a definiÇÃo dos direitos da solidariedade 28 - doutrina direitos humanos.pdf · revolução...

46
69 A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE FREDERICO S ILVEIRA E S ILVA* Sumário: 1 – Introdução; 2 – Breve síntese sobre a classificação dos direitos humanos em “gerações”; 3 – Possível diferença de significado das expressões “direitos da solidariedade” e “direitos de solidariedade”; 3.1 Significado do signo solidariedade; 4 Definição dos direitos econômicos, sociais e culturais; 5 – A imersão da Constituição Federal de 1988 nos direitos sociais; 6 – Considerações finais. 1 I NTRODUÇÃO O presente escrito visa a definir os direitos da solidariedade e, para tanto, utiliza-se de uma análise semiótica e histórica, bem como dos ensinamentos de KAREL VASAK, que “classifica” – com efeitos meramente didáticos – os direitos humanos em três gerações. Em linhas gerais, pode-se afirmar que existe uma diferenciação, de cunho significativo, entre a locução “direitos da solidariedade” e a locução “direitos de solidariedade” que ultrapassa o mero uso da preposição. Lastreado no lema da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, poder-se afirmar que o signo solidariedade encontra seu par significativo no signo igualdade e não no signo fraternidade. Seguindo os contornos constitucionais, os direitos da solidariedade correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais traçados pela Carta, e também enunciados pelo restante do ordenamento jurídico. Os direitos da * Advogado, integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos coordenado pelo Prof. Dr. Wagner Balera, mestrando em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES, pós- graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET e pós- graduando em Bioética pela Universidade de São Paulo – USP.

Upload: lyliem

Post on 07-Nov-2018

221 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

69

A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE

FREDERICO SILVEIRA E SILVA*

Sumário: 1 – Introdução; 2 – Breve síntese sobre a classificação dos direitos humanos em “gerações”; 3 – Possível diferença de significado das expressões “direitos da solidariedade” e “direitos de solidariedade”; 3.1 Significado do signo solidariedade; 4 – Definição dos direitos econômicos, sociais e culturais; 5 – A imersão da Constituição Federal de 1988 nos direitos sociais; 6 – Considerações finais.

1 – INTRODUÇÃO O presente escrito visa a definir os direitos da solidariedade e, para tanto,

utiliza-se de uma análise semiótica e histórica, bem como dos ensinamentos de KAREL VASAK, que “classifica” – com efeitos meramente didáticos – os direitos humanos em três gerações.

Em linhas gerais, pode-se afirmar que existe uma diferenciação, de cunho significativo, entre a locução “direitos da solidariedade” e a locução “direitos de solidariedade” que ultrapassa o mero uso da preposição. Lastreado no lema da Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, poder-se afirmar que o signo solidariedade encontra seu par significativo no signo igualdade e não no signo fraternidade.

Seguindo os contornos constitucionais, os direitos da solidariedade correspondem aos direitos sociais, econômicos e culturais traçados pela Carta, e também enunciados pelo restante do ordenamento jurídico. Os direitos da

* Advogado, integrante do Grupo de Estudos em Direitos Humanos coordenado pelo Prof. Dr.

Wagner Balera, mestrando em Direito pela Universidade Metropolitana de Santos – UNIMES, pós-graduado em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET e pós-graduando em Bioética pela Universidade de São Paulo – USP.

Page 2: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

70

solidariedade, mais simplesmente intitulados de direitos sociais, são, pois, todos os direitos que visam a implementar a igualdade.

Os direitos sociais – que se encontram amplamente delimitados na Constituição Federal de 1988 – enunciam mandamentos para implementação de políticas públicas que visem a concretizar o princípio da igualdade, representando, pois, direitos de aplicabilidade e de exigibilidade imediatas, amparados constitucionalmente pelo § 1° do artigo 5°. Em termos sistêmicos, é importante lembrar que Constituição trata dos direitos sociais de forma difusa, dada a amplitude de conteúdo próprio dos direitos aqui estudados.

2 – BREVE SÍNTESE SOBRE A CLASSIFICAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS EM “GERAÇÕES”

Cabe, por oportuno, enunciar uma breve síntese sobre a classificação dos direitos humanos que foi vastamente difundida pela doutrina, principalmente pela doutrina constitucional.

A classificação dos direitos humanos em gerações foi elaborada por KAREL VASAK, em 1979, e difundida por NOBERTO BOBBIO. Tal classificação possui como principal critério o marco histórico pertinente. Utiliza-se, também, da própria bandeira da Revolução Francesa. Assim, não é por coincidência que, inicialmente, falava-se1 em três gerações de direitos humanos.

Ultrapassando todas as críticas2 que podem ser feitas sobre a classificação dos direitos humanos em gerações – cujas principais seriam a que o signo

1 Já que atualmente se fala numa quarta geração de direitos fundamentais (PAULO BONAVIDES) ou até

uma quinta. 2 Um dos mais ferrenhos críticos desta classificação dos direitos humanos em “gerações” é ANTONIO

AUGUSTO CANÇADO TRINDADE. Ele rebate esta classificação, aduzindo, basicamente, que esta correspondente histórica não é própria dos Direitos Humanos e sim do Direito Constitucional, já que, segundo ele, no plano internacional os primeiros direitos fundamentais a serem assegurados foram os direitos econômicos e sociais. No Seminário Direitos Humanos das Mulheres, cujo tema, específico, foi A Proteção Internacional, evento da V Conferência Nacional de Direitos Humanos, acontecido na Câmara dos Deputados – DF, em 25 de maio de 2000, CANÇADO TRINDADE teve oportunidade de discorrer sobre a temática, enunciando que: “Em primeiro lugar, essa tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento jurídico, nem na realidade. Essa teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não corresponde à realidade. Eu conversei com KAREL VASAK e perguntei: ‘Por que você formulou essa tese em 1979?’. Ele respondeu: ‘Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da – bandeira francesa’ – ele nasceu na velha Tchecoslováquia. Ele mesmo não levou essa tese muita a sério, mas, como tudo que é palavra ‘chavão’, pegou. Aí NORBERTO BOBBIO começou a construir gerações de direitos, etc”. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm>. Acesso em: 22 abr. 2006.

Page 3: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

71

“geração” poderia dar margem à significação que os direitos humanos são estanques, onde um sucede o outro, como numa evolução, e que critério do “marco histórico” não corresponde, na sua totalidade, à historicidade dos direitos humanos –, não se pode negar que tal classificação tem utilidade, ao menos didática. E sendo útil, pode servir como classificação.

Assim, pode-se afirmar, em grosseiras linhas, que os direitos de primeira dimensão – para usar a expressão cunhada pela doutrina – são os direitos e garantias individuais e políticas, as chamadas liberdades públicas; os direitos de segunda dimensão são os relativos aos direitos econômicos, sociais e culturais; e por fim os de terceira geração são os direitos de fraternidade, que englobam o direito à paz, à qualidade de vida, ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, o patrimônio comum da humanidade, o direito ao desenvolvimento e à autodeterminação entre os povos.

Neste sentido, são importantes as palavras do Min. Celso de Mello consignadas em voto:

“Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais) – que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o princípio da igualdade, os direitos de terceira geração, que materializam poderes de titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais, consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos, caracterizados, enquanto valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial inexauribilidade” (STF – MS nº 22164-0/SP – Relator Min. Celso de Mello – unânime – DJ 17.11.1995, p. 39206).

Ao enunciar que os direitos de primeira dimensão se identificam com as liberdades negativas e os de segunda dimensão com as liberdades positivas, o Ministro acaba por esclarecer qual a natureza jurídica destes direitos. Nota-se, assim, que as liberdades públicas, como direitos subjetivos sob a proteção do Estado que o são – direitos de primeira geração –, enunciam um “poder de agir”; já os direitos sociais, econômicos e culturais enunciam um “poder de exigir” uma ação do sujeito passivo – o Estado. Estes direitos sociais são também direitos subjetivos, mas de exigir a prestação do sujeito passivo. É importante salientar que os direitos sociais – aqui enunciados como gênero – clamam pela igualdade em seu sentido material.

Para ajudar a esclarecer estas três “gerações” de direitos fundamentais, é oportuna a lição de CARLOS WEIS (1999, p. 38), que sustenta, “compreendendo os

Page 4: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

72

precedentes da Antiguidade e da Idade Média como os antecedentes dos direitos humanos, os diversos autores que se reportam a tal classificação entendem que a primeira geração dos direitos humanos surgiu com as revoluções burguesas dos Séculos XVII e XVIII, fruto do Liberalismo e de sua formulação pelo Iluminismo de base racional que dominou o pensamento ocidental entre os Séculos XVI e XIX”. E que “a chamada segunda geração dos direitos humanos surge em decorrência da deplorável situação da população pobre das cidades industrializadas da Europa Ocidental, constituída, sobretudo, por trabalhadores expulsos do campo e/ou atraídos por ofertas de trabalho nos grandes centros. Como resposta ao tratamento oferecido pelo capitalismo industrial de então, e diante da inércia própria do Estado Liberal, a partir de meados do Século XIX floresceram diversas doutrinas de cunho social defendendo a intervenção estatal como forma de reparar a iniqüidade vigente” (1999, p.38-39). Dando seguimento, o autor aduz que “em continuidade, recentemente teria surgido a chamada terceira geração dos direitos humanos, correspondendo a direitos concernentes a toda a Humanidade, como superação do mundo cindido entre Estados desenvolvidos e subdesenvolvidos. Como exemplos podem-se elencar os direitos ao meio ambiente sadio, à paz, ao desenvolvimento, à livre determinação dos povos, entre outros” (1999, p. 40). CARLOS WEIS enuncia, assim, os marcos históricos que inspiraram a “classificação” dos direitos humanos.

3 – POSSÍVEL DIFERENÇA DE SIGNIFICADO DAS EXPRESSÕES “DIREITOS DA SOLIDARIEDADE” E “DIREITOS DE SOLIDARIEDADE”

É sabido que estes direitos têm um movimento dialético, interagindo-se e complementando-se no decorrer da evolução social, ao passo que estes “conceitos” são redefinidos com o surgimento de novas necessidades.

Deste modo, numa análise semiótica, pode-se notar que as designações “direitos da solidariedade” e “direitos de solidariedade” querem significar temáticas distintas. Enquanto a primeira locução, “direito da solidariedade”, quer designar os direitos sociais, econômicos e culturais, promovendo a igualdade, mais propriamente a igualdade em seu sentido material – os chamados direitos de segunda dimensão. A segunda locução, “direitos de solidariedade”, aponta para os direitos chamados de terceira dimensão, que se atrelam à fraternidade.

É importante salientar que MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO intitula a seção 3 da sua obra de Os direitos de solidariedade, justamente a seção que vai tratar dos direitos globais – como a paz, o desenvolvimento e o meio ambiente –, o que remonta a diferença existente entre as locuções. É também nesta seção que MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1999, p. 58), ao tratar dos direitos de

Page 5: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

73

terceira dimensão, afirma que “foi no plano internacional que se desenvolveu esta nova geração”.

Outro indício de que haveria distinção entre estas duas locuções se mostra em tese de doutorado defendida na PUC-SP, cuja autora é ANA PAULA MARTINS AMARAL, já que ela intitula sua tese: “Direitos Humanos de Solidariedade na Organização das Nações Unidas: uma análise frente aos desafios do Século XXI”, tratando, nesse escrito, dos direitos de terceira dimensão.

Ao tentar formular um critério que não seja o empírico – de acordo com o uso dos signos já exposto acima –, pode-se afirmar que a locução “direitos da solidariedade” quer designar direitos ínsitos à soberania do Estado, ao passo que são prestações positivas a serem implementadas pelo Estado, enquanto a locução “direitos de solidariedade” quer designar direitos que devem ser realizados por todos Estados e, mesmo, por toda a humanidade. Advirta-se, de logo, que esta outra proposta não é imune a críticas.

3.1 Significado do Signo Solidariedade

É importante esclarecer que inicialmente o significado da solidariedade estava ligado à idéia de “filantropia” e “caridade”. A partir das noções de “dívida social” e “dever social”, AUGUSTO COMTE adverte que as funções sociais devem ser exercitadas com “escrúpulo”.

No entanto, lembra JOSÉ FERNANDO DE C. FARIAS (1998, p. 190), “é apenas no fim do Século XIX que encontramos a descoberta da solidariedade. A partir do fim do Século XIX, quando se fala de solidariedade, pretende-se, com essa palavra, designar algo bem diferente. Trata-se de uma nova maneira de pensar em relação indivíduo-sociedade, indivíduo-Estado, enfim, a sociedade como um todo”. E que “é somente no fim do Século XIX que aparece a lógica da solidariedade com um discurso coerente que não se confunde com ‘caridade’ ou ‘filantropia’” (1998, p. 190). Surgem, então, os traços de uma política social concreta, onde se quer ultrapassar a fase das simples garantias sociais.

4 – DEFINIÇÃO DOS DIREITOS ECONÔMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS

Ultrapassando estas considerações e focando o objeto deste estudo nos direitos sociais – aqui também entendidos como direitos da solidariedade –, podemos agora prosseguir com a enunciação.

Os direitos da solidariedade são os direitos econômicos, sociais e culturais. Essas três “categorias” se relacionam com estreita fronteira. Neste sentido, CARLOS WEIS (1999, p. 45) tenta definir estas “categorias” aduzindo que “outro

Page 6: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

74

grupo de direitos humanos é o dos econômicos, sociais e culturais. Sobre os dois primeiros diz JOSÉ AFONSO DA SILVA ser difícil discerni-los com nitidez. Os econômicos têm uma dimensão institucional, baseada no poder estatal de regular o mercado, em vista do interesse público. Os direitos sociais, como forma de tutela pessoal, ‘são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente, (...) que possibilitam melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais desiguais’. De outro lado, os direitos culturais são os que se relacionam aos elementos portadores de referências à identidade, à ação e à memória da sociedade brasileira, em suas várias expressões, compostos por bens físicos e espirituais”.

