a delação premiada no direito brasileiro

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- 1 - A DELAÇÃO PREMIADA NO DIREITO BRASILEIRO 1 1 INTRODUÇÃO Ante o quadro da segurança pública no Brasil, que há tempos vem se deteriorando a níveis inaceitáveis, buscou o legislador uma forma de diminuir a criminalidade – que gradativa e implacavelmente vem adquirindo crescente organização, conjugando violência, astúcia e sofisticação. Para tanto, introduziu, por meio da Lei nº 8.072/90 e, posteriormente, nas Leis nº 9.034/95, 9.080/95, 9.613/98, 9.807/99 e 10.409/02, o instituto da delação premiada no ordenamento jurídico pátrio. No Primeiro Capítulo, tratar-se-á da delação premiada na sua origem no sistema jurídico brasileiro, abordando, além, sua conceituação, sua natureza jurídica e sua valoração como prova. No Segundo Capítulo, serão analisadas as principais críticas dirigidas ao instituto, principalmente quanto à sua constitucionalidade e sua eticidade, e também os posicionamentos que defendem sua utilização. O Terceiro Capítulo tratará da delação premiada no Direito Brasileiro. Sua edição será contextualizada expondo-se uma breve análise acerca das disciplinas normativas que tratam do instituto no Brasil, bem como alguns aspectos de cunho prático e questionamentos polêmicos, como, por exemplo, seus requisitos e benefícios, o momento para a delação, dentre outros. Esse trabalho não visa esgotar a matéria, mas, valendo-se dos pontos de vista de renomados estudiosos do Direito, destina-se propor questões polêmicas dirigidas à figura da delatio, induzindo, destarte, a uma reflexão crítica acerca do tema. 2 CONSIDERAÇÕES GERAIS 2.1 BREVE HISTÓRICO 1 Artigo adaptado de monografia apresentada como exigência parcial para conclusão do curso e obtenção do grau de Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, tendo sido julgada adequada e aprovada com grau máximo por todos os membros da Banca Examinadora: profa. Fernanda Trajano de Cristo (orientadora), profa Lenora Azevedo de Oliveira e prof. Álvaro Vinícius Paranhos Severo.

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Delação premiada

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A DELAÇÃO PREMIADA NO DIREITO BRASILEIRO1 1 INTRODUÇÃO

Ante o quadro da segurança pública no Brasil, que há tempos vem se deteriorando a

níveis inaceitáveis, buscou o legislador uma forma de diminuir a criminalidade – que

gradativa e implacavelmente vem adquirindo crescente organização, conjugando violência,

astúcia e sofisticação. Para tanto, introduziu, por meio da Lei nº 8.072/90 e, posteriormente,

nas Leis nº 9.034/95, 9.080/95, 9.613/98, 9.807/99 e 10.409/02, o instituto da delação

premiada no ordenamento jurídico pátrio.

No Primeiro Capítulo, tratar-se-á da delação premiada na sua origem no sistema

jurídico brasileiro, abordando, além, sua conceituação, sua natureza jurídica e sua valoração

como prova.

No Segundo Capítulo, serão analisadas as principais críticas dirigidas ao instituto,

principalmente quanto à sua constitucionalidade e sua eticidade, e também os

posicionamentos que defendem sua utilização.

O Terceiro Capítulo tratará da delação premiada no Direito Brasileiro. Sua edição

será contextualizada expondo-se uma breve análise acerca das disciplinas normativas que

tratam do instituto no Brasil, bem como alguns aspectos de cunho prático e questionamentos

polêmicos, como, por exemplo, seus requisitos e benefícios, o momento para a delação, dentre

outros.

Esse trabalho não visa esgotar a matéria, mas, valendo-se dos pontos de vista de

renomados estudiosos do Direito, destina-se propor questões polêmicas dirigidas à figura da

delatio, induzindo, destarte, a uma reflexão crítica acerca do tema.

2 CONSIDERAÇÕES GERAIS

2.1 BREVE HISTÓRICO

1 Artigo adaptado de monografia apresentada como exigência parcial para conclusão do curso e obtenção do grau de

Bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais, tendo sido julgada adequada e aprovada com grau máximo por todos os membros da Banca Examinadora: profa. Fernanda Trajano de Cristo (orientadora), profa Lenora Azevedo de Oliveira e prof. Álvaro Vinícius Paranhos Severo.

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Apesar de recentemente introduzida no ordenamento jurídico pátrio contemporâneo –

a delação premiada conta com menos de duas décadas de existência – pode-se afirmar,

baseado no trabalho de Pachi2, que sua forma atual encontra verdadeira origem em época

muito mais longínqua, quando o Brasil ainda era colônia de Portugal e vigoravam as

Ordenações Filipinas.

São nos Títulos VI e CXVI do Livro Quinto dessas Ordenações que se encontra o

germe do instituto aqui estudado, onde havia previsão não só do mero perdão, mas também de

autêntico prêmio ao indivíduo que apontasse o culpado.

As Ordenações Filipinas, promulgadas no início do século XVII, vigoraram até o fim

do século XIX3, vigendo, portanto, à época da Inconfidência Mineira – ocorrida entre 1788 e

1792. O objetivo de tal movimento foi alcançar a independência do Brasil, transformando o

país em uma república independente. Como cediço, essa tentativa de revolução restou

frustrada pelas delações efetuadas por alguns de seus próprios integrantes, destacando-se entre

estas a do Coronel Joaquim Silvério dos Reis, que, mediante a promessa do perdão de sua

vultosa dívida com a Fazenda Real, entregou todos os planos de seus companheiros

inconfidentes, culminando no fim do conflito e na execução do alferes Joaquim José da Silva

Xavier, mais conhecido como Tiradentes, em 21 de abril de 17924.

Assim, fica nítido que a delação premiada já encontrava, nesta época, aplicação

prática no sistema jurídico brasileiro, bem como assumia uma conotação pejorativa, nas

palavras de Pachi5, “de traição, de falta de caráter e de companheirismo, fazendo sua grande

vítima o mártir Tiradentes [grifo da autora]”.

Desta feita, a delação prevista nas Ordenações Filipinas restou fadada ao

desaparecimento, como disse Jesus6: “em função de sua questionável ética, à medida que o

2 PACHI, Laís Helena Domingues de Castro. Delação Penal Premial. São Paulo: PUC, 1992. Monografia (Mestrado em

Direito Penal), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992. 3 ORDENAÇÕES Manuelinas e Ordenações Filipinas. História Aberta. Disponível em

<http://historiaaberta.com.sapo.pt/lib/lnk_ordena.htm> Acesso em 11 mar. 2006. 4 A INCONFIDÊNCIA Mineira. Desenvolvido pelo Almanaque Terra. Disponível em

<http://educaterra.terra.com.br/almanaque/inconfidencia/index_inconfidencia.htm> Acesso em 12 mar. 2006. 5 PACHI, Laís Helena Domingues de Castro. Delação Penal Premial. São Paulo: PUC, 1992. Monografia (Mestrado em

Direito Penal), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992. p. 8. 6 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 10,

n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 07 abr. 2006.

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legislador incentivava uma traição, acabou sendo abandonada em nosso Direito, reaparecendo

em tempos recentes”.

Sobre esta concepção da delação premial, não se pode deixar de citar Beccaria, que,

em meados do mesmo século XVIII, publicou a obra “Dei delitti e delle pene”. Nesta obra,

Beccaria fez referências contrárias aos delatores e traidores, no capítulo destinado ao estudo

das “Acusações Secretas” e quando trata do oferecimento de impunidade ofertada pelos

Tribunais ao cúmplice de um grave delito que delatar seus companheiros7.

No âmbito do direito comparado, a partir do início do século XX, temos o espanhol

Luiz Jiménez de Asúa com a obra “La recompensa como prevención general. El derecho

premial8”.

Neste trabalho publicado em 1915, como noticia Pisani9, Asúa faz referências a

Giacinto Dragonetti como sendo o pioneiro no direito premial com seu "Delle virtù e delle

premi", datado de 1836; cita também Bentham, que, por mérito de seu trabalho intitulado

"Teoria da pena e da recompensa" chega a ser considerado por Jiménez de Asúa como o

fundador do direito premial; e, por fim, menciona a contribuição de Raoul de La Grassérie,

autor da monografia "Direito Premial e Direito Penal".

Já no final da década de 70, com a expansão da problemática criminal terrorista e de

outros delitos de associação, surgiram no continente europeu, principalmente na Itália, normas

de caráter delacional, visando a colaboração do réu para facilitar a solução dos crimes desses

tipos10.

Estas regras foram criadas por meio de legislação de emergência, dada a manifesta

ineficiência das regras de cunho repressivo no combate desta criminalidade específica.

