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* Mestranda em Direito Internacional pela PUC-MINAS. Bacharel em Direito pela UFMG e Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MINAS. * Bacharel em Direito pela Universidade FUMEC. Assistente judiciário no TJMG, 14a Câmara Cível.
OS PRINCÍPIOS DA APLICABILIDADE DIRETA E DO PRIMADO DO
DIREITO COMUNITÁRIO: Um estudo comparativo entre o Mercosul e a União
Europeia a partir da noção de Supranacionalidade
THE PRINCIPLES OF DIRECT APPLICABILITY AND OF THE SUPREMACY OF THE
COMMUNITY LAW: A comparative study between the Mercosur and the European Union from the
notion of Supranationality
Luiza Diamantino Moura*
Lais Alves Camargos*
RESUMO A pretensão do trabalho é demonstrar que a forma pela qual o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL) que se encontra estruturado, em moldes intergovernamentais, afasta a possibilidade de se tornar uma comunidade de nações. Assim, foi realizado um estudo comparativo entre a União Europeia e o Mercosul a partir dos princípios de Aplicabilidade Direta e do Primado para explicar o porquê, ao contrário do União Europeia, o Mercosul não se configura como organização supranacional, comunitária. Em um primeiro momento, portanto, é apresentado o projeto de integração europeu, com suas instituições e princípios sob os quais o ordenamentos jurídico comunitário se fundamenta. Feito isso, em um segundo momento a União Europeia é contraposta à estrutura institucional e jurídica do Mercosul, levando à conclusão de que este bloco pode ser tratado apenas enquanto Direito Internacional elaborado em moldes regionais, mas não enquanto Direito Comunitário. PALAVRAS-CHAVE: Direito Comunitário; Aplicabilidade Direta; Primado; Supranacionalidade; Mercosul. ABSTRACT The work`s aim is to demonstrate that the way in which the “Mercado Comum do Sul” (MERCOSUR) is structured, on intergovernmental molds, pushes away the possibility of becoming a nation’s community. Thus, we conducted a comparative study between the European Union and Mercosur basing on the principles of the Primacy and Direct Applicability to explain why, unlike the European Union, Mercosur is not a supranational or community organization. In a first moment, therefore, is presented the European integration project, with its institutions and principles under which the community legal frameworks is based. Once this is done, in a second moment the European Union is opposed to the legal and institutional structure of Mercosur, leading to the conclusion that the group can only be treated as International Law in regional templates, but not as Community Law. KEYWORDS: Community Law; Direct Applicability; Supremacy; Supranationality; Mercosur.
1 INTRODUÇÃO
A Constituição brasileira de 1988 inaugura um novo período da história do
país, uma vez que incorpora ao ordenamento jurídico uma gama de direitos individuais
e sociais, garante a democracia e o pluralismo e apregoa por uma sociedade mais justa,
livre e humana.
Nesse sentido, tema que é constantemente lembrado e trabalhado em se tratando
da ordem constitucional brasileira é dos fundamentos do Estado Democrático de
Direito, inaugurado há 25 anos, e que se encontram no artigo 1º do texto constitucional,
quais sejam, a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais
do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Contudo, o artigo 4º da
Constituição Federal também traz princípios fundamentais a serem observados na
condução da política brasileira, e que muitas vezes são esquecidos, não obstante sua
grande importância para a própria compreensão dos objetivos do Estado.
Com efeito, de acordo com o artigo 4º da Constituição brasileira,
A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: I - independência nacional; II - prevalência dos direitos humanos; III - autodeterminação dos povos; IV - não-intervenção; V - igualdade entre os Estados; VI - defesa da paz; VII - solução pacífica dos conflitos; VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo; IX - cooperação entre os povos para o progresso da humanidade; X - concessão de asilo político. Parágrafo único. A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (BRASIL, 1988).
Assim, o artigo 4º da Carta de 1988 traz princípios que devem obrigatoriamente
ser observados quando o Estado brasileiro se relacione com outros atores no sistema
internacional, sejam estes atores outros Estados ou organizações internacionais. Esta
disposição ganha especial relevância no mundo globalizado, em que a agenda
internacional interfere em grande medida na agenda interna dos Estados, e em que os
Estados são levados a buscar a concretização de seus interesses nos fóruns e organismos
internacionais. Não se pode, portanto, pensar no Estado brasileiro isolado de sua
existência internacional, ao contrário, é importante situá-lo no contexto de suas relações
internacionais para deslumbrar se os objetivos constantes do texto constitucional estão
sendo realizados.
De fato, José Afonso da Silva (2012) identifica quatro inspirações no rol
constitucional dos princípios ordenadores das relações internacionais:
(a) uma nacionalista, nas ideias de independência nacional (inciso I), de autodeterminação dos povos (inciso III), de não-intervenção (inciso IV) e de igualdade entre os povos (inciso V); (b) outra internacionalista, nas ideias de prevalência dos direitos humanos (inciso II) e de repúdio ao terrorismo e ao racismo (inciso VIII); (c) uma pacifista, nas ideias de defesa da paz (inciso VI), de solução pacífica de conflitos (Inciso VII) e na concessão de asilo político (inciso X); (d) uma orientação comunitária, nas ideias de cooperação entre os povos para o progresso da Humanidade (inciso IX) e na formação de uma comunidade latino-americana (parágrafo único). (SILVA, 2012, p. 52).
O que nos interessa neste artigo é justamente esta orientação comunitária, mais
especificamente a formação de uma comunidade latino-americana de nações, prevista
no parágrafo único do artigo 4º, e à qual o princípio de cooperação com vistas ao
progresso da humanidade está diretamente relacionado.
De fato, quando se fala em integração dos povos da América Latina, visando à
formação de uma comunidade latino-americana de nações, não se trata de simples
faculdade, mas de um mandamento constitucional a ser cumprido pelo Estado brasileiro.
Assim, o Estado brasileiro “Buscará a integração” enquanto objetivo colocado pela
Constituição dirigente. Neste sentido é a lição de Rosemiro Pereira Leal, Allan Helber
de Oliveira, Gustavo Gomes França e Juventino Gomes Miranda Filho (2001):
Conforme se pode depreender do texto transcrito [da Constituição], a República Federativa do Brasil não somente tem autorização legal, mas a tarefa inescusável criada por norma de estatura máxima, de buscar a integração, de forma abrangente, dos povos da América Latina, não fulcrada em objetivos aleatórios ou anelando a integração em si e por si, porém visando à formação de uma comunidade latino-americana de nações. (LEAL et al, 2001, p. 101).
Além disso, formar uma comunidade de nações ultrapassa o sentido de uma
comunidade de Estados, na medida em que o que se pretende é uma convivência
econômica, política, social e cultural dos povos latino-americanos. Em uma
comunidade, portanto, as soberanias estatais são flexibilizadas ao máximo para a
criação de um espaço supranacional ou comunitário, que pressupõe uma solidariedade e
integração que: “(...) permite formar uma vontade política, de criar uma legislação
comum, de assegurar a gestão dos interesses comuns, enfim, de ajustar os litígios
sociais com base em uma jurisdição obrigatória, investida de uma vocação geral”.
(PESCATORE apud TRINDADE, 1972, p. 46, tradução nossa) 1.
Pensar em processo de integração conduzido pelo Brasil na América Latina
significa pensar no Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Com efeito, “consolidado
o Mercado Comum do Sul, poderá ser este vislumbrado como o embrião de uma
Comunidade de proporções ainda mais significativas, criada para a inserção da América
Latina, como bloco coeso, (...) na comunidade internacional” (LEAL et al, 2001, p.
110).
O Mercosul é um projeto de integração que vem se desenvolvendo desde 1985
a partir de iniciativas de Brasil e Argentina, e que tem se pautado pelo modelo de
integração da União Europeia, o mais antigo projeto de integração regional e o único a
ter alcançado o status de espaço comunitário, de modo que muitas decisões passaram a
ser tomadas não mais a nível interno, mas num viés europeu, indicando uma grande
confluência dos interesses dos países em fortalecer o bloco.
Tendo em vista o modelo europeu o que se observa é que para se alcançar um
nível de integração comunitário, supranacional, é preciso trabalhar primeiro o âmbito
econômico, para depois poder partir para o âmbito político e social e, por fim, cultural.
Assim, um substrato de equilíbrio econômico entre os participantes do bloco é essencial
para a formação de uma comunidade de nações, como se delineia das etapas de
integração regional ensaiadas pela Europa, que primeiro instituiu uma União Econômica
e Financeira2 (passando por União Aduaneira3 e Mercado Comum4) para só depois dar
início a uma União Política5 – como se verá a seguir.
