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Titulo: A Atualidade da Obra “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico” de Kant Frente à Discussão Sobre Governança Global Autor: Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 7, 2010, pp. 275-307 Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume7/ ISSN 1981-9439 Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações Internacionais, o Centro de Direito Internacional CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil. O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva do(s) autor (es), que cederam ao CEDIN os respectivos direitos de reprodução e/ou publicação. Não é permitida a utilização desse conteúdo para fins comerciais e/ou profissionais. Para comprar ou obter autorização de uso desse conteúdo, entre em contato, [email protected]

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Titulo: A Atualidade da Obra “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico” de Kant Frente à Discussão Sobre Governança Global

Autor: Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral

Publicado em: Revista Eletrônica de Direito Internacional, vol. 7, 2010, pp. 275-307

Disponível em: http://www.cedin.com.br/revistaeletronica/volume7/

ISSN 1981-9439

Com o objetivo de consolidar o debate acerca das questões relativas ao Direito e as Relações Internacionais, o Centro de Direito Internacional – CEDIN - publica semestralmente a Revista Eletrônica de Direito Internacional, que conta com artigos selecionados de pesquisadores de todo o Brasil. O conteúdo dos artigos é de responsabilidade exclusiva do(s) autor (es), que cederam ao CEDIN os respectivos direitos de reprodução e/ou publicação. Não é permitida a utilização desse conteúdo para fins comerciais e/ou profissionais. Para comprar ou obter autorização de uso desse conteúdo, entre em contato, [email protected]

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A ATUALIDADE DA OBRA “A PAZ PERPÉTUA: UM PROJETO FILOSÓFICO”

DE KANT FRENTE À DISCUSSÃO SOBRE GOVERNANÇA GLOBAL

Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral*

RESUMO

Este artigo visa relacionar os aspectos relevantes da governança global com os ideais de

paz elaborados por Immanuel Kant. O objetivo principal é destacar que ao tratar

questões do mundo globalizado não se pode desconsiderar o legado filosófico de Kant.

O trabalho seguiu os fundamentos da filosofia kantiana elaborados em suas diversas

obras, com destaque para “A Paz Perpétua: um Projeto Filosófico” e “Metafísica dos

Costumes”. Ao final pondera-se a atualidade do pensamento preceituado por Immanuel

Kant, mesmo passado mais de 200 anos. Pretende-se deixar demonstrado que ao tratar

da globalização torna-se relevante recorrer a Kant, sob o risco de se esvaziar a discussão

diante das excessivas evoluções.

Palavras chaves: Filosofia do direito – Direito Internacional – Kant – Globalização –

Liberdade.

ABSTRACT

This article aims to list the relevant aspects of global governance with the ideals of

peace prepared by Immanuel Kant. The main goal is to highlight that when dealing with

issues of globalized world cannot disregard the philosophical legacy of Kant. The essay

followed the fundamentals of Kant‟s philosophy prepared in its varied works, main

focuses on "Perpetual Peace: A Philosophical Sketch" and “Metaphysics of Morals”.

At the end, it is considerate that if you can reach the actuality of thought established by

Immanuel Kant, even past more than 200 years. Intend to leave stated that when dealing

with globalization becomes relevant recourse to Kant, under risk of emptying the

discussion in the face of excessive developments.

Keywords: Philosophy of Law – International Law – Kant – Globalization – Freedom.

* Maria Walkíria de Faro Coelho Guedes Cabral é advogada, bacharel em Filosofia e bacharel em Direito

ambos pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. É pós-graduanda em Estudos Diplomáticos

pela Faculdades Milton Campos, curso coordenado pelo Centro de Direito Internacional.

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INTRODUÇÃO

Conhecido como “Século da moral”, o século XVIII foi marcado pelo

desenvolvimento de grandes obras sobre ética e moral. Nos termos de Henrique Lima

Vaz, essa classificação foi atribuída, devido ao projeto iluminista que buscou

encaminhar a humanidade à maioridade.

(...) a denominação „século da moral‟, encontra justificação indiscutível no

fato de que o grande projeto que caracteriza a Ilustração é,

fundamentalmente, um projeto ético-pedagógico destinado a conduzir a

humanidade a seu estado de maioridade, como o próprio Kant o proclama em

sua Beantwortung der Frage: was ist Aufklãrung? (Resposta à pergunta: o

que é Ilustração? Berliner Monatschrift, Dez., 1783). (VAZ, 2002, p. 69)

Immanuel Kant foi um filósofo prussiano de Königsberg que escreveu sob

diversos assuntos. Entre as inúmeras obras kantianas, destacam-se a questão do

conhecimento e da ética, sendo esta última responsável por inaugurar no século XVIII

uma nova forma de se pensar a mesma, criando fundamentos que ao longo da história

foram basilares em discussões sobre os mais diversos assuntos.

A leitura de Kant deve sempre ser feita com olhos voltados a nossa realidade,

pois Kant “ao fundar a moral e o direito, pretendeu dar ao homem moderno, que se

organiza em seu mundo de ação social, a consciência de sua posição nesse mundo”

(HERRERO, 2001, p.19)

O intuito deste trabalho é abordar alguns dos vínculos das ideias expressas pelo

filósofo Immanuel Kant em sua obra “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico”, e o

alcance do pensamento kantiano, em um dos assuntos de extrema relevância na

atualidade, a saber, a globalização e as possibilidades de um efetivo direito

internacional.

Para tanto, será feito primeiramente um breve relato da filosofia prática de Kant,

pois é necessário, antes de tudo, o desenvolvimento lógico, condizente com o

pensamento kantiano, ao se tratar das questões relacionadas ao Direito e a Ética, visto

que inúmeros são os erros em que correm os teóricos morais em tomar como norte

apenas a Ética e os juristas em terem como base apenas a Doutrina do Direito de Kant.

Nesse sentido, Travessoni Gomes já afirmara:

Acontece que, embora notório, filósofos morais parecem se esquecer do

direito ao falar da ética de Kant, ao passo que juristas parecem se esquecer da

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ética ao falar da Doutrina do direito de Kant. Por um lado, características às

vezes problemáticas que são atribuídas por filósofos morais à ética de Kant

seriam pelo menos abrandadas se o direito fosse considerado. Por outro, mal-

entendidos sobre a Doutrina do direito seriam iluminados se interpretados à

luz dos conceitos da ética (GOMES, 2007, p.77).

Immanuel Kant vivenciou diversos fatores por ele preconizados, em toda sua

filosofia, como problemas para a garantia da paz, entre eles a alienação do indivíduo, as

guerras e algumas tentativas de acordos internacionais, como explica Karine Salgado:

A Alemanha do século XVIII é marcada por uma burguesia de um

individualismo estéril e débil politicamente, uma classe que não tem

consciência da capacidade política que tem em mãos e que se conserva

ofuscada diante de Frederico II. (...) Os olhares de Kant, entretanto, se voltam

também para uma outra realidade bem diversa: a França revolucionária, que o

inspira e o enche de otimismo em relação ao futuro da humanidade

(SALGADO, 2008, p.20)

A partir disso, o filósofo ganha base para, com louvor, discorrer sobre o assunto

e por meio de análise metodologicamente filosófica ser capaz de ditar, e até mesmo

prever, a forma como uma inobservância à razão, fator definidor do ser humano, pode

gerar mazelas como as que se vê hoje no cenário interno e, principalmente, no cenário

internacional.

Nesse sentido, o presente trabalho tratou de discorrer sobre a obra de Kant, “A

Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico”, que se divide em duas seções, artigos

preliminares e artigos definitivos, sendo seguida por dois suplementos e um anexo. Em

um segundo momento o trabalho apresenta a análise dos aspectos principais da

globalização hoje.