7 BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. São Paulo: Martins Fontes, 2002. Disponível em

<http://www.direitopenal.0catch.com/dp.htm> Acesso em 16 mar. 2006. 8 O termo "direito premial" foi utilizado por Rudolf Von Ihering, que previu um Estado incapaz de desvendar crimes,

diante das sofisticações e complexidades decorrentes da modernidade. Com base neste Estado ineficiente, Ihering preconizou: "Um dia, os juristas vão ocupar-se do direito premial. E farão isso quando, pressionados pelas necessidades práticas, conseguirem introduzir a matéria premial dentro do direito, isto é, fora da mera faculdade e do arbítrio. Delimitando-o com regras precisas, nem tanto no interesse do aspirante ao prêmio, mas, sobretudo, no interesse superior da coletividade". In: IHERING, Rudolf Von. A luta pelo direito. 23. ed. rev. Rio de Janeiro: Forense, 2004. p. 73.

9 PISANI, MÁRIO, 1986 apud PACHI, 1992, p.10-11.

10 PACHI, Laís Helena Domingues de Castro. Delação Penal Premial. São Paulo: PUC, 1992. Monografia (Mestrado em

Direito Penal), Faculdade de Direito, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 1992. pág. 12.

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Pioneiro, o modelo italiano serviu de exemplo aos outros países que sofreram com ações

terroristas de cunho político e subversivo. Entretanto, para o espanhol Rivas11, não atingiram

os resultados aguardados, pois não é sempre que as normas estrangeiras tornam-se um

instrumento idôneo ao serem adaptadas ao ordenamento receptor, que muitas vezes opera

sobre uma realidade bem distinta.

Ainda no direito comparado, conforme trabalho de Paz12, encontra-se diversas

normas de fomento da figura do colaborador da justiça arrependido. Assim, tem-se, por

exemplo, no Direito anglosaxão, o chamado witness crown (literalmente "testemunha da

coroa"13), que obtém imunidade (o grant of immunity) em troca de seu testemunho, e as

hipóteses de transação penal (plea bargaining14), que permitem ao imputado que testemunhar

contra os demais participantes uma redução da condenação; no direito italiano, para os

denominados collaboratori della giustizia ou pentiti, que contribuíram decisivamente – no

contexto da legislação excepcional das décadas de 70 e 80, anteriormente citada – no declínio

do terrorismo e das estruturas mafiosas no sul da Itália; aparecem ainda no direito dos países

de língua alemã (Alemanha, Suíça e Áustria), aonde são conhecidas como

Kronzeugenregelungen (regras do testemunho "principal" ou "da coroa"). Recentemente, no

moderno Direito Penal estas normas têm proliferado em todo mundo, principalmente em

setores graves da criminalidade como o crime organizado, o narcotráfico e o terrorismo. Na

Europa, apenas a Dinamarca as renunciou expressamente, apesar de a Alemanha ter

experimentado um retrocesso nesse sentido.

11 RIVAS, Nicolas Garcia. Motivación a la delación en la legislación antiterrorista: un instrumento de control sobre el

disenso político. In: Poder Judicial, número 10, 1984. p. 109. 12 PAZ, Isabel Sánchez García de. El coimputado que colabora con la justicia penal: Con atención a las reformas

introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, s.n., 2005, núm. 07-05, p. 3-5. Disponível em <http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-05.pdf> Acesso em 10 abr. 2006.

13 O réu passa de imputado à testemunha processual, ficando imune à persecução penal, em troca de sua colaboração no

processo. In: PAZ, Isabel Sánchez García de. El coimputado que colabora con la justicia penal: Con atención a las reformas introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, s.n., 2005, núm. 07-05, p. 3-5. Disponível em <http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-05.pdf> Acesso em 10 abr. 2006.

14 Acordo prévio realizado entre o juízo, o advogado de defesa e a acusação pública, que permitem ao imputado reduzir ou

até evitar sua pena em troca de sua confissão e colaboração no processo. In: PAZ, Isabel Sánchez García de. El coimputado que colabora con la justicia penal: Con atención a las reformas introducidas en la regulación española por las Leyes Orgánicas 7/ y 15/2003. Revista Electrónica de Ciencia Penal y Criminologia, s.n., 2005, núm. 07-05, p. 3-5. Disponível em <http://criminet.ugr.es/recpc/07/recpc07-05.pdf> Acesso em 10 abr. 2006.

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Em solo pátrio, sete diplomas legais vieram introduzir a política da delação premiada

no curto interregno da última década, sendo possível notar a intenção do legislador de

fomentar esta prática no processo penal15.

2.2 CONCEITO E NATUREZA JURÍDICA

O termo “delação premiada”, em um primeiro momento, não possibilita dar uma

definição acurada de seu verdadeiro significado. Para Aranha16, a delação trata-se da

“afirmativa feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido na polícia, e pela

qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a

participação como seu comparsa”. Pacheco Filho e Thums17 entendem que a delação

premiada “ocorre quando o indiciado, espontaneamente, revelar a existência da organização

criminosa, permitindo a prisão de um ou mais de um dos seus integrantes”. Já Jesus18

conceitua “delação”, como “[...] a incriminação de terceiro, realizada por um suspeito,

investigado, indiciado ou réu, no bojo de seu interrogatório (ou em outro ato)”. "Premiada",

porque, incentivado pelo legislador, é concedido um prêmio para o delator, que acaba por

resultar-lhe em benefícios, como por exemplo, a redução de pena, o perdão judicial, a

aplicação de regime penitenciário brando.

Sendo assim, a delação não é confissão strictu sensu, pois para sua configuração o

fato é tão somente dirigido a quem depõe. Ela também não se configura como mero

testemunho, porque quem o presta mantém-se eqüidistante das partes. Trata-se de um

estímulo à verdade processual, semelhantemente à previsão da confissão espontânea, sendo,

portanto, instrumento que ajuda na investigação e repressão de crimes19.

Analisando o instituto no conjunto de leis em vigor que o regulam pode-se concluir

que essa caracterização não é exata, conforme a opinião de Jesus20 e Gomes21, pois existem

15 ALVES, Fábio Wellington Ataíde. O retorno dos prêmios pela cabeça? Um estudo sobre a possibilidadede reperguntas

no interrogatório do co-réu delator, com enfoque a partir do direito de mentir e do novo ordenamento da delação premial. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 809, p. 446-464, 2003.

16 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 122.

17 PACHECO FILHO, Vilmar Velho; THUMS, Gilberto. Leis antitóxicos: crimes, investigação e processo: análise

comparativa das leis 6.368/1976 e 10.409/2002. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 155. 18 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 10,

n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 07 abr. 2006. 19 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, a. 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8105>. Acesso em: 5 abr. 2006.

20 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro . Jus Navigandi, Teresina, a. 10,

n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 07 abr. 2006.

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previsões onde não há, propriamente, uma “delação”, como no caso da Lei de Lavagem de

Capitais – 9.613/98 – onde, mesmo sem haver envolvimento de terceiros, há o prêmio, caso o

agente possibilite a “localização de bens, direitos ou valores objetos do crime”.

Destaca-se que o genérico “delação premiada” será utilizado no presente trabalho por

ser este o termo empregado pela maior parte da doutrina, mesmo entre os que fazem sua

distinção da “confissão premiada”, como nos casos dos autores citados anteriormente.

2.2.1 O Instituto como Causa de Extinção da Punibilidade

Com o advento das Leis 9.613/98 e 9.807/99, foi possibilitado ao juiz aplicar a

delação como causa de extinção de punibilidade do agente, reconhecendo que o acusado

merece a concessão do perdão judicial.

O perdão judicial é norma pela qual o magistrado, em que pese a prática de delito

pelo acusado, deixa de aplicar a pena devido a presença de justificadas peculiaridades. É, para

Nucci22, a legítima "clemência do Estado para determinadas situações expressamente

previstas em lei, [...], ao serem preenchidos certos requisitos objetivos e subjetivos que

envolvem a infração penal".

Para Mendroni, estas hipóteses implicam, aparentemente, em uma espécie

diferenciada de "perdão judicial", porque, segundo o conceito original desta forma de

extinção da punibilidade, ela procura "[...] deixar de punir aquele que tenha sofrido

conseqüência pessoal tão grave decorrente da sua própria conduta, que se pode considerar por

aplicada e cumprida sua pena"23. No caso da delação premiada, o agente não sofre nenhuma

conseqüência pessoal. O perdão, neste caso, decorre apenas da colaboração com a justiça.

Por fim, o perdão judicial concedido, sendo causa de extinção da punibilidade,

constitui instrumento de despenalização, descabendo, destarte, a inclusão do nome do réu no

rol dos culpados e sua condenação em custas, conforme já pacificado na jurisprudência.

21 CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei

9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 343-344. 22 NUCCI, Guilherme de Souza. Código penal comentado. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.

23 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Editora Juarez de

Oliveira, 2002. p. 52

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2.2.2 O Instituto como Causa de Diminuição da Pena

Presente a possibilidade de redução de pena do réu em todas as previsões legislativas

da delação premiada, resta firmar a posição jurídica que o instituto apresente nesta situação:

se é atenuante, circunstância judicial ou causa de diminuição de pena.