Ainda, construiu-se paralelamente um Direito Europeu de molde comunitário,
com a construção de princípios que foram agregados ao processo de integração e
contribuíram para o desenvolvimento de uma supranacionalidade, no que se pode
1 “(...) permet de former une volunté politique, de créer une législation commune, d’assurer la gestion des intérêts comuns, enfin, de régler le contentieux social sur la base d’une jurisdiction obligatoire, investie d’une vocation générale”. (PESCATORE apud TRINDADE, 1972, p. 46). 2 Na etapa de União Econômica e Financeira existe a coordenação macroeconômica entre os membros, inclusive monetária e cambial. 3 Na União Aduaneira não apenas existe uma tarifa comum aperada dentro do bloco, mas existe uma Tarifa Externa Comum a ser praticada com terceiros Estados que negociarem com os membros do bloco. 4 No Mercado Comum existe uma tarifa comum interna ao bloco, existe uma Tarifa Externa Comum e também uma harmonização da política comercial e livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e pessoas. 5 No estágio de União Política as instituições domésticas, a nível nacional, passam a ser projetadas a nível supranacional. Existe um parlamento, uma política externa e de segurança comum, etc.
destacar a importância dos princípios da Aplicabilidade Direta e do Primado do Direito
Comunitário. “Neste sentido, uma real integração somente ocorrerá com a existência de
um direito supranacional”. (LEAL et al, 2001, p. 110).
Isto posto, apesar do projeto Mercosul tentar replicar o modelo de integração
europeu com vistas à formação de uma comunidade latino-americana de nações, tal
como previsto no artigo 4º da Constituição Federal brasileira, tem-se que o Mercado
Comum do Sul ainda não superou a etapa de integração econômica e ainda se encontra
longe de alcançar o status de espaço supranacional, o que nos parece reflexo da
estrutura jurídico-normativa do Mercosul, construída nos moldes do Direito
Internacional e não de um Direito Comunitário.
Assim, o objetivo deste artigo é demonstrar o porquê do Mercosul não poder ser
considerado uma comunidade de nações, indicando, portanto, que o Brasil ainda não
conseguiu efetivar o dispositivo do parágrafo único do artigo 4º de seu texto
constitucional. Para tanto, será feito um estudo comparativo entre União Europeia e
Mercosul, apresentando o histórico e estrutura destas organizações regionais, e focando
nos princípios do Efeito Direto e do Primado do Direito Comunitário como elementos
decisivos para a determinação da natureza supranacional destes blocos regionais.
2 A UNIÃO EUROPEIA
Diversas iniciativas de integração regional têm sido observadas em todas as
partes do mundo nos últimos anos, abrangendo África, Ásia e Américas, mas o exemplo
mais bem sucedido de integração continua sendo o projeto europeu, cujo estágio
alcançado hoje é representado pela União Europeia (UE). Com efeito, o projeto de
integração europeu vem sendo construído com o passar dos anos, agregando novos
países e instituições, e foi o único a atingir patamares comunitários, de modo que
continua o modelo a ser seguido quando de fala em Integração Regional 6.
6 A Integração Regional pressupõe dois conceitos centrais: o regional e a integração. A integração é um processo dinâmico de intensificação da profundidade e abrangência dos vínculos entre os atores de forma a gerar mecanismos de governança nas mais variadas áreas temáticas (social, cultural, política, econômica etc.). Em se tratando da Integração Regional, portanto, os mecanismos de governança político-institucionais, sociocultural e/ou econômica serão de escopo regional.
O processo de integração europeia compreende diferentes instituições e
organizações regionais, que culminaram na União Europeia. Se a ideia de integração na
Europa tem origens históricas distantes, ainda no século XIX e no contexto do
Congresso de Viena (1815), somente mais tarde, no século XX, deixará o campo das
propostas e terá efeitos concretos.
2.1 Histórico e Instituições da União Europeia
Pode-se identificar que a integração europeia tem realmente início com a
criação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço (CECA) pelo Tratado de Paris, de
18 de abril de 1951, englobando Alemanha, França, Itália, Bélgica, Holanda e
Luxemburgo, e cuja motivação era não somente econômica, mas sobremaneira a
formação de uma comunidade de segurança por meio do controle de recursos
estratégicos.
Por sua vez, os Tratados de Roma de 25 de março de 1957 criam a
Comunidade Econômica Europeia (CEE) e a Comunidade Europeia de Energia Atômica
(EURATOM). Já em 1965 as três comunidades criadas até então são unificadas através
de um Tratado de Fusão, que cria um Conselho e uma Comissão únicos.
O Ato Único Europeu, de 1986, traça as metas para a conclusão do mercado
comum e traz reformas institucionais, impulsionando a integração. A integração
culmina então com a criação da União Europeia em 1993, resultado do Tratado de
Maastricht.
Dentre os principais órgãos da União Europeia pode-se identificar o Conselho
da União Europeia, a Comissão Europeia, o Parlamento Europeu, Tribunal de Contas e
o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias.
Acerca do Parlamento Europeu, pode-se dizer que representa o poder
legislativo, orçamentário e de controle democrático sobre as outras instituições da UE.
Fato é que o Parlamento é que participa plenamente do poder de decisão da União
Europeia, inclusive sobre o orçamento. Este é o único órgão da União Europeia em que
os representantes são eleitos pelo voto direto e ainda “Qualquer cidadão da União
Europeia residente em um dos Estados-membros tem o direito de voto e de
elegibilidade” (RAMOS; MARQUES; DE JESUS, 2009, p. 36). Frisa-se ainda que as
decisões do Parlamento Europeu podem ser recomendatório ou obrigatório, a depender
da área temática.
No que tange à Comissão Europeia, exerce função em dois sentidos. Do lado
legislativo tem iniciativa da proposição de leis, e enquanto executivo é encarregado de
implementar a legislação e as decisões. (LEAL et al, 2001).
É a Comissão, na figura de seu Presidente, quem representa a União Europeia em suas relações internacionais e nas negociações de acordos com terceiros. Assim, a Comissão apresenta uma natureza executiva e busca a defesa dos interesses da União como um conjunto. (RAMOS; MARQUES; DE JESUS, 2009, p. 37-38).
Com relação ao Conselho da União Europeia, principal órgão legislativo e de
decisão, importa salientar que é responsável por negociar as propostas de ação para o
bloco e que, na maior parte do tempo, funciona como um fórum de discussão das
respostas dos governos dos Estados às propostas da Comissão. (RAMOS; MARQUES;
DE JESUS, 2009).
As atribuições do Conselho aumentaram à medida que a esfera de ação da União se alargou. No interior das suas estruturas formais em evolução, desenvolveu as suas próprias tradições, regras, hábitos e práticas de trabalho informais. Muitas vezes retratado erroneamente como a componente “intergovernamental” da estrutura institucional inédita da União Europeia, o Conselho é em primeiro lugar e acima de tudo uma instituição supranacional. O Conselho é o primeiro órgão de decisão da União e atua como órgão coletivo quando defende os seus interesses e prerrogativas perante as outras instituições da UE, ou os interesses da União face ao mundo exterior. Em muitos casos, toma decisões por maioria ou por maioria qualificada dos seus membros. Ao mesmo tempo, é a instância onde os interesses dos governos dos Estados-Membros podem legitimamente exprimir-se e são arbitrados no processo decisório da União. (COMUNIDADES EUROPEIAS, 2008, p. 6).
O Parlamento Europeu, a Comissão e o Conselho são órgãos que podem ser
ditos supranacionais, podendo expedir normas de caráter obrigatório para os membros
da comunidade europeia, sem a necessidade de unanimidade das decisões, de modo que
mesmo os Estados contrários a uma decisão serão obrigados a respeitá-la. Tanto
Parlamento (em conjunto com o Conselho), quanto o Conselho e a Comissão podem
expedir regulamentos, normas de caráter geral, obrigatórias e que devem ser
diretamente aplicadas. Ao Parlamento e ao Conselho, tomando em conjunto decisões de
cunho comunitário, “incumbiria o dever de manter a integridade da União Europeia,
zelando pelas normas de Direito Comunitário e primando pelo respeito aos princípios
sob os quais a UE se edificou”. (GOMES NETO, 2001, p. 38-39).
O Tratado da Comunidade Europeia, alterado pelo Tratado de Maastricht, de 1992, [que] oferec[e] autonomia aos órgãos comunitários – Conselho da União Europeia, Comissão das Comunidades Europeias e ao Parlamento Europeu – para legislarem acerca dos assuntos de interesse comunitário, por meio de decisões, regulamentos, diretivas, recomendações e outros atos, sendo que as determinações originárias das instituições acima, de acordo com seu conteúdo e forma, são geradoras da norma supranacional. (GOMES NETO, 2001, p. 81).
Quanto ao Tribunal de Contas, sua principal função é verificar a execução do
orçamento da Comunidade. Assim, é ele o responsável pela verificação da regularidade
e legalidade das receitas e despesas da União Europeia, tendo também como função
primordial a prestação de assistência ao Parlamento e ao Conselho, cabendo emitir
relatório anual sobre o exercício financeiro precedente.
Por fim, o Tribunal de Justiça é o órgão de função judiciária e possui grande
amplitude de atuação, trabalhando como guardião do respeito ao Direito Comunitário e
promotor da harmonização legislativa, podendo funcionar ainda como um tribunal
internacional, intervindo nos casos de litígios entre os Estados membros, ou ainda como
tribunal constitucional, cabendo a ele fiscalizar a legalidade dos atos adotados pelas
instituições da UE. (RAMOS; MARQUES; DE JESUS, 2009).