Como conclusão destaca-se a atualidade de alguns pontos importantes das ideias

propostas pelo filósofo. Por esse caminho, pretende-se ressaltar ao final a importância e,

talvez mais pretensiosamente, a necessidade de se ater a tais pensamentos para inibir as

vicissitudes da globalização desordenada.

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1. PROLEGÔMENOS

1.1. Apanhado geral da filosofia kantiana

Nos estudos sobre a filosofia kantiana encontra-se sempre referência a duas fases

pelas quais se desenvolve a mesma, a saber, a fase pré-crítica e a fase crítica. É nessa

segunda fase em que se definirá um novo modo de pensar filosófico, “o pensar crítico

ou a Filosofia transcendental, rompendo com a tradição filosófica anterior, e até

mesmo com seus primeiros escritos” (GOMES, 2004, p. 93).

O trabalho crítico kantiano aperfeiçoou-se sob a incerteza das conclusões das

teorias metafísicas vistas até então, e após a leitura de Hume, autor do empirismo cético,

Kant diz ter sido acordado do “sono dogmático”.

As mais diversas teorias sobre metafísica, até a época, foram vistas, ao final,

como falhas. Para os céticos isso era fruto de tentativas de se buscar algo impossível,

pois todo o conhecimento é fruto de uma racionalidade “a posteriori” advinda da

experiência, formadores daquilo que Kant chamará de juízos sintéticos, não sendo

possível estabelecer nenhum tipo de conhecimento a priori, em outras palavras, juízos

analíticos, como buscados por essas teorias sobre a metafísica.

Entretanto, o resultado desse empirismo cético levaria a total insignificância de

se buscar respostas às questões da metafísica. Dessa forma, Kant não aceitou, por outro

lado, que a metafísica devesse ser ignorada, tendo em vista que a razão não vive só de

experiências e busca, ainda que involuntariamente, pelo conhecimento metafísico

fundado em conceitos a priori. As perguntas sobre Deus, sobre a imortalidade da alma e

sobre o mundo em si são perguntas inevitáveis e estão inerentes a todos os seres

humanos, ou seja, fazem parte da vida, de maneira que devem ser objeto de estudos,

mesmo que tais estudos não sejam para conclusões e respostas diretas e definidas.

Precisamente nesses conhecimentos, que transcendem ao mundo sensível, aos

quais a experiência não pode servir de guia nem de retificação, consistem as

investigações de nossa razão, investigações que por sua importância nos

parecem superiores, e por seu fim muito mais sublimes a tudo quanto a

experiência pode apreender no mundo dos fenômenos; investigações tão

importantes que, abandoná-las por incapacidade, revela pouco apreço ou

indiferença, razão pela qual tudo intentamos para as fazer, ainda que

incidindo em erro. (KANT, 2006a, p.)

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Nesse sentido, Kant desenvolveu suas teorias com base em quatro questões

centrais: o que devo saber?, o que devo fazer?, o que devo esperar?, o que é o homem?.

No entanto Kant tratará com maior importância o problema do conhecimento (o que

devo saber?) e o problema da ética (o que devo fazer?), sendo que este problema é

baseado nas conclusões que podem ser feitas daquele.

Quanto ao conhecimento de Deus, Kant dirá que não só podemos pensar como

de fato pensamos em Deus e isso é inevitável, entretanto não é possível conhecê-Lo,

pois para isto é preciso de dados do mundo empírico, por isso o que ocorre é uma

associação daquilo que é dado na natureza com a categoria do conhecimento.

Sendo assim, para se tratar do conhecimento deve-se submetê-lo à crítica através

de um método próprio de reflexão. A ciência é capaz de conhecer o mundo, bem como

os seus limites, mesmo que esse conhecimento não se dê por inteiro, entretanto não há

ciência que defina o que é e do que se forma esse conhecimento.

No que tange a esse questionamento do que é possível saber, Kant escreverá a

“Crítica da Razão Pura”, com a primeira edição publicada em 1781, onde ele irá

discorrer sobre os limites do conhecimento. E ainda nela ele fará referência às outras

questões que o preocupam, como principalmente a moral, tendo em vista que o estudo

sobre essa forma pura do entendimento tem reflexos e utilidade direta em outros

aspectos da vida humana.

Negar a este serviço da crítica uma utilidade positiva, seria o mesmo que

dizer que a polícia não tem utilidade, porque a sua principal ação consiste

apenas em impedir a violência que os cidadãos possam temer uns dos outros,

para que a cada um seja permitido tratar dos seus afazeres em sossego e

segurança (KANT, 2006a, p. 34).

Esse raciocínio metodológico, para desvendar a capacidade da razão pura,

também foi utilizado no que diz respeito ao seu segundo questionamento: “o que devo

fazer?”, desenvolvido em sua teoria como a razão prática.

Para tal, Kant escreverá primeiramente a obra intitulada: “Fundamentação da

Metafísica dos Costumes”, onde utiliza o método analítico para estabelecer os

pressupostos da fixação do “princípio da moralidade”, e, sinteticamente, irá dirigir-se

ao “exame deste princípio e das suas fontes para o conhecimento vulgar, em que se

encontra a sua aplicação” (KANT, 2006b, p. 18), em outras palavras, para entender o

conjunto da ética kantiana, o próprio autor sentiu que era necessário entender, em

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separado, conceitos por ele utilizados, e será, ainda, nessa obra de fundamentação que

ele definirá o imperativo categórico.

Escreverá, então, “Crítica da Razão Prática”, em 1788, em que ele começa a

trabalhar com o conceito do imperativo categórico, mas sentirá a necessidade de antes

fundamentar o que foi pensado nessa crítica para que depois pudesse constituir a

metafísica dos costumes idealizada por ele. “Com o intuito, pois, de publicar sem

demora uma metafísica dos costumes, começo publicando esta Fundamentação”.

(KANT, 2006b, p. 17).

O termo “prática” é utilizado no sentido de práxis moral, e na obra “Metafísica

dos Costumes” servirá também para aquilo que tange a questão jurídica.

Como dito anteriormente, foi com fulcro nas novas concepções da ciência que

Kant tentou formar sua filosofia, ou seja, dessa ideia de universalismo Kant baseou suas

ideias nos mais diversos campos. Com relação a moral, então, não foi diferente, ele trata

de uma moral que valha universalmente de forma que se houver um ser racional no

universo além do homem, também a esse ser essa moral se aplica.

(...) o mandamento „não mentirás‟ não é valido somente para os homens,

como se os outros seres racionais não tivessem de se importar com ele, o

mesmo ocorrendo com todas as demais leis propriamente morais (...)

(KANT, 2006b, p. 15).

As leis morais devem, dessa forma, serem fundadas em conceitos a priori, pois

só assim é que se pode ter uma lei moral valida universalmente.

Assim, pois, as leis morais, com seus princípios, em todo o conhecimento

prático diferenciam-se de tudo o mais que contenha algo empírico; e essa

diferença não só é especial, mas, também, toda a filosofia moral encontra-se

inteiramente assentada sobre a sua parte pura, e, quando aplicada ao homem,

não recebe um mínimo que seja do conhecimento do homem (antropologia),

mas fornece-lhe, na qualidade de ser racional, leis a priori (KANT, 2006b, p.

15).

Não seria possível, por exemplo, tratar da moral sobre o fundamento de

felicidade ou prazer, pois tais concepções seriam extremamente subjetivas e nesse

sentido a moral não deve se basear em algo diferente para cada pessoa. A felicidade não

pode ser concebida por princípios a priori, “Somente a experiência é capaz de ensinar o

que nos traz alegria (...) e, identicamente, tão somente a experiência é capaz de nos

ensinar os meios pelos quais buscá-la” (KANT, 2003, p. 58)

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O período crítico é típico da época do Iluminismo e, como já dito anteriormente,

Kant estabeleceu um método reflexivo para pontos que considerou mais importante na

vida humana e nesses pontos está a ação do homem, que seguiu com a pergunta “o que

eu devo fazer?”. Imannuel Kant foi um filósofo iluminista e suas ideias se adéquam na

matriz de pensamento Liberal. Com o propósito de alcançar a maioridade na ação

humana, Kant desenvolveu a teoria sobre a Ética pautada na própria liberdade, instituída

ao homem emancipado. Em sua obra “Beantwortung der Frage: was ist Aufklärung?

