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OFICIN A LIT E R Á R I A D O C L U B A T H L E T I C O P A ULIST A N O O F I T H L E Q U I N T O C A D E R N O D E L I T E R A T U R A QUIN T O C A D E R N O D E L I T E R A T U R A CHEGA DE SAUDADE Tributo a Vinicius de Moraes Tributo a Vinicius de Moraes Tributo a Vinicius de Moraes

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chega de saudade

OFICINA LITERÁRIA DO CLUB ATHLETICO PAULISTANO OFICINA LITERÁRIA DO CLUB ATHL

E TICO PAULISTANO LITERÁRIA DO CLUB ATHLETICO PAULISTA

NO --QUINTO CADERNO DE LITERATURA

QUIN

TO CAD

ERNO DE LITERATURA

CHEGA DE SAUDADETributo a Vinicius de MoraesTributo a Vinicius de MoraesTributo a Vinicius de Moraes

Lembrando do que fizeram lá no Centro Cultural Brasil-Peru, em Lima (aquele Diálogo Poético), me dou conta de que este Caderno Literário é também um diálogo, porém amplo, geral e irrestrito. O grupo do Paulistano conseguiu uma façanha: textos que ressuscitam, dão vida, retomam o poeta em prosa e verso. Aí reaparecem seus sambas, seus poemas, suas crônicas, seu teatro; aí está o experimentalismo visual e até o facebook.

Autores em potencial que escrevem por prazer e alguma esperança secreta de comunicação se acercam da obra daquele que despedaçou sua vida em versos, canções e amores desesperados. Ele viveu o mito de Dionísio entregue ao prazer da carne. Mas foi também esse Orfeu tropical em busca de uma Eurídice impossível.

Affonso Romano de Sant´Anna

Capa_11.09.indd 1 9/11/13 12:56 PM

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

APOIO da DIRETORIA CULTURALCLUB ATHLETICO PAULISTANO

2013

Tributo a Vinicius de Moraes CHEGA DE SAUDADE

Quinto Caderno de Literatura

Club Athletico Paulistano

outubro 2013

Agonia

No teu grande corpo branco depois eu fiquei. Tinha os olhos lívidos e tive medo. Já não havia sombra em ti - eras como um grande deserto de areia Onde eu houvesse tombado após uma longa caminhada sem noites. Na minha angústia eu buscava a paisagem calma Que me havias dado tanto tempo Mas tudo era estéril e mostruoso e sem vida E teus seios eram dunas desfeitas pelo vendaval que passara. Eu estremecia agonizando e procurava me erguer Mas teu ventre era como areia movediça para os meus dedos. Procurei ficar imóvel e orar, mas fui me afogando em ti mesma Desaparecendo no teu ser disperso que se contraía como a voragem.

Depois foi o sono, o escuro, a morte.

Quando despertei era claro e eu tinha brotado novamente Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.

Vinicius de Moraes

Esse Caderno sobre Vinicius me pegou de várias maneiras em vários

aeroportos. Vinha eu de Lima, onde conheci, de corpo presente, a cantora

Maria Creuza no II Festival Internacional de Poesia. Lá estavam mais de

cem poetas de todo o mundo e Vinicius sendo homenageado pela voz

sedutora daquela baiana que se apresentava ao grande público do Teatro

de Las Naciones. Ela ia cantando e a plateia ia ecoando versos e ritmos

do poetinha. Depois, estivemos juntos do Centro Cultural Brasil-Peru. Eu

não cantei, é claro. Ela, sim. Apenas li poemas de antologia minha que

estava sendo lançada enquanto se inaugurava a exposição Diálogo poético:

Vinicius e Affonso. E almoçando com Maria Creuza, ela me atualizou o

folclore sobre o bardo de Ipanema. Dali ela saiu para cantar Vinicius

em Madrid.

E dá-lhe Vinicius.

Ora eu havia feito, há pouco, uma palestra na Universidade de Brasília

sobre Vinicius. Havia também feito uma conferência na Sociedade

Psicanalítica de Brasília sobre a complicada relação de Vinicius com

E POR FALAR EM VINICIUS...

Affonso Romano de Sant’Anna

as mulheres. Chego em casa e Marina Colasanti, minha mulher, me

diz que acabou de julgar prêmios de um concurso de reescritura de

poemas de Vinicius por meninos de escolas de periferia. No mesmo

dia converso com a Casa do Saber/Rio sobre uma conferência sobre

Vinicius onde retomaria coisas ousadas que disse em Canibalismo Amoroso.

Abro o computador e a TV Escola quer uma entrevista sobre Vinicius.

Vinicius em todas as partes. Até nome de rua, a dois passos do meu

apartamento em Ipanema. Esse poeta é uma fatalidade nas nossas

vidas. Emprestou-nos seu eu, sua dor, sua solidão, suas despassaradas

relações amorosas. Foi um amante de utilidade pública. Não há como

evitar Vinicius. Vinicius, um talento desgovernado, intutelável. Um

João Cabral às avessas. Vital. Do personagem Vinicius até Drummond

tinha inveja.

E vou lendo os criativos textos deste Caderno com vontade de

também contar coisas, inventar coisas, pois a vida de um poeta é uma

invenção em que os outros creem. Outro dia em Belém assisti a um

show de Toquinho onde ele recontou mais histórias do poeta. Afinal de

contas, esse poeta é um folclore (que continua vivo). E vejam que coisa,

que coincidência paradoxal, sincretismo puro: outro dia me dei conta

que comecei a escrever um quase diário anotar coisas da vida, depois de

regressar do enterro de Vinicius, em 1980, ali no São João Batista.

Morte e vida. E a poesia.

E, de repente, ele faz cem anos. As pessoas deram para fazer cem

anos. De minha cobertura olho a cobertura de Rubem Braga ao

lado. O cronista de Cachoeiro de Itapemirim está fazendo cem anos.

Drummond, exagerou, já fez 110 anos. Pois naquele enterro do Vinicius

havia não sei quantas viúvas. Somos todos órfãos e viúvas de Vinicius.

Tanto os homens, de gravata e indo aos escritórios, lamentando não

terem tido aquela vida desregrada, quanto as mulheres sonhando com

um poeta que diga aquelas coisas no seu ouvido - o verdadeiro ponto G.

A primeira vez que estive ao lado dele, eu não existia. Continuo não

existindo. Mas naquele tempo existia menos. Era um rapaz do interior de

Minas, que fora à UNE, no Rio para autografar, oh, ousadia! a antologia

Violão de Rua, ao lado de Vinicius, Paulo Mendes Campos, Ferreira Gullar

e outros. Ele autografou o livro sem ter a menor ideia quem era aquele

provinciano ao lado.

Lembrando do que fizeram lá no Centro Cultural Brasil-Peru, em

Lima (aquele Diálogo Poético), me dou conta de que este Caderno Literário

é também um diálogo, porém amplo, geral e irrestrito. O grupo do

Paulistano conseguiu uma façanha: textos que ressuscitam, dão vida,

retomam o poeta em prosa e verso. Aí reaparecem seus sambas, seus

poemas, suas crônicas, seu teatro; aí está o experimentalismo visual e

até o facebook.

Autores em potencial que escrevem por prazer e alguma esperança

secreta de comunicação se acercam da obra daquele que despedaçou

sua vida em versos, canções e amores desesperados. Ele viveu o mito

de Dionísio entregue ao prazer da carne. Mas foi também esse Orfeu

tropical em busca de uma Eurídice impossível.

Affonso Romano de Sant´Anna – poeta, ensaísta e cronista brasileiro da geração de 60, professor

em diversas universidades no Brasil e no exterior, foi presidente da Fundação Biblioteca Nacional.

O LEITOR

O autor é leitor de si próprio, é um crítico impiedoso que não se

cansa em aperfeiçoar a sua obra na procura da perfeição.

Corta, emenda, subtrai e acrescenta até dá-la por terminada e fazer

a última leitura, desta vez em voz alta.

Que prazer! Como é delicioso ouvir o nosso escrito ainda que lido só

por nós mesmos.

Mas é o nosso escrito, a nossa obra, que contém o sopro de nossa

alma impresso e registrado para sempre.

Sabedor desse prazer maior, visceral, comum a quem escreve, é que

venho exaltar os artistas que afloram nestas páginas, externando-lhes a

admiração que tenho pelos criadores, os mágicos que nos entretém e

nos levam a viver suas histórias.

O leitor agradecido,

José Manuel Castro Santos

Presidente

SUMÁRIO

15 — O ATO DA CRIAÇÃO Carlos Eduardo Cornacchione21 — SONETO DA INFIDELIDADE Giselda Penteado Di Guglielmo22 — PARA A MOÇA NA JANELA Maria Helena Nogueira de Almeida23 — O ESPELHO DE NARA Ricardo Lahud25 — SAMBA E BÊNÇÃO Suzana Montoro27 — ASTRONAVE Danielle Martins Cardoso29 — SONHOS DE ANJO Renata Julianelli31 — DEDICATÓRIA Rogério Matarazzo33 — DA VARANDA Lilian Gattaz34 — TRAINEIRA Luiz Antonio de Queiroz35 — SE VOLTASSES PARA MIM Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins38 — CARTA A VINICIUS Hans Freudenthal40 — PARA VIVER UM GRANDE AMOR Maria Helena F. Vieira42 — CAPOEIRA Maria Lúcia Perrone Passos43 — BIS Betty Wey46 — CANÇÃO DE ENGANAR TRISTEZA Bia de Castro Oliveira48 — NO REINO DA ALFACE Maria Júlia Kovács50 — QUEM CALA CONSENTE Christina Tibiriçá53 — NEM UM MINUTO Angela Guimarães54 — EXCÊNTRICOS DO 152 Ignez Matarazzo56 — ABSTINÊNCIA Lisa Kahuna58 — O SAMBA É MAIS FORTE DO QUE EU Carlos de Faro Passos60— VINICIUS Angélica Royo63 — POETAS Guilherme Hernandez Filho65 — SARAVÁ Danielle Martins Cardoso67 — RECADO DO ZÉ Gilda Pasqua Barros de Almeida68 — SEGUNDA EDIÇÃO Vicente Rággio70 — O BEIJO Giselda Penteado Di Guglielmo72 — DIAPASÃO Teresinha Taumaturgo Policastro73 — A COPACABANA DE VINICIUS Lygia Pistelli

75 — AMOR EM PAZ Lygia Pistelli76 — MUDANÇA Guta Rezende Soares78 — QUE EU NÃO SOU NINGUÉM DE IR EM CONVERSA DE ESQUECER Mariza Baur81 — DA SOLIDÃO May Parreira e Ferreira83 — NINGUÉM MORRE NO FACEBOOK Ricardo Lahud85 — PORQUE HOJE É DIA DOS NAMORADOS Mariza Baur87 —A ESPERA Guilherme Hernandez Filho89 — ECOS DO PASSADO Maria Helena Nogueira de Almeida93 — O CONVITE Maria Lúcia Rizzo94 — O GAROTO E A GAROTA DE IPANEMA Jairo Navarro de Magalhães97 — SAUDADES DE UMA ÉPOCA QUE EU NÃO VIVI Gisella Prado98 — VINICIUS MUSICAL Luiz Tarcisio B. Filomeno100 — BRAZILIAN GIRL Tânia Nogueira de Melo Franco102 — HORA DE PENSAR VINICIUS Maria Luiza Galli103 — NÃO TER CONTENTAMENTO Agda Del Cioppo104 — EU SEI Agda Del Cioppo105 — DESATINOS DO AMOR Maria Angela de Azevedo Antunes107 — O SAPATO Maria Luiza Galli109 — O POVO FELIZ DO PORÃO Carlos de Faro Passos112 — DIAS DE ORFEU Carlos Eduardo Cornacchione114 — TORMENTO INFINITO Carlos Eduardo Cornacchione116 — DUETO HelÔ Bello BarrosIconografia — 124

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

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chega de saudade

Macho e fêmea os criou. Bíblia: Gênese, 1, 27

I

Hoje é sábado, amanhã é domingo

A edição vem em capa colorida, como a vida

O conteúdo revela o destino escolhido por cada autor

E nosso Vinicius de Moraes ressuscitou nas epígrafes para inspirar.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Não há nada como escrever esse tributo

Foi muito esforço da nossa Oficina Literária

Mas por via das dúvidas livrai-nos Vinicius de todo mau estilo.

Hoje é sábado, amanhã é domingo

Amanhã não gosta de ninguém escrever bem

Hoje é que é o dia do Caderno Literário

O dia é sábado.

Impossível fugir desta homenagem centenária

Neste momento toda merecida honra está concedida

Todos os autores agradecem entrelaçados

Todas as páginas estão impressas regularmente

Todos os leitores estão atentos

Porque hoje é sábado.

O ATO DA CRIAÇÃO

Carlos Eduardo Cornacchione

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

II

Neste momento há uma antologia

Porque hoje é sábado.

Há um boa-vida vazio

Porque hoje é sábado.

Há um ranger de corpos

Porque hoje é sábado.

Há um clamor pela vida

Porque hoje é sábado.

Há um passado angustiante

Porque hoje é sábado.

Há uma dedicação ao flerte

Porque hoje é sábado.

Há um renovar de sonho

Porque hoje é sábado.

Há um único beijo

Porque hoje é sábado.

Há um horizonte na varanda

Porque hoje é sábado.

Há um ciúme estrangeiro

Porque hoje é sábado.

Há um casal que se ama

Porque hoje é sábado.

Há dietas de alface

Porque hoje é sábado.

Há uma batucada no bistrô

Porque hoje é sábado.

Há um poeta inspirado

Porque hoje é sábado.

Há uma perdição de excêntricos

Porque hoje é sábado.

Há uma cantar de prelúdio

Porque hoje é sábado.

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chega de saudade

Há uma morte no facebook

Porque hoje é sábado.

Há um homem sem sombra

Porque hoje é sábado.

Há um anjo acordado

Porque hoje é sábado.

Há um viciado em amor

Porque hoje é sábado.

Há um passado não vivido

Porque hoje é sábado.

Há um dilema existencial

Porque hoje é sábado.

Há infidelidades em verso

Porque hoje é sábado.

Há um show no Paulistano

Porque hoje é sábado.

Há uma viúva descolada

Porque hoje é sábado.

Há uma moça solitária

Porque hoje é sábado.

Há uma ligação para o Além

Porque hoje é sábado.

Há um esperar da morte

Porque hoje é sábado.

Há um garoto na praia

Porque hoje é sábado.

Há uma adolescente viajando

Porque hoje é sábado.

Há um passeio em Copacabana

Porque hoje é sábado.

Há um poeta mendigo

Porque hoje é sábado.

Há uma exposição de bicos de pena

Porque hoje é sábado.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

E dando os trâmites por findos

Porque hoje é sábado.

Há a perspectiva do domingo

Porque hoje é sábado.

III

Por todas essas razões foste gerado na biblioteca circulante,

Ó Caderno Literário.

De fato, depois da Ouverture do Fiat e da simbiose do popular e erudito

E depois, do documentário da Susana Moraes,

e depois, do filme Orfeu Negro

E depois, da gênese da bossa nova e do sarau em casa de Amália

Melhor que Vinicius fosse homenageado.

Na verdade, o Caderno era necessário

Mesmo nós, autores, seres sonhadores, malabaristas das letras, que queremos

como os imortais, esforçadamente e nunca saciados

Nós que carregamos nas palavras o vórtice supremo da paixão.

Bem procedeu a Oficina Literária em não descansar durante

os seis últimos meses

Um ano lutou a Diretoria pela semana viniciana

Descansasse Vinicius e simplesmente não existiríamos

Seríamos talvez letras infinitamente pequenas de partículas subjetivas

em queda invisível no porão do clube.

Não beberíamos das águas que acariciam Ipanema e das elegias ao amor

Não teríamos parido em dor nem suaríamos o escrito nosso de cada dia

Não sofreríamos males de criatividade nem desejaríamos

o linguajar do próximo

Não teríamos leituras, reuniões, releituras, gravuras, editoração

e uísque no lançamento.

Esta é a indizível beleza e harmonia do homenageado

e do Club Athletico Paulistano em núpcias

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chega de saudade

A paz e o poder maior do poetinha e dos associados em colóquio

A pureza maior do artista e dos apreciadores em comunhão.

Ao revés, precisamos ser racionais, frequentemente dogmáticos

Precisamos respeitar as situações morais e estéticas de cada autor

Ser sociais, receber com humildade a crítica, rir sem vontade

e até elogiar sem vontade

Tudo isso porque Vinicius cismou em não descansar

depois de um século

E para não ficar a data esquecida

Resolveu o Cultural fazer este Caderno Literário

à sua imagem e semelhança

Possivelmente, isto é, muito provavelmente

Porque era sábado.

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chega de saudade

SONETO DA INFIDELIDADE

Giselda Penteado Di Guglielmo

De tudo, ao meu amor serei atentoAntes, e com tal zelo, e sempre, e tanto…

Não posso ser atento ao teu amor

Se não me doas esse teu encanto

Que susta em meus olhos todo o pranto

Com o puro perfume de tua flor.

Não posso ser fiel se não desejas

Que em teu louvor eu cante o meu canto

Ria meu riso mesmo em desencanto

Por sentir que não sou quem mais almejas.

Mas se um dia pensares no adeus

Verás que fui infiel por muito amá-la

E voltarás então aos braços meus.

Para que eu possa dizer em verdade

O meu amor virá sim resgatá-la

Sem a marca da infidelidade.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

PARA A MOÇA NA JANELA

Maria Helena Nogueira de Almeida

Que o sofrimento vem, essa saudadeDe estar perto, se longe, ou estar mais pertoSe perto,...

Uma casinha branca no alto da ladeira com gerânios no jardim. Do prédio

em frente eu admiro a moça na janela. Feições orientais, cabelos compridos de

não se enxergar o fim, beleza feita para o deleite dos humanos. Junto dela uma

gata persa com olhos de um azul noturno. Rivais na formosura, na languidez dos

gestos. A moça imita a gata e a gata imita a moça. Duas imagens da melancolia.

Rapazes passam debaixo da janela e olham a jovem. Querem flertar, pedir

namoro. Ela os ignora. E eu me apaixono à distância, menino tímido. Meu

coração é uma pira à espera de uma tocha, um toque para acender. É o meu

amor juvenil despertando para a vida.

Lanço o meu voo nas asas de um condor imaginário que me faz sonhar.

Em meus devaneios a moça convida-me para sua casa. Entro, ela veste túnica

branca esvoaçante, nos pés sandálias com enfeites de pedrarias. Na sala a melodia

de um samba-canção de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Convido-a para dançar.

Estamos enlaçados, ela canta a primeira linha da música em meus ouvidos: A insensatez que você fez coração mais sem cuidado. De seus cabelos desprende-se um aroma

de jasmim. Depois sentamos num sofá de veludo azul, oferece-me champanhe

numa taça translúcida como asas de borboleta. Coloca a cabeça em meu ombro,

a gata aninha-se enrolada aos meus pés. Quero falar de amor. Dizer que ouço

estrelas com Bilac. Ela põe os dedos em meus lábios, pede silêncio.

Adormeço e assim eu navego ancorando meus sonhos em cada porto onde

descanso. E vou perseguindo ora a moça, ora a gata. E elas se escondem nas

sombras e voltam e somem até que tudo se desfaz nas brumas da madrugada.

Abro os olhos, a moça sorri para mim, recolhe a gata e fecha a janela.

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chega de saudade

O ESPELHO DE NARA

Ricardo Lahud

Quem és tu Quem és Serás a sombra que me espera Ou és a breve primavera A mariposa que se pousa E que se vai

O besante celestial, indo-se, alonga-lhe a sombra. De pé, afugenta os grãos

de areia da pele em brasa e faz dançar os cabelos lisos, acobreados. Os olhos,

de qualquer tom que sejam, permanecem camuflados por lentes escuras.

Amarrada à sua cintura, a canga, quadrado de tecido fluo e translúcido,

revela mais do que esconde do corpo esculturado em tardes menos gloriosas.

Sorri apenas para si mesma, dando a impressão de flertar com todo o gentio.

Da brisa que sopra do mar empresta o balanço e a velocidade no caminhar.

