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A DITADURA BRASILEIRA E O GOLPE NO CHILE DE 1973:
REFLEXOS REGIONAIS DA GUERRA FRIA
Tiago Alves da Silva Lopes1
José Carlos Martines Belieiro Junior2
Resumo
O presente trabalho pretende analisar como o Brasil, no governo do general Médici (1969-
1974), atuou na política de segurança nacional da América Latina, refletindo no golpe no
Chile de 1973, que marcou a derrocada do intento socialista de Salvador Allende (1970-
1973). Para tal estudo, serão analisadas as características gerais dos países da região e suas
interações no contexto de Guerra Fria. O Brasil foi o primeiro país da América Latina a adotar
intransigentemente a Doutrina de Segurança Nacional (DSN), ensinada através de escolas
militares espelhadas na ideologia norte-americana. Também será analisado o papel da Central
Intelligence Agency (CIA) e sua “fórmula para o caos”, no intuito de desmoralizar e
enfraquecer as forças políticas de esquerda da região, para abrir caminho para governos de
direita. A confluência de condições externas, como o contexto histórico de disputa bipolar
internacional, tendo os Estados Unidos como principal força política e econômica no
continente americano, mais o Brasil como país promotor da DSN na região, tornou
improvável a presença de governos de esquerda na região, favorecendo as forças políticas de
extrema-direita, alinhadas às expectativas do bloco capitalista.
Palavras-chave: Guerra Fria; Golpe de Estado; Brasil; Chile.
Abstract
The present article pretends to demonstrate how the Brazil’s government of general Médici
(1969-1974), acted on the America Latina security policies, reflecting in the coup d’État that
caused the Salvador Allende’s project to fall, on 1973. For that study, will be analyzed the
general traces of the Latin’s countries, and their interactions with the Cold War. Brazil was
the first country to adopt the National Security Doctrine in Latin America, through the
military schools mirrored in the north-american ideology. The participation of the Central
Intelligence Agency (CIA) with its “chaos formula”, that intended to demoralize and weaken
the left wing political forces, as well will be analyzed. The set of external condition’s
elements, like the bipolar historical context, having the United States as the major political
and economic force in the american continent, plus Brazil as the promoter of the National
Security Doctrine in the region made the conditions to the presence of left-wing governments
very unlikely to exist in the region. That way, turning the culmination of the coupes d’État by
the extreme-right more feasible to happen.
Key-words: Cold War; Coup d’État; Brazil, Chile.
1 Graduando em Relações Internacionais pela Universidade Federal de Santa Maria – UFSM. 2 Docente Orientador da Universidade Federal de Santa Maria – UFSM.
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1 Introdução
A América Latina, ao longo do século XX - palco de grandes acontecimentos
mundiais -, foi uma região caracterizada por sua instabilidade política. Por exemplo, a quebra
de continuidade de governos com golpes e revoluções. As transformações políticas na região,
de modo geral, aconteceram em períodos similares. Se observarmos a segunda metade do
século XX até início do século XXI, notamos uma sequência praticamente conjunta de tipos
de regimes na maioria dos países da região, respectivamente: governos populistas, ditaduras
militares, período de redemocratização, governos neoliberais e, por último, governos de
esquerda.
A formação histórica da região foi dividida, praticamente, entre portugueses e
espanhóis, e apresentava alguns elementos bastante similares na constituição dos países.
Como destacou Jorge Castañeda (1994), a natureza comum da situação latino-americana –
como as estratificações sociais, em conjunto com a vontade política e o fervor revolucionário
das classes menos favorecidas -, ou seja, condições comuns compartilhadas pelos países da
região, mas também com diferenças próprias entre os países, define sua estrutura histórica.
Os países da América Latina tiveram poucas opções quanto à posição a se adotar no
mercado mundial. Segundo Santos (1986), seguido de alguns casos prolongados de
exploração colonial, não restava muito além de acabarem por se adaptar a uma participação
periférica, quanto ao processo de especialização desse mercado – sendo esta uma melhor
opção do que seguir como colônias. Além disso, foram governados por elites incompetentes
ou extremamente predatórias, ou seja, incapazes de patrocinar um modelo de
desenvolvimento nacional. Estas nações acabaram por ter dificuldades de produzir suas
próprias riquezas.
Neste trabalho, será analisada a proliferação das ditaduras militares no subcontinente
latino-americano, dada em um ponto chave da Guerra Fria, o pós-Revolução Cubana de 1959.
Segundo Rouquié (1985), em 1954, de vinte países latino-americanos, treze eram governados
por militares. Em 1980, dois terços da população total da América considerada latina viviam
em países de regimes militares ou sob domínio militar. Essas ditaduras, a partir da década de
1960, seguiam uma ideologia internacional, que foi empreendida e financiada pelo centro
hegemônico capitalista norte-americano.
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Esses regimes militares seguiam uma certa lógica operacional, que consistia em ceifar
a participação política nos países da região. O conjunto de regras aplicado, segundo Rossi
(1984), seja na Argentina - após 1976 -, no Uruguai e no Chile - depois de 1973 -, na Bolívia
quase ininterruptamente, no Peru - de 1968 até 1979 -, no Equador, -de 1971 a 1978 -, tinha
pontos comuns, como a dissolução ou proibição da existência de partidos políticos; repressão
contra os sindicatos (Argentina, Chile e Uruguai tiveram suas poderosas centrais ceifadas no
momento do golpe militar); não havia previsão de quando haveriam novas eleições e o
Parlamento tinha pouco poder real.
Porém, mesmo que tenha havido uma série de golpes e ditaduras militares na região,
cada circunstância deve ser analisada de acordo com o contexto histórico e as interações
sociais entre seus agentes internos. A pretensão deste trabalho não é estabelecer conceitos
gerais sobre a dinâmica dos países latino-americanos, mas sim verificar, a partir do momento
pós-Revolução Cubana, o golpe no Brasil de 1964 e seu papel desempenhado no fomento de
outras ditaduras militares da região, no início dos anos 1970, especialmente a do Chile, de
1973, com imprescindível apoio da Central Intelligence Agency (CIA).
O objeto de estudo deste trabalho é a análise da participação do Brasil, no governo do
general Médici (1969 - 1974), na culminação do golpe no Chile, de 1973. O interesse
brasileiro nesse apoio advém de questões de segurança na região, ou seja, fomentar a ascensão
de regimes que refletissem a Doutrina de Segurança Nacional (DSN)3, para assim lutar contra
as forças comunistas, consideradas “subversivas” ao status quo, no âmbito regional. Essa
participação se deu em uma triangulação entre os grupos radicais de direita no Chile, a CIA e
o Brasil, que foi o precursor dessa ideologia na região.
A partir do golpe no Brasil de 1964, segundo Bandeira (2008), os exércitos vizinhos se
utilizaram da experiência brasileira como exemplo e modelo de como construir as condições
para um golpe de Estado. Essa influência brasileira, a partir de um modelo precursor de
segurança nacional na América Latina, em contexto de Guerra Fria (1945 - 1991), criou
alianças com grupos de compatibilidade ideológica, trabalhando para o surgimento de
governos seguidores da DSN na região. O apoio brasileiro favorecia as condições externas e
materiais dos grupos alinhados a seus interesses na região, proporcionando maior segurança
em um golpe de Estado.
3Conceito da Ideologia da Segurança Nacional adotado pelo Padre Joseph Comblin (1980).
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Um dos pontos da experiência brasileira repassada ao Chile, foi a partir do Brasil ter
sido uma experiência bem sucedida das covert actions e spoiling operations4da CIA, feitas no
país para preparar terreno para a retirada do presidente João Goulart (1961 - 1964) do poder.
Essas medidas uniam setores civis radicais da direita e militares seguidores da DSN, e muitas
das mobilizações feitas no Brasil se repetiriam no Chile. Além disso, houve articulações do
golpe chileno em Brasília, a partir do próprio governo brasileiro, e em São Paulo, pelos
empresários que já haviam participado na derrocada de Jango5.
Para entendermos a interação entre os atores e ideologias na culminação dos golpes
militares, devemos analisar a conjuntura internacional, em conjunto com a reação local. O
contexto histórico de Guerra Fria, a Revolução Cubana de 1959, os interesses divergentes
entre as classes altas e baixas - gerando crescente tensão e polarização do sistema político -,
pressão externa dos Estados Unidos, a DSN, o temor da emancipação política da classe
trabalhadora (uma das consequências da crescente urbanização dos países locais), tudo isso
teve seu papel na culminação dos golpes militares na região.
2 Cenário Mundial: Guerra Fria e Doutrina de Segurança Nacional
Para entendermos como a Guerra Fria acabou por ter reflexos na América Latina,
devemos entender primeiramente o porquê dos Estados Unidos terem atuado de forma ativa
no Sistema Internacional (SI)6. Devemos analisar como os acontecimentos mundiais foram
moldando a forma de atuação do país ao longo do século XX. Uma sequência de guerras
mundiais no início desse século, levou os norte-americanos ao patamar de superpotência7,
classificação também dada a União Soviética, que seria sua oponente durante a Guerra Fria.
4Operações encobertas e Operações de engodo, respectivamente. Foram medidas da CIA para desestabilizar governos e polarizar o ambiente político (BANDEIRA, 2008. Tradução do autor). 5Apelido de João Goulart. 6 Segundo Pecequilo (2004, p. 38), “No Sistema Internacional a ordem nasce das relações que se estabelecerão entre os atores e a sua dinâmica, predominando a lógica da competição e da sobrevivência, do choque de interesses. [...] O poder será o definidor das Relações Internacionais”. 7 As superpotências, EUA e URSS, tinham como característica militar o grande poder militar e nuclear, durante a Guerra Fria (DIAS, 2010).
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A visão norte-americana, como nação, de que eles deveriam ser o modelo a ser
seguido não surgiu nesse período do pós-Guerra. Desde o Destino Manifesto8, do século XIX,
era auto atribuído aos estadunidenses um dever dado como natural para seus projetos de
expansão: “Para os norte-americanos, coube aos Estados Unidos tanto a tarefa quanto o dever
de servir como exemplo para a humanidade, primeiro consolidando, depois expandindo sua
democracia e sua liberdade” (PECEQUILO, 2003, p. 121). Porém, foi apenas no período pós-
Segunda Guerra Mundial que a atuação norte-americana refletiu, em âmbito internacional, a
essa proposta filosófica do século XIX.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial (1939 – 1945), novas forças começavam a
projetar suas sombras pelo SI. Com a vitória dos Aliados (Estados Unidos, União Soviética,
Grã-Bretanha, França e China), o mundo observava o nascimento de uma nova era: “a
Segunda Guerra tinha sido o capítulo final da destruição da Europa” (PECEQUILO, 2003, p.
124). O centro do mundo estava deixando de ser a Europa, até então guiada pela Grã-Bretanha
- agora destruída pela guerra -, e passando a ser orientado na disputa pela hegemonia global
entre dois blocos: o capitalista e o comunista.