Formidável a respeito do Tribunal de Justiça é que “A efetividade da
integração econômica se fez na Europa graças ao trabalho dos juízes do TJCE. Este
Tribunal, do ponto de vista institucional, tem competência supranacional, a qual é
condição fundamental da integração e do exercício pleno dos direitos subjetivos”.
(LEAL et al, 2001, p. 109).
“É de extrema importância destacar que o respeito a suas decisões – acórdãos –
e a estabilidade destes, perante os Estados-membros, reforçam o sentimento
integracionista europeu, o respeito à supranacionalidade da norma e o Direito
Comunitário”. (GOMES NETO, 2001, p. 71). Isto faz sentido na medida em que
As decisões do TJ, em primeiro lugar, aprofundaram os princípios e as regras de Direito Comunitário, inclusive compreendendo que eram dotados de normatividade, mesmo quando não expressamente previstos. Os limites de princípios como o da aplicabilidade direta e primado, por exemplo, foram caracterizados por importantes decisões do Tribunal Comunitário. (LEAL et al, 2001, p. 58).
Ainda, “Para diminuir a sobrecarga do Tribunal de Justiça, foi criado, em 1988,
um Tribunal de Primeira Instância. Este Tribunal, também é composto por um juiz de
cada Estado membro da União e tem competência para proferir sentenças em
determinadas categorias de processos”. (RAMOS; MARQUES; DE JESUS, 2009, p.
39).
Além desses, outros órgãos podem ser ditos essenciais para que a União
Europeia realize suas atividades, tais quais o Comitê Econômico e Social (CES), o
Comitê das Regiões (CdR), o Provedor de Justiça Europeu (Ombudsman), o Banco
Europeu de Investimento (BEI) e o Banco Central Europeu (BCE).
Quanto ao Banco Central Europeu destaca-se seu papel de condutor da política
monetária comum, que passou a ser supranacional com a constituição da Zona do Euro
em 1998 (embora Reino Unido e Dinamarca tenham decidido pela não participação).
Esse movimento indica a passagem para uma União Monetária e Econômica, algo até
então sem precedentes na história mundial.
O Euro entra em circulação em 2002, impactando diretamente a vida da
população e com apreensão inicial geral.
A aceitação do euro por parte da população não foi livre de controvérsias, e a propaganda para sua introdução foi cuidadosamente planejada pela Comissão, inclusive com estratégias diferentes para cada país. [...] No entanto, à medida que os ganhos econômicos decorrentes da eliminação de gastos com conversões e a facilidade do manuseio em viagens de negócios e turismo foram sendo percebidos, a população foi se identificando com a nova moeda. (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 193).
Ao lado da ampliação para uma integração econômica e monetária houve a
preocupação em resolver os problemas logísticos advindos do aumento significativo do
número de membros da União Europeia. Se a integração europeia se inicia em 1951
com 6 membros, em 2004 contava com 25 membros, e hoje compreendem 27 países e 6
candidatos à inclusão7. Assim, o Tratado de Nice de 2001 trouxe reformas institucionais
para a ampliação da integração, além de ter sido anexada a Declaração de Laeken, que
convocava uma Convenção para se discutir o futuro da UE.
Esta Convenção, cujos trabalhos foram realizados de março de 2002 à julho de
2003, foi concluída com a aprovação do “Projeto de Tratado que institui uma
Constituição para a Europa”. A primeira Constituição para a Europa unificada, assinada
no dia 29 de outubro de 2004, em Roma, acabou fracassando por não ter sido ratificado
em todos os países-membros. Não ratificada, não entrou em vigor, e a solução
encontrada foi a elaboração de um novo tratado, que acabou por implementar alguns
pontos centrais do projeto constitucional. Trata-se do Tratado de Lisboa. 7 Países membros podem ser visualizados em: http://europa.eu/about-eu/countries/index_pt.htm
Os 27 Estados-Membros da UE assinaram o Tratado de Lisboa, que modifica os Tratados anteriores. O seu objectivo é aumentar a democracia, a eficácia e a transparência da UE e, deste modo, torná-la capaz de enfrentar desafios globais tais como as alterações climáticas, a segurança e o desenvolvimento sustentável. O Tratado de Lisboa é ratificado por todos os países da UE antes de entrar em vigor a 1 de dezembro de 2009. (A HISTÓRIA..., 2013).
O Tratado de Lisboa reforça a atuação da União Europeia nos âmbitos interno
e externo, buscando conferir maior coerência e visibilidade quanto às políticas
europeias.
O Tratado de Lisboa reforma as instituições e melhora o processo de decisão da UE; reforça a dimensão democrática da UE; reforma as políticas internas da UE; reforça a política externa da UE. O Tratado de Lisboa procura ainda clarificar e melhorar o funcionamento da UE. (...) Para além disso, o Tratado de Lisboa torna o funcionamento da UE mais flexível. Instaura várias cláusulas institucionais que visam facilitar a construção europeia em determinados domínios políticos. A aplicação de cooperações reforçadas entre os Estados-Membros é também melhorada. (TRATADO...., 2013).
Ainda, um dos objetivos deste Tratado é empreender um reforço da democracia
europeia, com vistas a melhorar a legitimidade das decisões e levar a uma aproximação
dos cidadãos da União Europeia. Para tanto, tem-se um reforço dos poderes do
Parlamento Europeu e a criação da “Iniciativa de cidadania”, permitindo aos cidadãos
uma participação mais ativa da construção europeia de integração. (TRATADO...,
2013).
Assim, cada qual com sua função, todos esses órgãos e tratados contribuíram
para que a União Europeia se tornasse “o principal fórum para o exercício da política na
Europa, tanto no nível de suas atividades internas quanto externas”. (HERZ;
HOFFMANN, 2004, p. 192). “De fato a UE passou a ser cada vez mais vista não apenas
como um fórum de negociações para seus Estados-parte, mas como um ator da política
internacional, ganhando representação em outros fóruns e organizações internacionais”.
(HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 194).
As reformas institucionais com vistas a aumentar a legitimidade democrática
da UE, inclusive com o Tratado de Paris, com a crescente politização do processo de
integração, e a incorporação do Acordo de Schengen pelo Tratado de Amsterdã (1997),
eliminando os controles fronteiriços e levando à implementação da liberdade de
circulação de pessoas no âmbito da União Europeia, também contribuíram “para o
desenvolvimento de uma nova percepção de participação em uma coletividade entre os
cidadãos europeus” (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 187-188).
Nesse sentido, pode-se falar na construção de uma identidade europeia com o
desenvolvimento do projeto de integração europeu. Ainda não é possível falar em uma
identidade única europeia, mas pode-se perceber que a população “se encontra dividida
entre cidadania e identidade nacional e europeia” (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 198).
A existência de fronteiras sociais - e mesmo culturais - na Europa ainda dificulta essa
“harmonização” identitária, mas é inegável que na União Europeia além do nível
nacional existe uma identificação com o “ser europeu” 8. O processo de integração,
assim, sai do nível meramente econômico para expandir sobre os setores político e
também social e cultural.
Ante o exposto tem-se que a formação da União Europeia implica o
desenvolvimento de um espaço político e econômico supranacional, inclusive com a
criação de um Banco Central Europeu e a tentativa de uma Constituição Europeia, que
se materializa em um Tratado. Tem-se a criação de uma moeda europeia, o euro. Tem-
se a preocupação com a segurança, com uma Política Comum de Segurança e Defesa.
Tem-se o desenvolvimento de um Direito Europeu Comunitário, inclusive com o
desenvolvimento, pelo Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, de princípios
basilares em sua jurisprudência, essenciais para o caráter supranacional da integração
europeia.
Assim, pode-se dizer que a União Europeia é uma organização supranacional
fundada em tratados internacionais, e cuja supranacionalidade se manifesta nas
instituições comunitárias, independentes diante dos governos nacionais e dotadas de
poder para tomar decisões, com base em maioria, e, finalmente, pelo fato de o poder
normativo das instituições se aplicar a Estados e indivíduos. Ainda, “a ideia de
supranacionalidade implica a assertiva de que o Direito Comunitário tem autonomia e
identidade próprias” (LEAL et al, 2001, p. 137), reflexo em grande medida da
construção de princípios específicos, dentre os quais destacamos o princípio da
Aplicabilidade Direta e o do Primado do direito europeu sobre o direito nacional, tal
como se verá a seguir.
8 Isso pode ser percebido mesmo na presente crise mundial. A crise de 2008 mostrou e ainda mostra efeitos perversos na economia europeia, e mesmo assim a maioria da população ainda se coloca a favor do euro e da manutenção da integração. “Uma minoria agressiva [que] está reivindicando a abolição do Euro e da União Europeia” (SCHWARZ, Peter. As origens da crise do Euro – parte 2. 1 mar. 2012. Disponível em: http://www.wsws.org/pt/2012/mar2012/pteu-m01.shtml. Acesso em: 01 mar. 2013).