No botequim, vislumbrando o oceano, jovens desfrutam o poente da

irresponsabilidade. O chope é sorvido devagar, o dinheiro é contado. Sobre

a mesa, fria flácida abandonada, uma última batata frita. Com um meneio

de cabeça um macho avisa ao outro – Olha – que responde com um assovio

mudo – Que coisa mais linda – e enquanto ela vem e passa, cheia de graça,

cervizes são torcidas e contorcidas. Uma morena estapeia o par, tal qual uma

professora do passado usaria a palmatória, interrompendo a epifania. Ela,

a namorada traída pelo imaginário, resolve pedir para si uma outra tulipa

gelada, economizara na erva, seu amigo traficante está escondido com medo

de morrer.

Pipocam aplausos e vivas aos exóticos tons violáceos do arrebol com

os quais a divina paleta encerra o dia. Entre os que aprovam o espetáculo

três senhoras, que poderiam ser versões femininas dos anões da Branca de

Neve, interrompem a caminhada no sentido do Leblon para comentários

encomiásticos. A de mais idade, chapéu cabano protegendo as sardas, sonhou

na adolescência ser cantora lírica e, até hoje, gorjeia árias em família. Um

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

par de ciclistas em trajes extraordinários, androginia marcada pela magreza,

desliza em sentido contrário. Os carros são ultrapassados em velocidade por

um senhor bronzeado e barrigudo vestindo uma minúscula sunga amarela.

Um menino esquálido de dez anos que não aparenta mais do que sete dribla

catimbeiro os automóveis da Avenida Vieira Souto. Dorso nu, calção velho,

chinelo de dedo, cabelo cortado à maquina, foge, mas ninguém o persegue.

Num andar acima, em tempos outros, no terraço de onde se enxerga a

rebentação e além, um João não percebe o barco que vai, hipnotizado pelo

ritmo das vigorosas braçadas do nadador. O sol, em bemol, lança ao mar as

sombras das montanhas, mas Lobo tem olhos presos no laranja da lua. Leão

se apressa em trazer os aperitivos. O melhor amigo do homem, devidamente

engarrafado, se joga, em cachoeiras, sobre rochas translúcidas. O Tom correto

ao piano enche o ar de poesia. Vinicius escapa do convite da cangorça para

o tango – je ne danse que la samba – de olho na gata no cio esparramada no sofá

sobre o jovem melenudo. Entre mim e esse reflexo há muitas diferenças, sou

mais alto, mais magro, mais belo, mais jovem, o espelho está com defeito.

Chega de saudade, na realidade, isso é que é vida, poetinha, boa música,

bebida estrangeira, mulheres de todos os tipos. Luxo e luxúria, que tudo mais

vá pro inferno.

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chega de saudade

SAMBA E BÊNÇÃO

Suzana Montoro

Há um renovar-se de esperançasPorque hoje é sábado.

para Ricardo Lahud

Abre os olhos e se vê desperto. Consulta o relógio na mesa de cabeceira,

espreguiça braços e pernas como uma saudação e, apesar do adiantado das

horas, contenta-se em fazer um pouco de cera antes de sair da cama. Uma

preparação para o dia que será pleno. Refaz mentalmente os passos rotineiros,

o banho, o desjejum, a escolha da roupa antes da ducha. Meticuloso. Um ritual

familiar que se desencadeia quase que por conta própria. Até o momento de

sair. Quando põe os pés na rua, abre-se em possibilidades. Hoje o trabalho é

outro. Porque o dia é sábado. Dia de caça e de caçador.

Ao fechar o portão e deixar a casa, para de raciocinar. Vai aonde pés e faro

o arrastam. Olhos atentos, sensações à flor da pele. Tudo lhe causa alguma

impressão e é por essa veia sensorial que se deixa conduzir. Apalpa as calças na

região do baixo ventre, tudo nos conformes. O movimento de gente aglomerada

o detém. É a entrada de uma espécie de galpão. Lugar novo. Fecha os olhos,

respira profundamente e se encharca do odor peculiar que lhe dá por instantes a

sensação de derretimento. Como se a barriga se desmanchasse. Prazer é o nome

que dá a isso. Porque o dia é hoje.

O interior é amplo, um salão com bancos, algumas mesas e cadeiras e

muita gente de pé por enquanto. Ainda o burburinho da espera. Num palco

improvisado aos fundos, os músicos ocupam seus lugares, ajeitam instrumentos.

A cerimônia começará em poucos minutos. Primeiro vem a preleção do pastor,

o rito das oferendas e agradecimentos, o recolhimento do dízimo, depois os

cânticos e danças ensaiadas, mas é só quando o cadenciado dos corpos vai

repetindo-se de maneira automática que o momento da catarse chega e aí a

folia toma conta. Os ritmistas embalam o tom e tudo é permitido. Porque o dia

é para isso. É sábado.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Escolhe a mulata mais farta de ginga e carnes e vai embolando passos junto

a ela. Tudo é samba e oração. Em meio à algazarra, o pastor clamoroso segue

a pregação em altos brados, também ele inebriado da batida do tamborim e

dos gemidos da cuíca. Porque é sábado e porque os corpos suam e porque a

consagração é coletiva, as pessoas vão juntando-se como se quisessem formar

um só corpo, pernas e braços confundidos e amalgamados, ele então reconhece

o momento, enrosca-se na mulata abundante e em meio ao frenesi de coxas e

quadris rebolantes, tira do bolso a pequena navalha e abençoa certeiro a virilha

da mulher, os dois estatelam olhos em êxtase, ele encharcado de leitoso prazer,

ela banhada de escarlate e surpresa.

Sai silencioso como entrara, o casaco na frente do corpo para esconder a

marca dos humores derramados. De volta ao lar e com a sensação de dever

cumprido, delicia-se ao ritmo do samba que segue ecoando no corpo, misturado

à fadiga do prazer. Porque o dia é sábado e a dor é nenhuma. E não há mais nada

a fazer, apenas aguardar a perspectiva do domingo que anunciará o próximo

sábado, dia de samba e de bênção.

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chega de saudade

ASTRONAVE

Danielle Martins Cardoso

E o futuro é uma astronaveque tentamos pilotarNão tem tempo, nem piedade,Nem tem hora de chegar.

Tio Vinicius, meu nome é Alice. Adoro a música Aquarela. O sol

amarelo, o castelo com seis linhas, dois riscos e o guarda-chuva, desenho

tudo enquanto mamãe canta. Colori minha luva de vermelho e pinguei tinta

preta no papel. Filha, sua gaivota virou urubu, ela falou. Ficou borrado,

sem cabeça. Mesmo assim voou bem alto e encontrou o avião rosa-grená.

Foram para a terra das ondas gigantes. Não quero que o avião pouse, tio. E

o menino pulou o muro, desenhei uma escada grandona. O barco a vela eu

não sei fazer, mas o mundo é fácil. Peguei a laranja na cozinha e embrulhei

nela papel azul.

Tio, tenho um montão de apelido. Cada hora inventam um diferente.

Come-come, cuca, gule-gule, futrika, maria-vampira, sharapova – esse eu

gosto – ninguém fala Alice. E piorou depois que comecei a andar. Carlitos,

ficam apontando. Mas eu sou menina! E quer saber o último? Mão-de-obra.

Vamos com a mão-de-obra? Vovô pergunta, rindo.

Poetinha é apelido bonito. E ontem mamãe te chamou de cachorro. O

Fred é branco e gorducho, tem cara de bravo, mas brinca comigo. Seu Jubi,

o moço que passeia com ele, falou que o Fred balança o rabo quando ouve

samba, bebe cerveja e só gosta de mulher. Mamãe mandou seu Jubi dar

uísque pro Fred e ficou chamando: Vinicius, Vinicius, Vinicius. O Fred latiu

e seu Jubi não entendeu nada.

Acabei de chupar minha laranja, é pra comer o mundo inteiro, mamãe?

Ela me prometeu Canto do Batuque depois do café. Lá toco violão, tambor,

xilofone e flauta. É muito legal. No final a gente deita para ver as bolas de

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

sabão. Tia Clara sopra uma varinha e aparecem mais de vinte. Verde, rosa,

azul, corro pra lá, pra cá, tento pegar todas. Não consigo. Elas somem. Fico

rindo, mas no final choro. Ah, tio Vinicius, você que é um poeta mágico e

pilota a astronave tem que me contar: para onde vão as bolinhas de sabão?

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chega de saudade

Dormir é chato quando a mãe diz estar na hora

Pegar no sono, tem dia que demora

Descanso é obrigação sagrada

Mas aventura mesmo acontece de madrugada

Não tem ninguém no mundo

Com insônia ou sono profundo

Sem viagens de arrepiar

Depois que vai se deitar

Sou um colchão fofoqueiro

Conto os sonhos do meu companheiro

Bravo acho que não fica

Só se eu der a dica

De quem passou o dedo no doce

Ou fingiu que não fosse

O autor do plic no vidro do vizinho

Vinicius é menino leve, anjinho que flutua

Entre minha maciez e o mundo da lua

Não sabe que sei tudo

Ainda por cima acredita que sou mudo

SONHOS DE ANJO

Renata Julianelli

Giro um simples compassoe num círculo eu façoo mundo que descolorirá

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Os lugares e pessoas com quem brinca

São segredos debaixo do lençol

Mas como não aguento, jogo o anzol

Conversa com São Jorge, São Pedro e São Longuinho

Até de ET é amiguinho

Apronta, fica feliz

Conhece a foca que põe a bola no nariz

Não falta pra ele namorada

É o rei da garotada

Vai e vem como nave espacial

Famoso, é visto em rede nacional

Sai voando pela janela

Em arco-íris de aquarela

Tem lista de prêmios por seus afazeres

Parece possuir superpoderes

Ganhou tanto troféu que não caberia no céu

Já deu de astronauta, cantor e poeta

Ser alegre e não ser triste é sua meta

Duro para mim, é aguentar o travesseiro

Aquele traiçoeiro

Disputa comigo o posto

De confidente preferido, o tal metido

Mas tudo que conto, tenho direito

É no meu aconchego seu sono perfeito

Cada história sonhada me seduz

Quem não gostou, sai de fininho e apaga a luz.

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chega de saudade

DEDICATÓRIA

Rogério Matarazzo

É claro que a vida é boaE a alegria, a única e indizível emoção

— Vi-ni-ci-us.

— Como?

— Vinicius, porra! Meu nome é Vinicius.

— Não me interessa o seu nome, o que sei é que o senhor é muito malcriado.

— Lamento, eu não quis ofendê-la, mas já faz mais de um minuto que

estou a repetir o meu nome, e a senhora só conseguiu entender na hora em

que eu disse porra.

— De novo? Queira se afastar do interfone, senão eu chamo a polícia.

— Não... não. Por favor, não faça isso. Sou apenas um pequeno poeta que,

embora etilicamente alterado, tem nas mãos algo para a linda mocinha que

acabou de entrar aí.

— O senhor é mesmo um tarado, o que quer com a minha neta? Saiba que

ela é menor de idade.

— Nada, nada. Acontece que ela é maravilhosa, e toda vez que passa lá no

Veloso ficamos todos enfeitiçados.

— Veloso, quem é esse?

— Veloso é um bar, bastante discreto, que eu e um grande amigo

frequentamos aqui em Ipanema.

— Minha neta também frequenta esse bar?

— Não, ela vai para a praia e passa por nós cheia de beleza, esbanjando

alegria por toda a Montenegro.

— Quer dizer que ela anda flertando com marmanjos? Ah, ela vai ver só!

34

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

— Fique tranquila, ela não dá a menor pelota.

— Ainda bem, pois levaria uns bons petelecos.

— Por favor, nem pensar, eu não aguentaria tamanha culpa. Aliás, vou

saindo antes que isso tome proporções bíblicas.

— Mas, o senhor disse que tinha algo nas mãos.

— Tenho sim, é um poema que escrevi. A propósito, como ela se chama?

Gostaria de colocar uma dedicatória.

— Ora bolas! Se ao menos viesse com uma caixa de bombons. Poesia,

quem quer saber disso?

— Está bem, vou embora, mas... o nome dela, só para guardar num

cantinho macio da minha memória.

— Nem pensar.

— Mas eu preciso de um nome a quem dedicar meu poema.

— Quer o meu?

— Não, quero o dela, da garota.

— Isso mesmo.

— Isso mesmo o quê?

— Garota.

35

chega de saudade

DA VARANDA

Lilian Gattaz

... eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos... e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas, serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

, ainda que a chuva anunciada se recolha em branco e o veleiro das 6 não

aporte pontual e a onda retardada não se cumpra na arrebentação e a carta

dos ventos não estime um noroeste a invadir canais e a lua nem goze ao excitar

marés e a preamar não for prenúncio de castelos derretidos e o vento se curve

renitente frente à envergadura irritante da palmeira e o sol se imponha no mar

pra que gaivotas entendam que brincadeira tem limite e a cotovia testemunhe

a colheita de sonhos matinais e a palavra teime absoluta pulsando em binário

até furar meu cérebro e um poema seja expulso pelo o que há de fórceps em

toda e qualquer pena, ainda assim eu estarei aqui, paralisada frente a cínica

obviedade das esperas.

36

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

inundo de esperança a madrugada

salpico de sonhos a espuma

derramo toda a minha fé

no marulho da calmaria

(toctoctoctoctoc)

mesmo na lua vazia

ajoelho nessa imensidão

porque não há dia que não me tarde

se não balaio cheio

um sorriso perolado

num retalho de fazenda

numa concha de saudade

TRAINEIRA

Luiz Antonio de Queiroz

Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela, pescador!

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chega de saudade

SE VOLTASSES PARA MIM

Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins

O tempo... sombras de perto e sombras na distância—vem, o tempo quer a vida!

Se voltasses para mim

Apoiaria minha cabeça em teu colo

Com olhos fechados de entrega

Não sentirias o peso de minha dor

Pois ela se esvairia

Como rio que se funde ao mar

Se voltasses para mim

Tremeria inebriada pelo cheiro de tua pele

Que inundaria meu cérebro de calor

Não nos perturbaria o alvoroço do tempo perdido

Pois o substituiria

A serenidade do reencontro

Se voltasses para mim

Enlaçarias a minha mão

E sorriríamos simplesmente

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Não sentirias o peso de meu corpo

Pois eu o abandonaria

Dentro do teu abraço

Se voltasses para mim

Seria fugaz o longo interlúdio

Como estrela cadente atrás da montanha

Não nos machucaria a densidade da separação

Pois dançaríamos em uníssono

Muito além da música parar

Se voltasses para mim

Teu afago me tingiria de rubro

E aqueceria minha carne e sangue

Não teríamos mais fronteiras

Pois como canto gregoriano

Soariam nossos planos

Se voltasses para mim

Tua presença transbordaria minha alma de riso

E me afogaria na plenitude de tua cumplicidade

39

chega de saudade

Não nos perturbaria nenhum ruído

Pois habitaríamos uma estrela

De magia e realização

Quando voltares para mim

Será para sempre

E nosso tempo

Infinito

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Caro Vinicius

Quando você foi escolhido como tema deste livro do grupo literário do

Paulistano, fiquei surpreso. O quê, o poetinha, o Vinicius amoral, o Vinicius

dos vícios, ao lado de Camões, Dante, Cervantes? Seu nome me pareceu

deslocado. Eu teria preferido Shakespeare, Thomas Mann, ou o nosso

inigualável Machado de Assis. Resolvi: não participarei.

Muitos colegas gostaram da indicação do seu nome, lembrando que sua

memória lhes traz agradáveis recordações. Não é o meu caso, pois só cheguei

ao Brasil aos onze anos de idade, fugindo do nazismo e sem jamais ter ouvido

falar de você. Daí, talvez, o preconceito.

Seu nome significa boemia, bares, poesia, música, cigarros. Doses

oceânicas de uísque, o seu cachorro engarrafado. Mas sua vida, Vinicius, foi bem

desengarrafada. E, mais que tudo, havia as mulheres – muitas mulheres. Amigas,

esposas, ex-esposas, amantes, ex-amantes. Um boa-vida. Está certo, um boa-

vida que estudou literatura em Oxford, foi diplomata do Itamaraty em Los

Angeles, Roma, Paris, Montevidéu, mas um irresponsável. Nunca pensou nas

consequências dos seus atos, gastando dinheiro a rodo e namorando as mulheres

sem se importar com as esposas. Autor de uma obra gigantesca em verso, prosa

e dramaturgia, você foi uma pessoa plena de criatividade e vivência.

Tudo que eu gostaria de ter sido e não fui. Estudei sua vida e sua obra.

Admiráveis. Você casou nove vezes, e eu, uma – e fracassei. Teve um monte de

filhos, e eu, um. Foi o homem certo na época certa, pois nos dias de hoje sua

CARTA A VINICIUS

Hans Freudenthal

Tristeza não tem fim,Felicidade sim.

41

chega de saudade

existência teria sido menos afortunada – talvez apoiaria o funk, como presumiu

nosso amigo Carlos Eduardo. Milhões de conhecidos, milhares de amigos.

Amou centenas de mulheres, e eu, tão poucas – e a maioria nem ficou sabendo

da minha paixão.

Inveja? Com certeza. E agora, relendo suas obras mais famosas, sou

tomado por sentimentos que prefiro esquecer, de tantas coisas que poderia ter

feito mas não fiz. Vá embora, Vinicius, você me emociona, faz chorar.

E não vou escrever sobre você.

Sinceramente,

Hans

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Para começar a viver um grande amor é preciso que ele tenha dezoito

anos. Ela, uns quinze.

É bom esclarecer que os dois já tinham se percebido antes, muito antes, na

rua principal, e prestaram atenção um no outro. Ela ainda se recorda, foi num

daqueles dias que antecedem o Carnaval. Quase certo que passaram, se viram

e olharam para trás.

Quando, anos mais tarde, se fitaram com olhos interessados, ela se lembrou

que naquela primeira vez teve ciúmes dele, assim por nada. E desde então

ficou com sua imagem estampada na memória.

Ele deve ser alto como convém a um moço bonito e ter maneiras educadas.

Se parecer um pouco tímido e arredio, isso nem tem importância.

Sendo alto e bonito como um príncipe, e ainda carismático e gentil, ela irá

gostar dele antes mesmo de saber exatamente como ele é. E gostando dele,

quer ser sua namorada.

Um dia, ele irá confessar que quando a viu, teve vontade de cantar, como

se fosse sua a música, – Se você quer ser minha namorada, ai que linda namorada...Pode ser que a moça seja bonitinha também. Pode ser. Se até então ela não

souber, vai ouvir dele o elogio e se convencer disso.

É natural que eles queiram se conhecer melhor, conversando e gostando de

estar juntos. Cada vez mais. E se conhecendo e ficando juntos, se encantam

um com o outro. Já vivendo um grande amor.

Para viver o grande amor é preciso saber que não existe amor sem fidelidade; ter

como propósito agradar, ser verdadeiro e romântico.

PARA VIVER UM GRANDE AMOR

Maria Helena F. Vieira

Quando a luz dos olhos meus eA luz dos olhos teus resolvem se encontrar

43

chega de saudade

Contando e ouvindo os acontecimentos relevantes um do outro, e também

todos os outros, ela se surpreende ao saber que ele é louco por esportes e sabe

jogar futebol.

Para viver um grande amor é preciso que sejam de bem com a vida e

queiram se ver a cada momento. A essa altura ele já deve ter alforriado alguns

fantasmas dela e inaugurado um tempo de otimismo. Ela se aquieta, deixando

ao longo do caminho as armas e a munição. Porque para viver um grande

amor é preciso ser contente.

Com toda a atenção dele, ela se sente o centro do mundo.

Trocam presentes e palavras carinhosas e ela lhe dá o disco, – Eu sei que vou te amar, por toda a minha vida eu vou te amar. Maysa canta Vinicius e eles pensam

neles mesmos.

Ouvindo outras músicas, – concordam que todo grande amor só é bem grande se for triste, – não combina em nada com o romance que vivem.

Ela, insone, pensa nele espiando no fundo da noite.Ele pensa nela como praia, mar, neve, nuvem e o céu naquela hora em que ainda não

escureceu de tudo.Juntos fazem planos surpreendentes, com a certeza de que se cumprirão.