A Guerra havia deixado um vácuo momentâneo de poder mundial, era o momento
ideal para alguém tomar essa posição. Duas grandes potências haviam se destacado durante a
Guerra e se consolidaram ao final: Estados Unidos e União Soviética. Conjuntamente com
essa ascensão, o mundo observou o nascimento de uma nova disputa global, entre esses dois
países: “A aliança que permitiu derrotar os países do eixo acabou tão logo a guerra se desfez,
e teve início a guerra fria” (DIAS, 2010, p. 152).
A experiência de ter tido que combater uma potência que se expandia agressivamente
e ameaçava a ordem do SI, no caso a Alemanha, demonstrou aos norte-americanos que era
necessário estar presente nos acontecimentos do Sistema Internacional. Os Estados Unidos
aprenderam que era menos arriscado, e mais barato, trabalhar na prevenção de um possível
conflito direto, do que ter que solucioná-lo depois de iniciado. O crescimento e a segurança
norte-americana, assim como de todos os países, segundo Pecequilo (2003), depende da
estabilidade do Sistema Internacional.
8 Segundo a revista US Foreign Policy, o Destino Manifesto, escrito pelo jornalista John L. O'Sullivan, em 1845, descrevia o suposto dever, ligado a uma missão divina, dos EUA expandir seu território para o oeste, e tomar todo o continente para o país.
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Nesse momento então, os norte-americanos buscavam regulamentar o Sistema
Internacional através de instituições9. Uma das principais vantagens de governar através de
instituições, ou seja, de maneira indireta, reside no fato de que as formas de poder ficam
menos aparentes, assim como as decisões, e a responsabilidade delas recai sobre seus
parceiros: “[...] os Estados Unidos queriam os benefícios, mas não os custos da ordem, e não
iriam dominá-la agressivamente, dividindo espaço e deveres com seus parceiros.”
(PECEQUILO, 2003, p. 133).
O processo da construção da ordem patrocinada pelos Estados Unidos começou
ainda durante o conflito, nas Conferências de Dumbarton Oaks e Bretton Woods.
Nessas conferências foram criadas, respectivamente, as Nações Unidas, o Banco
Mundial e o Fundo Monetário Internacional, definindo-se, ainda, novos parâmetros
de relacionamento político e econômico para os países (PECEQUILO, 2003, p.
128).
No intuito de impedir a repetição da situação do período entre guerras: a destruição da
Europa durante a Primeira Guerra, segundo Pecequilo (2003) levou a uma situação de crise
que culminou na Segunda Guerra Mundial; os Estados Unidos lançaram um plano de
restauração econômica. Assim, no intuito de serem mais ativos nos problemas internacionais,
os EUA, em 1947, lançaram o plano Marshall. O plano tinha como principal intenção reerguer
a economia europeia, para devolver o poder de compra do continente e também barrar uma
possível expansão soviética na localidade (DIAS, 2010, p. 58).
Esse plano de recuperação econômica vinha com um duplo sentido, assim como seria
a utilização das instituições internacionais de ajuda financeira a partir de então. Havia a
proposta de pacotes de ajuda financeira, mas com o compromisso desses países seguirem uma
série de requisitos – políticas liberais –, tornando os países que aceitassem mais próximos de
uma aliança com os Estados Unidos no SI. Na área de política externa, os EUA lançaram no
mesmo ano do plano Marshall, a doutrina Truman:
[...] em 1947 se estabelece a Doutrina Truman, que fixa os objetivos da política exterior dos EUA e encerra de vez a política de colaboração da era Roosevelt. Essa
doutrina marca um ponto de virada importante no comportamento anterior dos EUA,
marcado pelo isolacionismo. A nova política tem como objetivo fundamental a
contenção da expansão soviética. Tem como base o apoio a qualquer movimento
cujo objetivo seja parar a ameaça comunista (DIAS, 2010, p. 58).
9 Segundo Seitenfus (2004, p.43), “[...] a hegemonia não pode ser exercida somente através de meios materiais, financeiros e tecnológicos. É imprescindível que ela atue igualmente no campo dos valores, ou seja, na ideologia”.
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As instituições e políticas norte-americanas refletiam a sua ideologia. A partir das
instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional (FMI), os Estados
Unidos colocavam-se em uma posição de exigir certos compromissos, em troca de
financiamento, principalmente para os países em desenvolvimento. Essa era uma das formas
de exercer influência indiretamente no Sistema Internacional, aproveitando-se da comum
condição de dependência externa de países menos desenvolvidos, como foi destacado por
Santos (1986).
Mesmo não tendo tido conflitos diretos entre as duas superpotências nesse período de
Guerra Fria, muitos outros países experimentaram situações de disputa em seus territórios
nacionais, com apoio dos serviços de inteligência das duas superpotências: “Muitas vezes os
serviços de inteligência das grandes potências participaram da conspiração, encorajando a
oposição doméstica em diversos países, a fim de remover governos hostis ou que
contrariavam seus interesses.” (BANDEIRA, 2008, p.82).
Nesses conflitos internos, consequência da disputa mundial bipolar, não havia um
inimigo demarcado territorialmente, mas a disputa se daria por meio de ideologia. Sob o
conceito do inimigo interno, que seria qualquer pessoa ou entidade que fosse crítica às
políticas norte-americanas, pelos moldes da DSN, seria considerada uma ameaça à segurança
nacional. Assim, a disputa em âmbito interno dos países ocorria entre grupos ideologicamente
antagônicos, tendo amparo externo dos dois centros. Para esse conflito, não havia distinção de
intensidade de ações empreendidas:
“Não há regras em tal jogo. Se os Estados Unidos forem sobreviver, conceitos
americanos de ‘jogo limpo’ há muito tempo existentes devem ser reconsiderados”,
escreveu o general Doolittle, salientando que “nós temos de aprender a derrocar,
sabotar e destruir nossos inimigos por meio de métodos mais claros, sofisticados e
eficazes do que aqueles usados contra nós”. E daí que a CIA passou a empreender
covert actions, i.e., ações encobertas, que, segundo sua própria definição, significam
atividades clandestinas ou secretas destinadas a influenciar governos estrangeiros,
eventos, organizações ou pessoas em apoio à política exterior dos Estados Unidos,
conduzidas de tal maneira que o envolvimento do governo americano não aparecesse (BANDEIRA, 2008, p. 83).
A Doutrina de Segurança Nacional (DSN), segundo Comblin (1980), é um conceito
maleável. Uma das definições que se relega a essa doutrina é que ela seria equivalente aos
Objetivos Nacionais, mas mesmo assim não fornece uma caracterização devida. O autor vai
mais fundo e destaca que a doutrina não determina os bens que devem ser defendidos, mas
sabe-se que a qualquer custo, deve-se colocá-los em segurança. Porém, quando um elemento
essencial é definido, a doutrina toma forma, que é o inimigo.
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O conceito de segurança nacional torna-se muito operacional desde o momento em
que se define o inimigo. A segurança nacional talvez não saiba muito bem o que está
defendendo, mas sabe muito bem contra quem: o comunismo. [...] Em qualquer
lugar onde se manifeste um aparente comunismo, o Estado está presente e faz
intervir a segurança nacional. A segurança nacional é a força do Estado presente em
todos os lugares em que haja suspeita do fantasma do comunismo (COMBLIN,
1980, p. 55).
Essa doutrina vai atuar em três níveis, elencados por Comblin (1980). Em primeiro
lugar, a ideologia vai suprimir a diferença de violência e não-violência, pois a segurança seria
a força do Estado aplicada a seus adversários; em segundo lugar, a segurança desfaz a
distinção entre política externa e política interna, pois o inimigo está dentro e fora do país,
sendo considerado o mesmo “problema” para o Estado; em terceiro e último lugar, a
segurança apaga a distinção entre violência preventiva e violência repressiva, a fim de afastar
possíveis ameaças futuras aos interesses nacionais.
Amparados por essa doutrina, os militares tomam o poder institucionalmente e não
mais como árbitros que, a curto ou médio prazo, devolviam o poder aos civis.
Agora, já não se fala em prazos, mas de objetivos a atingir, ao mesmo tempo em que
se implanta e consolida uma política econômica que conduz a uma maior
concentração de riquezas e uma maior penetração das empresas multinacionais, por
meio de dinheiro e influência crescente nos processos de tomada de decisão. Esse
tipo de política tem um custo social inevitável, que se traduz na alienação crescente
de apoios ao regime dominante, levando à acentuação dos mecanismos repressivos,
que cuidam de vincular qualquer dissenso ao comunismo internacional (ROSSI,
1984, p. 32).
2.1 Reflexos na América Latina
América Latina foi um dos palcos de conflito e tensão da Guerra Fria. As relações de
poder do SI refletiram na região, tendo se agravado após a Revolução Cubana, de 1959 -
acontecimento que intensificou a preocupação norte-americana com a região. Um país
pequeno, como Cuba, e, além disso, localizado muito próximo ao território americano,
conseguiu sob as lideranças de Fidel Castro e Che Guevara, derrubar um governo10aliado aos
EUA, e instalar um regime socialista. Ficou conhecida como a via cubana, que era a transição
para o socialismo pela luta armada, através de guerrilhas.
Com o fim da Segunda Guerra Mundial e começos da Guerra Fria, os governos
latino-americanos se depararam com novas formulações ideológicas, nas quais
tiveram que redefinir as antigas disputas políticas pelo poder. Os antigos
conservadores e liberais, expressões políticas bastante marcantes principalmente em
10O governo de Fulgencio Batista, que governou Cuba em duas situações, sendo a segunda de forma ditatorial de 1952 a 1959, ano da revolução.
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países da América Central, readequaram seus discursos de acordo às novas
circunstâncias mundiais. (MOREIRA, QUINTEROS e SILVA, 2010, p. 200).
Essa situação fez com que o Estados Unidos, através de suas políticas de segurança,
intensificassem os processos de intervenção, mesmo que indiretamente, na América Latina.
“A partir da vitória da Revolução Cubana, em 1959, e do rumo socialista que tomou sob a
liderança de Fidel Castro, as atenções dos Estados Unidos voltaram-se mais e mais para a
América Latina.” (BANDEIRA, 2008, p. 84). Seria muito custoso para eles ter que lidar com
outra “Cuba”, pois ameaça suas questões de segurança na região.
A doutrina anticomunista começou a tomar corpo no início da década de 1950, com os Estados Unidos interpretando que a América Latina era o alvo favorito da União
Soviética. Como parte da segurança continental, a política externa norte-americana
desenhou uma atuação intransigente, que não admitiria governo nenhum suspeito de
implantar políticas socialistas. (MOREIRA, QUINTEROS e SILVA, 2010, p. 202).
O principal instrumento dos Estados Unidos utilizado na América Latina durante a
Guerra Fria foi a CIA. O órgão de inteligência norte-americano, que, segundo Bandeira
(2008), em conjunto com os órgãos equivalentes de outros países, constituíram as principais
forças de atuação durante o conflito. A atuação a agência se dava a partir da estratégia de
segurança norte-americana para o hemisfério, que foi intensificada a partir da Revolução
Cubana. A CIA, a fim de desestabilizar governos contrários ou resistentes às políticas de
segurança dos EUA, realizava as spoling operations:
“[...] das quais permitia penetrar nas organizações políticas, estudantis, trabalhistas e
outras para induzir artificialmente a radicalização da crise, mediante longo período de agitação e profunda desorganização social, aguçamento da luta de classes, de
maneira a solapar as bases sociais e políticas de sustentação do governo e a
favorecer sua derrubada por meio de um golpe militar” (BANDEIRA, 2008, p. 85).
