epopeia dos titas do pampa
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CINCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA
JAISSON OLIVEIRA DA SILVA
A EPOPIA DOS TITS DO PAMPA:
HISTORIOGRAFIA E NARRATIVA PICA NA HISTRIA DA GRANDE REVOLUO, DE ALFREDO VARELLA.
DISSERTAO DE MESTRADO
Porto Alegre
2010
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JAISSON OLIVEIRA DA SILVA
A EPOPIA DOS TITS DO PAMPA:
HISTORIOGRAFIA E NARRATIVA PICA NA HISTRIA DA GRANDE REVOLUO, DE
ALFREDO VARELLA.
Dissertao apresentada banca avaliadora como parte das exigncias do curso de Mestrado em Histria do Programa de Ps-Graduao em Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Orientadora
Prof. Dr Mara Cristina de Matos Rodrigues
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas
Prof. Dr. Carlos Henrique Armani
Prof. Dr. Temstocles Cezar
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Jaisson Oliveira da Silva
A epopia dos Tits do Pampa: historiografia e narrativa pica na Histria da Grande Revoluo, de Alfredo Varella.
Dissertao apresentada banca avaliadora como parte das exigncias do curso de Mestrado em Histria do Programa de Ps-Graduao em Histria do Instituto de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Porto Alegre,
Rio Grande do Sul, 2010.
Prof. Dr Mara Cristina de Matos Rodrigues ____________________________________ Orientadora Prof. Adjunta da UFRGS. Prof. Dr. Carlos Henrique Armani ____________________________________ Prof. Adjunto da UFCSPA Prof. Dr. Anderson Zalewski Vargas ____________________________________ Prof. Adjunto da UFRGS.
Prof. Dr. Temstocles Cezar ____________________________________ Prof. Adjunto da UFRGS.
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AAGGRRAADDEECCIIMMEENNTTOOSS
Uma dissertao quase sempre um trabalho penoso. Numa curiosa relao com o
prprio tema desse trabalho, eu ousaria dizer que foi uma epopia parte, que s no foi
mais difcil pela presena e ajuda de muitas pessoas.
Comeo os agradecimentos pelos meus pais, Julio e Aira, porque de fato eles so o
comeo de tudo. Sem o apoio incondicional de ambos, nenhuma linha deste trabalho teria
sido escrita. Agradeo tambm ao meu irmo Jaderson, pelo j longo convvio de uma vida e
pelos tantos e interminveis dilogos filosficos, polticos, acadmicos, musicais... E a
minha irm Jucielle, que apesar da distncia, presena sempre constante em mim.
Agradeo imensamente a um amigo que tranqilamente eu poderia chamar de irmo: o
Mrcio, companheiro desde os tempos de banda e futebol na longnqua Rio Pardo, viveu
esse trabalho comigo, agentando meus rompantes filosficos desde h muito. A ele um
saudoso obrigado! Um agradecimento tambm especial ao amigo Icaro se faz necessrio,
pelos interminveis debates, tericos e cotidianos, j compartilhados desde que comeamos
nossa jornada pelas desventuras da histria. Sua sensibilidade e perspiccia so capazes de
inspirar at mesmo o mais ignaro dos viventes! Tambm ao amigo Chico, un rasgo gardeliano,
pela amizade fraterna erigida nesses dois anos de mestrado; aos amigos Telles, Bibiana e
Lvia, provas vivas de que um mestrado tambm pode gerar grandes amizades! amiga
Daniele, por todos os momentos compartilhados ontem, hoje e sempre. E aos demais colegas
e professores do mestrado, em especial o professor Anderson, ao qual esse trabalho deve
muito.
Agradeo tambm disponibilidade e ateno dos professores da banca, Anderson,
Temstocles e Carlos Armani, que prontamente aceitaram o convite. Agradeo tambm
UFRGS como um todo e ao PPGH, pelo apoio ao desenvolvimento do trabalho. O
agradecimento tambm extensivo ao CNPq, pela bolsa que viabilizou esse estudo, e ao
Departamento de Metodologia de Ensino da UFSM, pelo convvio, apoio e compreenso
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para com este inexperiente professor substituto. Tambm s alunas do curso de Pedagogia
da UFSM, pelo convvio e experincia de troca de saberes proporcionada.
Um obrigado seria pouco para expressar minha gratido professora Mara, cujos
conselhos foram muito mais do que simples sugestes intelectuais. Sua pacincia e extremo
zelo para com o seu primeiro orientando de mestrado denotam no apenas um
profissionalismo srio, mas tambm um cuidado caracterstico sua sempre afetuosa e
prestativa presena. A ela meu muito obrigado!
Finalizo com uma pessoa a quem devo no um, mas milhares de agradecimentos. Seus
olhos crticos e apaixonados so um alento para minha alma e me moveram at aqui. Lis no
apenas leu e revisou este trabalho. Ela tem lido a mim, desde que nos conhecemos. A ela
dedico essa dissertao, com carinho e com amor.
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O senhor, de quem o orculo em Delfos, nem diz nem oculta, mas significa.1 (Herclito)
No h nenhuma meta que coloque um fim na historia, mas apenas metas finitas dos homens, que se encontram na histria. Essa a verdade que a conscincia histrica anuncia. O que , contudo, a conscincia histrica, esse novo sexto sentido do homem? Ela traz para o homem uma ampliao grandiosa de seu mundo em torno de todos os mundos que j existiram e que ele compreende? Ou ser que ela significa muito mais justamente a perda do mundo, uma vez que ela ensina o homem a olhar para o mundo com mil olhos?2 (Hans-Georg Gadamer) 3
1 Fragmento 93, in: Os Pr-socrticos: fragmentos e comentrios. 2. ed. Trad. Jos Cavalcante de Souza. So Paulo: Abril Cultural, 1978. 2 GADAMER, Hans-Georg. Os Limites da Razo Histrica. In: _____. Hermenutica em Retrospectiva. V. II A Virada Hermenutica. Trad.: Marco Casanova. Petrpolis: Vozes, 2007, p. 139. 3 A imagem da capa acompanha o Tomo I, de Histria da Grande Revoluo, entre as pginas 102 e 103. Se intitula: De la vieja raza, quadro a oleo de Blanez.
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RREESSUUMMOO EE AABBSSTTRRAACCTT
Resumo
Este trabalho analisa a Histria da Grande Revoluo (1933), do historiador Alfredo Varella
(1864-1943). A obra uma das mais copiosas a respeito da guerra civil farroupilha e traz em
sua escrita comparaes explcitas com o pos clssico das poesias homricas e modulaes
tpicas do padro de epopia. A despeito da enftica opo do autor pelos preceitos de uma
histria cientfica, Varella narrou a Revoluo Farroupilha como a Guerra da Nova Troya,
numa histria que almejava ser cientfica ao mesmo tempo em que ostentava cores picas. O
trabalho procura explorar essa aparentemente contraditria relao, debatendo, para isso,
teorias da historiografia, apreciaes sobre o gnero pico e algumas reflexes do mbito da
filosofia hermenutica.
Abstract
This study analyses the Histria da Grande Revoluo (1933), written by Alfredo Varella (1864-
1943). The work is one of the most copious about the farroupilha civil war and brings in
his writing explicit comparisons with the classic pos of the Homeric poems and
modulations typical of the epic pattern. Despite the emphatic author's choice by the
precepts of scientific history, Varella narrated the Revoluo Farroupilha as the New
War of Troy, in a history that longed to be scientific while sported epic colors. The work
explores this seemingly contradictory relationship, arguing for this, theories of
historiography, assessments of the epic genre and some reflections from the scope of
philosophical hermeneutics.
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SUMRIO
PRLOGO: DO QUE SE FAZ A HISTRIA ............................................................................................ 09 CAPTULO 1 FACES DA HISTRIA, FACES DO HISTORIADOR: A TEORIA DA HISTORIOGRAFIA E O SUJEITO QUE ESCREVE O PASSADO .............................................................................................................................. 19 1.1. O particular: Alfredo Varella, historiador da Grande Revoluo............................................23
1.1.1. Aspectos da trajetria, do contexto e da obra de Varella....................................................................23 1.1.2. O campo das anlises historiogrficas no RS e a avaliao da obra varelliana.................................29
1.2. O universal: a escrita do passado e o historiador como ser-no-mundo........................................38 1.2.1. A epistemologia da histria e a aporia da representao do passado.................................................39 1.2.2. A abertura do homem ao mundo atravs da histria.........................................................................46 1.2.3. Linguagem como casa-do-ser; historiografia como linguagem..........................................................55
CAPTULO 2 EPISTEMOLOGIA, MTODO E LINGUAGEM NO CONHECIMENTO HISTRICO: A AMBIO VERITIATIVA DE UM HISTORIADOR CIENTISTA ..................................................................................64 2.1. O autor assume as prerrogativas epistemolgicas de uma histria-verdade .........................65
2.1.1. A regio dos historiadores e a histria cientfica ............................................................................65 2.1.2. A definio da histria no rastro dos princpios metdicos ..............................................................77
2.2. Varella e Tucdides, a linguagem e o universal na histria .......................................................86 2.2.1. Uma analogia subterrnea: modernidades tucidideanas ...............................................................90 2.2.2. Reviver o passado glorioso na escrita ............................................ ..............................................................97
CAPTULO 3 A POTICA DA REPRESENTAO HISTORIADORA: A MATRIA PICA DA GRANDE REVOLUO.........................................................................................................................................102 3.1. Olhares do estilo sobre os signos do pico ....................................................................................103 3.2. A matria pica na formao do complexo vital rio-grandense 113 3.3. Heris da saga extremenha: os semideuses do Pampa ...........................................................126 3.4. Farrapada: ser ou no ser o Homero da epopia sulina? ...........................................................135 CAPTULO 4 DO MUNDO DA VIDA E DO MUNDO DO TEXTO: NAS CERCANIAS DE UM KAIROS....................................................................................................................................................148 4.1. Varella e a dialtica entre a experincia e a utopia no saber histrico ..................................152 4.2. O escrutnio dos pares: o mundo do texto encontra o mundo dos leitores .........................169
4.2.1. A polmica ao redor da Histria da Grande Revoluo ..........................................................169 4.2.2. A leitura de um estilo: a consolidao de uma histria pica. .........................................................178
EPLOGO: ENTRE O SER E O SABER HISTRICO ..................................................................................185 REFERNCIAS........................................................................................................................................190
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PPRRLLOOGGOO
DO QUE SE FAZ A HISTRIA?
