e o indivíduo autônomo (WATT, 2010, p. 65-66).

Os heróis modernos ascendiam de bravos soldados épicos a indivíduos

interesseiros, ladrões, esnobes, adúlteros, todos voltados ao denominador do

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dinheiro e da incompletude da alma, de acordo com Watt (2010, p. 66). Os

símbolos econômicos do lucro e do dinheiro foram incorporados aos enredos, pois

mostraram-se ingredientes picantes na receita que integra o recheio valorativo de

que se nutrem as artes.

Pensando por esse viés, percebe-se o dinheiro amparando a organização

social como a ilustração do capitalismo industrial. As relações entre a família, a

igreja ou as comunidades abasteciam-se também de interesses econômicos

suplantados na mente dos pobres indivíduos, que nascidos do capitalismo sempre

aspiram a uma situação econômica melhor:

Na verdade esse “pecado original” é a própria tendência dinâmica do capitalismo, que tem por objetivo não apenas manter o status quo, mas transformá-lo sem cessar. Partir, melhorar de situação constitui uma característica fundamental do estilo de vida individualista (WATT, 2010, p. 69).

Esse sistema é um dos causadores da maior enfermidade de todas: a

angústia e, consequentemente, o amiúde sentimento de perda. Tudo isso não

escapa à feroz câmera da literatura que retrata o furacão das forças modernas.

Diante da problemática humana, há que retomar os valores iniciais dos

estilos literários. Os artifícios da literatura clássica não são mais suficientes. A

realidade observável pela filosofia grega difere em proporções dantescas da

realidade observável da economia moderna.

O herói é, na epopeia clássica, uma figura representante do coletivo.

Sobre ele, nada se sabia, a não ser que lutava e seguia certos princípios, que, no

fundo, o equiparavam aos demais. Representava a legião de cidadãos da pátria,

aprofundando o conceito de totalidade. Diferentemente, ocorreu na instabilidade

moderna. Um homem apenas não possui a capacidade de representar um

coletivo, como de isolar-se na sua individualidade, de modo a elevar a

subjetividade ao extremo. Os indivíduos se deparam com um mundo dominado

pela incerteza, pela fragilidade e pela vulnerabilidade.

O homem assume o papel (im)posto: anti-herói. Ele é anti-herói ainda que

não seja mal, mas por possuir também o mal dentro de si, a fraqueza e tantos

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outros “desvalores” e dissabores que lhe competem. A partir do século definidor

entre trevas e luzes – século XVIII - , o homem provocou a valorização do

individual, ante o todo,

A partir desse descortinamento do ‘eu’, surgiram sentimentos que na

soletude do moderno levaram à incerteza, à insegurança, à inquietude, à

instabilidade e à incompreensão. O impulso humano desviou o olhar do exterior,

retratado nas batalhas e viagens das epopeias clássicas, para o caminho da

incongruência de seu interior, descobrindo pouco a pouco a profundidade da alma

e a consistência do espírito. Os personagens do romance revelaram desde os

seus princípios realistas um maniqueísmo que brotou do interior das ações

cotidianas a alimentar as cenas das narrativas:

O romance é a forma da virilidade madura: isso significa que a completude de seu mundo, sob a perspectiva objetiva, é uma imperfeição, e em termos da experiência subjetiva uma resignação. O perigo a que está sujeita essa configuração é portanto duplo: há o perigo de que a fragmentariedade do mundo salte bruscamente à luz e suprima a imanência do sentido exigido pela forma, convertendo a resignação em angustiante desengano, ou então que a aspiração demasiado intensa de saber a dissonância resolvida, afirmada e abrigada na forma conduza a um fecho precoce que desintegra a forma numa heterogeneidade disparatada, pois a fragmentariedade pode ser apenas superficialmente encoberta , mas não superada, e tem assim, rompendo os frágeis vínculos, de ser flagrada como matéria-prima em estado bruto (LUKÁCS, 2000, p. 71-72).

Após mencionar algumas das causas mais importantes do enfoque

moderno para o romance, há que lembrar-se também que o Cristianismo tem um

papel fundamental no que tange aos critérios individualistas, em virtude de

apresentar-se como uma religião interiorizada em que os pecados deviam ser

reconhecidos e reflexionados. A sua ênfase na luz interior e no autoconhecimento

pôs à baila uma abordagem subjetiva e analítica dos personagens das novas

acepções. Tanto que os estudos filosóficos, sozinhos, não deram conta da fonte

humana que jorra informações sobre cada dobradura em seus tecidos

psicológicos.

Ao enfraquecerem-se as relações comunais e tradicionais, como

descreve Watt (2010, p. 187), provocou-se não só o tipo de vida mental privada e

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egocêntrica que encontramos nos protagonistas, diante da confusão que tornou a

heterogeneidade de espírito, como também as suas relações com o exterior.

Ainda que se fale em individualismo, são as ações frente ao meio e às relações

interpessoais que completarão causa e efeitos dos enredos sobre a mente

humana. As diretrizes romanescas exibem um panorama da vida reclusa do

comportamento moderno, apontando como enigmas dessa formação, os

ambientes e sentimentos para os quais o labirinto interior pode levar:

O romance é a forma da aventura do valor próprio da interioridade; seu conteúdo é a história da alma que sai a campo para conhecer a si mesma, que busca aventuras para por elas ser provada e, pondo-se à prova, encontrar a sua própria essência. A segurança interior do mundo épico exclui a aventura, nesse sentido próprio: os heróis da epopeia percorrem uma série variegada de aventuras, mas que vão superá-las, tanto interna quanto externamente, isso nunca é posto em dúvida; os deuses que presidem o mundo têm sempre de triunfar sobre os demônios (LUKÁCS, 2000, p. 91).

A fusão de elementos e sentimentos heterogêneos, ambivalentes entre

bem e mal, privado e público, carnal e puro faz do período romanesco essa

confraternização de valores que preencheram a vida de uma inconstância

sentimental que extrapola os limites do próprio corpo. Os antigos valores de

verdade, justiça, honra e coragem ainda coexistem na perseverança harmônica

coletiva. Para gerir o caos, são necessárias essas premissas, ainda que figurem a

galeria do inalcançável na situação subjetiva-organizacional.

Mediante a realidade da técnica, na era de industrialização e consumo

entre os séculos XIX e XX, o ambiente a ser desvendado não estava fora, mas

sim dentro da mente humana. O isolamento do sujeito fez com que se avançasse

frente à ciência e se rendesse à melancolia constante. Esses sintomas

contemporâneos foram capazes de envergar a literatura pela grande viagem da

psiquê:

A arte - em relação à vida - é sempre um “apesar de tudo”; a criação de formas é a mais profunda confirmação que se pode pensar da existência da dissonância. Mas em todas as outras formas, inclusive na epopeia, por razões agora já óbvias, essa é a própria forma. Eis porque nele a relação entre ética e estética no processo formador é diversa do que nas outras espécies literárias. Nestas, a ética é um pressuposto puramente

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formal que, por sua profundidade, torna possível um avanço até a essência formalmente condicionada, por sua extensão possibilitada a totalidade igualmente condicionada pela forma e que, por sua amplitude, realiza o equilíbrio dos elementos constitutivos – de que a justiça é só uma expressão na linguagem da pura ética. No romance a intenção, a ética, é visível na configuração de cada detalhe e constitui portanto, em seu conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria da própria composição literária. (LUKÁCS, 2000, p. 72).

Georg Lukács (2000), quando refere-se à criação das formas literárias em

relação à vida, estabelece uma ponte dessa com a relação entre ética e estética.

Exemplifica essa premissa com o caráter equilibrado da epopeia que pouco se

constitui de discussões éticas em virtude dos seus enredos serem centrados em

formações humanas bem estruturadas. Em contrapartida, o romance, por ser

constitutivo aparato, suficientemente mais concreto sobre a desestruturação do

sujeito, possui um material rico para a análise da ética.

Voltando o pensamento, a partir de agora, para o contexto político-social

que abarca o romance do século XX e a sua estrutura ofegante, frente a inúmeras

impulsões históricas que o acometeram, tem-se uma sociedade ocidental

maioritariamente em comum acordo sobre a organização capitalista e a

globalização que reverbera no que o mundo se tornou.

O ambiente cultural desta nova época, a partir da sucessão de eventos

históricos fragmentou em três grandes esferas: a esfera estética, a esfera

científica e a esfera moral. A institucionalização e/ou profissionalização dessas

três esferas resultou na particularização de saberes, de acordo com Dufour

(2005). Esse movimento de particularização permite certa autonomia a cada

parte, todavia, quanto mais especificidades, menos se contempla a totalidade.

Justamente essa totalidade fracionada em parcelas aumentou a distância

entre as linhas de especialidades e o grande público. Isso acarretou falta de

conexão e diálogo entre as partes constituintes do todo. Esse quebra-cabeça das

especializações incorpora-se na estrutura narrativa.

A partir dessas ideias preliminares, vale dizer que o estado de espírito

moderno convive com a constante mudança, buscando incessantemente o novo.

Não há sentimento de continuidade entre o antigo e o moderno, e, por isso, tem-

se a ideia de ruptura. Em termos de processos sociais, pode-se falar em

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progresso, pois o progresso está ligado à ideia de superação. Portanto, isso se

conecta a condições melhores que se tinha. O objetivo da modernidade é a

superação, a inovação e a ascensão.

Já em termos de estética, as mudanças ocorrem com base na

mencionada ruptura com o passado. Esta dialética decorre de uma negação de

um movimento atual em relação a um movimento artístico anterior. Ao invés de

surgirem novas manifestações, as que existem emprestam características às

novas estéticas gerando, desta forma, hibridismos. O sentimento predominante

neste período é o de que praticamente tudo havia sido criado. O original esgotara-

se. O que agora existe une algo novo ao que já existiu.

A história universal refere que a Modernidade teve o seu início,

aproximadamente, com a Revolução Francesa, no século XVIII. Pode ser

considerado um projeto inacabado, uma experiência, a busca incessante do novo.