Uma das principais consequências da Guerra Fria na América Latina foi a culminação
de golpes de Estado. Um governo que se mostrasse contrário aos EUA, era automaticamente
compreendido como possível aliado da URSS, segundo a Doutrina de Segurança Nacional.
Além disso, o simples fato de um governo mostrar-se incapaz de manter a estabilidade em seu
país, já era considerado como perigoso para uma possível insurgência comunista. Aqui faz-se
importante diferenciar golpe de Estado de revolução.
A diferença fundamental entre um mero golpe de Estado e uma revolução consiste no fato de que a revolução subverte a estrutura econômica e social de uma
sociedade, enquanto o golpe de Estado quase sempre visa a preservar o status quo
ou apenas a mudar um governo ou o ordenamento jurídico, derrogar ou ajustar a
Constituição [...] (BANDEIRA, 2008, p. 79).
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Na América Latina, golpes de Estado sempre estiveram presentes. Porém, não
necessariamente representavam a ideologia liberal norte-americana, muitos golpes foram
feitos por caudilhos11, governos de viés nacionalista e até de cunho social. Contudo, o golpe
militar no Brasil de 1964 foi diferente. Derivado da Doutrina de Segurança Nacional,
especificamente na preocupação em afastar a esquerda do poder, o golpe foi o primeiro na
região a possuir esse significado e missão.
Se a história da América Latina independente está tão vinculada à presença das
Forças Armadas, no centro do poder político, é preciso reconhecer que houve uma
mudança fundamental a partir do golpe de Estado de 1964 no Brasil – no que
coincide uma boa parte dos analistas políticos e historiadores. Nesse ano, inicia-se um processo, depois estendido a outros países da região, pelo qual as Forças
Armadas deixam de interferir apenas como árbitros [...] para se tornarem ocupantes
institucionais do poder (ROSSI, 1984, p. 8).
Porém, havia uma crença no perfil profissional da instituição militar que, segundo
Comblin (1980), refletia-se tanto dentro da própria instituição quanto no âmbito civil.
Estavam convencidos de que os militares que estavam no poder não tinham doutrina nem
sistema, eram puramente pragmáticos. Os militares que estavam fora dos cargos mais altos do
governo também eram mantidos na ignorância, e acreditavam estar servindo um propósito
profissional, mas que na verdade eram uma peça da engrenagem. Além disso, os norte-
americanos haviam atribuído à instituição militar, o papel modernizador12, incumbindo a ela a
missão de fortalecer o capitalismo na região.
A Doutrina de Segurança Nacional foi a ideologia adotada pelos regimes militares do
cone sul, a partir da década de 1970, com exceção do Brasil, que já seguia desde 1964. O
posicionamento dos militares pautou-se na luta contra o comunismo, ou qualquer ação que se
encaixasse no termo “subversivo”. Essa doutrina foi ensinada em diversas escolas militares,
mas não era algo próprio dos países da região, mas sim uma ideologia importada dos Estados
Unidos, fomentando práticas que acabaram ultrapassando as fronteiras nacionais.
11 Segundo Rouquié (1994, p. 260-273 apud PINHEIRO, V. 1995, p. 7), os caudilhos são elementos provenientes das oligarquias regionais que se consolidam como novos líderes, em substituição ao poder da metrópole, oferecendo proteção àqueles que se colocam sobre a sua tutela. Esses oligarcas são a pedra fundamental dos nascentes Estados latino-americanos, que, como primeira função, recebem a tarefa de garantir a independência política e as fronteiras delimitadoras dos territórios recém-libertados contra as oligarquias vizinhas. 12 “[...] de acordo com a doutrina da civic action, que as definia como a instituição mais estável e modernizadora da América Latina, razão pela qual deviam ter maior participação política e promover as reformas necessárias para evitar a revolução comunista” (BANDEIRA, 2008, p. 98).
11
O meio de entrada dessa doutrina na região, segundo Rossi (1984), deu-se através da
Escola Superior de Guerra (ESG) no Brasil. Foi criada em 1949, seguindo molde de
instituições norte-americanas de educação militar, o U.S. Industrial College of the Armed
Forces e o National War College. É importante destacar que a doutrina não se tratou de uma
ferramenta de coerção do Exército dos Estados Unidos, mas sim de um pacto conjunto.
Apesar disso, segundo Bandeira (2008), os americanos enviaram uma missão de
assessoramento, que permaneceu de 1948 a 1960 em território brasileiro.
A JDI13juntamente com as escolas militares no Canal do Panamá faziam parte do
leque de instituições que os EUA utilizavam para manter os interesses das Forças Armadas da
América Latina, próximos aos seus. Essas escolas, como a Escola Superior de Guerra, tiveram
papel fundamental na formação política e técnica dos militares latino-americanos, como
ocorreu no Brasil. Elas tinham o intuito de ensinar como combater os ditos inimigos internos
do país, ou seja, combater elementos considerados subversivos ao status quo. Isso já fazia
parte da doutrina de Segurança Nacional.
De guerra, a ESG na verdade tinha muito pouco, ao menos, se entendia a guerra no
seu sentido convencional. Tanto assim que, em 1966, apenas 24 horas de aulas eram
dedicadas ao estudo da guerra convencional, contra 222 horas de aula sobre
segurança interna e 129 horas de aula sobre a luta anti-guerrilheira. Além disso, a ESG buscou, claramente, a formação de uma elite civil-militar, incorporando
sistematicamente os não militares a seus cursos: entre 1950 e 1967, a Escola
graduou 1 267 pessoas, das quais 646 (mais da metade, portanto) eram empresários,
altos funcionários públicos (civis), juízes e profissionais em geral (ROSSI, 1984, p.
27-28).
3 Golpes militares na América Latina
3.1Golpe de 1964 no Brasil: a Doutrina de Segurança Nacional aplicada
O Brasil teve durante sua história, principalmente desde o final de século XIX, forte
influência dos militares na política: “No Brasil o Exército jamais ficou alheio ao governo.”
(COMBLIN, 1980, p. 152). Houve diversas intervenções dos militares brasileiros na política
ao longo do século subsequente. Porém, mesmo com a presença militar seguindo um certo
padrão, em 1964 algo diferente ocorreu.
13Criada em 30 de março de 1942, a Junta Interamericana de Defesa (JID) é a organização regional de defesa mais antiga do mundo. No início dos anos 1960, (BANDEIRA, 2008) teve uma importante resolução - a Resolução XLVII - que propunha que as Forças Armadas contribuíssem para o “desenvolvimento econômico e social das nações” e fizessem projetos de “ação cívica”.
12
Desde o golpe ao Imperador Pedro II, segundo Comblin (1980), os militares vem
atuando na política brasileira, sendo que nessa transição para república, os dois primeiros
presidentes era militares, Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto. Alguns anos depois, em
1930, os militares atuaram ativamente mais uma vez na política, agora apoiando a chegada de
Getúlio Vargas ao poder. Porém, foram os próprios militares que o tiraram do poder 15 anos
depois, em 1945, e um militar acabou por suceder Getúlio, Eurico Dutra. Nas eleições
seguintes, sempre houve militares tentando a presidência do país, mas sempre sem sucesso.
Até que chegou o dia 31 de março de 1964.
Em suma, quando houve a intervenção de 31 de março-1° de abril de 1964, podia-se
pensar, à primeira vista, que se tratava de mais um episódio numa longa história de
intervenções militares no processo político. Muitos achavam isso. Havia, no entanto,
uma ruptura com um certo estilo de intervenções no passado. Tudo o que
relembramos fazia parte do que, no Brasil, é denominado, por eufemismo, de “poder
moderador” do exército. Daí por diante a intervenção militar não faria mais alusão
ao “poder moderador”, mas a algo novo, à segurança nacional (COMBLIN, 1980, p.
152 - 153).
A aproximação mais estreita entre os exércitos brasileiro e norte-americano teve seu
embrião ainda na Segunda Guerra Mundial. Através da Força Expedicionária Brasileira
(FEB), os militares brasileiros tiveram forte contato com os norte-americanos e ficaram
surpresos com seu poderio tecnológico e militar, em comparação com a estrutura militar
brasileira na época14: “Os tenentes tornaram-se coronéis. Vão ser generais. Ao término da
guerra, passam a manter contatos cada vez mais profundos com os Estados Unidos.”
(COMBLIN, 1980, p. 155). Essa ligação estreita com os norte-americanos definiu a linha que
os militares iam apoiar durante a Guerra Fria.
Da Guerra e desses contatos guardam duas coisas: primeiro, a extraordinária
superioridade americana em tudo e, mais tarde, a realidade da Guerra Fria, que os
afeta, que afeta o Brasil. Não há dúvida: o que eles captaram nos Estados Unidos foi
precisamente o início do sistema de segurança nacional. Por isso desejam, antes de mais nada, adaptar ao Brasil a ideologia desse sistema. Voltam para o Brasil com a
intenção de copiar o National War College. Uma missão militar americana é
encarregada de auxiliar seus colegas brasileiros a fundar essa instituição, e a
orientará durante 12 anos: será a Escola Superior de Guerra (COMBLIN, 1980, p.
155. Grifo nosso).
O Brasil foi o único país da América Latina a participar da Segunda Guerra com
contingente militar. Além do relativo atraso brasileiro observado a partir do contato com os
14Segundo Comblin (1980), a sensação de inferioridade brasileira em termos militares causou a sensação de que o Brasil deveria buscar diminuir essa distância, e a partir disso começaram a divulgar e promover escolas que refletissem essa preocupação.
13
norte-americanos, os laços entre as instituições militares dos países colocaram o país em uma
certa condição de aliado especial dos Estados Unidos na região, incorporados no acordo que
criou a Comissão Conjunta de Defesa Brasil-Estados Unidos15. A partir de então, começou-se
a fomentar essa ideologia através de instituições inspiradas nos moldes americanos, como a
ESG, que dariam continuidade a essa relação.
No início da década de 1960, o país já vinha experimentando instabilidade política
desde a saída de Jânio Quadros, em 1961. João Goulart, seu vice, deveria assumir
automaticamente o poder. Porém, devido ao fato de ser um político de esquerda, e assim
perigoso para a Doutrina de Segurança Nacional, o Exército interveio. No momento da
renúncia, Jango estava visitando a República Popular da China. Houve resistência dos
militares tentando impedir a sua posse na volta da viagem. Em contrapartida, essa resistência
militar acabou por desencadear um movimento legalista16 no país, que conseguiu fazer com
que Jango tomasse posse ao cargo17.
[...] desde que os comandantes das Forças Armadas, em agosto de 1961, não conseguiram impedir que o vice-presidente João Goulart, do Partido Trabalhista
Brasileiro (PTB), assumisse o governo, em virtude da renúncia do presidente Jânio
Quadros, a CIA começou a dar assistência aos diversos setores da oposição que
conspiravam para derrubá-lo (BANDEIRA, 2008, p. 85).