E eles se casam numa manhã chuvosa, num dos últimos dias de dezembro,

pois querem começar o ano juntos. Numa terça-feira que parece todos os sábados do mundo. Com pouca pompa e alegria pura.

E presenteados com a graça maior de ter seus filhos, brincam de inventar cirandas e contar histórias de bichos.

Suas datas principais vão passando rápido como os natais antigos da

infância.

E enquanto assistem mais um pôr-do-sol, caminham com passos não tão

lépidos por sua rua, que ao longo dos anos, mandaram ladrilhar com pedrinhas

de brilhante.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

CAPOEIRA

Maria Lúcia Perrone Passos

Quem diz muito que vai, não vaiE assim como não vai, não vemQuem de dentro de si não saiVai morrer sem amar ninguém.

Aquele que diz vou, não vai.

Não vai, não virá, não vem.

Aquele que diz dou, não dá.

Se der, só daquilo que já

não tem.

Quem jamais diz um não,

meu bem, é pro sim não dizer.

Jamais dirá sim. Alguém

um sim há de ouvir?

Ninguém.

Aquele que diz ter, não tem.

Aquele que diz sou, não é.

Não vai, não vem,

não dá, não tem,

não é ninguém.

45

chega de saudade

Nessa linha Horácio começa a nos falar de música. MPB nos bate-papos

culturais de terças, no clube. Brasil, país multicolorido, terreno fértil que

adapta ritmos africanos em outros cantos, explica ele. É o samba, que surge

no começo do séc. XX e passa a fazer parte de nossa identidade nacional.

No Carnaval encontra pontos de verdadeira glória com sambas-marchinhas

a levar o povo às ruas. Pelo Telefone do compositor Donga, é o primeiro deles.

Gravado por Pixinguinha, ganha sucesso e exporta o novo e polêmico gênero

musical mundo afora, a partir de 1917. Letras e refrões simples retratam

a natureza mestiça do povo sedento de alegria em sambas populares, pela

facilidade de assimilação musical: O chefe da polícia pelo telefone manda lhe avisar, que a Carioca tem uma roleta para se brincar ai, ai, ai...

Em 1928, a primeira Escola de Samba organizada: a Deixa Falar, na Estácio.

Os desfiles de rua só acontecem quatro anos depois, na Praça Onze, com o

apoio de Mario Filho, dono do jornal Mundo Esportivo. Ele foi o grande

patrocinador das escolas, premiando a Estação Primeira de Mangueira, já em

verde e rosa, como grande vencedora do carnaval de 1932.

— Ruas em Cores, nos fala Horácio. Nunca se viu tantos tons em um

movimento social que identificasse seus grupos, cor a cor. Verde e Rosa,

Azul e Prata, Vermelho e Branco, Amarelos que não param de crescer ano

a ano.

A história não para aí, a partir de 1957, um grupo de músicos e poetas

influenciados pelo jazz americano remodela o samba com uma batida

sincopada, a da Bossa Nova, encontrando ferrenha oposição da velha guarda.

Betty Wey

O seu balanço é mais que um poemaé a coisa mais linda que eu já vi passar.

BIS

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

João Gilberto, Tom Jobim e Vinicius de Moraes encabeçam o time. Difícil

adaptação. Confusões de elitistas que não reconhecem a nova música, como

MPB.

— Toda mudança causa reação. E essa foge às regras da tradição, nos

diz Horácio. Ele nos fala que a nova música desenvolve-se em quatro vozes

e tons dissonantes harmonizam-se em acordes independentes à melodia que

corre solta na primeira voz. Frases melódicas são tão claras que se identificam

com a técnica dos prelúdios sofisticados de Bach. Os sons causam estranheza

e desagradam no início. Eles insistem. A Tom e Vinicius segue o time: Baden

Powel, Carlos Lyra, Menescal, Bôscoli, Nara Leão, Chico Buarque, Edu Lobo,

cada um a acrescentar um pouco mais de bossa a algo que sabiam fazer bem:

Música. Eis aqui esse sambinha, samba de uma nota só...Nessa época, década de 50, bossa era gíria dos cariocas que queria dizer:

ginga, jeito, maneira, modo. Se alguém destacava-se em alguma coisa original,

fácil e simples de se fazer, dizia-se que tinha bossa: bossa de diretor, bossa de

modelo, bossa de paquerador, e assim por diante. Mas a que ficou eternizada

foi a Bossa Nova, que nasceu em oposição a tudo que estava superado e velho

na música popular brasileira. Letras melancólicas, ritmos a la bolero, valsas e

serestas em pleno século XX? Cadê a bossa, diziam? E ela chega toda cheia de

graça, menina leve, solta e encanta!

— E qual é a sua? pergunta Horácio.

— A Bossa Nova também é nossa! Fala o conselheiro Marcelo Ória. Em

1975, o clube acendeu para recebê-la. Salões lotados, mulheres lindas a espera

do Poeta e sua bossa, conta.

— Vinicius de Moraes veio ao clube?

— Pois é, a convite do nosso presidente Luiz Ferraz do Amaral, fez o maior

sucesso por aqui. Querem ver fotos dos arquivos?

Retratos esmaecidos mostram Vinicius e Toquinho no palco do

Paulistano acompanhados por um grupo de músicos e três cantoras, para

ele desconhecidas. Pedimos mais e nos conta que Vinicius inicia a vida

profissional como advogado, já diplomata viaja a Paris onde encontra

inspiração para suas poesias. De poeta a músico com alma de filósofo, um

pulo. Rio de Janeiro o cativa, Ipanema o seduz.

— Incrível ele aceitar o convite do clube. Vocês não acham contraditório

47

chega de saudade

com a sua maneira displicente de ser, cantar para uma plateia tão elitizada na

época? diz Horácio.

— Acreditem: ele aceitou, apesar de achar que aqui só encontraria reaças,

nos fala Marcelo.

Vinicius saudou amigos com Saravás, encantou a todos com cantos, contos

e prosas, aproveitou o bom uísque CAP, rótulo preto, e deixou todos com um

gosto de quero mais: Vai minha tristeza, e diz a ela, que sem ela não pode ser...— Parece que foi ontem, continua o decano Marcelo.

Ele chegou acompanhado de Mariana, jovem senhora que poderia ter sido

sua décima esposa! Aparentando uns 40, trinta os separam em contrastes: tão

longe, tão perto; primavera, outono; nostalgia, esperança no vaivém melódico

do romance eterno. Não deu tempo, ele se foi um ano depois.

— Não, Marcelo, o poeta continua vivo entre nós, com sua música eterna!

É o grande responsável pela mudança radical da poesia na MPB.

Personagens evoluem: a mulher traidora, vulgar, vilã e vagabunda dá

lugar à garota bonita, cheia de graça, a caminho do mar. A mulher amada e

linda rejuvenesce e ecos de juventude radiosa recheiam os novos tempos que

acompanham 50 anos de sonhos com a garota de Ipanema.

— Bis, Vinicius. Bis!

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Hoje tentei fazer uma ligação para o céu.

Preciso trocar umas ideias, ouvir sua voz. Hábitos que, como sombras,

marcam nossas almas; afinal falávamos todos os dias só para jogar conversa

fora. Tudo começava cedo. Você ou eu nos ligávamos e dizíamos:

— Bom dia. Pensei no que falamos ontem e achei uma saída para aquela

situação que você comentou. O que vai fazer mais tarde?

Coisas de rotina, pois quando somos amigos tudo é pouco urgente e sempre

muito importante. Na última vez que nos encontramos, percebi com tristeza

que nosso diálogo era agora um monólogo. Acho que a mudança me atingiu

mais que a você. Como saber.

Depois tudo ficou silencioso. Os dias esticam-se longos e a todo momento

são desapontados pela sua ausência. A falta dos pequenos gestos é dolorosa

demais e a rotina pede que minha criatividade seja mais rápida do que a

sombra da tristeza. Esqueça meu choro. Ele sempre acontece quando algo faz

com que eu me lembre de nós. Sei que vai passar. A compreensão faz parte

das lições aprendidas enquanto perambulo sozinha pelos labirintos abissais

da alma.

Vivemos como eternos e não o somos. Há momentos em que inconformada

com o ciclo da vida transgrido a aceitação do inevitável e, como uma viciada,

anseio pela sua voz. Anos passam e como autistas criamos distância e optamos

por não aprofundar assuntos de difícil solução. Por vezes, sua presença é

tão forte que esbarro no seu perfume e me delicio na lembrança das nossas

histórias. No contraste, tropeço em momentos onde tudo é distante e nem

CANÇÃO DE ENGANAR TRISTEZA

Bia de Castro Oliveira

Se a tristeza um dia Te encontrar triste sozinho Trata dela bem Porque a tristeza quer carinho

49

chega de saudade

mais me lembro de que um dia existimos juntos. Tudo parece um sonho.

Complicado é explicar essa dor tão real que me pega sem aviso. Dizem que

me vê de onde está. Será que tem vontade de estar comigo ou já me esqueceu?

Só sei de mim e tenho saudades, longas e indefinidas saudades.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

NO REINO DA ALFACE

Maria Júlia Kovács

Não comerei da alface a verde pétalaNem da cenoura as hóstias desbotadasDeixarei as pastagens às manadasE a quem mais aprouver fazer dieta.

A beleza é fundamental escreve e canta Vinicius. Vale para as redondinhas?

Nasci na época errada. Se Rubens tivesse me conhecido, seria sua musa. Minhas

formas arredondadas o teriam encantado, muito mais do que a Modigliani.

Vivo no reino da alface. Ainda bem que gosto deste verde com bastante

azeite, sal e complementos. Nada como um delicioso Gorgonzola. Procuro em

vão nos manuais de dieta esse complemento.

São curiosos esses manuais. Propõem praticamente a mesma coisa. Coma

de tudo um pouco, menos gordura, açúcar e carboidratos. Você não deverá ter

fome, só fominha, como dizia minha querida irmã Verônica, sempre magra.

Coma de três em três horas, não chocolate ou pão com queijo. Encha seu

tupperware de acelga, alface, abacaxi, tudo com A. E nem pense em não comer,

você come... só estas coisas e emagrece.

Carne, ótimo! Agora vou conseguir comer algo substancioso. Bela ilusão. O

bife frito em zero gordura tem que ter o tamanho de sua mão, fechada. Com os

dedos abertos só alface. O ovo foi ressuscitado, que bom. Uma boa omelete, ou

mesmo ovo cozido. Cai no estomago vazio e preenche. Aí leio a reportagem que

os atores e atrizes para emagrecer comem apenas a clara, dispensam as gemas.

Aí só a Deborah Secco, o seu sobrenome vem a calhar, magérrima.

Terminada a Páscoa penso em ovos, de chocolate como a mente rotunda

logo conclui. Merece o prêmio Nobel quem inventar um chocolate de

alface. Não é tão difícil, cacau, leite, açúcar – acho que a alface não deve

atrapalhar. Se coelho come alface e bota ovo de chocolate alguma química

especial ocorre.

51

chega de saudade

Para finalizar esta choradeira, recorro à máxima bancária ao contrário –

gaste mais do que ganha. Não sei por que uso a máxima dietética no banco e

a máxima bancária na dieta.

Escrever emagrece. Quando a inspiração travar, mastigue alface e não

engula.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

QUEM CALA CONSENTE

Christina Tibiriçá

Voltou a esperançaÉ o povo que dançaContente da vidaFeliz a cantar

O Bloco de Ipanema já seguia pela Vieira Souto, em direção à Visconde

de Pirajá. Os foliões ondulavam tal serpente lenta e sensual encobrindo ruas e

calçadas com sua pele multicolorida. Piratas, bailarinas, ciganas e malandros

gingavam irreverentes. Suas vozes entoavam marchinhas dos anos 70,

entrecortando o som dos pandeiros, bumbos e trompetes.

Encharcada de suor, eu tentava me desfazer de pedaços da fantasia

de colombina grudados na minha pele. Neste momento, eu a vi. Braços

musculosos envolviam seu vestido prateado e, ainda que a peruca loira e

os longos cílios postiços a rejuvenescessem, era evidente: o rapaz a seu lado

estava saindo da maternidade, à época em que se casou com Tio Osório.

Sepultado há menos de um mês com toda a glória e pompa destinada

aos diplomatas aposentados, Tio Osório, irmão mais velho de mamãe, foi o

tio mais odiado. Ficou órfão na adolescência e se tornou o esteio da casa. A

sobrecarga de responsabilidades na juventude o transformou em um homem

severo e amargo. Nunca o vi sorrir. Tapinhas na cabeça eram os únicos

gestos de carinho com os sobrinhos, recebidos sem qualquer reclamação

pelo medo que nos infundia.

Na família, sempre se comentou furtivamente que ele tinha sido o mentor da

ideia de pedir aos militares que expulsassem Vinicius de Moraes do Itamaraty.

Limpamos a carreira livrando-nos dos alcoólatras, pederastas e subversivos,

dizia envaidecido, coçando o bigode, que lhe dava um ar de ditador nazista.

Tia Zulmira era sua sombra, ficava sempre atrás dele, guardando uma

distância comedida. Ria de suas piadas e movia a cabeça afirmativamente

53

chega de saudade

quando ele vociferava contra os comunistas. As ordens dele eram dadas pelo

olhar. Havia olhares para todos os momentos: quando deveria servi-lo à

mesa, ficar calada ou se despedir e ir embora.

No enterro, coberta de negro, agarrada ao caixão, chorava com desespero

e murmurava para o defunto: Minha vida acabou, amor. Lembro-me de ficar

impressionada com seu aspecto transtornado e as profundas olheiras que

marcavam seu rosto.

Meus sentimentos com relação à Tia Zulmira foram se alterando ao longo

do tempo. O desprezo que eu sentia na minha adolescência, em razão da

obediência incondicional ao marido, se transformou em compaixão e depois

em assombro. Eu podia entender a submissão e o respeito, mas jamais o

amor. Até aquela terça-feira de Carnaval.

Apressei o passo, tentando me afastar de Tia Zulmira. Acreditava que

encontrá-la naquele momento seria como desnudá-la no meio da multidão,

o desmascaramento da esposa fiel e apaixonada, o fim de uma encenação

teatral que havia durado uma vida. Mas a multidão enlouquecida com o final

do refrão de Máscara Negra impediu minha passagem e quando percebi estava

ao lado do casal folião, de quem eu procurava escapar.

Como era impossível fingir que não nos havíamos visto Tia Zulmira se

aproximou e abruptamente, antes que eu pudesse sequer cumprimentá-

la, me explicou que estava ali porque o marido morto a havia autorizado.

Em quase trinta anos de casamento eu jamais o desobedeci, afirmou com

orgulho.

Ante meu olhar incrédulo, contou que fez um trato com o finado: se

Tio Osório não permitia que ela desfilasse na Banda de Ipanema deveria

mandar uma mensagem. Qualquer sinal seria suficiente.

Semanas a fio, sentada ao lado do túmulo, aguentei o sol e as tempestades

de verão, por dias inteiros, esperando ouvir a voz de Osório vinda do Além,

ela me contou com ar compungido. Visitei médiuns. Um deles até dizia ser

especialista em encarnar maridos que precisavam contatar suas mulheres

para tratar de assuntos que, em vida, não puderam ser resolvidos. Tudo em

vão, nem uma palavra, uma linha psicografada ou um prenúncio. Então,

depois de muito rezar, senti uma premonição: o silêncio de Osório era um

consentimento e aqui estou.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Ela sorriu matreira e se afastou rebolando, enlaçada em seu jovem

companheiro, sob o refrão da Marcha de Quarta-Feira de Cinzas. A Banda passava pelo antigo Bar Veloso e, por um átimo, eu tive a certeza

de ter visto o Poeta rindo e se deliciando com a cena da viúva do homem que

o afastou da carreira de diplomata.

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chega de saudade

ombros

torneados pelo sol

voluptuosa energia

sensuais senhores

imóveis na areia

dorso

longo de suor

intocado de brisa ousada

tempestade anunciada

curvo mar revolto

pernas

firmes penugens douradas

vida lasciva

encantadas de desejos

credoras

beijo

manto vermelho

molhado quente

teso desejo incontido

a mim, nesse minuto foi dado

NEM UM MINUTO

Angela Guimarães

Um minuto o nosso beijo Um só minuto; no entanto Nesse minuto de beijo Quantos segundos de espanto!

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

EXCÊNTRICOS DO 152

Ignez Matarazzo

Eu cá por mim,odeio paradoxos...

Tolinhos irritantes.

A luz entrevada de quem não queria amanhecer já era o prenúncio. Tempos

duvidosos na mudança do casal Federico e Gabrielli para o apartamento

nos Jardins, em São Paulo. Pelo jeito, mestres na contramão dos costumes.

Decoração clean, família reduzida, amigos alegres, e Cookie, pequinês de

estimação, antipático e rebelde.

Comportamentos indescritíveis e horários nada convencionais tornaram

estressante o cotidiano dos demais moradores. Muitas reclamações. Total

dissonância com todos.

Paixão antes inabalável, caminhou para discussões, brigas, até a separação

em grande estilo: roupas, objetos pessoais indecorosos, sonhos, tudo voando

do 15º andar na Oscar Freire. O acontecimento resultou em ocorrência aos

inquilinos. A proprietária acharia muito divertido esse universo peculiar,

entretanto já havia passado desta para melhor, e nada soube do destino

inglório dos articulados moradores, reduzidos a crisálidas.

Com a reconciliação dos dois, a paz temporária durou até a festinha

decadente-bizarra. Casais exóticos, anões, atletas e famosos. Muita bebida,

shows ao vivo, som altíssimo.

Ante o mal-estar, provocado pela quebra das boas normas de convívio em

condomínio, chamei a polícia. Tensão dramática em plena madrugada. Sob

meu olhar de espanto e constrangimento dos vizinhos, retiraram Federico,

Gabrielli, seu cão e convivas felinianos do apartamento. Espalhados pelas

escadarias e elevadores, sombras de humanos descompostos, bêbados, que

57

chega de saudade

numa cadência desequilibrada, passavam por uma fileira de policiais, direto

para o camburão. As matérias e fotos sobre o affair não fizeram referências

à celebridade no meio da confusão e gritaria. Nenhum detalhe flagrava o

irreverente poeta-músico, bem diplomata, tranquilo no local. Ele estava sim.

Ali. Celebrando a vida e o amor, a seu modo. Muito bem acompanhado,

cigarro e copo de uísque aguado nas mãos, Vinicius, com um sorriso entre

fascinado e irônico, de quem saía da tonga da mironga do kabuletê.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Das grades vejo muro

Não consigo ir além

Fruta verde cai na terra

Amora é de ninguém

Bom seria eu maduro

Dissolver-me em sua boca

Renasceria da sombra

Carregando um tesouro

De feitiço embriagado

Olhos meus a suplicar

Libertar minha doença

Teu amor o meu altar

Viciado em abstinência

Danço bossa sem meu par

O remédio num refrão

Tem canção em seu olhar

Já brinquei de fugitivo

De Paris ao Rio amigo

Me vejo agora preso

Na grandeza do pequeno

ABSTINÊNCIA

Lisa Kahuna

Sem pedir licença muda nossa vida,depois convida a rir ou chorar

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chega de saudade

Palavras e acordes

Lavam nuvens ao redor

Lustram pensamento

De quem se sente só

Por que dessa barreira

Em dois, tudo é melhor

O relógio está passando

E a vida dá um nó

Desfazer o emaranhado

No amor jogo de dados

Sorte joguei na mesa

Vivo a dor da incerteza

Coragem já não nego

Ao ver tolo e cego

Amarrados pelo medo

Sufocando mil desejos

Redenção é o estado

Minha carne nesta Terra

Sou teu anjo inebriado

Anunciando outra esfera

Antes incompreendido

Hoje, homenagem

Atirei flecha certeira

Em corações capazes.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

O SAMBA É MAIS FORTE DO QUE EU

Carlos de Faro Passos

Pra que chorar, Se o sol já vai raiar, Se o dia vai amanhecer,

Convidei minha mulher para tomar café da manhã num bistrô da Vila

Madalena. Gostamos de lembrar os anos felizes de Paris, no início dos anos 70,

quando estudamos na Sorbonne e moramos na Cidade Universitária. Sempre

pedimos croissants e café crème, lembrando o simpático garçom português que

trabalhava no L’Ecritoire, na praça em frente à universidade.