Essa busca incessante do novo se move em uma velocidade extremamente

rápida. O que pode causar inúmeras patologias no ser humano, já que ele não

consegue compreender e acompanhar a rapidez do mundo moderno.

A partir da Modernidade, há que se dizer que vem sendo cada vez mais

difícil narrar mantendo uma estrutura linear. Ao passo que a fragmentação

discursiva é inevitável, uma vez que a faculdade de narrar se apresenta em

processo de transformação (experimentação), de acordo com Benjamin (1994, p.

198):

Uma das causas desse fenômeno é óbvia: as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo. Basta olharmos um jornal para percebermos que seu nível está mais baixo que nunca, e que da noite para o dia não somente a imagem do mundo exterior mas também a do mundo ético sofreram transformações que antes não julgaríamos possíveis.

O terrível trauma das Grandes Guerras (1914/1940), sob o sentido da

guerra moderna desamparada de ética, fazia com que os soldados voltassem

profundamente abalados a ponto de não terem experiências narrativas para

compartilhar, muito menos, grandes feitos para enaltecer. O ato de o homem

querer liquidar nações inteiras, ameaçá-las com bombas de proporção nuclear,

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insuflar seus inocentes a campos de concentração, para Benjamin (1994, p. 198),

empobreceu a experiência comunicável:

Porque nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela guerra de material e a experiência ética pelos governantes.

A experiência é a fonte que nutre as histórias de detalhamentos capazes

de articular o inimaginável pela ficção, ainda que ancorada no real. Passada de

pessoa a pessoa, a narração era/é um bem que esclarece e amplia as noções de

mundo, estabelece um convivio diferente com o espaço e transforma a própria

experiência. Ampliando as capacidades de análise e narração sob a ótica

benjaminiana (1994, p.198-199), este estabelece e refencia duas possibilidades

de fazer emergir os relatos através da construção de dois arquétipos básicos: o

do camponês sedentário que narra a evolução e a memória do seu povo, e do

marinheiro, que singra espaços e é testemunha, in locus, dos fatos, o que autoriza

a narrar as tradições de outros povos em comparação com a sua:

Entre estes, existem dois grupos, que se interpenetram de múltiplas maneiras. A figura do narrador só se torna plenamente tangível se temos presentes esses dois grupos. “Quem viaja tem muito que contar”, diz o povo, e com isso imagina o narrador como alguém que vem de longe. Mas também escutamos com prazer o homem que ganhou honestamente sua vida sem sair do seu país e que conhece suas histórias e tradições. Se quisermos concretizar esses dois grupos através dos seus representantes arcaicos, podemos dizer que um é exemplificado pelo camponês sedentário, e o outro pelo marinheiro comerciante. Na realidade, esses dois estilos de vida produziram de certo modo suas respectivas famílias de narradores. Cada uma delas conservou, no decorrer dos séculos, suas características próprias.

É bem verdade que a narração moderna perpassa pela transformação da

narrativa oral e épica para dar lugar ao romance com linguagem mais referencial

e fragmentada herdada dos primórdios da imprensa. A origem do romance e

transformação do gênero validou-se na camada burguesa que gerou o início para

que os valores de troca se acorrentassem ao capital, ao lucro e à mercadoria. Em

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nada o romance afastou-se disso, muito pelo contrário, é com base no capitalismo

que a estética romanesca se desenvolveu.

A transfiguração do real para o ficcional acontece para Theodor Adorno

(2008), na contemporaneidade, mais precisamente no romance moderno, com a

perda da essência artística no momento em que ela passa de ilustração da

capacidade criadora humana representativa da sociedade para mero objeto de

nutrição dos bens capitalistas:

Com efeito, a liberdade absoluta na arte, que é sempre a liberdade num domínio particular, entra em contradição com o estado perene de não-liberdade no todo. O lugar da arte tornou-se nele incerto. A autonomia que ela adquiriu, após se ter desembaraçado da função cultural e dos seus duplicados, vivia da ideia de humanidade. Foi abalada à medida que a sociedade se tornava menos humana (p.11).

Para Adorno (2008), então, os princípios da arte perderam a sua solidez

devido à arte ter se vinculado à indústria cultural. A arte torna-se deleite

mercadológico proporcionado pela onda consumista que seduz o homem. Esse,

ligado à falsa ideia de posse, desenvolve uma relação fetichista sob o objeto

almejado. O peso da arte passou de encanto pela produção artística para uma

sensibilidade frustrante e nostálgica, que é suprida pela reprodução em massa,

pela cópia e pela compra.

Os apontamentos teóricos confirmaram tais ocorrências na renovação de

valores literários. O romance possui uma nova vestimenta, também fragmentária

em seu interior e, por vezes, em seu discurso. O romance é, portanto, uma

grande épica, referida por Lukács (2000, p.47), como drama humano com seus

reveses assegurados na incompletude do ser. Em razão disso, retorna-se à

questão inicial, seria possível vislumbrar uma epopeia contemporânea em meio à

difusão de valores precários do gênero épico?

Os elementos literários reestruturaram-se, refletindo o mundo real que

para uns se mostra caótico, mas que pode apresentar novos caminhos para

transformação artístico-literária, pois “(...) pode haver formas épicas cujo objeto

não seja a totalidade da vida, porém um recorte, um fragmento de existência

capaz de vida própria (LUKÁCS, 2000, p. 47). Portanto, busca-se esse sopro de

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esperança épica em Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um

itinerário) (2010), de Gonçalo M. Tavares.

Nas produções literárias da contemporaneidade, encontra-se uma

variedade de características que acompanharam as transformações ocorridas no

decorrer da história. A fragmentação dos discursos, a velocidade narrativa, a

apresentação de personagens e enredos de sujeitos comuns têm acometido as

representações artísticas da literatura desde que os valores sociais

transformaram-se em resposta a novas perspectivas.

Jacques Lacan (apud DUFOUR, 2005, p. 9) comenta: “O discurso

capitalista é algo loucamente astucioso [...], anda às mil maravilhas, não pode

andar melhor. Mas, justamente, anda rápido demais, se consome. Consome-se,

de modo que se consuma”. Utiliza-se dessa citação para expressar o

comportamento capitalista do consumo ao extremo. Algo que, provavelmente,

extirpará os recursos naturais das mãos dos homens, uma bola de neve já antes

promulgada pelas teorias críticas da Escola de Frankfurt do início do século XX.

Ao se pensar na lógica capitalista, ainda de acordo com as palavras de

Lacan, “o escravo antigo foi substituído” por homens reduzidos ao estado de

“produtos”: “produtos [...] consumíveis tanto como os outros” (apud DUFOUR,

2005, p. 9, grifo do autor). A materialização e a descartabilidade, as quais refere

Lacan em sua Conferência à Universidade de Milão em 1972, alteraram o teor

interno do comportamento humano.

A conhecida sociedade do consumo banalizou a valoração do produto e

de quem os produz, relegando-os a meros materiais substituíveis. Parafraseando

Dany-Robert Dufour (2005, p. 10), essa fala deixa entender que o capitalismo

consome também o homem e a força do seu trabalho. Não somente isso, mas o

que se destacará é a devastação do espírito:

A grande novidade seria a redução dos espíritos. Como se o pleno desenvolvimento da razão instrumental (a técnica), permitido pelo capitalismo, se consolidasse por um déficit da razão pura (a faculdade de julgar a priori quanto ao que é verdadeiro ou falso, inclusive bem ou mal). É muito precisamente esse traço que nos parece propriamente caracterizar a virada dita “pós-moderna”: o momento em que uma parte da inteligência do capitalismo se pôs a serviço da “redução das cabeças” (DUFOUR, 2005, p. 10).

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O que Dufour (2005) diz concorda precisamente com o que se vem

debatendo até então. Há uma (de)crescente evolução na história do mundo, e

isso ocorre porque os valores circundantes às grandes decisões entre os homens

a respeito de seus governos e/ou gestões econômicas estabeleceram a ruptura

com a coletividade.

Os sujeitos foram perdendo a sua evidência à medida que a negociação

de troca ficou a cargo do poder monetário: “Ora, doravante paramos de nos referir

a qualquer valor transcendental para entrarmos nas trocas” (DUFOUR, 2005, p.

12). Sobre isso, cabe ressaltar, a “coisificação” generalizada. Tudo o que

representava uma conexão mágica entre o homem e o objeto possuído, a

reboque, desvalorizou a simples mercadoria:

As trocas não valem mais como garantidas por um poder superior (de ordem transcendental ou moral), mas pelo que diretamente põem em relação como mercadorias. Em uma palavra, hoje a troca mercadológica tende a dessimbolizar o mundo (DUFOUR, 2005, p. 12).

Há uma fratura nas grandes narrativas que ainda persistem em certos

espaços se refazendo à medida que os seus elementos permutam por caracteres

contemporâneos. O mito coletivo agora é individual e os valores que permeiam os

conflitos são os sintomas ofegantes da nova constituição social:

Apenas gostaria de observar que efetivamente chegamos a uma época que viu a dissolução, até mesmo o desaparecimento das forças nas quais a “modernidade clássica” se apoiava. A esse primeiro traço do fim das grandes ideologias dominantes e das narrativas soteriológicas acrescentaram-se paralelamente, para completar o quadro, a desaparição das vanguardas, depois, de outros elementos significativos tais como: os progressos da democracia e, com ela, o desenvolvimentos do individualismo, a diminuição do papel do Estado, a supremacia progressiva da mercadoria em relação a qualquer outra consideração, o reinado do dinheiro, a sucessiva transformação da cultura, a massificação dos modos de vida combinado com a individualização e a exibição das aparências, o achatamento da história na imediatez dos acontecimentos e na instantaneidade informacional, o importante lugar ocupado pelas tecnologias muito poderosas e com frequência incontroladas, a ampliação da duração de vida e a demanda insaciável de plena saúde perpétua, a desinstitucionalização da família, as interrogações múltiplas sobre a identidade sexual, as interrogações sobre a identidade humana [...] a evitação do conflito a desafetação progressiva em relação ao político, a transformação do direito em um jurismo procedimental, a publicação do espaço privado [...], a privatização do domínio público (DUFOUR, 2005, p. 25).