Nas paisagens claras e silenciosas das estncias do distrito de Pedras Brancas, bero
das estratgias que dariam incio guerra civil mais longa da histria do Brasil, um fato
marca a confluncia da memria com o mito, cujo amlgama a narrativa se encarregou
habilmente de realizar. J encerrada a guerra, cavalgando na direo de sua fazenda, Jos
Gomes de Vasconcelos Jardim, homem forte da Repblica Rio-Grandense e companheiro de
Bento Gonalves, interrompe a cavalgada antes de chegar sua morada para visitar a
estncia vizinha, do velho Azambuja, que ao perceber a chegada do amigo em seus domnios
logo exclama: Fez-se a paz, sempre, tio Jos? O sereno revolucionrio, atnito, no
mesmo instante d meia-volta, monta em silncio seu cavalo e segue viagem, com as
lgrimas visivelmente compondo a sua face.
A cena, que o historiador Alfredo Varella garante ter ouvido fielmente da boca de um
coetaneo das ultimas aventuras dos heroes de 35 4, parece completar seu sentido quando o
autor a costura diretamente com outra cena, amplamente mais conhecida, em que o heri,
ao ouvir do aedo a narrativa de seus feitos esplndidos, toma seu manto de prpura e cobre
a cabea, escondendo o semblante molhado pelo pranto que lhe escapa dos olhos: Ulisses
no pde conter a emoo ao ouvir serem narrados os fatos dos quais fora protagonista5.
Num breve instante, dois tempos quase que incomunicveis acabam intimamente ligados: o
tempo mtico grego, das narrativas de Homero, e os sucessos dos tits pampeanos,
esboados numa intriga cuja arquitetura reproduz, na exuberncia de heris que carregam
consigo o fio entre o passado e o seu presente, um tempo absoluto que parece apontar para a
eternidade. Os sucessos da Nova Troya 6, depois de dez anos de batalhas to picas quanto
aquelas descritas por Homero, enfim, encontram o eplogo, representado na figura do ex- 4 VARELLA, Alfredo. Histria da Grande Revoluo. O Cyclo Farroupilha no Brasil. (6 tomos.). T. VI. Porto Alegre: Globo, 1933, p. 304. 5 Canto VIII da Odissia. Verso usada para consulta: HOMERO. Odissia. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002. Da Ilada, a verso consultada da mesma edio: HOMERO. Ilada. Trad.: Carlos Alberto Nunes. Rio de Janeiro: Ediouro, 2004. 6 O termo frequentemente usado por Varella ao longo de suas obras. O comentamos e referenciamos na seqncia do trabalho.
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presidente da repblica, com os olhos em lgrimas, a soluar sobre o lombo do cavalo as
agruras de uma grande esperana desvanecida 7.
Em outros momentos, no campo das anlises historiogrficas, um elemento dessa
grandeza poderia ser considerado um mero clich de composio, detalhe menor ou mesmo
irrelevante em relao s preocupaes polticas do autor, essas sim constituindo um objeto
legtimo (o que, s vezes, significava nico) de uma investigao a respeito de uma obra de
histria. Para todo um conjunto de estudos historiogrficos, preocupados em descrever os
universos de insero poltica dos autores atravs de dedues aparentemente bem
aparelhadas, mas essencialmente lineares e homogeneizantes, a prpria escrita da histria,
enquanto momento distinto de constituio de sentido e articulao discursiva para
efetivao da representao do passado, no era mais do que uma forma atravs da qual os
contedos, dimensionados pela metragem das intenes polticas e interesses de classe,
eram dados a ler para um pblico. O processo de construo de uma narrativa
historiogrfica tendia a ser visto, portanto, de uma forma planificada, na qual a economia
cognitiva da obra aparecia como regida pelas as ambies polticas demarcadas
contextualmente e pelos reflexos mais ou menos conscientes das posies de classe.
Essa tendncia interpretativa regeu algumas das apreciaes feitas sobre a obra de
Varella, sobretudo, em relao a suas supostas tendncias separatistas e ao fervor platinista
dos seus escritos histricos8. Essa dissertao objetivou tratar a obra desse peculiar
historiador rio-grandense sob outro ponto de vista, considerando-a no seu processo de
produo enquanto uma representao historiogrfica, ou seja, de uma representao
escrita sobre o passado articulada sob a pretenso de validade factual e sob a inteno
potica de quem tece uma intriga. Nosso intuito aqui justamente percorrer a aparente
dualidade que h entre o historiador que define suas prioridades epistemolgicas como
regentes da histria e ao mesmo tempo lana mo de estratgias esttico-retricas para dar
unidade ao seu enredo. Muito alm de uma mera contradio ou daquilo que outrora se
convencionou definir como um ecletismo ingnuo, talvez nos seja possvel mostrar que
ambas opes, no contexto historiogrfico de Varella, no so mutuamente excludentes e
esto, pelo contrrio, mais prximas do que costumamos admitir.
7 VARELLA (1933 T. VI), op. Cit., p. 305. 8 Ver GUTFREIND, Ieda. A construo de uma identidade: a historiografia sul-rio-grandense de 1925 a 1975. Tese (Doutorado em Histria) Universidade de So Paulo, 1989. Fora publicada pela primeira vez em 1992; a segunda edio de 1998. Edio de referncia: GUTFREIND, Ieda. A Historiografia Rio-grandense. 2.ed. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1998. Essa questo tratada com mais detalhes no Captulo 1.
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A hiptese, contudo, no exclusiva ou mesmo uma descoberta surpreendente no
campo das anlises historiogrficas. Basta pensarmos na complexidade representada no ato
comum de narrar uma histria, que em sua brutal simplicidade enseja uma possibilidade
frtil de compreendermos a prpria condio de ser histrico que vive e narra sua histria,
mas que tambm capaz de narrar e experimentar esteticamente atravs da narrativa um
tempo que no o seu. Essa assero, a despeito de sua singeleza, remete-nos ao enigma
reencenado na brilhante citao do filsofo alemo Hans-Georg Gadamer usada em nossa
epgrafe, e que tem a ver justamente com a profuso de sentido que a idia de histria nos
desperta. O que ganhamos e o que perdemos na medida em que nos institumos enquanto
conscincia histrica? Talvez seja este o problema mais complexo, o mistrio mais
inextrincvel da condio humana de ser e se saber histrico. Enigma esse que atravessa
igualmente a histria estabelecida enquanto campo de saber, uma vez que fora justamente
na particularidade/singularidade dos eventos pesquisados que ela assentou as bases de sua
justificativa epistmica. Fazemos, enfim, eco a pergunta de Gadamer: o que a histria nos
desvela desse mundo se, enfim, sua matria sempre to particular, irrepetvel, contingente?
Ela nos diz algo de universal, ainda que sua essncia seja a visada ao contingente? Ela quer
dizer? Ela precisa dizer? Ou ela simplesmente sempre diz, ainda que no almeje?
Seja como for, os homens fazem a histria. Embora em situaes que no
necessariamente tiveram a oportunidade de escolher9, eles a fazem, em duplo sentido:
experimentam sua vida em conexo com o mundo e, por carregarem consigo a conscincia
do agora e a dupla maravilha da memria e da espera, so capazes de produzir narrativas e
sentidos histricos. Sabemos que vivemos histrias dentro de uma histria que nos parece
maior conquanto sejamos capazes de narrar as nossas aes conjugadas com as de outros,
desenroladas no palco da vida, da vida de hoje, da de ontem. E h tantas histrias quantos
sujeitos aptos a faz-las, a narr-las. Viver sem tecer histrias (pensando o termo na acepo
mais cotidiana) parece algo improvvel para os seres humanos. Como se reconheceriam em
relao ao mundo? Como poderiam observ-lo como espectadores atentos ou tentar mud-
lo, compreendendo-se, enfim, como seres no mundo?
At aqui, mais dvidas, e nada nos indica que elas possam ser facilmente sanadas por
um historiador. Se em outros mbitos intelectuais tais perguntas talvez sejam consideradas
passveis de escrnio, para aqueles que fazem da escrita dos atos pretritos uma profisso de 9 A referncia aqui dialoga com a clebre e insubstituvel frase de Karl Marx no prlogo de seu O 18 de Brumrio de Luis Bonaparte. MARX, Karl. O 18 de Brumrio de Luis Bonaparte e Cartas a Kugelmann. 7. Ed. Trad.: Leandro Konder e Renato Guimares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002, p. 21.
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f elas so germinais. Principalmente, porque apesar de todo o processamento terico-
metodolgico operado pelo historigrafo profissional todo um aparato epistmico
confivel adquirido nas sucessivas geraes de formao disciplinar que lhe permite a
confiana de que seu saber ser mais verdadeiro que as nossas narrativas cotidianas
temperadas pela memria ele continua, enfim, a partilhar do mesmo anseio seminal de
representao que alimenta o mais coloquial relato testemunhal: voltar-se quilo que jaz
como uma ausncia perturbadora de aes realizadas outrora, para representar aquilo que
pretende que seja o passado.
A histria dos homens e faz-se dos homens ao mesmo tempo em que os faz, como
uma espcie de nutriente imprescindvel para a prpria condio de seres que se
reconhecem no mundo desalienando-se da condio primitiva de apenas e puramente estar
vivo. A conscincia histrica da qual nos falou Gadamer constitui-se nessa necessidade de
projetar-se para alm da ao imediata, compor no lapso presencial e fugidio do cotidiano
algo que soe como um emaranhado de diferentes tempos, conectados pelo esprito humano
que capaz de imagin-los, configur-los no presente.
O clebre historiador Marc Bloch foi capaz de experimentar de uma maneira
tragicamente intensa esse jogo entre a prpria historicidade e a histria como um ofcio.
Nas agruras de um cativeiro de onde no sairia com vida, no titubeou em reafirmar algo
que j ressonava no cenrio das humanidades de seu tempo: o objeto da histria , por
natureza, o homem. O historiador o ogro da lenda a farejar sua caa, a carne humana; tudo
que os homens fazem em sua vida em sociedade est sujeito a ser interceptado pelo faro
aguado desse profissional necrfilo. E nesse caso, ousamos dizer, se os homens produzem
histria (enquanto narrativa, saber), esses produtos tambm so matria a ser tratada pela
historiografia: o olfato do pesquisador do pretrito, tamanha sua acuidade, volta e meia
sente cheiro de sua prpria histria e da de outros, beirando os arrabaldes de uma historiae
historiae, uma histria da histria.
O campo da cincia histrica que se preocupa em analisar o desenvolvimento da
prpria disciplina, da prtica historiogrfica no tempo e das mudanas paradigmticas,
epistemolgicas e sociais, intrnsecas ao processo de desenvolvimento do ofcio do
historiador, relativamente novo10. E carrega consigo no apenas o fardo de historicizar e
caracterizar a produo do conhecimento histrico, mas tambm a imperecvel luta contra
10 BLANKE, Horst W. Para uma nova histria da historiografia. In: MALERBA, Jurandir. (org.). A Histria Escrita: teoria e histria da historiografia. So Paulo: Contexto, 2008, p. 27-64.