Chegamos a Paris em setembro de 69, e nos hospedamos no hotel Saint

Michel no Quartier Latin, onde viveram estudantes e intelectuais brasileiros.

Madame Savage, a bizarra dona do hotel, sempre falava do seu amigo Jorge

Amado, que lá esteve durante os anos da ditadura Vargas. Simpatizou conosco,

emprestando o ferro elétrico à minha companheira, e tendo muita paciência

com meu francês limitado.

Fizemos logo vários amigos na colônia brasileira, composta de diversos

exilados, forçados ou voluntários, como nós. Iniciamos amizades duradouras

com o Sebastião e a Lélia, até hoje residentes em Paris, o Cristovam e a

Gladys, que exercem agora atividade política em Brasília e o Guilherme, que

trabalhou na ONU apoiando refugiados políticos em várias partes do mundo.

Viviam também em Paris outros líderes políticos, brasileiros e portugueses,

como o meu cunhado Fernando, deputado paulista cassado pela ditadura, o

Aluísio, hoje senador, os professores Celso Furtado e Barradas de Carvalho,

português, professor da minha mulher, além do seu amigo Mario Soares, com

importante carreira política em Portugal após a queda do Salazarismo.

Prestigiávamos os espetáculos musicais de Caetano e Gil, exilados em

Londres, Geraldo Vandré, Toquinho e Vinicius, e outros, além dos irmãos

Parra, filhos da cantora e compositora chilena Violeta Parra. Em meio à

61

chega de saudade

efervescente vida cultural parisiense, acompanhamos com tristeza o desenrolar

da ditadura Médici com suas prisões, torturas e desaparecimento de opositores.

Vivia-se um período negro e lamentável da história; vários intelectuais e

artistas fugiram do Brasil e de outros regimes militares latino-americanos.

O dinamismo cultural parisiense me lembrou o desenvolvimento da MPB e

a obra de artistas como o Vinicius de Moraes. Eu ainda não havia ingressado

na Poli-USP quando ouvi com admiração e prazer o long play Canção do Amor Demais gravado por Eliseth Cardoso, com músicas do Tom e Vinicius,

importante marco de lançamento da Bossa Nova. E não parei aí. Assisti a uma

palestra do poetinha na Poli, descrita na sua crônica Os Politécnicos, atuei na

peça musical do Vinicius Pobre Menina Rica, com o Grupo Teatral Politécnico,

que formou vários atores brasileiros. Mais tarde tive a felicidade de conversar

e assistir à apresentação do poeta no João Sebastião Bar, da Rua Dona

Veridiana, com a participação da Elis Regina. E a vivência com a música do

compositor continuou: recital da Simone e Toquinho em Santiago do Chile,

show do Stan Getz na boate Blues Alley em Washington DC, apresentação

do Baden Powell no Sheraton da Praia do Vidigal-RJ. Mais recentemente, em

Portugal, ouvimos pela primeira vez, numa tasca da Alfama, a gravação do

sarau em homenagem a Vinicius na casa de Amália Rodrigues. Foi quando o

poeta narrou a irresistível inspiração para compor o samba Pra Que Chorar, na

Clínica São Vicente, em Ipanema.

Envolvidos com nossas lembranças, saboreando os croissants, minha mulher

e eu percebemos a passagem de alguns jovens fantasiados. Minutos depois,

surgiram mais fantasias. Uma longínqua batucada de samba cresceu até

chegar a um pico de som apoteótico. Então, parodiando o Vinicius e pensando

no seu depoimento na casa de Amália, falei: O samba é mais forte do que eu!

E saímos dançando pelas ruas da Vila Madalena, cantando: Pra que chorar, Se o sol já vai raiar, Se o dia vai amanhecer. Pra que sofrer, Se a lua vai nascer, É só o sol se pôr. Pra que chorar, Se existe amor. A questão é só de dar, A questão é só de dor.

Apesar da ausência de Sebastião e Lélia, Cristovam e Gladys, e de outros

amigos, encontramos as filhas e os netinhos alegres já sambando no bloco carioca

Bangalafumenga. Foi um dia feliz, como naqueles velhos tempos de Paris.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

VINICIUS

Angélica Royo

Canta, cantaCanta, vai, vaiSegue cantando em paz

Vou compor um samba, alguma coisa que ninguém fez. Você teve tantas

musas e veja só que diferente, minha inspiração aqui é você. O texto, não será

lírico, tampouco vulgar, simples como você meu poeta popular. Garçom traga

um uisquinho, nesta mesa não pode faltar. Fazer parte de seu grupo quem não

haveria de querer? Para os amigos, tudo. Este sempre foi seu lema.

No embalo de seus olhos, digo: me inspire Vinicius, me inspire. E você,

com voz melodiosa, diz: tome um gole, estou pronto para compor contigo.

Quero que seja minha parceira. Vamos cantar o meu mais recente amor.

LETRA:

Parece fácil, juro que não é.

Além de sofrer de amor, quem é você?

Vejo no teu olhar a procura de algo. O que Vinicius, o quê?

Queria te fazer

Uma canção

Que falasse do amor

Da mais pura atração

Do sorriso, da flor,

Dos amigos, da dor

E a falta que faz a amada.

De conquistas você também é um mestre

As letras não têm quem as crie melhor

Todas rimam com belas e doces mulheres

Tempos felizes, juras de amor e paixão.

63

chega de saudade

Parece fácil juro que não

é Além de sofrer de amor quem é vo ------------------------

cê Vejo no teu olhar a procura de algo

O que Vinicius o que Queria te fazer

Uma canção Que falasse de

amor A mais pura atração Do sorriso e da

flor Dos amigos da dor E a falta que faz

a amada De conquistas você também é

MÚSICA:

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

é um mestre As letras não têm quem as crie

melhor Todas rimam com belas e doces

mulheres Tempos felizes jura de amor

e paixão

arranjo: Daniel Silveira

65

chega de saudade

POETAS

Guilherme Hernandez Filho

Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho.

Verdadeiros poetas vivem como poetas, Drummond disse isto de Vinicius e

ele tinha razão. Talvez por isto nunca naveguei em tais águas.

Não me entendam mal, por favor. Nem de longe estou me comparando

a alguém. Seria parvo se o fizesse. Mas é uma simples constatação: jamais

escrevi poemas. Só tenho coragem, e um pouco de técnica, para perpetrar

minhas fortuitas crônicas.

São apaixonados, não uma, mas muitas vezes. Apaixonam-se não só

por outros humanos, por viventes e inanimados. A pedra do caminho de

Drummond que o diga. Paixões irresistíveis; irrefreadas; intensas; eternas, até

efêmeras; infinitas enquanto durem e sempre inspiradoras. Fascinam-se por

ideias; causas; filosofias; pensamentos... Vinicius foi um eterno apaixonado. E

pelas mulheres, sempre, não se sabe quantas.

Veem a vida num colorido diferente dos demais. Nosso espectro tem

sete cores, suas combinações e intermediárias. Eles enxergam cores cujas

frequências de vibração não são alcançadas pelos olhos dos comuns.

Também seus ângulos de visão e de percepção são comparáveis aos de um

auditor experiente, capazes de observar e registrar as mais tênues diferenças,

as quais aos nossos passam despercebidas. Enxergam as palmeiras onde

cantam os sabiás; areias sáfias e lagadiças; a gente ordinária e suja; as

Terezas; Marias; o corvo; o sapo-cururu; os mares e rios; a garota de

Ipanema e o que mais seja.

Seus narizes recebem aromas que os nossos não tomam conhecimento.

Aqueles que diferem lavandas, de rosas; grama molhada pelo orvalho da

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

manhã, de capim-limão às margens de uma estrada. O cheiro do café fresco

matinal, o sabor nos nossos lábios, mesmo sem tocá-lo.

E os sons? Para qualquer um o zumbido de um inseto é nada. O latir de um

cachorro, o riso de uma criança, um apito da fábrica de tecidos, os gorjeios dos

pássaros que não gorjeiam como lá, um trenzinho caipira, os sinos, cada som

é parte de uma sinfonia cheia de harmonia. Eles os traduzem em vocábulos

capazes de comover seus leitores.

Eles vão transmitir com seus versos os efeitos dessa sensibilidade, pintar

com palavras o ardor que conseguem ver diferentemente de nós e alertar-nos

para a existência de um mundo paralelo ao que frequentamos no dia-a-dia.

Viver como um poeta é possuir a capacidade, a perspicácia, de sentir o

essencial e muito mais. É estar livre, descompromissado, ter a vida pulsando

nas veias, vontade de exercitar novas experiências, condições, novidades. E

colocar tudo isto no papel.

67

chega de saudade

SARAVÁ

Danielle Martins Cardoso

Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia.

Quando Vinicius acordou e descobriu que tinha perdido a própria sombra,

permaneceu alguns minutos enrodilhado na cama, em rememórias, onde ela?

Pensou no ontem, refez caminhos, pesquisou lugares reais e imaginários, fechou

os olhos em sonho. Pista alguma lhe encheu a testa. Deixou o travesseiro,

cabeça ressentida da fanfarra da vida, encontrou gel e espelho.

Um passeio em Ipanema, talvez ali encontre a ingrata. Num doce balanço

a caminho do mar, ela! Acreditou, apertou o passo, tirou os óculos. Não.

Apenas – como apenas? – uma garota cheia de graça, dançando com as ondas,

que coisa mais linda.

Em terra firme, bar em bar, copo em copo, noites seguidas insistiu.

Interminável escuridão.

Devo tê-la deixado na Rua São José, quem sabe com Marcus Vinitius. Mas

desde os nove anos se esqueceu do menino que tinha cruz e mel como nomes.

Insistiu na Lopes Quintas, nadou em Cocotá para esfriar a cabeça, percorreu

a Voluntários da Pátria, Lygia, me mostre os bolsos, gritou. Mistério.

Amigos, ligou para todos. Dentro do piano não, respondeu Tom. O menino

Chico vasculhou a construção ao lado de sua casa, Baden sugeriu perguntar a

Ossanha, dedilhou Samba em Bênção e tocou Berimbau, quem sabe a danada

não aparece? Nó em manga de camisa também funciona, parceirinho, sugeriu

Carlos Lyra. Toquinho prometeu Aquarela, na tonga da mironga do kabuletê,

papai, vai lá, sorriram Georgiana e Suzana.

Vinicius deu três pulinhos, pintou as Cores de Abril, colheu a Rosa de

Hiroshima e montou a Arca de Noé. Tudo para seduzir a fulana. Chegou a

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

pensar que tivesse migrado para Buenos Aires, porque não podia entrar numa

tangueria que se arrepiava. Mas se lembrou de ouvi-la sussurrar: só danço

samba, só danço samba...

Muito alegre a sombra, já havia pensado em amarrá-la ao corpo, porque

de uma alegria rebelde, sem dar caso a convenções, Maria vai com as outras,

bandida. Ficou com pena, sombra amarrada murcha, morre. E a sombra

ensaiava voo, de brincadeira, para logo voltar a ciscar o chão, enjoadinha que

era.

Sombra-samba-sombra. Zunzum no peito, artérias! As mulheres,

sabichonas, irão me guiar. Acreditou, com fé, que se escondia sob saias e

decotes. Cada verbo, dobra, letra, ponto, curva beijou, avidamente. Intuiu, em

dado momento, que repousava nos olhos da amada. Secou lágrimas, pinçou

cílios, púbis, bias, reginas, lilas, marias, nellitas, cristinas, gesses, martas, gildas,

cantou amor demais.

Orfeu é negro, João Cabral contou três sombras, eu de uma insustentável

transluscência, Ariana, me ajude. Insensatez essa coisa de sombra sem corpo,

pele sem carne. Fui eu o grande íntimo da noite, meus dedos enlaçaram a

névoa, desordenado abandono, deserto sou. Mas, na areia, sou oásis. Chega

de Saudade.

Vinicius, em assobio sem som, sorriu. Regra três: é melhor ser alegre que

ser triste, alegria é a melhor coisa que existe. Por toda a minha vida, inda hei

de procurá-la, em seu louvor espalhar meu canto, rir meu riso, derramar meu

pranto, a fecundaria com um simples pensamento. Vida de poeta, desdita, vai.

E não encoste sua face em outra, vai. Talvez encontre um grande amor, vai.

Amar, chorar, sofrer. Vai viver!

69

chega de saudade

RECADO DO ZÉ

Gilda Pasqua Barros de Almeida

O amigo: um ser que a vida não explicaQue só se vai ao ver outro nascer

Você bem dizia que eu levava jeito. Nunca dei atenção. Depois, deixou o

botequim de Ipanema, me abandonou pelo scotch bem refinado, rótulos que

nem de longe eu sonhava ver na prateleira, lembra? Sem dizer do chiquê dos

convites que recebia, sem pensar nos versos de amor que arranjava em tom

menor... maior... com redondilha pra cá e soneto pra lá. Eu só ouvia, e tudo era

estranho, nada pro meu entender, mas veja bem, presto carregava seu copo.

Isso aí, amigo. Custou, mas o boteco virou bar muito bem frequentado, a

rua mudou de nome, lógico, o seu. Vem gente de longe se sentar onde passava

mil horas escrevendo, rabiscando. Catei muitos amassados – você nem via! É,

as coisas, a vida, todo mundo muda, até eu que guardei bem dentro de mim o

leva jeito, Zé; alguns desamassei, lia no amanhecer, daí a decisão: bati à porta

da Candinha. Sabe, ela me mostrou os dós maiores, os rés menores, fez da

minha mão uma clave, calejaram os dedos e agora o dedilhado sai limpinho,

os acordes vão no tempo da bossa nova: vai então uma frase, sua cria, que eu

imito muito devoto e canto com uma baita paixão: O morro não tem vez e o que ele fez já foi demais...

E pra finalizar, voltei pro meu Ceará, onde encanto até cobra tocando a

viola no baile de São João. Moça bonita de saia rodada, com pinta no rosto

e flor nos cabelos roda roda pelo salão, conquista moço apeado, faz casório

marcado e eu canto seu canto pagão. É Zé, cê leva jeito. Vai aqui o agradecido

ao amigo que me deu profissão.

Zé da Bossa

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

SEGUNDA EDIÇÃO

Vicente Rággio

Quem virá despetalar pétalas no meu túmulo de poeta?

Quando eu morrer quero voltar a viver

Quero voltar Vinicius de Moraes

Não exatamente o mesmo

Mas um pouco diferente

Menos plural menos intenso mais poeta mais casual

Certamente não serei diplomata

Não me faz falta

Não quero andar por aí pelo mundo à toa

Vou passear mais pelo Rio por Ipanema

Mergulhar na mansidão perene da Bahia

Onde serei menino e de Caymmi irmão

Mais amigo de Jorge Amado amante de suas Tietas

Viajante do agreste

Protegido por seus orixás

Farei mais versos e menos canções

Não terei tantos parceiros

Só os verdadeiros

Nem muitos casamentos de papel passado

Menos mulheres formais

Preciso de mais tempo para as extraoficiais

Deixarei de lado os excessos

As noites maldormidas

O exagero nas bebidas

71

chega de saudade

Ao que se deve quem sabe

Algumas ideias descabidas

Quanto ao dinheiro

Metade vou gastar com amigos champanhe e caviar

A outra metade desperdiçar

Quanto ao amor

Com algum pudor vou confessar

Que Nelson Rodrigues tinha razão

Quando me disse

Com aquele jeitão professoral

Vinicius devagar com o andor

Se não é eterno não é amor

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

O BEIJO

Giselda Penteado Di Guglielmo

Um minuto nosso beijoUm só minuto; no entantoNesse minuto de beijoQuantos beijos derradeiros.

O poeta dizia que o amor é infinito enquanto dura, mas eu só conseguia pensar

no meu amor que findara de repente. As palavras e os acordes da canção que eu

ouvia eram como uma mensagem e me faziam recordar os momentos de paixão

ainda não esquecidos, as ausências e os retornos, o muito amor, as despedidas. E

meu encontro casual com o poeta, que iluminou por um instante minha vida sem

amor com sua poesia, sua música e sua presença.

Naquele começo de noite em volta da mesa do bar, trocando confidências,

ouvindo poemas e canções de Vinicius de Moraes enquanto bebia umas e

outras, fui convidada para um almoço festivo no sábado seguinte, na casa

de Zequinha, irmão de nosso companheiro Américo Marques da Costa,

dois grandes amigos de Vinicius. Sabia ter sido convidada por fazer parte da

turma do Bar do Museu e isso me dava a certeza de que iria encontrar pessoas

ligadas à literatura e à música, o que me deixou feliz e ansiosa. Na época eu

já fazia as primeiras incursões no universo da poesia e para mim era muito

importante ter esse tipo de contato, minha cabeça vivia cheia de Baudelaire,

Verlaine, Fernando Pessoa, Drummond e Vinicius de Moraes.

No dia do almoço meus amigos deveriam sair do bar por volta de uma hora da

tarde e consegui chegar a tempo de acompanhá-los. Havia caprichado no visual,

sabia que eles gostavam de me ver charmosa. Vesti a blusa mais bonita, me esmerei

na maquiagem e no cabelo. Além de agradar meus amigos, queria impressionar os

outros convidados e esquecer, por alguns momentos, as carências afetivas.

Ao chegarmos à casa de Zequinha no Morumbi, cercada de árvores e jardins,

a maioria dos convidados já estava lá. No meio deles Vinicius, com o indefectível

73

chega de saudade

uisquinho na mão. Ao seu lado, violão em punho, Toquinho. E, cheia de cuidados,

sua mulher Gilda Matoso.

O almoço transcorria sobre carretéis, como diria o cronista social mais

badalado na época. Com várias celebridades presentes, fui colocada ao lado de

Sérgio Buarque de Holanda. Ele, usando de muito savoir faire e elegante modéstia,

se apresentou:

— Sou o Sérgio Buarque de Holanda, pai do Chico.

Falei de minha admiração por Chico. Como o descobrira ao ouvir pela primeira

vez Com Açúcar, Com Afeto, num programa de rádio, desconhecendo ainda quem era

o dono daquela voz tão peculiar. Disse mais, que só então fiquei sabendo pertencer

essa voz a Chico Buarque, o compositor daquela linda canção. E como, a partir

desse momento, seu filho me cativara para sempre.

Conversei com todos, ouvi o que tinham a dizer, mas meu foco era Vinicius.

Conhecia de cor alguns de seus poemas e sempre que podia dizia o Soneto da Fidelidade, em meio à canção Eu Sei Que Vou Te Amar, que fazia parte de meu incipiente

repertório musical, sempre fiel às canções de amor criadas pelo poeta.

Todo mundo queria falar com Vinicius. Consegui trocar algumas palavras com

ele, dizendo de minha admiração pelo poeta, cronista e compositor. E pelo seu bom

gosto em saber apreciar um fine scotch como eu. Tive a impressão de que ele havia

achado alguma graça em meu papo de admiradora convicta e boêmia eventual,

solidária com suas preferências etílicas. E vi a possibilidade de me aproximar dele

um pouco mais.

Terminado o almoço, os convidados foram para outra sala, onde haveria um

pequeno show com Vinicius e Toquinho. A roda se fez, os dois começaram a cantar

e a plateia junto com eles, todos conheciam as letras das canções apresentadas. E

eu mal pude me conter ao ouvir a minha Eu Sei Que Vou Te Amar na voz de Vinicius

acompanhado por Toquinho, finalizando com sua interpretação única do Soneto da Fidelidade.

No final do show, não resisti e dei um jeito de me aproximar um pouco mais de

Vinicius, afastar dele os sempre presentes Toquinho e Gilda, para lhe dizer num

sussurro:

— Posso lhe dar um beijo?