2.2 Os Princípios da Aplicabilidade Direta e do Primado no Direito Comunitário
Europeu
A constitucionalização do ordenamento jurídico europeu se dá em grande
medida com o desenvolvimento dos princípios fundamentais de natureza comunitária,
que refletem a evolução de um Direito da União Europeia. Dentre eles pode-se
encontrar o princípio Democrático - que coloca a democracia como elemento essencial
da ordem jurídico-política da União Europeia, que se estrutura em Estados
Democráticos de Direito -, o princípio da Reciprocidade - que implica correspondência
mútua entre os Estados da Comunidade -, o princípio da Coesão Econômica e Social -
que dita como missão comunitária a realização de desenvolvimento harmonioso na
Comunidade -, o princípio da Proporcionalidade - que permite que o necessário seja
feito para atingir os objetivos da Comunidade sem excessos - e o princípio geral da
Subsidiariedade - que pressupõe que a UE só deve intervir caso seja extremamente
necessário para atingir seus objetivos e o Estado Membro não esteja em condições de
fazê-lo9.
Neste trabalho, contudo, o foco está sobre dois princípios considerados chave
para compreender o caráter supranacional da União Europeia, o “Princípio do primado,
elemento de conformação da juridicidade comunitária, e o princípio da aplicabilidade
direta, criador de identidade própria da ideia de normatividade comunitária”. (LEAL et
al, 2001, p. 116). Com efeito, a afirmação da aplicabilidade direta e do primado do
ordenamento comunitário alterou o perfil comunitário de maneira substancial, tendo-o
despertado para a questão do controle de legalidade dos atos comunitários em casos de
violação dos direitos fundamentais, implicando na padronização do ordenamento
jurídico europeu. (SOARES, 2000).
O princípio do Primado significa a prevalência do Direito Comunitário sobre
todo o Direito nacional dos países membros, de modo que a legislação interna que for
divergente é afastada pelo Direito Comunitário. Trata-se, portanto, de uma situação de
superioridade hierárquica das normas comunitárias em relação às normas nacionais dos
Estados-membros. (LEAL et al, 2001).
9 Os princípios da subsidiariedade e da proporcionalidade implicam que a UE só possa legislar se se apurar que uma ação a nível da UE é mais eficaz do que uma ação a nível nacional, regional ou local, devendo essa ação limitar-se ao estritamente necessário para obter os objetivos pretendidos. (COMO TRABALHA..., 2012).
O primado do Direito Comunitário é o primeiro corolário da delegação de poderes soberanos pelos Estados-Membros, que aceitam, nas matérias concernentes ao aludido poder soberano, a primazia da ordem jurídica comunitária sobre os direitos estatais. Este princípio afirma a supremacia de uma norma comunitária (em cuja produção, geralmente, influenciam interesses nacionais dos Estados) sobre uma norma estatal. (SOARES, 2000, p. 229).
O Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias teve papel relevante quanto
ao desenvolvimento do princípio do Primado, tendo o mesmo sido consagrado no
acórdão Costa vs. Enel, de Julho de 1964, no qual se declarou que o direito advindo das
instituições europeias se integra nos sistemas jurídicos dos Estados-Membros, que são
obrigados a respeitá-lo. De fato, “Apesar de o artigo 10 (numeração atual) do TCE dar
ocasião à compreensão do princípio do primado, foi o TJ quem lhe conferiu identidade e
promoveu sua afirmação (...)”. (LEAL et al, 2001, p. 138).
O direito europeu tem assim o primado sobre os direitos nacionais. Deste modo, se uma regra nacional for contrária a uma disposição europeia, as autoridades dos Estados-Membros devem aplicar a disposição europeia. O direito nacional não é nem anulado nem alterado, mas a sua força vinculativa é suspensa. (...) Na medida em que o direito europeu passa a prevalecer sobre o direito nacional, o princípio do primado garante assim uma proteção uniforme dos cidadãos em todo o território da UE, através do direito europeu. (...) Compete também aos juízes nacionais fazer respeitar o princípio do primado. Estes podem, se necessário, recorrer à decisão prejudicial em caso de dúvida sobre a aplicação do princípio. Num acórdão de 19 de Junho de 1990 (Factortame), o Tribunal de Justiça declarou que um órgão jurisdicional nacional, no âmbito de uma questão prejudicial sobre a validade de uma norma nacional, deve suspender de imediato a aplicação da referida norma, na pendência da solução preconizada pelo Tribunal de Justiça, bem como da sentença que o órgão jurisdicional proferir sobre a questão quanto ao mérito. (O PRIMADO..., 2010).
O princípio do Primado do Direito Comunitário veda a possibilidade de
situações de ambiguidade com relação a qual norma aplicar, se interna ou comunitária,
assim, conduz necessariamente à noção de aplicabilidade direta. Explica-se.
No que diz respeito ao princípio da Aplicabilidade Direta, corresponde à
possibilidade de aplicação do Direito Comunitário sem a necessidade de qualquer ato de
transposição para a legislação nacional, garantindo assim a eficácia do Direito europeu
dento do bloco. Nas palavras de Rosemiro Pereira Leal e outros (2001),
A aplicabilidade direta é o princípio por meio do qual determinadas normas de Direito Comunitário ingressam na ordem jurídica dos Estados-membros, para fins de atribuir direitos e impor deveres aos sujeitos destinatários, de
forma autônoma, independentemente de recepção do direito nacional. (LEAL et al, 2001, p. 147).
O princípio da Aplicabilidade Direta é expressamente reconhecido nos Tratados
da União Europeia, estando consignado no atual art. 249 do Tratado de Roma,
consistindo na imediata entrada em vigor dos regulamentos na ordem interna dos
Estados-membros. (LEAL et al, 2001, p. 148). Ainda, “A ideia de aplicabilidade direta
traz ínsita a ruptura com o paradigma do Direito Internacional Público, por meio do qual
a norma internacional depende de ratificação do Estado para que haja a recepção pelo
direito doméstico (...)”. (LEAL et al, 2001, p. 148). Tem-se, portanto, a subversão da
lógica tradicional das relações internacionais, o que contribui em larga medida para a
configuração de um Direito Comunitário.
Em decorrência do princípio da Aplicabilidade Direta os tribunais nacionais
também se vinculam ao Direito Comunitário, trazendo a possibilidade de particulares
invocarem normas comunitárias perante a jurisdição dos Estados. Assim, em estreita
relação com este princípio encontra-se o princípio do Efeito Direto, pelo qual um
particular pode invocar a aplicação de uma norma comunitária independentemente da
transposição desta norma para o Direito interno de seu país.
Diferentemente do princípio do Primado, que sujeita todos os atos estatais,
independente de sua natureza (lei, portaria, circular, regulamento, despacho), a
aplicabilidade direta diz respeito apenas a determinados atos, estando inclusive, sujeito a
várias condições. Os regulamentos, por exemplo, possuem sempre o efeito direto,
enquanto que as decisões podem ter efeito direto apenas quando designam um Estado-
Membro como destinatário. Há ainda aqueles atos que nunca possuem o efeito direto,
tais como os pareceres e recomendações, que não possuem força jurídica vinculativa.
O Tribunal de Justiça das Comunidades inclusive que construiu a noção de
efeito direto em uma vasta jurisprudência, reconhecendo a qualidade da norma
comunitária criar direitos subjetivos capazes de serem tutelados em juízo, a exemplo do
acordão Frantz Grad vs. Finanzamt Traustein, publicado em 06 de outubro de 1970.
Através da primeira questão, o referido órgão jurisdicional pede ao Tribunal que declare se as disposições do artigo 4.°, segundo parágrafo da Decisão, conjugada com o artigo 1.° da diretiva, produzem efeitos diretos nas relações jurídicas entre Estados-membros e particulares, de modo a constituir, na esfera jurídica destes, direitos subjetivos individuais que aos órgãos jurisdicionais incumbe proteger. (...) Nos termos do artigo 189° [hoje art. 249] do Tratado CEE, a decisão é obrigatória em todos os seus elementos para os destinatários que designar.
Nos termos do mesmo artigo a diretiva vincula o Estado-membro destinatário quanto ao resultado a alcançar, deixando, no entanto, às instâncias nacionais a competência quanto à forma e aos meios. (…) Contudo, se resulta das disposições do artigo 189 °, que os regulamentos são diretamente aplicáveis e, consequentemente, por natureza suscetíveis de produzir efeitos diretos, isso não implica que as outras categorias de atos referidos por aquele artigo não possam nunca produzir efeitos análogos. Designadamente, a disposição segundo a qual as decisões são obrigatórias em todos os seus elementos para os destinatários permite suscitar a questão de saber se a obrigação que decorre da decisão pode apenas ser invocada pelas instituições comunitárias contra aqueles destinatários ou poderá eventualmente sê-lo por qual- quer pessoa interessada no cumprimento daquela obrigação. (LUXEMBURGO, 1970).
Em suma, “O direito comunitário detém autonomia e primazia em relação ao
direito estatal e é convertido automaticamente em direito interno (...). Uma vez vigentes,
as normas comunitárias têm efeito imediato sobre os Estados e direto sobre todos os
seus destinatários (...)”. (CARNEIRO, 2007, p. 35.).
Isto permite afirmar que os princípios do Primado do Direito Comunitário, da
Aplicabilidade Direta, e também o do Efeito direto, compreendem meios de assegurar
um “super-princípio” fundamental do Direito Comunitário Europeu: o princípio da
Uniformidade. “O princípio da uniformidade de interpretação e aplicação do Direito
Comunitário significa que o Direito Comunitário deve ser interpretado e aplicado
uniformemente no território dos Estados membros”. (PRINCÍPIOS..., 2006).