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A grande narrativa, em meio a esses sintomas significativos e de certa

forma degradantes do horizonte contemporâneo, perde a sua aura frente à

problemática do ser humano: ser e estar no mundo.

A realidade não só perdeu a sua aura, como a sua corporificação, com a

massificação dos meios de comunicação e a fragmentação dos sujeitos. Sendo

assim, a epopeia, como vanguarda clássica, cede lugar a um novo formato deste

gênero, eivado de hibridismos, em que o narrativo, o evento de narrar por meio de

signos, vai além do romance realista moderno.

Este novo subproduto da epopeia ao mesmo tempo confere projeções

temporais para legitimar as angústias da Modernidade, bem como, num

movimento inverso, volta-se para sua própria gênese para marcar sua posição

enquanto gênero contemporâneo:

Os historiadores da literatura e da arte sabem que entre o arcaico e o moderno há um compromisso secreto, e não tanto porque as formas mais arcaicas parecem exercitar sobre o presente um fascínio particular quanto porque a chave do moderno está escondida no imemorial e no pré-histórico. Assim, o mundo antigo no seu fim se volta, para se reencontrar, aos primórdios; a vanguarda, que se extraviou no tempo, segue o primitivo e o arcaico. É nesse sentido que se pode dizer que a via de acesso ao presente tem necessariamente a forma de uma arqueologia que não regride, no entanto, a um passado remoto, mas a tudo aquilo que no presente não podemos em nenhum caso viver e, restando não vivido, é incessantemente relançado para a origem, sem jamais poder alcançá-la. Já que o presente não é outra coisa senão a parte de não-vivido em todo vivido, e aquilo que impede o acesso ao presente é precisamente a massa daquilo que, por alguma razão (o seu caráter traumático, a sua extrema proximidade), nesse não conseguimos viver (AGAMBEN, 2013, p. 70).

De acordo com Agamben (2013), esse é o sentimento contemporâneo por

excelência: ser e não ser, pertencer e não pertencer ao mesmo tempo. Para

melhor explicar o que é o contemporâneo o teórico se vale de três distintos

conceitos, o de dispositivo, o de contemporâneo e o de amizade.

Em vista disso, Susana Scramim e Vinícius Nicastro Honesko (2013) na

apresentação aos ensaios de Giorgio Agamben antecipam: “Já em Infância e

história, seu terceiro livro lançado, de 1978, o filósofo italiano sublinhava que uma

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autêntica revolução não visa apenas mudar o mundo, mas, antes, a mudar a

experiência do tempo” (apud AGAMBEN, 2013, p. 9).

Isso quer dizer que o plano “projeto” de Agamben (2013) sobre a

mudança da experiência do tempo se ampara nas relações do homem com os

dispositivos sociais externos e na sua relação de amizade e cordialidade com o

outro. Para além disso, como ponto chave para arquitetar a ideia de

contemporâneo proposta por ele, há que se embasar no presente. Contudo, esse

presente ao qual o teórico se refere não é um presente pleno em essência que

figura a sensação de pertencimento, muito pelo contrário, é um presente com

projeção para o passado e/ou o futuro, o que leva à instabilidade e incerteza típica

do sujeito contemporâneo.

Sendo assim, tem-se a noção de dispositivo como:

Dispositivo passa a ser “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes (apud AGAMBEN, 2013, p. 12).

Dispositivo é, portanto, qualquer instituição que rege a organização de

certa comunidade mediante a utilização de regras de convivência e poder.

Partindo do exposto, pode-se chamar de sujeito contemporâneo aquele que “(...)

resulta da relação e, por assim dizer, do corpo a corpo entre os viventes e os

dispositivos” (apud AGAMBEN, 2013, p. 13).

Dessa relação entre sujeito e dispositivos, tem-se o sentimento de uma

dada sociedade, no caso, a da sociedade contemporânea que constrói-se um

campo de subjetivação e dessubjetivação do próprio sujeito, algo perceptível no

romance fragmentado do século XX:

Como máquina que no contato com os viventes produz sujeitos, o dispositivo é também uma máquina de governo (os sujeitos, livres, são sempre sujeitados a um poder). No entanto, diferentemente do que acontecia com os dispositivos ditos tradicionais (a confissão, a prisão, as escolas etc.), isto é, um ciclo completo de subjetivação (um novo sujeito que se constitui a partir da negação de um velho), nos dispositivos hodiernos (a internet, os telefones celulares, a televisão, as câmeras de monitoramento urbano etc.), não é mais possível constatar a produção de um sujeito real, mas uma recíproca indiferenciação entre subjetivação

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e dessubjetivação, da qual não surge senão um sujeito espectral. Eis que Agamben constata um paradoxo latente nessa situação, capaz de expor então o irremediável eclipse pelo qual atualmente passa a política: quanto menos subjetividades são formadas no corpo a corpo dos indivíduos com os dispositivos tanto mais dispositivos são criados como tentativa inelutável de sujeição dos indivíduos às diretrizes do poder (apud AGAMBEN, 2013, p. 13).

A relação sujeito-dispositivos verte para todo e qualquer espaço a

ocorrência de insegurança. Pois, num mundo em que tudo é movediço e

descartável, não há probabilidade de duração e estabilidade, ainda que as

instituições mais antigas (Estado, Igreja) estejam sobrevivendo à crise da

incerteza do contemporâneo. Por esse motivo, as conexões entre as pessoas

também passam por uma crise desenfreada pelas comunicações virtuais, pelos

relacionamentos passageiros e pela transformação dos paradigmas da família

tradicional. Agamben (2013) nomeia a amizade como a experiência de vínculo

entre pessoas que ultrapassa a ação de sentir/nutrir um sentimento para a ação

de repartir a existência: “[...] a amizade é a condivisão que precede toda divisão,

porque aquilo que há para repartir é o próprio fato de existir, a própria vida. E é

essa partilha sem objeto, esse com-sentir originário que constitui a política” (apud

AGAMBEN, 2013, p. 16).

Após verificar os conceitos que amparam o contemporâneo para

Agamben (2013) se volta para o texto literário no qual se encontram todas essas

características do mundo moderno e das ligações entre seus participantes. O

romance do século XX compartilha justamente dessa “condivisão” humana, do

suporte de dispositivos nos enredos ficcionais e na progressão do tempo para um

não lugar fora do presente.

Esse olhar para o não-vivido no que é vivido por Agamben (2013) expõe a

base da vida contemporânea e incorpora no romance o tempo multifacetado entre

o ir e vir do sujeito que anseia por um tempo que não é o seu. Só isso já basta

para identificar as articulações frágeis entre sujeito e meio, Susana Scramim e

Vinícius Nicastro Honesko (2013) prenunciam:

Segundo Agamben, não basta mais evocar a categoria da subjetividade, como o fazia a metafísica, para empreender essas ações em suspensão, sem as quais não há um passo em direção à revolução, à nova

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experiência do tempo. Já ao ler o sujeito como resultado de processos de subjetivação, estes que são um corpo a corpo entre vivente e dispositivo, Agamben procura desativar a proposta metafísica que vê o sujeito como uma essência (de certo modo, essa também é a ideia da filosofia moderna, de Descartes até Husserl). Como dissemos antes, à proliferação dos dispositivos à qual assistimos na atual fase do capitalismo não correspondem processos de subjetivação cujos resultados sejam sujeitos reais, mas tão somente espectros de sujeitos (apud AGAMBEN, 2013, p. 20).

Esses espectros de sujeitos compõem a nova face da narrativa e o

Império de Bloom, descrito por Gonçalo Tavares (2010), é uma amostra de que a

grande narrativa acompanhou as transformações dos processos históricos a

ponto de transpor para as linhas ficcionais o sentimento de (não)existência

contemporâneo.

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2 O IMPÉRIO ÉPICO DE BLOOM NA CONTEMPORANEIDADE

Não falaremos das ruínas de Stonehenge ou de Avebury,

nem dos alimentos demasiados exactos de pedras na ilha de Lewis.

Não falaremos desses milagres deixados um pouco por todo o mundo,

dessas cartas em pedra que os antigos nos enviaram. Falaremos de um homem, Bloom,

e da sua viagem no início do século XXI (TAVARES, 2010, p. 26-27).

2.1 VIAGEM À ÍNDIA: A MÍMESIS CONTEMPORÂNEA

Distante temporalmente de Platão e Aristóteles, que propuseram as

primeiras teorias sobre a mímesis, Lukács (2000), já na contemporaneidade,

expressa que a mímesis tem uma estreita relação com o conhecimento, com o

social e com os fatores históricos que a condicionam: “a vida faz-se criação

literária, mas com isso o homem torna-se ao mesmo tempo o escritor de sua

própria vida e o observador dessa vida como uma obra de arte criada. Essa

dualidade só pode ser configurada liricamente” (p. 124). Nas palavras de Rejane

Oliveira (2003, p. 182):

É nesse ponto que a referência a Lukács torna-se indispensável, por ver na mimese um fato elementar da vida humana, tomando parte do desenvolvimento da humanidade, estritamente relacionado às condições objetivas da existência. O homem e o seu destino são o centro do reflexo estético, de modo que a literatura torna-se essencial para a elevação do indivíduo e do seu ser social.

Oliveira (2003) refere-se ao complexo e denso debate sobre a mímesis. A

reprodução por si só deve obedecer a sua gênese primitiva, retratar o real. Essa

reprodução estética, para Lukács (2000), deve inscrever o processo histórico e o

processo de evolução da humanidade:

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Nessa possibilidade, sem dúvida, reside a problemática decisiva dessa forma romanesca: a perda do simbolismo épico, a dissolução da forma numa sucessão nebulosa e não configurada de estados de ânimo e reflexões sobre estados de ânimo, a substituição da fábula configurada sensivelmente pela análise psicológica (p. 118).