E ele, com sua voz grave e sedutora:

— Claro, mulher bonita não precisa pedir licença pra me beijar.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

DIAPASÃO

Teresinha Taumaturgo Policastro

Chega de saudade

horas mortas vivas vozes reflexos vontades

acordes excêntricos acordes simples liberdade de descobrir prisão do erudito popular quinta dissonante

o silêncio o ruído o confronto o silêncio o ruído inspiração na bossa nossa bossa nova viva

bemol sustenido sustenido bemol vinicius violão vinicius violão vinicius violão vi

fina bossa bossa nova nossa

vida música sexo poesia carioca universal estratégia sonora acordes perfeitos

democracia do som marcas do tempotormentosmelancolia

memória sutileza esquecimentoinfernos circulares virtudes poéticas vivas vozes saudades

uísque tom sonho

atonal acústico ouvidos gingauísque

p o e s i ap o e t a

Vinicius de Moraes

ginga

sonho

atonal

carioca

acústico

memória

coloratura

amoramor

75

chega de saudade

A COPACABANA DE VINICIUS

Lygia Pistelli

A história das praias cariocas ou dos cariocas na praia está completando

seu centenário. Copacabana era uma praia deserta. Apesar de o calor ser

o mesmo dos dias de hoje, no passado os cariocas evitavam ir à praia para

não perder o branco europeu, que tanto os diferenciava. E Copacabana

permaneceu deserta por longo tempo.

Mas um dia Sarah Bernhardt apareceu, banhou-se nas águas do mar,

sentou-se por horas em suas areias. Desde esse dia liberaram-se os preconceitos

da sociedade que sai de seus palacetes à beira-mar, para usufruir as delícias do

mar e o agrado do sol.

Aqui meus braços discursaram à luaSobre o banco de pedras que ali tens Nasceu uma canção.Aqui encontrarás minhas pegadasE pedaços de mim em cada cantoPara gozo da aurora pervertida.

A praia é desconfortável e monótona. As pessoas só entram nas águas do

mar e sentam-se nas areias. A classe média senta-se sobre jornais, os ricos

sobre revistas estrangeiras. A toalha é o primeiro objeto que o carioca leva à

praia e o vento as carrega para longe.

Foi no Leme que vi nascer o ventoCerta manhã, na praia. Uma mulher Toda de negro, no horizonte extremo

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Entre muitos fantasmas me esperava:O abismo embaixoNo espaço em torno, e o vento me chamandoMe convidando a voar. Ah muitas mortes Morri entre essas máquinas erguidas contra o tempo.

Aparecem outras novidades na praia. A barraca que não passa de um

modesto guarda-chuva, as boias de pneus de carro, as pranchas de madeira

para correr sobre as ondas, os radinhos de pilha. Para se diferenciarem, as

mulheres ricas da sociedade começam a usar joias na praia e, para alegrar

os frequentadores, aparecem os vendedores ambulantes, oferecendo batidas

de limão e cachaça. Para proteção do sol os óculos escuros com lentes de

má qualidade, que dificultavam a visão nítida, mas insubstituíveis por serem

chiques; os bronzeadores, de banha de cozinha, de cheiro desagradável, logo

trocada pela gordura de coco.

Por toda a orla da praia, enfeitam a Princesinha do Mar. Desenham

na calçada litorânea, um diagrama em pedras pretas e brancas imitando o

vai e vem das ondas. Os arranha-céus proliferam e toda uma estrutura de

apartamentos aparece, num aglomerado gigantesco.

Ali estou eu. Tu vês essa estrutura De apartamentos como uma colmeiaGigantesca? Em muitos penetreiTendo a guiar-me apenas o perfume De um corpo de mulher a palpitar

Mais que nenhuma outra foste a arenaOnde o poeta lutou contra o invisívelE onde encontrou enfim sua poesia.Talvez pequena, mas suficientePara justificar uma existênciaQue sem ela seria incompreensível.

Ah Copacabana! Quem imaginaria que esse cenário nascido frio e

desértico seria o centro de paixões alucinantes e de poetas inspirados?

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chega de saudade

AMOR EM PAZ

Lygia Pistelli

Eu amei Eu amei, ai de mim, muito maisDo que devia amarE chorei Ao sentir que iria sofrerE me desesperar

Perto de você me calo. Tenho medo de chorar. Por isso te escrevo.

Viajo. Estou num lugar que nem correio tem, senão te mandaria um

telegrama, em vez de te escrever esse bilhete. A paisagem é monótona,

nostálgica e nem sei por que a sombra não baixa aqui. A única coisa que

me faz feliz são as lembranças que tenho de ti. Sonhei que estava doente. O

médico abriu meu cérebro e tirou pedacinhos de você. Assim eu poderia te

esquecer. Conheci moçoilas com quem gostei de estar nos motéis da estrada.

Fiquei horas sem pensar no meu passado. Todas queriam largar aquela vida

e ter um único amor, razão para viver, não na solidão. Eu quis amar outra

vez, mas tive medo. Procurar uma nova ilusão, não sei ainda. É triste a pessoa

gostar de ser gostada. Sinto amores e ódios por você. Até o amor se acaba.

Não volto para casa, porque te amo. Estou cansado de sofrer. Não quero que

essa viagem acabe nunca mais!

Nosso amor que eu não esqueço e que teve um feliz começo, hoje se desfaz.

Manhã do 42o dia da nossa separação.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

MUDANÇA

Guta Rezende Soares

Filhos... Filhos?Melhor não tê-losMas se não os temosComo sabê-los?

Mãe, quero falar com você.

Gelei. Coisa boa não é.

Então mãe...

Piorou! Quando começa com então, vem bomba na certa.

Então mãe, quero morar sozinha.

Sabia que era bomba.

Morar sozinha por quê, pra quê? Você só tem 28 anos, é um bebê, minha

Pitipiti.

Acho que está na hora, mãe, cortar o cordão umbilical.

Que cordão umbilical, menina? Sabe o que vai acontecer? O cordão vai

arrebentar e voar na minha cara, me machucar, estraçalhar meu coração.

Mãe, não faz drama. Minhas amigas estão morando sozinhas.

E que eu tenho a ver com suas amigas? São minhas filhas, por acaso? São

temporonas?

Não é outro país, só outra casa.

Te conheço minha filha, vai se enfiar na Vila Madalena e nunca mais vou

te ver.

Ah, isso é verdade, sabe que sou desligada. Mas eu te ligo, prometo. Todos

os dias.

Filha, não promete o que você não vai cumprir. E foi para a balada. Pior,

se matando de rir. E eu fiquei lá, pensando no que fazer. Cortar os pulsos,

quem sabe. Levanto e vou até a cozinha escolher a arma. No caminho tropeço

num par de tênis de corrida largado no meio da sala. Mancando, alcanço a

79

chega de saudade

cozinha. Requeijão com faca suja se equilibrando em cima do copo, leite fora

da geladeira, pacote de pão aberto, lata de achocolatado de um lado, tampa

de outro. Desanimo e ainda com os tênis na mão, vou até o quarto. Janelas

hermeticamente fechadas, luz acesa. Apago. Cama desarrumada. Arrumo.

Roupas, jogadas, pijama no chão. Recolho. No criado-mudo abajur aceso.

Apago. Quatro copos, dois com água e dois vazios. Recolho. Mais um copo,

resto de leite. Recolho. Passo pelo closet, luz acesa. Apago. Entro no banheiro,

luz acesa. Apago. Maquiagens espalhadas pela pia. Largo lá. Fecho a porta

do quarto e volto para minha primeira ideia, cortar os pulsos. Como viver

sem a minha pequenina, minha caçulinha. Sem o tênis na sala, a luz acesa,

o copo de requeijão, a cama desarrumada, as roupas no chão, o leite fora da

geladeira? Pego o jornal, imóveis, Vila Madalena, aluguel. Começo a sonhar

com a minha liberdade!

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

QUE EU NÃO SOU NINGUÉM DE IR EM CONVERSA DE ESQUECERMariza Baur

louco meu amor que, quando toca, fereque quando vibra, mas prefereferir a fenecer – e vive a esmofiel à sua lei de cada instantedesassombrado, doido, delirantenuma paixão de tudo e de si mesmo

Hoje é sábado, amanhã é domingo, não há nada como o tempo para

passar. O tempo passou e quero me emocionar com a saudade. Você não

se lembra, meu amor? do tempo em que eu tentava domar o coração e dizia

toma jeito, bate mais devagar em meu peito. O coração nem me ouvia, batia

forte quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolviam se encontrar

nos bailes do clube. Ah! eu me sentia incendiar e escrevia no diário: que bom

que isso é, meu Deus, que frio que me dá o encontro desse olhar. Um dia você

me olhou dum jeito diferente do que sempre costumava olhar, convidou-me

pra dançar, e cheios de ternura e graça fomos para a pista. Ali dançamos

tanta dança que os amigos todos aplaudiram, e foi tanta felicidade que a

noite enfim se iluminou, e você confessou que viver sem meu amor não

era viver. Eu sei que vou te amar por toda a minha vida, você me disse e

perguntou: quer ser minha namorada? Eu quis e fiz um juramento de só ter

um pensamento ser só tua até morrer. Eu sabia que teu amor seria atento

antes e com tal zelo e sempre e tanto. E ouvi os mais belos elogios que há

muito tempo não se ousava ouvir. Que eu era linda, as feias que te perdoassem

porque beleza é fundamental. Que minhas pálpebras cerradas lembravam um

verso de Eluard. Que acariciar meus braços era tocá-los como ao âmbar de

uma tarde. Que meus olhos eram grandes e de rotação tão lenta quanto à da

Terra. Que eu exalava um impossível perfume. E o nosso amor era assim, eu

pra você, você pra mim. Em poucos meses nos casamos de papel passado.

Pra te agradar, eu fazia comidinhas pra depois do amor. Você continuava

tecendo galanteios, e as faces coravam de prazer. Pois minhas coxas não

81

chega de saudade

eram lisas como a pétala e cobertas de suavíssima penugem? Meus seios uma

expressão greco-romana, mais que gótica ou barroca? Com tanto amor, nem

me importei quando moramos naquela casa que não tinha teto, não tinha

nada, e ninguém podia entrar porque na casa não tinha chão. Foi lá que

aprendi que a coisa mais divina que há no mundo é viver cada segundo como

nunca mais. Compramos uma cachorrinha, mais que amor de cachorrinha,

e quando veio um entardecer, você disse que tinha dado pra sonhar. Via um

berço e debruçado nele você cantava: dorme, meu pequenininho, dorme que

a noite já vem. O nosso bebê veio, um menino, depois uma menina e mais

outro menino. Você dizia filhos... filhos são o demo, melhor não tê-los! Mas

se não os temos, como sabê-lo? Como saber que macieza nos seus cabelos,

que cheiro morno na sua carne, que gosto doce na sua boca! Chupam gilete,

bebem shampoo, ateiam fogo no quarteirão. Porém, que coisa louca, que

coisa linda que os filhos são! E você se encantava quando as crianças, numa

folha qualquer, desenhavam um sol amarelo e com cinco ou seis retas faziam

um castelo e corriam o lápis em torno das mãozinhas e te davam uma luva. Ai

tempo distante! Tinha aquela rua, aquela lua tão amiga, tinha a nossa nova

casa, e o jardim tão lindo e você e eu cuidando do nosso amor e da família.

Então percebi: você tinha amor por outras. E não quis permitir que nada

nesse mundo levasse você de mim. Nem os flertes com a linda pernambucana,

a bela cearense, a capixaba bonita. Nem o deslumbramento pela fibra da

gaúcha, pelo encanto da mineira, nem a paixão avassaladora pela baiana.

Nem a garota de Ipanema, que era a coisa linda, mais cheia de graça, no doce

balanço a caminho do mar. Tantas você fez que cansei porque você abusou

da regra três. Da primeira vez, eu chorei, mas resolvi ficar, é que os momentos

felizes tinham deixado raízes no meu pensar. Depois perdi a esperança porque

o perdão também cansa de perdoar. Tem sempre o dia em que a casa cai.

Você não se conformou, me procurou, se arrependeu e suplicou: ah! meu

amor não vá embora, ah! minha amada me perdoa. Dedicou-me um soneto

de fidelidade. Compôs uma canção: ah! insensatez que você fez, coração mais

sem cuidado, fez chorar de dor o meu amor, um amor tão delicado. Não cedi.

E veio outra canção: vai, meu coração, pede perdão, perdão apaixonado, vai,

porque quem não pede perdão, não é nunca perdoado. Só perdoei quando

você reconheceu que, para viver um grande amor, é preciso ser um homem

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

de uma só mulher. E compenetrou-se da verdade de que não existe amor sem

fieldade. Continuei não permitindo que nada nesse mundo levasse você de

mim. Nem mesmo, na temporada de exílio voluntário em Paris, a distância

existiu. De lá, você me escreveu: estou no nosso bar mais uma vez, e escrevo

pra dizer que é a mesma taça e a mesma luz, e a realidade é que sem você

não há paz, não há beleza, é só tristeza. Chega de saudade! eu respondi. Volta

querido, os meus braços precisam dos teus, teus abraços precisam dos meus,

estou tão sozinha. E você voltou, meu amor. A alegria que me deu, quando a

porta abriu, você me olhou, você sorriu. Ah! você se derreteu e se atirou, me

envolveu, me brincou, conferiu o que era seu, e disse que eu era a Rosa pra

dormir, Rosa pra acordar, Rosa pra sorrir, Rosa pra chorar, Rosa pra partir,

Rosa pra ficar. E eu disse que não quero mais esse negócio de você longe

de mim. Porque eu sem você sou chama sem luz, jardim sem luar, luar sem

amor, sou só desamor, um barco sem mar, um campo sem flor, sem você, meu

amor, eu não sou ninguém. Nossa antiga história, de repente, não mais que de

repente, não vai terminar num soneto de separação. Você nunca será apenas

uma lembrança feito tantas outras. Porque hoje é sábado de abril e pássaros

mil, nas flores de abril, voam e fazem amor. E todos os namorados estão de

mãos entrelaçadas. E a vida vem em ondas como o mar. E os bondes andam

em cima dos trilhos. E eu entoo um canto pras cores de abril, pros ares de abril

e o mundo se abre em flor. Escuta, meu amor, hoje é que é o dia do presente,

o dia é sábado, e há uma impassível lua cheia, você não se lembra?

(Vinicius soprou nos meus ouvidos e este texto escorreu-me pelas mãos)

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chega de saudade

DA SOLIDÃO

May Parreira e Ferreira

sabe, parceirinho? eu quero é desencarnar!

Vinicius de Moraes pergunta, Solidão inenarrável, quem sabe povoada de beleza. Mas será ela, também, a maior solidão?

Meu devaneio se lança, pensamento longe, distante no tempo, perseguindo

a memória. Eu, jovem, sentada nas pedras, beira de praia, pés banhados pela

água do outono, ouço a história do velho pescador.

Quando o mundo não era mundo, quando existiam apenas os animais

gigantescos, seres humanos ainda nem desenhados, vivia uma imensa

mariposa, tão grande que cobria todo esse céu, começou o velho e, com a

mão levantada, delimitou um semicírculo no horizonte.

Colorida, continuou, todas as cores em suas asas, arco-íris luminescente. A

descomunal mariposa voava de terras em terras, e mares entre terras. Voava de

uma margem a outra dos oceanos, à procura do amor.

O sentimento de ser sozinho no mundo, por menor que seja o mundo, é

muito doído. O velho apoiado nos calcanhares, falava manso, olhar perdido no

mar liso. Nós dois, na praia deserta de final de tarde, a conversar sobre ser só.

Dia-traz-dia a borboleta foi se entristecendo, minguava porque quanto mais

voava mais se distanciava de seu desejo. Tinha ânsia pelo encontro e angústia

pela ausência. Um dia, cansada, desiludida, recostou-se num pedaço de terra e

mar e deixou-se morrer de amor. O velho falava pausado. Dizem que suas cores

ficaram impregnadas na cores da água, das montanhas, nas nuanças do pores-

do-sol. E o sentimento de amor despronunciado, ficou pairado no ar. Dizem que

se alguém vem para esses lados fica inebriado, sente o amor, sem nem mesmo

saber onde ele está. É o que dizem, repetiu o pescador com o fiapo de voz.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

O velho se levantou lento, bateu as mãos nas calças amassadas, tirou o

chapéu num aceno cortês e foi-se. Fiquei imóvel, para não espantar aquela

lindeza tamanha. Vi a simpática figura desaparecer no final da praia. Fiquei

só. Eu e toda a beleza do mundo.

A mariposa não era solitária... a maior solidão é a do ser que não ama... é a do ser que se ausenta, que se defende, que se fecha; o maior solitário é o que tem medo de amar, palavras do Poetinha.

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chega de saudade

NINGUÉM MORRE NO FACEBOOK

Ricardo Lahud

Deixa pensar que pra amar é preciso fingir

Vinicius de Moraes me adicionou como amigo. É preciso esclarecer que

não foi a mim, um cronista idoso, barrigudo, enterrado no túmulo do samba,

que ele solicitou amizade. Nesta conta do Face, sou uma atraente secundarista,

prestes a completar 16 anos, morando em frente ao mar, no Leblon. Uso o nome

de Mariana Moraes, sem a intenção de ser homônima da filha do poetinha,

mas porque as iniciais MM, como em Marilyn Monroe, me agradam.

Fui visitar sua página antes de aceitar, não é porque minhas fotos sugerem

uma biscate, que me comporto assim. Sou fake de família.

Em destaque, a foto do casamento com sua mais nova esposa, em Bali. Ele

está bem mais magro, depois da operação bariátrica, e com uma expressão

extraterrestre, causada pelo implante de cabelos mal resolvido. As outras

cicatrizes sugerem uma cirurgia cardíaca e um transplante de fígado.

Exploro suas últimas postagens. Uma foto de perfil da esposa, de biquíni e

chapéu de palha, tendo ao fundo o mar de Itapoã, com a legenda: Meu maior

encanto. Um vira-latas abanando o rabo com a legenda: Chega de saudade.

Compartilhou uma famosa crônica do coetâneo Rubem Braga, assinada por

Pedro Bial. Curtiu a página do Pedaço de Sol, onde o terceiro chopp é grátis.

Em algumas fotos ainda se vê o cigarro, agora eletrônico, e o copo com duas

pedras de gelo.

No post mais movimentado, discute os filmes candidatos ao Oscar. Elis

Regina e Tom Jobim publicam elogios à técnica e à fantasia de The Life of Pi, João Gilberto comenta que gostaria de aprender a cantar em 3D; Vinicius

defende a poética de Amour, mesmo sendo falado em idioma tão pontudo e

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

ameaçador. Elvis e Sinatra argumentam que o prêmio deve ir para Argo ou

Lincoln, afinal o cinema foi inventado pelos americanos.

Tem uma rua com seu nome aqui perto. Vc foi governador?

Não querida, sou músico e poeta. Você conhece a Garota de Ipanema?

A Mariza? Vc é parente dela?

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, que vem e que passa

Vc é paquera dela?

Sua mãe me conhece, pergunte a ela quem sou.

Vovó me disse q vc já morreu.

Amada menina, do corpo dourado, ninguém morre no Facebook.

Faz uma poesia pra mim?

Menina, case comigo/Que eu sou bom trabalhador/De dia durmo

consigo/De noite morro de amor.

E me cutucou.

Optei por bloqueá-lo, vai que ele resolve me seduzir.

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chega de saudade

PORQUE HOJE É DIA DOS NAMORADOS

Mariza Baur

Amo-te tanto, meu amor... não canteO humano coração com mais verdade...

Porque hoje é dia dos namorados, no ar, um frisson de borboletas inquietas.

Corações vermelhos pulsam nas vitrines misturados aos vestidos, sapatos, joias,

fragrâncias. Corações de todos os tamanhos cheios de amor para dar, rubros

de paixão. Porque hoje é dia dos namorados Cupido dispara suas flechas

sem descanso e doem-lhe os braços. Os floristas, desde a véspera, trabalham

perdidos entre celofanes e laços coloridos; o aroma das flores sufocando-os.

Quero ser o primeiro, diz um apaixonado, a namorada tem outro pretendente.