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ou a favor do seu prprio juzo acerca do que o fazer historiogrfico. Um historiador que
analisa a historiografia produzida em outros contextos e espaos, tambm se v
subitamente num div a praticar uma espcie curiosa de auto-anlise. Ele lida com
pressupostos tericos de outros tempos e sujeitos j imbudos dos seus prprios, tornando
impossvel evitar a comparao, o dilogo, a coexistncia entre eles, ainda que tcita e
silenciosa. Nessa dialtica entre histrias do presente e histrias do passado, ele no deixa
de tambm caminhar por entre trilhas especulativas, debruando-se sobre os problemas que
rondam o fazer histrico no universo conceitual e nos problemas metatericos, que sempre
anseiam transcender o particular histrico, embora nunca se dissociem dele.
Enfim, um campo em que a tenso entre o particular e o universal instiga, em
infindvel confronto, a irresolvel dvida acima colocada por Gadamer. A idia de
necessidade de passado no deixa de inquietar todo o historiador que olha para a
historiografia, para a memria e para os testemunhos, afinal, este impulso estranhamente
universal de voltar-se para as coisas passadas atravessa de ponta a ponta a historiografia, ou
seja, a prtica e o resultado do ofcio do historiador11. Para o historiador que tem a
historiografia como objeto difcil eximir-se da reflexo a respeito do prprio ato em si de
contar a histria, no apenas aquele especfico que ele verifica num momento imediato,
como o que procuraremos interpretar, mas aquilo que se aproximaria a um eidos12, ou a
miragem de uma essncia desse impulso de representao do passado.
Diro alguns que esse pensamento ilegtimo, porque perigosamente audacioso para a
histria. Deixar tais reflexes para os filsofos sempre foi mais prudente e menos
trabalhoso. Afinal, o cu da filosofia foi durante tanto tempo um lugar quase inacessvel ao
historiador, to distante e perigoso que este se resignou a ignor-lo quase que por completo,
ao fazer de sua prtica difusa uma cincia no sculo XIX, com os ps providencialmente 11 Certa confuso conceitual faz parte do campo de estudos sobre historiografia. H autores que consideram o uso do termo historiografia para designar alm do sentido tradicional de histria escrita ou cincia da produo de conhecimento histrico o ramo da cincia histrica que estuda a prpria dinmica da produo do conhecimento histrico, ou seja, como sinnimo para uma histria da historiografia. Entretanto, concordamos, dentre outros, com Arstegui, que rejeita essa correlao e, considerando-a uma inadequao conceitual, recoloca o termo historiografia apenas no seu sentido de conhecimento histrico escrito e processo de produo desse conhecimento. Dessa forma, optamos por usar a noo de anlise historiogrfica ou histria da historiografia ao nos referirmos a este campo especfico da cincia histrica. Ver: ARSTEGUI, Julio. A Pesquisa Histrica. Teoria e Mtodo. Trad. Andra Dore. Bauru, SP: Edusc, 2006, apresentao e cap. I, especialmente. 12 Na fenomenologia husserliana Eidos a estrutura invariante cuja presena constante define a essncia do objeto. As essncias se referem ao sentido do ser do fenmeno, ou seja, aquilo que recorrente dentro da multiplicidade de possibilidades imaginativas do ato intencional da conscincia em relao ao ente. Usamos o conceito no em sua plenitude filosfica, mas para apontar para a questo fundamental que ronda o trabalho do historiador da historiografia, a saber, o ato de representao do passado em si. Ver: HUSSERL, Edmund. A Idia da Fenomenologia. Trad.: Artur Mouro. Lisboa: Edies 70, sd.
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fincados no cho da historicidade. Diziam os primeiros historiadores cientistas que a sua
tarefa era aprimorar ao mximo a busca e a apresentao fiel do passado, sem teleologias,
sem intenes ou elucubraes, sem utopias e talvez nem mesmo inteleces: apenas o
passado como ele havia sido, toda sua multiplicidade, sua facticidade intrinsecamente
contingente, colocada diante dos homens do presente, atravs de uma semntica neutra. Ao
fim e ao cabo, a histria erigia um firme alicerce na prpria idia de historicidade, o
particular passvel de ser conhecido, aquilo que lhe garantia a diferena epistmica
necessria para ser um campo de saber definitivamente independente.
justamente nesse ponto que somos interpelados por uma questo colocada pelo
filsofo Jean-Paul Sartre, quando se surpreendia com o carter intrinsecamente dialtico da
histria: como esta estranha disciplina, que pretende compreender sociedades e aes
pretritas, pode almejar engendrar algo que possa ser considerado uma inteleco do
passado ao atribuir para si apenas a tarefa de dizer toda a singularidade da multiplicidade
dos atos humanos? Ela no acabaria, enfim, nesse intuito que beira uma equivocidade,
procedendo a totalizaes sem totalizador para poder, de fato, ter do passado algo que
poderia realmente ser considerado como uma inteleco?13
Reside neste prolixo dilema a questo que estimulou, enquanto um problema geral,
nosso trabalho: o que fazem os historiadores, quando fazem histria? Todo historiador
certamente j se props essa questo fulminante, embora poucos tenham se atrevido a
respond-la de forma mais conclusiva. Nos referenciais mais contemporneos da teoria da
historiografia, a questo foi colocada nestes mesmos termos por Michel de Certeau e
tornou-se um abre-alas obrigatrio para os estudos sobre a historiografia. No texto clssico
em que define a operao historiogrfica, Certeau construiu um esquema particularmente
sedutor, com um modelo tridico que caracterizava a histria como lugar de produo, uma
prtica cientfica e uma escrita. Trs fases distintas, embora nunca dissociadas. As pretenses
subjetivas e as generalidades edificantes seriam substitudas pela sntese do lugar, o
momento-espao no qual a histria consegue articular a linguagem ao corpo social atravs
de uma prtica mediada por mtodos, pelos quais o historiador procede a uma dialtica de
socializao do natural e naturalizao das relaes sociais. 14 O historiador seria, assim,
aquele que apanha objetos descontextualizados para lhes dar coerncia e com eles fazer a
13 SARTRE, Jean-Paul. Crtica da Razo Dialtica. Trad.: Guilherme Teixeira. Rio de Janeiro: DP&A, 2002, p. 885. 14 CERTEAU, Michel de. A Operao historiogrfica. In: A escrita da Histria. 2. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 79.
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histria. Mas essa prtica uma prtica dos desvios, no mais a busca pela totalidade do
real; e a impertinncia dos desvios lana o historiador etapa derradeira de seu trabalho,
quando preciso torn-lo uma escrita final, irrompendo-se a um verdadeiro paradoxo: a
escrita historiadora no comporta a heterogeneidade da operao de pesquisa e dos modos
de explicao, pois a escrita tem seus limites de articulao, uma requisio de
continuidade que parece no suportar a complexidade dos desvios e significados presentes
no mundo. A histria escrita , ento, a imagem invertida do espelho. Um modo nico de
inserir a experincia (passada) em outra experincia (a prtica do historiador no presente),
que simblica e substitui a autoridade de um saber por um trabalho de pesquisa. 15
No rastro do frtil pensamento de Certeau, poderamos perguntar se a histria no
estaria ento impedida de se considerar um saber epistemologicamente referendado, j que
pens-la na complexidade de uma escrita pode ser um golpe indefensvel na pressuposio
tcita de realismo que acompanha aquele que diz Foi assim!. Esse no , contudo, um
problema novo. Essa dvida corrosiva j tem sido suscitada com densidade e tem provocado
as mais exarcebadas reaes desde o advento do chamado Linguistic Turn. Na esteira desse
movimento temos, por exemplo, o pensamento de Hayden White. Sua Meta-histria um dos
marcos da refutao da epistemologia histrica, com a proposio de uma teoria tropolgica
em que toda ambio epistmica ignorada em funo de uma anlise tipolgica dos tropos
lingsticos. 16 Os critrios de cientificidade no seriam mais debatidos seno dentro
daquilo que os tornava partes de uma estratgia de criao da verdade.
Se em vasta medida essa reflexo pde contribuir para a quebra de certos
preciosismos epistmicos da historiografia e, principalmente, para minar a confiana tcita
e irrefletida que tomava conta do trabalho mais empirista do ofcio historiogrfico, tambm
ensejou manifestaes iconoclastas. Pensar a histria exatamente nas mesmas proposies
das representaes literrias acabaria por ser to arriscado quanto separ-las em absoluto.
Sem assumirmos a pretenso de equilibrarmos esse dilema, o apresentamos como um
problema capaz de nos lanar no encalo da prtica da escrita do passado, numa aventura
interpretativa de uma pequena parte da historiografia produzida no Rio Grande do Sul,
ainda no perodo de consolidao institucional da disciplina no estado, quando ela era feita
15 CERTEAU, Op. Cit., p. 96. Aqui se pode remeter ao trabalho da histria, que comporta filtros terico-metodolgicos, sobrepondo-se assim memria, que seria qualificada apenas pela autoridade do testemunho que viu, presenciou, e guardou a imagem da experincia consigo. Paul Ricoeur tambm trabalha enfaticamente esse vnculo, mostrando que a prpria capacidade de comportar uma epistemologia que d a histria o poder de querer ser o remdio (embora s vezes seja muito mais um veneno) da memria. RICOEUR, Paul. A Memria, a Histria, o Esquecimento. Campinas: Unicamp, 2007, p. 152-153. 16 Ver notas 70 a 74 do Captulo 1.
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fora da academia por homens que incumbidos, desafiados ou simplesmente tomados pelo
desejo de trazer ao seu presente os fatos e as circunstncias do passado, tornavam-se
historiadores. Alfredo Augusto Varella de Vilares foi um destes homens, historiador e polemista
por convico que deixou uma imensa obra sobre a histria sulina, da qual uma pequena
embora substancial parte ser percorrida por este trabalho dissertativo. A obra magna de
Varella, a Histria da Grande Revoluo (1933), uma obra em que a relao entre a ambio
epistmica e a imergncia potica no apenas visvel como produtora de sentido. Nela,
ambas no apenas convivem, mas se combinam na estruturao de uma obra que, mesmo
como um exemplo particular, nos ajudar a refletir sobre o problema da operao
historiogrfica em suas generalidades mais universais.