Exclui-se, de plano, a figura da atenuante, levando em consideração que a delação

premiada não se encontra expressa nos artigos 65 e 66 do Código Penal e que as atenuantes

não apresentam o valor exato do quantum a ser reduzido da pena, diferentemente das

hipóteses de delação, que têm os limites da referida redução variando entre um sexto a dois

terços. Também pode-se eliminar a hipótese da delação como circunstância judicial, já que

esta não está descrita no artigo 59 do referido código, que alude sobre a dosimetria da pena.

Resta, portanto, concluir-se que a delação premiada é causa especial de diminuição de pena,

sendo possível, assim, que a fixação da reprimenda fique abaixo do mínimo legal, de acordo

com a posição dominante no seio pretoriano.

2.3 VALORAÇÃO DA DELAÇÃO COMO MEIO DE PROVA

Quanto ao valor atribuído à delação como prova, existe forte divergência doutrinária

e jurisprudencial. Alguns atribuem-na força incriminadora, enquanto outros a consideram

como mera prova indiciária, devendo ser respaldada nas demais provas dos autos24.

Para Capez25, a delação possui "o valor de prova testemunhal na parte referente à

imputação e admite reperguntas por parte do delatado (Súmula n. 65 da Mesa de Processo

Penal da USP)". Em sentido contrário, Aranha26 aduz que “a chamada do co-réu, como

elemento único de prova acusatória, jamais poderia servir de base a uma condenação,

simplesmente porque violaria o princípio constitucional do contraditório”.

Nota-se, de imediato, que este entendimento foi proferido antes da vigência da Lei

10.792/2003, que alterou o Código de Processo Penal, concedendo natureza contraditória ao

24 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, a. 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8105>. Acesso em: 30 abr. 2006.

25 CAPEZ, Fernando. Curso de processo penal. 9. ed. ver. e atual. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 289.

26 ARANHA, Adalberto José Q. T. de Camargo. Da prova no processo penal. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1999. p. 125-126.

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interrogatório, e, conseqüentemente, maior valor como prova. É neste sentido a opinião de

Jesus27:

A delação (não-premiada) de um concorrente do crime por outro, em sede policial ou em juízo, denominada "chamada de co-réu" ou "confissão delatória", embora não tenha o condão de embasar, por si só, uma condenação, adquire força probante suficiente desde que harmônica com as outras provas produzidas sob o crivo do contraditório (STF, HC n. 75.226; STJ, HC n. 11.240 e n. 17.276). [...] O mesmo raciocínio deve ser aplicado à "delação premiada": não se pode dar a ela valor probatório absoluto, ainda que produzida em juízo. É mister que esteja em consonância com as outras provas existentes nos autos para lastrear uma condenação, de modo a se extrair do conjunto a convicção necessária para a imposição de uma pena [grifo nosso].

Observa-se que a jurisprudência só atribui maior valor probatório à delação quando,

além do delator indicar seus cúmplices, assumir sua própria culpa. Não se pode deixar de

considerar o apelo que o prêmio punitivo tem ao acusado, podendo gerar suspeitas quanto à

veracidade das informações prestadas. É uma ressalva que Malatesta28 não deixa de fazer,

conforme transcrição abaixo:

Sempre que, repetimos, a acusação em sentido genérico do cúmplice se apresente como desagravo do acusado acusador, a suspeita na veracidade deste é legítima. Disto deriva que esta suspeita se tornará imensa quando prometida a impunidade pela revelação dos cúmplices. O impulso para mentir é tão forte que a lógica se opõe a fazer menção de tal chamada de cúmplice, cujo preço é a impunidade do delator.

Apesar da vigorosa reserva efetuada pelo doutrinador, entende-se ser esta relevável,

dado que o alcance de um resultado é requisito essencial da grande maioria das hipóteses de

delação premiada contemporânea, conforme constatar-se-á no decorrer deste trabalho.

3 A DELAÇÃO PREMIADA SOB A VISÃO ÉTICA E CONSTITUCIONAL NO

SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

3.1 JUSTIFICATIVA DA DELAÇÃO PREMIADA ATRAVÉS DA CONSTITUIÇÃO

FEDERAL DE 1988

Notórios, desde a introdução da delação premiada no sistema jurídico brasileiro, os

inflamados debates entre os jurisconsultos que este instituto vem causando. Para muitos, além

27 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 10,

n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 07 abr. 2006. 28 MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A Lógica das Provas em Matéria Criminal. [s.l.]: Conan, 1995. v. 2, p. 208-

209.

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de ser antiético, ele não encontra respaldo na dogmática do sistema jurídico penal brasileiro.

Para alguns, como no caso de Moreira29, ele é desnecessário, porque já existe no sistema

brasileiro a figura da atenuante genérica do artigo 65, III, b, além do arrependimento eficaz –

artigo 15 – e do arrependimento posterior – artigo 16 – todos previstos no Código Penal.

Contudo, outra corrente de doutrinadores entende que o referido instituto encontra-se

de acordo com o ordenamento jurídico e atende aos preceitos insculpidos na constituição30.

Sendo assim, pode-se afirmar que todos os dispositivos que previram o prêmio à

delação são instrumentos direcionados a promover a segurança e a justiça (direitos que,

conforme o preâmbulo da Constituição Federal de 1988, devem ser assegurados pelo Estado

Democrático), pois permitem à perseguição penal um recurso sólido para combater à

criminalidade organizada e a impunidade no Brasil.

Nesse passo, infundada as críticas análogas ao pensamento de Pereira31, que julga

insuficiente conceder tamanho poder à discricionariedade do juiz para apreciar a presença ou

não dos requisitos para concessão do prêmio delacional porque “como se sabe, deixar à

apreciação de uma única pessoa um critério que poderá deixar impune criminoso tão perigoso

à já indefesa sociedade é critério dos mais temerários”. Utilizando-se as palavras de Monte32,

tal posicionamento deixa claro a crença dominante de que o juiz é mero aplicador da lei que deve ser clara, objetiva e possuir um único sentido, aquele sentido dominante no meio jurídico e que, na quase totalidade das vezes, reproduz o sistema político e econômico que interessa à classe dominante no país.

Assim, existindo cidadãos com direitos fundamentais exigíveis do Estado, caberá ao

Poder Judiciário aplicar as normas da Constituição quando provocado, avaliando as normas

29 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Delação no Direito Brasileiro. Revista Síntese de Direito Penal e Direito Processual Penal, Porto Alegre, n. 19, p. 25-9, abr.-mai. 2003.

30 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 31 PEREIRA, Alexandre Demetrius. Lei de proteção: às testemunhas ou aos criminosos?. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n.

34, ago. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1004>. Acesso em: 11 abr. 2006. 32 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001.

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infraconstitucionais “agora não mais ‘livremente’, no sentido do descompromisso ideológico,

mas ‘de acordo com a Constituição”33.

3.1.1 O Princípio da Individualização da Pena e a Delação Premiada

O princípio da individualização da pena está gravado no inciso XLVI do artigo 5º da

Constituição Federal34. Para a realização dessa individualização, imprescindível a atividade

do legislador e do juiz, cujas tarefas compreendem, segundo Boschi35, a de “definir o crime,

indicar as espécies de penas e apontar os limites”, para o primeiro e a de “eleger a pena dentre

as possíveis, mensurá-la dentro dos limites e, por último, presidir o processo executório da

pena que vier a ser concretizada.”

Parece evidente que as hipóteses de delação premiada proporcionam ao juiz os

critérios que deverão ser analisados para a concessão do prêmio e estes embasam-se,

principalmente, na apreciação do grau de reprovabilidade do agente. Outrossim, quanto maior

o mérito e mais vigoroso os efeitos da colaboração do agente, menor será a censurabilidade de

sua conduta criminosa.

Da mesma forma, é possível que a personalidade do criminoso que contribuiu para a

investigação se mostre mais apta a aceitar o apelo dos valores do ordenamento jurídico e que

predominam no meio social. Sendo assim, se uma das finalidades da pena é a ressocialização

do agente, a delação premiada provê estímulo para que este passe a incorporar uma postura

em maior conformidade com o meio social, motivo esse, pelo qual uma reprimenda mais

amena torna-se indispensável36.

O que acontece é que a finalidade retributiva da pena está profundamente entalhada

na sociedade, fazendo com que haja uma compreensível resistência a permitir que o benefício

do perdão judicial seja concedido por meio da delação premial, bem distante das outras

33 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001.

34 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988.

35 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 1ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2000. p. 59. 36 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001.

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clássicas hipóteses que permitem o perdão, quando as conseqüências da infração atingem o

próprio agente de forma tão grave, que a sanção penal acaba por se tornar desnecessária37.