O governo de Jango, político do Partido Trabalhista Brasileiro (PTB) durou de 1961
até 1964, porém, na prática, o governo durou cerca de um ano18. Mesmo nesse curto período
houve intensa turbulência política. O governo teve que lidar com pressões de grupos tanto da
esquerda quanto da direita. Teve seu plano econômico – Plano Trienal de desenvolvimento
econômico19 – malogrado. Além de não estar conseguindo lidar com as crises internas, ainda
havia o fantasma do golpe de Estado que era articulado por alguns setores da sociedade. Em
geral, o governo de Jango teve:
15O acordo institucionalizou um programa de trocas de alto nível em assuntos de segurança, que não se encontra
em outros tratados bilaterais na América Latina (STEPAN, 1975, p. 97). 16Ficou conhecida como a Campanha da Legalidade, movida por Leonel Brizola, governador do Rio Grande do Sul na época e também cunhado de Jango. 17 Porém, “A Câmara dos Deputados aprovou a emenda parlamentarista que impediu a posse com plenos poderes por parte de Goulart, o que só aconteceu após o plebiscito realizado no início do ano de 1963” (ROLIM, César). 18 “A rigor, o governo de Goulart se inicia em janeiro de 1963, após a contundente derrota do regime parlamentarista” (TOLEDO, 2004). 19 Plano de Celso Furtado, Ministro do Planejamento, que buscou controlar o surto inflacionário, e ao mesmo tempo retomar taxas de crescimento, comuns a década anterior. Acabou por ter resistência dos setores trabalhistas e sindicais, pois sendo um plano de combate à inflação, começou a ter efeito negativo aos salários dos trabalhadores (TOLEDO, 2004).
14
[...] uma intensa crise econômico-financeira; constantes crises político-
institucionais; crise do sistema partidário; ampla mobilização política das classes
populares paralelamente a uma organização e ofensiva política dos setores militares
e empresariais (a partir de 1963, as classes médias também entram em cena);
ampliação do movimento sindical operário e dos trabalhadores do campo e um
inédito acirramento da luta ideológica de classes (TOLEDO, 2004).
O início da década de 1960 foi um momento de forte expressão política, fosse da
direita ou da esquerda. Haviam os que lutavam pela Reforma Agrária20, como as Ligas
Camponesas, que nasceram da resistência contra os grandes latifundiários, e contestavam as
formas de dominação comuns as populações rurais do nordeste brasileiro. Houve conflito
armado entre os camponeses e proprietários de terras. Acabaram sendo caracterizadas em
jornais do Brasil e do exterior como forças subversivas e revolucionárias (TOLEDO, 2004).
Após a frustrada tentativa de alguns grupos militares de impedir a posse de João
Goulart, as articulações para a retirada do presidente do poder foram se intensificando. Havia
apoio externo da CIA, com financiamento para a oposição – principalmente para campanhas
eleitorais - do governo de esquerda de João Goulart. Essa tática servia para aumentar o
número de representantes eleitos dos partidos opositores no poder, e, aos poucos, ir
diminuindo as bases da apoio do governo.
Em 1962, a CIA gastou entre US$ 12 milhões e US$ 20 milhões, financiando a
campanha eleitoral de deputados de direita, através de organizações que seus agentes
criaram, principalmente o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), a Ação Democrática Parlamentar e outras, todas identificadas como rótulo de “democrática”
(BANDEIRA, 2008, p. 85-86).
Porém, o número de deputados patrocinados pela CIA através do Instituto Brasileiro
de Ação Democrática (IBAD), e outras frentes de apoio propagadas em nome da
“democracia” não foi satisfatório. Mesmo assim, segundo Bandeira(2008), as spoiling
operations continuariam a ocorrer. O governo enfrentava a oposição da União Democrática
Nacional (UDN), na figura de Carlos Lacerda, que defendia abertamente um golpe de Estado.
Essa oposição esteve presente em diversos levantes contra o presidente Goulart.
Os agentes da CIA continuaram a executar, no Brasil [...] covert actions e spoiling actions. Assim, em 12 de setembro de 1963, cabos, sargentos e suboficiais,
principalmente da Aeronáutica e da Marinha, liderados pelo sargento Antônio
Prestes de Paulo, sublevaram-se, em Brasília, e ocuparam os prédios da Polícia
Federal, da Estação Central da Rádio Patrulha, da Rádio Nacional, do Departamento
20O próprio presidente Goulart já levantava a bandeira da Reforma Agrária, mesmo durante o tempo de governo limitado pelo parlamentarismo. Essa posição, segundo Toledo (2004) encontrou grande resistência por parte de setores da Igreja Católica do país, mais de partidos, como a União Democrática Nacional (UDN), e do Partido Social Democrático (PSD) e das entidades ruralistas.
15
de Telefones Urbanos e Interurbanos. O movimento, no entanto, fracassou, e tudo
indica que se tratou de uma provocação, uma spoiling action, destinada a criar
dificuldades e colocar a oficialidade das Forças Armadas em favor do golpe de
Estado [...] (BANDEIRA, p. 86).
Segundo Comblin (1980), os apoiadores do golpe de Estado, civis e militares que não
faziam parte da conspiração dos oficiais da ESG, não esperavam que houvesse um
rompimento completo com a democracia. Esperava-se que, na sequência do golpe, houvesse
alteração na Constituição Federal, para em seguida chamar novas eleições. Para a maioria dos
conspiradores do golpe, que seria desencadeado em 1964, os militares atuariam apenas de
forma a tirar o presidente João Goulart do poder sem romper totalmente com a democracia.
Sendo que essa elite acreditava que o Brasil tinha um grande compromisso com a democracia
e o golpe só aconteceria para reforçá-la.
Na realidade, conspirava-se por vários lados ao mesmo tempo: civis e militares
preparavam um golpe de Estado para derrubar João Goulart. Os oficiais do grupo da
Escola Superior de Guerra eram apenas um dos grupos conspiradores. Porém, no
momento do golpe de Estado, souberam colocar-se em bons postos. Souberam
impor seu candidato ao poder, o General Castello Branco, um dos seus. E a
engrenagem entrou em funcionamento (COMBLIN, 1980, p. 157).
Um ponto importante a se destacar é que os conspiradores e apoiadores do golpe para
derrubar o governo de Goulart não foram coagidos pelos Estados Unidos para tomarem essa
posição. O que havia era uma convergência de interesses entre esses atores internos e a
política de segurança norte-americana, sendo os primeiros de conservar suas posições sociais,
e os segundos de assegurar a segurança continental no contexto de Guerra Fria. Sobre a DSN:
Não houve necessidade de que os Estados Unidos fizessem um esforço para impô-la.
Pelo contrário, ela foi adotada com entusiasmo e sem nenhum sentimento de
subordinação. Os efeitos das demonstrações da superioridade americana eram
suficientes: a Doutrina da Segurança Nacional era uma das amostras da superioridade dos Estados Unidos e, fora da dúvida, um dos segredos dessa
superioridade (COMBLIN, 1980, p. 157).
Os civis da direita tiveram sua participação no golpe de 1964 através de manifestações
políticas. Um exemplo desses atos foi a Marcha da Família com Deus pela Propriedade21,
realizada em São Paulo no ano do golpe, que juntou milhares de pessoas em uma passeata
contra as reformas de base propostas por João Goulart. Segundo Bandeira (2008), esse
movimento teve articulação conjunta com a CIA.
21 Retirado do acervo digital da Folha de S. Paulo, sexta-feira, 20 de março de 1964.
16
Os oficiais da Escola Superior de Guerra já podiam contar com o apoio, ao menos
inicial dos outros setores que também conspiravam. Porém, ainda faltava o apoio de militares
legalistas, e isso foi buscado com as spoiling operations. Durante os anos 1961-1964, houve
diversos atos de motim e revolta interna22, e segundo Stepan (1975), uma das principais
preocupações dos militares é justamente a preservação da própria instituição. Esses atos
atuavam de maneira com que os militares que possivelmente apresentassem resistência ao
golpe a ter uma posição favorável ou condescendente a ele.
A ação da “linha-dura” constituiu essencialmente em se colocar como “ortodoxia”
no seio das Forças Armadas e do Estado. Ela se apresenta como porta-voz das
exigências da “Revolução de 1964” e da pureza de seus ideias se coloca a Doutrina
de Segurança Nacional como norma dessa ortodoxia. É a linha da intransigência na
luta anticomunista, intransigência na busca de um modelo de desenvolvimento que
leve o país a um poderio econômico, e intransigência no elitismo militar. A Doutrina
da Segurança Nacional serve exatamente para articular essa intransigência (COMBLIN, 1980, p. 160-161).
Segundo Bandeira (2008), o motim dos marinheiros havia criado a última condição
para o golpe de Estado, pois os militares legalistas acabaram por ir para o lado dos
conspiradores. Então, no dia 30 de março, foi enviado da estação da CIA no Brasil, para
Washington um memorando dizendo que as forças anti-Goulart estavam se preparando para
dar o golpe em poucos dias. Na madrugada de 1 de abril de 1964, o general Olímpio Mourão
Filho, comandante da IV Região Militar, partiu em direção ao Rio de Janeiro para deflagrar o
golpe.
O golpe de Estado estava consumado. O deputado Pascoal Ranieri Mazzilli, o
primeiro na linha de sucessão, como presidente da Câmara Federal, assumiu o
governo. Não se observou qualquer formalidade legal. [...] o embaixador Lincoln
Gordon recomendou ao Departamento de Estado o reconhecimento do novo
governo, mesmo sabendo-o ilegítimo e inconstitucional, e o presidente Lyndon B.
Johnson telegrafou imediatamente a Mazzili, a felicita-lo pela sua investidura na chefia do governo (BANDEIRA, 2008, p. 89-90).
O governo norte-americano tratou de reconhecer o novo governo brasileiro
rapidamente. O reconhecimento diplomático, segundo Edward Luttwak (1979 apud
BANDEIRA, 2008, p. 90), é um dos elementos essenciais para legitimar e estabelecer a
22 Como a revolta dos marinheiros, entre 25 e 27 de março de 1964, liderada por José Anselmo dos Santos – o “cabo Anselmo”, que na verdade era um estudante universitário – com colaboração da CIA, quando aproveitaram um momento de descontentamento com o Almirantado para fazer uma revolta. Os participantes invadiram a sede do Sindicato dos Metalúrgicos e só saíram com intervenção do Exército no local (BANDEIRA, 2008).
17
autoridade de um novo governo. A partir dessa experiência, a CIA aprimorou e desenvolveu,
através da prática, suas formas clandestinas de desestabilização de governos.
Essa nova perspectiva de intervenção provocou uma mudança política e de atuação da
instituição militar na região. Nessa troca de “poder moderador” para algo mais incisivo, o
Exército tomou as instituições do poder para si por mais de 20 anos. O golpe fora
cuidadosamente articulado, e tivera suas bases e aliados preparados ao longo dos anos, como
a Escola Superior de Guerra, que preparou os futuros líderes após o golpe: “Depois de 1964,
os mais altos postos da administração serão ocupados por ex-alunos da Escola Superior de
Guerra” (COMBLIN, 1980, p. 155).