Embora Varella j tenha sido analisado em trabalhos anteriores, acreditamos que a
riqueza, a diversidade e a intensidade de sua produo e de sua trajetria, e, sobretudo, do
contexto em que elas se inseriam, justificam plenamente um trabalho monogrfico
especfico. O objetivo dessa empreitada investigativa no que possamos j dizer de
imediato dizer o Outro desse sujeito-historiador to distante de ns e tampouco criar aqui
uma biografia intelectual, um estudo de trajetria ou algo prximo a uma histria das idias.
Talvez nenhuma destas abarcantes definies e ao mesmo tempo nuances de cada uma
delas possa integrar nosso objetivo geral. Preferimos por seguir o texto de Varella
percorrendo no mesmo compasso um autor implicado na narrativa e um sujeito histrico
escrevendo sobre a histria a de muitos homens e tempos, mas tambm a sua prpria.
Nessa jornada nos lcito admitir desde ento, na forma de uma antecipao tnue,
que a tradicional diferena que ope um trabalho de contextualizao ao trabalho de
exegese textual, mostra-se como um falso ou, pelo menos, desinteressado debate. Isso
porque desta dicotomia pode-se supor que um texto jamais poderia dizer algo a respeito da
experincia de quem o escreve, sobre o mundo que o permite ser gestado sem que se faa,
necessariamente, o tradicional percurso de elencar fatores determinantes e linearmente
causais entre a vida e o texto. Nossa argumentao pretende pr prova uma de nossas
mais elementares convices: no s o texto capaz de dizer algo sobre o mundo como ele
faz parte da experincia mais originria do ser, a linguagem, capaz de inserir-lhe, e desvelar
diante de seus olhos, esse mundo que o seu prprio.
Se lanarmos algumas hipteses, a proposta no proteg-las de antemo e,
provavelmente, nem defend-las irredutivelmente ao final. P-las prova, colocando diante
de ns um texto sem a pretenso romntica de desvendar um autor oculto sob sua
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arquitetura semntica, talvez, seja um caminho menos pretensioso. Tentaremos pr frente a
frente, desde o primeiro momento, algumas pressuposies sobre o impulso universal de
representar o passado (para si mesmo e para os outros) e o historiador em particular,
Alfredo Varella, a escrever uma espcie de epopia moderna dos farroupilhas em forma de
uma copiosa e potica histria.
O primeiro captulo enseja os primeiros passos dessa dialtica entre uma teoria mais
geral sobre a produo e a natureza da historiografia e o nosso historiador em particular.
Num primeiro momento apontamos para alguns fragmentos da trajetria e do conjunto da
obra do autor e situamos alguns trabalhos de importncia que o comentaram, direta ou
tangencialmente. Na seqncia, esboamos um quadro terico geral propondo a
considerao do ato de escrita da histria como um ato de imerso no mundo atravs da
linguagem historiadora, vista tambm como uma forma de ser no mundo atravs da obra
historiogrfica.
No segundo captulo procuramos fazer uma leitura de Varella sob a perspectiva de sua
ambio veritativa. As suas principais convices epistemolgicas e terico-metodolgicas
so revisitadas, assim como algumas de suas inspiraes em relao ao como deveria ser
feita a histria. Dentre essas, salientamos o aporte da epistemologia moderna em sua obra,
na figura do ingls Francis Bacon e sua teoria dos dolos, frequentemente citada e
comentada na Histria da Grande Revoluo e em outras obras varellianas. Chamamos ateno
tambm para sua incurso nas obras dos historiadores antigos, focando, sobretudo, na sua
leitura e apropriao das contundentes precaues de Luciano de Samsata e naquilo que
nos pareceu uma assimilao velada de algumas caractersticas presentes no grego
Tucdides. Dessa forma, procuramos mostrar em que medida Varella defende a idia de
produzir uma histria absolutamente referendada por cnones do saber histrico, que fosse
um conhecimento da verdade sobre o passado capaz de dar a ver os sucessos pretritos
atravs da linguagem historiogrfica.
O terceiro captulo incide mais diretamente sobre a idia da representao
historiadora. Nessa etapa, mostramos a outra face da obra varelliana, obstinada em ser uma
representao verdadeira, mas ao mesmo tempo fiel grandeza pica dos tits
farroupilhas. Tratava-se de fazer trabalhar o estilo para que a obra fosse imunizada contra a
ao arrasadora do tempo e, nesse caso, o caminho encontrado por Varella era a inspirao
nos signos da epopia clssica de Homero. Procuramos, assim, abordar alguns aspectos mais
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gerais sobre o gnero pico para ento tentar dimensionar o processo de semiotizao pica
presente na Histria da Grande Revoluo.
No quarto e ltimo captulo refletimos acerca do processo pelo qual uma histria
torna-se viva no seio da sociedade que a permite ser engendrada. Mais especificamente, nos
utilizamos do conceito de kairos (tempo pleno), na maneira como foi retomado por Jrn
Rsen, para pensar a conjuno que Varella opera entre a ambio veritativa e os requisitos
do estilo configurando a Revoluo Farroupilha como um tempo pleno da histria
brasileira. a partir dessa preocupao que buscamos tambm traar uma incipiente anlise
da recepo e dos debates que sucederam a publicao de sua obra. A forma como foi
avaliada por alguns intelectuais e a dinmica do conflito que ele assumir publicamente
com historiadores como Souza Docca aparece numa tentativa de perceber nuances de
algumas leituras feitas da obra do polmico historiador, dando uma ateno especial para a
leitura do seu estilo. Embora Varella fizesse questo de anunciar que o estilo para ele era
menos importante que a utilidade e a verdade de uma obra, ele parecia zelar
cuidadosamente, ainda que de forma submersa, pelo estilo pacientemente cosido em sua
histria pica. No apenas suas respostas endossam esse zelo, mas tambm os depoimentos
que anexa em suas obras de rplica, quase todos elogiosos em relao beleza e maestria de
sua linguagem historiadora, forma como ele havia conseguido dar a esse tempo pico da
moderna histria brasileira.
Varella escreveu uma histria que trazia em si as marcas de uma obra lanada ao
futuro, feita para eternizar consigo os feitos farroupilhas nela retratados atravs da
representao de um tempo novo e imperecvel da histria do pas. A aspirao eternizante
contida no impulso germinal de representao do passado aqui o nosso ponto de partida
terico e historiogrfico, na medida em que nos debruamos sobre um historiador, mas
igualmente aos aspectos mais elementares do processo de construo do saber histrico em
geral. As pginas que se seguem no pretendem granjear os louros devidos a trabalho
interpretativo de flego; esperamos sim colocar ao leitor no somente um texto, mas com o
texto possibilitar as refiguraes da leitura e permitir que tambm o nosso mundo e a
compreenso que fazemos dele possam se mostrar diante e atravs de nossa escrita.
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CAPTULO 1
FACES DA HISTRIA, FACES DO HISTORIADOR: A TEORIA DA HISTORIOGRAFIA E O SUJEITO QUE ESCREVE O PASSADO
O francs Paul Ricur, talvez um dos filsofos que mais ousou tratar de questes
pertinentes ao campo da histria, afirmou em uma de suas mais instigantes obras: a
histria , do comeo ao fim, escrita. 17 Isso significa dizer que a escrita um patamar j
transposto pela historiografia em relao memria, e nesse mbito que a histria,
enquanto saber organizado, processa-se atravs da operao trplice de constituio do
conhecimento histrico, composta pelas fases do arquivamento, da explicao/compreenso e da
representao. 18
Dessa construo terica, depreende-se que a histria, enquanto conhecimento, est
atrelada a um processo que engloba um momento de seleo e anlise de vestgios, a
mediao de um esquema de explicao-compreenso, e enfim a aquisio de uma forma
textual definitiva, ao virar um livro ou um artigo de histria. Nesse sentido, cabe ressaltar,
desde j, que acompanhamos Ricur ao dizer que o passado, enquanto uma facticidade j
no mais presente e, por definio, diferente do mundo circundante presente, no pode ser
plenamente acessado e nem mesmo colocado na dimenso estreita e polissmica de um
texto, como se a operao pudesse ser em si mesmo um trabalho de cpia fiel da realidade.
Numa assertiva desse carter, estaria, necessariamente, implicada a acepo de que a
histria poderia ser feita mediante uma suposta neutralizao do sujeito cognoscente, ou
em outras palavras, numa total objetivao. Todavia, pode a histria ser feita de um no-
lugar epistemolgico, se toda sua operao requer uma imerso conjunta do autor com uma
srie de fatores seletivos, cognitivos, estticos e polticos que no podem ser simplesmente
dados por inexistentes em qualquer texto de histria, ainda que o prprio autor venha a
proclamar sua total assepsia em relao quela forma textual que produziu?