O teórico observa que a arte reflete a vida e vice-versa. Nesse sentido, a

arte expressa não só valores humanos, mas também os fenômenos relacionados

à experiência humana: “Imitar é, para Lukács, uma atividade de domínio e

conhecimento da realidade, um impulso orientado por finalidades práticas,

segundo necessidades e contingências objetivas” (OLIVEIRA, 2003, p. 184).

Desse modo, fica claro que a mímesis, para Lukács, obedece a critérios de

aprendizagem. Imita-se para se aprender as atividades e acontecimentos do

mundo real. Ele se aproxima do conceito aristotélico, uma vez que ambos pregam

que o conhecimento advém da observação e da reflexão da realidade.

Benjamin (1994) refere-se aí à mímesis, característica marcante nas teorias

platônicas e aristotélicas no que tange à arte. O valor da representação na

Antiguidade era outro: “Os gregos clássicos pensam sempre a arte como uma

figuração enraizada na mímesis, na representação, ou, melhor, na ‘apresentação’

da beleza do mundo” (GAGNEBIN, 1993, p.68). Não era permitido aos artistas

criarem além do caráter real que uma obra espelhava, a nova obra deveria ser fiel

ao evento retratado. A mímesis funcionava como o reflexo do mundo concreto.

Platão resiste à imitação, visto que, para ele, ela não é o real, apenas o

reproduz. E, em meio a essa reprodução, se perderia o caráter de veracidade do

objeto representado: “(...) a visão antiga insiste muito mais na fidelidade da

representação ao objeto representado: é ele, o objeto, que desencadeia, por sua

beleza, o impulso mimético. A arte tenta aproximar-se dele com respeito e

precisão e, por isso, é sempre figurativa, nesse sentido amplo, ‘mimética’”

(GAGNEBIN, 1993, p.68). As manifestações clássicas visam, portanto, a

aproximação exacerbada com o real, uma imagem nítida do mundo que os

cercava.

Contudo, esse conceito de mímesis abre algumas brechas para que se

interponha sobre a arte a característica da semelhança. Quer dizer, aquela

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aproximação fidedigna com o real não é plenamente imutável, ela pode preceder

alterações típicas da criação humana. “Como Aristóteles na Poética (1952),

Benjamin distingue dois momentos principais da atividade mimética

especificamente humana: não apenas reconhecer, mas também produzir

semelhanças” (GAGNEBIN, 1993, p.80).

De um lado a representação da realidade e de outro a possibilidade de criar

sob a imitação. Chega-se a um paradoxo em que a originalidade prevalece. Cada

período histórico teve a sua leitura e produção dos objetos artísticos e é desta

forma que prevalece a atenção sobre o critério de autenticidade. Até que com

técnicas como a xilogravura e a litografia as obras conseguiam ser reproduzidas

em maior escala. A era da técnica influenciou a reprodução em massa. Mesmo

representando a vida cotidiana, as imagens artísticas não eram mais construídas

pelas mãos humanas, eram carimbadas, copiadas e transpostas para que os

olhos as lessem assim como se procedia com as atividades da imprensa.

Em Uma Viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário) (2010),

do autor português Gonçalo M. Tavares, aparece não apenas a mímesis do

ambiente contemporâneo em si, mas a retomada de outras narrativas no enredo a

ponto de seguir os passos da epopeia clássica para representar a fragmentação

da atualidade:

Esta repetição da viagem iniciática do Ocidente, tendo como “modelo” a dos Lusíadas, é uma original revisitação da mitologia cultural e literária do mesmo Ocidente, não como exercício sofisticado de des-construção (que também é) mas como versão lúdica e paródica de um quête, aleatória e como tal assumida. Não sei se existe entre nós – e mesmo algures – um objeto ficcional tão intrinsicamente “literário”, quer dizer, o de uma “viagem” que é, em múltiplos sentidos, o da construção do barco literário da mesma viagem (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.9).

Para Eduardo Lourenço (apud TAVARES, 2010, p. 9), essa ficção

“navega e vive entre os ecos de mil textos-objectos do nosso imaginário de

leitores”. O mesmo autor menciona a “dupla viagem” que é realizada ao adentrar

na narrativa portuguesa contemporânea em virtude da multiplicidade de textos

que a interceptam. A leitura e decifração do código proposto por Tavares (2010)

causa uma sensação intratextual de retornar a outros textos dentro de um mesmo

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texto, gerando um tecido de objetos literários que se interpenetram em um diálogo

inerente ao leitor:

Quando chegámos à Índia – os que por nós lá foram para sempre e lá ficaram -, há muito que ela era para o Ocidente a porta aberta e misteriosa para uma quietude capaz de nos curar do nosso demoníaco desassossego. Mas foi a nossa chegada que a converteu para os outros em lugar de todos os sonhos e fantasmagorias. Para nós, todas as viagens são “viagens à Índia”, e não é o menor dos seus desafios e atrevimentos que o Gonçalo M. Tavares nos proponha repetir a viagem arquétipo à terra onde realidade e sonho se confundem, subvertendo o sentido da viagem canónica do Ocidente em aventura da ilusão de todas as buscas divinas e epopeia luminosa da decepção (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.10).

Eduardo Lourenço comenta no prefácio da narrativa o fato de Gonçalo M.

Tavares trazer como mímesis contemporânea uma representação do mundo

ocidental em deslocamento para o outro lado do globo a ponto de recuperar a

natureza de grandes ficções que ambientaram a feição do seu tempo. Partindo

disso, Bloom é o retrato do sujeito contemporâneo proposto por Agamben (2013),

que projeta-se para além do seu tempo nas relações com os novos dispositivos e

com os amigos que encontra pelo caminho, exemplificando os expectros da

realidade:

Uma decepção à altura do desespero e da agonia ocidental no momento mesmo em que a sua história e meta-história, como pulsão conquistadora e épica, converteu o Ocidente inteiro e a sua cultura sob o signo de Ulisses em êxtase vazio, fascinado pelo esplendor do seu presente sem futuro utópico, glosando sem descanso a sua proliferante ausência de sentido (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.10).

Bloom traz em seu âmago a melancolia típica da ausência de sentido do

mundo. É um homem que decide partir de Lisboa em busca de algo, que não

sabe bem o que é. Diz buscar uma mulher ou a sabedoria e caso encontre ambas

juntas achará o que procura: “Procuro uma mulher, disse Bloom, ou então a

sabedoria. Se em Paris não as encontrares juntas, responderam-lhe, pelo menos

com uma delas te cruzarás. E uma pode levar-te à outra” (TAVARES, 2010, p.95-

96). Contudo, em virtude de um passado familiar trágico, ele busca em realidade,

o esquecimento:

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Falaremos da hostilidade que Bloom, o nosso herói, revelou em relação ao passado, levantando-se e partindo de Lisboa numa viagem à Índia, em que procurou sabedoria e esquecimento. E falaremos do modo como na viagem Levou um segredo e o trouxe, depois, quase intacto (TAVARES, 2010, p.28).

A viagem de Bloom se desdobra diante das suas vontades frente às

interpelações do meio. A narrativa se constrói em imagem semelhante à

realidade do século XXI: um sujeito sem perspectiva de futuro, em virtude de

sofrimento amoroso, mediante uma sucessão de crimes passionais. Em razão

desses acontecimentos, Bloom, a fim de esquecer o passado e almejar com

ganas a sabedoria indiana, começa as suas aventuras no mapa europeu:

A Lisboa de onde Bloom parte, como o Gama, para a Índia, é e não é a dos Lusíadas, que já era a de um passado eterno quando Camões, evocando-a, a inscreve no nosso imaginário mítico. É só uma capital de um século na sua hora zero, todo presente, e que perdeu ou dispensa todas as bússolas dos viajantes do passado em busca do futuro (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.12).

A viagem à Índia revela uma transposição do real para a ficção. Gonçalo

M. Tavares (2010) conseguiu unir na narrativa aspectos fundamentais para

aproximá-la do contexto do século XXI, um sujeito melancólico, perdido quanto a

sua identidade e ao seu tempo, uma estrutura fragmentada em dez cantos, com

um enredo híbrido que recupera grandes clássicos literários – Os Lusíadas, de

Camões e Ulisses, de James Joyce - a ponto de caracterizar a sua produção

como uma anti-epopeia. O itinerário dessa melancolia contemporânea arma uma

paródia do clássico em ambiente ficcional e estruturas modernas, algo que

recupera a discussão de parecença com o real via artifícios de releitura moderna.

No texto de Tavares (2010), como mímesis contemporânea percebe-se

uma conversão de todos os fatores transformacionais ao longo da história e da

conjuntura social unindo a literatura ao exterior e renovando, de acordo com

Coelho (1986), o gênero e a sua produção estética.

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2.2 ITINERÁRIO DA NARRATIVA: NOVOS DISPOSITIVOS

O itinerário da narrativa Uma viagem à Índia (2010) traz imbricado em sua

configuração um personagem em deslocamento espacial, temporal e identitário.

Em meio a essa multiplicidade de deslocamentos, esse personagem, Bloom, o

protagonista da história, edifica-se em diferentes dispositivos contemporâneos:

O dispositivo de Uma viagem à Índia é o de um poema provocantemente épico e anti-épico. A sua realidade é a de um romance não menos provocantemente inscrito nos “cantos” e “estâncias”, ao mesmo tempo prosaicas e hiper-literárias pelos ecos de todas as peripécias que lhe são como mar inacessível à plácida superfície do seu poema, total e totalizante. A sua “viagem” não desconhece todas as viagens já feitas. Sabe-se outra, como a de Camões se desejou. É entre tudo e nada, ao mesmo tempo trivial e sublime, mas hiper-consciente do seu caráter desesperado, da sua necessidade, da sua in-transcendência transcendente (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.13).

A realidade da história de Bloom começa em Londres. Lá ele buscava o

insólito e ao andarilhar sob as ruas londrinas se depara com três homens. Os

homens e Bloom desentendem-se. O protagonista sai, de certa forma, vitorioso

após confronto físico com os homens, contudo, eles lhe planejam uma vingança.

A vingança não dá certo, pois Bloom segue seus instintos e foge do

ambiente em que preparavam-lhe uma armadilha. Ele decide, então, ir à Paris.