Historicamente, os direitos econômicos e sociais decorrem da crise vivida, principalmente nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, com o avanço do liberalismo político e econômico no fim do Século XIX que gerou profunda desigualdade social e desrespeito à condição de pessoa humana. Nesta época, o sistema liberal mostrou sua face mais cruel, ao passo em que garantia o grande e rápido acumulo de riquezas por uma pequena parte de indivíduos em detrimento de uma gama de pessoas que não tinham qualquer meio de defesa frente à opressão vivida.

Esta tensão entre a burguesia e o proletariado representava – como dito por KARL MARX – a luta de classes. Os ideais liberais3 daquela época pregaram a completa auto-regulação do mercado – mas não só do mercado –, era o Estado abstencionista.

As autoras CINTHIA ROBERT e DANIELLE MARCIAL (1999, p. 8) lembram que “o Estado liberal que apresentava como dogma o não-intervencionismo, o laissez-faire, surgiu após a Revolução Francesa”.

Sob esses ideais liberais foram abolidas as corporações de ofício, o justo preço cedeu espaço para o preço de mercado, foi implementada a liberdade de comércio e de profissão e a garantia da propriedade privada. Logo depois, a produção em massa, o maquinismo, os baixos “salários”, as condições de trabalhos degradantes, principalmente das mulheres e das crianças, etc. Todos estes fatores resultaram numa massa de miseráveis, formada, em sua maioria, por trabalhadores. Fatores que foram, indiscutivelmente, responsáveis pela grande tensão entre as classes, representando uma ameaça às instituições liberais.

3 JOSÉ AFONSO DA SILVA (2001, p. 163), ao analisar os ideais liberalistas daquela época, afirma que:

“O indivíduo era uma abstração. O homem era considerado sem levar em conta sua inserção em grupos, família ou vida econômica. Surgia, assim, o cidadão como um ente desvinculado da realidade da vida. Estabelecia-se a igualdade abstrata entre os homens, visto que deles se despojavam as circunstâncias que marcam suas diferenças no plano social e vital. Por isso, o Estado teria de abster-se. Apenas deveria vigiar, ser simples gendarme”.

Page 7: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

75

A classe oprimida, formada, eminentemente, por trabalhadores desempregados e por pessoas que migraram dos campos, começou a reivindicar uma série de direitos, entre eles o de participação política.

O clamor pelo sufrágio universal torna-se uma das importantes exigências dos trabalhadores. MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1996, p. 43) enuncia que “a pressão pelo sufrágio universal (dos homens, já que a sua extensão às mulheres é outra história) era irresistível porque contava com o apoio de todos os idealistas. Paulatinamente, os detentores do poder nos Estados mais desenvolvidos tiveram de ceder. E a cada passo de recuo, ampliava-se o número de postulantes da reforma, ou da revolução, política e social, bem como se intensificava a reivindicação do sufrágio universal”. Esta reivindicação provocou uma nova visão política, pois percebeu-se, nesse movimento, a possibilidade de elevar-se ao poder ou de perdê-lo.

A pressão da classe trabalhadora, com a ajuda de pensadores dos mais variados campos do conhecimento, principalmente as novas tendências socialistas e comunistas, muito contribuíram para a reestruturação do Estado.

Duas correntes propunham solucionar este conflito: uma pregava a reforma – utilizando-se da “razão” –, e outra corrente impunha a revolução – pelo uso da “força”. Não se afirma, aqui, que uma reforma seja exclusivamente ditada pela “razão” e, muito menos, que uma revolução tenha como pressuposto a “força”. Muito pelo contrário, já que a temida “revolução comunista” foi amplamente discutida pela doutrina, tendo como expoentes mais conhecidos KARL HEINRICH MARX e FREDERIC ENGELS, que elaboraram o Manifesto Comunista (1848). Como lembra JOSÉ AFONSO DA SILVA (2001, p. 164), “o Manifesto Comunista, que, pela sua influência, é comparado por HOROLD LASKI com a Declaração de Independência americana e com a Declaração dos Direitos de 1789, foi o documento político mais importante na crítica socialista ao regime liberal-burguês. A partir dele, essa crítica fundamentou-se em bases teóricas e numa concepção da sociedade e do Estado, e se tornou, por isso, mais coerente, provocando, mesmo, o aparecimento de outras correntes e outros documentos, como as encíclicas papais, a começar pela de Leão XIII, Rerum Novarum, de 1891”.

Alcança-se, ali, um ponto tal de pressão que ou se cedia – reconhecendo parte daquelas reivindicações – ou corria-se o grande “risco” de se perder toda a conquista – principalmente a riqueza – da classe burguesa.

As duas correntes que se propunham acabar com esta tensão eram: a reformista, que visava a mediar uma conciliação entre o Estado e o proletariado, são expressões desta visão o cristianismo social, o positivismo e o socialismo moderado; e na outra extremidade, a corrente revolucionária, com a proposta de

Page 8: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

76

extinção das classes, e numa forma extrema até do próprio Estado, pensamentos do marxismo e anarquismo, respectivamente.

A doutrina social da igreja apoiou o movimento reformista. Como expressão deste pensamento, o Papa Leão XIII formulou a Encíclica Rerum Novarum4 (1891) propondo a conciliação entre as classes (proletariado versus burguesia), enunciando que: “O erro capital na questão presente é crer que as duas classes são inimigas natas uma da outra, como se a natureza tivesse armado os ricos e os pobres para se combaterem mutuamente num duelo obstinado”.

Pode-se dizer, também, que o início da Encíclica Papal Rerum Novarum, demonstra que não só a burguesia estava amedrontada com a possibilidade de perder suas propriedades. A própria Igreja estava bastante amedrontada, já que era grande detentora de terras.

O repúdio pela Igreja da transformação da propriedade privada em propriedade coletiva é latente na encíclica citada. Lá está escrito que “esta conversão da propriedade particular em propriedade colectiva, tão preconizada pelo socialismo, não teria outro efeito senão tornar a situação dos operários mais precária, retirando-lhes a livre disposição do seu salário e roubando-lhes, por isso mesmo, toda a esperança e toda a possibilidade de engrandecerem o seu património e melhorarem a sua situação”.

A Encíclica enunciava a proteção da propriedade privada, já que o trabalhador convertia o excedente de seu salário em propriedade. Naquele momento histórico, as condições dos trabalhadores era de completa miséria. Não havia condições mínimas – quisera dignas – de trabalho, e ainda a remuneração era baixíssima – para não dizer quase nada. Inexistia excedente de remuneração para que o mesmo fosse convertido em propriedade.

Outra passagem da Encíclica que denota a preocupação em resquardar a propriedade privada. Onde enuncia-se: “Aliás, posto que dividida em propriedades particulares, a terra não deixa de servir à utilidade comum de todos, atendendo a que não há ninguém entre os mortais que não se alimente do produto dos campos. Quem os não tem, supre-os pelo trabalho, de maneira que se pode afirmar, com toda a verdade, que o trabalho é o meio universal de prover às necessidades da vida, quer ele se exerça num terreno próprio, quer em alguma parte lucrativa cuja remuneração sai apenas dos produtos múltiplos da terra, com os quais ela se comuta”. Seguindo este entendimento, o indivíduo que não produzia no campo para subsistencia poderia trabalhar para adquirir estes produtos. No entanto, se

4 Papa Leão XIII. Rerum Novarum. Disponível em:

<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_l-xiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html>. Acesso em: 21 abr. 2006.

Page 9: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

77

esquece de mencionar que não havia postos de trabalho para todas pessoas, e que muitos destes trabalhadores foram demitidos das fábricas no início da maquinização e, ainda, que boa parte dos camponeses migraram para as cidades, ajudando a compor a grande classe de miseráveis.

Aqui, faz-se oportuna a lição de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1996, p. 44) ao afirmar que “a crítica socialista tocou fundo quando denunciou o caráter ‘formal’ das liberdades reconhecidas nas Declarações. É a famosa crítica de MARX, segundo a qual o exercício dessas liberdades pressupunha condições econômicas – meios financeiros – sem as quais o indivíduo não poderia usufruir concretamente das mesmas. Ora, a maioria não tinha os meios necessários nem para viver dignamente”.

No mesmo sentido, JOSÉ AFONSO DA SILVA (2001, p. 163) denuncia que “de nada adiantava as constituições e leis reconhecerem liberdades a todos se a maioria não dispunha, e ainda não dispõe, de condições materiais para exercê-las”.

Sabe-se que a Encíclica Papal Rerum Novarum elenca uma série de direitos sociais – e, por isso, é documento importante no reconhecimento dos direitos sociais. Esta Encíclica propõe, ainda, melhores condições de trabalho e de salários, aduzindo que “quanto aos ricos e aos patrões, não devem tratar o operário como escravo, mas respeitar nele a dignidade do homem, realçada ainda pela do Cristão. [...] O que é vergonhoso e desumano é usar dos homens como de vis instrumentos de lucro, e não os estimar senão na proporção do vigor dos seus braços [...]”. Proíbe, também, que os patrões exijam de seus subordinados um trabalho superior às suas forças, em desarmonia com a sua idade ou sexo. Pugna pela caridade dos mais afortunados, enunciando que “mas, desde que haja suficientemente satisfeito à necessidade e ao decoro, é um dever lançar o supérfluo no seio dos pobres: ‘Do supérfluo dai esmolas’”.

Notam-se, também, traços de um Estado social descrito na Encíclica Rerum Novarum, no ponto em que se enuncia: “Como, pois, seria desrazoável prover a uma classe de cidadãos e negligenciar outra, torna-se evidente que a autoridade pública deve também tomar as medidas necessárias para salvaguardar a salvação e os interesses da classe operária. Se ela faltar a isto, viola a estrita justiça que quer que a cada um seja dado o que lhe é devido”. E que “a eqüidade manda, pois, que o Estado se preocupe com os trabalhadores, e proceda de modo que, de todos os bens que eles proporcionam à sociedade, lhes seja dada uma parte razoável, como habitação e vestuário, e que possam viver à custa de menos trabalho e privações”. Indica um salário mínimo, afirmando que: “Façam, pois, o patrão e o operário todas as convenções que lhes aprouver, cheguem, inclusivamente, a acordar na cifra do salário: acima da sua livre vontade está uma lei de justiça natural, mais elevada e mais antiga, a saber, que o salário não deve ser insuficiente para assegurar

Page 10: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

78

a subsistência do operário sóbrio e honrado”. Exige uma “previdência”, aduzindo que “é necessário ainda prover de modo especial a que em nenhum tempo falte trabalho ao operário; e que haja um fundo de reserva destinado a fazer face não somente aos acidentes súbitos e fortuitos inseparáveis do trabalho industrial, mas ainda à doença, à velhice e aos reveses da fortuna”. No mesmo documento encontra-se o pleito por uma jornada de trabalho condizente com as forças dos trabalhadores e de acordo com sexo e idade, e uma jornada diferenciada para trabalhos insalubres.

Há de se lembrar que boa parte da inspiração à pregação do Papa Leão XIII parte do pensamento de São Tomás de Aquino, baseando-se, pois, nos ideais da doutrina clássica do direito natural, com as propostas de bem comum e vida digna.

É importante mencionar que o primeiro enunciado prescritivo brasileiro que tratou de um direito à proteção social foi apontado pela Constituição Política do Império do Brasil de 1824, com a criação dos socorros públicos, disposto no inciso XXXI do artigo 179. Estabelece aquele dispositivo in verbis: “A Constituição também garante os socorros públicos”.

O significado da locução “socorros públicos” pode ser alcançado através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão francesa, de 1789, mais propriamente em seu artigo XXI, que enunciou: “Os socorros públicos são uma dívida sagrada. A sociedade deve a subsistência aos infelizes, seja fornecendo-lhes trabalho, seja assegurando os meios de existência àqueles que não estão em condições de trabalho”5.

Desta forma, os “socorros públicos” são instrumentos para concretização do bem-estar social e individual a ser alcançado pelo trabalho ou, na sua impossibilidade, por um sustento digno ao ser humano. No entanto, o enunciado do inciso XXXI do artigo 179 da Constituição Imperial de 1824 não foi implementado. Como lembra MIGUEL HORVATH JÚNIOR (2002, p. 20), “esta previsão constitucional não teve aplicação prática, servindo no plano filosófico para remediar a miséria criada pelo dogma da liberdade e da igualdade”. Mesmo diante destas críticas, a Constituição Imperial de 1824 pode ser considerada o primeiro documento constitucional a dispor sobre um direito social.

Registre-se, contudo, que o primeiro documento legal a dispor que o Estado deveria prestar proteção social aos necessitados foi o Poor Law Act, promulgado pela Rainha Isabel I, em 1601, na Inglaterra. O Professor WAGNER BALERA (2006, p. 108) lembra que “essa Lei dos Pobres, como resultou conhecida universalmente, garantia proteção aos carentes nas situações de enfermidade, invalidez e desemprego. Sistema gerido pelas paróquias, era sustentado por intermédio de uma 5 Texto extraído da nota do rodapé nº 1, MIGUEL HORVATH JÚNIOR (2002, p. 20).

Page 11: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

79

taxa obrigatória”. O Poor Law Act pode ser considerado o primeiro diploma a dispor sobre assistência social, ao instituir uma contribuição obrigatória para fins sociais.