17 RICUR (2007), Op. cit., p. 148. 18 RICUR (2007), Op. cit., p. 146-147.
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Pensamos ser justo apresentar essa ponderao logo de incio mesmo que ela
eventualmente retorne ao longo do texto porque serve (ou deveria servir) ao historiador
da historiografia em duas frentes: para considerar seu objeto, que na verdade outro
sujeito,19 e para considerar a si mesmo, tambm no apenas como um sujeito do
conhecimento, mas como ser-no-mundo20. No raro vermos, sobretudo nesse campo peculiar
do conhecimento histrico que a histria da historiografia, o uso de preceitos tericos
para considerar o historiador analisado que parecem no ter validade alguma se
direcionados ao prprio trabalho daquele historiador que est na posio de analista como
se a clivagem espao-temporal cindisse aquilo que elementar e que, nesse caso, liga o
historiador de hoje com o de ontem, que o prprio fato de olhar para o passado e tentar
tornar presentificar uma ausncia21. A despeito das diferenas contextuais que separam
estes dois sujeitos, o impulso de representar o passado os une, e toda teoria que ousar
ensaiar uma qualificao para tal impulso acabar tocando em ambos. Significa dizer que
ns tambm no estamos em um no-lugar e que toda e qualquer teoria da historiografia
tambm toca em pontos sensveis de nossa prpria compreenso, j desde o primeiro
instante de concepo de um trabalho. Parece-nos interessante pensar que na verdade h,
19 Sobre essa questo, ver GADAMER, Hans-Georg. Verdade e Mtodo. V. I. Trad. Enio Paulo Gianchini. Petrpolis: Vozes, 1999, p. 665-672. 20 Ao usar a clebre expresso heideggeriana ser-no-mundo (In-der-Welt-sein), necessrio que se faa algumas consideraes. oportuno precisar que a escolha do termo vai ao encontro da proposta de se perceber o processo de feitura do conhecimento histrico no apenas sob a perspectiva epistemolgica. A questo sobre o sentido do ser colocada por Heidegger precede justamente a teoria do conhecimento, ou a fundamentao sobre o que e como se pode conhecer. A nfase de Ser e Tempo recai sobre o Dasein, ou seja, o ser-a que ns somos e que no pode ser compreendido nos mesmos termos de um sujeito para o qual haveria um objeto. O carter ftico desse Dasein diferente do carter ftico de um ser mineral, por exemplo. (para usar o exemplo do prprio Heidegger); a facticidade desse Dasein implica necessariamente um estar-no-mundo ou ser-no-mundo en forma tal que este ente se pueda comprender como ligado en su destino al ser del ente que comparece para l dentro de su propio mundo. HEIDEGGER, Martin. Ser y Tiempo. Trad.: Jorge Eduardo Rivera. Santiago do Chile: Escuela de Filosofa Universidad ARCIS. Edio Digital disponvel em , p. 65. (Nessa edio o tradutor opta por traduzir a expresso como estar-no-mundo, para enfatizar o aspecto existencial das estruturas definidas por Heidegger. No entramos no mrito dessa escolha, lendo ambas as verses como indistintas para o nosso intuito). Esse sentido aprimorado por Heidegger remete no a uma presena simples, considerada em sua empiricidade tradicional, mas antes de um modo de habitar o mundo. H, portanto, uma mundanizao do compreender que pretende arruinar a pretenso de objetivao do sujeito cognoscente na busca por um elo com o real mais fundamental que a relao sujeito-objeto. RICUR, Paul. Hermenutica e ideologias. Petrpolis: Vozes, 2008, p. 40. O uso que fazemos do conceito sugere, portanto, uma dificuldade que vemos em admitir o historiador to-somente como um sujeito cognoscente absoluto e desenraizado, como se os fundamentos do saber histrico pudessem anteceder a interpretao do ente histrico em funo de sua historicidade. HEIDEGGER, op. Cit., p. 21. Na seqncia abordaremos novamente essa questo. 21 Paul Ricur usa a expresso com freqncia em A Memria, a Histria, o Esquecimento. Ao ensaiar, nesta obra, sua fenomenologia da memria, ele debate pela primeira vez a chamada aporia da imaginao-memria dos antigos. So duas as verses da aporia: a verso platnica do eikn (a representao presente de uma coisa ausente) e a aristotlica (a representao de algo anteriormente percebido). O problema do eikn retorna constantemente na obra, uma vez que a prpria Histria, em um dado momento de sua operao epistmica, v-se claramente perante a tarefa de presentificar algo que ontologicamente ausente e esse parece ser algo contido na prpria definio geral do ato de historiar. Ver: RICUR (2007), Op. cit., p. 26, 35-37, 56, passim.
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21
nesse caso, dois sujeitos epistemolgicos que, apesar do tempo e da experincia que os
separam, dialogam e na raiz desse dilogo reside uma interessante forma de dialtica,
aquela que movimenta a relao entre o universal (como campo do possvel) e o particular
(como campo do ftico).
Em maior ou menor grau, teorias da histria quase sempre tentam se projetar ao
universal, uma vez que isso que as torna robustas. No se est a dizer que as teorias devem
buscar, necessariamente, a totalizao: muito pelo contrrio, elas praticam um jogo
intrincado num tabuleiro com peas que representam o particular, o nico, o especfico; mas
que se movimentam levando-se sempre em conta uma viso total, na qual residem o
categrico ou o antropologicamente vivel. Antes de buscar saber algo em especfico sobre
uma experincia particular do passado como so todas as experincias verificveis pela
histria, ao menos enquanto matria de saber o historiador precisa sempre estar
municiado de teorizaes construdas com base em caractersticas repetidas em outros
casos particulares, habilmente articuladas pelo jogo de induo e deduo que viabiliza a
sntese das experincias nicas em conceitos que possam almejar alguma validade projetada
ao possvel. O que no o mesmo que buscar o conceito ou a definio absoluta de algo.
Tais esquemas tericos servem na verdade como pontos de partida, permitindo ao
historiador pensar sobre aquela experincia particular que ele ainda no investigou
intensamente, arquitetando hipteses e rascunhando modelos a serem testados. Aps
concluir sua pesquisa, sem dvida ele ter alterado, discutido, negado ou confirmado certos
aspectos trazidos por essas teorias. No entanto, por mais divergente que possa ter sido a
experincia por ele pesquisada em comparao com os modelos tericos, ele no se despede
deles: a histria no resiste tentao de se projetar para alm da experincia representada,
pois contm a aspirao de que as suas concluses no sejam apenas as concluses breves de
um estudo de caso. Por mais especficas ou descritivas que sejam, essas concluses acabam
conservando algo que transborda o prprio foco, porque, enfim, a histria tambm quer
explicar o presente e para isso um fato no pode ser s um fato, isolado, incomunicvel; tem
que ser tambm algo sobre o tempo, sobre os homens e sobre o mundo; abrir as comportas
em direo ao desconhecido do futuro, agasalhada com todas as implicaes ticas e morais
que igualmente atravessam o ato de escrever sobre o passado. 22
22 A dimenso tica do conhecimento histrico foi trabalhada por Ricur em A Memria, a Histria, o Esquecimento, com nfase na terceira parte, intitulada de A condio histrica. Se pudermos arriscar aqui sintetizar uma das concluses mais importantes de Ricur a respeito dessa relao, nos parece lcito afirmar que para ele a histria, com o efetivo poder de fomentar a conscincia histrica humana, seria o caminho para uma concepo no totalizante, embora universal, da moral. A combinao dos papis de estudante do
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22
Esse jogo entre o particular e o universal, entre a teoria e a experincia almejada,
permite que a Histria no seja aquela laconicamente definida por Aristteles, em sua
clebre Potica: a Histria trata apenas do que aconteceu, enquanto a Poesia trata do que
poderia acontecer, diferena que faz da Poesia mais filosfica e mais sria o que pode
significar tambm ser mais humanamente til que a Histria23. Tal questo retumbou ao
longo dos sculos de maneira que ainda podemos pensar em sua atualidade: enfim a
Histria apenas uma pseudocincia que deve descrever os fatos ontologicamente imutveis
e particulares do passado? At que ponto ela pode (ou quer?) ir alm?
Na rbita desse questionamento, ressaltamos que o presente trabalho no envolve
apenas a histria de um historiador e de suas obras. Se de fato o mpeto de olhar para o
passado a fora de trao desse texto dissertativo, sem dvida nos parece lcito tambm
formular ou testar hipteses acerca do universal, que aqui o prprio ato de historiar. Esse
captulo apresenta, num primeiro momento, o historiador-sujeito que o foco da nossa
pesquisa, com algumas pinceladas biogrficas, o contexto de publicao de suas obras e
sobre como ele fora tratado at ento pelas anlises historiogrficas. Alfredo Varella nossa
experincia particular, se no como alvo de uma biografia intelectual ou de um estudo de
trajetria que no so objetivos do nosso estudo , como um sujeito que produziu uma
histria: um texto sobre o qual nos debruamos. E esse ato de produzir uma obra de
histria que nos autoriza a estabelecer uma interface com uma segunda etapa do captulo,
que fala sobre a teoria da historiografia e dos universais antropolgicos que a rondam.
nossa inteno, nesse momento, mostrar esses dois lados como dois pares de uma dana, em
duas subsees distintas. A esperana de que eles possam realmente danar com certa
destreza, to logo cheguemos aos captulos posteriores.
passado, filsofo do tempo e poeta da representao teria sido, para o autor francs, apenas possvel na modernidade, o tempo da globalizao da cultura, internacionalizao da poltica e universalizao da moral. Essa fuso de trs horizontes na figura do historiador apresenta-se como uma maneira de apropriar-se dos enigmas e paradoxos do mundo e reunir, tica e epistemologicamente, tanto a pesquisa histrica quanto a filosofia da histria, para criar uma conscincia histrica adequada nossa modernidade. A histria aqui toma o papel do Deus aniquilado e da metafsica moderna na direo de uma tica do tomar conta e de uma poltica de responsabilidade. Essa questo ser retomada com mais fora no captulo 3. Ver para essa questo: RICUR (2007), Op. Cit., p. 501-512; WHITE, Hayden. Guilty of History? The Longue Dure of Paul Ricur. In: History and Theory. n. 46. May 2007, 233-251. 23 Este o clebre trecho do pensador da Grcia Antiga: De lo que hemos dicho se desprende que la tarea del poeta es describir no lo que ha acontecido, sino lo que podra haber ocurrido, esto es, tanto lo que es posible como probable o necesario. La distincin entre el historiador y el poeta no consiste en que uno escriba en prosa y el otro en verso; se podr trasladar al verso la obra de Herodoto, y ella seguira siendo una clase de historia. La diferencia reside en que uno relata lo que ha sucedido, y el otro lo que podra haber acontecido. De aqu que la poesa sea ms filosfica y de mayor dignidad que la historia, puesto que sus afirmaciones son ms bien del tipo de las universales, mientras que las de la historia son particulares. ARISTTELES. La Potica. Edio Digital disponvel em . (Cap. IX). p. 14.
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23
1.1. O particular: Alfredo Varella, historiador da Grande Revoluo
Essa subseo trata de Alfredo Varella em duas frentes, ambas sintticas, uma vez que
vrios dos aspectos aqui mencionados retornam ao longo dos captulos posteriores. Num
primeiro momento, situamos o autor com alguns dados biogrficos essenciais e comentamos
o contexto geral da publicao de algumas de suas obras, sobretudo a Histria da Grande
Revoluo. Em seguida, fazemos um apanhado geral do campo das anlises da historiografia
rio-grandense, tentando perceber como a obra de Varella e o contexto dos debates gerados
por ela foi trabalhado. Ao final, mostramos alguns dos trabalhos mais recentes e apontamos
as linhas gerais que procuraremos seguir estabelecendo nossa distncia em relao a
alguns e a proximidade que almejamos em relao a outros nesse campo de estudos ainda
em vias de desenvolvimento no atual estgio das pesquisas histricas rio-grandenses.
1.1.1. Aspectos da trajetria, do contexto e da obra de Varella
Alfredo Augusto Varella de Vilares foi, sem dvida, um historiador peculiar. Nascido em 16
de setembro de 1864, em Jaguaro24 municpio do interior do Rio Grande do Sul que faz
divisa com a cidade de Rio Branco no Uruguai , Varella vivenciara desde cedo as relaes
que a provncia sulina mantinha com as repblicas do Prata. Suas reminiscncias escritas
sob o ttulo de Remembranas25 nos permitem acompanhar, com olhar atento e curioso, a
admirao que o historiador nutriu, desde criana, pelos movimentos das tropas sempre a
varrer a regio fronteiria, fossem estas de soldados brasileiros, fossem de castelhanos. As
imagens desses homens de armas, verdadeiros heris que povoaram a imaginao de Varella
em seus tempos de menino, parecem jamais terem abandonado o futuro historiador. Essa
compilao de memrias, possivelmente seu texto mais carregado de lirismo, mistura essas
imagens de infncia com muitas outras que ele iria viver ao longo de sua existncia. Essas
imagens compostas entre fragmentos de uma memria distante, convices pessoais e
experincias do passado por ele pesquisado a pesquisa historiogrfica foi sua mais
obstinada e preferida ocupao intelectual povoaram seus escritos autobiogrficos.