O Brasil representa eminentemente a ideologia da segurança nacional, já que os protagonistas da ideologia puderam preparar sistematicamente, durante quinze anos,
sua estratégia, e em seguida lhes foi possível pô-la em prática (desde 1964).
Raramente uma geração terá mostrado tanta perseverança e continuidade,
principalmente na América Latina. Os realizadores da “Revolução” foram
espantosamente fiéis às ideias sobre as quais haviam longamente meditado, quando
a perspectiva de poder lhes parecia ainda bastante confusa (COMBLIN, 1980,
p.151).
A partir de então, o Brasil seguiria em uma ditadura militar por mais de 20 anos. Os
golpistas conseguiram derrubar o governo de Goulart. Castello Branco assumiu o poder no dia
15 de abril. O Brasil teve cinco presidentes militares durante esse período: Castello Branco
(1964 - 1967), Costa e Silva (1967 - 1969), Gaspar Médici (1969 - 1974), Geisel (1974 -
1979) e Figueiredo (1979 - 1985). Porém, atentaremos aqui para o governo de Emílio
Garrastazu Médici23, quando de fato o Brasil fomentou golpes de Estado com a ideologia da
DSN para região.
Primeiro, os EUA eram o foco principal dos movimentos de esquerda da região. E
havia a crença de que Washington era uma potência imperial, capaz de manipular
tudo na América Latina, usando seu poder econômico, financeiro e político. O
regime militar que nasceu no Brasil após o golpe de 1964 passou a ser visto pela
esquerda como um fantoche do imperialismo americano. As charges nos jornais
cubanos mostravam um ditador brasileiro com fios de marionete sendo manipulado
pelo Tio Sam. Mas isso era equivocado, pois os generais brasileiros não estavam sob
controle dos EUA, eles iam atrás do que consideravam o interesse nacional do
Brasil, mesmo se isso entrasse em conflito com os americanos. Foi um erro de
interpretação fundado na ortodoxia marxista e nunca houve uma compreensão mais
elaborada sobre as relações entre Brasília e Washington (O ESTADO DE S. PAULO, 2013).
23 Sob seu governo “o Alto Comando do Exército conseguiu assumir o poder supremo e o Serviço Nacional de Informações, e viu-se situado no centro do sistema de poder” (COMBLIN, 1980, p. 161).
18
3.2 Atuação brasileira na Bolívia e no Uruguai
O golpe de 1964 causou uma grande mudança na política externa brasileira. Agora
com um componente ideológico que posicionava o país contra o comunismo internacional.
Essa posição refletia a Doutrina de Segurança Nacional nesse âmbito diplomático
(PINHEIRO, 2004). A ideologia de segurança mostrou seus maiores reflexos durante o
governo do general Médici (1969 - 1974). Segundo Vizentini (1995, p.151 apud GOBO,
2009): “a política externa do governo Médici produz uma enorme desconfiança por parte dos
demais países da América Latina”24.
O Brasil, desde o governo do general Médici passou a atuar no sentido de tornar o
continente latino-americano um reflexo da Doutrina de Segurança Nacional. Não bastava um
país seguir a doutrina, pois havia medo de que o “perigo vermelho” se organizasse além das
fronteiras nacionais, e, a partir de técnicas de guerrilha, pudesse apresentar alguma forma de
resistência. Além disso, segundo Bandeira (2008), fazia sentido ao Brasil que os governos
vizinhos se tornassem consumidores de seus produtos, pois experimentava grande expansão
econômica.
A Bolívia, no início da década de 1970, enfrentava uma grave crise econômica.
Segundo Bandeira (2008), o país sofria de um desabastecimento, tendo a população que
comprar produtos de primeira necessidade e bens de consumo no mercado negro.
Concomitante a isso, camponeses e colonos sem-terra faziam violentas ocupações em
propriedades rurais na parte oriental do país (Santa Cruz de La Sierra, Tarija e Beni),
assustando os empresários agroindustriais do país.
A tensão no país escalou tanto que o então presidente da Bolívia, o general Juan José
Torres25, foi informado que alguns setores do Exército boliviano planejavam assassiná-lo. De
acordo com Bandeira (2008), a partir dessa notícia, o presidente foi ao encontro da VII
Divisão do Exército, que o apoiava, e lá fez um discurso público que entregaria armas para a
população se defender de um possível golpe dos círculos conservadores, que estavam
24 Segundo GOBO (2009), Médici considerava o Brasil como uma potência média emergente, que seria responsável pelas relações de poder a nível regional. 25 Havia assumido o poder no dia 7 de outubro de 1970, em um contragolpe militar, com apoio da Central Obrera Boliviana (COB), devido a ter alianças de esquerda, acabou por produzir um clima de tensão (BANDEIRA, 2008).
19
preocupados com as violentas ocupações dos camponeses, e por outro lado, do crescente grau
de nacionalização das companhias privadas.
Parte da motivação dos grupos de esquerda vinha da recente eleição de Salvador
Allende no Chile. A companhia norte-americana Gulf Oil Company havia tido suas
instalações nacionalizadas e estava disposta a financiar um golpe de Estado na Bolívia. Nessa
situação, “[...] a CIA, com a colaboração dos serviços de inteligência do Brasil, já então
tratava de criar as condições necessárias à promoção do golpe de Estado na Bolívia”
(BANDEIRA, 2008, p. 209).
No dia 11 de janeiro de 1971, houve uma tentativa de sublevação, pelos coronéis Hugo
Banzer e Edmundo Valencia Ibañez, mais alguns grupos de direita e a Falange Socialista
Boliviana (FSB). Eles “[...]” assaltaram o Gran Cuartel de Mira Flores e prenderam o
comandante do Exército, general Luís Reque Terán, o coronel Manuel Cárdenas, chefe da
Inteligência, que lá se encontravam.” (BANDEIRA, 2008, p. 209). Porém, uma mobilização
do general Torres acabou por suprimir o levante, que não teve o apoio esperado de outros
grupos. Os responsáveis pela tentativa de golpe foram entregues à Embaixada do Brasil, como
“asilados políticos”.
O ministro do Interior, Jorge Gallardo Lozada, e a imprensa acusaram o general
Hugo Manhaes Bethlem, ex-embaixador do Brasil em La Paz (1952 - 1954), bem
como o coronel Joffre Sampaio e o tenente-coronel Hernani Ferraz de Almeida,
chefe do posto de Correio Aéreo Nacional (CAN), órgão da Força Aérea Brasileira
(FAB), de envolvimento na tentativa de golpe de Estado (BANDEIRA, 2008, p.
210).
O clima de tensão continuava na Bolívia, causado pelo conflito entre as classes
sociais. O general Torres buscava se equilibrar entre os radicalismos da direita e da esquerda.
No intuito de acalmar os ânimos que ainda refletiam na recente tentativa, frustrada, de golpe,
ele pagou indenizações a Gulf Oil Co., porém a esquerda radical foi contra o pagamento e
acusou o governo de ir contra os interesses nacionais. Além disso, a esquerda exigia a criação
de milícias populares, para radicalizar o governo contra os setores da direita (BANDEIRA,
2008).
Em meio a tentativas de equilíbrio político interno, Torres também precisava resolver
os problemas com o Brasil, que conspirava junto com os setores da direita para tirá-lo do
poder. Segundo Bandeira (2008), ele afirmou, através de emissários enviados a Brasília, que o
projeto da Bolívia era nacional, e não estava inspirado em ideologias alheias, mas na tentativa
de incorporar as grandes massas bolivianas marginalizadas à sociedade.
20
Porém, mesmo com esse intento de dissociar a imagem boliviana a uma forma
socialista de governo, as tentativas de golpe se seguiram. Setores da direita, como o adido
militar na Embaixada boliviana no Brasil, Juan Aroya, pediu ajuda ao Brasil para tirar Torres
do poder, sabendo que o governo atual da Bolívia não convinha ao Brasil. “Com a economia a
crescer a taxas muito elevadas, de mais de 10% ao ano, o Brasil buscava penetrar nos
mercados da América do Sul [...]” (BANDEIRA, 2008, p. 220).
E o general João Batista Figueiredo, chefe da Casa Militar do presidente Emílio
Garrastazu Médici, ofereceu aos conspiradores, através do ex-coronel Juan Ayoroa,
todo o suporte material possível – dinheiro, armas, aviões – e deu autorização para
que fossem instalados campos de treinamento perto de Campo Grande (Mato Grosso) e em outros locais próximos da fronteira. O plano, com a ajuda do Brasil e
dirigido pela CIA, previa a contratação de mercenários e a instrução consistia no
adestramento, pois deveriam estar prontos para combater dentro de dois meses,
provavelmente agosto ou setembro de 1971 (BANDEIRA, 2008, p. 221).
O coronel Hugo Banzer começou então os preparativos para o golpe, em conjunto com
os setores conservadores. “Os empresários intensificaram a sabotagem econômica,
aumentando ainda mais a escassez de gêneros de primeira necessidade, como pão, leite e
açúcar, e o custo de vida, consequentemente” (BANDEIRA, 2008, p. 222). O presidente
Torres sabia da movimentação, e seguia tentando desvincular-se de uma experiência
socialista, mas àquela altura, já não iria alterar o ramo dos acontecimentos.
O golpe começou no dia 18 de agosto de 1971, tendo a presença de um avião militar
brasileiro, que exibia as insígnias do Brasil, trazendo armamentos. A cidade de Santa Cruz de
La Sierra fora tomada pelo coronel Andrés Selich, resultando em 98 mortos e 500 feridos. As
tropas do II Exército chegavam à fronteira do Mato Grasso, preparando-se para uma possível
intervenção na Bolívia (BANDEIRA, 2008).
No dia seguinte, 19 de agosto, as unidades militares, aquarteladas em Santa Cruz de
La Sierra, aderiram ao levante. Os regimentos de Riberalta, Camiri, Bermejo e
Tarija também. Os Rangers de Guariba, que dominavam totalmente a cidade de Santa Curz de La Sierra, invadiram a universidade e fuzilaram todos os estudantes
que lá resistiam (BANDEIRA, 2008, p. 222-223).
No dia 21, o governo de Torres estava terminado. Os grupos conservadores haviam
saído vitoriosos, e o coronel Hugo Banzer, promovido a general, assumiu o poder. Segundo
Bandeira (2008), o Brasil estava satisfeito com os resultados, tendo agora um governo
alinhado aos seus interesses. Logo Médici, sob recomendação de seu chanceler, Mario
Gutiérrez, escreveu ao presidente norte-americano, pedindo que ajudasse o novo governo da
21
Bolívia, para ter legitimidade internacional. A Bolívia tornou-se ali um território de
conspiração e repasse de armamento aos militares chilenos que conspiravam contra Allende.
No Uruguai, em 1971, também houve a possibilidade de uma golpe de Estado. O
Movimineto de Liberación Nacional-Tupamaros(MLN-T) do Uruguai, que era a ala radical da
esquerda no país, estava realizando, segundo Bandeira (2008), uma série de atentados, roubos
a bancos e sequestros a figuras políticas importantes - como o diplomata brasileiro Aloysio
Dias Gomide, o embaixador da Grã-Bretanha, Geoffrey Jackson, entre outros -, em meio a
uma grave crise política.