Ainda neste regresso, marcando a derrubada da monarquia orleanista, deve-se destacar que a Constituição Francesa de 1848 – enunciada alguns meses depois do Manifesto Comunista de 1848 – positivou no seu § 8º do preâmbulo constitucional e no artigo 13 o “dever de assistência”. Atribuindo importância capital a este documento, MANUEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1996, p. 45) não titubeia em afirmar que “não faz dúvida, entretanto, que o principal documento da evolução dos direitos fundamentais para consagração dos direitos econômicos e sociais foi a Constituição francesa de 1848”.

Outros marcos históricos para o desenvolvimento dos direitos sociais foram a Constituição do México (1917), a Declaração Russa (1918) e o Tratado de Versalhes (1919) – assinado após a I Grande Guerra –, onde foi prevista a criação da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Por fim, mas de importância fundamental para os direitos econômicos e sociais, há de se lembrar da Constituição alemã de Weimar (1919). Tamanho é seu peso que MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1996, p. 41) enuncia que “ao término da I Guerra Mundial – todos o sabem – novos direitos fundamentais foram reconhecidos. São os direitos econômicos e sociais que não excluem nem negam as liberdades públicas, mas a elas se somam. Consagra-os a Constituição alemã de 1919, a Constituição de Weimar, que por isso ganhou imortalidade”. Nesta Carta estava previsto o direito de sindicalização, uma reforma agrária, a função social da propriedade, a gestão compartilhada das empresas, uma previdência social e a proteção do trabalho. Foi esse ideal que se pulverizou em várias outras Constituições, inclusive a brasileira de 1934 e de 1946.

A grande consolidação dos direitos sociais, econômicos e culturais aconteceu na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948). Lembra MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO (1996, p. 53) que são direitos sociais o “direito à seguridade, ao trabalho, à associação sindical, ao repouso, aos lazeres, à saúde, à educação, à vida cultural”. Esses direitos sociais unem-se aos direitos já conquistados na exigência de uma vida digna, onde a pessoa humana possa desenvolver suas potencialidades na coletividade. Como anota FLÁVIA PIOVESAN (2002, p. 148), “do primado da liberdade transita-se ao primado do valor da igualdade. O Estado passa a ser visto como agente de processos transformadores e o direito à abstenção do Estado, neste sentido, converte-se em direito à atuação estatal, com a emergência dos direitos a prestação social”.

Com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10 dezembro de 1948, o ideal social ganha sua maior sustentação internacional. Os direitos

Page 12: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

80

econômicos, sociais e culturais – ou somente direitos sociais aqui entendidos como gênero dos quais são espécies os já enunciados – estão previstos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, do artigo 22 ao artigo 28.

Sem qualquer critério que pudesse ser aqui exposto satisfatoriamente que não seja o simbólico – já que reúne a locução “direitos econômicos, sociais e culturais” e sua junção com a dignidade humana –, enunciemos o art. 22 da Declaração. Está lá disposto que: “Toda pessoa, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização, pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade e ao livre desenvolvimento da sua personalidade6”.

Tal enunciado prescritivo revela a finalidade dos direitos da solidariedade, que é, notadamente, a de possibilitar o desenvolvimento integral da personalidade humana.

5 – A IMERSÃO DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 NOS DIREITOS SOCIAIS

A Constituição Federal de 1988 está imersa nos direitos sociais, econômicos e culturais, do preâmbulo ao seu último artigo, literalmente.

No preâmbulo constitucional está enunciado que: “Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte Constituição da República Federativa do Brasil”.

Nota-se, pelo preâmbulo, que o Estado brasileiro é destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais. Lembre-se – como vimos – que a locução direitos sociais é gênero e quer designar aquelas três categorias de direitos – econômicos, sociais e culturais. Portanto, o Estado brasileiro visa a assegurar o exercício dos direitos sociais. Na verdade, o Estado deve, mesmo, proporcionar uma série desses direitos sociais, porquanto os direitos da solidariedade enunciam um poder de exigir do Estado uma prestação positiva. Deve, pois, mais que assegurar. Deve implementar.

6 Enunciado prescritivo retirado do sítio do Ministério da Justiça. Disponível em:

<http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 15 set. 2006.

Page 13: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

81

No último artigo da Constituição, o artigo 250 enuncia-se in verbis: “Com o objetivo de assegurar recursos para o pagamento dos benefícios concedidos pelo regime geral de previdência social, em adição aos recursos de sua arrecadação, a União poderá constituir fundo integrado por bens, direitos e ativos de qualquer natureza, mediante lei que disporá sobre a natureza e administração desse fundo”. Portanto, não é nenhum exagero afirmar que a Constituição de 1988 está imersa nos direitos sociais.

Nota-se, ainda, que a Lei Fundamental estabelece como fundamento da República Federativa – inciso IV do artigo 1º – “os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”. Enunciando, pois, que os valores sociais não são apenas requisitos do trabalho, mas também da livre iniciativa, já que o conectivo “e” não demonstra alternatividade, e sim cumulatividade.

Nestes termos, toda qualquer norma relativa à livre iniciativa tem como interpretação-fim o valor social. Este inciso IV do artigo 1º da Carta seria um direito econômico garantido nos moldes dos direitos de segunda geração. É neste sentido que, também, deve ser interpretado o artigo 170 da Carta, que enuncia: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios”.

A Constituição abre, ainda, um capítulo específico aos direitos sociais – Capítulo II do Título II, denominado de “Dos direitos e garantias fundamentais” – e em seu artigo 6º enuncia in verbis: “São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

Em título específico à ordem social – o Título VIII –, enuncia em seu artigo 193 que: “A ordem social tem como base o primado do trabalho, e como objetivo o bem-estar e a justiça sociais”. Logo no capítulo seguinte – Capítulo II –, encontram-se as disposições constitucionais acerca da seguridade social. Ainda neste título, agora no capítulo relativo à educação, à cultura e ao desporto – Capítulo III –, situa-se a seção II, que aborda a cultura, está lá o artigo 215, que enuncia in verbis: “O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. No artigo 216 e incisos está disposto o patrimônio cultural.

Deve-se lembrar que muitos desses direitos sociais, econômicos e culturais assegurados constitucionalmente são mandamentos para uma política social. O que deixaria margem à interpretação de que algumas normas definidoras de direitos sociais não teriam aplicabilidade imediata. Refutamos tal raciocínio, lembrando a

Page 14: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

82

lição de ALEXANDRE DE MORAIS7 (2003, p. 60), que, ao analisar a natureza jurídica das normas que disciplinam garantias e direitos fundamentais, aduz: “São direitos constitucionais na medida em que se inserem no texto de uma constituição cuja eficácia e aplicabilidade dependem muito de seu próprio enunciado, uma vez que a Constituição faz depender de legislação ulterior a aplicabilidade de algumas normas definidoras de direitos sociais, enquadrados entre os fundamentais. Em regra, as normas que consubstanciam os direitos fundamentais democráticos e individuais são de eficácia e aplicabilidade imediata”. O mesmo Autor indica que o próprio texto constitucional teria norma definidora de aplicabilidade imediata. É o que dispõe o § 1º do artigo 5º da Carta, que enuncia in verbis: “As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”.

Na falta de exercício dos direitos e liberdades constitucionais e das prerrogativas inerentes à nacionalidade, à soberania e à cidadania, direitos constitucionalmente reconhecidos por ausência de lei posterior que assegure a eficácia, a pessoa pode fazer uso do mandado de injunção para que o judiciário assegure seu direito.

Prevê também a Carta a ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão, que pode ser manejada pelos legitimados do artigo 103 da Constituição. Esta última ação pode provocar um mandamento do judiciário ao Poder competente para que adote as providências necessárias.

Tudo isso para resguardar a mais ampla eficácia e aplicabilidade dos direitos sociais, econômicos e culturais. Direitos que aqui convencionamos designar como direitos da solidariedade.

6 – CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluindo este escrito, que, em linhas gerais, tentou abordar a temática dos direitos da solidariedade, pode-se afirmar que os direitos sociais positivados são apenas exemplificativos, já que não se esgotam aqui, e nem em qualquer outro rol.

A dialética dos direitos e garantias fundamentais afeta, principalmente, os direitos da solidariedade, direitos sociais por excelência, na medida em que são redefinidos em sua interação, pela dinâmica da própria evolução humana.

Numa definição precária, podemos afirmar que os direitos da solidariedade são direitos que devem ser implementados pelo Estado com a finalidade de garantir o desenvolvimento integral da personalidade humana.

7 No mesmo sentido, JOSÉ AFONSO DA SILVA (2001, p. 184).

Page 15: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

83

A RELEVÂNCIA DO CONCEITO DE DIGNIDADE PARA A BIOÉTICA

RENATA SANTINELLI*

Sumário: 1 – Breves diretrizes sobre direitos humanos e Bioética; 1.1 Algumas considerações; 1.2 A Declaração Universal dos Direitos do Homem; 1.3 Bioética; 1.3.1 O nascimento de um neologismo; 1.4 Principialismo norte-americano; 1.4.1 Quatro princípios fundamentais; 1.4.1.1 Princípio da beneficência; 1.4.1.2 Princípio da não-maleficência; 1.4.1.3 Princípio da justiça; 1.4.1.4 Princípio da autonomia; 1.5 Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos – UNESCO; 1.5.1 UNESCO; 2 – A pessoa como fonte de valor; 2.1 O valor de cada um; 2.2 A pessoa humana; 2.3 A pessoa, o Direito e os direitos da personalidade; 3 – A dignidade humana e seu papel para a Bioética; 3.1 Dignidade humana: conceito; 3.2 A dignidade humana com o passar dos tempos; 3.3 A dignidade humana como princípio constitucional; 3.4 Dignidade humana e argumentação ética; 3.5 Dignidade humana e Bioética; 3.5.1 O utilitarismo norte-americano e a dignidade como conceito inútil; 3.6 A atual pauta bioética: a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO); 3.6.1 Dignidade e seu valor para a Declaração; 4 – Conclusão.

1 – BREVES DIRETRIZES SOBRE DIREITOS HUMANOS E

BIOÉTICA Os Direitos Humanos servem para este estudo como um alicerce, de onde

será extraída toda a teoria acerca da Dignidade Humana. A partir daí, necessário se faz conceituar brevemente a Bioética e sua situação atual para que se possa alcançar o objetivo principal do mesmo. Estipular a relevância do conceito de Dignidade para a Bioética.

* Mestre em Bioética pelo Centro Universitário São Camilo. Professora Titular da cadeira de Direito

da Faculdade de Serviço Social do Centro Superior de Ensino e Pesquisa de Machado – MG.

Page 16: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

84

1.1 Algumas Considerações

Desde o início da civilização, grandes mudanças ocorreram no pensar e no agir humanos. Nossos ancestrais, a partir da experimentação, chegavam a conclusões simples, mas de extrema importância para a época em questão. A exemplo, a possibilidade de manipular o fogo. Experimentando, o homem primitivo descobriu que poderia cozinhar a carne, aquecer sua morada, aprimorar ferramentas e utensílios, afugentar animais, mas também descobriu que o fogo pode machucar e até matar.

Assim, a humanidade vai se desenvolvendo, se aprimorando e basicamente esta ainda é a chave para toda descoberta. O seu uso pode ser benéfico, mas se usado de forma ilícita pode se tornar um grande mal.

Há de se ressaltar também os acontecimentos que marcaram o Século XX, em especial destaque a II Guerra Mundial. Ao se abrirem os arquivos desse momento histórico, descobriram-se grandes atrocidades realizadas. Por uma ideologia de “purificar” a raça humana, exterminaram-se milhões de judeus, negros, homossexuais, doentes mentais. Para se testarem situações improváveis, realizavam experimentos grotescos, fora de padrões éticos, e inúteis, culminando tudo com a detonação das bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, em 1945. Perda total da racionalidade, onde o homem conhece sua face mais cruel e violenta.

Nessa escalada de avanços, nada se compara ao grande salto dado pela humanidade a partir da segunda metade do Século XX. Avanços tais que geraram uma série de dolorosos questionamentos morais. “A capacidade humana de destruir a biosfera e de manipular as espécies ou de intervir, tecnologicamente, em sua evolução e em sua própria constituição indicavam um novo período no qual os valores e os princípios éticos clássicos passariam a ser relativizados em âmbitos diversos da ação humana” (MOSER; SOARES, 2006, p. 68).

Para o homem para fazer uma reflexão mais profunda sobre si, sobre sua existência e coexistência com os semelhantes. Nesse contexto e pela primeira vez na história, as sociedades se reúnem para formular um documento, este que preserve o maior bem que cada um pode ter: a vida.

Nasce a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948, onde acontece verdadeira transformação do pensamento acerca da vida humana e do planeta como um todo. Um primeiro passo para se chegar ao que conhecemos hoje por Bioética.

“A princípio, a dignidade humana havia sido invocada, ao sair da II Guerra Mundial, para conter o poder dos Estados sobre as pessoas. O desenvolvimento do aparelho legislativo, sob o impulso do Movimento

Page 17: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

85

dos Direitos Humanos e das reivindicações sociais, trouxe progressivamente ao indivíduo, nas democracias ocidentais, garantias contra a usurpação de diversos poderes, estatais, e também econômicos e financeiros. Ora, a medicina para a qual era reivindicado um acesso igual para todos, em razão dos benefícios que dela se esperavam, sofreu tais transformações que ela apareceu progressivamente como um novo poder, simultaneamente benéfico e ameaçador” (VERSPIEREM, 2003, p.25)

Nesta perspectiva, fica a pergunta: o que é dignidade? Estabelecer um único conceito para o assunto é demasiadamente impossível, haja vista o termo estar nos debates filosóficos e sociais há poucos anos. Necessário se faz determinar o papel da dignidade em relação à Bioética e para tanto há que se fazer um pequeno retrospecto pela história, passando pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, talvez ali o primeiro grito pela dignidade humana que ecoou com força nas variadas nações, passando pela conceituação de Bioética e sua evolução, para se chegar à discussão atual do assunto e o advento da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos – UNESCO, um importante documento que rege a nova face da Bioética na atualidade.