Logo que chega à capital da França faz amizade com Jean M. O novo amigo

divide com Bloom o guarda-chuva no dia chuvoso em que se conhecem e o

acolhe na cidade. É ele também que o incita a contar a sua triste e melancólica

trajetória:

O parisiense, voltemos a ele, queria que Bloom abrisse a torneira onde corre água cujo barulho conta histórias. Que fizeste à tua vida, caro Bloom, para agora estares em plena viagem à Índia? Onde e como falhaste? De que forma

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acertaste no alvo? (TAVARES, 2010, p. 115).

Neste momento, há um deslocamento de tempo para o passado de

Bloom, que narra todos os acontecimentos que o levaram a querer realizar uma

viagem à Índia. Entre a descrição de sua genealogia, interpõe-se a lembrança de

Mary e o grande motivo do anseio pelo esquecimento e pela sabedoria.

Após contar a sua história, Bloom e Jean M. divertem-se em Paris. Desta

cidade, o protagonista segue viagem rumo à Índia. Antes de chegar lá, cruza por

outras fronteiras do mapa europeu, Alemanha, Viena, Praga. Na Índia, conhece

Anish, amigo recomendado por Jean M. para auxiliar Bloom a conhecer a cultura

e os costumes indianos.

Anish leva Bloom ao encontro com Shankra, o grande mestre que lhe

ensinaria, então, sobre todas as coisas do mundo a ponto de torná-lo um sábio.

Contudo, em meio a trocas diálógicas com Shankra, os conselheiros dele,

tomados pela desconfiança, persuadem o pensamento do mestre para que tome

os livros raros que levava Bloom em sua pequena maleta. Bloom, herói astuto,

consegue se livrar de Shankra e sai da Índia junto com Anish.

Ambos retornam à Paris, onde o seu amigo Jean M. lhes espera com três

mulheres, um banquete e uma casa distante da cidade. Em plena crise de

identidade e mergulhado num sentimento de perda e decepção, algo toma conta

de Bloom e o leva a cometer um crime e retornar em fuga à Lisboa, o lugar de

onde partira.

É com esse enredo que se delineia a narrativa de Uma Viagem à Índia

(2010). Esse texto é modelar dos novos parâmetros estéticos, uma vez que lança

sob esta história diferentes elementos que se interpõem e carregam a

personalidade da narrativa rumo ao contemporâneo. Gonçalo M. Tavares,

portanto, consegue construir o itinerário de Bloom mesclando um pouco de

romance, um pouco de epopeia, expressando todos os sentimentos conflitantes

da atualidade.

A estrutura recupera traços marcantes da epopeia clássica. O

deslocamento de um personagem até a Índia em formato in media res, partindo

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da plena ação de conflito e preparação de vingança, para depois, quando em

Paris, expor o passado que levou o protagonista a chegar até aquele momento:

E basta – disse Bloom. Começarás a perceber agora por que razão estou em viagem e o que procuro: procuro uma mulher porque quero esquecer outra. Eu amava uma mulher chamada Mary - disse Bloom ao parisiense Jean M - e o meu próprio pai mandou matá-la. Eis a minha história. Síntese, síntese. E eis tudo (TAVARES, 2010, p.155).

Após contar a sua triste história ao amigo francês, em tom de

recuperação do passado para explicar as ações do presente e a vontade pela

Índia, pela sabedoria e pelo esquecimento, retorna-se ao momento presente da

narrativa e a história prossegue. Esse recurso é típico das epopeias clássicas e é

retomado com vistas a recuperar um comportamento clássico mediante estéticas

fragmentadas.

Outra característica de epopeia observada através da figura de Bloom é a

divisão quase próxima da ordem proposição, invocação, dedicatória, narração e

epílogo. Ocorre a manutenção da proposição em tom de apresentação da matéria

ou de quem se cantará. As partes de invocação e dedicatória não fazem parte

dessa nova composição épica. Contudo, a narração ao longo do Canto I ao Canto

X permanece, juntamente com o epílogo ao final do Canto X:

(Novembro de 2003. Encontro-me num compartimento Fechado. O mundo visto daqui é uma obra de engenharia Feita pelo alfabeto; sou louco, claro. Escrevo para educar o raciocínio, um hábito que se pratica com uma arma encostada à cabeça.) Bloom regressou a Lisboa Por uma porta negra (TAVARES, 2010, p. 448-449).

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Algo que também mantém-se de acordo com o poema épico é o relato

ficcional atrelado a cantos, precisamente dez cantos. Cada um desses cantos

possui, aproximadamente, umas cem estrofes, sendo o último – o Canto X –

aquele que possui mais estrofes – 156 estrofes.

Fora esses aspectos estruturais, outros que recuperam traços do clássico

é a existência de um herói que, querendo ou não, representa um modelo de

sujeito contemporâneo. A presença desse personagem é fundamental para

articular as engrenagens da obra entre história, estrutura e ambiente real.

Bem como Bloom, há fatos elementares que remetem a leitura para o

diálogo com outras. A principal dela é a conexão entre Uma Viagem à Índia

(2010) com Os Lusíadas, de Luis Vaz de Camões. Em muito se parece a Ilha dos

amores com a casa distante de Paris que o amigo Jean M. leva Bloom e Anish e

as prostitutas, e, também, as trapalhadas de Bloom com os três homens em

Londres e com Shankra na Índia com os percalços de Vasco da Gama e sua

tripulação.

À medida que se percebe a presença marcante da epopeia clássica,

também se percebe a existência de elementos do romance. A narrativa não é

mais em versos, mas sim em prosa. Há muita descrição de espaços, sentimentos

e aventuras, além da presença marcante da diversidade de narradores entre os

cantos, ora é uma voz em 3ª pessoa, ora é a narração pela voz de Bloom, ora a

narração ocorre pela voz de Jean M. Há a interposição e o diálogo do narrador

com o leitor em certos momentos, e isso reforça a estética típica do século XXI,

assim como a divisão da narrativa em cantos.

Um exemplo da narração em 3ª pessoa que une elementos como a

memória, ironizada pelos símbolos de deusas da inspiração, juntamente com a

camioneta avariada, narram o ponto em que a história faz uma pausa para

explicar por meio de recurso flashback o motivo da viagem:

Empurrado por certas deusas da inspiração, tal como é empurrada a velha camioneta que avariou, o escritor de motor arcaico, primitivo, que afinal apenas que as frases sejam feitas de uma substância que não evapore lentamente de dia para dia; deseja frases robustas, que pelos séculos

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avancem. Frases que atiradas ao mar: nadem, e atiradas ao ar, voem (TAVARES, 2010, p.115).

Na mesma medida que dialoga com a epopeia Os Lusíadas, Uma Viagem

à Índia (2010) dialoga com o romance Ulisses, de James Joyce, que assim como

este é protagonizado por um sujeito chamado Bloom. O Império de Bloom

remonta aos processos psíquicos de auto-reflexibilidade como com Leopold. Ao

longo do itinerário da narrativa, Bloom de Tavares reflete sobre inúmeras coisas,

principalmente, o seu modo de estar no mundo contemporâneo:

Mas o Destino foi (ultimamente) aperfeiçoado. Agora o barco e o avião chegam a chão seguro por força da bússola mecânica, que normalmente funciona, ao contrário do Destino que, por ser invenção antiga, já vai evidenciando cansaço e até incompetência. Felizmente, além do nosso destino, trouxemos tecnologia adequada - diz um qualquer capitão, utilizando a já referida ironia contemporânea. Claro ainda que se o Destino surgir em verso obscuro ficaremos na mesma, podendo o avião levantar voo ou ir ao fundo, que ambos os acontecimentos confirmarão o estranho verso que os anunciou (TAVARES, 2010, p.34-35).

A viagem de Bloom faz parte de uma história de descobrimento do seu

próprio interior, comportamento característico do homem contemporâneo. De

acordo com Agamben (2013, p71): “O contemporâneo coloca em ação uma

relação especial entre os tempos”.

A relação entre os tempos, proposta por Agamben (2013), pode ser

observada na própria estrutura, ora com traços de epopeia, ora de romance. A

narrativa portuguesa se estabelece como um texto híbrido:

Nietzsche situa a sua exigência de “atualidade”, sua “contemporaneidade” em relação ao presente, numa desconexão e numa dissociação. Pertence verdadeiramente contemporâneo, aquele que não coincide perfeitamente com este, nem está adequado às suas pretensões e é, portanto, nesse sentido, inatual; mas, exatamente por

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isso, exatamente através desse deslocamento e desse anacronismo, ele é capaz, mais do que os outros, de perceber e aprender o seu tempo (AGAMBEN, 2013, p.58).

O texto híbrido é a união entre as duas estéticas, tanto a romanesca,

quando a epopeica. A hibridez é um atributo das novas demandas

contemporâneas, visto que, ao que parece, não se tem muitos caminhos criativos

a transitar. A constante inovação, em que o novo substitui o velho em um curto

espaço de tempo, leva a invenção a um estado de superação que nem sempre é

possível. Por isso, os artigos, no geral, se reinventam. Os artigos se reinventando,

as estéticas se remodelam, unem estruturas e contextos num mesmo ambiente.

Assim, o objeto de análise é um exemplo de híbrido contemporâneo a

partir dos intertextos que estabelece com outras narrativas – Os Lusíadas e

Ulisses. O exercício da re-leitura e/ou re-escrita é um re-encontrar-se com

interpretações do primeiro texto em contato com um mundo novo:

Uma Viagem à Índia não recomeça em tempos outros a eterna busca do Oriente, de todos os Orientes onde o Gama já aportou por nós, mas tenta proeza mais temerosa, a da re-escrita da aventura verbal onde ela está consagrada, como a de Homero para Joyce. É sobretudo a conta-epopeia, ao mesmo tempo luminosa, paródica e burlesca, de um herói de tudo como nada que subverte todas as versões épicas da Viagem que inventámos e que é sempre, ao fim e ao cabo, a não-viagem que nós somos. Não como embarcamos, à maneira de Pascal, mas como viajados por conta de ninguém. A nossa fabulosa aventura foi sempre sem sujeito os gregos já sabiam, Mas agora navegamos pela primeira vez e a sério no mar do nosso sublime, ou apenas trivial e universal, anonimato (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.11).