E as rosas vermelhas, duas dúzias, levam seu beijo até ela. Porque hoje é dia

dos namorados esgotaram-se as reservas nos restaurantes e a noite será de

morangos com champanhe à luz de velas, especiarias, juras de amor e carícias

de mãos entrelaçadas. Nenhum beijo será proibido. Porque hoje é dia dos

namorados não há vagas nos motéis. Nas livrarias, zerou-se o estoque dos

livros de versos prometendo amor eterno. Nas lojas de chocolates, quase faltou

açúcar e cacau. As linhas dos telefones estão ocupadas. Nos cabeleireiros, as

mulheres querem se fazer mais belas porque hoje é o dia dos namorados e os

homens sonham com musas e deusas. Porque hoje é dia dos namorados eu me

lembro de tantos dias dos namorados. Das rosas brancas, das rosas vermelhas,

das orquídeas, do buquê de flores do campo com a fita amarela. Do dia em

que o presente foi beijo. Lembro da pulseira de prata – o primeiro regalo que

recebi de um homem. Lembro da mordida no gosto de amor do bombom de

cereja, e eu nem liguei pro licor escorrendo pelos cantos da boca, manchando

a seda verde-água do vestido novo. Porque hoje é dia dos namorados eu

escuto os acordes do piano me pedindo em namoro. E as notas, uma por uma,

me dizendo em tom maior: se você quer ser minha namorada, ai que linda

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

namorada você poderia ser, se quiser ser somente minha. Eu quis, e foram

tantos beijos loucos, tantos gritos roucos como não se ouvia mais. Porque hoje

é dia dos namorados eu quero ler o teu e-mail já em sépia, e mastigar as

sílabas do elogio: foste maravilhosa desde o primeiro instante. Eu sei que fui;

maravilhosamente fomos. Porque hoje é dia dos namorados remexo minha

caixa de ternuras e, sobre o veludo, lá está o cartão bege do tempo e nele

gravadas as palavras mais bonitas que uma mulher pode almejar. Te quiero!,

você sussurra, o timbre da tua voz me penetrando os poros. Os pensamentos

se perdem no farfalhar das pétalas de rosas desbotadas, secas porque o amor

acabou. Os dedos esbarram na cortiça das rolhas de champanhe esfarelando-

se, com quem brindei? Abro um bilhete dobrado, o papel é simples, folha

arrancada de um caderno. O peito arfa, a boca treme, tua letra dança nos

meus olhos, as lágrimas a teimar. Com a minha emoção à flor da tua pele – eu

leio a dedicatória ao final do poema. Como te amei! devagar e urgentemente.

E prometi querer-te até o amor cair doente e preferi, então, partir, a tempo

de poder a gente se desvencilhar da gente. Porque hoje é dia dos namorados

meu coração perde a cadência e galopa e dispara quando batem à porta e

eu vejo o buquê nas mãos do florista. É no vermelho do perfume das rosas

que reconheço teu cheiro e o sonho. E sei que vou te encontrar no tempo da

delicadeza, onde não diremos nada, nada aconteceu, apenas seguirei como

encantada ao lado teu.

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chega de saudade

A ESPERA

Guilherme Hernandez Filho

Chega impressentidaNunca inesperadaEla que é na vidaA grande esperada!

Não há pressa, mas também não se pode demorar. Quando se fala disso

todos tremem. Não há quem não a tema e não deveria ser assim. É natural. É

o caminho. É o fim.

Para alguns, talvez muitos, há o segundo capítulo e até mais. Não sou

desses. Aqui estamos e aqui encerramos. Façamos o que queremos e devemos

agora. Não vejo outras oportunidades.

As vibrações são nossas. Somos a interferência no Universo. Nosso plano é

aqui. A interação é a geradora da energia positiva que nos move. Entes puros,

básicos, múltiplos ou simples, nulos, etéreos, concretos, axiais, fantasiosos e,

por que não, reais.

Firmada e confirmada existência: cogito ergo sum. Então se deixe levar,

enquanto espera, sem receio. Aqui e ali, sempre há o que fazer. A atividade

corpórea e cerebral é necessária. Sem ela só o vegetativo obscuro do qual nada

se sabe. Ou pouco.

Que pavor assolará a hora do enfrentamento. Aguardar o momento que é

uma certeza na vida. Dizem que se consegue rever tudo num átimo. O bem e

o mal realizado. Os momentos felizes e as dores que se suportou com coragem.

E agora?

Esperança que vem do pensamento positivo: tomara demore a chegar.

Mas demorará? Os que pretensamente se dizem capazes de antecipar o futuro

também estão sujeitos a esta regra única.

Eu ouso ir mais longe. Eu ouso dizer que são duas as certezas universais,

e não uma: a morte, e se pagar impostos. A segunda assusta e nos faz

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

preocupados, mas a primeira é o temor de todos os seres pensantes.

A passagem deve ser doce, inebriante e efêmera. Para o nada, o atemporal,

o imaterial. Então, por que temê-la? O sofrimento só existe na jornada; no

chegar até lá. Aguardemos, pois.

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chega de saudade

ECOS DO PASSADO

Maria Helena Nogueira de Almeida

As feias que me perdoemMas beleza é fundamental

Fecho os olhos para o marulho e a maresia. Quando os reabro vejo a Praia

de Ipanema aos meus pés. Um privilégio esta vista do meu apartamento no

quarto andar da Avenida Vieira Souto. Com a idade estou cada vez mais

saudosista, antigamente tudo me parecia melhor, não havia violência, as

pessoas eram mais solidárias, até o Rio de Janeiro era mais alegre. Voltar no

tempo é apaziguar o coração.

Nossa turma de amigos durou entre os anos 1950 até 62, conhecidos como

os rapazes da alta roda. Queríamos nos divertir. Se Paris era uma festa para

Hemingway, o Rio era uma festa para nós. Tardes de sábado bebericando ao

redor da piscina na pérgula do Copacabana Palace e noitadas no Golden Room.

Soirées dançantes no Hotel Miramar. Aos domingos almoço no Lucas, o melhor

camarão da cidade. Gostávamos de beber uísque e cerveja, naquele tempo as

drogas não rolavam. Os rapazes e moças solteiros ainda moravam com os

pais. Os homens tinham as suas garçonnières para onde levavam as damas. Nós

dividíamos o aluguel dos pequenos apartamentos e fazíamos rodízio duas ou

três vezes por semana.

Meu maior amigo e confidente era o Beto Topete, os rapazes daquela

época gostavam de imitar o cabelo do Elvis Presley e para segurar o topete

usavam um creme de nome Glostora. Só o Beto e o Carvalhinho tinham carros

conversíveis. Fazíamos o corso pela Avenida Atlântica, jogávamos beijos

apenas para as meninas bonitas as uvas, as feias chamávamos de canhão.

Muito divertido, o Topete, dizia conhecer todas as pessoas importantes

do Rio de Janeiro. Seu avô tinha uma casa no Cosme Velho, seus serões

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

frequentados por intelectuais, políticos e artistas. Na época faziam sucesso

Vinicius de Moraes e Tom Jobim. Íamos assistir a seus shows no Antonio’s

para ouvir os sambas-canções e a Bossa Nova que havia estreado.

Nosso ponto de encontro acontecia na Praia de Ipanema, onde as cariocas

desfilavam sua formosura. Nossas idades iam dos vinte até os vinte oito anos.

Certo domingo falávamos sobre beleza quando passou por nós uma

mocinha magricela. Usava uma saída de banho bem comprida para esconder

as formas. Comentamos que aquela não tinha jeito, seria sempre feia. Beto

discordou, a menina tinha um certo quê, belos olhos, nariz bem feito, mas sem

graça, não sabia ser bonita. Propôs uma aposta, transformá-la em uma linda

mulher. A sugestão foi aceita.

— Não pensem que vai ser aposta barata, não. Uma rodada de champanhe

Veuve Clicquot na pérgula do Copa. Em seis meses transformo essa mulher.

Aposta combinada. Em cinco minutos ele estava ao lado da moça

ajudando-a a fixar o guarda-sol na areia. Ela pareceu surpresa, não devia estar

acostumada à atenção masculina. O Beto era galã, um pão, como diziam as

moças, contou-me como foi a abordagem.

— Você fala?

— Falo, por quê?

— As rosas não falam.

— É um deboche?

— Foi dito como elogio. Mas, vem cá, porque você usa esse cabelo preso

num rabo de cavalo, solte-os, eles são bonitos, sedosos, precisam receber o ar

marítimo. De perto você é bem bonitinha.

— Sou não.

— Você não gosta de se arrumar. Posso fazer uma sugestão?

— Pode.

— Primeiro, posso sentar ao seu lado?

— Pode.

— Já sei que mora em Ipanema, eu a vejo sempre nesta praia. Vou me

apresentar. Meu nome é Roberto Xavier da Silveira, estudante de Arquitetura.

Beto para os amigos. E você?

— Meu nome é Simone de Alencar.

— Bonito. Parece nome de romance. Você estuda ou trabalha?

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chega de saudade

— Os dois. Estou no último ano de Direito. Quero ser juíza como a minha

mãe. Trabalho no escritório de advocacia do Dr. Flamínio Consorte.

— Já ouvi falar, é famoso.

— Você criticou meu cabelo. Gosto de ser natural.

— Você pode parecer natural e mais bonita. Posso dar uns conselhos? Já

somos grandes amigos.

E tornou-se íntimo da garota. Vinham para a praia todo fim de semana. E

não é que a moça foi se transformando? Ele gostava de me contar as etapas.

Fez a Simone tingir os cabelos de loiro. Ela até entrou para a conhecida escola

de modelos dirigida por Maria Augusta. O Beto dizia, Simone, pare de andar

com esse passinho espremido. Jogue os quadris. Rebole o corpo para chamar

a atenção. Mostre ao mundo a mulher sensual que você é.

— Eu não sou sensual.

— Toda mulher tem a sua sensualidade. Precisa mostrar, provocar os

homens.

E assim foi doutrinando a moça, acabou obcecado pela ideia de

transformá-la numa mulher bonita.

Eu o aconselhei, Tome cuidado. Lembre-se da história de Pigmalião. Você

pode se apaixonar.

— Qual nada. As mulheres é que se apaixonam por mim.

Simone tinha um ídolo, Vinicius de Moraes. Sonhava em assistir a um

de seus shows. Beto prometeu levá-la. Certa noite foram ao Antonio’s. No

intervalo ele se aproximou de Vinicius e disse, Gostaria de apresentar minha

amiga Simone.

Vinicius era um sujeito amável. Todos se diziam seus amigos e ele

concordava. Pode ser que ele tenha conhecido mesmo o Beto, na casa de seu

avô, mas não tenho certeza. Simone ficou encantada.

O próximo passo para o nosso amigo era seduzir Simone. Ela passou a

frequentar sua garçonnière.Fiquei apreensivo, Simone era uma boa moça, ingênua, ele poderia magoá-la.

As aulas continuaram e não é que Simone foi embelezando?

As moças daquele tempo usavam um biquíni discreto, parecia mais um

maiô duas peças.

Certo sábado passou por nós uma loira espetacular num traje de banho

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

audacioso. A turma se alvoroçou para saber sua identidade. Atrás dela vinha

um Beto triunfante, era a Simone. Ficamos boquiabertos. A aposta estava

ganha. Fomos comemorar no Copa, tudo regado a Veuve Clicquot. O mestre

estava orgulhoso de sua proeza. Aposta conquistada. O jogo havia terminado.

No entanto o Beto continuou com a Simone. Agora namoro de verdade.

Certa vez confidenciou-me:

— Estou desconfiado da Simone. Ela me parece muito sabidinha. Faz

coisas que eu não ensinei. Você acha que ela tem outro?

O que eu temia aconteceu. Ele estava apaixonado, morria de ciúme e

voltou a me procurar. Disse que tinha certeza. Simone confessou:

— Você fez uma aposta com seus amigos. Fiquei sabendo. Minha vizinha é

namorada de seu amigo, o Carvalhinho. Ele contou para ela e ela contou para

mim. Então também resolvi fazer uma aposta. Apostei com as minhas colegas

de escritório que eu ia conquistar o patrão. Todas estavam apaixonadas por

ele. Ganhei a aposta e vou me casar no começo do ano. Joguei com as armas

de sedução que você me ensinou.

Beto ficou inconsolável. No dia 31 de dezembro levou um barquinho cheio

de flores para Iemanjá. Depositou no mar pedindo para Simone voltar para

ele. Foi em vão. Simone casou e o ex-namorado ficou desiludido.

Preocupei-me, mas o Beto era o Beto. Depois de alguns meses ele foi à

minha casa com um convite de bodas. Ia casar com a Miss Clube Fluminense,

não fazia por menos. Para ele beleza era fundamental.

Hoje somos todos senhores casados, às vezes nossa antiga turma se encontra

para uma caminhada na praia ou um jogo de xadrez, relembramos fatos da

juventude e os ecos do passado voltam a nos enternecer.

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chega de saudade

O CONVITE

Maria Lúcia Rizzo

Crê apenas no amorE em mais nada

O altar estava todo enfeitado de tulipas brancas e amarelas. Os convidados

eram recepcionados por um grupo bossa nova.

Tia Olga aguardava a cerimônia de terço na mão, girava as contas como

se rezasse a ladainha, distribuía um sorriso forçado, consultava o relógio a

cada dois minutos e media da cabeça aos pés cada jovem de vestido mais

curto ou decotado. Permaneceu assim até a entrada de Luiza, vestida toda de

branco, véu de rendas e buquê de flores do campo, ao som de Só Tinha Que Ser Com Você de Antônio Carlos Jobim. Acompanhou cada passo da nubente

até o noivo nitidamente mais idoso, enquanto tentava disfarçar a ponta do

pé direito acompanhando a música. Rezou, prestou atenção a cada palavra

da cerimônia, e só não comungou porque hóstia não havia. De início, parava

de menear a cabeça nas intervenções musicais cada vez que notava alguém

olhando; depois se soltou e até arriscava uma cantarolada.

Terminada a bênção nupcial, tia Olga me confidenciou – Osvaldo, isso

é amor total, sem preconceito, sem cobrança, o sentimento mais profundo

que um pode ter pelo outro, uma joia – e correu para tentar pegar o buquê;

desconfio que na esperança de ser a próxima do poeta.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

O GAROTO E A GAROTA DE IPANEMA

Jairo Navarro de Magalhães

Tu me beijaste, coisa tristeJusto durante a elevaçãoDepois impávida partisteA receber a comunhão

Marcos Vinicius da Cruz e Mello Moraes nasceu nas beiradas de Ipanema.

Cresceu vendo o deslumbramento das ondas, buriladas pela luz solar, em valsa

sobre o azul do oceano. Essas visões fizeram bem à sua alma, e o acompanharam

vida afora. Nesses versos à namorada mostra seu espírito galhofeiro. Menino,

lia Bilac, Raimundo Correa, Castro Alves, mas o pai Clodoaldo de Moraes,

de quem roubava sonetos para presentear namoradas, foi de fato seu mestre.

Virou rapaz, virou poeta, virou compositor, virou diplomata, virou

homem, virou lobisomem, não que tenha se transformado em lobo, mas sim,

por ter sido atacado de divina inspiração. Com apenas quinze anos compõe

sua primeira música: Laura ou Morena, um foxtrote gravado em 32.

Na faculdade de Direito, sofre influência de Otávio Farias, vive uma

etapa místico-cristã. Com o poema Ariana, a Mulher, termina esta primeira

fase poética. Mas quem o estimula a rever seu estilo é Manoel Bandeira. Já

maduro passou a se encontrar, quase diariamente, com os companheiros nos

bares de Ipanema. Tomando umas e outras, diziam — As feias que nos perdoem, mas beleza é fundamental. Por aí iam tarde adentro poetando.

Nessa altura da vida já havia publicado: O Caminho Para a Distância, Forma e Exegese, Antologia Poética e outros mais, todos oferecidos por ele aos amigos

cronistas Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Fernando Sabino e aos

poetas Murilo Mendes, Jorge de Lima, Augusto Frederico Schmidt. Também

havia iniciado a trajetória de nove casamentos, sem contar as escapulidas.

A primeira eleita foi Tati, mulher intelectualizada que, juntamente com o

americano Waldo Frank, levaram o já diplomata Vinicius ao rompimento com

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chega de saudade

sua formação de direita. Na companhia da esposa Tati escreveu Cinco Elegias, um de seus mais belos trabalhos. A segunda esposa, Regina Pederneira, foi a

união mais meteórica. A terceira surgiu de uma armação de seus amigos Otto

Lara Resende e Rubem Braga; estes conheciam Lila Bôscoli, irmã de Ronaldo

Bôscoli, e sabiam da sua beleza — Ele não vai resistir, apostavam — o que de

fato se deu, paixão à primeira vista. Durante esse casamento publicou Orfeu da Conceição. Durante o casamento com Lila conheceu Tom Jobim que musicou

a peça, posteriormente transformada no filme Orfeu Negro. Nesta fase de vida

o poeta se dedicou à carreira de jornalista na Última Hora. Partindo para a

quarta escolhida, Lucinha Proença, lançou Para Viver um Grande Amor. À Nelita

Abreu Rocha, o quinto enlace, dedicou Para uma Menina com uma Flor.Na caminhada dessa narrativa vamos abrir um parêntese para falar

a respeito de Waldo Frank e Pablo Neruda, que tiveram em comum a

perseguição de governos de exceção. O primeiro, Waldo Frank, chegou a ser

escorraçado da Argentina, refugiou-se no Brasil e caminhou com Vinicius

pelos sertões brasileiros. O segundo, Prêmio Nobel, o chileno Pablo Neruda,

muito embora Senador na sua pátria, teve que fugir atravessando os Andes

em lombo de burro, chegando doente ao México. Vinicius, diplomata nos

Estados Unidos, sabendo do fato saiu de carro e foi visitá-lo.

Vinicius de Moraes perdeu o posto diplomático, mas nada o deixou

frustrado ou triste, a alegria de viver não esmoreceu, pelo contrário, além de

versejar e compor, passou a cantar em shows e casas noturnas; na Boite Ups,

a badalada dos jovens na época, tive o prazer de conhecê-lo.

Continuando com os matrimônios do escritor, a sexta união foi curta e

conturbada com Cristina Gurjão. A sétima escolhida, a atriz Gessy Gesse,

deu-se numa fase hippie. Residindo na Bahia, casaram-se numa cerimônia

cigana. Foram seus padrinhos, Jorge Amado e Zélia Gattai. Viajando em

turnê com Toquinho para a Argentina, Vinicius conheceu Marta Rodrigues,

sua mulher dos pampas. Marta era uma menina, poderia ser sua neta. E,

finalmente, Gilda Mattoso, com quem viveu seus últimos dez anos de vida.

De volta ao correr normal do seu viver, temos Vinicius num feliz momento,

quando viu passar bela garota a caminho das quentes areias banhadas pelo

mar, não se contentou em admirá-la. Entre goles de gin-fizz, foi tomado de

vontade lobisômica de descrevê-la. E foi assim que o poetinha comentou com

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

o outro companheiro de mesa, o Jobim — Olha que coisa mais linda. E nasceu a

Garota de Ipanema.

Hoje, não se encontra mais nesse nosso universo, o poeta, o músico, o

cantor, o cronista, e também diplomata. Mas quando ela, a inspiradora

da canção, passa, ainda cheia de graça, por aquela famosa praça, todos se

recordam do Garoto de Ipanema — Vinicius de Moraes — que teve a alma

tocada por sentimentos indescritíveis e, acompanhado de seu amigo Jobim,

deixou imortalizada em nossos corações A Garota de Ipanema. Ah! Que coisa

mais linda, quando ela passa, cheia de graça.

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chega de saudade

SAUDADES DE UMA ÉPOCA QUE EU NÃO VIVI

Gisella Prado

Lembra que tempo feliz Ah, que saudade Ipanema era só felicidade Era como se o amor doesse em paz

Acordo de manhã, pão sem manteiga.

Desço a Rua Nascimento Silva, em Ipanema. Olho para os lados, para

não ser pega desprevenida pelo pivete, não moro aqui, não posso alcançar o

elevador.

Construção antiga, sem garagem, espremida entre seus vizinhos mais altos.

Deve ter sido há muito que alguma dessas janelas permitia ver o Redentor ou

qualquer outra paisagem que não fosse o concreto dos demais prédios.

Meu olhar saudoso percorre a rua, as esquinas. Também quero aprender

as canções de canção do amor demais.