1.2 A Declaração Universal dos Direitos do Homem

A generalização, mesmo que ideológica, de que indivíduos ou grupos humanos podem classificar-se numa categoria geral é algo relativamente recente na história. Convenciona um antropólogo que:

“Nos povos que vivem à margem do que se convencionou classificar como civilização, não existe palavra que exprima o conceito de ser humano: os integrantes do grupo são chamados ‘homens’, mas os estranhos ao grupo são designados por outra denominação, a significar que se trata de indivíduos de uma espécie animal diferente” (LÉVY-STRAUSS apud COMPARATO, 2004, p.78).

O maior legado deixado pela Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 é a prerrogativa de que todos os seres humanos em suas diferenças biológicas, históricas, religiosas e culturais são merecedores de respeito, individualizando-os, como únicos. É o reconhecimento de que ninguém, independente de raça, gênero, etnia, classe social, nação ou vertente religiosa pode se considerar superior aos demais.

Mas no que consiste tal Declaração? Seria ela apenas um documento poético sobre a igualdade, o respeito e a tolerância? Qual sua importância no mundo atual?

Page 18: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

86

Em sentido técnico, a Declaração Universal dos Direitos do Homem trata de uma recomendação, que a Assembléia Geral das Nações Unidas faz aos seus membros. Nessas condições, pode-se concluir que o documento não tem força vinculante. Assim, a Comissão de Direitos Humanos concebeu-a como primeira etapa na elaboração de um pacto ou tratado internacional.

A Declaração em seu teor menciona as quatro liberdades, ou seja, a liberdade de palavra, liberdade de crença, liberdade de viver a salvo do temor e da necessidade. Podem ser consideradas as mais altas aspirações da vida humana.

Também a Declaração aponta três princípios axiológicos fundamentais no que tange à matéria de Direitos Humanos: a liberdade, a igualdade e a fraternidade.

A isonomia ou igualdade perante a lei é mera decorrência do princípio da igualdade essencial do ser humano. O princípio da liberdade compreende tanto uma dimensão política como social. A fraternidade é a expressão da harmonia entre os seres humanos.

Ainda na tríade de princípios, ensina COMPARATO: “O pecado capital contra a dignidade humana consiste, justamente,

em considerar e tratar o outro – um indivíduo, uma classe social, um povo – como um ser inferior, sob o pretexto da diferença de etnia, gênero, costumes ou fortuna patrimonial. Algumas diferenças humanas, aliás, não são deficiências, mas, bem ao contrário, fonte de valores positivos e, como tal, devem ser protegidas e estimuladas” (COMPARATO, 2004, p. 84).

Cinco décadas após sua adoção, é inegável que a proteção aos direitos humanos ocupa hoje uma posição central na agenda internacional da passagem do século. Apesar de grandes mudanças ideológicas do mundo, a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 expressa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos. A partir da Declaração foram projetados numerosos e sucessivos tratados, documentos e instrumentos de proteção, nos planos global, regional e países reafirmam essa proteção em suas leis e Constituições.

1.3 Bioética

1.3.1 O nascimento de um neologismo

No cenário de pós-grande guerra, consumismo exacerbado, o capitalismo em alta face ao comunismo, cumulado aos avanços científicos ocorridos. A descoberta do DNA, a possibilidade de técnicas de reprodução assistida, o aumento da expectativa de vida com o surgimento de novas técnicas de cura, a

Page 19: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

87

criação das UTIs, transplantes de órgãos, sem falar de uma infinidade de avanços tecnológicos. Gera essa cenário uma preocupação com o futuro do planeta. A situação da água, e a perspectiva de sua escassez, a dizimação das florestas, extinção não natural das espécies animais, tudo isso levou o homem a se questionar a respeito de seus próprios valores e de sua condição de vida no futuro. Passa-se também a refletir a preocupação com a vida humana e com a dimensão moral das pesquisas científicas e das condutas médicas. Primitivamente a essa reflexão chamamos Bioética.

“Bioética é um neologismo derivado das palavras gregas bio (vida) e ethike (ética). Trata-se de um estudo, uma disciplina, onde se analisam as condutas do homem no âmbito da ciência da vida e da saúde, sendo essa conduta examinada à luz de valores e princípios morais” (BARCHIFONTAINE; PESSINI, 2005, p.23) Tal exposição almeja certo esclarecimento que seria inútil caso o conceito de bioética fosse límpido, transparente e compartilhado. As ocorrências não são de pouco peso também para as matérias de bioética.

Para que se tenha algo a que se apegar no princípio, tomemos como base os conceitos trazidos a nós pelo respeitado H. TRISTAM ENGELHARDT (1998). Esse autor compartilha conosco o desejo de ver implementadas normas comuns, justas em harmonia com as convicções religiosas, na medida do possível.

Aderimos ao conceito de bioética como disciplina que aceita o diálogo leal e esclarecido entre visões inicialmente divergentes e aparentemente de difícil solução.

A bioética não possui e não pode possuir uma definição ou uma fundamentação ética comum. Os bioeticistas não comungam uma mesma fundamentação antropológica, ainda que devam chegar à profunda harmonia, a um consenso sobre princípios e diretrizes. Por isso a bioética situa-se em uma encruzilhada cujo conteúdo varia com o tempo.

Mas qual a primeira menção desse neologismo?

O termo apareceu primeiramente na obra do Professor VAN RENSELAER POTTER (1911-2001), intitulado Bioethics: bridge to the future. Ou seja, pensava ele na Bioética como uma ponte entre a ciência biológica e a ética.

Consta da contracapa de seu livro: “Ar e água poluída, explosão populacional, ecologia, conservação –

muitas vozes falam, muitas definições são dadas. Quem está certo? As idéias se entrecruzam e existem argumentos conflitivos que confundem as questões e atrasam a ação. Qual é a resposta? O homem realmente colocou em risco o seu meio ambiente? Ele não necessita aprimorar as condições que criou? A ameaça de sobrevivência é real ou se trata de

Page 20: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

88

pura propaganda de teóricos histéricos” (POTTER apud BARCHIFONTAINE; PESSINI, 2005, p.35).

1.4 Principialismo Norte-Americano

A face mais divulgada da Bioética, ou seja, aquela em que a Bioética está centrada em princípios, surgiu como “a tábua dos dez mandamentos, para iluminar uma nova caminhada da humanidade” (LEPARGNEUR, 1996, p.57).

Seu início foi uma resposta a casos relatados de abuso na pesquisa com seres humanos. Destacam-se aí três casos de comoção pública. O caso do hospital israelita de doenças crônicas de Nova Iorque (1963), onde eram injetadas células cancerosas em idosos; o caso do hospital de Willowbrook (1950-1970), onde se injetavam vírus da hepatite em crianças com retardo mental; e, talvez, o mais famoso de todos, o caso de Tuskegee, no Alabama, onde desde a década de 40, e só descoberto em 1972, negros sifilíticos foram mantidos sem tratamento para pesquisar a evolução natural da doença (BARCHIFONTAINE; PESSINI, 2005, p. 112).

Essa resposta tornou-se legitimada após a promulgação do Relatório Belmont (Belmont Report – 1978), redigido por uma comissão denominada Comissão Nacional para a proteção dos seres humanos da pesquisa Biomédica e Comportamental. Consta do Relatório Belmont três princípios básicos aos quais as pesquisas abrangendo seres humanos devem estar fundamentadas. Os princípios eram três. Beneficência, a maximização do bem; Autonomia, o respeito pelas pessoas; e Justiça, a imparcialidade na distribuição dos riscos e benefícios. Posteriormente, o princípio da não-maleficência foi introduzido, resultando em quatro os princípios básicos.

Seriam esses princípios a solução para todas as questões? A única resposta plausível a todas as angústias Bioéticas?

LEPARGNEUR responde a esta questão: “Estes princípios não cobrem a solução de toda pendência que se

apresenta no quadro da bioética; por exemplo existe uma regra de honestidade intelectual na publicação das pesquisas próprias (dever legal de honestidade diante da verdade e da justiça), de não-apropriação indevida das descobertas do vizinho (idem). De modo geral, é reconhecida válida a sentença ‘o que não é científico não é ético’ (o inverso não tem o mesmo rigor)” (LEPARGNEUR, 1996, p.76).

1.4.1 Quatro princípios fundamentais

1.4.1.1 Princípio da beneficência

Page 21: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

89

O princípio da beneficência em seu significado filosófico moral quer dizer fazer o bem. A beneficência é a manifestação da benevolência, é a procura e a realização do bem alheio e, conseqüentemente, “a propensão em cuidar de nossa própria vida, saúde e bens particulares” (COSTA; GARRAFA, 1988, p.36).

Sobre beneficência e benevolência há que se distinguir: “A beneficência refere-se a uma ação realizada em benefício de

outros; a benevolência refere-se ao traço do caráter ou à virtude ligada à disposição moral de agir em benefício de outros” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.106).

O princípio da beneficência tem como regra norteadora a prática das atividades de saúde relacionadas ao bem-estar de seus pacientes e os seus interesses. Fundamenta-se na imagem que perdurou do médico ao longo da história, e que está fundada na tradição médica desde o início das respectivas práticas: o tratamento dos pacientes com dignidade e justiça.

Mas a idéia de beneficência e benevolência sempre obteve certo destaque em algumas teorias éticas. Teorias como o Utilitarismo e o Iluminismo colocavam a beneficência como um aspecto da natureza humana “que nos motiva a agir no interesse de outros, meta que nessas teorias está estreitamente vinculada à meta da própria moralidade” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.107).

Trata a beneficência mais de um ideal do que uma obrigatoriedade, haja vista seu exercício pode levar ao não-respeito à autonomia do indivíduo. “Nossa beneficência, portanto, é, às vezes, um admirável ideal de ação que ultrapassa a obrigação, e, outras vezes, é apropriadamente limitada por outras obrigações morais” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.107)

1.4.1.2 Princípio da não-maleficência

O princípio da não-maleficência tem suas raízes no início das práticas médicas, criando como hábito socorrer ou ao menos não causar danos. É caracterizado pela obrigação de não causar danos.

Nem sempre o princípio da não-maleficência é entendido corretamente, pois sua prioridade pode ser questionada. A prática da medicina pode, às vezes, causar danos para obtenção de um benefício maior. Existem casos em que o paciente tem o pé amputado para salvar-lhe a vida. Há de se convir que o objetivo maior não seja a amputação ou outro modo de danos, mas a saúde geral.

Expõe a não-maleficência a prerrogativa de não causar dano da forma intencional.

Page 22: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

90

Existe alguma semelhança entre os princípios da beneficência e da não-maleficência?

BEAUCHAMP e CHILDRESS esclarecem: “Embora a não-maleficência e a beneficência sejam similares e

freqüentemente tratadas na filosofia moral como não sendo nitidamente distinguíveis, combiná-las num mesmo princípio obscurece distinções relevantes. As obrigações de não prejudicar os outros (por exemplo, aquelas que proíbem roubar, mutilar e matar) são claramente distintas das obrigações de ajudar os outros (por exemplo, proporcionando benefícios, protegendo interesses e promovendo o bem-estar). As obrigações de não prejudicar os outros são às vezes mais rigorosas que as obrigações de ajudá-los, mas as obrigações de beneficência são, às vezes, mais rigorosas que as obrigações de não-maleficência. Por exemplo, a obrigação de não lesar o outro parece, intuitivamente, ser mais rigorosa que a obrigação de auxiliá-lo, mas a obrigação de não oferecer risco de dano a sujeitos de pesquisa, por meio de procedimentos de baixo risco, não é tão rígida quanto a obrigação de prestar auxílio a um sujeito de pesquisa que foi lesado ao se submeter aos procedimentos” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p. 224).

1.4.1.3 Princípio da justiça

Durante muito tempo na história da humanidade prevaleceu a idéia da lei natural como norma das relações entre os homens. Somente na era moderna, a justiça deixou de ser uma lei natural e passou a ser uma lei moral. Evoluiu-se o pensamento sobre justiça como valor intrínseco de uma lei natural para um bem decidido em termos de um contrato social. Esse novo pacto passou a ditar normas de relação entre o súdito e o soberano, não mais pela submissão, mas pela decisão livre.

No pensamento moderno entende-se como justo o estado que se limitasse à proteção dos direitos individuais das pessoas. Devem-se analisar num todo, para que se chegue a um conceito de justiça, as relações do indivíduo com a sociedade e sua harmonização.

O princípio da justiça requer a distribuição de riscos e benefícios, interpretando a justiça como “um tratamento justo, eqüitativo e apropriado, levando em consideração aquilo que é devido às pessoas” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.245).

Outra maneira de entender esse princípio é que os iguais deverão ser tratados com igualdade. O dilema é saber quem são iguais. Na humanidade existem

Page 23: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

91

muitas diferenças que podem servir de base para se determinar tal conceito como ideal de vida, valores e crenças religiosas. Não obstante existe outro nível que exige a consideração de igualdade entre todos, de tal modo que as diferenças devam ser consideradas injustas.

Outra fórmula da justiça se distingue das outras pelo fato de o juiz, a pessoa encarregada de aplicá-la, já não ser livre para escolher a concepção da justiça que prefere: ele deve observar a regra estabelecida. Existe essa distinção entre a concepção moral e a concepção jurídica da justiça.