3.1.2 Aspectos da Política Criminal no Estado Democrático de Direito Concernentes à

Delação Premiada

A delação premiada é mecanismo de política criminal para opor-se à criminalidade

crescente e organizada e diminuir a impunidade, já que, para Maierovitch38: “a política

criminal direciona-se à prevenção e repressão dos ilícitos”.

Seguindo esse ponto de vista, e levando em consideração que as regras de política

criminal devem evoluir juntamente da sociedade, fica claro que o Brasil há muito necessitava

de mecanismos que aperfeiçoassem a persecução penal. E a delação premial, sem romper com

nenhum dogma de direito penal e sem descaracterizar a natureza retributiva da pena, resume-

se em um desses procedimentos que buscam encurtar a solução dos processos39.

Tendo a pena finalidade retributiva, preventiva e ressocializadora, Monte40 entende

que o instituto objeto deste trabalho preenche todas estas finalidades, pois o delator, por ter

contribuído com as investigações, acaba por demonstrar um menor grau de reprovabilidade,

devendo, em decorrência, receber uma menor censurabilidade – individualizando assim sua

pena – e a delação premiada, ao estimular a contribuição com a justiça, serve para

ressocializar o agente e inibir futuras ações criminosas e estimular os beneficiados a

manterem-se integrados à sociedade – estando de acordo, portanto, com a finalidade da pena.

Não se pode deixar de destacar a necessidade de se oferecer um prêmio ao delator,

dado o nítido risco que uma traição traz aos criminosos, normalmente vingativos41. E são tão

comuns e tão efetivas estas retaliações que Costa Júnior42, acertadamente, prevê a raridade das

delações.

37 BOSCHI, José Antônio Paganella. Das penas e seus critérios de aplicação. 1ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado,

2000. p. 130. 38 MAIEROVITCH, Walter Fanganiello. Apontamento sobre a política criminal e a plea bargaining. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, n. 678, 1992, p. 301.

39 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 40 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 41 AKAOWI, Fernando Reverendo Vidal. Apontamentos sobre a delação. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 707, p.

430-432, 1994. p. 431. 42 COSTA JÚNIOR, Antônio Vicente da. A proteção do réu colaborador. Disponível em:

<http://www.amperj.org.br/artigos/view.asp?ID=43> Acesso em: 06 mai. 2006.

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Finalmente, Monte43 ressalva que poderão surgir declarações falsas produzidas pelos

pretensos colaboradores. Não haverá o que temer nestes casos, pois o juiz “verificará a

procedência das informações, como sempre fez na apreciação de todos os meios de prova,

desde a confissão até a chamada do co-réu”.

3.2 A ETICIDADE DA DELAÇÃO PREMIADA

Reside aqui talvez a discussão mais polêmica sobre este assunto. Como se fez

menção anteriormente, diversos juristas debatem se a conduta de delatar com o intuito de

receber um prêmio estaria de acordo com a ética vigente. Moreira44 faz dura crítica contra a

utilização do instituto, pois este estimula a amoralidade, podendo levar a ordem jurídica à

corrupção e à promiscuidade.

Franco45 segue na mesma direção, citando García-Pablos de Molina e Francisco

Bueno Arus, e declarando que falta à delação premiada um fundamento “minimamente ético”,

pois lastreada unicamente em razão de sua utilidade, sem levar em consideração os custos que

possa apresentar a todo sistema legal, construído com base na dignidade da pessoa humana.

Gomes46, por sua vez, defende ser um equívoco pedagógico enorme colocar na

legislação dispositivos que concedem prêmios à um traidor, porque assim estaremos

difundindo uma cultura de um Direito como instrumento de antivalores, onde o fim acaba

justificando os meios. E é exatamente a esta idéia exarada por Ferrajoli47, que faz breve

dissertação sobre este assunto, sustentando que a prática da delação premiada resulta

“inevitavelmente [n]a corrupção da jurisdição, [n]a contaminação policialesca dos

procedimentos e dos estilos de investigação e de juízo, e [n]a conseqüente perda de

legitimação política ou externa do Poder Judiciário”.

43 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 44 MOREIRA, Rômulo de Andrade. Delação no Direito Brasileiro. Revista Síntese de Direito Penal e Direito Processual Penal, Porto Alegre, n. 19, p. 25-29, abr.-mai. 2003.

45 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Anotações sistemáticas à Lei 8072/90. 4 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000. p. 253. 46 GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2. ed., São Paulo: RT, 1997. p. 165.

47 FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Rev. dos Tribunais, 2002. p. 486-487.

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Por outro lado, posiciona-se em sentido oposto outra parte da doutrina. Azevedo48,

por exemplo, pondera que “o agente que se dispõe a colaborar com as investigações assume

uma diferenciada postura ética de marcado respeito aos valores sociais imperantes, pondo-se

debaixo da constelação axiológica que ilumina o ordenamento jurídico e o meio social.”

Para Monte49, o certo é que “com a delação o criminoso rompe com os elos da

cumplicidade e com os vínculos do solidarismo espúrio, sendo a sua conduta menos

reprovável socialmente, por isso merecedor do benefício do perdão judicial ou da redução de

sua pena”.

Silva50 defende que, acerca da moralidade do instituto, este apresenta dupla

vantagem: “permite ao Estado quebrar licitamente a lei do silêncio que envolve as

organizações criminosas, assim como colaborar para o espontâneo arrependimento de

investigado ou acusado”. E pode-se dizer que esta última opinião está em perfeita harmonia

com a mens legis, conforme podemos extrair do item 54 da Exposição de Motivos da Lei

9.613/9851.

Nesse passo, não se pode deixar de citar Alves52, que presta sua conclusão sobre o

assunto, alegando que, passadas as críticas feitas ao instituto – muitas vezes românticas –

“resta a realidade demarcada por um conjunto de normas ‘vigentes’ que objetivam emprestar

maior vigor ao processo penal, ante a açodada desordem que acomete a sociedade,

desacreditada que está das soluções judiciárias até então ocorridas sob forte inflação

legislativa”.

Ora, deduz-se que, não obstante os posicionamentos contrários, resta assente que a

delação premiada contém em sua essência elevado propósito, pois trata-se de oportunidade

concedida ao delinqüente de assumir sua culpa e contribuir com a justiça no combate à

48 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 83, p. 6,

out. 1999. 49 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 50 SILVA, Eduardo Araújo. Da moralidade da proteção aos réus colaboradores. Boletim IBCCrim. São Paulo, n. 85,

dezembro de 1999. 51 MAIA, Rodolfo Tigre. Lavagem de dinheiro: lavagem de ativos provenientes de crime: anotações às disposições

criminais da lei nº 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004. 52 ALVES, Fábio Wellington Ataíde. O retorno dos prêmios pela cabeça? Um estudo sobre a possibilidadede reperguntas

no interrogatório do co-réu delator, com enfoque a partir do direito de mentir e do novo ordenamento da delação premial. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 809, p. 446-464, 2003.

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funesta criminalidade. Neste mesmo ângulo, o entendimento de Casali53 de que a delação

premiada, ao contrário de uma traição, é normalmente uma manifestação positiva de lealdade

ao bem-comum, lealdade aos direitos, e possui, sim, elevado valor ético.

Contudo, reforça-se que deverá haver um controle judicial rígido para aplicação

deste instituto, a fim de evitar qualquer constrangimento em relação à vontade do colaborador.

Por outro lado, imprescindível uma forte precaução no recebimento da delação,

principalmente porque o legislador brasileiro não criminalizou a falsa colaboração como fez o

italiano54. Dessa maneira, a delação premiada é instrumento de inegável importância na

investigação da criminalidade, considerando os moldes que esta tem apresentado

hodiernamente. Havendo o devido controle judicial e cuidando-se para que não ocorram

abusos por parte de agentes do Estado em sua aplicação prática, ela deverá, sempre que

possível, ser utilizada55.

4 A DELAÇÃO PREMIADA NA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA – ANÁLISE DAS

PRINCIPAIS LEIS

4.1 DISPIPLINAS NORMATIVAS

4.1.1 Lei 8.072/90 – Lei dos Crimes Hediondos

A Lei 8.072/90 previu duas hipóteses de delação premial, ambas como causa de

diminuição de pena. A primeira delas está contida no artigo 7º, que incluiu o § 4º no artigo

159 do Código Penal, nos seguintes termos: “Se o crime é cometido por quadrilha ou bando, o

co-autor que denunciá-lo à autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena

reduzida de um a dois terços”. Após, em 1996, a Lei n. 9.269 alterou esse parágrafo para sua

redação atual: “Se o crime é cometido em concurso, o concorrente que o denunciar à

autoridade, facilitando a libertação do seqüestrado, terá sua pena reduzida de um a dois

terços”.

53 CASALI, Alípio. A denúncia como ato ético. Estado de Direito, Porto Alegre, março de 2006.

54 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, a. 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8105>. Acesso em: 30 abr. 2006.

