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    A aplicabilidade direta do direito da Unio Europeia no direito interno

    Maria Manuela Magalhes Silva1

    ResumoA aplicabilidade direta do direito comunitrio foi durante largas dcadas um tema

    polmico na sua relao com o direito interno dos Estados membros. Das Comunidades Europeias passou-se Unio Europeia, pois s com a entrada em vigor do Tratado de Lisboa se passou a poder falar apenas de uma Unio Europeia a que ainda se adiciona a Comunidade Europeia da Energia Atmica. Nem por isso o tema da aplicabilidade direta do agora direito da Unio Europeia deixou de manter o seu interesse.

    Palavras-chave: Comunidades Europeias. Unio Europeia. Aplicabilidade direta.

    AbstractTh e direct applicability of Community law over several decades has been a

    controversial topic in relation to the law of the member states. European Communities passed to the European Union, because the Lisbon Treaty is now able to speak only of a European Union that still adds the European Atomic Energy Community. Not so the theme of the direct applicability of EU law now ceased to hold its interest.

    Keywords: European Communities. Th e European Union Direct applicability.

    Abordagem doutrinria Segundo o professor Mota de Campos2, no puro plano conceptual,

    pode distinguir-se as noes de aplicabilidade direta e de efeito imediato na medida em que este, ao contrrio daquela, supe a atribuio a um particular de um direito subjetivo suscetvel de invocao e reconhecimento em juzo e a imposio a outrem da correspondente obrigao. Assim, o conceito de aplicabilidade direta seria mais amplo do que o de efeito direto, pois engloba-o sem se esgotar nele. Pode dizer-se que se verifica uma ligeira distino entre eles, no entanto, a maior parte da doutrina e a jurisprudncia do Tribunal de Justia da Unio Europeia TJUE (antes Tribunal de Justia das Comunidades Europeias T.J.C.E.) utilizam indistintamente a expresso aplicabilidade direta, efeito direto e at efeito imediato para traduzir o mesmo contedo.

    1 Doutora em Direito e Professora Associada da Universidade Portucalense Infante D. Henrique.

    2 CAMPOS, Joo Mota de. Direito Comunitrio. II vol. 5. ed.. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1997, p. 247.

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    Autonomia do direito comunitrio A manifestao livre e voluntria do consentimento dos Estados em

    serem membros das Comunidades Europeias (hoje Unio Europeia3) e, como consequncia, obrigarem-se pelos tratados institutivos e pelos atos das instituies, produz a atribuio de competncias internas a favor hoje da Unio. Esta atribuio, em determinadas matrias, e o seu exerccio efetivo pelas instituies da Unio Europeia, o ponto de partida da existncia do ordenamento jurdico comunitrio4.

    O Estado reserva um conjunto de competncias sob a sua soberania e, portanto, regidas pelo direito nacional. Mas nas matrias cedidas regem os tratados e os atos das instituies ou o direito derivado. Logo os dois ordenamentos jurdicos coexistem no interior de cada Estado-membro.

    Disse Pierre-Marie Martin que no sistema do direito comunitrio, cuja salvaguarda cabe a um Tribunal de Justia de amplas competncias, o princpio da aplicabilidade direta permite a este direito distinguir-se daquele dos Estados. Este direito pode ser invocado perante o juiz interno porque uma norma diretamente aplicvel engendra direitos que as jurisdies internas devem salvaguardar.

    Para fortalecer esta aplicabilidade, o Tribunal de Justia das Comunidades Europeias (T.J.C.E.)5 no clebre caso Costa/ENEL6 foi levado a constatar a primazia do direito comunitrio sobre os direitos nacionais, tendo em conta que ao contrrio dos tratados internacionais ordinrios, o Tratado da C.E.E. instituiu uma ordem jurdica prpria, integrada no sistema jurdico dos Estados-membros desde a entrada em vigor do Tratado. Seja como for, a ordem jurdica comunitria no s afirma a sua superioridade sobre a ordem interna, como dispe de uma jurisdio prpria para assegurar a aplicao7. Para alm disso, no caso Van Gend & Loos (T.J.C.E., 5 de Fevereiro de 1963), o Tribunal constatou que a Comunidade constitui uma nova ordem jurdica de direito internacional em benefcio da qual os Estados-membros limitaram, se bem que em domnios restritos, os seus direitos 3 Ver artigo 1. do Tratado da Unio Europeia tal como alterado pelos artigos 1. e 2. , 2), alneas

    a) e b) do Tratado de Lisboa: A Unio substitui-se e sucede Comunidade Europeia. 4 Sem prejuzo de o direito comunitrio, como direito das comunidades europeias, ter cedido

    lugar ao direito da Unio Europeia, o termo comunitrio continua a ser utilizado, na medida em que o termo europeu nem sempre se mostra adequado. Embora muitas vezes substituda pela expresso da Unio nos Tratados, ainda assim a utilizao da palavra comunitrio continua nos textos e na doutrina.

    5 Agora Tribunal de Justia da Unio Europeia TJUE, porm a jurisprudncia relevante citada neste trabalho refere-se ainda ao tempo em que a designao era a anterior, mas em tudo vlida no presente atentas as denominaes atualizadas.