A aplicação uniforme do Direito Comunitário é um elemento essencial para
considerar a União Europeia como dotada de caráter supranacional, expressão esta que
pressupõe a independência do órgão supranacional perante os Estados, além do caráter
obrigatório de suas decisões. Assim, o direito comunitário é um ordenamento autônomo
em face de suas relações jurídicas serem definidas segundo critérios próprios das
Comunidades, caracterizando uma “nova ordem jurídica de direito internacional”.
(SOARES, 2000).
Há de se ressaltar mais uma vez a relevância do Tribunal de Justiça Europeu no
que diz respeito a esses princípios. O primado, a aplicabilidade direta e o efeito direto
são em grande medida contributos do TJC para a construção do Direito Comunitário.
Com efeito, “O TJC manifestou-se sobre o ius receptum, entendendo que a norma
comunitária há de prevalecer, automaticamente, sobre a norma interna, não importa se
anterior ou sucessiva”. (SOARES, 2000, p. 219).
Não obstante a peculiar natureza jurídica das instituições comunitárias, marcada pela supranacionalidade de uma nova ordem jurídica, o TJC não
possui competência em relação aos tribunais nacionais para reformar as decisões proferidas no âmbito interno nas quais se faça a aplicação do Direito Comunitário ou para anular atos dos Estados contrários ao Direito Comunitário. (...) O reconhecimento desse caráter supranacional do ordenamento comunitário e a prevalência de suas normas sobre o direito interno implica conflito de competência entre os tribunais constitucionais e o TJC, no qual prevalece a interpretação em matéria de validade do ato jurídico da comunidade europeia [...]. (SOARES, 2000, p. 220).
Esses princípios parecem constituir a base da noção de comunidade, em que
relações profundas são estabelecidas entre diferentes povos, com a criação de um
sistema jurídico dotado de uniformidade e autonomia e que transcende a ordem
nacional, configurando, portanto, uma manifestação de supranacionalidade. Finalmente,
ressalte-se que o Direito Comunitário ultrapassa a ideia do Direito Internacional
Público, de coordenação entre entes soberanos, para inaugurar uma nova lógica jurídica,
de subordinação dos países-membros a uma entidade criada a partir de seus interesses e
capaz de criar normas supranacionais.
3 O MERCOSUL
Como se sabe, os projetos de integração regional não são exclusivos do
continente europeu. De fato,
A ideia de integração dos países da América Latina não é nova e tem inspirado, ao longo do século, iniciativas importantes de se promover o desenvolvimento de uma região tão marcada pela instabilidade política e econômica através do fomento a associações de países que, se bem-sucedidas, poderiam ser o embrião de verdadeiras comunidades de nações na América do Sul. (LEAL et al, 2001, p. 88-89).
O precursor do ideal de aproximação entre os países na região costuma ser
identificado na figura histórica de Simón Bolívar, general venezuelano e revolucionário
que sonhava resgatar a unidade latino-americana, tendo contribuído para a
independência das então colônias da América espanhola.
Tentativas de integração regional empreendidas pelo Brasil podem ser
identificadas desde o início do século XX. Com efeito, já com o governo de Campos
Sales, em 1900, e mais tarde com Getúlio Vargas, em 1935, foram realizadas
negociações para iniciar um processo de integração entre os três países economicamente
mais expressivos da América do Sul, quais sejam, Argentina, Brasil e Chile. Todavia, a
ideia foi desaconselhada pelos norte-americanos e acabou não dando frutos.
(ACCIOLY, 1998).
A próxima tentativa ocorreu na década de quarenta. Em 1948 foi assinada a
Carta da Organização dos Estados Americanos (OEA) e também foi criada a Comissão
Econômica para a América Latina (CEPAL) cuja ideia era a criação de um mercado
comum latino-americano. Já na década de sessenta foi criada a Associação Latino-
Americana de Livre Comercio (ALALC), cujo objetivo era implantar um mercado
comum regional a partir de uma zona de livre comércio no prazo de doze anos.
(ACCIOLY, 1998).
A ALALC, resposta dos países latino-americanos à ideia de integração
europeia, pretendia regulamentar toda a estrutura econômica da América Latina, sem
admitir fracionamentos nos arranjos econômicos. Essa ampla pretensão, bem como o
momento histórico, com a instalação de governos ditatoriais na região, acabaram
impedindo que fosse efetiva, levando-a ao descrédito e ao fracasso.
Assim, duas décadas mais tarde a ALALC foi substituída pela ALADI,
“voltada para a liberalização do comércio regional através de mecanismos de redução
tarifária” (LEAL, et al, 2011, p. 91). No Tratado de Montevidéu de 1980 as partes se
propuseram a dar prosseguimento ao processo de integração para promoção do
desenvolvimento econômico-social da América Latina, mas acordaram um papel mais
minimalista para a ALADI, que funciona como moldura institucional dentro da qual
acontecem diferentes arranjos de integração na região.
Os objetivos dessa Associação se assemelhavam aos da ALALC (criação de um mercado comum, desenvolvimento social e econômico dos países membros, promoção do comercio intra-regional), mas seus princípios foram mais flexíveis quanto aos prazos para o estabelecimento de redução tarifaria. (ACCIOLY, 1998, p. 78).
Assim, a ALADI acaba favorecendo a emergência de diferentes processos de
integração na América Latina, entre os quais pode-se destacar o de criação do Mercosul,
cujo marco foi a conclusão do Tratado de Assunção, realizado entre Brasil, Argentina,
Paraguai e Uruguai em 1991. Se tradicionalmente o Mercosul foi formado por estes
quatro membros, em 2012 um quinto país aderiu ao bloco, a Venezuela.
3.1 Histórico e Instituições do Mercosul
O Mercado Comum do Sul, ou Mercosul, é, portanto, um bloco de integração
regional que engloba atualmente cinco países: Argentina, Brasil, Paraguai, Uruguai e
Venezuela. Interessante ressaltar, contudo, que a origem do Mercosul é, em verdade,
bilateral, já que os ex-presidentes do Brasil e da Argentina, José Sarney e Raul
Alfonsín, firmaram em 1985 a Declaração de Iguaçu prevendo a criação de um bloco
regional do Cone Sul.
Já completada a transição democrática, os presidentes recém-eleitos Raul Alfonsín e Tancredo Neves explicitaram a vontade de desenvolver um projeto de integração de cunho mais político. Apesar da morte de Tancredo, José Sarney levou adiante o projeto comum e assinou juntamente com Alfonsín, em novembro de 1985, a Declaração do Iguaçu, que constituiu a Comissão Mista Binacional de Alto Nível para acelerar o processo de integração bilateral. Mais um passo foi dado com a criação do Programa para Integração e Cooperação Econômica, em julho de 1986, e a Declaração Conjunta sobre Política Nuclear, em novembro do mesmo ano. O Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, assinado em novembro de 1988, projetou a criação de um espaço econômico comum em dez anos. Com a troca de governo e a eleição de Carlos Meném e Fernando Collor de Mello na Argentina e Brasil, respectivamente, os dois países adotaram uma política liberalizante sem precedentes e, nesse contexto, se propuseram a formar um mercado comum. A Declaração de Buenos Aires, assinada em julho de 1990, criou o Grupo Mercado Comum, encarregado de elaborar um projeto para implementação do mercado comum. Apesar de sua origem bilateral, o Uruguai e, posteriormente, o Paraguai aderiram ao projeto de integração. A preferência inicial por parte da Argentina e do Brasil pela manutenção do projeto no âmbito bilateral foi definitivamente revertida após a declaração da Iniciativa para as Américas pelo governo norte-americano. Aqui percebe-se o caráter exógeno e defensivo da integração no Cone Sul (...). (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 201).
Nesse sentido, o auge do processo de integração se deu em 1990, quando da
assinatura pelos referidos países da Ata de Buenos Aires, que previa a criação de um
mercado comum dentro do prazo de quatro anos e meio. (CARNEIRO, 2007). O
Uruguai, temendo isolamento, aderiu ao movimento e, seguido pelo Paraguai, foi
firmado o tratado de Assunção pelos quatro países em março de 1991. O objetivo do
Tratado de Assunção é, assim,
(...) promover a inserção mais competitiva dos quatro países no mercado internacional. Ao contrário das tentativas anteriores de Integração, da Alalc e da Aladi, o Tratado de Assunção apresenta propostas mais estruturais e consistentes, aumentando, assim, a possibilidade de êxito dessa nova tentativa, diante da realidade atual das propostas. (SILVA, 2002, p.357).
Ainda, o referido Tratado de Assunção estabelece os princípios elementares do
Mercosul e institui o seu principal objetivo, qual seja, o de constituir um Mercado
Comum, estabelecendo o prazo para sua implementação para o fim de 1994.
(MAZZUOLI, 2007).