Sua vida intelectual comeou muito cedo, antes mesmo do golpe militar que instituiu
a repblica no Brasil, em 1889. Varella rumou a Porto Alegre em 1881, para dar seguimento
24 VILLAS-BAS, Pedro. Notas de Bibliografia Sul-rio-grandense: autores. Porto Alegre: A Nao, Instituto Nacional do Livro, 1974, p. 616-617. 25 VARELLA, Alfredo. Remembranas. Tempos Idos e Vividos. (2 vols.). 2. Ed. Rio de Janeiro: Agusa, 1959.
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aos estudos. Na capital, depois de um perodo de autodidatismo e considerveis
dificuldades, conseguiu ingressar no Instituto Brasileiro, onde foi influenciado pela
propaganda republicana e pelos ideais e ensinamentos de Apolinrio Porto Alegre26. O
ilustre intelectual teria uma influncia decisiva sobre Varella, no apenas como exemplo
republicano, mas como exemplo intelectual, sobretudo no estudo da histria rio-grandense.
Assim discorria sobre o egrgio mestre em Remembranas:
Entre os estudantes, principalmente, foi extraordinria a ascendncia de Appolinrio, homem de poucas mas de impressionadoras palavras, na vida ordinria; impressionadoras, com especialidade, quando le se encontrava no seu recanto favorito, no gabinete de trabalho. Cheias as casas e reparties de armrio, com os arquivos da Revoluo farroupilha, por cima de mesas se estendiam os documentos que estavam em exame, nos constantes estudos histricos do benemrito professor. Vrias, pelas paredes, atraam os olhares, as tocantes relquias do decnio imortal: retratos dos heris, planos de combates, roteiros de marcha, cimlios mltiplos, que desgraadamente se dispersaram, com as adversidades de Appolinrio (quem o diria!) sob a Repblica anmala, que subsiste entre ns. 27
Desde essa poca, Varella, que j era afeto das idias republicanas antes de chegar
capital, j iniciava uma participao ativa na vida intelectual pblica, opinando e tomando
parte dos assuntos polticos que movimentavam o pas no entreato da proclamao da
Repblica. No ano seguinte de sua chegada a Porto Alegre, Varella participaria da
Conveno de Fevereiro, reunio de lderes e entusiastas republicanos28. Terminados os
estudos no Instituo Brasileiro, seguiria para So Paulo, para matricular-se na Escola de
Direito. No entanto, acabaria retornando a Porto Alegre, decidido a desistir da carreira, mas
em 1886 retomaria os estudos em Pernambuco, bacharelando-se em Recife no ano de 1889,
com vinte e cinco anos.
26 Lazzari trata do Instituto Brasileiro e de seu fundador e diretor, Apolinrio Porto Alegre, em sua tese de doutorado. De acordo com o autor, Apolinrio, apesar do reduzido nmero de alunos em comparao com outras instituies de ensino da poca, teve xito no que diz respeito ao nvel de formao e aos ideais difundidos a seus alunos. Contudo, sua influencia intelectual acabariam se tornando minoritrias dentre os republicanos, em face do maior xito da gerao de bacharis em Direito, influenciados pelo positivismo. Ver: LAZZARI, Alexandre. Entre a grande e a pequena ptria: letrados, identidade gacha e nacionalidade (1860-1910). Tese (doutorado). Campinas, SP, Universidade Estadual de Campinas: 2004, p. 193. 27 VARELA (1959 v.1), op. Cit., p. 188. De acordo com Maestri, o Governicho foi como ficou conhecido o perodo em que o governo assumido por uma Junta Governativa, que logo entrega a Domingos Alves Barreto a presidncia do estado. Esse breve governo dos republicanos dissidentes, apoiados pelos ex-liberais, foi assim denominado pelos republicanos ento alijados do poder. MAESTRI, Mario. Uma histria do Rio Grande do Sul: da Pr-Histria aos dias atuais. Vol. 3 - A Repblica Velha. Passo Fundo: UPF, 2005, p.24. Tradicionalmente imputada a Julio de Castilhos a autoria do termo, mas tudo indica que a denominao mesmo de Varella. 28 Ver VARELA (1959 v.1), op. Cit., p. 189; CHAVES, Tulio. Um Varo de Plutarco. In: VARELA, A. Ensaios e Crticas. Rio de Janeiro: Edies Instituto Amrica, 1948, p. 25. Esta obra uma compilao pstuma de artigos sobre Varella seguidos de dois ensaios do autor, anteriormente publicados. O texto de Tulio Chaves, amigo ntimo de Varella, um ensaio biogrfico bastante completo.
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25
De volta a Porto Alegre e com expressas recomendaes do amigo Jos Martins Junior,
literato e advogado republicano, Varella foi nomeado Procurador Geral da Repblica no Rio
Grande do Sul em 1890, e logo depois para Secretrio dos Negcios do Interior e Exterior,
em agosto de 1891. Tornou-se uma das principais figuras da Repblica no estado, fiel
companheiro de Julio de Castilhos. Nesse mesmo perodo j havia assumido tambm a
direo do jornal A Federao (nos anos de 1890 e 1891), rgo de imprensa do Partido
Republicano Rio-Grandense (PRR) e um dos principais meios de comunicao do sul do
pas no contexto. dele, atravs das pginas desse peridico, a definio Governicho para
o curto e atribulado governo estabelecido aps a derrubada de Castilhos em novembro de
189129. A atividade jornalstica acabaria tambm sendo uma das marcas de sua vida poltico-
intelectual, pois ainda viria a dirigir o jornal Nova Folha (fundado por ele), tambm de Porto
Alegre, alm do curitibano Dirio da Tarde, em 1903, e do tradicional Comrcio do Brasil, da
antiga capital federal, entre 1904 e 1905.
Varella foi militante ativo das fileiras republicanas da velha guarda no estado, dentre
aqueles que estiveram nos momentos iniciais de organizao do PRR. Chegou a pegar em
armas por ocasio da guerra civil federalista, comandando um corpo da Brigada Militar do
Estado. Foi tambm deputado de 1900 a 1906, mas, logo em seguida ao fim do seu ltimo
mandato, abriria mo da militncia direta na poltica do estado. O momento de desarmonia
interna do partido representado pelo episdio da candidatura dissidente de Fernando
Abbott, em 1907, gerou alteraes significativas nos quadros republicanos e Varella foi um
dos intelectuais que havia se colocado ao lado da dissidncia, j naquele momento
discordando dos rumos que a poltica castilhista tomava no Rio Grande do Sul. Tanto que
sua participao direta em atividades poltico-partidrias encerra-se com o fim do seu
mandato de deputado estadual. A partir de ento, Varella mudou de ares, e algumas
mudanas no curso dos acontecimentos lhe possibilitaram seguir uma carreira diplomtica,
algo que pode ser visto como um momento de inflexo em sua trajetria como um todo. 30
Varella ingressou a servio do Itamarati para ser cnsul do Brasil na Espanha (1909),
no Japo (1910), em Portugal (1913) e na Itlia (1914). Aps esse perodo, morou em diversas
cidades da Europa e, regressando ao Brasil no comeo da dcada de 1920, tambm trocaria
muitas vezes de endereo. De acordo com Chaves, teria residido em Juiz de Fora, Belo
Horizonte, So Paulo, Campinas, Rio de Janeiro, Petrpolis e Porto Alegre. Por ltimo, viria
29 CHAVES, Op. Cit., p. 29. 30 CHAVES, Op. Cit., p. 38.
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a se fixar no Rio de Janeiro, onde falecera em 1943.31 A carreira de diplomata deu a Varella a
possibilidade de consultar arquivos ainda inexplorados sobre o Rio Grande do Sul. Tanto
que ele conseguiu montar uma vultosa coleo particular de fontes, principalmente sobre o
contexto da guerra civil farroupilha, mas tambm sobre o perodo colonial e os primeiros
anos do perodo imperial no sul do Brasil. Os arquivos ultramarinos consultados na Espanha
e em Portugal possibilitaram a Varella demarcar, desde o comeo de sua produo
historiogrfica, uma relativa distncia ao que vinha sendo realizado entre a pliade de
historiadores regionais. Documentos sobre o envolvimento de lderes farroupilhas com as
nascentes repblicas do Prata iriam endossar uma de suas mais polmicas teses, a respeito
da influncia platina no apenas na formao do gentio rio-grandense, mas tambm na
prpria gnese e desenvolvimento da Revoluo Farroupilha.
Varella foi desde muito cedo um entusiasta das letras, leitor das grandes obras de
literatura mundial, e, principalmente, dos estudos histricos. Suas memrias guardam um
espao especial para uma anedota da sua infncia, quando conhecera um ilustre poltico da
poca, Jos Affonso Pereira, em um dos tradicionais seres no lar, reunies em que
parentes e conhecidos se reuniam para jantar e confraternizar. Nesse dia guardado em sua
lembrana, havia aproveitado a presena de vrios ancios ilustres para lhes indagar sobre
histria, tomando nota de tudo quanto se lhe respondia. Ao fim do encontro, ao acompanhar
Affonso Pereira at sua casa, este, na despedida, ps a mo em sua cabea e exclamou em
tom solene: Menino, tu sers historiador um dia!32. Varella conta como essa frase
surtira inslitas repercusses em seu ser, no estmulo paixo que j nutria pelas coisas
do pretrito e pelas letras de modo geral. Dizia Chaves que seu entusiasmo pela escrita e
pela pesquisa refletia-se em um mtodo rgido de estudos e num perfeccionismo obsessivo,
de um autor que corrige e recorrige incessantemente at encontrar a melhor maneira de
ajustar a linguagem para dizer algo. 33
Varella debutou na seara de publicaes com o opsculo A Constituio Rio-Grandense,
um pequeno ensaio de apologia ao texto da primeira constituio republicana do Rio
Grande do Sul e logo em seguida com Rio Grande do Sul: Descrio fsica, histrica e econmica
(1897), seu primeiro ensaio histrico propriamente dito34. Esses dois pequenos livros
31 CHAVES, Op. Cit., p. 37. 32 VARELA (1959 v.1), op. Cit., p. 176. 33 CHAVES, Op. Cit., p. 40-41. 34 VARELLA, Alfredo. A Constituio Rio-Grandense. Porto Alegre: Of. Tip. de A Federao, 1986; VARELLA, Alfredo. Rio Grande do Sul: Descrio fsica, histrica e econmica. Porto Alegre: Echenique & Irmos/Livr. Universal, 1897.