(Resposta à pergunta: o que é Esclarecimento)”, em 1783, Kant descreve o que é o

iluminismo:

O Esclarecimento [Aufklãrung] é a saída do homem de sua menoridade, da

qual ele próprio é culpado. A menoridade é a incapacidade de fazer uso de

seu entendimento sem a direção de outro indivíduo. O homem é o próprio

culpado dessa menoridade se a causa dela não se encontra na falta de

entendimento, mas na falta de decisão e de coragem em servir-se de si

mesmo sem a direção de outrem. Sapere aude! Tem coragem de fazer uso do

teu próprio entendimento, tal é o lema do esclarecimento [Aufklärung]

(KANT, 2008, p.63)

Nesta obra Kant retrata a autonomia dos homens. A menoridade é culpa própria

se a causa não reside na falta de entendimento, mas na falta de decisão e de coragem de

servir de si mesmo sem a orientação de outrem, ou seja, a nossa menoridade é a nossa

dependência de alguém dizer o que se deve fazer. Cada ser humano é capaz de colocar

para si mesmo o que se deve ou não fazer, é capaz de se emancipar.

Ao propor uma ética cujo fundamento encontra-se na autonomia da razão

prática, o filósofo cria um imperativo categórico que sustentaria as escolhas. Na ética

kantiana a consciência moral dá a si mesmo (ao indivíduo) a sua própria lei. E essa lei

será universalmente válida, fazendo com que todos possam se fundamentar nela sem a

ninguém prejudicar. Imperativo categórico da moral, diz Kant, tem a seguinte estrutura:

“age só segundo uma máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne

meio universal” (KANT, 2006b, p.51).

Com a necessidade de definir os vários deveres existentes em sua filosofia,

alguns destes serão deduzidos na “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”†

(1785), e outros na obra “Metafísica dos Costumes”, em 1797, conhecida como o ápice

do seu trabalho crítico.

† Não há acordo, entre os teóricos kantianos, sobre qual teria sido o conceito a ser deduzido na FMC, como objetivo

principal; há quem diga ter sido o imperativo categórico, para outros, a liberdade, ou ainda a lei moral.

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1.2. O problema “moral e direito”.

A razão humana tem uma faculdade de representar leis morais, de criar critérios

para o comportamento humano. Entretanto, o ser humano está exclusivamente dividido

entre dois mundos: o mundo natural, na medida em que possui um corpo e necessidades

fisiológicas (na qual se inclui a satisfação dos prazeres); mas, também, há o que poderia

ser chamado de mundo racional, ou ainda, mundo da liberdade, tendo em vista que o ser

humano possui também uma razão, que lhe permite decidir, selecionar, planejar, etc,

através do que ficou conhecido em Kant como autonomia da razão / liberdade.

A concepção de liberdade, para Kant, se trata de uma ideia que a define como

autonomia, bem diferente dos conceitos existentes até então: como liberdade natural

(fazer o que quer) ou como liberdade jurídica (fazer o que não é proibido) e nem ainda

como o de livre arbítrio (faculdade de escolher).

A Liberdade é, a princípio, uma ilusão transcendental, não é uma ideia

constitutiva. Por outro lado, se a razão pura não fosse capaz de “pensar” essa liberdade

seria impossível verificar algo como a moral. E assim teríamos então de pensar no

mecanicismo da natureza, pois a ciência natural é que trabalha com um mundo sem

liberdades.

Agora, admitamos que a moral pressupõe necessariamente a liberdade – no

sentido mais estrito – como propriedade da nossa vontade, porque põe a

priori, como elementos da razão, princípio práticos que tem a sua origem

nesta mesma razão e que sem o pressuposto da liberdade seriam

absolutamente impossíveis (KANT, 2006, CRP, p. 35)

Kant irá buscar em Rousseau as delineações para definição de liberdade como

autonomia da razão. Tal autonomia é tratada por Rousseau na esfera política, fazendo

dessa, também, liberdade moral do indivíduo como cita Joaquim Salgado: “livre é a

ação que decorre exclusivamente da razão, na medida em que não é perturbada pelos

sentidos” (SALGADO, 1995, p. 228).

Kant é um liberal e para o liberalismo o conceito de liberdade é estruturante,

sendo a liberdade a certeza da máxima realização particular, da efetiva felicidade do

indivíduo sob o escudo das leis.

A liberdade é um princípio natural, é um postulado, uma simples afirmação

abstrata, de caráter individual e com um sentido basicamente individual. A liberdade

tem um caráter declarativo e concorrencial, por isso recorre a um fictício “Contrato

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Social”, como em Rousseau, por exemplo, para conciliar as liberdades individuais

concorrenciais. Tudo tem a ver, portanto, com a relação entre Lei e Liberdade. O

conceito de causalidade é importante para entender essa questão da liberdade.

Todos os eventos, todos os fenômenos que ocorrem na natureza são

determinados por uma causa anterior. Ocorrendo uma causa, necessariamente ocorre

uma conseqüência, um efeito. Tudo na natureza ocorre assim. Este é o problema: na

natureza não existe nada que seja livre, porque tudo é causalmente determinado.

Nesse sentido, a liberdade ganha papel crucial no uso devido da razão,

entretanto, para melhor entendimento desse papel, Kant achou necessário a distinção de

sua teoria dos costumes entre a doutrina do direito e a doutrina da virtude, que a

princípio foram publicadas separadamente nesta ordem e logo mais na obra A

Metafísica dos Costumes, pelo fato de ambas compartilharem desse mesmo princípio da

liberdade.

A liberdade da razão é o que permite que o ser humano faça escolhas de forma a

guiar suas ações interna e externamente. Dessa forma, Kant distinguiu essa liberdade de

escolha da ação, ou seja, a motivação existente em cada forma de agir, como legislação

interna (doutrina da virtude) e legislação externa (doutrina do direito). “O conceito de

liberdade, que é comum a ambas, torna necessário dividir os deveres em deveres de

liberdade exteriores e deveres de liberdades interiores, sendo apenas estes últimos

éticos” (KANT, 2003, p.249).

Logo, só faz sentido discutir a Ética ou o Direito, se se admitir, ainda, a

liberdade da razão humana, que é capaz de desvincular suas ações do que se entende por

impulsos naturais.

A liberdade de escolha é essa independência do ser determinado por impulsos

sensíveis. Este é o conceito negativo de liberdade. O conceito positivo de

liberdade é aquele da capacidade da razão pura de ser, por si mesmo, prática.

(KANT, 2003, p.63)

Em outras palavras, a liberdade atua, segundo a ética kantiana, quando o homem

se contrapõe à natureza, quando ele é capaz de agir sem se deixar determinar por seus

desejos, seguir o dever mesmo contra as leis naturais. Somos livres para atuar segundo a

lei moral. É um fato da razão a sua capacidade de renunciar ao causal, ao desejo e a

sensibilidade. Obedecemos à lei moral, porque somos livres e somos nós mesmo que

nos damos à lei. Se nós entendermos a liberdade como ausência de leis, a liberdade não

é possível no homem.

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O direito atua na liberdade exterior à medida que busca limites para evitar que

alguma pessoa infrinja a liberdade das outras pessoas, através de motivos externos ao da

razão. Em outras palavras, as leis protegem a liberdade.