55 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, a. 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8105>. Acesso em: 30 abr. 2006.

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Depreendem-se daí os requisitos da diminuição de pena desse parágrafo: a) a

execução do delito de extorsão mediante seqüestro por duas ou mais pessoas; b) a delação –

que facilite a libertação do seqüestrado – realizada por um dos concorrentes à autoridade.

A segunda hipótese de delação premiada na Lei dos Crimes Hediondos encontra-se

no parágrafo único de seu artigo 8º: “Parágrafo único. O participante e o associado que

denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando seu desmantelamento, terá a pena

reduzida de um a dois terços.”

Têm-se, nesse caso, como requisitos para aplicação do instituto: a) a existência de

uma quadrilha ou bando formada para a prática de crimes hediondos ou equiparados; b) a

delação da existência dessa quadrilha ou bando, por um de seus integrantes, e que possibilite

seu desmantelamento, à autoridade.

Importante destacar-se a utilização da expressão “participante e associado” pelo

legislador, havendo, segundo parte da doutrina, uma distinção entre os agentes. Nesse passo,

Monteiro56 afirma que ambos os agentes poderiam sofrer a redução da pena. “O associado,

nas penas dos dois crimes. O participante, no crime praticado”.

Entrementes, há quem tenha um entendimento diferente quanto ao alcance do

benefício. É o caso de Gonçalves57: “no caso de concurso material entre o crime de quadrilha

e outros delitos praticados por seus integrantes, a redução da pena atingirá apenas o primeiro

(quadrilha)”. Acredita-se que o propósito do parágrafo único do artigo 8º é premiar apenas o

delinqüente que, com sua denúncia, possibilitou o desmantelamento da quadrilha da qual fazia

parte.

4.1.2 Lei 9.034/95 – Lei de Combate ao Crime Organizado

A delação premiada, chamada aqui de “colaboração espontânea”, está prevista no

artigo 6º desta lei: “Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de

um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de

infrações penais e sua autoria.”

56 MONTEIRO, Antônio Lopes. Crimes hediondos: texto, comentários e aspectos polêmicos. 7. ed. rev. atual. e ampl. São

Paulo: Saraiva, 2002. p. 170-171. 57 GOLÇALVES, Victor Eduardo Rios. Crimes hediondos, tóxicos, terrorismo, tortura. São Paulo: Saraiva, 2001. p. 24.

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Ab initio, vê-se que a norma se reporta explicitamente aos crimes cometidos pela

organização criminosa, devendo os efeitos da mitigação da pena restringirem-se à esses, não

abarcando os eventuais delitos de “quadrilha ou bando” ou “associação criminosa”58. A

utilização do termo ‘pena’, no singular, corrobora com esse raciocínio.

Têm-se, então, como requisitos para obtenção dessa benesse: a) a execução de crimes

praticados por organização criminosa; b) a colaboração espontânea do agente, que tenha

contribuído para o esclarecimento das infrações penais e também sua autoria.

Nota-se, imediatamente, a imprescindibilidade de que as informações prestadas pelo

colaborador não só tenham contribuído para o esclarecimento das ocorrências de infrações

penais, mas que também tenham viabilizado a descoberta dos efetivos autores dos delitos

em investigação. Para tanto, basta que o agente esclareça a existência da infração no tempo e

no espaço e indique as pessoas que dela participaram.

Verifica-se, ainda, uma lacuna a ser preenchida: a delimitação da expressão

“organizações criminosas”. Ironicamente, a Lei 9.034, apesar de criada para lidar com esse

assunto, não definiu juridicamente o que devemos entender por este conceito.

Baseada na redação dessa lei, os juristas pátrios concluíram, primeiramente, que uma

organização criminosa seria composta puramente pelos elementos típicos do crime comum de

quadrilha ou bando, presentes no artigo 288 do Código Penal, opinião expressa em

julgamentos do Superior Tribunal de Justiça59 e compartilhada por alguns doutrinadores,

como Siqueira Filho60. Mas, em pouco tempo, a doutrina e jurisprudência amadureceu o

conceito, utilizando como estrutura mínima da organização criminosa os elementos contidos

no delito de quadrilha ou bando, acrescidos de algumas particularidades, como organização,

58 Temos como exemplos do crime de associação criminosa os previstos no artigo 14 da Lei 6.368/76, bem como o artigo 2º

da Lei 2.889/56. 59 BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Habeas Corpus n. 5173. Antônio Nabor Areias Bulhões e Primeira Turma do

Tribunal Regional Federal da 2ª Região. Relator Ministro Anselmo Santiago. 12 de agosto de 1997. In: Diário da Justiça, Brasília, DF, 13 abr.1998. p. 156; e BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Ordinário em Habeas Corpus n. 5173. Henrique Ferreira da Silva Filho e Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Relator Ministro Cid Flaquer Scartezzini. 21 de maio de 1996. In: Diário da Justiça, Brasília, DF, 5 ago.1996. p. 263.

60 SIQUEIRA FILHO, Élio Wanderley de. Repressão ao crime organizado: inovações da Lei 9.034/95. 2. ed. Curitiba:

Juruá, 2003.

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planejamento empresarial, previsão de riqueza, uso de meios tecnológicos sofisticados e

hierarquia do grupo, por exemplo61.

4.1.3 Leis 7.492/86 e 8.137/90, alteradas pela Lei 9.080/95

A Lei Federal n º 9.080/95, de 19 de julho de 1995, inseriu o prêmio a delação nas

leis 7.492/86 e 8.137/90, que prevêem crimes cometidos contra o sistema financeiro nacional

e contra a ordem tributária, econômica ou as relações de consumo, respectivamente. Segue

abaixo transcrição da supracitada norma: “Nos crimes previstos nesta Lei, cometidos em

quadrilha ou co-autoria, o co-autor ou partícipe que através de confissão espontânea revelar à

autoridade policial ou judicial toda a trama delituosa terá a sua pena reduzida de um a dois

terços”.

Infere-se da redação legal os seguintes requisitos para a concessão do prêmio: a) o

cometimento, em concurso de agentes, de um dos crimes previstos nas leis 7.492/86 e

8.137/90; b) o co-autor ou partícipe deverá prestar espontaneamente informações às

autoridades que revelem toda a trama delituosa do crime cometido.

Encontra-se em "toda a trama delituosa" outra expressão incerta e notadamente

imprópria utilizada pelo legislador. Para Costa Júnior62, é “extremamente difícil e de cunho

subjetivo precisar o que seja 'toda a trama delituosa', em cada caso. Melhor seria que se

tivessem adotado parâmetros objetivos para aferir a valia da colaboração do agente, tais como

a indicação comprovada de co-autores ou partícipes, a indicação de provas do crime; a

narração pormenorizada do 'modus operandi' etc”. Tórtima63, mais sucinto, entende que a

confissão cabal dos fatos é suficiente para preencher o requisito entendido como a revelação

de "toda a trama delituosa". Na falta de uma definição legal, restará à jurisprudência a tarefa

de definir o conceito de “trama delituosa”, bem como caberá ao Ministério Público –

responsável pela eventual propositura de ações contra os co-autores – e ao juiz avaliarem, no

caso em concreto, se esta condição foi alcançada64.

61 GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2. ed., São Paulo: RT, 1997, p. 89.

62 COSTA JÚNIOR. Paulo José da; QUEIJO, Maria Elizabeth; MACHADO, Charles Marcildes. Crimes do colarinho branco: comentários à lei n. 7.492/86, com jurisprudência; aspectos de direito constitucional e financeiro e anotações à lei n. 9.613/98, que incrimina a "lavagem de dinheiro". 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002. p. 165.

63 TÓRTIMA, José Carlos. Crimes contra o sistema financeiro nacional: uma contribuição ao estudo da lei nº 7.492/86.

Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. 152. 64 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Editora Juarez de

Oliveira, 2002. p. 62.

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4.1.4 Lei 9.613/98 – Lei de Lavagem de Capitais

A delação premiada, chamada por essa lei de colaboração espontânea, encontra-se

prevista no § 5º de seu artigo 1º: “A pena será reduzida de um a dois terços e começará a ser

cumprida em regime aberto, podendo o juiz deixar de aplicá-la ou substituí-la por pena

restritiva de direitos, se o autor, co-autor ou partícipe colaborar espontaneamente com as

autoridades, prestando esclarecimentos que conduzam à apuração das infrações penais e de

sua autoria ou à localização dos bens, direitos ou valores objeto do crime”.

A redação do parágrafo deixa claros os requisitos necessários para obtenção do

benefício, comuns à maioria das hipóteses de delação premiada: a) existência de pelo menos

um dos crimes de "lavagem" ou ocultação de bens, direitos e valores; b) o autor, co-autor ou

partícipe desse crime deverá prestar espontaneamente esclarecimentos que conduzam à

apuração das infrações penais e de sua autoria, ou à localização dos bens, direitos ou valores

objeto do crime.