    6 In Recueil de la Jurisprudence de la Cour de Justice das Communauts Europennes (RJC), 1964, p. 141.

    7 MARTIN, Pierre-Marie. Droit international Public. Paris, Milan e Barcelone: Masson, 1995, p. 174-175; BOULOIS, Jean - Le Droit des Communauts Europennes dans les Rapports avec le Droit International Gnral. In Recueil des Cours de lAcadmie de Droit International de La Haye. Dordrecht/Boston/London: Martinus Nijhoff Publishers, 1993, p. 40.

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    soberanos e cujos sujeitos no so apenas os Estados-membros mas tambm os seus cidados. Diz Jean Boulois que de uma deciso outra a ordem jurdica comunitria deixou de ser de direito internacional para no ser mais do que procedente de uma fonte autnoma, que no permanece mais nos tratados. Se o direito comunitrio afirma a sua autonomia face ordem jurdica internacional nele que ele se inspira, sem o dizer, para fixar os princpios da sua integrao nas ordens jurdicas nacionais8.

    As relaes entre o direito comunitrio e o direito interno esto condicionadas pelos princpios de autonomia, eficcia ou aplicao direta e primazia do direito comunitrio. Como assinalou o T.J.C.E. na sua deciso n. 1/91 sobre o Espao Econmico Europeu (E.E.E.), os aspetos essenciais do ordenamento jurdico comunitrio so a sua primazia em relao aos direitos dos Estados-membros, assim como o efeito direto de toda uma srie de disposies aplicveis aos seus nacionais e a eles mesmos9.

    Desde logo, o direito comunitrio deve o seu nascimento a normas de direito internacional que regulam as relaes entre Estados, mas para a maioria dos autores evidente que os tratados e os atos das instituies ultrapassam o marco internacional clssico das relaes entre Estados para incorporar como destinatrios dessas normas os nacionais dos Estados-membros e os prprios poderes pblicos dos Estados.

    O T.J.C.E. confirmou, referindo-se ao T.C.E., que ainda que tenha sido celebrado sob a forma de conveno internacional, no deixa de ser, por isso, a carta constitucional de uma Comunidade de Direito (sentena n. 1/91, fundamento 21).

    Esta autonomia a respeito do direito internacional permite desvanecer qualquer condio de paridade e de reciprocidade na formao e na aplicao do direito comunitrio.

    A clusula de reciprocidade, que aparece em numerosas convenes internacionais, inconcebvel na aplicao dos tratados e dos atos das instituies e, por isso, o Tribunal recusou-a, sempre que algum Estado a invocou para justificar o seu prprio incumprimento, assinalando que os tratados no se limitam a criar obrigaes recprocas10. Por isso, to pouco admite o Tribunal que um Estado-membro possa tomar unilateralmente medidas de defesa para prevenir-se contra

    8 BOULOIS, Jean. Le Droit des Communauts Europennes , cit., p. 40-41. Diz o Professor Moura Ramos que o direito comunitrio autnomo porque, embora integrado no direito internacional considerado em sentido amplo, ele caracteriza-se no s por diferentes modos de formao como por diferenas assinalveis na sua aplicao, em particular quando esta levada a cabo por rgos estaduais. Ver: Das comunidades Unio Europeia: estudos de direito comunitrio. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 100.

    9 Deciso n. 1/91, de 15/12/1991, sobre o E.E.E., fundamento 21. In Revista de Instituciones Europeas. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales. (1992-1), p. 226-259.

    10 Sentenas de 13/11/1964, Comisin c. Luxemburgo y Blgica, processo n. 90-91/63; de 26/02/1976, Comisin c. Itlia, processo n. 52/75; de 25/09/1979, Comisin c. Francia, processo n. 232/78; de 14/02/1984, Comisin c. Alemania, processo n. 325/82.

    Maria Manuela Magalhes Silva

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    um possvel incumprimento, por parte de outro Estado-membro, das normas de direito comunitrio11. Mas o direito comunitrio to pouco direito interno, o direito comunitrio autnomo face ao direito interno, ainda que se integre nos sistemas jurdicos nacionais mas sem perder a sua qualidade de direito comunitrio (como dizia a sentena Costa/ENEL).

    Definitivamente, o direito comunitrio no se submete aos princpios nem aos modos de produo normativa nem aos efeitos jurdicos estabelecidos na Constituio e nas restantes normas internas dos Estados-membros. Precisamente o T.J.C.E., na sentena Van Gend & Loos de 1963, situou o direito comunitrio como independente da legislao dos Estados-membros e na sentena, de 18 de outubro de 1967, Bundesverfassungsgericht, o Tribunal Constitucional Alemo sustentava que o Direito comunitrio e o direito interno alemo eram duas ordens jurdicas autnomas e diferentes entre si, porque o direito criado pelo Tratado C.E.E. provinha de fontes jurdicas autnomas e isso porque a C.E.E. no um Estado, muito menos um Estado federal, mas apenas uma Comunidade