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demarcaram o comeo de sua trajetria de escritor, mas depois de 1914 que ele passa a se
dedicar mais detidamente histria e comea a publicar suas principais obras, algumas das
quais j vinham sendo construdas h anos, em pesquisa e redao. A primeira dentre estas
Revolues Cisplatinas, de 1915, obra que j tratava da histria do conflito farroupilha e que,
juntamente com Duas Grandes Intrigas (1919) e Poltica Brasileira: Interna e Externa (1929)35,
formaria a base para a sua obra magna, Histria da Grande Revoluo (1933)36. Essas trs obras
anteriores a sua magnum opus remetem em grande parte s pesquisas feitas pelo autor nos
arquivos da Espanha e de Portugal, tendo inclusive sido publicadas por editoras
portuguesas. Se prestarmos ateno no rol de obras do autor, perceberemos que essa uma
caracterstica importante: com exceo da Histria da Grande Revoluo e dos dois primeiros
livros publicados no final do XIX, suas outras obras foram quase todas publicadas ou por
editoras de Portugal ou do Rio de Janeiro. De toda uma vasta produo, apenas a Histria da
Grande Revoluo foi publicada no estado, pela Livraria do Globo, editora responsvel por boa
parte das obras produzidas por aqueles que faziam parte do crculo de historiadores do
Instituto Histrico e Geogrfico do Rio Grande do Sul (IHGRGS)37.
Varella foi membro e scio-fundador do IHGRGS. Isso, no entanto, no fez dele um
historiador dos mais atuantes dentro do instituto. Por conta das teses que defendia desde
Revolues Cisplatinas tendncia separatista dos farroupilhas, diferenas marcantes da
formao geogrfica e scio-cultural do Rio Grande do Sul em relao ao Brasil e presena
platina na sociognese do gacho , o autor tornou-se um alvo de ferrenhas crticas de alguns
dos historiadores mais atuantes do instituto e acabaria alijando-se da entidade, to logo
suas obras comearam a provocar contestaes pblicas.
A consolidao de uma verso mais adequada para a histria sul-rio-grandense, em
funo de um momento poltico especfico vivido pelo estado em sua relao poltica com
pas, constituiu um dos mais pantanosos terrenos de disputa intelectual no Rio Grande do
Sul da primeira metade do sculo XX. A fundao do IHGRGS, em 1920, foi o ponto crucial
da inflexo que deu incio a um processo de reviso sistemtica das interpretaes da obras
35 VARELLA, Alfredo. Revolues Cisplatinas. A Repblica Rio-Grandense. Porto: Chardron, 1915. 2 vols; VARELLA, Alfredo. Duas Grandes Intrigas. Porto: Renascena Portuguesa, 1919. 2 vols; VARELLA, Alfredo. Poltica Brasileira. Interna e Externa. (Documentos Inditos). Porto: Chardron, 1929. 2 vols. 36 VARELLA, (1933), Op. Cit. 37 JACOBY, Roque. Ns, os editores. In: GONZAGA et. al. (org.). Ns, os gachos. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 1994, p. 95.
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clssicas da histria sulina38 e releitura das problemticas consideradas prioritrias para a
construo da verdadeira histria do estado a questo da formao do gacho e a do
sentido da Revoluo Farroupilha. O contexto que remonta dcada de 20 foi
tradicionalmente tratado pelos historiadores da historiografia rio-grandense como o
perodo de construo da viso nacionalista da histria sulina, quando o grupo dos mais
destacados historiadores gachos, congregado em torno do instituto, dedicou-se a
pesquisas que viriam a afirmar a brasilidade dos farroupilhas, a raiz fundamentalmente
lusitana do gacho e a conseqente predisposio do estado para a integrao nacional.
Essa tendncia, em boa parte controversa s linhas interpretativas defendidas por Varella,
afastou-lhe da entidade e possibilitou que o historiador protagonizasse uma contenda
aberta com aqueles que se opunham s suas obras, em especial o influente historiador
Emilio Fernandes de Souza Docca, um dos mais ativos porta-vozes desta verso da histria
embandeirada como sendo a do IHGRGS, malgrado fosse este tambm um espao de
evidentes disputas intelectuais. 39
A publicao da Histria da Grande Revoluo, em 1933, estampada com verba do estado
e com o selo do instituto, que publicamente se manifestou rechaando as teses defendidas
pela obra de Varella40, um caso curioso que, tudo indica, tem uma conotao bastante
personalista. Os seis espessos volumes da obra deveriam ser revisados e organizados por
membros do IHGRGS, conforme solicitao expressa do Governo do Estado, na pessoa do
ento presidente Flores da Cunha, e ento levados para a impresso na editora da Livraria
do Globo em 1932. O instituto histrico, ao menos ao longo de suas primeiras duas dcadas
de existncia, era uma instituio amparada financeiramente pelo governo estadual41 e, a
38 Referimos-nos aqui s primeiras obras clssicas da historiografia sulina. PINHEIRO, Jos F. F. Anais da Provncia de So Pedro. 5.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982; CHAVES, Jos A. G. Memrias ecnomo-polticas sobre a administrao pblica no Brasil. Porto Alegre: Cia Unio de Seguros Gerais, 1978. (A primeira edio foi publicada em 2 volumes, o primeiro em 1822 e o segundo em 1823); SAINT-HILAIRE, Auguste de. Viagem ao Rio Grande do Sul. 1820-1821. So Paulo: USP, 1974; BRASIL, J. F. de Assis. Histria da Repblica Rio-grandense. Porto Alegre: Cia. Unio de Seguros Gerais, 1882; LIMA, Alcides. Histria Popular do Rio Grande do Sul. 2 ed. Porto Alegre: Globo,. 1935. 39 Ver NEDEL, Letcia Borges; RODRIGUES, Mara. Historiografia, crtica e autocrtica: itinerrios da histria no Rio Grande do Sul. In: gora. Revista de Histria e Geografia da Universidade de Santa Cruz do Sul. Santa Cruz do Sul, n. 1, v. 11, p. 161-183, jan./jun. 2005, p. 171. 40 A rejeio s teses esposadas por Varella foi feita travs de um parecer de contestao redigido por Othelo Rosa e Darcy Azambuja, publicado em 1934, s vsperas da simblica comemorao do centenrio da revoluo, na revista do instituto. PARECER dos senhores Darcy Azambuja e Othelo Rosa sbre a Histria da Grande Revoluo, do Dr. Alfredo Varela. Revista do IHGRGS, Porto Alegre, n. 56, p. 267-272, 1934. Comentamos mais detidamente essa questo no Captulo 4. 41 Conforme o artigo de Caimi e Colussi, o financiamento do instituto era em grande parte de receitas estatais: CAIMI, Flvia E; COLUSSI, Eliane L. Histria... Mestra da vida e testemunha dos tempos. In: Histria: Debates e Tendncias. Revista do Programa de Ps-Graduao em Histria da UPF. Passo Fundo, n. 1, v. 2, p. 53-70, dez 2001.
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despeito de sua relativa autonomia interna, precisava acatar certas propostas, como aquela
feita por Flores da Cunha. O ento presidente do estado era amigo de Varella e, sabendo da
existncia dos manuscritos da obra, em conversa com o autor lhe antecipara seu desejo de
custear atravs do estado sua publicao42.
A recepo do extenso texto sobre o movimento farroupilha, que recuava a narrativa
da guerra at os primrdios da formao espacial e scio-cultural do estado, acabaria sendo
um tanto quanto constrangedora na comunidade intelectual rio-grandense, na medida em
que reacendia o debate sobre o separatismo atravs de um manancial incrivelmente
articulado de fontes que respaldavam suas concluses. Uma das qualificaes mais brandas
afirmava que o historiador da Grande Revoluo padecia de um generalizado surto de
brasilofobia43 e h vrias notas bibliogrficas e comentrios publicados com qualificaes
semelhantes, alm do j referido parecer de Othelo Rosa e Darcy Azambuja. Alguns como
Aurlio Porto seriam mais brandos nas crticas, mas com Souza Docca o debate chegou a
propores maiores, gerou diversos artigos por ambas as partes, um combativo ensaio de
Docca e duas obras de Varella que foram uma espcie de rebate s censuras em linguagem
muito menos amistosa44.
Muitas das obras de Varella continham elementos pretensamente polmicos. Como
veremos nos captulos subseqentes, especialmente no Captulo 2, o prprio historiador
ousava incitar as contestaes, criando armadilhas no texto que pudessem acender a verve
dos seus censores. Veremos como ele jogou com essas crticas e como esses outros
intelectuais receberam suas obras. Essa anlise, contudo, est concentrada no Captulo 4. Na
seqncia elencamos algumas das obras consideradas cruciais nos estudos da historiografia
rio-grandense, na tentativa de perceber como esse peculiar historiador foi tratado at ento
e como foi avaliado este intenso debate gerado em torno de sua obra magna.
1.1.2. O campo das anlises historiogrficas no RS e a avaliao da obra varelliana
O debate intensificado a partir da Histria da Grande Revoluo foi uma espcie de ponto
nodal de reflexo para as anlises historiogrficas da chamada historiografia crtica dos anos
42 A questo comentada por Varella em uma nota explicativa ao final da obra. Tratamos com maiores detalhes no Captulo 4. VARELLA (1933 T. VI), op. Cit., p. 514. 43 DOCCA, Emlio Fernandes de Souza. O sentido brasileiro da Revoluo Farroupilha. Revista do IHGRGS, Porto Alegre, n. 58, p. 1-147, 1935, p. 26. 44 O ensaio de Docca o citado na nota 21. Os livros de Varella so Res Avita e O Solar Braslico, ambos em dois volumes. VARELLA, Alfredo. Res Avita. Lisboa: Tip. Maurcio e Monteiro, 1935; VARELLA, Alfredo. O Solar Braslico: remate nos muros austrinos. Rio de Janeiro: Instituto Amrica, s.d. 2 vols.