A constituição do Mercosul visou a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países através da eliminação de barreiras alfandegárias, do estabelecimento de uma “tarifa externa comum” e da cooperação de políticas macroeconômicas e setoriais entre os Estados-partes. [...] Estabeleceu, ainda, entre os Estados-partes a reciprocidade de direitos e obrigações e o compromisso de manterem os tratados anteriormente concluídos em decorrência da Associação Latino-Americana de Integração – Aladi. (RIBEIRO, 2001, p. 167).
Se o objetivo do grupo é compor um mercado comum, geralmente identificado
pela eliminação das tarifas no interior do grupo, estabelecimento de uma tarifa externa
comum para ser utilizada com terceiros Estados, e pelas quatro liberdades - livre
circulação de bens, serviços, capitais e trabalhadores – há de ser destacado, contudo,
que o Mercosul pode ser considerado apenas uma união aduaneira imperfeita. Isso
porque, se uma união aduaneira é caracterizada pela consolidação de uma tarifa externa
comum, existem ainda tantas exceções quanto a esta tarifa aplicada pelo grupo que não
se pode afirmar que esta etapa tenha sido concluída. Isto posto, cabe destacar que
Embora a iniciativa de integração tivesse claros objetivos políticos, o Tratado de Assunção só incluiu compromissos na esfera comercial, especialmente em seus anexos, que estabeleceram critérios e prazos para implementação do programa de liberalização comercial, regime de origem e um sistema de solução de controvérsias. A própria estrutura jurídico-institucional do Mercosul só veio a ser estabelecida três anos após sua criação, com a assinatura do Protocolo de Ouro Preto, em dezembro de 1994, que estabeleceu também sua personalidade jurídica. (HERZ; HOFFMANN, 1994, p. 202).
Interessante destacar que outros protocolos vêm complementar o Tratado de
Assunção. O Protocolo de Brasília, de 1991, prevê a solução das controvérsias que
surgirem entre os Estados membros sobre as disposições contidas no Tratado de
Assunção ou ainda de acordos celebrados em seu âmbito. Assim, em primeiro plano há
a necessidade de negociações diretas que, caso não surtam efeitos, implica em que os
Estados-parte deverão encaminhar o conflito às considerações do Grupo Mercado
Comum, que elaborará uma recomendação. Se ainda não chegarem a um consenso, seria
estabelecido um procedimento arbitral perante um Tribunal ad hoc composto por três
árbitros. (SILVA, 2002).
Por sua vez, o Protocolo de Ouro Preto, de 1994, não somente estabelece a
personalidade jurídica do Mercosul, mas também determina a estrutura jurídico-
institucional definitiva dos órgãos do Mercado Comum, definindo para cada um deles o
sistema de tomada de decisões e suas atribuições específicas.
Além disso, o Protocolo de Ushuaia, assinado em 1998, que inseriu um
compromisso democrático e uma declaração de que o Mercosul compreende uma zona
de paz. Já o Protocolo de Olivos, assinado em 2002, reformou o sistema de solução de
controvérsias do grupo, instituindo uma Corte Permanente de Revisão, mas ainda de
caráter arbitral.
Dentre os principais órgãos do Mercosul pode-se identificar o Conselho do
Mercado Comum, que detém status de órgão superior do bloco, compreendendo o poder
legislativo, sendo que suas decisões são obrigatórias e tomadas por consenso, devendo
ser internalizadas pelos países membros. Assim, o Conselho do Mercado Comum é o
órgão que possui a titularidade jurídica, possuindo competência para negociar e firmar
acordos com outros blocos ou outros Estados, responsável, portanto, pela condução da
política do processo de integração e cumprimento dos objetivos do tratado constitutivo.
Terá, entre outras, as funções de fiscalizar o cumprimento do Tratado de Assunção, de seus Protocolos e dos acordos firmados em seu âmbito; formular políticas e promover as ações necessárias à conformação do mercado comum; (...) manifestar-se sobre as propostas que lhe sejam levadas pelo Grupo Mercado Comum. (LEAL et al, 2001, p. 96).
O Grupo do Mercado Comum equivale ao poder executivo e de iniciativa
legislativa do Mercosul, produzindo resoluções, por consenso, que são obrigatórias para
os membros. Este grupo participa, portanto, da produção do direito de integração, ou
seja, na elaboração dos projetos normativos a serem submetidos ao Conselho.
Observa-se neste ponto que apesar de ser o órgão superior do Mercosul, “o
Conselho do Mercado Comum não detém poder de decisão entre os Estados-Membros,
dependendo suas decisões de um longo e exaustivo processo para serem absorvidas pelo
ordenamento jurídico dos Estados-Membros”. (GOMES NETO, 2001, p. 73). Da
mesma forma, apesar de o Grupo Mercado Comum se pronunciar através de resoluções
de natureza obrigatória para os Estados-membros, para serem efetivadas precisam
passar pelo processo de internalização nos Estados. Assim, na medida em que o poder
de decisão destes órgãos só vincula os órgãos institucionais do próprio Mercosul, não é
possível aferir a existência de um Direito Comunitário Mercosulino. Os órgãos
institucionais do Mercosul não têm competência para criar normas supranacionais,
tomando decisões através do consenso entre os membros, não exprimindo a vontade de
órgãos comunitários.
Ainda sobre os órgãos do Mercosul, o acompanhamento da produção do direito
de integração e posterior encaminhamento das medidas legislativas para a vigência e
implementação é feito pela Comissão Parlamentar Conjunta, órgão mais recente e
composto por membros dos Congressos Nacionais. Esta Comissão tem ainda poder
consultivo, e suas recomendações são adotadas por consenso.
A Comissão de Comércio do Mercosul produz, também por consenso,
diretrizes obrigatórias para os Estados membros e propostas. Esta comissão temática
indica a relevância do tema comercial para o bloco, tratando especificamente da
administração da zona de livre comércio e da união aduaneira, bem como das políticas
comerciais comuns intra e extrabloco. Também de caráter mais temático o Foro
Econômico-Social é o órgão no qual estão representados os setores econômicos e
sociais. Com poder consultivo, tem por função produzir recomendações para o Grupo
Mercado Comum.
Existe ainda uma Secretaria Administrativa do Mercosul, órgão de apoio
operacional, responsável pela parte burocrática do trabalho do Mercado Comum, tal
com prestação de serviços, arquivamento da documentação, publicação das decisões e
sua divulgação e registro dos árbitros e especialistas em listas nacionais.
Por fim, então, tem-se o Tribunal Permanente de Revisão como o órgão do
sistema de solução de controvérsias. Criado pelo Protocolo de Olivos, o tribunal produz
laudos arbitrais adotados por maioria e obrigatórios, e ainda trouxe a possibilidade dos
Estados solicitarem opiniões consultivas. A criação deste Tribunal permanente foi um
avanço considerável, já que substituiu um sistema simplificado de tribunais arbitrais ad
hoc, em que não era possível rever o conteúdo dos laudos.
Atualmente a estrutura do Mercosul é muito mais complexa do que
originalmente previsto nas normas fundamentais, assim, existem inclusive Reuniões
Especializadas (como a de Turismo, de Promoção Comercial e da Mulher), Grupos ad
hoc (para Concessões, para o setor Açucareiro e Compras Governamentais e
Relacionamento Externo) e Comitês (Comitê de Cooperação Técnica, Comitê de
Diretores de Aduana e Comitê de Sanidade Animal e Vegetal, além dos Comitês
técnicos). (SILVA, 2002).
Ainda, os órgãos do Mercosul não atuam de forma isolada, mas em cooperação
permanente com os órgãos internos que devem garantir a efetividade do direito de
integração. Isso significa que o Mercosul adotou o método intergovernamental, no qual
os Estados membros é que providenciam a incorporação do direito de integração e a
partir daí que a norma passa a ter vigência.
3.2 O Direito do Mercosul: ausência da Supranacionalidade
Como foi visto, a Constituição brasileira de 1988 traz o objetivo de se proceder
à integração latino-americana com vistas à formação de uma comunidade regional de
nações, e o projeto do Mercosul pode ser identificado como a tentativa de cumprir tal
desígnio. Entretanto, a Constituição não especificou a forma de se proceder a esta
integração, ou seja, não especificou se deve obedecer ou não ao conceito clássico de
soberania ou ainda se autoriza a integração em moldes supranacionais. (LEAL et al,
2001, p. 104).
Por um certo ângulo parece que a Constituição abriu margem à opção por organismos supranacionais, já que se assim não fosse, seria desnecessária a criação do dispositivo, posto que organismos desprovidos de caráter supranacional já existem na América Latina. No entanto, a expressão “integração” engloba a participação de entidades que não sejam de caráter meramente associativo. (RIBEIRO, 2001, p. 179)
Há de se ressaltar que o próprio Protocolo de Ouro Preto parece ter feito a
opção pela não-supranacionalidade, uma vez que define a natureza intergovernamental10
dos órgãos do Mercosul e estabelece um complexo processo de incorporação das
decisões, que devem ser internalizadas11.
[O Protocolo de Ouro Preto] manteve ou criou fóruns intergovernamentais, onde estão representados os interesses de cada Estado Parte, cujas decisões dependem da posterior ratificação pelas ordens nacionais. Foi descartada a criação de órgãos supranacionais, isto é, de um poder comum, acima dos Estados, que poderia aplicar diretamente algumas decisões, dispensando sua transposição para o direito nacional. (VENTURA, 1996, p. 57).