Em moral, a pessoa é livre para escolher a fórmula da justiça que pretende aplicar e a interpretação que deseja dar-lhe. Em moral, a regra adotada resulta da livre adesão da consciência; em direito, cumpre levar em conta a ordem estabelecida. Aquele que julga em moral deve primeiro determinar as categorias segundo as quais julgará, depois ver quais são as categorias aplicáveis aos fatos; em direito, o único problema que se deve examinar é saber como os fatos considerados se integram no sistema jurídico determinado, como os qualificar (PERELMAN apud BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.246).

1.4.1.4 Princípio da autonomia

Talvez o maior impasse na relação médico/paciente seja o da tomada da decisão, principalmente no que se refere aos procedimentos diagnósticos e terapêuticos adotados. O dilema situa-se em duas perguntas: a decisão deve ser do médico, preparado no dom de curar, e que melhor conhece os convenientes e os inconvenientes de cada conduta, ou seja, daquele que sabe mais? Ou do paciente, porque é o dono do seu próprio destino e, portanto, deve decidir o que quer para si?

Além dessas questões, o pensamento bioético ainda se perfaz da seguinte discussão: qual deve ser a postura do médico no que tange ao esclarecimento do paciente? Deve contar-lhe, com detalhes, o diagnóstico e o prognóstico, bem como as condutas diagnósticas e terapêuticas?

A postura tradicional do médico na relação médico/paciente é uma postura virtuosa, daquele que busca o bem-estar do próximo, às vezes à custa do seu próprio, ou seja, coloca em prática o princípio da beneficência.

Através do consenso na relação médico/paciente, chega-se à determinação do princípio da autonomia.

A palavra autonomia significa autodeterminação da pessoa de tomar decisões que afetem sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica, suas relações sociais. Refere-se à capacidade do ser humano de decidir o que é bom ou o que garante o seu bem-estar.

Page 24: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

92

A autonomia não é total. Autonomia total é apenas um ideal. Por mais que o pensamento seja livre e esclarecido, a autonomia sofre limitações decorrentes da própria vida do homem, por essa ser limitada em suas arestas.

O princípio da autonomia esclarece que o profissional da saúde deve respeitar a vontade do paciente, levando em consideração seus valores e crenças religiosas. Tal princípio reconhece o domínio do paciente sobre sua própria vida e entrega-se por respeito à sua intimidade. Nos ensinamentos de MARIA HELENA DINIZ, “considera o paciente capaz de autogovernar-se, ou seja, de fazer suas opções e agir sob a orientação dessas deliberações tomadas, devendo, por tal razão, ser tratado com autonomia” (DINIZ, 2001, p.78).

Qualquer paciente, sem distinção de raça, cor, crença religiosa ou condição financeira, que tiver sua vontade reduzida deverá ser protegido, ou seja, não importa o quão debilitado possa estar o paciente, esse deve ser informado, e tomar decisões sobre seu tratamento ou terapia.

Há que se destacar também a exigência advinda do princípio da autonomia, o consentimento livre e esclarecido e o procedimento de como tomar decisões sobre o tratamento de pacientes incapazes, ou que se encontrem na impossibilidade de fazê-lo.

A pessoa autônoma tem o direito de consentir ou recusar propostas de caráter preventivo, diagnóstico ou terapêutico que afetem sua dignidade. O paciente tem o direito moral de ser esclarecido sobre a natureza e os objetivos dos procedimentos médicos, suas durações e perspectivas de cura, sendo essas informações transmitidas de modo simples, objetivo e numa linguagem acessível à cultura e esclarecimento do paciente.

Ainda sobre o princípio da autonomia vale ressaltar: “Ser autônomo não é a mesma coisa que ser respeitado como um

agente autônomo. Respeitar um agente autônomo é, no mínimo, reconhecer o direito dessa pessoa de ter suas opiniões, fazer suas escolhas e agir com base em valores e crenças pessoais. Esse respeito envolve ação respeitosa, e não meramente uma atitude respeitosa. Ele exige também mais que obrigações de não-intervenção nas decisões das pessoas, pois inclui obrigações para sustentar as capacidades dos outros para escolher autonomamente, diminuindo os temores e outras condições que arruínem sua autonomia. Nessa concepção, o respeito pela autonomia implica tratar as pessoas de forma a capacitá-las a agir autonomamente, enquanto o desrespeito envolve atitudes e ações que ignoram, insultam ou degradam a autonomia dos outros e, portanto,

Page 25: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

93

negam uma igualdade mínima entre as pessoas” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002, p.268).

A evolução na reflexão acerca da Bioética abre espaço para a inclusão de novos referenciais teóricos diferentes daqueles descritos primeiramente no Relatório Belmont. Existem outros deveres sociais e outros valores que podem ser inclusos numa nova era, nomeando não mais como princípios, mas como referenciais teóricos, cuja proposição formará um todo ético. São eles, tais como a não-discriminação, a solidariedade, a vulnerabilidade, entre outros, ressaltando o valor da dignidade humana, objeto desse estudo.

1.5 Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos – UNESCO

1.5.1 UNESCO

A UNESCO pode ser entendida como Organização das Nações Unidas para Educação, Ciência e Cultura. Foi fundada em 16 de novembro de 1945. Hoje, a UNESCO funciona como um laboratório de idéias e como uma agência de padronização para formar acordos universais nos assuntos éticos emergentes. A organização também serve como uma agência do conhecimento para disseminar e compartilhar informação e conhecimento, enquanto colabora com os Estados-membros na construção de suas capacidades humanas e institucionais em diversos campos. Trabalha a UNESCO para criar condições de um genuíno diálogo baseado no respeito a valores compartilhados e na dignidade de cada civilização e cultura. O mundo requer urgentemente visões globais de desenvolvimento sustentável baseado na observância dos direitos humanos, respeito mútuo e na erradicação da pobreza. Neste sentido, em 2002, iniciou um programa de Bioética classificado como prioridade. O programa reflete sobre os avanços científicos, sua aplicabilidade e as formas de que inseridos nesses avanços seja respeitada a dignidade do indivíduo como um todo.

O programa também traz a discussão relacionada à Bioética ao âmago dos países-membros. Oferecendo o programa, um papel de conselheiro e formador nas áreas que envolvem um agir e refletir Bioético. Uma de suas ações é o incentivo à formação de Comissões Nacionais de Bioética, dando oportunidade para se aprimorar o debate legal nesta área. Concomitantemente, procura promover um trabalho educativo, levando os profissionais das diferentes áreas a conscientizar-se das questões necessárias ao pleno desenvolver da vida no planeta.

Um grande passo dado pela UNESCO relacionado à Bioética foi a promulgação em 2005 da Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.

Page 26: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

94

“Esse documento é um precioso instrumento de apoio aos esforços internacionais para a elaboração de diretrizes éticas em questões ligadas ao progresso científico, que interfere, cada vez mais, na vida do ser humano, bem como, também, as questões éticas ligadas com a justiça na área da saúde, desigualdade no acesso às benesses dos progressos científicos nos países em desenvolvimento” (PESSINI, 2006, p.45).

O teor desta Declaração é riquíssimo no que tange aos novos rumos da Bioética na atualidade. Não basta mais reduzir a Bioética aos debates científicos, preocupados apenas com tecnologias de ponta nas questões de saúde que mal alcançam a maioria da população. Não cabe à Bioética permanecer em debates intrincados e de difícil compreensão. Pois vive a Bioética hoje no coração das pessoas.

Houve um grande divisor de águas até a aprovação do texto final da referida Declaração. Existia uma barreira entre países ricos e pobres e o Brasil foi de fundamental importância para a decisão do foco tratado no documento. Consta da apresentação da versão brasileira da Declaração:

“As nações desenvolvidas defendiam um documento que restringisse a bioética aos tópicos biomédicos e biotecnológicos. O Brasil teve papel decisivo na ampliação do texto para os campos sanitário, social e ambiental. Com o apoio inestimável de todas as demais delegações latino-americanas presentes, secundadas pelos países africanos e pela Índia, o teor final da Declaração pode ser considerado como uma grande vitória das nações em desenvolvimento” (GARRAFA, 2006).

São apresentadas várias razões para fundamentar a elaboração do documento, entre elas destacam-se:

“A capacidade exclusiva dos seres humanos de refletir sobre sua própria existência e sobre seu meio ambiente; de perceber a injustiça; de evitar o perigo; de assumir responsabilidade; de buscar cooperação e de demonstrar o sentido moral que dá expressão a princípios éticos;

Os rápidos desenvolvimentos na ciência e na tecnologia, que, progressivamente, afetam nossa compreensão da vida e a vida em si, resultando em uma forte exigência de uma resposta global para as implicações éticas de tais desenvolvimentos;

As questões éticas suscitadas pelos rápidos avanços na ciência e suas aplicações tecnológicas deveriam ser examinadas com o devido respeito à dignidade da pessoa humana e respeito universal por – e cumprimento dos – direitos humanos e liberdades fundamentais; (grifo nosso)

Page 27: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

95

É necessário e oportuno, para a comunidade internacional, declarar princípios universais que proporcionarão uma base para a resposta da humanidade aos sempre crescentes dilemas e controvérsias que a ciência e a tecnologia apresentam para a humanidade e para o meio ambiente;

Os seres humanos são parte integral da biosfera, com um papel importante na proteção um do outro e das demais formas de vida, especialmente a dos animais;

Reconhecendo, com base na liberdade da ciência e da pesquisa, que os desenvolvimentos científicos e tecnológicos têm sido e podem ser de grande benefício para a humanidade, tais desenvolvimentos devem, sempre, buscar promover o bem-estar dos indivíduos, famílias, grupos ou comunidades e da humanidade como um todo no reconhecimento da dignidade da pessoa humana e no respeito universal e observância dos direitos humanos e das liberdades fundamentais;

A saúde não depende, unicamente, dos desenvolvimentos decorrentes das pesquisas científicas e tecnológicas, mas também de fatores psicossociais e culturais;

As decisões sobre questões éticas na medicina, ciência e da vida e tecnologias associadas podem ter um impacto sobre indivíduos, famílias, grupos ou comunidades e sobre a humanidade como um todo;

A diversidade cultural, como uma fonte de intercâmbio, inovação e criatividade, é necessária aos seres humanos e, nesse sentido, é patrimônio comum da humanidade, mesmo enfatizando que este não pode ser invocado à custa dos direitos humanos e das liberdades fundamentais;

A identidade de uma pessoa inclui dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais;

A sensibilidade moral e a reflexão ética deveriam fazer parte integral do processo de desenvolvimento científico e tecnológico e a bioética deve desempenhar um papel predominante nas escolhas que precisam ser feitas com relação às questões que emergem de tal desenvolvimento;

Desenvolver novas abordagens relacionadas às responsabilidades sociais de modo a assegurar que o progresso da ciência e da tecnologia contribua para a justiça, a eqüidade e para o interesse da humanidade;

Uma forma importante de avaliar as realidades sociais e alcançar eqüidade é prestar atenção à posição das mulheres;

Reforçar a cooperação internacional no campo da bioética, levando em conta, especialmente, as necessidades específicas dos países em

Page 28: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

96

desenvolvimento, das comunidades indígenas e das populações vulneráveis;

Por fim, os seres humanos sem distinção devem beneficiar-se dos mesmos elevados padrões éticos na medicina e nas pesquisas em ciências da vida” (PESSINI, 2006).

Quanto aos princípios, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos ultrapassa as barreiras impostas pelo principialismo norte-americano, iniciado na promulgação do Relatório Belmont e fundamentado na obra de BEUCHAMP e CHILDRESS, elaborando propostas de não quatro, porém 15 princípios descritos dos artigos 3º ao 17 da mesma.

Assegura a Declaração o respeito pela dignidade e, em decorrência desta, os direitos humanos e as liberdades fundamentais em sua totalidade, colocando os interesses do indivíduo acima do interesse científico ou da sociedade.

Traz a maximização dos benefícios aos pacientes, sujeitos de pesquisa e outros indivíduos afetados e a minimização de possíveis danos. Preza o respeito pela autonomia e pela responsabilidade individual. Levanta questões referentes ao consentimento livre, expresso e esclarecido em caso de procedimentos médicos, ou pesquisas científicas. E nos casos de faltar capacidade para consentir a autorização para a pesquisa e prática médica se acordar o melhor interesse do indivíduo envolvido e em benefício direto à sua saúde.

São consideradas a vulnerabilidade humana e a proteção pela integridade individual. Também se consideram a privacidade dos indivíduos envolvidos e a confidencialidade das ações. Reza a igualdade fundamental entre todos os seres humanos e que todos sejam tratados de forma justa e eqüitativa, não se discriminando ou estigmatizando indivíduos ou grupos por qualquer razão, respeitando também a diversidade cultural e o pluralismo.

A Declaração incentiva o estímulo à solidariedade entre seres humanos e a cooperação internacional. Enfoca também a responsabilidade social e a promoção da saúde como fundamentais para todos os governos.

Busca o compartilhamento com a sociedade dos benefícios gerados com os resultados das pesquisas. Considera o impacto das ciências da vida sobre as gerações futuras e a proteção do meio ambiente, da biosfera e da biodiversidade, dando atenção à inter-relação de seres humanos com outras formas de vida.

A Declaração trouxe como adicional a construção de uma Bioética, sem absolutos morais, pluralista, secularizada e contextualizada. Pode-se chamar não de Bioética legalista, mas Bioética da legitimidade. Constitui esta Declaração como um guia, um roteiro para construções legislativas futuras aos diferentes países.