Os requisitos não apresentam maiores novidades em relação aos apresentados até

aqui. No entanto, destaca-se o rol de vantagens oferecidas ao colaborador, cuja multiplicidade

de opções era até então inexistente no ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas, figuram a

comum redução de pena – mas agora com o início obrigatório de seu cumprimento em regime

aberto – e as duas novas previsões: a substituição da pena privativa de liberdade por restritiva

de direitos e o perdão judicial.

Nesse sentido, gize-se que a lei de lavagem de capitais não proibiu a progressão de

regime, como regra geral. Por conseguinte, não há a menor dúvida que reconhecida a delação

premiada e concedida a redução da pena, o réu fará jus à progressividade de seu regime, nos

termos do artigo 33 do Código Penal e do artigo 112 da Lei de Execução Penal. No entanto,

não importará a quantidade da pena final fixada para aferição da possibilidade de progressão

do regime ou mesmo para a substituição da pena privativa de liberdade pela restritiva de

direitos, caso seja esta última outorgada (ficando, neste ponto, derrogados, para os específicos

crimes de lavagem de dinheiro, os artigos 33 e 43 do Código Penal)65.

4.1.5 Lei 9.807/99 – Lei de Proteção a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas

65 CERVINI, Raúl; OLIVEIRA, William Terra de; GOMES, Luiz Flávio. Lei de lavagem de capitais: comentários à lei

9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1998. p. 345-346.

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A Lei 9.807/99 criou, em seu capítulo I, normas para a organização e a manutenção

de programas especiais de proteção a vítimas e testemunhas ameaçadas, ato de inegável

importância para o desenvolvimento das investigações policiais, para a instrução processual e

para a diminuição da impunidade. Não obstante, no âmbito deste trabalho, seu grande feito foi

o que dispôs em seu capítulo II, que introduziu definitivamente no ordenamento jurídico o

instituto da delação premiada.

Ainda que já tivessem sido editadas normas semelhantes, a Lei 9.807/99 trouxe

verdadeiro avanço quanto à utilização do prêmio à delação. Isso, por duas razões principais:

aplicar-se a todos os crimes, sem as restrições de legislações anteriores em relação aos tipos

penais; e proporcionar proteção ao réu colaborador. Diz a lei, em seu artigo 13:

Art. 13. Poderá o juiz, de ofício ou a requerimento das partes, conceder o perdão judicial e a conseqüente extinção da punibilidade ao acusado que, sendo primário, tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e o processo criminal, desde que dessa colaboração tenha resultado:

I - a identificação dos demais co-autores ou partícipes da ação criminosa; II - a localização da vítima com a sua integridade física preservada; III - a recuperação total ou parcial do produto do crime. Parágrafo único. A concessão do perdão judicial levará em conta a

personalidade do beneficiado e a natureza, circunstâncias, gravidade e repercussão social do fato criminoso.

Vê-se que o artigo 13 prevê o benefício do perdão judicial enquanto o artigo 14 o da

redução de pena. Para a concessão do benefício do artigo 13, têm-se as seguintes condições:

a) a existência de crime cometido em concurso de pessoas; b) a colaboração voluntária e

efetiva do agente primário, que resultar na identificação dos demais co-autores ou partícipes

do delito, na localização da vítima com sua integridade física preservada e na recuperação

total ou parcial do produto do crime; c) as circunstâncias referentes à natureza do fato, forma

de execução, gravidade objetiva e repercussão social do crime deverão ser favoráveis, bem

como a personalidade do beneficiado.

Expostos esses requisitos, cumpre um exame mais detalhado. De início, verifica-se

que o delator deverá ser primário. Cabe também questionar se as condições dos incisos do

artigo 13 deverão ser satisfeitas cumulativamente ou alternativamente.

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Apesar de enérgicos posicionamentos em ambos sentidos, existem, ainda, aqueles

doutrinadores que não entendem nem por um, nem por outro. É o caso de Machado66, Monte67

e König68, que acreditam, utilizando as palavras deste último, que “[...] o art. 13 possui

condições cumulativas restritas ao tipo penal, vale dizer, uma cumulatividade temperada ou

condicionada [...] [grifo nosso]”.

Apesar dos fortes argumentos esposados por esta corrente, entende-se pela aplicação

extensiva do benefício, devendo haver o preenchimento alternativo dos requisitos, consoante

o posicionamento adotado por Damásio69, Leal70, Pereira71 e Azevedo72. Isso por dois

principais motivos: primeiro, pela forma incerta ou genérica que o legislador utilizou para

disciplinar a matéria: se o objetivo fosse limitar o âmbito de incidência da benesse, este teria

feito remissão expressa às hipóteses cabíveis. Segundo, diante da preterição pelo texto legal

da conjunção aditiva “e” ou da conjunção alternativa “ou” na exposição dos três incisos –

tornando impossível descobrir qual era a verdadeira intenção do legislador – resta fazer uso de

uma regra hermenêutica penal elementar: “a qual estabelece que não cabe ao intérprete afastar

a incidência de solução mais benéfica, quando a lei expressa e claramente não o fizer” 73.

Além destes requisitos acima citados, a concessão do perdão judicial fica submetida

ao exame obrigatório pelo juiz de um grupo de circunstâncias relativas ao crime: a

personalidade do agente, a natureza, gravidade e repercussão social do crime. Assim, o

benefício não poderá ser outorgado sem que estas circunstâncias do fato sejam consideradas

de forma positiva. Não poderia ser diferente, já que este prêmio deverá ser utilizado com

cautela e se apresentar como única solução de autêntica justiça, conforme sustenta Leal74.

66 MACHADO, Nilton João de Macedo. Lei n. 9.807/99: proteção à vítimas, testemunhas ameaçadas e acusados

colaboradores (delação premiada). Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/cejur/doutrina/delacaopremiada.htm>. Acesso em: 24 abr. 2006.

67 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 68 KÖNIG, Sergio Donat. Art. 13 da lei n. 9.807/99. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.8, n.91, p. 6, jun. 2000.

69 JESUS, Damásio Evangelista de. Perdão judicial - colaboração premiada: análise do art. 13 da Lei 9807/99: primeiras

idéias. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.82, p. 4-5, set. 1999. 70 LEAL, João José. A lei 9.807/99 e a figura do acusado-colaborador ou prêmio à delação. RT/Fascículos Penais, s.l, ano

89, v. 782, p. 443-458, dez. 2000. 71 PEREIRA, Alexandre Demetrius. Lei de proteção: às testemunhas ou aos criminosos?. Jus Navigandi, Teresina, a. 3, n.

34, ago. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=1004>. Acesso em: 11 abr. 2006. 72 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 83, p. 6,

out. 1999. 73 LEAL, João José. A lei 9.807/99 e a figura do acusado-colaborador ou prêmio à delação. RT/Fascículos Penais, s.l, ano

89, v. 782, p. 443-458, dez. 2000. 74 LEAL, João José. A lei 9.807/99 e a figura do acusado-colaborador ou prêmio à delação. RT/Fascículos Penais, s.l, ano

89, v. 782, p. 443-458, dez. 2000.

- 21 -

Quanto à possibilidade de redução de pena, enuncia o artigo 14: “O indiciado ou

acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na

identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida

e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena

reduzida de um a dois terços”.

Do texto, é possível retirar-se apenas um requisito: a colaboração voluntária do

infrator com a investigação criminal na identificação dos co-autores, localização da vítima e

na recuperação total ou parcial do produto do crime.

Nota-se de pronto que o legislador não exigiu um resultado direto pela colaboração.

Entrementes, acredita-se que há certa facultatividade para sua concessão, pois é necessária

que esta colaboração seja efetiva. Importante não confundirmos efetividade com eficácia. É a

lição de Azevedo75, que leciona ser efetiva a delação em que há a “a vontade de contribuição

com o trabalho de investigação ou de colheita de prova judicial e a efetiva, real e permanente

participação do acusado ou condenado nesse trabalho de descoberta da realidade delituosa”, e

eficaz a delação que gerou resultados concretos.

Não fosse assim, o dispositivo mencionado acabaria por gerar situações

desproporcionais, pois o colaborador, com um esforço mínimo, facilmente conseguiria obter

uma redução de pena de um crime consumado na mesma proporção de uma tentativa, ou que

tenha havido um arrependimento posterior, como avisa Machado76.

4.1.6 Lei 10.409/02 – Lei Antitóxicos

A recente Lei Antitóxicos – Lei 10.409/02 – trouxe o dispositivo que buscou

disciplinar pela primeira vez no direito brasileiro o instituto da colaboração premiada, mais

ampla do que a delação premiada, por decorrer de acordo entre o representante do Ministério

Público e o investigado colaborador na fase pré-processual77.