Será que algum cachorro foi (des)engarrafado aqui?

Noites de boemia, enfumaçadas de nicotina, cachaça de rolha, kabuletê,

um beijo azul, a garota ainda não sabia. Cinco ou seis retas para um castelo.

Chega de saudade, já não há tantos peixinhos a nadar no mar.

Talvez seja melhor ir passar a tarde em Itapoã.

100

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

VINICIUS MUSICAL

Luiz Tarcisio B. Filomeno

Samba em Prelúdio

Em 1956 Vinicius estava de volta ao Brasil vindo de Paris onde trabalhara

em nossa embaixada. Trazia na bagagem uma peça que escrevera, o Orpheo da Conceição, baseada na mitológica história de Orpheo e Eurídice, só que

ambientada num morro carioca e protagonizada somente por atores negros.

Mas lhe faltava a parte musical que deveria ser composta. Procurou sem

sucesso por um compositor até que Lúcio Rangel lhe falou de um rapazinho

novo que estava despontando e que merecia uma chance. O rapazinho era

Antônio Carlos Jobim, que fazia arranjos na gravadora Odeon, tocava nas

boates do Beco das Garrafas e compunha bem. Já tinha um sucesso nas

paradas, a Tereza da Praia, gravada por Dick Farney e Lúcio Alves, e muitas

outras composições à espera de intérpretes.

Promovido o encontro Jobim ouviu atenta e respeitosamente o projeto de

Vinicius e ao final perguntou se tinha um dinheirinho aí. Explica-se: Jobim era

casado e tinha um filho de seis anos para sustentar, e vivia atormentado com

o dinheiro do aluguel do apartamento. Reassegurado por Vinicius iniciaram a

parceria. As primeiras composições desapontaram a ambos, até que surgiu a

eterna Se Todos Fossem Iguais a Você, e aí a trilha sonora ganhou vida. Orpheo da Conceição estreou no dia 25 de julho de 1956 no Teatro Municipal do Rio de

Janeiro, com cenários de Oscar Niemayer e a orquestra sinfônica regida pelo

maestro Leo Peracchi. A peça ficou apenas seis dias no Municipal, indo em

seguida para o Teatro República, sem poder ser considerada um sucesso, mas

consolidou a parceria entre Jobim e Vinicius que nos brindaram com músicas

que se tornaram clássicas em nosso cancioneiro.

101

chega de saudade

Anos depois Vinicius conheceu o violonista Baden Powell e o convidou

para uma nova parceria. Baden, que era bem mais jovem que Vinicius,

praticamente passou a morar com o poeta e diplomata enquanto compunham.

Foi assim que nasceram os Afrossambas (Berimbau, Canto de Ossanha, Consolação etc.) e outras canções de sucesso. Certa noite, embalados pelo combustível

uísque Baden disse que tinha uma nova composição para Vinicius botar letra,

era o Samba em Prelúdio. Tocou-a num maravilhoso solo de violão, mas o poeta

desconversou. Alguns copos mais tarde tocou de novo e o poeta disse que

não botaria letra naquela música porque ela era um plágio de um prelúdio

de Chopin. Baden estarreceu e reafirmou ao parceiro que não, que a havia

composto de início ao fim. Vinicius não se deu por vencido e foi acordar sua

esposa de então, que era pianista e especializada em Chopin, para que ela

comprovasse o plágio. Apesar de envolta em profundo sono ela acedeu e

ouviu atentamente a melodia. Ao final disse que não era prelúdio de Chopin

coisa nenhuma e voltou a dormir. Vinicius então não se deu por vencido e

finalmente disse que está certo, esse aí não é do Chopin, mas é que ele se

esqueceu de fazer esse.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

BRAZILIAN GIRL

Tânia Nogueira de Melo Franco

Olha que coisa mais linda,mais cheia de graça...

1967, efervescente 1967. Acabava de chegar naquele mundo novo, língua

nova, mal sabia o que me esperava quando, aos 17 anos, fui escolhida como

embaixadora mirim – como éramos chamados pela American Field Service –

com a enorme responsabilidade de apresentar o Brasil a um país que mal

nos conhecia. Achavam que éramos meio macacos, andando quase pelados,

comendo bananas pelas ruas, com cobras enroladas pelo pescoço tal era a

quantidade de peçonhentas, e que nossa capital era Buenos Aires!

Mas enfim, lá estava eu, diante de uma plateia, em um lugar desconhecido,

sendo vista como exótica e precisando reagir ao meu próprio nervosismo.

Ah, e com um detalhe que agora me parece ainda mais importante do que à

época, quando penso no nosso Vinicius de Moraes e relembro o dia que ele

me salvou: não falava inglês.

Nada. No máximo, um good morning, olhe lá.

Palco iluminado. Plateia no escuro. Auditório repleto.

As pernas tremiam. A cabeça rodava. Mas chegou a hora e lá fui eu,

arrastando um amigo, Mário, estudante brasileiro que eu sabia que tocava

violão e que morava numa cidade próxima. Tinha tido uma ideia e foi ela que

me iluminou quando, aos primeiros acordes do violão de Mário, soltei minha

voz ainda insegura e fraquinha:

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa. Pareceu mágica e eu me senti aquela menina cheia de graça. Eu era a própria.

A voz foi ficando mais segura, a postura também. Não lembro de mais nada a

não ser quando acabei.

103

chega de saudade

Não acreditei: estava sendo ovacionada! Palmas para mim. Eram para

mim aquelas palmas!

Era a Bossa Nova que chegava aos americanos que deliravam – como

fazem até hoje – ao ouvir aquele ritmo, um novo ritmo que conquistaria o

mundo, ali na voz de uma menina brasileira.

Minha obrigação estava sendo cumprida. Estava quebrada qualquer

resistência. Após os aplausos, consegui apresentar os slides do Brasil,

cuidadosamente separados, e desfilar para todos o nosso Brasil, o Brasil de

Vinicius, à época um dos diplomatas mais controvertidos. A Brasília, de

Niemeyer, o Rio de Janeiro, protegido pelo Cristo Redentor, braços abertos

para o mundo, a São Paulo industrial, as praias nordestinas, os pampas

gaúchos.

Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina que vem e que passa, no doce balanço a caminho do mar.

Vinicius foi minha salvação! Sempre pensei em encontrá-lo – um dia

contaria a ele essa história. Mas não deu. Conto aqui.

Vou adiante. Por muito tempo essa memorável noite me ajudou ali nos

EUA. Tinha sido um sucesso tão grande que fui chamada em muitos outros

locais, muitas outras cidades. A pequena cidade de New England estava

encantada e queria que mais americanos também vissem o Brasil; ouvissem a

brazilian girl, que logo perdeu a timidez, e em pouco tempo aprendeu a falar

inglês, e fluentemente.

Fui capa de jornais, notícia nas escolas, e meu prestígio se estendeu aos meus

agora maravilhados anfitriões que acompanhavam orgulhosos os convites do

Rotary, Lions, onde eu apresentava esse país de Vinicius.

E tudo isto graças aos acordes que ainda soam em todo o mundo, criados

pelo nosso diplomata-mor.

Obrigada Vinicius, você salvou minha vida. E nós dois, juntos, apresentamos

o Brasil.

A coisa mais linda que já vi passar.

104

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

HORA DE PENSAR VINICIUS

Maria Luiza Galli

Não sei bem se é casase é torre ou se é templo:(um templo sem Deus).

Sedução

o seu nome é Vinicius

arquiteto das palavras

retira da pedra bruta

a ternura adormecida

e com o cinzel

esculpe sua poesia

e lapida sua música

mestre do contraponto

transita com facilidade entre

vida e morte

alegria e tristeza

solidão e amor

encanto e desencanto

riso e pranto

pesar e contentamento

surpreendente

entende a tristeza

e festeja a vida.

105

chega de saudade

NÃO TER CONTENTAMENTO

Agda Del Cioppo

Sem saudade. Não ter contentamentoSer simples como o grão de poesiaE íntimo como a melancolia.

Se sentes uma dor que te vai n’alma

Se choraram saudade os olhos teus

É porque com certeza a tua calma

Não suportou a pronunciação do adeus.

Reza! Pedir e orar é um consolo

Chora! Que todo pranto é uma oração

E pensa no eterno abandono

Que a despedida deixou em teu coração

Mas não viva somente no passado

Tempo é breve pra ser desperdiçado

Nem te aconchegues na melancolia

Se houver amor, por certo em tua vida

Restou lembrança doce e dolorida

Brasa escondida em muita poesia.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

EU SEI

Agda Del Cioppo

eu sei que vou te amar

Eu sei que te amarei

Da maneira mais querida:

No arfar do beijo

No tocar de minha mão

No doce olhar

Na presença ou solidão

No carinho demorado

Na delicadeza

No pulsar do coração

Na renúncia ao que te causar tristeza

No pudor ou na ousadia

Tenho certeza

Mil anos vão passar

E nem teremos tempo de sentir saudade

Meu homem, eu sei que vou te amar

Não por toda a minha vida

Mas por toda a eternidade.

107

chega de saudade

DESATINOS DO AMOR

Maria Angela de Azevedo Antunes

Eu possa me dizer do amor (que tive):Que não seja imortal, posto que é chamaMas que seja infinito enquanto dure.

Salto alto, saia justa e curta. Blusa de seda estampada sob um blazer

bem talhado. Cabelos longos e cacheados. Semblante cheio de ansiedade e

preocupação. A atraente moça entra no consultório pela primeira vez.

Recusa a água oferecida, senta-se e cruza as pernas bem torneadas.

— Acho que não devia ter vindo. Uma amiga me recomendou. Eu estava

cheia de coragem e agora não sei por onde começar.

— O que está acontecendo? Posso ajudar?

— Sabe, sempre me achei bonita, alegre, extrovertida, cheia de confiança,

essas coisas.

Aperta as mãos, mexe nos cabelos, descruza e cruza as pernas, vira-se de

um lado para o outro em movimentos rápidos.

— De uns tempos para cá, nem eu mesma me reconheço. Tenho medo,

choro, ando insegura. Tremo. Falo sozinha.

— Continue. Fale sobre isso.

— Tenho tido uns pensamentos tristes. As coisas ficam indo e voltando na

minha cabeça. Remoendo. Não consigo viver o presente. Não dá pra curtir os

bons momentos. Bons momentos... Tenho medo de tudo acabar de repente.

— Você consegue identificar algum motivo real que possa ter desencadeado

tais sentimentos e sensações? Desde quando vêm acontecendo?

— Bom, na verdade, de uns tempos pra cá. Foi uma paquera relâmpago que

acabou virando relacionamento sério. Cara bacana, sedutor, cheio de amigos,

festas, me envolveu. No início, era um jogo gostoso, alegre, me falava das suas

viagens, a gente cantava junto, até escreveu um poema pra mim. Eu achava

108

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

que aquilo era paixão, que ia durar pra sempre. Havia uma cumplicidade.

Fixa o olhar no infinito, esboça um sorriso, suspira, e continua.

— É isso. Eu me sentia amada, e agora não sei o que está acontecendo. É

uma sensação horrível de abandono. Não sou mais interessante pra ele. Uma

a mais. Falta aquele abraço, aquele beijo, aquele olhar de te quero. Noite

passada, com uns amigos, ele ficou o tempo inteiro olhando pra outra. Pô,

a gente estava junto. Sei que não fui a primeira dele. Aliás, ele teve muitas.

O pessoal falou. Mas, não. Eu achei que ia segurar a onda. Comigo vai ser

diferente. A culpa é minha. Não devia ter entrado nessa. Eu sou uma burra!

Começa a chorar convulsivamente. Parece sofrer, sua fisionomia

transparece arrependimento. E entre soluços continua:

— Um dia ele me disse o amor é eterno enquanto dura e eu, tão na dele,

apaixonada, não percebi o recado. Gente, como é que pode? Sabe, é uma

mistura de ódio, amor, raiva, saudade, tristeza. Ah! Se eu pudesse voltar...

— Viveria tudo de novo?

109

chega de saudade

O SAPATO

Maria Luiza Galli

Só danço sambaSó danço sambaVai, vai, vai, vai, vai

O furor da festa, filmado e fotografado o tempo todo. À socapa

comentavam: Versace, Ferragamo, Manolo Blahnik, não é um Louboutin,

não tem sola vermelha.

Pulga, cinegrafista contratado, filmou-o desfilando de um lado para o

outro, dançando. Fez questão de fotografar todos os outros presentes à festa,

mas meu sapato era o Rei.

De onde vem esse encantamento de homens e mulheres por sapatos?

Talvez das histórias da carochinha contadas por nossos pais. Mil e

uma Noites, Cinderela, Gato de Botas e tantas outras nos embalavam e

sonhávamos com príncipes e princesas.

De Imelda Marcos? Fascinada por eles. Gastou a fortuna de uma nação.

As chinesas eram enfaixadas para ficarem com os pés pequenos. Seus

sapatos são usados tal como armadura com a mesma função de cinto de

castidade, para que, quando adultas, não se aventurassem fora do lar.

Volto à história do sapato que encantou o cinegrafista. Encontrei-o entre

as prateleiras de uma loja especializada. Assaltou-me o desejo. Magnetizada

fui a seu encontro. Ficou perfeito, exatamente o meu número. Senti-me

poderosa. Saí da loja realizada com a sacola debaixo dos braços. Pura

compulsão.

Em casa, no armário, a relíquia.

Neste sábado ensolarado, convidada para comemorar o aniversário de

um amigo, coloquei um vestido básico e para melhorar a produção, tirei o

sapato de seu lugar cativo. Foi o sucesso do evento.

110

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Bem que ele poderia ter frequentado as festas do poeta e diplomata

Vinicius de Moraes, com muita música, regada a uisquinho. E teria dançado

o jazz-samba:

Só danço sambaVai, vai, vai, vai, vai.

111

chega de saudade

Confesso que hesitei antes de decidir trabalhar, e viver com minha família,

nos Estados Unidos, naquele outono dos anos setenta. Tinha forte restrição

ao apoio do governo às ditaduras do Brasil, Uruguai, Argentina e Chile, e

também à guerra do Vietnã. Tantos jovens americanos mortos, ou forçados a

lutar, contra a própria vontade. E, acima de tudo, a destruição da bela e rica

nação asiática, como relatam, ainda hoje, vários dos amigos norte-americanos,

contrários à participação de seu governo. Além disso, o presidente do Banco

Mundial, onde eu iria trabalhar, tinha sido feroz Ministro da Defesa dos

governos Kennedy e Johnson, responsáveis pela intensificação daquela guerra

inglória.

Após trocar ideias com parentes e amigos, porém, tomei consciência de que

não devia confundir decisões governamentais com a cultura, tradição e qualidade

da população de um país. Um amigo, favorável à viagem, me provocou: Será

melhor continuar no Brasil controlado por generais que tomaram o poder com

um golpe, que apóiam a tortura e o desaparecimento de opositores políticos, e

onde não há mais eleições – ou viver uma rica experiência humana e profissional

nos Estados Unidos e nos países africanos e latino-americanos, com os quais

você irá trabalhar?

Escolhemos um simpático sobrado em Georgetown, bairro antigo de

Washington, com suas casas de tijolos vermelhos que lembram Londres. E

próximo ao Glover Park, onde era ótimo passear. Com o que pagávamos

de aluguel, poderíamos alugar uma cinematográfica casa suburbana em

Bethesda, Maryland, ou na Virgínia, a no mínimo uma hora de viagem da

O POVO FELIZ DO PORÃO

Carlos de Faro Passos

O cachorro é o melhor amigo do homem. O uisquinho, é o cachorro engarrafado!

112

quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

cidade, em dia sem congestionamento de tráfego. Optamos pela proximidade

do trabalho, dos cinemas e teatros, e da universidade de Georgetown, onde

minha mulher lecionou português e cultura brasileira. Para ir ao trabalho, eu

tomava meu confortável ônibus a uma quadra de casa, e em vinte minutos

estava no prédio do Banco, nas proximidades da Casa Branca.

Optamos por uma escola pública para nossas filhas, a cem metros de casa,

e não nos arrependemos. A diretora logo notou a presença das menininhas

brasileiras, que necessitavam de apoio especial para aprender inglês. Nossa

filha menor, após ficar muda durante três meses, começou a falar inglês com

fluência e pronúncia melhores do que as nossas.

Washington é uma cidade verde, onde fizemos amigos com facilidade.

Muitos, distantes das famílias e propensos a fazer novas amizades, vinham

de outros estados acompanhando políticos, ministros e congressistas; os

estrangeiros trabalhavam em embaixadas, ou organismos internacionais,

como o Banco Mundial, o Banco Interamericano, a OEA, a Organização

Mundial da Saúde, entre outros.

Assim que chegamos, fomos convidados a participar de uma block party, a festa anual do bairro. As famílias eram estimuladas a levar seu

animal doméstico, roupas e comidas típicas. O delicioso pastel brasileiro

foi rapidamente consumido, e facilitou nosso entrosamento. Ocorreram

competições de cachorros cantores, de papagaios que falavam mais de um

idioma, disputas esportivas e musicais. Para não ficar em desvantagem,

entoamos a Garota de Ipanema, do Vinicius.

Um simpático casal de vizinhos havia requisitado um terreno no Glover

Park, cedido pela prefeitura, para plantio de verduras e legumes. Entre o parque

e sua casa passavam pela nossa, e de vez em quando éramos presenteados com

maços de cenouras, hortaliças recém-colhidas. Acabavam de chegar do Vietnã

com o filho pequeno, onde o marido, advogado que dirige até hoje uma ONG

defensora de veteranos de guerra, assessorava jovens soldados recrutados

compulsoriamente pelo draft militar. Eles rejeitavam a guerra; muitos tinham

ido para o campo de batalha heroicamente desarmados, e moviam ações

contra o governo.

No final do ano, fomos convidados para passar o réveillon na casa do casal,

com o compromisso de levar música do Vinicius. Tanta gente simpática,

113

chega de saudade

ótimos papos e repousantes doses de cachorro engarrafado. Outro vizinho, um

jovem solteiro, logo aceito por nossas meninas por ensiná-las a caçar lightening bugs – os vagalumes que guardavam em vidros para uso noturno – contava

sua experiência em Saigon, onde teve a sorte de ficar na administração do

aeroporto militar. Música americana e brasileira, uísque de boa qualidade.

— Há um happy people downstairs, dizia-me, de vez em quando, o anfitrião.

E eu respondia – Thanks, estou muito feliz aqui mesmo. Mas ele tanto insistiu

para que eu me juntasse ao povo feliz do porão que acabei aceitando o convite,

e desci com os donos da casa.

O happy people estava muito alegre mesmo. Sentados em almofadas à volta de

uma mesinha central, fumavam um cigarro que circulava entre todos. Nunca

fumei na minha vida; sempre que o pito passava, dizia: – No, thanks. Depois da

enésima negação, disse-lhes que não era contra a fumegante comemoração,

só que não apreciava o baseado, jamais tinha dado uma baforada na vida. A

dona da casa, boa anfitriã, subiu então para a cozinha e voltou logo com uma

bebida estimulante, segundo ela: um forte chá de marijuana. Isto mesmo, uma

bebida preparada com a nossa popular maconha que, intimidado, acabei por

ingerir. Somada ao uísque que eu já havia tomado, no dia seguinte comecei o

ano novo numa penosa convivência com ervas e destilados.

O réveillon, aquele chá, e a experiência com o povo feliz do porão levaram-me

a duas descobertas: que nossos simpáticos vizinhos cultivavam maconha entre

as inocentes cenouras, e que o cachorro engarrafado do Vinicius era mil vezes

melhor do que aquele intragável chá de erva.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

DIAS DE ORFEU

Carlos Eduardo Cornacchione

Agora que não estás,deixa que rompa o meu peito em soluços!

O amor morreu. Esse pensamento nebuloso relampejou na leitura de Orfeu

da Conceição, transposição para os morros cariocas da mitológica história de

Orfeu e Eurídice por Vinicius de Moraes.

Vejam que situação. O filho de Apolo casou-se com Eurídice em núpcias

mal agouradas. Dias depois, ela foi assediada num bosque, pisou numa serpente

e morreu. Orfeu convenceu o Reino dos Mortos a devolvê-la sob condição de

não a olhar durante a viagem. Adivinhem, olhou, e ela morreu pela segunda vez.