Page 29: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

97

A partir de então, para se posicionar devidamente a Dignidade Humana num contexto Bioético, deve-se levar em consideração não apenas o conceito de pessoa, mas o papel especial do ser humano nas várias vertentes de pensamento.

O valor dado ao ser humano através do tempo, percebendo seus aspectos antropológicos, sociológicos, religiosos e históricos, é fator de grande importância para se chegar à aproximação de um conceito de dignidade e estabelecer sua relevância para a Bioética, não apenas a colocando como um conceito inútil, mas como pilar fundamental da construção harmoniosa entre seres humanos e ciência na perspectiva de uma Bioética desprendida de pragmatismo e voltada à proteção do ser como um todo.

2 – A PESSOA HUMANA COMO FONTE DE VALOR

2.1 O Valor de Cada Um

Entre os grandes dilemas do debate ético, necessário se faz entender o conceito de pessoa de uma forma diferenciada da habitual.

Por que no debate ético e sobretudo quando falamos de dignidade a pessoa possui este lugar de destaque?

“Porque quem é pessoa tem valor, seja para a ética, seja por direito: ser pessoa é a vertente entre o lícito e o ilícito (é lícito o que não prejudica a pessoa e ilícito é o que lhe causa dano ou a suprime); ser pessoa significa ter subjetividade moral e jurídica e ser portanto digno de respeito e merecedor de proteção. (...) (SGRECCIA; DI PIETRO, 1999).

A divergência conceitual leva depois a um procedimento diferente em relação à existência ou não de uma totalidade dos direitos; é necessário sublinhar, no entanto, que freqüentemente é o próprio procedimento que vem sugerir uso diverso do mesmo conceito.

É inegável o papel que o homem desempenha na natureza. Sob os olhares de várias vertentes de pensamento, o ser humano possui lugar de destaque, seja por sua capacidade de raciocinar, de falar, ou mesmo numa perspectiva religiosa em que ele é o convidado a participar do plano de salvação dado por Deus.

Por essa posição privilegiada, passa a ser necessário localizar também o ser humano para a Bioética. Dignidade e ser humano estão intimamente ligados nesse contexto.

A maturidade humana é alcançada a partir do momento em que o homem age segundo valores adequados à vivência própria. Tais valores não se encontram nos genes, são adquiridos através de experimentações e desafios propostos no dia-a-dia.

Page 30: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

98

A tradição dos valores não entra em conflito com o saber científico, pelo contrário, um completa o outro, esclarecendo-se mutuamente.

Não há que se cogitar a hipótese de se abandonar a tradição de valores em nome da ciência, pois na totalidade dos casos há que se levar em conta a tradição de valores para se alcançar os objetivos propostos pela bioética.

O que significa ser pessoa? É inegável que os seres humanos ocupam um lugar de destaque no mundo animal.

Pela tradição Judaico-Cristã, esse lugar de destaque se dá ao fato de o ser humano ser concebido à imagem e semelhança de Deus. Consta do Livro do Gênese:

“Então Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa imagem e semelhança. Que ele reine sobre os peixes do mar, sobre as aves dos céus, sobre os animais domésticos e sobre toda a terra, e sobre todos os répteis que se arrastam sobre a terra’. Deus criou o homem à sua imagem e semelhança, criou o homem e a mulher. Deus os abençoou: ‘Frutificai, disse ele, e multiplicai-vos, enchei a terra e submetei-a. Dominai sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se arrastam sobre a terra’” (GÊNESE, 1; 26-28).

Independentemente das concepções religiosas acerca do valor dado ao ser humano, é inegável que por si, por sua natureza, este possui um valor distinto dos demais animais. A esse valor dá-se o nome de dignidade.

IMMANUEL KANT nos deixa: “O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do

homem tem um preço venal; aquilo que mesmo sem pressupor uma necessidade, é conforme um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento; aquilo porém constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade” (KANT, 1980).

Reconhecer esta dignidade inerente a cada um se faz pelo exercício constante de conhecer a si próprio. Já dizia Aristóteles que todo conhecimento humano tem origem em uma tendência básica da natureza humana que se manifesta nas ações e reações mais elementares do homem. Toda extensão da vida dos sentidos é determinada e impregnada por essa tendência. Eis o dito:

“Todos os homens, por natureza, desejam conhecer. Uma indicação disso é o deleite que obtemos dos sentidos; pois estes, além de sua utilidade, são amados por si mesmos; e acima de todos os demais o

Page 31: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

99

sentido da visão. Pois não só com vistas à ação, mas, mesmo quando não vamos fazer nada, preferimos ver a tudo mais. A razão é que este, mais que todos os sentidos, faz-nos conhecer e traz à luz muitas diferenças entre as coisas” (ARISTÓTELES apud CASSIRER).

2.2 A Pessoa Humana

As origens da palavra pessoa está na língua latina persona, com o mesmo sentido do grego prósopon, que significa máscara. Quanto a essa delimitação, reza o Dicionário de Filosofia:

“Essa palavra deriva de persona, que, em latim, significa máscara e foi introduzida com esse sentido na linguagem filosófica pelo estoicismo popular para designar os papéis representados pelo homem, na vida. (...) O conceito de papel, nesse sentido, pode ser reduzido ao de relação: um papel, outra coisa não é senão um conjunto de relações que ligam o homem a dada situação e o definem com respeito a ela” (ABBAGNANO, 1999).

A bioética busca relativizar de forma harmônica os conflitos decorrentes dos avanços científicos e tecnológicos ocorridos nos últimos tempos. Seu ponto culminante encontra-se exatamente no ser humano, considerado de maneira especial em dois momentos básicos: o nascimento e a morte. Nessas duas fases da vida, a ciência tem feito inúmeras descobertas tanto para facilitar a primeira como aliviar a segunda.

É notório que a pessoa humana é o ápice da bioética. Ao se chegar ao conceito de pessoa, encontra-se uma resposta aceitável para muitos problemas. Entretanto, as várias formas de estudo e pensamento divergem sobre o conceito de pessoa. Por exemplo, se pessoa significa o domínio da razão, uma criança não pode ser considerada como tal, pois ainda não é pessoa.

Primeiramente, tomamos como base a pessoa como um conceito elaborado na Idade Média pelos pensadores cristãos, que traziam a definição de pessoa como um ser constituído de razão. Segundo essa tese, a razão é base para a personalidade, ou seja, a alma racional nos distingue de todos os outros seres vivos.

Já no Século XX, criou-se um conceito mais dinâmico de pessoa, tendo como idéia central a relação, ou seja, o ser humano se caracteriza pela sua natureza relacional. “A pessoa vai se construindo com os acontecimentos pessoais que a cercam” (BARCHIFONTAINE; PESSINI, 2005). Sendo assim, para ser pessoa basta não apenas ter uma biologia, mas sim a junção entre biologia e biografia.

Uma terceira noção de personalidade vem das teorias da evolução. Dita tal conceito que cada ser humano, em sua concepção, adquire os passos da espécie ao

Page 32: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

100

longo dos tempos. Nos primeiros momentos da concepção, o embrião humano, embora geneticamente tenha os mesmos elementos genéticos do adulto, ainda é pessoa em potencial, ou seja, passa por um processo de personalização.

2.3 A Pessoa, o Direito e os Direitos da Personalidade

O direito alienígena trata a pessoa como pessoa física; já o direito brasileiro reserva essa expressão para regulamentar as questões referentes a impostos sobre a renda do particular. A atribuição brasileira volta-se para o termo pessoa natural.

Independente da forma como é chamada a pessoa, o direito visa a assegurar-lhe a primazia, proibindo todo dano à dignidade e garantindo o respeito pela vida humana desde sua concepção.

Nas sociedades modernas, todos os seres humanos podem e devem desfrutar do direito como forma de proteção aos abusos inerentes a si ou a seu patrimônio.

Em suma, o direito assegura os direitos do nascituro e esclarece o seguinte: o nascituro não tem personalidade jurídica, mas será considerado como a tendo se nascer com vida. Os direitos que lhe cabem permanecem em estado latente; se não nasce vivo, a relação de direito não chega a se formar. Está esta doutrina na tradição romana, pois para os romanos o embrião era considerado parte das vísceras da mulher e não como um ser vivo independente, um ser humano ainda em desenvolvimento.

Embora exista a afirmação que a personalidade do ser humano começa com o nascimento com vida, esta opinião não é a máxima na doutrina brasileira. Muitos estudiosos consideram o nascituro portador de personalidade e passível de obter direitos, e vai além. Busca resguardar também os direitos do concepturo, pois possui, desde o momento de sua concepção, personalidade.

Dentro da teoria concepcionista, fixa-se a personalidade do embrião a partir de sua identidade genética e não de sua autonomia. Uma outra corrente fixa a personalidade à idéia de capacidade. Atribuem personalidade a todos os seres humanos desde o momento da concepção, mesmo que artificial, considerando portador de capacidade aqueles indivíduos nascidos com vida, que vivenciem a vida extra-uterina. Considera esta corrente portadores de personalidade as pessoas já falecidas.

Estes conceitos, porém, não são unânimes. Alguns pensadores com o objetivo de contornar a problemática dos fetos que são abortados naturalmente, dos indivíduos natimortos e dos embriões in vitro, seres humanos que jamais vivenciaram a vida extra-uterina, os consideram como um portadores de uma

Page 33: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

101

“personalidade natural formal” (DINIZ apud SZANIAWSKI, 2005) e aos que nascem com vida, portadores de uma “personalidade natural material” (DINIZ apud SZANIAWSKI, 2005). Nesse caso, aqueles portadores de uma personalidade natural formal seriam protegidos apenas pelos direitos inerentes à personalidade; já os portadores de personalidade natural material teriam o direito de ser titulares de outros direitos.

A personalidade se resume no conjunto de caracteres do próprio indivíduo. É intrínseco à pessoa humana. Através da personalidade, a pessoa poderá adquirir e defender os demais bens. Os bens seriam nada mais do que aqueles inerentes à pessoa humana, a saber: a vida, a liberdade, a honra e, acima de tudo, a dignidade.

Juridicamente, o conceito de pessoa é diferente das demais áreas de conhecimento. Atribuem-se duas concepções. A pessoa física e a pessoa jurídica. A pessoa física refere-se ao indivíduo único. Já a pessoa jurídica pode ser a combinação de homens e meios patrimoniais numa perspectiva da tutela comercial de direitos.

Para a satisfação de suas necessidades, o homem posiciona-se em um dos pólos da relação jurídica: compra, empresta, vende, contrai matrimônio, faz testamento, entre outros. Desse modo, em torno de sua pessoa, o homem cria um conjunto de direitos e obrigações que denominamos patrimônio, que é a projeção econômica da personalidade.

Contudo, há direitos que afetam diretamente a personalidade, que não possuem conteúdo econômico direto e imediato. A personalidade não é exatamente um direito, é um conceito básico onde se apóiam os direitos.

Há direitos denominados personalíssimos, porque incidem sobre bens imateriais ou incorpóreos. A escola de Direito Natural proclama a existência desses direitos por serem inerentes à personalidade. São fundamentalmente os direitos à própria vida, à liberdade, à manifestação do pensamento. A Constituição brasileira enumera uma série desses direitos e garantias individuais.

Os direitos da personalidade ou personalíssimos relacionam-se com o Direito Natural, constituindo o mínimo necessário do conteúdo da própria personalidade. Diferem dos direitos patrimoniais, porque o sentido econômico desses direitos é absolutamente secundário e somente aflorará quando transgredidos: então será pedido substantivo, qual seja uma reparação pecuniária indenizatória, que nunca se colocará no mesmo patamar do direito violado.

Não há que se compreender que nossa lei, ou qualquer lei comparada, apresenta um número fechado para elencar os direitos da personalidade. Terá essa natureza todo o direito subjetivo pessoal que apresentar as mesmas características.

Page 34: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

102

Diz-se que os direitos da personalidade são extrapatrimoniais porque inadmitem avaliação pecuniária, estando fora do patrimônio econômico. As indenizações que os ataques a eles podem motivar, de índole moral, são substantivos de um desconforto, mas não se equiparam à remuneração. Apenas no sentido metafórico e poético podemos afirmar que pertencem ao patrimônio moral de uma pessoa. São irrenunciáveis, porque pertencem à própria vida, da qual se projeta a personalidade.

A matéria não é tratada sistematicamente na maioria dos códigos civis, e nosso Código de 1916 não era exceção, embora a doutrina mais recente já com ela se preocupava. Somente nas últimas décadas do Século XX o direito privado passou a ocupar-se dos direitos da personalidade mais detidamente.

Os direitos da personalidade são os que resguardam a dignidade humana. Desse modo, ninguém pode, por ato voluntário, dispor de sua privacidade, renunciar à liberdade, ceder seu nome de registro para utilização por outrem, renunciar ao direito de pedir alimentos no campo da família, por exemplo. Há, porém, situações na sociedade atual que tangenciam a proibição. Na busca de audiência e sensacionalismo. Já vimos exemplos de programas televisivos nos quais pessoas autorizam que sua vida seja monitorada e divulgada permanentemente, que sua liberdade seja cerceada e sua integridade física seja colocada em situações de extremo limite de resistência, etc. Ora, não resta dúvida de que, nesses casos, os envolvidos renunciam negocialmente a direitos, em tese, irrenunciáveis.

A sociedade, a tecnologia, mais uma vez, estão à frente da lei mais moderna. Não há notícias de que se tenha discutido eventual irregularidade nessas contratações.