75 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 83, p. 6,

out. 1999. 76 MACHADO, Nilton João de Macedo. Lei n. 9.807/99: proteção à vítimas, testemunhas ameaçadas e acusados

colaboradores (delação premiada). Disponível em: <http://www.tj.sc.gov.br/cejur/doutrina/delacaopremiada.htm>. Acesso em: 30 abr. 2006.

77 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 80.

- 22 -

Apesar da louvável tentativa, a simplicidade desta norma não comporta a magnitude

da colaboração premiada – a lei não prevê como se dará a formalização deste acordo e seu

conteúdo, por exemplo. Por outro lado, por tratar de tema que extrapola os limites

configurados neste trabalho, deixa-se de produzir um estudo pormenorizado deste

dispositivo78. Passa-se, então, à investigação do § 3º do artigo 32, mais pertinente ao objeto da

presente monografia:

§ 3o Se o oferecimento da denúncia tiver sido anterior à revelação, eficaz, dos demais integrantes da quadrilha, grupo, organização ou bando, ou da localização do produto, substância ou droga ilícita, o juiz, por proposta do representante do Ministério Público, ao proferir a sentença, poderá deixar de aplicar a pena, ou reduzi-la, de 1/6 (um sexto) a 2/3 (dois terços), justificando a sua decisão.

Observa-se que aqui o legislador não fez referência a um acordo entre o acusado

colaborador e o representante do parquet, abandonando a idéia de cooperação premiada, pois

exclui a possibilidade do Ministério Público assumir compromisso com o colaborador. Esse é

o parecer de Silva79.

Nesse passo, este autor ainda entende que o legislador fez menção expressa à uma

prévia proposta do Ministério Público para permitir que o juiz aplique os benefícios legais.

Trata-se, deste modo, de perdão judicial ou causa de diminuição de pena sui generis, pois

“vinculados à uma proposta do Ministério Público”80. Em sentido contrário é o parecer

Boschi81 e de Pacheco Filho e Thums82, que entendem não haver “[...] qualquer óbice para

que o juiz, mediante a análise das provas colhidas durante a persecução criminal, de ofício ou

a requerimento do acusado, [...] conceda um ou outro benefício [...]”.

Feitas essas assertivas, podemos resumir as condições para a obtenção dos

benefícios: a) a revelação, por parte do acusado, que eficazmente identifique os demais

integrantes da organização criminosa ou a localização do produto, substância ou droga ilícita;

b) a proposta do agente ministerial ou o requerimento do réu, ressalvada a possibilidade

concessão de ofício pelo juiz.

78 Para um estudo mais aprofundado sobre o tema, cf. SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento

probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 77-86. 79 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 85.

80 SILVA, Eduardo Araújo da. Crime organizado: procedimento probatório. São Paulo: Atlas, 2003. p. 85.

81 BOSCHI, José Antônio Paganella. A Nova Lei Antitóxicos – Primeiras Impressões. Revista do ITEC. n. 07, p. 52, 2002.

- 23 -

Não se pode deixar de ressaltar que os requisitos para o benefício do perdão judicial

e a redução da pena possuem a singularidade de serem idênticos, não permitindo fazer-se uma

distinção de quando um e outro poderão ser concedidos. Apresentando uma possível solução

para este deslize do legislador, sugere Boschi83 que o perdão fique reservado para os casos

especiais, onde a revelação tenha produzido considerável ganho da Justiça.

4.2 ASPECTOS POLÊMICOS E QUESTIONAMENTOS DE ORDEM PRÁTICA

4.2.1 Direito subjetivo do acusado?

Existe divergência na doutrina quanto a ser o prêmio direito subjetivo público do

delator que preencher todos os requisitos legais objetivos e subjetivos. Com relação às

hipóteses de perdão judicial, Jesus84, Miguel e Pequeno85 e Leal86 são uníssonos ao afirmar,

nas palavras deste último, que “Não obstante a lei utilizar-se da forma verbal poderá, no

sentido semântico de mera faculdade, consolidou-se na doutrina e na jurisprudência o

entendimento jurídico de se tratar de um poder-dever, que obriga o Magistrado a conceder o

benefício sempre que as condições objetivas e subjetivas previstas no direito positivo

estiverem presentes no caso concreto sob exame judicial”.

Em direção contrária, seguem os pensamentos de Azevedo87, Monte88, Callegari89 e

Mendroni90: “[...] preenchidos os requisitos de ordem objetiva, postos expressamente em lei,

há dados de natureza subjetiva a serem apreciados judicialmente, consoante o prudente

arbítrio do Magistrado. Destarte, não reconhece singelamente o Magistrado, ao conceder o

perdão o ‘direito ao perdão’, mas bem antes o que a decisão jurisdicional ajuíza é o

merecimento do perdão judicial em face, inclusive, do atendimento dos requisitos legais”.

82 PACHECO FILHO, Vilmar Velho; THUMS, Gilberto. Leis antitóxicos: crimes, investigação e processo: análise

comparativa das leis 6.368/1976 e 10.409/2002. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p. 160-162. 83 BOSCHI, José Antônio Paganella. A Nova Lei Antitóxicos – Primeiras Impressões. Revista do ITEC. N. 07, p. 52,

2002. 84 JESUS, Damásio Evangelista de. Perdão judicial - colaboração premiada: análise do art. 13 da Lei 9807/99: primeiras

idéias. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.82, p. 4-5, set. 1999. 85 MIGUEL, Alexandre; PEQUENO, Sandra Maria Nascimento de Souza. Comentários à lei de proteção às vítimas,

testemunhas e réus colaboradores. Revista dos Tribunais. São Paulo: RT, n. 773, 2000, p. 439. 86 LEAL, João José. A lei 9.807/99 e a figura do acusado-colaborador ou prêmio à delação. RT/Fascículos Penais, s.l, ano

89, v. 782, p. 443-458, dez. 2000. p. 450. 87 AZEVEDO, David Teixeira de. A colaboração premiada num direito ético. Boletim IBCCrim, São Paulo, n. 83, p. 6,

out. 1999. 88 MONTE, Vanise Röhrig. A necessária interpretação do instituto da delação premiada, previsto na lei 9.807/99, à luz dos

princípios constitucionais. Revista da Ajuris. Porto Alegre, vol. 82, p. 234-248, 2001. 89 CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre:

Livraria do Advogado, 2003. p. 178. 90 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Editora Juarez de

Oliveira, 2002. p. 52.

- 24 -

Por outro lado, com relação às hipóteses de mera redução especial de pena, doutrina

e jurisprudência são pacíficas ao definirem-nas como direito subjetivo do delator91:

CRIMINAL. HC. EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. [...] DELAÇÃO PREMIADA. INFORMAÇÕES EFICAZES. INCIDÊNCIA OBRIGATÓRIA. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. [...] A “delação premiada” prevista no art. 159, § 4º, do Código Penal é de incidência obrigatória quando os autos demonstram que as informações prestadas pelo agente foram eficazes, possibilitando ou facilitando a libertação da vítima. [...] (HC 35.198/SP, Rel. Ministro GILSON DIPP, QUINTA TURMA, julgado em 28.09.2004, DJ 03.11.2004 p. 215) [grifo nosso]

Interpretação diversa não poderia ser feita, dada a utilização uniforme na legislação

das expressões “a pena será reduzida” ou “terá a pena reduzida”, deixando nítido, dessa

maneira, a obrigatoriedade da redução da pena quando preenchidos seus requisitos pelo

delator.

4.2.2 Espontaneidade e Voluntariedade

Salienta-se que há clara diferenciação realizada pelo legislador brasileiro entre ato

voluntário e ato espontâneo. Na doutrina, Leal92 faz conceituação sintética da voluntariedade

e Gomes93, por sua vez, apresenta sua distinção desses preceitos. Em resumo, ato espontâneo

é o que nasce unicamente da vontade do agente, sem qualquer interferência alheia, sendo que

este, por si só, considera apropriado tomar certa conduta. Ato voluntário é aquele produzido

sem qualquer espécie de coação, independendo se a idéia inicial partiu ou não do agente94.

Sendo assim, para obtenção do benefício decorrente da delação premiada, é

necessário que esta tenha origem em ato voluntário ou espontâneo? A resposta irá variar de

acordo com a legislação utilizada. As leis 9.034/95, 7.492/86, 8.137/90, 9.613/98 e 10.409/02

exigem, expressamente, a espontaneidade, enquanto a Lei 9.807/99 satisfaz-se com a

91 Além dos autores anteriormente citados, cf. FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Anotações sistemáticas à Lei

8072/90. 4 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 252; e CALLEGARI, André Luís. Direito penal econômico e lavagem de dinheiro: aspectos criminológicos. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003. p. 178.

92 LEAL, João José. A lei 9.807/99 e a figura do acusado-colaborador ou prêmio à delação. RT/Fascículos Penais, s.l, ano

89, v. 782, p. 443-458, dez. 2000. 93 GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2. ed., São Paulo: RT, 1997, p. 168.