10 Artigo 2º do Protocolo de Ouro Preto. 11 Artigos 38 e 40 do Protocolo de Ouro Preto.
Assim, os direitos e obrigações produzidos no âmbito do Mercosul estão
condicionados à necessidade de incorporação ao ordenamento interno dos países-
membros, o que equivale a dizer que não existe aplicabilidade direta do direito
produzido pela “comunidade de nações”. Com efeito, Mônica Herz e Andrea Hoffman
(2004) também ressaltam essa característica do Mercosul, afirmando também a ausência
do primado da norma comunitária.
O desenho institucional do Mercosul tem um caráter intergovernamental, não incluindo nenhuma instituição supranacional e exigindo a tomada de decisão por consenso com a presença de todos os Estados-parte em todos os órgãos, como estabelecido no artigo 37 do Protocolo de Ouro Preto. A existência de forte assimetria de poder entre o Brasil e os demais países, acirrada ao longo da década de 1990, sobretudo após a crise argentina, é apontada como um dos fatores determinantes de rejeição à cessão parcial de soberania no âmbito da integração. Além da inexistência de órgãos supranacionais e votação por maioria, a validade das normas produzidas no âmbito das instituições do Mercosul só ocorre após sua incorporação aos sistemas jurídicos domésticos. (...) As decisões, ainda que de caráter obrigatório, são apenas determinações políticas e não normas jurídicas. Para complicar, algumas são automaticamente validadas após sua recepção, enquanto outras requerem que todos os membros a tenham recepcionado. (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 205).
No Mercosul as normas dependem de medidas a serem tomadas
unilateralmente pelos Estados-membros para se tornarem aplicáveis. Em outros termos,
é necessária a edição de ato normativo interno para que a norma seja vigente, inclusive
com os procedimentos para internalização variando de país a país, e dotando estas
normas com diferentes níveis hierárquicos. No âmbito do Mercosul, portanto, não existe
uma uniformização legislativa, podendo-se dizer que permanece o antigo debate entre
monismo e dualismo, que no caso europeu é transcendido com a configuração da
primazia da norma comunitária. De fato, se para os monistas é inadmissível imaginar
dois sistemas jurídicos independentes, para o dualismo o direito internacional deve se
submeter ao direito interno e à soberania do Estado.
Neste quadro, observa-se que as Constituições da Argentina e do Paraguai
seguem a teoria monista, admitindo o primado do Direito Internacional, enquanto as do
Brasil e do Uruguai não estabelecem a posição hierárquica das normas internacionais
em seus ordenamentos internos. Especificamente com relação ao Brasil, entende-se que
permanece atrelado ao dualismo, o que acaba refletindo em uma
(...) concepção de soberania absoluta do Estado, incapaz de conviver com a superveniência de blocos regionais integrados, que sob a bandeira da
supranacionalidade almejam a aplicação imediata das normas comunitárias no ordenamento jurídico dos Estados e a garantia de sua primazia sobre a norma de origem exclusivamente interna, ainda que editada posteriormente. (ROSA, 1997, p.125).
Deste modo, prevalece no Direito brasileiro a possibilidade da lei interna
inviabilizar as normas internacionais. As duas exceções dizem respeito aos tratados de
direitos humanos (art. 5º, §2º CF), que a jurisprudência atual do STF considera
hierarquicamente superiores à legislação infraconstitucional – não obstante posições
doutrinárias que os consideram equivalentes à Constituição – e aos tratados e
convenções internacionais sobre matéria tributária, aos quais se atribui grau hierárquico
superior às leis ordinárias (art. 98, CTN).
Insta ressaltar que o ordenamento brasileiro não traz nem o primado da norma
internacional nem a possibilidade de aplicabilidade direta. Neste sentido, a decisão do
Supremo Tribunal de Federal deixa claro a opção pela indispensabilidade de
transposição das normas do Mercosul para a ordem jurídica interna do Brasil.
Sob a égide do modelo constitucional brasileiro, mesmo cuidando-se de tratados de integração, ainda subsistem os clássicos mecanismos institucionais de recepção das convenções internacionais em geral, não bastando, para afastá-los, a existência da norma inscrita no art. 4o, paragrafo único da Constituição da República, que possui conteúdo meramente programático e cujo sentido não torna dispensável a atuação dos instrumentos constitucionais de transposição, para a ordem jurídica domestica, dos acordos, protocolos, e convenções celebrados pelo Brasil no âmbito do Mercosul. (CR 8.279-AgR, Rel. Min. Presidente Celso de Mello, julgamento em 17-6-1998, Plenário, DJ de 10-08-2000). (SUPREMO..., 2010, p.48).
Assim como acontece no Brasil, o Direito uruguaio não parece dar ênfase ao
processo integracionista, adotando uma posição dualista quanto ao Direito
Internacional, delegando-o a um segundo plano em relação ao direito interno e trazendo
instabilidade jurídica ao Mercosul.
Apesar de possuir dispositivos relativos a celebração de tratados internacionais, a Constituição do Uruguai é omissa à delegação de poderes a organizações internacionais e também quanto à hierarquia das normas. Dessa forma, o legislador constituinte uruguaio deixou uma duvida no caso de conflitos entre tratados e normas internas, apesar de ser possível submeter tais tratados ao controle de constitucionalidade que é exercido pela Suprema Corte de Justiça. (...) Entretanto, a posição da Suprema Corte Uruguaia tem sido no sentido de que uma lei posterior pode derrogar as normas de um tratado internacional, para que mantenha-se inviolabilidade da Constituição. (RIBEIRO, 2001, p. 191)
Quanto à Constituição argentina, adota o primado do Direito Internacional
sobre o nacional, mas estabelece que as normas internacionais devem ser encaminhadas
ao Congresso para prévia aprovação, inexistindo aplicabilidade direta. Atualmente,
determina que os tratados de direitos humanos se equiparam à Constituição, enquanto os
tratados de integração têm tratamento diferenciado, sendo superiores apenas às leis
infraconstitucionais e possuindo distinto processo de aprovação quando celebrado com
países da América Latina, situação em que necessita apenas de aprovação da maioria
absoluta.
Isto implica em dizer que no caso de aprovação de tratados de integração que deleguem competência e jurisdição a organizações supranacionais, as normas advindas desses tratados poderão modificar normas do ordenamento jurídico interno argentino, caso haja conflito entre ambas. (...) Destarte entendemos que no caso da Argentina, há uma norma constitucional que possibilita a transferência de soberania aos organismos supranacionais. No entanto, em que pese a própria Constituição ao fazer uso de sua supremacia para possibilitar essa transferência de soberania, não há que se falar em perda de tal supremacia continuando a mesma no vértice da pirâmide do ordenamento jurídico. (RIBEIRO, 2001, p. 187-188).
Da mesma forma, no caso do Paraguai a hierarquia constitucional dos tratados
e a questão da submissão à ordem jurídica supranacional são bem definidas, atribuindo
primado às normas internacionais sobre as leis nacionais, mas ainda condicionando a
aplicabilidade dessas normas à aprovação do Congresso Nacional. De fato,
O texto constitucional do Paraguai admite a existência de uma ordem jurídica supranacional em condições de igualdade com os Estados-partes, ressalvando a garantia do respeito aos direitos humanos, à paz, à justiça e à cooperação, e o desenvolvimento nos campos politico, econômico, social e cultural. (RIBEIRO, 2001, p. 192)
Frente a esta verdadeira falta de harmonização constitucional quanto à matéria
por parte dos países, e uma vez que as normas produzidas pelos órgãos do Mercosul só
entram em vigência quando todos os Estado-membros tenham assegurado sua
internalização no ordenamento pátrio, observa-se que as Constituições da Argentina e
Paraguai são mais adequadas à construção de uma integração de moldes comunitários.
Assim, é preciso pensar, em um primeiro momento, na necessária reforma das
Constituições brasileira e uruguaia com vistas a aceitar o primado das normas
internacionais e a delegação de poderes e jurisdição a organismos supranacionais. Isso
feito será possível, em um segundo momento, proceder à uniformização quanto à
aplicação automática das normas produzidas pelo bloco, sem a necessidade de
aprovação pelos congressos.
Em consonância com o posicionamento de Rosemiro Pereira Leal e outros
(2001), entendemos que a possibilidade dos Estados-membros do Mercosul
selecionarem a força executiva das normas produzidas no âmbito da organização em
face do seu direito interno acaba minando a efetivação dos objetivos da
supranacionalidade. Com efeito, se a norma produzida não for superior ao direito
nacional dos países não existe comunidade, não havendo que se falar em
supranacionalidade.
Tem-se assim um imenso hiato entre a estrutura do Mercosul e a da União
Europeia. A União Europeia é dotada de caráter supranacional, possuindo órgãos
supranacionais que são independentes perante os Estados e suas decisões detêm caráter
obrigatório. Esta é, portanto, uma das maiores diferenças entre a União Europeia e o
Mercosul, que criou apenas órgãos intergovernamentais, priorizando, desta forma, a
atuação governamental em detrimento da comunitária. Ainda, enquanto as normas na
União Europeia são automaticamente incorporadas ao direito interno sem a necessidade
de atos unilaterais por parte do Estado membro, no Mercosul subsiste esse obrigação, o
que enfraquece a construção comunitária.