O Direito, assim como a Lei Moral, terá de renunciar ao causal, ao desejo e a

sensibilidade decorrente desse mundo natural para que possa se estabelecer. Assim,

Direito e Moral baseiam-se no mundo racional, o mundo da liberdade, pois o mundo

natural pressupõe causalidade e, dessa forma, não existirá liberdade na qual atuar. A

partir de Kant, a ciência do Direito abarcará uma nova concepção de princípios pautados

na racionalidade, fazendo surgir a Escola do Direito Racional.

Não obstante Locke e Rousseau, principalmente, hajam situado os princípios

do Direito Natural, tacitamente, na instância da racionalidade, pode-se

afirmar que a Escola do Direito Racional surgiu com a doutrina kantiana

(NADER, 2006, p. 143).

Essa racionalidade se torna problemática nas mãos de alguns teóricos kantianos.

Há quem diga que a filosofia proposta por Kant é de cunho rigorista e inviável aos seres

humanos, principalmente, no tocante aos exemplos por ele utilizados que são sempre

alvos de críticas e julgados no suposto rigorismo. No entanto, há de se ressaltar, como

bem fará Travessoni Gomes (GOMES, 2007, p. 77-97.), que os exemplos são apenas de

“caráter didático” e “se adotada essa interpretação, a moral de Kant não é, como

pensam alguns, uma moral que reprime nossos sentimentos, obrigando-nos a sofrer”

(GOMES, p.87).

Este aparente sofrimento, decorre do afastamento da “doutrina da felicidade” da

moral e do direito, visto o subjetivismo que aquela comporta. Mas isso não significa que

a doutrina da virtude e a doutrina do direito não resultarão em felicidade para todos os

seres humanos.

A busca pela felicidade é um dever moral indireto, como conseqüência do

cumprimento dos deveres morais e não deve ser considerado o fundamento para esse

cumprimento.

A finalidade da ação por dever, pautada na razão, é considerar a humanidade que

está dentro de cada indivíduo. Se a finalidade for diversa, e dessa forma a ação não seria

por dever, a humanidade passa a ser apenas um meio na ação individual.

Isso significa que tenho o dever de não causar dano a alguém que quero bem

tanto quanto tenho o dever de não causar dano a alguém que não quero bem

ou, mais ainda, tanto quanto tenho o dever de não causar dano a alguém

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mesmo quando todas as minhas inclinações me levam à ação oposta

(GOMES, 2007, p. 85).

Entretanto, quando a motivação interna falha, afinal o homem é um ser de razão

e sensibilidade, e as inclinações tendem a ser mais fortes, existirá outro recurso, de

motivação externa, que coagirá de forma a manter a possível coexistência das liberdades

individuais. Esse é o princípio universal do Direito em Kant:

Qualquer ação é justa se for capaz de coexistir com a liberdade de todos de

acordo com uma lei universal, ou se na sua máxima a liberdade de escolha de

cada um puder coexistir com a liberdade de todos de acordo com uma lei

universal (KANT, 2003, p. 76).

E decorrente desse princípio Kant extrairá a lei universal do direito, a saber:

“age externamente de modo que o livre uso de teu arbítrio possa coexistir com a

liberdade de todos de acordo com uma lei universal” (KANT, 2003, p.77). Essa lei

impõe uma obrigação, mas não restringe a liberdade simplesmente pela obrigação, mas

sim em função de condições em conformidade com a própria liberdade e delimitada

pela liberdade do outro.

Com a ação em conformidade com o dever, possível no direito e fundamentada

pelo imperativo categórico, Kant apresenta uma teoria não ideal para que seja possível

realizar certas ações dominadas pelas inclinações.

Concluindo, o direito, em Kant, como eu entendo, representa a passagem de

uma teoria ideal a uma não ideal. (...) O direito representa, por tanto, o ponto

de equilíbrio da ética de Kant, entre o idealismo do mundo numenal e a

faticidade do mundo fenomenal (GOMES, 2007, p. 97).

Dessa forma, é possível dizer que o direito, em Kant, apresenta uma maneira de

tornar viável a realização do que foi proposto pelo filósofo em toda sua ética, tendo em

vista a dualidade natural do ser humano, a saber, razão e instintos.

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2. OS PRINCIPAIS ASPECTOS DA FILOSOFIA DE KANT NO ALCANCE DA

PAZ PERPÉTUA

2.1. Direito do Estado, Direito das Gentes e Direito Cosmopolita

Para Kant, Estado é o conjunto de indivíduos que estão inseridos em uma

condição civil pautado no direito, unidos por esse interesse em comum de se

posicionarem em uma condição jurídica. “Um Estado (civitas) é a união de uma

multidão de seres humanos submetidos a lei de direito”(KANT, 2003, p.155), que vai ao

encontro dos princípios do direito já formados pela razão prática dos próprios cidadãos.

Da mesma forma se dá o conceito de nação para Kant, por se tratar de uma associação

herdada de membros para membros, gerações a gerações.

O republicanismo reconhece o Estado como norma universal de associação dos

cidadãos, que se configura e se preserva de acordo com leis de liberdade geridas por três

poderes próprios. São eles: o poder soberano, que está nas mãos do legislador, o poder

executivo, nas mãos do governante e o poder judiciário, regulado pelos juízes. “Os três

poderes num Estado, procedentes do conceito de coisa pública em lato sentido (res

publica latius dicta), são apenas as três relações da vontade unida do povo, que deriva

a priori da razão” (KANT, 2003, p.182)

A interação desses três poderes se dará como um sistema lógico, sendo o poder

soberano a premissa maior que deve ser respeitado, o poder executivo a premissa menor

que executa aquela e o poder judiciário a conclusão que formula o veredicto através do

direito.

Da união dos três poderes resulta a felicidade do Estado que não será a

felicidade dos cidadãos ou do governante em particular. Esta felicidade será buscada

pela razão, através do imperativo categórico e é atingida quando a constituição do

Estado estiver em harmonia com os princípios do direito.

A partir do entendimento do que é direito do Estado, decorre a ideia do direito

das gentes, tendo em vista os diversos Estados presentes no globo terrestre e que dessa

forma se relacionam, seguindo, assim, a necessidade de um direito cosmopolita. Em

outras palavras, a existência e o bom funcionamento de um desses fatores do direito

público, apresentado por Kant, é condição indispensável para o outro.

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Assim, se o princípio de liberdade externa limitada pela lei não estiver

presente em qualquer uma dessas três formas possíveis de condição jurídica,

a estrutura de todas as outras será inevitavelmente solapada e terá,

finalmente, que desmoronar (KANT, 2003, p. 154)

A partir da ideia de que os Estados são resultados da união de cidadãos em

condição jurídica, que ocorre quando os indivíduos resolvem sair do estado de natureza

e partir para um estado civil.

Entende-se que da mesma forma e pelo mesmo motivo se dará o direito das

gentes e o direito cosmopolita, ou seja, como uma associação dos estados em uma

condição jurídica com objetivo de saírem do estado de natureza que, entre eles, nada

mais é do que a disposição constante às guerras.

Para a compreensão do Direito das Gentes deve-se observar o Estado como

pessoa moral, sendo seu agente o seu governante. Nesse sentido, o Estado deve ser

considerado como vivendo na condição de liberdade natural em relação a outro Estado,

ou seja, em situação constante de guerra.

A diferença desse estado natural no direito das gentes é que nele temos que

considerar a relação das pessoas individuais de um Estado com outro Estado em si e,

ainda, a relação de indivíduos de um com os indivíduos de outro Estado.

A relação dos Estados entre si constitui uma condição não jurídica, logo,

condição de guerra real ou apenas como possibilidade. Kant propõe a liga das nações

como forma de proteção destes ataques externos, com ressalva de não envolver

autoridade soberana na mesma, formando assim, apenas uma associação.