Viúvo tão distinto, despertou o desejo das donzelas. Desprezou todas, em memória

à finada, e foi fulminado pelo ódio. As musas tiveram que juntar os pedaços do

seu corpo para enterrá-lo. Desencarnado, baixou ao Tártaro e sabemos o final:

encontrou Eurídice e os dois fantasmas viveram mortos felizes para sempre.

Nenhum deus grego, nem Vinicius, que transformou lira em violão e

música celestial em sambinha, esclarecem a moral da história. Pelo andar

da biga na urbe carioca, a garota da Tijuca teria ficado com o pastor que a

seduzia, e o viúvo, a exemplo de Vinicius, se casado com nove. Não o filho de

Apolo, nem Eurídice, que resistiram à tentação efêmera e ganharam o etéreo.

Tenho ou não razão? Se o amor não morreu, matou. O Orfeu grego cantou

– O Amor aqui me trouxe, o Amor, um deus todo-poderoso... E o da Conceição – Sem ti sou nada, sou coisa sem razão, jogada, sou pedra rolada... A mitologia está longe de

ser leitura diária, mas Cupido continua disparando suas setas, e as colunas

policiais estão repletas das suas feridas; o assédio em lotações e paróquias, e

os julgamentos de repercussão nacional de goleiros e doutores são refrões sem

bossa.

115

chega de saudade

Calma, Orfeu ensinou-me que um olhar descuidado pode matar o leitor.

Vinicius, se não foi moralista franciscano, cantou o amor à sua maneira, e

amor é vida aqui e no Além. Fecho a crônica fazendo meu o pedido de Orfeu

a Plutão – Imploro-vos: uni de novo os fios da vida de Eurídice.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

TORMENTO INFINITO

Carlos Eduardo Cornacchione

Minha desventura é ter perdido teu amor.

Alguém conhece um terreno baldio na Avenida Viera Souto? Vinicius, sim,

refúgio de mendigos. Esqueça a violência, gente desprovida de conta bancária,

mas cheia de dignidade. Um, inclusive, é poeta, e faz dos seus versos o seu cartão

de visitas. Do pó viemos e ao pó retornaremos, se pó de arenito de Ipanema não

faz diferença – somos iguais, e o canto do poeta-mendigo desperta um broto triste

que o contempla do seu apartamento de luxo à beira-mar. A primavera, sabe

você, faz milagres, e a garota se cobre de flores para o trovador da comunidade

descamisada, não da praia, do terreno.

Foi no Au Bom Gourmet que Pobre Menina Rica estreou em 1963 na voz de

Nara Leão, e exatos cinquenta anos depois, ouço as canções do nada original e

sempre atual conto de fadas. Dizem que os tempos são outros, mas desde Adão

e Eva um par de olhos verdes pode brilhar mais que duas esmeraldas.

No mesmo prédio da pobre garota rica vive um casal, desses de arremessar

vaso e o que mais aparecer à mão. Coisas de carência afetiva. Solfejamos

o refrão de cabeça, o homem trabalha para subir na vida, o dinheiro é

base da felicidade, sempre cansado e com dor de cabeça. A vingança felina

é implacável – Você acha que isso é importante para mim? – e dá-lhe joia

voando pela janela do condomínio para aleluia de um mendigo que louva as

dádivas do céu no lote contíguo.

O mendigo, porém, é um penitente convicto, profissional da mendicância,

incorruptível, entesoura tudo sem usufruir até a morte. O poeta-mendigo é

seu herdeiro universal e, agora endinheirado, perde o amor da garota e chora

– minha desventura:

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chega de saudade

Ah, meu tormento infinito que me vais matar de dorOnde estão teus olhosCheios de ternuraTua face puraCheia de esperançaMinha desventura é ter perdido teu amor

As joias só podem ser azaradas e de mau gosto com certeza. Seja como

for, poesia e riqueza não rimam. As fábulas versejam que o amor floresce nas

carteiras baldias e fenece nos bolsos opulentos. Esse é o meu drama de pobre

cronista remediado, sou um personagem sem papel nos contos. Solidarizo-me

com o poeta, as fadas não gostam de nós, querem-nos passando o chapéu pela

esmola do afeto ou abastados solitários. Solto um grito de reivindicação – Viva

o amor-classe-média! E agora peço licença para arrematar, o meu broto está

me lembrando: eu ainda não terminei de lavar a louça. Alguém tem varinha

de condão?

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

DUETO

HelÔ Bello Barros

Eu sem você não tenho porqueporque sem você não sei nem chorarSou chama sem luzjardim sem luar

Estamos os cinco no carro. Dois irmãos menores, meus pais e eu. Fim de

tarde, passando pela represa, naquele ponto onde se vê água dos dois lados.

E o edifício da Sabesp. O sol entra oblíquo e a música toca no rádio. Meu pai

acompanha com voz potente, o prelúdio. Eu sem você não tenho porque...

Esta imagem descrevo como menina, sentada no banco de trás do DKW azul

e cantando Samba em Prelúdio com meu pai. Deste lugar, onde a cena acontece,

me desconecto. Uma bruma se interpõe à minha vontade. Algo diz: chega, pare

de ser refém do amor e das relações. Não que eu queira a solidão, longe disto,

mas esta coisa pastosa que afugenta os nãos da minha boca e o dom de ter ganas.

Fica tudo parado ali, naquele carro, rumo à praia. Minha mãe está quieta, meu

pai cúmplice. Eu apenas criança, sentindo que algo vai acontecer, olhos cansados

de olhar para o além. Sobra um peito esquálido e fugidio. E a melancolia.

Andei fazendo perguntas a pessoas com traumatismos na infância. O tempo

que precede a tragédia fica vivo e tem tanto ou mais poder que o presente. O

colorido das cenas se fixa e não há o que enterneça as imagens.

Mais uma vez repito, tento contar a história a partir da infância, quando

tinha 11 anos e cantava Samba em Prelúdio com meu pai. Estou sentada no

banco de trás de um carro, sem saber ainda que aquele seria o último final de

semana antes do acidente. Acidente que deixou a mãe sem falar por mais de

um ano. Mãe perdeu a voz e levou a minha. A noite se tornou orelha escura,

alerta a todos os sons.

Como o conjunto, o ritmo e uma escolha de palavras podem acordar seres.

Pois bem, quero acordar a menina e a dor que ela sente por antecipação. Pra que

119

chega de saudade

deste lado, da maturidade, se abra um túnel onde o perfume dela se desprenda e

eu possa ser fiel ao que houve. A vida na cidade era de certa forma recente, e os

baldios apenas começavam a se perder de naturezas. E vem o gosto da resiliência

que eu sofria por minha mãe, sufocada na própria juventude com a fumaça da

Rhodia. O avental e os cabelos em lenços, apesar dos brasões monografados nos

lençóis. Eram dela as mãos vermelhas empunhando a colher de pau em panela

de polenta. Ou minhas? O amor era a crença, e meus pais, tolamente felizes.

Eu sem você não tenho porque...Vejo a menina, no impulso de responder,

de cantar e dizer ao pai que tudo é pra sempre. Volta querido, os meus braços

precisam dos teus. E a luz da tarde foi perdendo o lilás e o dueto aconteceu numa

felicidade de maçã.

Se o acidente não tivesse se cumprido, com certeza este episódio se perderia,

mas o silêncio que se seguiu, foi indelével. Naquele instante, os cabelos anelados

de minha mãe, foram iguais aos meus. Três cirurgias e arames e olhos infinitos

e caderninhos com seu quereres e acordar gritando o silêncio encravado na

garganta e o dueto ali, mudo e presente. O tempo era de submissão. Silêncios.

Ah que saudade, que vontade de ver renascer nossas vidas.

E o lirismo cobriu as cozinhas com fórmicas estreladas e de pinguins soberanos

as geladeiras.

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

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chega de saudade

CHEGA DE SAUDADETributo a Vinicius de Moraes

Copyright © by autores

Projeto com o apoio da Diretoria Cultural do Club Athletico Paulistano

obra atualizada conforme o Novo Acordo Ortográfico

da Língua Portuguesa

Carlos Eduardo Cornacchione

HelÔ Bello Barros

HelÔ Bello Barros

Loelia van Rooy

Cassio Manga

Coordenadores

Capa e projeto gráfico

Ilustrações

Charge

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Praia de Ipanema

Bondinho Pão de Açúcar

Cristo Redentor

Outeiro da Glória

Bar VelosoPraia de Botafogo

Cristo Redentor Praia de Copacabana

Loelia van Rooy aceitou a tarefa de ilustrar este livro generosa e profissionalmente. Entendeu o nosso propósito e se pôs ao trabalho. São doze ilustrações de paisagens do Rio de Janeiro entremeadas nos textos do Caderno CHEGA DE SAUDADE, tributo a Vinicius de Moraes. O grupo agradece a dedicação e a delicadeza expressa em nanquim e filigrana.

Autores

Mineira de nascimento, carioca de criação e paulistana de coração, formou-se pela Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, frequentou o ateliê de Evandro Carlos Jardim, como também o ateliê Graphias. Realizou exposições individuais na Holanda e coletivas no Brasil, premiada nos concursos de artes plásticas do CAP e da ACESC. Seu trabalho é iconográfico retratando várias cidades.

[email protected]

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chega de saudade

Praia de Ipanema Lagoa Rodrigo de Freitas

Praia do Flamengo Praia de Ipanema

Os desenhos de Loelia van Rooy

Na aparência são registros de uma quase memória ou lembrança de um tempo sempre presente como substrato da história e da cultura de um lugar, para todos, indistintamente.

Loelia nos mostra suas litografias e seus desenhos a bico de pena e tinta nanquim, com pena tirada de uma haste muito fina e bem apontada.

Referentes à cidade do Rio de Janeiro, seus desenhos despojados e discretos na fatura e na economia dos meios materiais escolhidos para sua elaboração são registros que revelam o zelo e a rara sensibilidade de um gesto contido no traço ao servir um olhar que elege em silêncio o objeto a ser contemplado.

São tramas de um tecido gráfico que pelo traço modela luzes e sombras sobre uma folha de papel e sua conversão em sinais sensíveis que significam um espaço e seus diferentes tempos. O espaço geográfico de um lugar, seu mistério e seu destino, na alusão de uma paisagem de origem. Paisagem que, na sua unidade e variedade, também nos sugere o não visível por exceder, muitas vezes, as características externas de uma realidade, sem, entretanto, negar a identidade do objeto representado.

Com emoção e discrição seus desenhos nos oferecem as vistas de um território, sua materialidade, seu recôndito e a presença de um tempo que dispensa a data. Um horizonte intangível porque sempre distante. Sua atmosfera e sua luz como expressão do sentimento.

Evandro Carlos Jardim

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

Cassio Manga é chargista, cantor/compositor, diretor de arte e ilustrador. Estudou arquitetura na FAU, trabalhou em algumas agências de publicidade, como Denison e Usyna. Já publicou na Folha de São Paulo, no Pasquim, tendo feito várias capas. Fez capas também para a revista Primeira Leitura e Courier (Japão). Colaborou com as revistas Five Stars (onde ilustrou Ignácio de Loyolla Brandão, Ivan Ângelo e José Nêumanne Pinto), Meu Próprio Negócio, Bella Vitória e o Fanzine PnoB. Hoje faz charges para a revista O Paulistano e ilustra o quadro Pra Quem Você Tira o Chapéu, do Programa Raul Gil. Participou de inúmeras exposições, entre eles algumas no Metrô e no Salão de Humor de Piracicaba. Tem um livro de palindroemas (poemas em palíndromos) ilustrados lançado na Casa das Rosas. Apresentou também o quadro de comédia stand-up - Deu pano pro Manga - em bares e teatros. Co-escreveu e atuou na peça Sobre Humano. Produziu, escreveu e apresentou seu programa Fiapos do Manga na KazTV.

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VENDA PROIBIDA

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quinto caderno de literatura do Club Athletico Paulistano

IconografiaAs epígrafes são de Vinicius de Moraes

pág.15 — Macho e fêmea os criou. Bíblia: Gênese, 1, 27 - O Dia da Criaçãopág.21 — De tudo, ao meu amor serei atento/Antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto… - Soneto da Fidelidade pág.22 — Que o sofrimento vem, essa saudade/De estar perto, se longe, ou estar mais perto/Se perto,... - Monólogo de Orfeupág.23 — Quem és tu/Quem és/Serás a sombra que me espera/Ou és a breve primavera/A mariposa que se pousa/E que se vai - Quem és pág.25 — Há um renovar-se de esperanças/Porque hoje é sábado. - O Dia da Criaçãopág.27 — E o futuro é uma astronave/Que tentamos pilotar/Não tem tempo nem piedade/Nem tem hora de chegar - Aquarela, parceria com Toquinhopág.29 — Giro um simples compasso e num círculo eu faço o mundo/Que descolorirá - Aquarela, parceria com Toquinhopág.31 — É claro que a vida é boa/E a alegria, a única indizível emoção - Dialéticapág.33 — … silenciosos […]/Mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir/E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas/Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada. - Ausênciapág.34 — Quando lanças tua rede lanças teu coração com ela pescador! - Pescadorpág.35 — O tempo... sombras de perto e sombras na distância - vem, o tempo quer a vida! Sonata do Amor Perdido - Lamento no 1pág.38 — Tristeza não tem fim/Felicidade sim. - A Felicidade, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.40 — Quando a luz dos olhos meus/E a luz dos olhos teus/Resolvem se encontrar - Pela luz dos Olhos Teuspág.42 — Quem diz muito que vai, não vai/E assim como não vai, não vem/Quem de dentro de si não sai/Vai morrer sem amar ninguém. - Berimbau, parceria com Baden Powellpág.43 — O seu balanço é mais que um poema/É a coisa mais linda que eu já vi passar. - Garota de Ipanema, parceria com Antônio Carlos Jobim pág.46 — Se a tristeza um dia/Te encontrar triste sozinho/Trata dela bem/Porque a tristeza quer carinho - Canção de Enganar Tristeza, parceria com Baden Powellpág.48 — Não comerei da alface a verde pétala/Nem da cenoura as hóstias desbotadas/Deixarei as pastagens às manadas/E a quem mais aprouver fazer dieta - Não Comerei da Alface a Verde Pétalapág.50 — Voltou a esperança/É o povo que dança/Contente da vida/Feliz a cantar - Marcha da Quarta-feira de Cinzas, parceria com Carlos Lyra pág.53 — Um minuto o nosso beijo/Um só minuto; no entanto/Nesse minuto de beijo/Quantos segundos de espanto! - Um Beijopág.54 — Eu cá por mim, odeio paradoxos... - cortado por Vinicius na prova tipográfica do livro Para Viver um Grande Amor. pág.56 — Sem pedir licença muda nossa vida/Depois convida a rir ou chorar - Aquarela, parceria com Toquinhopág.58 — Pra que chorar/Se o sol já vai raiar/Se o dia vai amanhecer - Pra Que Chorar, parceria com Baden Powellpág.60 — Canta, canta/Canta, vai, vai/Segue cantando em paz - Canta, canta mais, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.63 — Mas sabia vibrar em presença da folha branca que me pedia versos, viva como uma epiderme que pede carinho. - O Aprendiz de Poesiapág.65 — Já não havia sombra em ti – eras como um grande deserto de areia. - Agonia

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pág.67 — O amigo: um ser que a vida não explica/Que só se vai ao ver outro nascer. - Soneto do Amigopág.68 — Quem virá despetalar pétalas/No meu túmulo de poeta? - A Hora Íntima pág.70 — Um minuto nosso beijo/Nesse minuto de beijo/Quantos segundos de espanto! - Um Beijopág.72 — Chega de saudade - Chega de Saudade, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.73 — Copacabana, praia de memórias!/Quantos êxtases, quantas madrugadas/Em teu colo marítimo!/— Esta é a areia/Que tanto enlameei com minhas lágrimas. - Copacabanapág.75 — Eu amei/Eu amei, ai de mim, muito mais/Do que devia amar/E chorei/Ao sentir que iria sofrer/E me desesperar - Amor em Paz, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.76 — Filhos... Filhos?/Melhor não tê-los/Mas se não os temos/Como sabê-los? - Poema Enjoadinhopág.78 — Louco meu amor que, quando toca, fere/E quando fere vibra, mas prefere/Ferir a fenecer – e vive a esmo/Fiel a sua lei de cada instante/Desassombrado, doido, delirante/Numa paixão de tudo e de si mesmo. - Soneto do Maior Amorpág.81 — sabe, parceirinho? eu quero é desencarnar! pág.83 — deixa pensar que pra amar é preciso fingir - Estamos Aí, parceria com Antônio Carlos Jobim, Chico Buarque e Toquinhopág.85 — Amo-te tanto, meu amor... não cante/O humano coração com mais verdade... - Soneto do Amor Totalpág.87 — Chega impressentida/Nunca inesperada/Ela que é na vida/A grande esperada! - A Morte pág.89 — As feias que me perdoem/Mas beleza é fundamental. - Receita de Mulherpág.93 — Crê apenas no amor/E em mais nada - Duas Canções de Silênciopág.94 — Tu me beijaste, Coisa triste/Justo durante a elevação/Depois, impávida, partiste/A receber a comunhão - A Primeira Namoradapág.97 — Lembra que tempo feliz/Ah, que saudade/Ipanema era só felicidade/Era como se o amor doesse em paz. - Carta ao Tom, parceria com Toquinhopág.98 — Samba em Prelúdio - Samba em Prelúdio, parceria com Baden Powell pág.100 — Olha que coisa mais linda/Mais cheia de graça. - Garota de Ipanema, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.102— Não sei se é casa/Se é torre ou se é templo:/(um templo sem Deus). - Poética IIpág.103 — Sem saudade. Não ter contentamento/Ser simples como o grão de poesia/E íntimo como a melancolia. - Quatro Sonetos de Meditação Ipág.104 — Eu sei que vou te amar - Eu Sei Que Vou Te Amar, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.105 — Eu possa me dizer do amor (que tive):/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure. — Soneto da Fidelidadepág.107 — Só danço samba/Só danço samba/Vai, vai, vai, vai, vai - Só Danço Samba, parceria com Antônio Carlos Jobimpág.109 — O cachorro é o melhor amigo do homem. O uisquinho, é o cachorroengarrafado! - Livro de Letras pág.112 — Agora que não estás, deixa que rompa o meu peito em soluços! - Monólogo de Orfeu da Conceiçãopág.114 — Minha desventura é ter perdido teu amor. - Minha Desventura, parceria com Carlos Lyrapág.116 — Eu sem você /Não tenho porquê/Porque sem você/Não sei nem chorar. - Samba em Prelúdio, parceria com Baden Powell

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1 Guta Rezende Soares 2 Maria Angela de Azevedo Antunes3 Adriana Magalhães4 Agda Del Cioppo5 Ricardo Lahud6 Maria Lúcia Perrone Passos7 HelÔ Bello Barros8 Vinicius de Moraes9 Carlos Eduardo Cornacchione10 Rogério Matarazzo11 Ignez Matarazzo12 Danielle Martins Cardoso13 Maria Lúcia Rizzo14 Mariza Baur15 Angélica Royo16 Angela Guimarães17 Teresinha Taumaturgo Policastro18 Luiz Antonio de Queiroz19 Maria Júlia Kovács20 Maria Helena Nogueira de Almeida21 Bia de Castro Oliveira22 Giselda Penteado Di Guglielmo

23 Hans Freudenthal24 Betty Wey25 Carlos de Faro Passos26 Gisella Prado27 Silvana Marani28 Lisa Kahuna29 Tânia Nogueira de Melo Franco30 Luiz Tarcisio B. Filomeno31 May Parreira e Ferreira32 Vicente Rággio33 Maria Luiza Galli34 Lilian Gattaz35 Suzana Montoro36 Gilda Pasqua Barros de Almeida37 Heloisa de Queiroz Telles Arrobas Martins38 Guilherme Hernandez Filho39 Maria Helena F. Vieira40 Jairo Navarro de Magalhães41 Lygia Pistelli42 Renata Julianelli43 Christina Tibiriçá