Nesse sentido, pode-se dizer que “a produção de direito no Mercosul não é
comunitária, como o caso da União Europeia, mas equipara-se ao Direito
Internacional”. (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 205). Esta distinção entre Direito
Internacional e Direito Comunitário é colocada de forma clara por Antônio Augusto
Cançado Trindade (1972), que destaca que
(...) as instituições comunitárias apresentam uma estrutura superior às estruturas intergovernamentais clássicas do Direito Internacional, que lhes torna possível a “formação de uma vontade em função de objetivos comuns”. Também quanto às fontes de direito a distinção é notável, uma vez que os Tratados do Direito Comunitário são muito mais do que um liame de obrigação mútua: constituem “um todo institucional capaz de decidir e de legiferar; diferentemente do Direito Internacional clássico, que não pode se renovar senão pela conclusão e revisão sucessiva de tratados internacionais, as comunidades europeias contém em si próprias um mecanismo de “auto-regulação” legislativa”. (...). Dessa forma, enquanto o efeito comum dos tratados internacionais é o de engajar os Estados excepcionalmente produzindo efeitos diretos na ordem jurídica interna, no Direito Comunitário “o efeito direto das regras comuns deve ser considerado de qualquer modo como sendo o estado de coisas natural”, de vez que o tratado é destinado a “engendrar direitos que entrem em seu patrimônio jurídico”, tornando os “réglements communautaires” consoante o disposto no artigo 189 do tratado
CEE [hoje artigo 249], “diretamente aplicáveis” nos Estados membros.” (TRINDADE, 1972, p. 46-47).
Não prevalece, portanto, o princípio da Aplicabilidade Direta que caracteriza o
Direito Comunitário Europeu, nem há de se falar em Primado do Direito Comunitário
no âmbito do Mercosul. Isso significa que, em caso de conflito entre norma interna e
norma do Mercosul, a lei interna poderá ser invocada para eximir o país do
cumprimento de suas obrigações regionais, o que limita a credibilidade do Mercosul
quanto à eficácia de suas normas. De fato,
Um estudo recente aponta que, das 149 decisões aprovadas pelo CMC [Conselho do Mercado Comum] entre 1991 e setembro de 2002, 70% não haviam sido internalizadas. Das 604 resoluções do GMC [Grupo Mercado Comum], 63% estavam pendentes, e das 90 diretivas da Comissão de Comércio, 59%. Esse alto índice de não-internalização das normas do Mercosul provoca um ciclo vicioso, pois à medida que os Estados-parte percebem que podem tomar decisões sem se comprometer a cumpri-las, o processo de integração torna-se fictício, a integração não sai do papel e não se torna realidade. Como há pouco controle e não são previstas sanções no caso de não cumprimento da internalização, o problema nem se torna público. (HERZ; HOFFMANN, 2004, p. 211).
Outro ponto a se ressaltar é a ausência de um Tribunal de Justiça do Mercosul,
que tenha capacidade e competência para zelar pela aplicabilidade da legislação
mercosulina, bem como para construção de princípios de Direito Comunitário, tal como
se dá com o Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, responsável pela
construção de uma jurisprudência que reforça a supranacionacionalidade. A existência
de um Tribunal nestes moldes é essencial para a legitimidade de normas supranacionais
que eventualmente surjam na estrutura do Bloco regional, assim como para a
constituição de um poder de sanção no âmbito da organização, que garanta a aplicação
destas normas e a solução dos conflitos entre os Estados-Membros, particulares e
instituições. Um Tribunal de Justiça é, portanto, um elemento necessário para garantir a
supremacia das normas produzidas. (GOMES NETO, 2001).
Salienta-se [ainda] que o nacionalismo exacerbado dos povos sul-americanos, somado ao arraigado conceito de soberania, são fatores que dificultam a formação de uma ordem jurídica supranacional e colocam em risco o processo integracionista; devido a uma noção equivocada de tais conceitos, as delegações das devidas competências legislativas não se efetivam ou permanecem no campo da intergovernabilidade, o que transforma o Tratado de Assunção em mero acordo internacional entre os Estados-Membros. Isto dificulta seu objetivo de promover a integração econômica entre seus signatários, sendo inadmissível levar a cabo a formação de um Bloco econômico de tamanha desenvoltura sem implantar uma ordem jurídica
supranacional que incida sobre todos os Estados-Membros e, naturalmente, se coloque acima de ser ordenamento jurídico interno. (GOMES NETO, 2001, p. 86).
Ante o exposto, o Mercosul não pode ser considerado um projeto de integração
de moldes comunitários. Não existindo nenhum órgão supranacional, a independência
do Mercosul quanto aos Estados-membros é limitada pela sua própria estrutura
institucional do bloco. Isso implica em eficácia restrita das normas do bloco e
problemas de internalização dessas normas, o que vem prejudicar o projeto de
integração do Cone Sul da América Latina.
4 CONCLUSÃO
Este artigo procurou demonstrar o porquê do Mercosul não poder ser
considerado um espaço comunitário no sistema internacional. Para tanto, buscou-se
evidenciar que a União Europeia comporta um status de supranacionalidade,
diferentemente do que acontece no âmbito do Mercosul.
Tem-se que a União Europeia compreende não somente um fórum para
negociação dos países que pertencem ao bloco, mas um verdadeiro ator da política
internacional quando se tem em vista as atividades comunitárias. Com efeito, é possível
falar na existência de um verdadeiro Direito Comunitário Europeu, que inclusive
desenvolveu importantes princípios em sua jurisprudência, tais quais o princípio da
Aplicabilidade Direta e o princípio do Primado do Direito Europeu, essenciais para a
efetivação do Direito Comunitário e que impactam na conformação do caráter
supranacional da União Europeia.
Ao contrário, em se tratando do Mercosul não se percebe este caráter
supranacional. Apesar do Mercosul seguir o modelo de integração europeu, observa-se
uma grande divergência entre os dois projetos de integração, na medida em que o
projeto do Cone Sul da América Latina prioriza o Direito interno dos países em
detrimento do Direito ‘mercosulino’. Assim, não há que se falar em Aplicabilidade ou
Efeito Diretos ou Primado do Direito do Mercosul, uma vez que o Mercosul se
conforma em processo de integração intergovernamental, e não supranacional como a
União Europeia.
É inquestionável que a supranacionalidade proporciona um maior grau de
integração entre os Estados, mas para o Mercosul adquirir este status supranacional é
preciso inclusive a alteração dos seus tratados institutivos, incluindo em sua estrutura
órgãos supranacionais, com decisões de caráter supremo e aplicáveis diretamente aos
membros, bem como instituindo um tribunal jurisdicional encarregado da defesa dos
interesses do bloco e da consolidação de um verdadeiro Direito supranacional do
Mercosul.
Assim, hoje no Mercosul não existe um Direito Comunitário, mas tão somente
um Direito Internacional que é elaborado em moldes regionais, inclusive com altos
déficits de internalização das normas, o que prejudica o desenvolvimento do processo
de integração. Ainda, antes de se adotar um Direito Comunitário no âmbito do Mercosul
é preciso concluir a União Aduaneira e depois o Mercado Comum, consolidando a
integração econômica para então partir para uma integração política, social e cultural
por meio do fortalecimento da estrutura jurídico-institucional do bloco.
Um primeiro e importante passo para concretizar um processo integracionista
de molde econômico, político, social e cultural – tal como consta do parágrafo único do
artigo 4º da CF/1988 – é a harmonização legislativa dos Estados-membros do bloco, de
forma que o ordenamento interno destes Estados possa contemplar a norma comunitária
de forma direta e preferencial, tal como preconizam os princípios da Aplicabilidade
Direta e do Primado. Com efeito, sem a supremacia da norma comunitária, num
contexto de Direito Comunitário, é impraticável pensar na efetivação de um processo
integracionista nos moldes pretendidos pela Constituição Federal de 1988.
No Mercosul falta a harmonização necessária para a promoção de uma
verdadeira ordem jurídica comunitária. Isto equivale a dizer que o projeto de integração
do Mercosul se encontra longe de representar a concretização do mandamento constante
do parágrafo único do artigo 4º da Constituição Federal brasileira de 1988. É claro que a
formação de uma comunidade de nações no âmbito da América Latina é uma tarefa que
não depende unicamente do Brasil, visto que demanda o interesse e ação comuns dos
diversos países latino-americanos para lograr êxito, mas também nos parece evidente
que o país está em posição de exercer um papel de destaque na definição do molde
jurídico-institucional do Mercosul ou de outra organização regional de pretensão
comunitária na América Latina.
Em suma, o Brasil não parece estar buscando uma integração econômica,
política, social e cultural com vistas à formação de uma comunidade latino-americana
de nações, e sim dá indicações de estar preocupado somente com a integração
econômica e com a manutenção de sua soberania. Desta forma, percebe-se uma
relativização do preceito constitucional, indicando que o país ainda tem um longo
caminho a percorrer para realizar o objetivo do legislador originário no que diz respeito
à condução de suas relações internacionais.
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