O presidente do Uruguai nesse período era Jorge Pacheco Areco, e o país estava em
vésperas de eleições. No contexto regional, o Brasil mostrava-se preocupado que a frente de
esquerda do país fronteiriço, a Frente Ampla (FA), chegasse ao poder na eleição: “O maior
temor, tanto em Brasília como em Buenos Aires e Washington, era, no entanto, de que
ocorresse no Uruguai algo como no Chile, onde a Unidade Popular Triunfara, elegendo
Salvador Allende presidente da República.” (BANDEIRA, 2008, p. 232).
A FA estava com chances de vitória, e o governo estava se mostrando incapaz de lidar
com os ataques dos Tupamaros. Esses dois fatos concomitantes acabaram por levar o
presidente Jorge Pacheco Areco a pedir intervenção militar no país, caso as eleições fossem
ganhas pela esquerda: “O que ele [o presidente] queria era o apoio do Brasil para um golpe de
Estado que o mantivesse no poder, ou para uma intervenção militar, caso não contasse com
força para desfechá-lo” (BANDEIRA, 2008, p. 237).
As Forças Armadas do Brasil estavam dispostas em realizar uma intervenção militar
no Uruguai caso a Frente Ampla ganhasse as eleições. Porém, não o fariam para manter o
presidente Pacheco no poder, pois ele não estava conseguindo manter a estabilidade no país.
Enquanto isso, a Argentina também foi requisitada para tal apoio, pela alta cúpula do Uruguai,
mas pretendia agir de forma diferente do Brasil, que seria com apoio material e financeiro, ao
invés da intervenção direta.
De qualquer forma, o governo do general Emílio Garrastazu Médici não queria que
se instalasse em um país vizinho do Brasil um governo de esquerda, como
acontecera no Chile. Estava decidido a intervir no Uruguai, isoladamente ou junto com a Argentina. E o general Breno Borges Fortes, comandante do III Exército,
concentrou, na fronteira, as tropas preparadas para executar a Operação 30 Horas, o
tempo necessário para ocupar todo país e Montevidéu (BANDEIRA, 2008, p. 241).
Enquanto as eleições não chegavam, o Brasil, em parceria com os Estados Unidos,
começaram a atuar com apoio logístico e financeiro para decidir o futuro político do Uruguai.
22
Porém, mesmo antes das eleições os setores de apoio ao possível golpe se articulavam como
depois seria na ditadura, propriamente dita. Os preparativos estavam sendo feitos para lidar
com qualquer um dos possíveis resultados das eleições.
Os serviços de inteligência do Brasil, tanto das Forças Armadas quanto o SNI,
colaboravam realmente com a CIA na campanha de spoiling actions para
inviabilizar a Frente Ampla e possibilitar a instauração de uma ditadura, a fim de
reprimir duramente a agitação sindical e estudantil, que recrescia no Uruguai
(BANDEIRA, 2008, p. 244).
No caso uruguaio, o Brasil executou um papel importante na luta contra a Frente
Ampla. Mesmo a presença do país, assim como foi solicitada à Argentina, ter sido requisitada
pelo próprio presidente do Uruguai, e por setores preocupados com o avanço comunista, o
país, mostrou-se disposto a agir e realizar uma intervenção internacional militar a fim de não
permitir a ascensão de mais um governo de esquerda na região, como houve no Chile.
[...] o governo do general Garrastazu Médici estava a concentrar tropas na região da
fronteira para exibir seu poderio militar e difundir no eleitorado uruguaio o temor de
que uma vitória da Frente Ampla provocasse uma invasão do país pelo Brasil. Efetivamente, confirmou o coronel Dickson M. Grael, após a realização dos
reconhecimentos imprescindíveis, as unidades do Exército estavam em suas
posições de partida para deslocamento em direção à fronteira, aguardando os
resultados das eleições no Uruguai, para executar o plano de invasão, caso recebesse
ordem superior (BANDEIRA, 2008, p. 256).
As eleições foram então realizadas, no caso com as cidades fronteiriças, vendo o
Exército do país vizinho, no caso o Brasil, esperando o resultado para decidir se haveria ou
não uma invasão em seu território. Quem acabou por vencer foi o Partido Colorado, com Juan
Maria Bordaberry. “Com esse resultado, configurada a derrota da Frente Ampla, a Operação
30 Horas foi desmontada” (BANDEIRA, 2008, p. 247).
Tanto na Bolívia, com a queda do general Torres, quanto no Uruguai, em uma situação
de quase invasão, a política brasileira estava refletindo a Doutrina de Segurança Nacional na
região. Em 1971, Médici visitou os Estados Unidos para falar sobre a situação na América
Latina. Nixon declarou nesta situação que: “we know that as Brazil goes, so will go the rest of
that Latin American continent”26.
3.3 O Chile antes de Allende
26 “Nós sabemos que, aonde o Brasil for, assim seguirá o resto do continente Latino-Americano” (BLACK, 1977,
p. 55 apud BANDEIRA, 2008, p. 247. Tradução nossa).
23
Historicamente, o Chile já foi considerado um dos países com maior estabilidade
política na América Latina. Apesar de não ter tido exatamente uma continuidade de sucessão
política ideal, vide o golpe em 1973 – houve um rompimento com a democracia, derrubando o
governo de Salvador Allende, que levava um projeto de socialismo democrático para o país -,
em comparação com a América Latina, é um país que se destaca nesse âmbito.
[...] o Chile escolheu por meio das eleições a todos os seus presidentes entre 1830 e
1970, com exceção de 1891, e do período que vai de 1924 a 1931. Desenvolveu-se
no país um congresso antes dos países europeus, salvo Inglaterra e Noruega. A
participação eleitoral no país, na metade do século XIX, era equivalente à existente na mesma época na Holanda, à que a Inglaterra havia conseguido apenas vinte anos
antes e à que a Itália só teria vinte anos depois. O Chile implantou o voto secreto em
1874, antes que isso fosse feito na Bélgica, na Dinamarca, na Noruega e na França
(SADER, 1991, p.11).
Além da participação política e da relativa continuidade dos processos políticos, o
Chile também se diferenciava por ter partidos políticos bem delimitados. Essa característica
fortalece a instituição política em termos de representatividade, pois essa divisão de partidos,
divididos ideologicamente, torna as demandas dos grupos mais claras e organizadas.
Uma superestrutura política semelhante à europeia, com partidos definidos
ideologicamente – partidos Conservador, Radical, Democrata-Cristão, Socialista,
Comunista alternando-se no governo distribuídos em direita, centro e esquerda, cada
um deles mantendo em geral, cerca de um terço dos votos, com uma cidadania
afiliada politicamente e essas agremiações – fazia do país uma cabeça institucional
muito desenvolvida e cristalizado para um corpo social similar aos dos outros países do continente(SADER, 1991, p.12).
Porém, Comblin (1980) tem uma visão mais pessimista quanto à democracia atribuída
ao Chile, antes de 1973. O autor diz que os militares chilenos, apesar de certo
“constitucionalismo”, assim como ocorre na América Latina em geral, intervieram diversas
vezes nos processos políticos. Houve intervenção do exército pelo menos uma vez por década
no Chile. Além disso, a tradição política no país sempre confiou um papel importante às
Forças Armadas27.
Nas eleições de 1964, Salvador Allende, que perdera a eleição anterior, de 1958, por
2,7% dos votos, concorrera novamente. De acordo com Bandeira(2008), ele tentaria se eleger
pela Frente de Ação Popular (FRAP), que era a coligação de partidos de esquerda – Partido
27 Segundo o autor, as vitórias militares contra os espanhóis, na Independência, e depois contra os peruanos e bolivianos na Guerra do Pacífico, ambas no século XIX, alimentavam um sentimento de valor à instituição no país.
24
Socialista (PS) e o Partido Comunista do Chile (PC) -, com propostas de reforma agrária,
distribuição de renda e nacionalização das indústrias ligadas ao cobre, principalmente as
americanas Anaconda e Kennetcott, responsáveis por 75% do total das exportações do país.
A proposta da FRAP era a via pacífica para o socialismo, através das instituições.
Primeiro chegariam ao poder executivo no Chile, para depois usar os poderes que o regime
presidencialista poderia oferecer e iniciar o processo de mudanças estruturais, políticas e
sociais no país. Porém, mesmo sem aderir ao modelo cubano de luta armada, para os Estados
Unidos, o perigo do socialismo na região era igualmente latente para os seus interesses28,
fossem para segurança para região ou questões econômicas.Além disso, havia um importante
grupo de extrema-esquerda, o Movimiento de Izquierda Revolucionaria29 (MIR), que trazia
preocupação dos setores mais conservadores.
Não preocupava Washington apenas a possibilidade de que o Chile viesse a tornar-
se uma porta para que os militares comunistas se infiltrassem e solapassem os
governos da região. Os interesses econômicos dos Estados Unidos sempre
desempenharam importante papel na formulação de sua política exterior e, no Chile,
eram amplos e profundos (BANDEIRA, 2008, p. 99).
Kennedy, nos preparativos das eleições de 1964, acabou por determinar que a CIA e
outras agências respaldassem a campanha de Eduardo Frei Montalva30, do Partido Democrata-
Cristão (PDC ou DC). Frei era um político moderado, que não tomava posições radicais e
defendia manter laços estreitos com os Estados Unidos, disposto a aceitar suas regras.
Também anunciava a intenção de realizar reformas sociais sob o lema de “revolução em
liberdade” (BANDEIRA, 2008).
Nesse perfil moderado de Eduardo Frei, ele propunha que as decisões deveriam ser
tomadas por consenso. No entendimento dele, as demandas dos chilenos procedia, mas quem
possuía os recursos financeiros necessários para o crescimento econômico do país eram os
EUA.A intenção era dialogar com as duas partes, porém mantendo alinhamento com os norte-
americanos, tentando criar um ambiente que não fosse desfavorável para a potência
28 “O Chile respondia por 80% da produção mundial de cobre, a cargo, na maior parte, das firmas americanas Braden Cooper Co., Anaconda e Kennecott [...]” (BANDEIRA, 2008, p. 99). 29 Criado nos anos 1960, sob impacto da Revolução Cubana, ou via cubana, no intento de implantar o socialismo pela luta armada (SADER, 1991). 30O apoio norte-americano na campanha de Eduardo Frei, somando os investimentos da CIA, empresas privadas e organizações católicas chegou a US$ 20 milhões (BANDEIRA, 2008).
25
hegemônica, nem para os chilenos. Nesse sentido, ele se mostrava alinhado à “Aliança para o
Progresso”31.
Seu propósito era promover a “chilenización” da indústria de cobre, por meio da
aquisição pelo governo de 51% das ações da Kennetcott e a participação minoritária
em duas outras grandes corporações. Frei estava mais interessado em expandir a
produção de cobre, para acelerar o crescimento econômico do país e aumentar a
receita, do que uma reforma profunda na própria indústria. Do seu programa constava a distribuição de terras para 100 mil famílias, mediante compensação em
bônus para os antigos proprietários, o que, no caso, não afetava os Estados Unidos,
que tinham poucos investimentos na agricultura do Chile (BANDEIRA, 2008, p.