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80. A obra de Ieda Gutfreind emblemtica nesse sentido, tendo sistematizado uma
bipolaridade interpretativa da historiografia rio-grandense atravs das noes de matriz
lusitana e matriz platina45. Na primeira, foram classificados os historiadores que defendiam a
soberania do elemento portugus como a essncia constitutiva do gacho e a subjacente
predisposio ao patriotismo/nacionalismo, com a refutao dos argumentos separatistas
em relao ao movimento farroupilha; na segunda, tnhamos aqueles que argumentavam a
favor da influncia do elemento espanhol como parte tambm integrante da formao sulina
e, em geral, a afirmao do separatismo como peculiaridade da Revoluo Farroupilha. O
debate, que remontava dcada anterior, reencenou-se de forma vigorosa na abertura dos
anos 30 com a publicao da copiosa obra de Varella, e foi tomado como ponto de apoio da
anlise de Gutfreind, que se fundamentava nessa dupla conceituao. A autora procurou
ento perscrutar, ao longo do vasto perodo compreendido entre 1920 e 1970, a dinmica
entre essas duas matrizes analisando as obras fundamentais de vrios historiadores e
concluindo pela vitria da matriz lusitana sobre os localizados esforos da matriz platina,
representada especialmente por Varella.
A obra de Gutfreind partilha de um momento peculiar do desenvolvimento da cincia
histrica no Brasil, e, principalmente, na recente historiografia acadmica do Rio Grande do
Sul, na poca ainda em vias de estabilizao. Seguia uma trilha j iniciada por estudos como
os de Marlene Medaglia Almeida46, em que o objetivo primordial era a anlise do processo
de consolidao da histria rio-grandense em sua relao com o poder poltico e as
ideologias dominantes. Nesse sentido, procuravam dar conta de um conjunto incrivelmente
diversificado de historiadores, de maneira que fosse possvel traar tendncias gerais da
45 GUTFREIND, op. Cit. 46 O trabalho de Marlene Almeida, Introduo ao estudo da historiografia sul-rio-grandense, de 1983, foi o primeiro trabalho sobre a historiografia rio-grandense realizado no mbito da ps-graduao acadmica. ALMEIDA, Marlene Medaglia. Introduo ao estudo da historiografia sul-rio-grandense: inovaes e recorrncias do discurso oficial (1920-1935). Porto Alegre: Dissertao (Mestrado em Sociologia) Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1983. Propunha-se, num momento de transio poltica, que a anlise historiogrfica teria um papel substancial na tarefa de desnudar a carga ideolgica das classes dominantes, que teria sido at ento a perspectiva norteadora da escrita da histria brasileira. Neste caso, como salientava a prpria autora, o objeto da anlise no era a historiografia em si, enquanto processo ou discurso, mas sim a ideologia que impregna a verso oficial da historiografia (p. 113), tendo o conceito de hegemonia como o fundamento natural do estudo da funo histrica da historiografia46. Sua reflexo terica apoiava-se claramente no influxo de conceitos gramscianos, que povoaram inmeras outras obras da poca. Antes deste trabalho as poucas apreciaes em torno das obras da histria no estado eram estudos com foco literrio, como os textos de Guilhermino Csar, por exemplo, ou estudos de levantamento bibliogrfico, como o de Dante de Laytano e o pequeno ensaio de sntese de Moacyr Flores. FLORES, Moacyr. Historiografia: Estudos. Porto Alegre: Nova Dimenso, 1989; CESAR, Guilhermino. Histria da literatura do Rio Grande do Sul. (1737-1902). 2. Ed. Porto Alegre: Globo, 1971; LAYTANO, Dante de. Manual de Fontes bibliogrficas para o estudo da histria geral do Rio Grande do Sul. Levantamento Crtico. Porto Alegre: Gabinete de Pesquisa de Histria do Rio Grande do Sul, IFCH-UFRGS, 1979.
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historiografia e estabelecer, assim, as interconexes entre a escrita da histria e os projetos
sociais, polticos e econmicos inerentes prtica historiogrfica47.
Entretanto, esse passo decisivo no tratamento das obras historiogrficas trazia
tambm, em sua face diametralmente oposta, o risco de um nivelamento excessivo,
conseqncia muito comum mas no necessria do procedimento de
sntese/generalizao. Se, de um lado, a anlise avanava medida que procurava desvelar os
laos at ento encobertos entre determinadas verses da histria e as aspiraes das classes
dominantes, do outro, deixava em aberto inmeras situaes no-padronizveis, ou
circunstncias peculiares que no podiam ser devidamente explicadas pelos modelos de
anlise propostos. Uma srie de particularidades e vrias questes relacionadas operao
de construo do conhecimento histrico permaneceram espera de estudos que iniciassem
a tarefa de investigar de forma mais detida as obras desses vrios historiadores.
A trajetria intelectual e a obra de Alfredo Varela podem, certamente, ser listadas
como ainda pouco exploradas pelos estudos historiogrficos e a singularidade que as
envolvem clama por um estudo mais especfico. E, nesse caso, no apenas na perspectiva
individual, mas tambm no que diz respeito s dissenses que colocavam frente a frente
diferentes concepes polticas, interpretaes historiogrficas, vises de mundo e
predilees intelectuais. A compleio dos projetos polticos que perpassaram o contexto
vivido por um autor como Varella um fator de suma relevncia, mas no encerra em si toda
a teia de possibilidades de ao e reflexo disposio do sujeito histrico e nem poderia,
por si s, explicar de forma rgida a totalidade de sua histria escrita.
A obra de Varella aparecia, nessas anlises de cunho mais generalizante, como
contraponto viso considerada vencedora da disputa ideolgica travada no contexto de
30. A disputa resumia-se a projetos polticos divergentes sendo defendidos por textos de
histria. A imagem passada era de que tais histrias eram realmente to rasas que nenhuma
visada epistemolgica ou terica na anlise poderia gerar algum resultado, afinal, at mesmo
nas condies epistmicas elas eram semelhantes, porque eclticas, obtusas, incoerentes e
at mesmo ingnuas. Na falta de anlises mais detidas do ponto de vista da prtica de
produo do saber historiogrfico, a idia de ecletismo terico e a de confluncia da posio de
classes dos autores apareciam como argumentos para endossar a planificao das
47 Esta opo terica foi bastante recorrente no perodo, a partir da influncia de obras basilares como a de Josep Fontana, publicada no Brasil s no final dos anos 90, mas j muito difundida desde meados dos 80. FONTANA, Josep. Histria: anlisis Del pasado y proyecto social. Barcelona: Crtica, 1982; _____. Histria: anlise do passado e projeto social. Trad. Luiz Roncari. Bauru: EDUSC, 1998.
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concluses em relao diversidade contida nas obras. 48 Se o aspecto fundamental da
disputa entre as tendncias platinas e lusitanas era capaz de elucidar uma srie de
caractersticas das obras e dos autores, em outros planos como o da configurao
epistmica, da construo narrativa e da heterogeneidade terico-filosfica, ele no era
capaz de fornecer explicaes.
Tomemos aqui como recorte temporal o contexto dos anos 20 e incio dos anos 30 no
Rio Grande do Sul (poderamos estender esse recorte, sem exagero, at o final da dcada de
6049) e veremos que os pressupostos consensuais daquilo que era considerado uma boa
histria eram definidos de acordo com os parmetros de cientificidade das cincias naturais
neutralidade explicativa, objetividade e metodizao da anlise dos dados para alcanar a
verdade crua dos fatos , influncia clara do positivismo e das chamadas escolas
metdicas50. Esse era, geralmente, o discurso ostentado inclusive institucionalmente, por
historiadores no-acadmicos que detinham o respaldo social para adentrarem nos
caminhos de busca do passado. At a, no podemos impor maiores dvidas. Mas os
complicadores emergem quando passamos a perceber que entre o discurso e a prtica havia
um sem-nmero de situaes que fragmentavam essa percepo normativa do ofcio
48 O termo ecletismo usado na obra de Gutfreind. GUTFREIND, Op. Cit., p. 29. 49 SILVA (2008), Op. Cit. A trajetria e a obra de Romeu Beltro, e sua relao com outros historiadores sulinos entre os anos 50 e 70 nos apresentam alguns indcios sobre esta questo. 50 Uma pequena digresso ao XIX se faz necessria, na medida em que este ficou conhecido como o Sculo da Histria. Se a denominao questionvel, no o o fato de que foi neste sculo que a histria se afirmou enquanto cincia histrica, com pretenso metodolgica especfica. A histria desse sculo conseguiria romper com as filosofias da histria do sculo anterior atravs de figuras como Leopold Von Ranke, na Alemanha, e Gabriel Monod e Langlois/Seignobos, na Frana, decisivos nesse processo de consolidao disciplinar da histria como cincia estrita. Naturalmente, essa nova cincia bebia nas fontes de inspirao positivistas, sobretudo no que diz respeito preocupao metodolgica elementar, uma fundamentao metdico-documental positiva. Essa influncia do positivismo fora mais marcante a partir da segunda metade do XIX, num perodo em que a influncia do romantismo viria a ser, ento, minada por essas tendncias prximas filosofia de Augusto Comte. A idia da histria construda com atenta regulao metdica, baseada nos documentos e feita a partir de uma disjuno rgida entre sujeito e objeto do conhecimento passava a ser predominante. Esses ares positivistas influenciaram a historiografia que fundava-se em prerrogativas metdicas determinadas e congregava-se em torno dos arquivos para uma reviso do passado. A fundao da Revue Historique, em 1876, emblemtica nesse sentido, pois proclama em seu manifesto de abertura o mtodo cientfico para a histria. Historiadores como Fustel de Coulanges, Taine e Monod congregavam-se nesse esforo. A denominao de escolas metdicas, na falta de um termo melhor, se refere a este contexto de desenvolvimento desses tradicionais cnones da historiografia metdico-documental. No entanto, ainda que essa histria metdica concordasse com muitos dos princpios caros ao positivismo de Comte ou Stuart Mill, no pode ser diretamente confundida com a mesma idia de histria do positivismo, motivo pelo qual se torna imprecisa a pecha indiscriminadamente usada de historiografia positivista. A influncia desse gnero positivista advinha muito mais de obras como as de Taine ou Buckle, por exemplo, sendo que a formalizao metdica posterior acabaria desconfiando cada vez mais de alguns pontos fundamentais tributrios do positivismo, como a preocupao com as leis imutveis, a validade universal dos mtodos das cincias naturais, e a excessiva ambio sociologizante. Todas essas caractersticas acabariam paulatinamente sendo minadas por essa histria que agora surgia com um mtodo prprio e negava a busca das leis em detrimento da descoberta e organizao cientfica dos fatos do passado. Ver: ARSTEGUI, Julio. A Pesquisa Histrica: Teoria e Mtodo. Trad. Andra Dore. Bauru: Edusc, 2006, p. 100-103; 107-129.
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historiogrfico, de modo a tornar arriscada a mera considerao dos discursos publicamente
proferidos ou presentes nos preldios das obras como indcios de uma unidade plena e
intacta do autor.
A obra de Alfredo Varella nos demonstra a legitimidade de propor esse
questionamento. Se pensarmo