Desse modo, cumpre ao legislador regulamentar as situações semelhantes, no intuito de evitar abusos que ordinariamente ocorrem nesse campo, uma vez que ele próprio previu, no art. 11 do Código Civil atual, a “exceção dos casos previstos em lei”. Evidente, porém, que nunca haverão de se admitir a invasão da privacidade de alguém, a utilização de sua imagem ou de seu nome, sem sua expressa autorização.

3 – A DIGNIDADE HUMANA E SEU PAPEL PARA A BIOÉTICA

3.1 Dignidade Humana: Conceito

Todos os seres humanos, apesar das inúmeras diferenças biológicas e culturais que o distinguem entre si, merecem igual respeito, como únicos entes no mundo capazes de amar, descobrir a verdade e criar a beleza. Reconhecer

Page 35: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

103

sumariamente essa radical igualdade é que coloca o ser humano numa posição de nunca poder afirmar-se superior aos demais.

A dignidade gira em torno do homem e de sua eminente posição no mundo. Mas, afinal, o que é Dignidade Humana?

Várias justificativas podem se dar para chegar a um conceito de Dignidade. Três merecem maior destaque com a finalidade de alcançarmos o objetivo maior deste estudo. A justificativa religiosa, a justificativa filosófica e a justificativa científica.

Do ponto de vista da justificativa religiosa, e aí se pode dizer da religião em seu sentido primitivo, o religar o homem ao transcendente traz essa posição do humano em especial condição perante aquele que transcende, na visão judaico-cristã, por exemplo, Deus.

No que tange à justificativa científica da dignidade humana, nos ensina COMPARATO:

“A justificativa científica da dignidade humana sobreveio com a descoberta do processo de evolução dos seres vivos, embora a primeira explicação do fenômeno, na obra de CHARLES DARWIN, rejeitasse todo finalismo, como se a natureza houvesse feito várias tentativas frustradas, antes de encontrar, por mero acaso, a boa via de solução para a origem da espécie humana” (COMPARATO, 2004).

Na justificativa filosófica, a indagação que se faz é a indagação central de toda filosofia. “Que é o homem?” Esta simples indagação já traz sobre si a carga de especialidade deste ser, capaz de fazer de si mesmo objeto de indagação. Demonstra aí a característica que, para algumas teorias, difere o homem dos demais animais: a racionalidade.

“A dignidade humana é considerada um princípio ético fundamental. Quando se diz que a dignidade do homem é inviolável, pressupõe-se que não seja possível, criticamente, ir-se além do critério constituído por tal dignidade. Este princípio da dignidade humana é reclamado na ética em muitos lugares e por muitas partes, sem que ao mesmo se esclareça quão grande seja o seu alcance ou a sua competência fundamental possa ser razoavelmente revogada em muitos casos particulares” (MIETH, 2004).

Corroborando este douto ensinamento (PEDROT apud VERSPIEREN, 2003), coloca a dignidade como o “valor dos valores, aquele que justifica todos os outros e sobre o qual todos os outros se fundam”.

Page 36: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

104

A dignidade humana tomada como valor absoluto privilegia o indivíduo em sua perpétua contraposição com a sociedade.

A dignidade de cada um limita-se pela igual dignidade dos demais. Constitui atributo da pessoa humana individualmente considerada.

3.2 A Dignidade Humana com o Passar dos Tempos

Não há, nos povos antigos, o conceito de pessoa tal como o conhecemos hoje. O homem, para a filosofia grega, era um animal político ou social.

O conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em conseqüência, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, na afirmação de que o homem, pessoa, possui lugar de destaque no plano salvífico dado por Deus através de Jesus Cristo.

A proclamação do valor distinto da pessoa humana terá como conseqüência lógica a afirmação de direitos específicos de cada homem, o reconhecimento de que, na vida social, ele, homem, não se confunde com a vida do Estado.

A dignidade, por conseguinte, é um atributo humano sentido e criado pelo homem e por ele desenvolvido e estudado. Existindo desde os primórdios da humanidade, mas só nos últimos dois séculos percebido plenamente, apesar de que quando o ser humano começou a viver em sociedades rudimentarmente organizadas a honra e a nobreza já eram respeitadas pelos membros do grupo, o que não ser percebido e entendido concretamente, mas geravam destaque a alguns membros.

Ao dar continuidade na discussão acerca do conceito de dignidade humana, imprescindível é atribuir a KANT a dissociação do conceito de dignidade ao conceito de valor. Dá ele ao conceito uma característica de status universal.

“Enquanto o conceito, que está relacionado como da dignidade, era associado à posição autoritária particular de pessoas individuais, sua ligação com a humanidade não passava de uma forma modernizada de legitimar a dominação. Todas a grandes culturas encerram em seu patrimônio lingüístico e simbólico conceitos para o que não pode ser comprado e que constitui a inequívoca e inalienável obstinação do indivíduo; isto diz respeito também ao trabalho, que nem é tortura e atividade escrava nem tem que ser compensado em equivalência. Os elementos do inalienável no próprio trabalho expressam o reconhecimento e dignidade do ser humano, embora sem terem suas raízes em direitos pessoais” (KANT apud NEGT, 2003).

Page 37: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

105

No correr dos séculos, com o crescimento desordenado das populações humanas e seus inventos, os quais originaram guerras de dominação, surgiram os povos dominantes e os dominados em grande escala: os livres e os escravos.

“O homem passou a dominar outros homens, sobrepujando-se reciprocamente. Então a dignidade humana respeitada naturalmente pelas sociedades mais rudimentares passou a ser desrespeitada e aviltada, impondo aos oprimidos e escravizados as mais indignas situações com a degradação de suas culturas, a negação de sua liberdade, desnorteando-os para a vida” (MORAES, 1997).

A dignidade humana nunca foi tão degradada como na época dos grandes conquistadores, pois civilizações inteiras que viviam livres em suas terras foram humilhadas, aniquiladas ou escravizadas. Sem contar o grande período da escravidão negra, onde milhares de pessoas do continente africano tiveram sua dignidade suprimida pelos dominantes.

Inúmeras são as passagens históricas que relatam essa supressão da dignidade humana. Como estudado no capítulo primeiro deste trabalho, a dignidade humana passa a ser preocupação social de fato após a II Guerra Mundial, grande limiar no pensamento humano acerca de olhar o outro na modernidade.

3.3 A Dignidade Humana Como Princípio Constitucional

Ainda na linha de raciocínio de DIETMAR MIETH (2004): “O conceito de dignidade humana é estruturalmente constitutivo para

a Constituição, isto é, ele constitui a constituição, e não a constituição histórica como tal constitui a dignidade humana. Não foi o fato, portanto, que nós, numa determinada situação histórica, em virtude de uma determinada experiência dos homens, tenhamos projetado a constituição, a tenhamos aprovado, com ela tenhamos vivido e tenhamos feito da dignidade humana o critério constitutivo, antes, foi a própria dignidade humana que, como priori sintético, se tornou constitutiva pelo fato que foi possível fazer a experiência assim como ela foi feita, quer dizer, como experiência histórica em conexão com a redação de uma constituição.”

A dignidade humana como princípio constitucional constitui valor fundamental, envolvendo conceitos como vida, moral, honra, decência, decoro, brio, amor-próprio, e significa manter uma condição perante si mesmo e a sociedade.

Page 38: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

106

A dignidade é “qualidade integrante e irrenunciável da condição humana” (MORAES, 2002), por isso deve ser reconhecida, respeitada, promovida e protegida. Engloba necessariamente respeito e proteção da integridade física e emocional.

Nesse tocante, o conceito de Dignidade Humana toma uma posição de princípio fundante da constituição e não o contrário. “O critério da dignidade humana antecede, por isso, como critério de verdade, também qualquer critério de maioria” (MIETH, 2004).

“No campo jurídico, é preciso distinguir entre a importância constitutiva estrutural da dignidade humana, de um lado, e a sua aplicação categorial, de outro. A dignidade humana é, de fato, como princípio não só um pressuposto da constituição, antes é também imanente à constituição e, pois, imanente ao direito. No direito positivo concreto é, portanto, possível se referir ao critério da dignidade humana interpretando-o. Esta é uma importância categorial da dignidade humana” (MIETH, 2004).

3.4 Dignidade Humana e Argumentação Ética

Ao se tentar entender um conceito racional de ética, é importante ressaltar que “ética é daquelas coisas que todo mundo sabe o que são, mas que não são fáceis de explicar, quando alguém pergunta” (VALLS, 2000).

Ética é uma palavra de raiz grega, com duas possíveis origens. Uma vem da palavra éthos (pronuncia-se o “e” curto), pode ser entendida por costume. Outra também se escreve éthos (pronuncia-se o “e” longo) e significa propriedade do caráter. Essa última traz maior proximidade do que entendemos hoje por ética.

Ética pode tratar-se também da busca exaustiva e profunda daquilo que é bom ou mau, um conjunto de regras, princípios ou maneiras de pensar que guiam ou chamam a si a autoridade de guiar as ações de um grupo em particular, ou é o estudo sistemático da argumentação sobre como devemos agir. Define-se também ética como ciência da moral. A ética pode ser resultante de uma reflexão filosófica racional, possibilitando ao homem se posicionar em relação a si próprio, permitindo-se aprender a sociedade na qual se insere.

Sob o ponto de vista racional, suas origens e princípios estão contidos no bojo dos direitos inerentes ao ser humano, pois o conceito de igualdade e liberdade impõe o respeito ao próximo, inclusive o que concerne às suas crenças. A ética existe em todas as sociedades humanas, como, às vezes, não-humanas.

A ética é teoria ou ciência do comportamento moral dos homens em sociedade, ou seja, é ciência de uma forma específica de comportamento humano. A ética se preocupa com objeto próprio, trazendo em si a realidade humana. É a

Page 39: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

107

ciência da moral, ou seja, abrange todo ser humano em seu contexto mais intrínseco.

Deve ser a ética entendida não apenas como solução de problemas intelectuais, mas como aquisição de hábitos, na qualidade de caráter.

Ao ser entendida como aquisição de hábitos, traz a ética um aglomerado de conhecimentos racionais e, de certa forma, objetivos a respeito do comportamento humano moral. Assim, a ética se apresenta como um objeto específico.

A ética não trata apenas de um tópico da filosofia. Ao se falar de ética, leva-se em conta a ciência e a vida real.

É claro que existe na ética uma função descritiva. Deve-se procurar conhecer, apoiando-se em estudos de antropologia cultural e semelhantes, os costumes das diferentes épocas e de diferentes lugares.

A ética deve chegar ao seu ápice, sendo este o bem comum. Não há que se falar em ética particular, pois a ética é universal, sem fronteiras.

“Como ciência real, a Ética tem por objeto o ethos, que se apresenta como um fenômeno histórico-cultural dotado de evidência imediata e impondo-se à experiência do indivíduo tão logo este alcance a primeira idade da razão” (VAZ, 1999).

Para tanto, há necessidade de se passar a enfocar a argumentação ética e a dignidade para que seu papel na reflexão ética e Bioética seja não somente determinado, mas fixado como premissa fundamental nas questões relacionadas ao homem.

Nesse sentido assevera a doutrina que: “Apelar para a dignidade humana como conteúdo central da

argumentação ética traz consigo também uma problemática própria. Por um lado, isto tende a tornar-se um discurso vago, como quando apelamos para o verdadeiro, o belo, o bom. Por outro, sua fundamentação tornou-se problemática, sobretudo nos ambientes secularizados. Como apelar a uma dignidade que nos foi dada por Deus, quando o próprio Deus é questionado? Não obstante, e precisamente por isso, é preciso que se reflita sobre a dignidade humana, para que não venha a transformar-se no núcleo derradeiro da argumentação mas um núcleo em última análise vazio” (AMMICHT-QUINN, 2003).

Ainda na perspectiva da dignidade, assevera FABRI (2004): “O conceito de dignidade humana, mesmo em seu discurso racional e

argumentativo, traz uma carga emocional que pode ser bem utilizada. Propicia, antes de tudo, uma atitude fundamental e uma convocação para

Page 40: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

108

uma entrada qualitativa nas relações humanas. (...) Entende-se que o conceito, por um lado, logicamente compreende relações concretas; por outro, constrói-se em uma rede de relações socioculturais que se fundamentam em uma base objetiva anterior, ou seja, na consciência do outro ser humano como semelhante.”

Nesse sentido (cf. FABRI, 2004), o resultado desse modelo é que através do conceito de dignidade humana se cria uma certa forma de relacionamento entre os homens, gerando até mesmo um acaloramento da argumentação ética.

3.5 Dignidade Humana e Bioética

Situar a Dignidade Humana no contexto da Bioética não é tarefa fácil, haja vista as várias vertentes de pensamento bioético, o forte impacto do utilitarismo norte-americano na face mundial da Bioética e a falta de um conceito estruturado, gerando, por conseguinte, um termo usual, porém deslocado de sua origem etimológica.

Ora, se a Dignidade é tida como um valor acima de outro valor, inegável, imprescindível à vida humana, irrenunciável e na perspectiva constitutiva inerente a todos os seres humanos, por que se acaba por dificultar sua inclusão no contexto bioético? A resposta para tal pergunta pode encontrar duas saídas possíveis: a vertente utilitarista norte-americana, na qual a Dignidade é tida como um conceito inútil, vazio; e a nova face da Bioética, com o advento da Declaração da UNESCO sobre Bioética e Direitos Humanos de 2005, trazendo a novidade de novos princípios, buscando uma Bioética voltada à pessoa. Mais humana que tecnológica. A seguir veremos cada uma delas.