Outro elemento vigente no Império de Bloom tanto pelo contemporâneo,

quanto pelo hibridismo é o sentimento de ironia e contravenção no estatuto dos

gêneros clássicos. Assim pode-se gerir o objeto de análise como anti-epopeia, já

que apresenta um anti-herói e composições resultantes da sobreposição de

eventos novos sobre outros que já ocorreram. A ironia é um símbolo de

significação do contrário. E, quando o texto decorre de uma sucessão de ações

desajeitadas, trapalhadas sob uma ideia de aventura heroica, com um

personagem assassino, isso referência certo sarcasmo paródico:

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Contudo é a sua inexistência mesma quem comunica a todas as aventuras ao rés do real mais banal, e só por isso sublime, uma dimensão irónica e transcendental sarcástica, música de fundo que articula todas as visões e, sobretudo, todas as vivências em torno da visão original onde tudo e nada se defrontam e se combatem. É de uma negrura absoluta esta viagem à Índia, pátria arcaica de nós mesmos como Espírito, entre fantasmas e vampiros de que esta cruel e tónica Viagem se alimenta. Nenhuma das ilusões que nos fazem viver e de onde emergimos, mesmo a mais sublimada, escapa ao seu olhar anatomista dos nossos sonhos divinos. Bloom é um Édipo que não está disposto a vazar os olhos por um pecado de que não é sujeito (LOURENÇO apud TAVARES, 2010, p.14-15).

A ironia em Bloom aparece justamente quando, ao iniciar viagem como

uma purificação de seus erros do passado, acaba comentendo outros em meio a

situações inusitadas de golpes e armadilhas. Sankra, aquele quem deveria abrir

os caminhos a Bloom rumo à sabedoria, lhe dá um golpe, e a mulher, que deveria

satisfazê-lo e fazê-lo esquecer do passado, leva-o ao caminho inverso. Até

mesmo em momentos em que Bloom reflete, a ironia aparece como um

metadiscurso entre a catástrofe moderna:

Por cima da catástrofe, de um ponto de vistas aéreo, o homem é capaz de ironizar, porém, já debaixo da catástrofe, debaixo dos seus escombros, a ironia será a última a aparecer depois da ação instintiva de defesa, do desespero que ainda emite ordens e tentativas, e do último grito que assinala o fracasso (TAVARES, 2010, p.33).

A respeito de aspectos como anti-epopeia e ironia, é importante ressaltar

a existência de outros artigos sobre a ficção Uma Viagem à Índia (2010), de

Gonçalo M. Tavares. O livro foi publicado em 2010 e o trabalho de Gonçalo M.

Tavares vem se afirmando ante os leitores e a crítica desde 2001, mediante

conquista de prêmios literários2 e destaque no cenário da Literatura Portuguesa

2 Prêmio LER/Millennium BCP em 2004 com o romance Jerusalém, Prêmio José Saramago em

2005, Grande Prêmio de Conto da Associação Portuguesa de Escritores Camilo Castelo Branco com água, cão, cavalo, cabeça em 2007, Prêmio Portugal Telecom (Brasil 2007), Prêmio Internazionale Trieste da Itália em 2008, Prêmio Belgrado de Poesia da Sérvia em 2009, Prêmio Branquinho da Fonseca da Fundação Calouste Gulbenkian e do Jornal Expresso, com o livro O Senhor Valér, Prêmio Revelação APE com Investigações. Novalis. Com Uma Viagem à India ganhou o Prêmio Melhor Narrativa Ficcional 2010 da Sociedade Portuguesa de Autores, o Prêmio Especial de Imprensa Melhor Livro 2010 Ler/Booktailors, Grande Prêmio Romance e Novela da

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contemporânea. Assim, é de se esperar que o seu nome e a sua escrita estejam

sob o foco de análises acadêmicas.

Sobre Uma Viagem à Índia (2010), há três textos que efetuam um olhar

analítico dos contornos estéticos da obra em comparação com clássicos literários.

Um desses textos denomina-se Uma Viagem à Índia, de Gonçalo M. Tavares:

uma epopeia contemporânea3, que busca retomar o gênero épico comparando a

obra do autor português junto aos Lusíadas, de Camões e à Ulisses, de James

Joyce. Nesse artigo, Maria Isabel da Silveira Bordini (2013, p. 116) procura

destacar como um dos pontos de articulação o exercício de esvaziamento e

paródia da tradição ocidental do gênero épico.

Outro texto que parte do mesmo objeto literário é Contratempos durante a

viagem à Índia, com Gonçalo M. Tavares4. Esse artigo focaliza a viagem interior

realizada por Bloom entre contratempos da própria viagem à Índia: “A análise

segue dividida em duas partes, [...] a questão da viagem enquanto temática

dentro da tradição literária portuguesa; e, a questão do gênero, problemática

contemporânea muito viva na produção de Gonçalo M. Tavares” (BUENO, 2013,

p.2-3).

O terceiro texto, de mesmo objeto de análise, é a dissertação de

mestrado, da Universidade de Coimbra, Uma Viagem à Índia: antiepopeia e

paródia5. Na dissertação portuguesa, aspira-se exemplificar o modo como Uma

Viagem à Índia põe em prática algumas das principais características do pós-

modernismo com o auxílio também do conceito de paródia, distanciamentos e as

aproximações não só com o épico camoniano como também com alguns textos

portugueses do século XVI (VAZ, 2014, p. 3).

Associação Portuguesa de Autores de 2011, Prêmio Fernando Namora/Casino do Estoril, Melhor Livro de Ficção de 2011, Prêmio Portugal Telecom (Brasil 2011), Prêmio Fundação Inês de Castro. 3 Publicado por Maria Isabel da Silveira Bordini, Mestranda em Letras, Estudos Literários,

Universidade Federal do Paraná (UFPR), Revista Versalete, Curitiba, Vol. 1, nº Zero, jan. – jun., 2013. 4 Publicado por Kim Amaral Bueno, Doutorando em Letras/Literatura Comparada, Universidade Fe

deral do Rio Grande do Sul (UFRGS), Revista Nau Literária: crítica e teorias de literaturas. Dossiê Voz e Interculturalidade. In: seer.urgs.br/nauliteraria, Porto Alegre, Vol. 9, n.01, jan.- jun. 2013. 5 Publicado por Paulo Ricardo Flausino Mafra Vaz, Mestre em Letras, Faculdade de Letras da

Universidade de Coimbra (UC), Coimbra, 2014, Disponível em: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/27604/1/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20G%20M%20T%20Final.pdf Acesso: fev. de 2015.

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Exposto isso, é notável considerar o trabalho de Gonçalo M. Tavares

(2010) no campo literário e verificar as suas contribuições para a nova formação

da estética contemporânea. Mesmo convergindo para o mesmo caminho, os

textos citados diferenciam-se entre si. A perspectiva da transformação do gênero

épico imprime no texto de Tavares (2010) um olhar afirmativo sob a postura da

fragmentação e esvaziamento do sujeito com o atravessar dos milênios.

Sendo assim, o itinerário narrativo de Bloom apresenta-se sob um formato

estético-literário que se apropria de produções clássicas do gênero épico –

epopeia e romance – e traz para o texto uma nova possibilidade narrativa, a qual

incorpora à estrutura a fragmentação, a hibridez, alternância de narradores e o

contexto de melancolia características peculiares do sentimento contemporâneo.

2.3 BLOOM O SUJEITO MELANCÓLICO

Bloom é o protagonista de Uma Viagem à Índia: melancolia

contemporânea (um itinerário) (2010). Ele se apresenta como um sujeito

melancólico ao longo de toda a trama em virtude da sua relação com o tempo, o

seu deslocamento pelo espaço, a sua relação com os demais personagens e com

as mais variadas estruturas sociais.

Bloom parte rumo à Índia em busca de sabedoria e de esquecimento, pois

viveu um grande trauma envolvendo o seu amor por Mary. Em verdade, ele quer

redimir-se dos erros que recorda ao longo da narrativa, evocando momentos da

relação com o pai e da relação com Mary.

No início, para apresentar sobre o que versará o enredo, o autor da trama

utiliza um recurso de negação, isto é, sobre o que não trata a narrativa até chegar

em Bloom no início do Canto I:

Não falaremos do rochedo sagrado onde a cidade de Jerusalém foi construída. nem da pedra mais respeitada da Antiga Grécia situada em Delfos, no monte Parnaso,

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esse Omphalus – umbigo do mundo – para onde deves dirigir o olhar, por vezes os passos, sempre o pensamento. Não falaremos do Três Vezes Hermes nem do modo como em ouro se transforma o que não tem valor - apenas devido à paciência, à crença e às falsas narrativas. Falaremos de Bloom e se sua viagem à Índia. Um homem que partiu de Lisboa (TAVARES, 2010, p.25).

Após a apresentação sobre o que versará a narração no Canto I, começa

a narrativa do personagem principal. Sobre a viagem, Bloom diz que buscará pelo

impossível: “encontrar a sabedoria enquanto foge; fugir enquanto aprende”

(TAVARES, 2010, p.38).

Localizado primeiramente em Londres, Bloom não fica satisfeito com a

sua ida até a capital londrina porque lá vive conflitos físicos e articulações de

vingança por parte de seus inimigos. Primeiro ele observa. Na primeira etapa da

viagem, encontra-se sem dinheiro e sem conhecer pessoas que possam lhe

ajudar. Então, procura amigos. Sobre a amizade, Agamben (2013, p.85) comenta:

O que é, de fato, a amizade senão uma proximidade tal que dela não é possível fazer nem uma representação nem um conceito? Reconhecer alguém como amigo significa não poder reconhecê-lo como “algo”. Não se pode dizer “amigo” como se diz “branco”, “italiano” ou “quente” – a amizade não é uma propriedade ou uma qualidade de um sujeito.