Tal liga deve ser renovada de tempos em tempos e dela ser possível a dissolução

a qualquer momento quando necessário.

O abandono ao estado de natureza a fim de se colocar em uma condição legal

é condição meramente provisória, constituindo dessa forma o direito das gentes.

"Somente numa associação universal de Estados (análoga àquela pela qual um povo se

transforma num Estado) poderão os direitos vir a ter validade, definitivamente, e surgir

uma efetiva condição de paz" (KANT, 2003, p. 193)

A paz perpétua será atingida de forma gradativa por aproximação contínua à

mesma através das realizações de tarefas e objetivos fundados nos deveres e, logo, nos

direitos inerentes a todos os seres humanos.

Kant nomeia essa associação composta por diversos Estados de “congresso

permanente de Estados”, no qual deve haver possibilidade constante de ingresso por

outros Estados. A Assembléia dos Estados Gerais em Haia, no século XVIII, foi,

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segundo o próprio filósofo, algo semelhante ao que está proposto em sua teoria.

Entretanto, o direito das gentes, neste caso, não sobreviveu ao tempo.

Com isso, Kant especifica que o congresso por ele descrito deve ser apenas uma

coalizão voluntária e ressalta que o que ocorre nos Estados norte-americanos não é

parâmetro do que seria um congresso, pois neles a formação é indissolúvel.

Por fim, deve ser entendido que somente no congresso permanente de Estados é

possível que se crie e se respeite um direito público das gentes com o objetivo de

decidir lides de maneira civil, ou seja, por um processo e não de forma bárbara, qual

seja, pela guerra.

Apresentado o direito das gentes, passa-se ao entendimento do que Kant

chamará de direito cosmopolita em sua filosofia.

Assim, o direito cosmopolita é um princípio jurídico, como os demais direitos, (e

não um princípio filantrópico como muitos podem achar) que neste caso será o princípio

que norteará uma comunidade de relações pacíficas de todas as nações.

Para Kant, o formato específico da Terra é uma tendência natural às relações

pacíficas, recíprocas e de todos que nela vive, por isso não é plausível tentar evitar as

interações entre indivíduos das mais diversas nações.

Originalmente, pode-se dizer que cada nação está de posse de uma parte do solo

terrestre, formando não só uma comunidade de interação física (commercium) entre os

detentores do solo, como também uma comunidade jurídica de posse (communio).

Nesse sentido, o filósofo entende que todos os Estados têm o direito de tentar

criar relações entre si sem receber em troca hostilidades por isto.

Kant ressalta que a disposição das nações e dos mares no globo é algo propenso

a interações, que podem vir a ser por diversas vezes, hostis, tendo em vista que as costas

dos países estão expostas a chegada de todos, pelos mares.

A despeito desse possível inconveniente, não pode ser suprimido o direito

dos cidadãos do mundo de procurar estabelecer relações comuns com todos e,

para tanto, visitar todas as regiões da Terra (KANT, 2003, p.194)

Então, essa abertura natural à interação entre os povos seria na prática o direito

cosmopolita com o objetivo de se criar uma possível união de todas as nações com leis

universais.

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Dessa forma, deve-se entender que o direito cosmopolita é “a condição do

cidadão diante dos outros cidadãos de um mesmo povo ou não e perante vários

Estados. É o Direito que une a todos os habitantes do mundo pelo simples fato de o

serem” (SANTOS, 2008, p. 33) e está inserida na ideia de Direito dos povos.

2.2. A paz perpétua

A paz perpétua é o objetivo último da filosofia de Immanuel Kant para

manutenção da liberdade, buscada desde o início do período crítico, quando é

demonstrada a construção filosófica de liberdade, seguido pela apresentação prática

desta e tendo conclusão com a obra “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico”. Pode-se

dizer que o projeto para uma paz eterna entre os povos circunda a conservação da

autonomia humana, trabalhada durante toda filosofia kantiana.

Pode-se afirmar que estabelecer a paz universal e duradoura constitui não

apenas uma parte da doutrina do direito, mas todo o propósito final da

doutrina do direito dentro dos limites exclusivos da razão, pois a condição da

paz é a única condição na qual o que é meu e o que é teu estão assegurados

sob as leis a uma multidão de seres humanos que vivem próximos uns dos

outros e, portanto, submetidos a uma constituição (g.n.) (KANT, 2003, p.

197).

Há de se ressaltar que a obra “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico” foi

escrita em momento anterior à conclusão da “Metafísica dos Costumes”, na qual Kant

apresenta a liberdade de cada ser humano a ser efetivada na prática individual.

Entretanto, sabe-se que a lógica do pensamento de Kant deve ser entendida tendo a obra

sobre a paz perpétua como último aspecto, posterior a compreensão da filosofia prática.

Kant, no decorrer de sua obra, aponta para princípios inovadores e também para

aqueles que já são vistos como requisitos imprescindíveis para elaboração de qualquer

constituição ou legislação de âmbito internacional, pautado nos princípios do que hoje

se entende como Estado Democrático de Direito, o que seria para Kant, à época, como

os princípios do republicanismo.

“A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico” é dividida em duas partes. Primeiro

apresentam-se os artigos preliminares que trazem proibições aos Estados para o alcance

da liberdade. Em seguida, Kant expõe os artigos definitivos, de natureza mandamental,

para a permanência das liberdades e como consequência do alcance da Paz.

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Esses artigos, como quase toda filosofia kantiana, são considerados por muitos

críticos como uma utopia filosófica, ao passo que para os estudiosos de Kant, seus

ideais comportam elementos formadores de uma teoria não-ideal. Nesse sentido, o

projeto para a paz perpétua deve ser encarado como um modelo, um guia (como toda

filosofia kantiana) para o ser humano, que dessa forma só tende a seguir para melhor.

Se levantarmos ainda o pressuposto de que toda teoria filosófica deveria, em

favor de uma maior completude, trabalhar com duas perspectivas: ideal e

não-ideal, me parece que a visão de Kant de paz perpétua não poderia ser

acusada de utopia, mas no máximo de estar incompleta, uma vez que carece

de uma perspectiva não-ideal. Se for este o problema em questão, creio que

cabe aos estudiosos da obra de Kant aproximarem a teoria da realidade, e não

permitir que ela seja descartada. (SANTOS, 2008, p.32)

Seria, ainda, uma espécie da “Aposta de Pascal” aplicada à teoria kantiana: se

for possível alcançar assim a paz perpétua, a humanidade terá feito a coisa certa e o

objetivo será atingido, entretanto se assim não possível, ao menos foram dados bons

passos ao longo da história.

2.2.1. Artigos Preliminares

Os artigos preliminares são seis e regulam a relação entre os Estados; têm o

objetivo alcançar um estado de paz duradoura e, mesmo que haja guerra, estes artigos

prevêem maneiras pelas quais isto possa ser solucionado sem dirimir a paz no futuro.

Mas ressalta-se que esses artigos não solucionam por completo as questões das guerras

e, só com eles, não se concretiza a paz perpétua.

No centro da filosofia kantiana está a liberdade como fundamento da justiça e

necessária a todos individual e coletivamente. Por isso, Kant dispõe os artigos

preliminares como direção para os Estados no caminho da restituição das liberdades.

Os artigos preliminares contêm artigos com lei proibitiva (artigos 1º, 5º e 6º) e

outros (artigos 2º, 3º e 4º) com lei mandatária, no sentido de autorização para adiar a

execução, tendo em vista o limite do razoável para tal, uma vez que, deve-se logo

restituir a estabilidade que será pressuposto para os artigos definitivos.

Logo no primeiro artigo, Kant entende que quando há, em qualquer tratado de

paz, lacunas para a guerra este se torna apenas em um instrumento de adiamento das

hostilidades.