3.5.1 O utilitarismo norte-americano e a dignidade como conceito inútil

Encontram-se as origens do utilitarismo na doutrina de Adam Smith. O utilitarismo consiste na visão de DUSSEL (2002):

“... num neo-estoicismo que reduz o manejo da pura subjetividade individual ao controle dos meios dirigidos a um fim, a partir do cálculo instrumental que situa a experiência ética em referência às paixões como última instância. Isto permitiria uma certa racionalização empírica disciplinada das decisões, ações e de suas conseqüências. (...) Simplifica-se ao máximo a ordem ética para poder controlar racionalmente a estratégia militar, o business econômico e político, internos e coloniais. O ‘eu’ objetiviza o sistema e se distancia dele para poder dominá-lo com maior eficácia. Trata-se de um exercício abstrato da razão instrumental.”

Page 41: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

109

Também entendido como a teoria baseada na conseqüência, ou conseqüencialismo, pode ser entendido como “um rótulo atribuído às teorias que sustentam que as ações são certas ou erradas de acordo com a ponderação de suas conseqüências boas e más” (BEAUCHAMP; CHILDRESS, 2002).

Busca também o utilitarismo um resultado baseado no melhor possível. Enfatiza a necessidade de se minimizarem as ações malévolas e se maximizarem as ações benéficas. Em acordo com BEAUCHAMP; CHILDRESS (2002) a teoria utilitarista parece, a priori, convincente. Veja a afirmação:

“(...) Quem iria negar que o mal deve ser minimizado e o valor positivo, aumentado? Ademais, os utilitaristas apresentam muitos exemplos da vida cotidiana para mostrar que a teoria é viável e que todos nós empregamos um método utilitarista para calcular o que devemos fazer, ponderando os fins e os meios, e considerando as necessidades de todos os que são afetados.”

Mesmo na convicção desta avaliação moral das ações humanas, o pensamento utilitarista não entra em consenso quanto ao que seriam os valores de maior peso.

A Bioética norte-americana é pautada na doutrina utilitarista. Assim, vem de lá a proposição de que o conceito de Dignidade é um conceito inútil para a Bioética. Nesse contexto, a expressão vem da bioeticista RUTH MACKLIN. Para ela não há que se falar em Dignidade Humana por já haver na Bioética o princípio basilar da autonomia. Em seu texto Dignity is a useless concept, deixa clara essa predominância da autonomia frente à dignidade. Eis seu ensinamento:

“Appeals to human dignity populate the landscape os medical ethics. (…) Appeals to dignity are either vague restatements… or mere slogans. (…)

Why, then, do so many articles and reports appeal to human dignity, as if it means something over and above respect for persons or for their autonomy?” (MACKLIN, 2003).

Gera assim a consonância com a doutrina utilitarista, na qual a regra de ouro preza existir como único princípio, o princípio da utilidade. É baseando-se neste princípio que a referida bioeticista enfoca a Dignidade como um conceito inútil, vazio.

O fato é que Dignidade não pode ser confundida com Autonomia pura e simplesmente. Dignidade vai além de apenas respeitar uma capacidade. É um valor inestimável dado a todos. Novamente citando IMMANUEL KANT:

“O que se relaciona com as inclinações e necessidades gerais do homem tem um preço venal; aquilo que mesmo sem pressupor uma

Page 42: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

110

necessidade, é conforme um certo gosto, isto é, a uma satisfação no jogo livre e sem finalidade das nossas faculdades anímicas, tem um preço de afeição ou de sentimento; aquilo porém constitui a condição só graças à qual qualquer coisa pode ser um fim em si mesma, não tem somente um valor relativo, isto é, um preço, mas um valor íntimo, isto é, dignidade” (KANT, 1980).

3.6 A Atual Pauta Bioética: a Declaração Universal Sobre Bioética e Direitos Humanos (UNESCO)

3.6.1 Dignidade e seu valor para a Declaração

No cenário mundial atual, sobretudo sobre forte influência do utilitarismo norte-americano, duramente centrando a Bioética em quatro princípios: Autonomia, Beneficência, Não-maleficência e Justiça, nos quais o agir e o pensar Bioéticos se fecham, não gerando a possibilidade de que esses mesmos agir e pensar busquem formas mais igualitárias e humanizadas de se realizar, aparece uma voz que, sem dúvida alguma, deu grande avanço na doutrina acerca da vida: A Declaração Universal de Bioética e Direitos Humanos da UNESCO, de 2005.

A preocupação central da UNESCO em redigir tal documento pode se resumir através do dizer de KOICHIRO MATSURA:

“La ciencia y la tecnología han hecho avances gigantescos, revolucionando nuestro conocimiento de la vida y del mundo que nos rodea. Cualquiera que sean sus posibles aplicaciones, este progreso está un paso delante de nuestras disposiciones legales y también de nuestras percepciones psicológicas y morales de los individuos y las sociedades a través de todo el mundo. Está claro hoy que la reflexión ética ha llegado con demasiado atraso. Asimismo, estamos más concientes que nunca del vacío legal y de los problemas morales que son producidos por los descubrimientos y las invenciones científicas y tecnológicas. El campo de la bioética nació de tales realizaciones” (MATSURA, 2004).

A visão da UNESCO acerca das relações entre vida e tecnologia levou seus membros à preocupação de desenvolver um documento que ao mesmo tempo observasse os avanços científico-tecnológicos e o valor especial dado ao ser humano.

Ora, se a Declaração se preocupa com a pessoa, obviamente ela dá destaque ao valor máximo inerente à mesma: a Dignidade.

Como visto anteriormente, a dignidade humana é um valor inviolável, intransferível e inestimável, garantido a cada um de nós não somente pelo

Page 43: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

111

ordenamento legal, mas sim, e também, pela posição humana de especialidade diante da natureza, quer seja numa perspectiva religiosa, quer não.

O contexto desta Declaração é marcado por interesses difusos. Enquanto os representantes do governo norte-americano desejavam impor sua marca utilitarista, aprovando um Declaração voltada aos avanços científico-tecnológicos, os representantes de países da América Latina, África e Ásia tinham outras preocupações: a pessoa, a qualidade de vida, a garantia de vida e vida digna aos povos.

Diz do texto preambular da mesma: “(...) Dando ênfase à necessidade de reforçar a cooperação

internacional no campo da bioética, levando particularmente em consideração as necessidades específicas dos países em desenvolvimento, das comunidades indígenas e das populações vulneráveis (...)” (UNESCO, 2005).

A tensão foi grande na aprovação do documento. De suma importância a união dos países representantes supracitados, pois através desta união o documento foi aprovado com uma característica particular: o enfoque primordial à pessoa.

Tão importante esse enfoque que a Declaração se desprende da característica utilitarista e principia lista tão fortemente difundida no pensamento Bioético e passa a adotar não mais quatro princípios básicos, e sim 15 balizas sustentadoras desta nova fase da bioética.

O papel da Dignidade Humana nesta Declaração é tão fundamental que esta se encontra descrita já no artigo 3º da mesma.

Representa um grande passo para a humanidade. A Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos veio definitivamente pautar a Dignidade Humana como um conceito não só relevante, mas necessário para a Bioética, justamente por esta se preocupar, desde seus conceitos primordiais, com a pessoa, e com a garantia de sua integridade e sobretudo preservando o respeito a cada cultura, a cada momento histórico, a cada etnia, e afins, para não mais se perder o sentido do olhar o outro como já sucedera na história da intolerância mundial.

4 – CONCLUSÃO

Onde se encontra a Dignidade afinal? Qual sua relevância para a Bioética? Seria realmente a Dignidade um conceito inútil?

Estes três grandes questionamentos fizeram parte deste estudo desde seu primeiro momento.

Page 44: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

112

A necessidade de se esclarecer a solidez de um conceito de Bioética fundamentado no horizonte da dignidade humana tão precioso na percepção latino-americana na sua concretização pelo princípio traz à tona questões de relevância como a evolução do pensamento ético, principalmente após a II Guerra Mundial, em que o discurso sobre garantir a Dignidade do indivíduo tornou-se mais acalorado. Para tanto, se buscou no conceito de pessoa e seu caráter especial perante a natureza a inerência da Dignidade e, assim, colocou-a em posição frente à Bioética.

A ética é um regulador das relações humanas e sua transgressão aos princípios éticos favorece as injustiças e as desigualdades. A idéia da saúde como bem público tem sido sinônimo de ineficiência, descaso, desleixo, baixa qualidade, um discurso articulado que favorece a privatização desse bem e coloca em risco a dignidade humana, pois o pobre é excluído de seu acesso, e muitas vezes o atendimento hospitalar se torna inacessível a qualquer pessoa.

Diante dos dilemas da ética no campo econômico na globalização traz o problema da falsa universalidade. Cria a ilusão que é um empreendimento legítimo. A realidade da América Latina é uma mostra de multidões crescentes de desempregados famintos e excluídos. A moral dominante do sistema econômico diz que pelo trabalho qualquer indivíduo pode ter acesso à riqueza. A crítica econômica diz que a reprodução da miséria econômica é estrutural. A ética diz que, sendo assim, exigem-se transformações radicais e globais na estrutura do sistema econômico (CASALI, 1997).

Desse modo uma cultura particular não poderá impor seus valores como universais. Em nome da ética cabe respeito, solidariedade, compaixão, democracia e o princípio da autonomia como manifestação de uma prática na convivência entre seres humanos e outras culturas de preservação da dignidade humana. Por isso não há que se referenciar a inutilidade do conceito de Dignidade perante o princípio da autonomia. A dignidade comporta muito mais valores e significações do que pura e simplesmente o respeito, ou a capacidade de livre-escolha.

Para DUSSEL (2000), a ética aparece como garantir a Dignidade humana através de seus princípios, onde a vida possa crescer , desenvolver, multiplicar.

Através destas colocações, necessário se faz trazer à tona a verdade sobre a discussão sobre Dignidade numa perspectiva Bioética. Seria relevante esse conceito, ou poderia apenas constar sua inutilidade para a discussão?

Deve-se considerar o peso que o conceito de dignidade Humana obteve após a II Grande Guerra. Passou o ser humano a se preocupar não somente em respeitar o indivíduo, mas fazer valer sua autonomia através do resguardo de valores universais.

Page 45: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

113

Ou seja, quando se fala em dignidade não apenas se quer dizer respeito à autonomia do indivíduo, mas ao resguardo à solidariedade, compaixão. Diz respeito a olhar o outro em sua essência, em sua magnitude, em seu valor especial no quadro da criação. Inserido aí também o respeito pela autonomia.

Mas por que se falar em Dignidade? Quando a sociedade começa a se deparar com uma desarmonia social entre fome, matança, guerras, ganância, volta-se a falar de ética. Para entendimento de DUSSEL, 2000, ética é falar em dignidade humana, é manutenção, reprodução e desenvolvimento da vida.

Assim, a Dignidade encontra-se no âmago das questões acerca da Bioética. Feliz a decisão da UNESCO em promulgar uma Declaração onde objetiva ou subjetivamente a Dignidade é abordada como forma de garantir a integridade dos povos.

“Para o exercício pleno desta Dignidade é necessário poder cumprir com todas as suas possibilidades; isto é, ter uma vida plena. A vida plena do sujeito ético é a matéria ou o cumprimento do conteúdo da Dignidade Humana. Não se pode afirmar a dignidade de um sujeito se ele não tem possibilidades de cumprir com suas exigências: como suas necessidades básicas, culturais, espirituais, dado que a vida humana é a vida de um ser corporal. Todo o tema da pobreza, da miséria, da negação das culturas oprimidas da periferia são maneiras de nomear a impossibilidade de reproduzir a vida do ser humano; isto é, impossibilidade de afirmar a dignidade” (DUSSEL, 2003).

A Dignidade se faz relevante no discurso Bioético não por ser um valor, mas por ser o fundamento dos valores.

Assim, o sentido da Dignidade para a Bioética perpassa pela pessoa, haja vista ela ser o foco central da discussão. Não se chegaria aos modernos conceitos e garantias se não se promulgasse a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948.

“Coincidimos assim que a Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo caráter universal é impressionante. Salvamos o conceito de dignidade contra interpretações inquietantes que acabam resultando no inverso daquilo que uma grande tradição moral tinha em vista. A dignidade não está forçosamente ligada à autonomia que pode apelar para o respeito da dignidade, pois apesar de sua miséria física, psicológica ou moral, ou melhor, nela, ele testemunhe ainda a ‘niilidade da condição humana’. A dignidade consiste em ser confiado à solicitude uns dos outros e buscar manter-se à altura desta tarefa eminentemente humana, com toda inteligência e sensibilidade que esta responsabilidade mútua pressupõe” (VALADIER, 2003).

Page 46: A DEFINIÇÃO DOS DIREITOS DA SOLIDARIEDADE 28 - Doutrina Direitos Humanos.pdf · Revolução Francesa – liberdade, igualdade e fraternidade –, ... por fim os de terceira geração

REVISTA DE DIREITO SOCIAL 28 DOUT R IN A DIR EIT OS

HUM AN OS OUT./DEZ. 2007

114

Portanto, voltamos ao sentido do trabalho. A Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 foi marco fundamental para que se colocasse o tema da Dignidade na pauta mundial de discussões. A partir daí a pessoa passa a compreender não somente a si, mas que existem valores e supravalores que devem ser reconhecidos e garantidos, não se tolerando mais formas de abusos contra semelhantes. Efetiva-se assim o caráter eminentemente especial da pessoa em sua conceituação e racionalidade. Culmina o estudo com o precioso documento da UNESCO, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, onde a Dignidade, no contexto Bioético, sai da obscuridade imposta pelo principialismo norte-americano e passa a ocupar seu lugar de direito: a relevância máxima para justamente garantir no debate Bioético a pessoa como tema central, inserindo neste contexto a garantia de sua integridade e preservação da harmonia para a vida.