94 KOBREN, Juliana Conter Pereira. Apontamentos e críticas à delação premiada no direito brasileiro. Jus Navigandi,

Teresina, a. 10, n. 987, 15 mar. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=8105>. Acesso em: 6 mai. 2006.

- 25 -

voluntariedade do ato95. Dessa forma, fica ressalvada a aplicação subsidiária da Lei 9.807/99

– dado seu caráter genérico – nos casos previstos nos demais diplomas.

4.2.3 Limites Temporais e Autoridade Competente

Não há nos dispositivos legais que prevêem a delação premiada qualquer

determinação quanto ao momento processual adequado para sua utilização. Destarte, a

interpretação mais aceita é a substanciada nas palavras de Gomes96, que acredita na

possibilidade da delação mesmo após o trânsito em julgado da sentença condenatória.

Importante frisar-se que existem opiniões diversas sobre qual o meio processual

adequado para requerer a delação premiada durante a execução. Damásio opina pela revisão

criminal97, enquanto Freire Júnior98, por entender que “na hipótese de delação premiada na

fase de execução não há nada que ser rescindido na sentença original, nem há que se falar em

erro do juiz”, o meio mais apropriado seria uma simples petição direcionada ao juiz da vara de

execuções criminais.

Não se pode deixar de fazer referência à dotação de retroatividade das normas

premiais, apesar de não haver maiores dissensos doutrinários sobre este assunto. A concepção

usual é a de que a delação premiada cuida-se de norma penal mais favorável e, portanto, de

aplicação retroativa, atingindo, desse modo, inclusive os crimes cometidos antes da vigência

das normas que a prevêem99. Entendimento esse já confirmado pelo Superior Tribunal de

Justiça:

HABEAS CORPUS. PENAL. EXTORSÃO MEDIANTE SEQÜESTRO. VÍTIMA LIBERTADA POR CO-RÉU ANTES DO RECEBIMENTO DO RESGATE. RETROATIVIDADE DA LEI PENAL MAIS BENÉFICA DELAÇÃO PREMIADA. REDUÇÃO DA PENA. ORDEM CONCEDIDA. 1. A libertação da vítima de seqüestro por co-réu, antes do recebimento do resgate, é causa de diminuição de pena, conforme previsto no art. 159, § 4º, do Código Penal, com a redação dada pela Lei nº 9.269/96, que trata da delação premiada. 2. Mesmo que o delito tenha sido praticado antes da edição da Lei nº 9.269/96, aplica-se o referido dispositivo legal, por se tratar de norma de direito penal mais benéfica.

95 A Lei 8.072/90 é omissa quanto a esse aspecto, sendo indiferente se a delação é voluntária ou espontânea.

96 GOMES, Luiz Flávio e CERVINI, Raúl. Crime organizado. 2. ed., São Paulo: RT, 1997, p. 168.

97 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 10,

n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 7 mai. 2006. 98 FREIRE JÚNIOR, Américo Bedê. Qual o meio processual para requerer a delação premiada após o trânsito em julgado

da sentença penal condenatória? . Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 879, 29 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7638>. Acesso em: 7 mai. 2006.

99 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Anotações sistemáticas à Lei 8072/90. 4 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo:

Revista dos Tribunais, 2000. p. 253.

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[...] (HC 40.633/SP, Rel. Ministro ARNALDO ESTEVES LIMA, QUINTA TURMA, julgado em 01.09.2005, DJ 26.09.2005 p. 417) [grifo nosso]

Por outro lado, também não existem maiores questionamentos acerca de qual a

autoridade competente para receber a delação premiada. Esta deverá ser endereçada ao juiz de

direito, ao promotor público ou ao delegado de polícia, dependendo, obviamente, do momento

processual em que foi prestada100.

4.2.4 Extensão aos Concorrentes e Alcance da Delação Premiada

A respeito desse tópico, dois principais pontos exigem esclarecimento: primeiro, a

admissibilidade ou não de sua extensão aos concorrentes do ilícito cometido pelo delator;

segundo, a possibilidade do colaborador ser beneficiado pelas informações eficazes que

prestar sobre crimes praticados por outros agentes, dos quais não participou e que não se

relacionam com o ilícito por ele executado.

Quanto ao primeiro ponto, opina Jesus101 e, no mesmo sentido, a jurisprudência dos

tribunais superiores que é incomunicável o benefício da delação premiada, por tratar-se de

circunstância pessoal, sendo incomunicável e inadmissível sua extensão automática aos co-

réus.

Já a respeito do alcance desse instituto à fatos que não se relacionam com o ilícito

pratico pelo delator, Jesus102 não vê possibilidade de incidência do benefício da delação nestes

casos, “uma vez que as normas relativas à matéria exigem que o sujeito ativo da delação seja

participante do delito questionado (co-autor ou partícipe)”.

Mendroni discorda parcialmente desse posicionamento. Para ele, a delação pode

beneficiar os acusados que prestaram informações sobre delitos concernentes à outros

processos em apenas uma única hipótese: quando se tratar da delação premiada prevista na

Lei 9.034/95103, “pois, além de se tratar de Lei de cunho genérico, a literalidade de sua

100 FRANCO, Alberto Silva. Crimes Hediondos: Anotações sistemáticas à Lei 8072/90. 4 ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 253.

101 JESUS, Damásio Evangelista de. Perdão judicial - colaboração premiada: análise do art. 13 da Lei 9807/99: primeiras idéias. Boletim IBCCRIM. São Paulo, v.7, n.82, p. 4-5, set. 1999.

102 JESUS, Damásio E. de. Estágio atual da "delação premiada" no Direito Penal brasileiro. Jus Navigandi, Teresina, a. 10, n. 854, 4 nov. 2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7551>. Acesso em: 07 abr. 2006.

103 MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. São Paulo: Editora Juarez de Oliveira, 2002. p. 59.

- 27 -

expressão parece indicar: ‘... quando a colaboração espontânea do agente levar ao

esclarecimento de infrações penais e sua autoria’ [grifo do autor]”.

Em que pese esta opinião, o julgado a seguir transcrito coaduna com a crença do

primeiro doutrinador:

APELAÇÃO CRIMINAL – TRÁFICO DE ENTORPECENTES [...] REDUÇÃO DO QUANTUM DA PENA – IMPOSSIBILIDADE – EXTENSÃO DE BENEFÍCIOS CONCEDIDOS AO CO-RÉU EM PROCESSO DISTINTO – NÃO ACOLHIMENTO – [...] III - Considerando que o co-réu obteve os benefícios que diferenciaram sua pena em virtude da figura da delação premiada, não há que se falar em extensão dos seus efeitos ao presente processo, vez que distintas as duas situações. IV - Recurso improvido. (TJPE – ACr 95663-4 – Relª Desª Helena Caula Reis – DJPE 22.10.2003) [grifo nosso]

Desse modo, ressalvada a opinião de Mendroni, de regra o agente não poderá se

beneficiar da delação premiada quando esta referir-se à delitos não praticados por ele, mesmo

ela sendo eficaz, por ausência de expressa previsão legal.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os propósitos das leis que prevêem a delação premiada são os melhores possíveis,

pois, com a introdução de novos mecanismos em busca da verdade material, seguiu-se uma

tendência de política criminal mundial bem atendendo aos anseios e necessidades que

emergiam da sociedade.

Fica claro que a polêmica em torno da "delação premiada", em razão de sua

eticidade, nunca deixará de existir. Se, de um lado, representa importante mecanismo de

combate à criminalidade organizada, de outro, parte traduz-se num incentivo legal à traição.

Sendo assim, nota-se que as características particulares demonstradas pela

criminalidade organizada na atualidade exigiram uma severa adaptação na moderna

dogmática penal. O caráter multiforme do crime organizado tornou obsoletos os instrumentos

processuais normais para obtenção da prova, obrigando a criação de estratégias diferenciadas

para a obtenção da prova, na busca da eficiência penal.

- 28 -

Dentro desta adaptação, a colaboração ativa mostra-se um instrumento eficaz como

meio de obtenção de prova, já que o receio da vingança dificultou enormemente a obtenção da

prova oral nas investigações e processos que cuidam da criminalidade organizada.

Entretanto, dado o presente estado de evolução moral da Humanidade, apresenta-se

inaceitável qualquer espécie de ofensa à dignidade da pessoa humana, na procura por um

equacionamento do binômio “eficiência penal – garantias individuais”.

Imprescindível, pois, que, devido à falta de harmonia no regramento do instituto da

delação premiada, ocorra uma criteriosa análise de suas particularidades, para que não haja

abuso em sua utilização. Fica o Poder Judiciário, então, incumbido de conceder aplicação

efetiva ao instituto, pois são os operadores do direito os responsáveis pelas transformações

sociais através da interpretação e aplicação das leis, motivo pelo qual terão que ter coragem

suficiente para assumirem esta responsabilidade, dignificando o seu papel na sociedade.

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