Para tanto, deve haver o firme propósito dos Estados, que celebrem o tratado, em

optarem pela solução pacífica de conflitos, haja vista que, em Kant, a paz significa o fim

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de todas as hostilidades e, dessa forma, o fim das hostilidades, ou seja, a paz deve ser o

objetivo último do tratado de paz a ser celebrado.

Com referência à teoria do Contrato Social no aspecto interno, Kant dirá que no

estado de natureza, cada Estado tem a guerra como prerrogativa para preservação de

seus interesses, prerrogativa esta que deverá ser abdicada para celebração da paz.

No estado de natureza entre os Estados, o direito de ir à guerra (envolver-se

em hostilidades) constitui a maneira pela qual se permite a um Estado exercer

seu direito contra um outro [sic] Estado, a saber, mediante sua própria força,

quando crê ter sido prejudicado pelo outro Estado, pois isso não poder ser

feito no estado de natureza por meio de processo ( o único meio pelo qual os

litígiso são resolvidos numa condição jurídica) (KANT, 2003, p.188 )

A exceção quanto à guerra será a “doutrina da guerra justa”, o que seria a

“autodefesa” no Contrato Social, que Kant trata no artigo sexto dessa mesma obra.

Kant chama a atenção, no segundo artigo, para o fato de que o Estado não é

patrimônio, ou bem, que possa ser simplesmente negociado, porque há nele pessoas que

juntas significam muito mais do que uma sociedade de homens sob um território.

Um Estado não é patrimônio (patrimonium) (como, por exemplo, o solo em

que ele tem a sua sede)[...]. Enxertá-lo noutro Estado, a ele que como tronco

tem sua própria raiz, significa eliminar a sua existência como pessoa moral e

fazer desta última uma coisa, contradizendo, por conseguinte, a ideia do

contrato originário, sem a qual é impossível pensar direito algum sobre um

povo”. (KANT, 2008, p. 131)

Há de se interpretar, grosso modo, tal artigo como forma de barrar situação

excepcional, mas a verdade é que à época e local em que o projeto foi escrito (Prússia

de Frederico II), ver pessoas sendo tratadas como simples aglomerado de coisas era algo

recorrente, ao contrário de como é considerado qualquer pessoa atualmente, como

cidadãos portadores de direitos e deveres.

O teor do artigo terceiro indica que deverão os Estados desfazer-se dos exércitos,

ainda que, a princípio, isto seja algo difícil de imaginar acontecer. Entretanto,

(...) quando alguém escolhe integrar uma comunidade de Direito, deixa para

trás a possibilidade de coação privada, em favor de uma coação exercida por

um órgão superior que seja representativo da vontade geral da sociedade em

questão. (SANTOS, 2008, p.35)

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Este seria para muitos um ponto alto de contradição em Kant, tendo em vista

que, num primeiro momento, o filósofo não sugere os vínculos entre os Estados, ou

seja, não propõe gerar algo superior que controle a vontade de guerra entre os Estados,

mas ao mesmo tempo, os despe de força coercitiva.

Deve-se entender que "o interesse pela paz é o bastante para reprimir a guerra"

(SANTOS, 2008, p.36), pois, dessa forma, melhor se adequará a interpretação do artigo

terceiro em consonância com o que foi desenvolvido em todo pensamento kantiano,

tendo em vista que todo homem é ser racional que coloca suas atitudes no crivo do

imperativo da razão controlando seus instintos naturais e, assim, age por dever, sendo

desnecessário o artifício para impor ordem no direito dos povos. "Os povos decentes

respeitarão naturalmente os princípios do Direito dos Povos porque está em seu melhor

interesse fazê-lo". (SANTOS, 2008, p.36)

Nesse sentido, Kant não pretende deixar os Estados desprotegidos, haja vista

que, ainda, não se há de ter conquistado o estado pleno de paz. Por isso, lembra

SALGADO que “A solução, apontada por Kant, estaria nos exércitos periódicos

formados por cidadãos dispostos a garantirem a sua segurança e a segurança do

Estado” (2008, p. 142).

O artigo quarto traz consigo a forma central (principalmente nos dias de hoje em

que a globalização move-se em respeito à economia - como será demonstrado mais a

frente, neste trabalho) de impedir que, através do controle econômico, ou melhor, de

ameaça econômica, os Estados influenciem na soberania uns dos outros.

Deter o poder é algo inerente ao homem e, no mesmo traço que os demais

instintos naturais, deve-se observar e impedir o desenvolvimento desse instinto negativo

tendencioso ao poder, para desfazer este grande obstáculo à paz.

Kant observa, ainda, que o crescimento de um Estado implica o crescimento de

outro dentro de uma sociedade dos povos e, da mesma forma, a bancarrota.

Consequentemente, a emissão de dívidas a mais de um Estado, além desse

controle imediato dos detentores do poder, implica também a aliança dos Estados

economicamente ameaçados, transformando a cobrança econômica em mais um motivo

para as hostilidades.

O artigo quinto, por sua vez, diz respeito à interferência de um Estado na

Constituição e governo de outro. Isto se torna um impedimento à paz à medida que os

problemas internos de um povo dizem respeito a ele e a interferência de um Estado

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enfraquece e retira a autonomia do Estado interferido. E dessa forma de todos os outros,

pois se abrem as possibilidades de intervenção quando convier a qualquer outro.

A única exceção se dá na existência de anarquia, ou seja, dissolução de um

Estado pelo não mais reconhecimento de parte do seu povo, sendo cabível, pois apenas

no que diz respeito ao final da discórdia para restabelecer a ordem e não ao meio para

dividir o que for.

No sexto artigo, Kant tratará da doutrina da guerra justa, dizendo que mesmo em

guerra devem-se ter apenas atitudes que resguardem a confiança mútua para uma futura

paz; e dessa forma abre a possibilidade desta paz que caso contrário tornaria a guerra

em eterna ao alcance do extermínio.

Ainda que se admita que haja guerra numa liga das nações, tal aconteceria não

por impulso de satisfazer interesses, mas apenas por não restar alternativas.

A guerra injustificável ou, ainda que, justificadas fossem pelo desrespeito dos

inimigos e pelo que hoje, entende-se por direitos humanos, “cria um sentimento de

revanchismo” (SANTOS, 2008, p.38) que, mais tarde, irá interferir em qualquer

tentativa de paz.

2.2.2. Artigos Definitivos

Os artigos definitivos trazem três principais passos que deve dar a humanidade

para o alcance da paz. Dizem respeito à situação interna e externa dos Estados e ao

direito cosmopolita. Sob o pressuposto da liberdade, os artigos definitivos garantem o

relacionamento e influência entre todos com devida participação, ou seja, não há

impedimento obstacularização na atuação de algum indivíduo.

Três níveis diversos de organização: Estatal, o que se deve fazer em nível

interno; Interestatal, entre os estados, ou seja, entendendo que a diferença entre estes

esta na posição homem no Estado com outros Estados; e cosmopolita sendo que este se

dará em um nível jurídico e não filantrópico. O nível cosmopolita é o que Kant definirá

como ápice de reconhecimento entre os Estados.

O artigo primeiro trará a Constituição de todos Estados sob a forma republicana.

Para Kant, governo republicano é o ideal, está em conformidade com a ideia de contrato

originário e garante a liberdade dos seus cidadãos. "A liberdade é o fundamento e

também o fim do Estado e encontra-se garantida na república” (SALGADO, 2008,

p.144).

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A Constituição republicana há de ser fundada no Princípio da liberdade dos

homens (caráter privado), sendo esta, liberdade externa pautada no ideal republicano,

que é “a faculdade de não obedecer a quaisquer leis externas senão enquanto lhes pude

dar o meu consentimento” (KANT, 2008, p.138). Também será fundada no Princípio da

dependência de todos a uma legislação comum (enquanto súditos) que está implícito no

conceito de constituição política. Por fim, a constituição republicana irá se fundar na Lei

da igualdade dos mesmos (enquanto cidadãos). Igualdade, esta, exterior num Estado que

será a relação entre os cidadãos segundo o qual nenhum pode vincular juridicamente o

outro sem que ele se submeta ao mesmo tempo à lei e podem ser reciprocamente

também de igual modo vinculado por ela.