105. Grifo nosso).
Eduardo Frei acabou por ganhar as eleições contra a FRAP, e mais uma vez Allende
viu sua chance de governar ser adiada. A vitória o deu um percentual de 56,1% do total dos
votos. O Chile se tornara um exemplo para a Aliança para o Progresso: “Entre 1962 e 1970, o
país, com apenas 11 milhões de habitantes, recebeu mais de US$ 1,2 bilhão em subvenções e
empréstimos [...]” (BANDEIRA, 2008, p. 109). O país, durantes parte da década de 1960 foi
o país que mais recebeu ajuda per capita dos Estados Unidos nas campanhas contra o avanço
na esquerda.
O governo de Frei proporcionou ao Partido DC um caráter policlassista, unindo desde
setores marginalizados da sociedade até o empresariado industrial. Porém, essa tentativa de
aliar as expectativas de dois grupos opostos, segundo Sader (1991), não demoraria para
mostrar seu reflexos. Aceitando as condições norte-americanas de reformas liberais da
“Aliança para o Progresso”, acabou tornando o país mais dependente economicamente, e
assim, não conseguiu inserir as massas empobrecidas na sociedade.
Frei deu início a seu programa de “chilenización”32 da indústria do cobre, comprando
51% dos estoques da Kennecott e 25% da Anaconda. Em acordo com essas empresas norte-
americanas, elas seguiriam, segundo Bandeira (2008), no controle total das operações
internas, das exportações, da contabilidade e das políticas de preço. Na política agrária,
Eduardo Frei procurou revitalizar o setor, que apresentava crescimento baixíssimo, mas
continha um terço da população chilena.
Frei deu continuidade à reforma agrária, iniciada no tempo de Alessandri. Sua
intenção, segundo manifestou, era mudar a estrutura da sociedade rural do Chile,
31 Segundo O Globo, a Aliança para o Progresso foi idealizada por John F. Kennedy, lançada no dia 13 de março de 1961, quando o presidente americano, num discurso em Washington, reconheceu a necessidade de integração e crescimento autossustentado para todo o continente. A aliança esboçou uma cartilha de boas intenções em apoio à América Latina, sob a rica proteção dos Estados Unidos, interessados em conter o comunismo. 32Chilenização, Tradução nossa.
26
baseada no grande latifúndio e na hierarquia social, na qual predominavam os
grandes proprietários, e dar acesso à propriedade da terra àqueles que nela
trabalhavam, a fim de aumentar a produção agropecuária e a produtividade do solo
(BANDEIRA, 2008, p. 111).
A criação de sindicatos rurais foi permitida, fazendo-se aumentar de 201 sindicatos em
1966, para 510 em 1970 (BANDEIRA, 2008, p. 172). Porém, o plano de redistribuição de
terras de Frei não cumpriu sua proposta de absorver 100 mil famílias. O resultado foi um
grande aumento de sindicatos em meio a uma não resposta de demanda por parte do governo:
“Nos anos de 1968 e 1969 o movimento camponês radicalizou-se [...] alguns reclamos dos
trabalhadores rurais, não atendidos evoluíram para greves gerais e ocupações de terras, com
exigência de desapropriação” (BANDEIRA, 2008, p. 112).
Essa crescente mobilização da população rural acabou por gerar descontentamento nos
setores conservadores chilenos. Segundo a direita, a tentativa de fazer pequenas reformas
acabou por abrir caminho para atos contra a propriedade, que ameaçava tornar o ambiente
propício para um avanço comunista. Não conseguindo lidar com esse hiato, Frei acabou por ir
abandonando, aos poucos, suas reformas para não perder o apoio dos conservadores.
[...] o tímido reformismo democrata-cristão ficou no meio do caminho, vacilando,
recuando diante das dificuldades das reformas que tratava de realizar, favorecendo o
esclarecimento e aguçamento de contradições seculares com dificuldade de se
expressar (SADER, 1991, p. 47).
Em 1970, o Chile passou por novas eleições, e voltou a se polarizar politicamente
entre direita e esquerda. Salvador Allende vinha novamente como candidato, agora pela
União Popular (UP), que agora somava dois grupos saídos da DC, junto ao Partido Socialista
e o Partido Comunista. Pela direita, o candidato era novamente Alessandri, e da DC o
candidato foi Radomiro Tomic, com a proposta de seguir as reformas, de certa forma,
abandonadas por Frei.
Desta vez, finalmente Salvador Allende chega ao poder, com a União Popular (UP). A
vitória teve uma margem de 30 mil votos de diferença com o segundo colocado, Alessandri.
Porém, a estrutura do sistema político chileno era feita para que as eleições presidenciais não
coincidissem com as parlamentares. Isso era feito propositalmente para moderar o poder do
executivo. Se o candidato eleito não alcançasse a maioria dos votos, mais de 50%, sua eleição
deveria passar pela aprovação do Congresso.
[...] antes mesmo de tomar posse, Allende teve de enfrentar grandes dificuldades –
legais e ilegais -, que prenunciavam os obstáculos que o sistema do poder reinante
impunha à aceitação de um governo como o dele, apesar de eleito conforme os
27
critérios estabelecidos pela Constituição vigente. Ao não dispor de maioria absoluta,
o congresso tinha que se pronunciar entre os dois primeiros colocados (SADER,
1991, p. 51).
A oposição, através do Congresso, viu aí a chance de não legitimar o governo de
Allende e escolher o candidato da direita, Alessandri. Porém, essa tentativa de não aprovar a
eleição de Allende se deparou com outro acontecimento, o general René Schneider,
comandante-em-chefe do Exército, assumidamente legalista, foi assassinado em uma
conspiração da extrema-direita33. Esse caso acabou por fazer com que Allende fosse indicado
ao cargo, porque seria muito óbvia a participação, nesse assassinato, dos políticos que se
pronunciassem contra a posse de Allende.
3.4 O Governo de Allende e o golpe de 1973
O governo de Allende, além das pressões internas, enfrentaria grande oposição do
governo norte-americano e da vizinhança, principalmente por parte do Brasil. A instalação de
um governo marxista na região representava uma ameaça para os interesses políticos e
econômicos norte-americanos e brasileiros. Aquele no governo do conservador Richard
Nixon, e seu Conselheiro de Segurança Nacional Henry Kissinger; e este com o governo do
general Médici, com seu chanceler Mario Gibson Barbosa, possuíam posições claras sobre o
governo da UP.
[...] não importava que Allende e a UP defendessem a via pacífica, constitucional,
chamada de “via chilena”, para a implantação do socialismo no país. Sua vitória
impulsionaria as tendências de esquerda na América Latina e afetaria profundamente
o equilíbrio estratégico mundial, naquela conjuntura de guerra fria, na medida em
que fortaleceria a posição da União Soviética no hemisfério ocidental, inclusive
porque Allende se dispunha a reorientar o fluxo das relações econômicas do Chile
para os países do Leste europeu, em detrimento dos interesses dos Estados Unidos (BANDEIRA, 2008, p. 127).
Do mesmo modo, o Brasil adotaria uma posição contrária ao governo de Allende. O
embaixador Antônio Cândido da Câmara Canto, que chefiou a representação brasileira em
Santiago entre 1968 e 1975, segundo Bandeira (2008), recomendou que o Brasil não deixasse
transparecer alguma predisposição por motivo ideológico, e como a Argentina tinha tomado
33 A intenção era criar um sentimento de caos e descontrole das Forças Armadas, para surgir uma oportunidade de intervenção, porém foi malogrado (BANDEIRA, 2008).
28
uma posição de apoio34 ao governo da UP, sendo um país fronteiriço, o Brasil deveria ao
menos manter uma atitude discreta, a fim de não causar constrangimentos.
A resposta do chanceler Mário Gibson Barbosa, identificado perfeitamente com a
ditadura militar exacerbada na presidência do general Emílio Garrastazu Médici
(1969 - 1974), foi absolutamente negativa: “[...] quero levar ao seu conhecimento
exclusivo que se torna impossível deixarmos de ter prevenção ideológica em relação
a um governo que se anuncia marxista e o será sem sombra de dúvida”35 (BANDEIRA, 2008, p. 167).
Salvador Allende começou seu governo no dia 4 de novembro de 1970, em meio a
uma situação de crise e caos no país. O Chile sofria uma grave dependência externa, tendo
uma dívida externa de US$ 4 bilhões36, maior parte contraída com os EUA. Dentre as
propostas da UP estava, segundo Sader (1991): criar uma nova ordem institucional, o Estado
Popular; construir uma nova economia, baseada em uma área de propriedade social e na
reforma agrária; realizar um grande avanço no plano social; promover a cultura e a educação;
conseguir a plena autonomia internacional37. O primeiro ano de governo aparentava dar bons
resultados econômicos e políticos para a UP:
O primeiro ano de governo de Allende foi marcado por um programa de reativação
da economia, baseado na utilização da capacidade ociosa, induzida pelo incremento
da demanda produzida pelo aumento dos salários. Colocou-se em prática um
processo de redistribuição de renda, que resultou num aumento de 61,7% da
participação dos salários no produto interno – um recorde para o país -, enquanto o
capital baixava de 50% para 37,2% sua participação. A inflação foi mantida sob
controle no primeiro ano. Avançou-se a nacionalização de empresas constantes da
lista de monopólios, assim como na nacionalização da grande indústria mineradora do cobre. Os bancos foram estatizados e avançou-se no processo de reforma agrária,
abandonado pelo governo de Frei (SADER, 1991, p. 55-56).
Porém, apesar de aparente boa saúde econômica no primeiro ano de governo, no final
do ano os sinais de crise começaram a aparecer. A burguesia chilena, apesar de aparente
aceitação das medidas de Allende, havia parado de investir no país, instruídos pela CIA em
uma spoiling action (BANDEIRA, 2008), por retaliação pela nacionalização de indústrias. No
início do segundo ano, a capacidade ociosa de economia já estava totalmente reabsorvida,
estagnando o aparente crescimento da economia.
34 Segundo Bandeira (2008), a Argentina, no governo do general Alejandro Lanusse, decidiu aproximar-se ao governo de Allende para frear a pretensão do Brasil na América do Sul. 35 Telegrama 230, secreto-urgentíssimo, expedido em 6/11/1970. a) Exteriores. DBP/600. (32) Situação política do Chile. Discurso do chanceler Mário Gibson Barbosa. Telegramas – Recebidos/Expedidos. Brasemb La Paz e Santiago. Secretos, 1970 apud BANDEIRA, 2008, p. 167. 36 Bandeira, 2008, p. 188. 37 Allende reatou relações diplomáticas com a União Soviética e Cuba como uma das primeiras medidas de seu governo (SADER, 1991).
29
Uma das saídas da burguesia chilena foi transferir seu capital para o Brasil. Segundo
Bandeira (2008, p. 286), “Logo após a eleição presidencial de 1970 [...] vários empresários
chilenos transferiram capitais para o Brasil e investiram na indústria de São Paulo”. Já nesse
momento os laços entre os empresariados começaram a se estreitar. Como exemplo, o
empresário chileno Luís Fuenzalida associou-se ao Grupo Gilbert Huber38, que transmitiram
sua experiência de como os civis deveriam atuar em conjunto com os militares para
desestabilizar o governo39.