Com base no que não é a amizade, Agamben (2013, p.89) define a

amizade como a instância do com-sentimento da existência do amigo com a sua

própria. Isso exige um estatuto tanto ontológico, quanto político. A amizade é,

portanto, uma con-divisão, é “um outro si mesmo” (p. 87). E, na verdade, é isso

que procura Bloom, encontrar-se na figura do outro, sob a produção de certo

espelhamento humano.

Bloom busca por amigos nas cidades em que visita, e os únicos com

quem consegue tecer laços da amizade são Jean M. de Paris e Anish da Índia.

Os demais se aproveitam de sua situação de exposição extrema enquanto

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estrangeiro e lhe armam emboscadas. Com apenas poucos amigos, sem deparar-

se com alguns “outros si” (AGAMBEN, 2013, p. 87), se estabelece cada vez mais

o sentimento de melancolia.

Assim, a primeira tentativa de contato de Bloom se deu com intenções de

fazer progredir a sua viagem: “Quero ir para a Índia, pensa o nosso herói, e talvez

um meio de lá chegar seja a amizade” (TAVARES, 2010, p.43). E tenta fazer

amizade com três homens em Londres:

Bloom disse-lhes que do ponto de partida partira e que do ponto de chegada não chegara. Estava pois em caminho, em sítio intermédio, longe da sua cadeira. Procurava, enfim, coisas belas que lhe emprestassem saúde. Explicou, depois, de modo sucinto não ser aceitável

[a existência De um único médico feio, pois curar era o trabalho De encantar o doente, e nenhuma fisionomia feia encanta (TAVARES, 2010, p.43).

Bloom reflete sobre a relação com o outro no grande e melancólico tempo

em que vive: “As vidas dos outros não nos comovem, pensa Bloom” (TAVARES,

2010, p.44). Isso ratifica o pensamento individualista da contemporaneidade e

expõe como se dão as relações de amizade envolvendo os sentimentos; sobre

isso, Bloom afirma que é difícil resolver os problemas daqueles que não nos

dizem respeito. Aos poucos, a simpatia dos homens londrinos foi aparecendo

sobre a desconfiança e acolheram, por fim, o protagonista.

O sentimento de amizade, sobre o qual se reportava Bloom, é referido por

Agamben (2013, p. 90) ao afirmar que o amor é a confirmação de uma alteridade

imanente na “mesmidade”, isto é, manter um sentimento pelo outro com base em

si mesmo. Assim sendo, essa relação é transposta por um “com-sentir” que se

desloca do eu para o outro, o amigo, o outro do mesmo. O teórico resume a

amizade como a “sensação mais íntima de si”.

Em função disso, e já tendo alguma experiência sobre o egoísmo e

egocentrismo hodierno, Bloom desconfiou que algo não ia bem. Os homens que o

acolheram queriam, na verdade, roubar-lhe a mala e os bens que carregava

dentro dela. Percebendo o ocorrido, Bloom pressentia um ataque violento por

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parte dos três homens e do pai deles. Quando a disputa de fato começou, o

protagonista preparou socos com os punhos cerrados que em cheio atingiram os

covardes homens. Desnorteados saíram correndo e ganharam dianteira frente ao

pai que ficou para trás e acabou levando uma pedrada destinada a Bloom pela

incompetência da pontaria de seu filho. E assim:

E Bloom finalmente deixou de os ver, o que não significa que eles tenham deixado de existir, pois se fosse obrigatório a cada momento ver-se tudo o que existe, o mundo não seria mundo mas concentração de todas as coisas no mais pequeno espaço. Não existiriam planeta nem países mas apenas um armazém com tudo. Um armazém geral, bem se poderia chamar, um armazém metafísico (TAVARES, 2010, p.59).

Quando já recuperados da correria da fuga, os homens covardes

começaram a preparar vingança. Bloom distraia-se com facilidade dos

acontecimentos que o cercavam e se isolava em devaneios típicos do sujeito

contemporâneo. Nesses momentos, a narrativa sequencial se irrompe de

reflexões e inquietudes. Bloom observa a janela, movia o pensamento em

direção ao passado, onde agora transitavam carros, em menos de dois séculos

circulavam cascos de cavalos e exércitos de guerra. Pensa em como a vida é

agora cheia de máquinas e marcas de indústrias:

Certas marcas de automóveis são hoje Bem mais conhecidas que o nome de Alexandre o Grande. (Quem?, dirão os mais novos.) O facto é que o clima muda menos num ano que a fama de um homem em igual período de tempo. Nas mitologias, a fábrica e as máquinas ocuparam o lugar dos imperadores e do unicórnio. Eis o progresso da imaginação, pensa Bloom (TAVARES, 2010, p.52).

Essas inquietudes que levam o sujeito contemporâneo a uma crise

temporal recobrem as dobradiças da narrativa sob as reflexões de Bloom. Ele

traduz perfeitamente o sentimento de não-pertencimento do mundo moderno.

Através disso, Tavares (2010, p. 55) delineia a personalidade de Bloom: “Bloom

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era, enfim, mau desenhador do presente mas extraordinário a reproduzir o que

ainda não existe: o futuro”.

Isso caracteriza o que Agamben (2013, p. 59) articula sobre o sujeito

contemporâneo projetar-se sempre para outros tempos que não o presente. Para

ele, a contemporaneidade é a relação com o próprio tempo, que adere uma

dissociação e um anacronismo. Bloom é um representante dessa agonia de

deslocamento temporal para aonde não se vive, apenas se projeta a vida na

iminência do desgaste sob o clima de renovação: “Diga-se que a matéria-prima de

um acontecimento intenso e excitante é, apesar de tudo, desgastável. O material

dos factos (se olharmos atentamente) é nada” (TAVARES, 2010, p. 59).

Essas alterações de tempo ultrapassam as unidades cronológicas e

influenciam diretamente na organização cotidiana das ações das pessoas. Os

acontecimentos ficam retidos a um dado momento passageiro, sendo retomado

pela memória, sem pertencer, de fato às pessoas que vivem tais acontecimentos.

A partir dessa constatação, a ficção analisada também põe essa pauta em

discussão: “As sensações pertencem ao tempo, à semana, ao dia e à hora locais,

e não ao cidadão que por acaso se cruzou com elas” (TAVARES, 2010, p. 60).

Retornando a sequência narrativa, há uma descrição importante da

armadilha gerida pelos inimigos de Bloom. O protagonista sofre pelas mãos de

diferentes pessoas, pertencentes ao mais variados círculos de convivência. O

primeiro trauma quem o alavanca é seu próprio pai, que contra o seu

relacionamento com Mary, encomenda a morte da moça.

Esse grande trauma, o maior de sua vida, já que considerava tanto o pai a

ponto de depois de sua morte carregar de Lisboa à Índia o seu velho rádio pifado,

é o grande estopim para que a viagem ocorra. Bloom deseja esquecer tal evento

e partir em busca de sabedoria e inspiração.

Sucessivamente, esse primeiro trauma, leva à saída de Lisboa, à

chegada à Londres, à briga com os três homens, à morte do pai deles, à

preparação da armadilha no apartamento de Maria E., enfim, a uma nova série de

(des)aventuras. A nova sequência de traumas acontece durante a estada na

Índia, Shankra, o indiano em que acreditava ser o grande mestre a lhe ensinar

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tudo sobre o mundo, a ponto de torná-lo um sábio, tenta tomar-lhe os pertences

com base na força e no interesse material.

Bloom, desiludido com a vida e com o mundo que o cerca, retornou a

Paris, único local em que fora bem recebido pelo então amigo Jean M. Mesmo

sendo esperado com grande banquete, festa e uma mulher pronta a lhe satisfazer

os desejos, ele, Bloom, em meio a uma crise de identidade, de pertencimento e

do seu estar no mundo, comete um crime.

Esses acontecimentos em ambientações temporais distintas levam o

sujeito – o protagonista da aventura - a não acompanhar a interpelação de tempo

e fragmentação dos valores sociais em relação ao coletivo. A individualização e

os novos formatos de governabilidade moldam os dispositivos que esfacelam a

integralidade do sujeito.

Com isso, há possibilidade de conexão entre a narrativa de Tavares

(2013) sob ambientação contemporânea capitalista e os novos dipositivos

propostos por Agamben (2013, p.9) resumidos, basicamente, em três pontos:

a. É um conjunto heterogêneo, linguístico e não-linguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas etc. O dispositivo em si mesmo é a rede que se estabelece entre esses elementos. b. O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder. c. Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber (AGAMBEN, 2013, p. 29).

A partir da relação entre as instituições do todo social, se configuram os

dispositivos, ou novos dispositivos de acordo com as demandas da sociedade do

século XXI e todas as suas problemáticas.

De acordo com Benjamin (1994), a perda da evidência da aura de

objetos, sensações ou da própria natureza levou o homem a sucumbir ao dinheiro

como grande símbolo das relações modernas. A capacidade de troca e

substituição munidas pelo capitalismo não permitem ao sujeito a estabilidade

projetada no presente, a apreciação estética e muito menos a execução de

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grandes rituais. Sobre essas questões, reflete-se o Império de Bloom ante a nova

valoração de dinheiro e da mercadoria:

Sim, é verdade que o comércio meteu a Natureza em caixas com um preço. Mas tal não é terrível nem sequer desagradável. Bem pior são certas crianças que arrancam uma das patas a um sapo que teve o azar de servir de objeto aos exercícios ingénuos de seres vivos com seis anos. Entre ser vendida inteira por comerciantes careiros ou ser fragmentada por crianças que não sabem o valor do dinheiro, a Natureza optará sempre pelo pacífico capitalismo. Porque o capitalismo sabe que uma mercadoria sem uma das patas vale menos: por isso não arranca patas ou orelhas, ou cabeças inteiras, à dentada. Mas se valesse mais até [arrancavam uma das patas da Torre Eiffel – exclamou Jean M. Não te iludas com monumentos nem com cerimónias. A estética terminou. Ficou o dinheiro. Os homens são génios do bem para o ouro, génios do mal para paisagem (TAVARES, 2010, p.109).