Republicanismo é o modo de governar, representativamente, o povo, seja quem

for seu governante, ou seja, é uma forma de governo, „forma regiminis’, diferentemente

da democracia que é forma de soberania - “forma imperii” - formada por sociedade do

povo, considerada, pelo filósofo, necessariamente uma forma de despotismo,

justificando o sistema representativo como o único capaz de tornar possível uma forma

republicana.

Segundo SANTOS, "O republicanismo em Kant está mais de acordo com a

visão atual de Estado Democrático de Direito do que o que ele chama de Democracia"

(2008, p. 39).

A proximidade do republicanismo com o Estado Democrático de Direito, pode

ser observada, ainda, pelo seu princípio, que é o princípio político de separação dos

poderes executivo e legislativo.

Os agentes políticos do poder estatal devem ser reduzidos para a representação

do mesmo ser cada vez maior para que, de forma gradual, possa-se chegar à plenitude

republicana em conformidade com o contrato originário e, conseqüentemente, garantir-

se-á a liberdade dos cidadãos. Observa Kant, que é impossível tal graduação na

democracia, pois esta só terá condições de ceder lugar ao Republicanismo mediante

revolução violenta.

Com isso, Kant coloca que o republicanismo, proveniente do contrato original, é

o único modo de governar capaz de dar espaço a algum tipo de legislação internacional.

O segundo artigo definitivo tem um alcance interestadual. Kant entende que a

federação de povos se dará quando cada homem estabelece com quem bem entender as

leis que devam obedecer, criando assim uma constituição própria semelhante à civil.

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Entretanto esta formação não seria um Estado de povos, pois isto pressupõe relação de

um superior com um inferior

Ainda, Kant irá observar que os Estados vivem entre si uma relação baseada no

estado de natureza como se diria no caso dos seres humanos, pois não há leis que

estipulem suas interações. E dessa forma, o estado de natureza é sempre estado de

guerra presente, pelo menos, enquanto possibilidade.

Os Estados devem repreender esta situação, como fazem os cidadãos quanto aos

selvagens que vivem sem lei, e não mais alegar soberania com o intuito de não sofrer

coação legal externa, pois o contrário fragiliza o povo.

Neste artigo, Kant critica as inúmeras vezes que foram citados códigos de cunho

internacional pelos Estados, pois se faz referência ao direito, mas sem ao menos

pretender usá-lo para coação externa, tornando este uso apenas uma homenagem ao

direito.

(...) pois de outro modo a palavra direito nunca viria à boca desses Estados

que se querem guerrear entre si, a não ser para com ela praticarem a ironia

como aquele príncipe gaulês, que afirmava: „A vantagem que a natureza deu

ao forte sobre o fraco é que este deve obedecer àquele‟(KANT, 2008, p. 145).

Por isso, os Estados, que não são capazes de utilizar-se do direito para resolução

de qualquer problema, fazem valer-se pela guerra.

Kant, então, define a necessidade e alcance do direito das gentes, através da

criação de uma liga entre os povos, para que não mais se admita a guerra como

instrumento legítimo, nem mesmo guerra justa, sendo o direito o único meio de solução

das controvérsias.

A união dos Estados dá origem à liga de paz, que não se confunde com um

tratado de paz, sempre temporário. A liga possibilita o estabelecimento

definitivo de um convívio pacifico. Assim, ficaria constituída uma federação

na qual ninguém perde sua soberania, mas todos a garantem através do

reconhecimento e da proteção da liberdade de cada um segundo um direito

das gentes (SALGADO, 2008, p.149).

Por fim, o terceiro artigo, como dito anteriormente, trará a visão cosmopolita do projeto

para a paz, ou seja, diz respeito ao Direito Cosmopolita, direcionado, como descreve SANTOS,

aos cidadãos e aos Estados.

No mundo contemporâneo, o direito cosmopolita assume outra faceta, que é

o fato de reconhecer a pluralidade dos povos; pluralidade de cultura de ideias

de vida boa, que são conjugados em uma sociedade internacional, aberta à

prática discursiva como forma de resolução de conflitos e formulação da

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normatividade. Podemos dizer que o terceiro artigo é direcionado igualmente

aos Estados e aos indivíduos (SANTOS, 2008, p.41)

Neste ponto, Kant entende que os seres humanos devem ser tratados como

cidadãos cosmopolitas e como tais devem ser recebidos, em qualquer Estado, com

hospitalidade, não simplesmente por filantropia, mas no sentido de direito que se tem de

não ser tratado com hostilidade, um direito de visita.

O direito de visita não inibe a soberania dos Estados, pois é expresso na obra

que não se trata de hospedagem por certo tempo, o que deve ser feito por contrato

especial. Esse direito abarca apenas a perspectiva de que ninguém é detentor exclusivo

de um espaço na Terra e, dessa forma, todos devem suportar uns aos outros

Ainda, Kant indaga a dicotomia dos países europeus que se permitiam visitarem

outros países e fixarem-se injustamente, colonizando-os, enquanto, agora têm condutas

inospitaleiras com estrangeiros. Este questionamento remete ao imperativo categórico

kantiano que determina que nenhuma ação deva ser praticada se não puder se tornar lei

universal, logo, se não se pretendia permitir “invasão” também nos países

colonizadores, não se devia ter praticado.

Nesse sentido, Kant demonstra que a definição de um direito cosmopolita se faz

necessária, haja vista que se se pretende ver a Terra como de todos para dela gozar

livremente, então se deve estabelecer tal prerrogativa como lei universal.

A idéia de um direito cosmopolita não é nenhuma representação fantástica e

extravagante do direito, mas um complemento necessário de código não

escrito, tanto do direito político como do direito das gentes, num direito

público da humanidade em geral e, assim, um complemento da paz perpétua,

em cuja contínua aproximação é possível encontrar-se só sob esta condição

(KANT, 2008, p.151).

O direito cosmopolita, dessa forma, englobará a humanidade com um todo,

deixando que todos, sejam como cidadãos de um país ou como representantes estatais,

desfrutem livremente dos espaços globais, sem perder de vista o ponto de partida de

onde vieram, bem como sua identidade originária, tornando assim possível a paz

perpétua.

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3. A GLOBALIZAÇÃO E A GOVERNANÇA GLOBAL

3.1. As perspectivas atuais sobre a globalização e a governança global (Global

Governance)

O desenvolvimento da sociedade passou por formações de clãs familiares, em

seguida para tribos e, mais tarde, por Estados Nacionais, Nações. Mais recentemente o

mundo se adequou às conhecidas comunidades internacionais ou blocos econômicos,

com legislação própria e unidos pela macroeconomia, gerando um fenômeno histórico

com base no paradigma neoliberal.

Diz-se que esse fenômeno é a chamada “globalização”, ou mundialização como

preferem os franceses, resultado de um processo de alcance nas diversas áreas de

conhecimento gerado por um desenvolvimento humano no âmbito espacial e,

principalmente, na esfera intelectual do indivíduo como um agente no mundo.