Nesse período de estagnação, segundo Sader (1991), a produção de bens de consumo,
no intento de fugir dos congelamentos de preço no mercado formal, começou a ser destinada
ao mercado negro. Isso contribuiu para o desabastecimento no mercado chileno, que estava se
tornando crescente, principalmente de bens de consumo popular – ainda produzidos pela
iniciativa privada. As classes médias, antes contentes com aumento do seu poder aquisitivo,
começaram a afastar-se do governo, a medida que o desabastecimento ia aumentando.
O segundo ano foi marcado por esses impasses, que foram brecando sua capacidade de ação. Tais freios eram resultado da ação cada vez mais coordenada da direita, em
todos os seus escalões – o Partido Nacional, o grupo de extrema-direita Pátria y
Libertad (fundado logo depois do triunfo de Allende), a Democracia Cristã, as
FFAA, o Judiciário, as organizações empresariais, a grande imprensa, o governo
norte-americano, o governo militar brasileiro (SADER, 1991, p. 58).
No Brasil havia acontecido a Marcha da Família com Deus pela Propriedade. Os
chilenos, a partir do contato com empresariado brasileiro e financiamento da CIA
(BANDEIRA, 2008), fizeram mobilizações equivalentes, chamadas Marcha de las Cacerolas
Vacias e a Marcha por La Libertad40. Assim, os grupos radicais, em conjunto com a CIA e os
empresários brasileiros, aproveitaram-se do descontentamento das classes médias e altas com
as frequentes crises de desabastecimento - feitas por parte do empresariado industrial – para
fomentar o processo de derrocada do governo de Allende.
Outra mobilização feita a partir do exemplo brasileiro - por alguns empresários,
profissionais liberais, proprietários de terras e militares chilenos -, foi inspirada pelo IPES
(BANDEIRA, 2008). Foi criado um Centro de Estudios de La Opinión Pública, juntamente
38 Gilbert Huber Jr., em conjunto com o engenheiro Glycon de Paiva, organizaram o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), do qual participaram os generais Golbery do Couto e Silva e Heitor Herrera (BANDEIRA, 2008). 39Porém, segundo Bandeira (2008), os militares e empresários brasileiros não haviam sido os criadores da “fórmula para o caos”, a receita vinha da CIA. O que eles ofereciam era apoio financeiro e bélico e um modelo de como articular o ambiente interno, com táticas já testadas no Brasil. 40Marcha das panelas vazias e Marcha pela liberdade (BANDEIRA, 2008. Tradução nossa).
30
com um Grupo de Acción de Informaciónes, que tratavam de atrair o apoio de militares para a
causa anti-Allende. Também havia o Centro de Estudios Socio-Económicos (CESEC), que
tratava de cooptar as classes médias, disseminando pensamento neoliberal, com os quais se
identificava, por exemplo, Pedro Ibañez Ojeda:
[...] empresário e senador do Partido Nacional e sócio do grupo Adolfo Ibañez Cía,
coube também angariar recursos para a campanha contra Allende, dadas as suas
vinculações com o empresariado de São Paulo, de onde sua empresa importava
maquinaria agrícola e equipamentos industriais. Dentro das caixas, que saíam do
porto de Santos, eram contrabandeados os armamentos (metralhadoras e fuzis, entre
outros petrechos bélicos) para o Pátria y Libertad, no Chile (BANDEIRA, 2008, p.
289. Grifo nosso).
Mesmo com apoio bélico41, financeiro, logístico e político, segundo Bandeira (2008), a
conexão brasileira, apesar de frequentemente relatada, não foi fundamental na campanha
contra Allende, em comparação com o papel desempenhado pelos Estados Unidos. Porém,
segundo reportagem do Estado de S. Paulo, o que os golpistas do Chile almejavam não se
encontrava no modelo americano:
Os golpistas chilenos não queriam criar uma democracia nos moldes dos EUA, mas
uma ditadura militar como a instaurada no Brasil em 1964. Eles queriam recriar esse
Brasil no Chile para frear a "ameaça comunista" e "restabelecer a ordem". E foi isso
o que fizeram (O ESTADO DE S. PAULO, 2013).
Paralelo ao governo de Allende, o MIR e uma ala radical do PS, liderada por Carlos
Altamirano, faziam pressão para o governo subverter a estrutura de poder através do apoio das
massas. Eles não acreditavam na “via chilena”, mas sim em um processo revolucionário,
porém, segundo Bandeira (2008), o projeto do MIR nada tinha de realista. Defendiam uma
posição meramente ideológica, derivada de uma ideologia viciada, que não considerava as
condições objetivas e subjetivas da sociedade chilena. Além disso, o autor também considera
o intento de Salvador Allende incoerente para aquela realidade.
Havia um tanto de utopia no projeto de Allende e também do PCCh. Como promover uma revolução proletária, dentro das fronteiras nacionais do Chile,
cercado por países capitalistas, a maioria dos quais sob ditaduras militares, com o
suporte do capital financeiro internacional? (BANDEIRA, 2008, p. 100).
41Houve outra ocasião, onde o Brasil apoiou com material bélico. Em determinado ponto do conflito contra Allende, alguns membros da Patria y Libertad mais alguns membros de um reduto nazista, fundado em 1961, criaram uma Frente de Operações, a fim de ter uma força paramilitar para atuar contra Allende. Eles receberam do Brasil apoio econômico e armamentos, como granadas de mão e metralhadoras (BANDEIRA, 2008, p. 363).
31
Até 1973, segundo Sader (1991), os setores conservadores seguiram fazendo seus atos
de desestabilização do governo de Allende. Os empresários continuaram com o
desabastecimento, recusando-se até a distribuir a cesta básica que o governo fornecia aos
trabalhadores. Era uma preparação de terreno para um golpe de Estado. Os grupos de direita
recorreram a setores, como dos caminhoneiros, dos choferes e dos comerciantes, pequenos
proprietários em geral, seguidos de profissões tradicionalmente ligadas ao DC, como
profissões liberais, médicos, engenheiros, para realizar as spoiling operations.
Em 1973, segundo Sader (1991) a oposição a Allende se reunificou em nome de um
golpe militar. Na DC, a ala de extrema-direita tomou controle da direção do partido, com
Patricio Alwyn, favorável a derrubada do governo pelo meio militar. No mesmo ano, o
Congresso aprovou a “lei de controle das armas”, que permitia às Forças Armadas uma
intervenção caso fosse certificado que civis estavam se armando, como era defendido pelo
MIR, em resposta aos atentados da direita. Amparados por essa lei, as Forças Armadas já
começavam algumas ações militares no sul do país.
Allende teve uma última tentativa de manter a legalidade no país. Faria um plebiscito
a fim de dividir a oposição, pois caso a população escolhesse por não aceitar mais sua
liderança, o comando passaria a DC, na figura de Eduardo Frei. Porém, ele cometeu o erro de
consultar o general Pinochet sobre o plebiscito que seria feita no dia 11 de setembro de 1973.
Isso fez com que o golpe fosse adiantado para essa mesma data.
Com a completa desorganização da economia, agravada pela escassez de alimentos e
outros gêneros de primeira necessidade, como papel higiênico, paralisados os
transportes, estabelecido assim o caos no Chile, o golpe de Estado foi tecnicamente
desfechado pelas Forças Armadas, que se sublevaram, conjuntamente, como
instituição, para evitar a guerra civil (BANDEIRA, 2008, p. 549).
No dia 11 de setembro, de 1973, então, em menos de oito horas, as Forças Armadas,
representadas pela Junta Militar42, lograram derrocar o governo de Allende. O palácio de La
Moneda, cercado pelas forças golpistas, foi bombardeado pela Força Aérea do Chile, sendo
em parte destruído. Ali findava o modelo da UP, assim como a vida do presidente Allende,
42Segundo Bandeira (2008), constituída por Augusto Pinochet (Exército), Gustavo Leigh (FACH), César Mendoza (Carabineiros) e Almirante José Toribio Merino (Armadas).
32
que cometera suicídio43 dentro do palácio, antes de ser encontrado pelas forças militares que
haviam logrado destituí-lo do poder.
Segundo Bandeira (2008), sob pedidos do general Pinochet, um dia depois da
derrocada de Allende, o Brasil foi convidado oficialmente para ser o primeiro país a
reconhecer o novo governo no Chile. A resposta do chanceler Mário Gibson Barbosa foi
positiva, e junto com o embaixador Câmara Canto, trataram de algumas mínimas
formalidades, para realizar o reconhecimento no dia 12 de setembro de 1973. Esse
reconhecimento imediato ilustrava o quão próximos estavam o governo brasileiro e os
militares chilenos que planejavam aquele momento desde 1970.
4 Considerações finais
Devemos analisar a estrutura social histórica da América Latina para compreender os
golpes militares nas décadas de 1960-1970, no contexto de Guerra Fria. A disputa de classes,
refletidas, ora em disputas eleitorais, ora em disputas armadas, é fruto de uma estratificação
social secular, que somada as relações de poder no Sistema Internacional, polarizou agentes
internos, inclinando-os a estabelecer alianças formais e/ou ideológicas com os centros de
poder.
A aliança dos Estados Unidos com o Brasil, refletindo na incorporação da Doutrina de
Segurança Nacional, em 1964, foi um importante marco na América Latina. A partir de então
o Brasil, principalmente durante o governo Médici (1969-1974), trabalhou para tornar a
região propensa aos seus interesses nacionais. Além disso, o país havia sido um laboratório
das spoiling operations e covert actions, partes da “fórmula para o caos”, formuladas pela
CIA, e esse experiência seria repassada aos países vizinhos.
Graças ao apoio aos setores conservadores no Uruguai e na Bolívia, o Brasil havia
ajudado a formar uma América Latina aliada aos seus interesses e aos dos norte-americanos,
ou seja, da DSN, com a ascensão das classes conservadoras totalmente avessas à esquerda. A
influência que o Brasil teve em cada um desses golpes era resultado de seu poder militar
43 “Salvador Allende era uma alma forte e generosa. E, como um homem ético, tornou-se um herói trágico. Havia renunciado a si mesmo para expressar o geral, e imolou-se, como um cavaleiro da fé, ao ver a “via chilena” para o socialismo em ruínas, destroçada pelas Forças Armadas” (BANDEIRA, 2008, p. 543).
33
acentuado para a região, além de representar a intransigente ideologia de segurança, bem
aceita pelos setores conservadores vizinhos.
Quando houve o golpe no Chile em 1973, este país já estava cercado de ditaduras em
sua vizinhança. O papel do Brasil na culminação do golpe no Chile, então, pode ser
caracterizado pela contribuição do país em diminuir as condições objetivas externas chilenas
para consolidação de um governo de esquerda na região, pelo fomento de outras ditaduras,
como no Uruguai e na Bolívia. Além disso, prestou alguns auxílios pontuais entre agentes
internos dos países e apresentou-se como modelo da DSN na região. Esses elementos
contribuíram para derrubada do governo socialista de Allende.
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