Esses fatores redesenhados não só pelo sistema capitalista, bem como

pela exaltação do dinheiro e disputa pelo poder, ademais de outros elementos

como disputa de territórios decorrentes do imperialismo europeu e do mercado

consumidor levou à eclosão de duas Grandes Guerras no início do século XX que

transformaram, definitivamente, de acordo com Benjamin (1994), os paradigmas

mundiais em relação à própria humanidade. Tavares chama a extensão desses

eventos bélico-históricos de “um sistema de utilização de ódio” (2010, p. 124).

O personagem Bloom capta do ambiente com o qual se depara a

melancolia tenaz. Ele traz em seu âmago os sentimentos típicos do sujeito

contemporâneo frete ao conjunto de sistemas que organiza da vida em

sociedade, a ruptura das relações interpessoais de amizade e a permuta da

sabedoria pelo poder de compra/troca. Enfim, o Império narrativo de Bloom exibe

a plena realidade do século XXI, expressando a contemporaneidade via formato

discursivo, componente estético e retrato mimético do mundo e do homem.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

A literatura permite um passeio por lugares e épocas inimagináveis; trata

de valores e os traduz em estéticas cúmplices à moda temporal de seus autores,

em alguns casos; perpassa gerações, séculos e geografias para se fixar como

clássica representante de uma identidade; descreve a história ficcionalizada por

conflitos humanos; enfim, a literatura é capaz de tudo isso e a sua transformação,

no atravessar de séculos, demonstra todos esses elementos em contato com os

olhares leitores. É de se esperar que reflita em essência a sociedade, visto que é

uma arte da imitação pela palavra.

Considerando que a literatura é uma área múltipla que une a formação

social com a estética, ela possui essa capacidade de mencionar a natureza do

mundo e das ações presentes nele. É uma forma artística de marcar a existência

humana e sua transformação:

É exatamente devido a essa estreita e íntima relação que a Arte mantém com a vivência do ser humano o que torna difícil a sua definição objetiva e concreta. Arte é vida, e vida jamais pode ser conceituada definitivamente: cada época cada pensamento, tem para com ele uma resposta. Essa dificuldade, porém, não impede que os homens continuem tentando defini-la ou compreender mais fundamente a sua natureza. Ou ainda, descobrir qual a verdadeira função que ela exerce (ou deve exercer) na vida humana (COELHO, 1986, p. 29).

Ao vislumbrar a adaptação artística, cria-se um universo autônomo em

ambiente ficcional. Os personagens nascem das palavras e renascem na

configuração imaginária de cada leitor/ouvinte de uma história. Constituem-se

grandes representantes humanos, ainda que não passem de entidades

imaginárias. A expressão literária apresenta diferentes formatos de acordo com as

demandas e traduz em seu âmago algo do corpo social que a circunda:

Para nossa época, Arte é linguagem, ou seja, toda a expressão artística é vista como um fenômeno expressivo, como uma linguagem específica: uma forma peculiar que busca expressar uma vivência ou uma

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experiência humana, em termos de harmonia ou de impacto [...] (COELHO, 1986, p. 29, grifo do autor).

Sendo assim, a considerar a análise sobre o texto Uma Viagem à Índia:

melancolia contemporânea (um itinerário) (2010), de Gonçalo M. Tavares, pode-

se perceber esse retrato do contemporâneo na estética literária representada pela

narrativa de Bloom e o seu deslocamento em busca de autoconhecimento,

esquecimento e sabedoria.

Com base nas discussões teóricas apresentadas sobre a transformação do

gênero épico, desde as primeiras asserções da divisão dos gêneros literários

pelos filósofos gregos, as transformações em função de determinates históricos

nos mais variados segmentos – social, político, econômico, cultural – geraram

também transformações no âmbito estético literário que acabou por modificar a

epopeia clássica, colocando o romance como principal formato do gênero épico.

Cada época submeteu aos seus cuidados as palavras que descreveram

em imagens fictícias as aventuras da alma. E, frente às novas interpelações de

mundo, o ambiente literário também adaptou-se. A estrutura romanesca, por

exemplo, assim como o mote dos conflitos narrativos dos primeiros romances

acompanharam os valores circundantes das sociedades que traziam como centro

da problemática moderna o homem e o seu psicológico:

Cada novo estilo corresponde, pois, a uma renovação no universo literário, caracterizada até o início do nosso século por um ritmo alternado em que se fundem elementos de tradição e de renovação, ou melhor, o movimento novo voltava-se contra o que lhe foi imediatamente anterior e buscava o que precedeu a este último, para nele beber os elementos da tradição, fundindo-os com os da renovação recém-criados (COELHO, 1986, p. 111).

A renovação de que fala Coelho (1986) não demarca certo esgotamento

do gênero, mas a renovação frente aos discursos recém criados. Por isso,

aconteceu essa transformação do formato epopeia. A epopeia não se esgotou em

si, mas metamorfoseou-se em um novo formato em função da conjuntura social

vigente.

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O mundo moderno necessitava de uma estética que figurasse o seu novo

retrato: uma sociedade antropocentrista, individualista, capitalista, cada vez mais

amparada nos diferentes meios de locomoção e comunicação, na ciência, na

técnica, na especialização, no isolamento, na melancolia e na incompletude. E,

encontrou-se no romance essa representação inovadora.

O romance é a mímesis do mundo moderno, senão o próprio mundo

moderno fragmentado, e evidencia essa principal característica em sua forma e

conteúdo. Com o desenvolvimento do gênero épico se redefiniram valores

estéticos ancorados na verossimilhança mimética que tinha um compromisso de

ser fiel à realidade. De certa forma, essa verossimilhança mimética se cultivou no

romance, conquanto com uma total liberdade criadora que cedeu lugar para a

ficção em detrimento da narração dos feitos dos grandes heróis épicos.

Ainda mais contemporâneo, o romance do século XX, não só acompanhou

todas essas mudanças, como também fragmentou-se ainda mais em virtude dos

acontecimentos trágicos do início do século que culminaram em duas Grandes

Guerras, governos ditatoriais pelo mundo e um processo de globalização que

modificou totalmente as fronteiras espaciais e temporais. Essa sequência de

eventos humanos, serviu para o que se chama de progesso, mas também para

uma constante crise de identidade do sujeito hodierno.

Isso posto, tem-se em pleno princípio de século XXI o texto Uma Viagem à

Índia: melancolia contemporânea (um itinerário) (2010), de Gonçalo M. Tavares.

Texto este modelar destes novos parâmetros estéticos, que se lança frente a um

projeto de fornecer uma nova roupagem à epopeia clássica, mesclando a ela

ingredientes romanescos e pitadas de dramatização do indivíduo contemporâneo

em conflito, na busca de sua própria identidade.

A narrativa restaura tanto os traços marcantes da epopeia clássica a ponto

de aproximar-se de Os Lusíadas de Luis Vaz de Camões, quando recupera a

viagem à Índia, o encontro com o desconhecido, com indivíduos mesquinhos, de

má índole, com as ninfas (prostitutas), quanto atribui a esses traços a exibição de

conflitos tipicamente modernos como em Ulisses de James Joyce, quando inclui

na narrativa um protagonista chamado Bloom.

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O “Império de Bloom” identifica o descortinamento do sujeito que decidiu

viajar em fuga de seu passado trágico a fim de esquecê-lo e adquirir sabedoria. O

protagonista parte de Lisboa rumo à Índia. Ao longo deste itinerário, ele tece

reflexões sobre o seu modo de estar no mundo, sobre a civilização

contemporânea, sobre a natureza e a relação desta com o ser humano, sobre a

sua genealogia; enfim, esta viagem acaba por tornar-se um deslocamento em

descobrimento do seu próprio interior, que culmina no grande encontro com a

melancolia ao perceber-se um assassino vazio e medíocre.

Com base no estudo realizado, é possível categorizar Uma Viagem à India

(2010) como um épico contemporâneo, posto que a narrativa apresenta

características marcantes da epopeia clássica, como a divisão de sua estrutura

em cantos nos quais apresentam a vida do protagonista, no caso, o anti-herói

português Bloom, no formato in media res, narrando os grandes ou não tão

grandes feitos sobre o itinerário Lisboa, Londres, Paris, Índia. Além disso, é

aparente a tentativa de organização da ordem: Proposição, Invocação,

Dedicatória, Narração e Epílogo.

Decorrente dessa estética clássica, Uma Viagem à Índia (2010) se mostra

um texto híbrido, uma vez que une essa estrutura à prosa romanesca e aos

conflitos típicos do contemporâneo. Gonçalo M. Tavares consegue incorporar aos

Cantos do Império de Bloom, os novos dispositivos, dos quais se tratou com base

na teoria propostos por Giorgio Agamben (2013), e a rede que se estabelece

entre eles ora pelas palavras do protagonista, ora pelo seu pensamento, via

discurso do narrador. Além disso, traz a noção, também proposta por Giorgio

Agamben (2013), de que a contemporaneidade é a relação com o próprio tempo,

uma vez que se pertence ao presente, mas se projeta o pensamento para outros

tempos – passado e futuro.

Esse transitar entre diferentes percepções de tempo é que levam Bloom ao

sentimento de melancolia que gera as ações dentro da trama. Somando-se a isso,

tem-se a teoria de Agamben (2013) sobre as relações interpessoais de amizade

refletidas na narrativa de Bloom. Essas relações exibem a confluência de Bloom

com aqueles personagens com os quais se depara – Mary, seu pai, os três

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covardes, Thomas C., Maria E., Jean M., Anish, Shakra, as prostitutas – e o tipo

de relações que estabelecem entre si.

Assim posto, o estudo do texto analisado contribui, em realidade, não

apenas para categorizar (e identificar como tal) a narrativa épica contemporânea,

mas, também, para enaltecer a importância de se voltar o olhar, na

contemporaneidade, para a produção e leitura de epopeias, bem como – lacto

sensu – refletir sobre a noção de tempo, de espaço e de sujeito; e as intrincadas

e ontogênicas relações humanas de conflito entre o ser e o mundo.

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