O momento atual transpassa os blocos econômicos já existentes exigindo de

todos os indivíduos e todos Estados uma postura global, frente à imensa troca de

conhecimentos por redes de informações mundiais, seja pelas Web‟s ou pela simples

tecnologia televisiva, de maneira que todas as sociedades e povos do mundo se

tornaram altamente interligados e interdependentes, como explica Magalhães:

Essa expressão [globalização] designa um movimento complexo de abertura

de fronteiras econômicas e de desregulamentação, que permite às atividades

econômicas capitalistas estenderem o seu campo de ação no planeta. O

aparecimento de instrumentos de telecomunicação extremamente eficientes

permitiu a viabilidade desse conceito, reduzindo as distâncias a nada

(MAGALHÃES, 2002, p. 73)

Ressalta-se, no entanto, que não é apenas no aspecto econômico que se desdobra

a globalização, como frequentemente se observa nos centros de debates. Entretanto é a

economia o eixo central da globalização, ditando a evolução dos demais aspectos que,

por sua vez, possuem ritmos e alcances diferentes nas mais diversas sociedades pelo

globo.

Hoje, entende-se que a globalização, conceituada na década de 80, atinge vários

eixos de desenvolvimento e, de forma geral, os aspectos mais importantes da sociedade,

como política, economia, cultura, sociabilidade, religião, história, meio ambiente,

tecnologia, etc.

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A Governança global, ou o discurso dela, tende a colocar a política, a cultura, a

história no mesmo balaio da economia e assim como esta, faz com que aquelas se abram

e se misturem entre nações como se fosse esta a solução para diversos problemas. “O

discurso da global governance torna-se sedutor, ao perceber o mundo como fábula,

recortada por metáforas e fantasias, dentre elas a multiplicação de objetos e serviços,

acessíveis a todos” (SOARES, 2008, p.360)

Enquanto os aspectos econômicos e sociais são ampliados pela globalização, o

ambiente político é reduzido para dar espaço à eficiência das relações pautadas

puramente em interesses econômicos e sociais de desenvolvimento próprio de cada

Estado sem se preocuparem com efeitos relativos aos demais ou até mesmo aos próprios

cidadãos como indivíduos.

No Estado Constitucional, se expressa o discurso da razão política, ou seja, os

princípios norteadores de uma comunidade política definindo e dando direção a vida

social de seus indivíduos.

Na experiência atual de governança global é utilizado o discurso da razão

instrumental ditando como parâmetro a lógica dos cálculos de custos e benefícios, como

forma de convencimento de suas fabulações.

Diante disso, permanece a sociedade, seja como um todo ou em cada Estado, em

um impasse de valores, sem rumo por onde seguir, dividido entre os princípios políticos

e os cálculos que visam indiscriminadamente à obtenção de lucros. Esta situação é vista

como tensão entre a Globalização (com a lógica da governança global) versus os

princípios do Estado Constitucional (discurso sobre a razão política e legitimidade).

O Estado sofre metamorfoses no que diz respeito ao seu centro de funções. O

que se tem hoje é a descentralização de tarefas entre os municípios e regiões e ainda das

autarquias e outras tantas instituições, como por exemplo, ONG‟s e associações em

geral.

Entretanto ainda que haja tal descentralização da razão política do Estado, esta

não pode desaparecer, sendo importante a discussão do papel desse frente à

globalização não permitindo que se ignore e se consuma com a política econômica e

cultura da sociedade estatal.

Não obstante, o Estado não deve e não pode desaparecer, sendo essencial a

discussão de seus fundamentos democráticos e determinação de seu papel em

relação à globalização, preservando-se a identidade política, econômica e

cultural de cada sociedade que legitima seu aparato estatal (CALERA,

1992:15) (SOARES, 2008, p. 362)

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Dessa forma é necessário mensurar os efeitos da globalização e da governança

global sob os Estados democráticos e na sociedade como um todo, para inibir que a

razão política não se deixe desfazer pela razão tecnocrática.

Na ideia de governança global a democracia renegou a soberania popular

impondo-se como lei com fundamento na economia de mercado.

O Consenso de Washington (proposta de reforma do Estado feita por técnicos do

FMI e Banco Central) trouxe ao cenário internacional a governança global, que

deliberou quanto à economia e controles do poder público dos Estados Nacionais.

A partir disso a economia de mercado passou a funcionar em redes com total

liberdade de se instalar e investir produção onde quer que fosse, ou seja, em qualquer

Estado sem distinção.

No entanto, não houve regulação da movimentação econômica em Estados e

sociedades de economia assimétrica nem mesmo se planejou o desenvolvimento e

sustentabilidade dos Estados juntamente com suas sociedades e costumes, o que gerou o

contrário do que promete a fábula da governança global e reduziu, em grande parte, as

suas referidas glórias.

A consequência lógica é o fato das nações ricas, por sua vez, não terem como

suportar a pobreza absoluta do restante do mundo, tendo em vista que “o

neoliberalismo não é capaz de responder às necessidades de trabalho e bem estar

social da população mundial” (MAGALHÃES, 2002, p. 76)

Nesse sentido, o que ocorre é que as novas concepções constitucionais estão

fixas no modelo neoliberal e subordinadas a ordenamento jurídico de conceito

internacional, transnacional. Assim descreve Quintão Soares:

O discurso neoliberal, que permeia a reengenharia do Estado contemporâneo,

visa, equivocadamente, a resgatar conceitos relativos a paradigmas já

superados no decorrer do processo histórico, priorizando sociedade de

homens livres alicerçada na liberdade de mercado (SOARES, 2008, p.366)

Diante disso, como se posiciona Soares (2008), observa-se que com a mudança

do mundo em que vivemos, é necessário também que o direito acompanhe as novas

tendências. Novos conceitos e paradigmas jurídicos devem ser desenvolvidos para que

essa evolução atinja de forma plena, sem ranhuras, as instituições estatais e as relações

entre si, tendo sempre em vista o princípio da dignidade humana.

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Entretanto, ocorre o contrário. Face às mudanças do mundo e, principalmente,

diante das vicissitudes da globalização, os Estados se retraíram, gradativamente,

descaracterizando a sociedade e reduzindo o papel dos cidadãos perante o mesmo.

A governança global deturpa o processo de globalização e, por conseqüência, no

aspecto interno, corrompe os direitos clássicos da liberdade, bem como os direitos

sociais (SOARES, 2008).

3.2. A boa governança como primeiro passo para a mantença dos Estados

O momento atual faz questionar qual seria o papel do Estado frente o processo

de globalização.

Diversas teorias são apresentadas como forma de convencimento a respeito da

governança global e da globalização. Entretanto, a influência dessas faz com que as

atividades típicas do Estado, como a cultura, a política e até mesmo a própria construção

histórica, se percam ao serem colocadas no mesmo patamar da economia, de forma que

a mesma internacionalização que ocorre com esta, passa a ocorrer com aquelas gerando

efeitos catastróficos, perdendo a razão de ser ao se abrirem e misturarem com as demais

atividades de outros Estados no plano internacional.

Quando o sistema político dominante incorpora o sistema técnico

contemporâneo, traz consigo seu imaginário, carregado de formas de relações

econômicas implacáveis, que não aceitam discussão e exigem obediência

imediata (SOARES, 2008).

Assim, a economia no cenário mundial se desloca e se desenvolve em todo o

plano global de forma rápida e continua, se adequando as necessidades das grandes

potências e não se importando com o momento de todos os Estado envolvidos no

processo de desenvolvimento econômico. Então, ao acompanharem o processo

econômico, as atividades do Estado se perdem no plano internacional.

A ordem econômica mundial, que favorece os países do Norte, se tornou

responsável pela morte de pessoas, diariamente, em todo o chamado Terceiro

Mundo, pela fome e violência geradas pela injustiça social. O neoliberalismo

hoje continua causando desemprego, colocando o mundo diante de questões

ainda não equacionadas. A resposta para a construção de uma nova

economia, uma nova sociedade, com novos valores, está hoje em nossas

mãos (MAGALHÃES, 2002. p.51)

A boa governança consiste na busca da condução responsável dos assuntos

Estatais, através de um movimento de resistência à tirania dos mercados,

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redimensionando e legitimando o Estado Constitucional, com fundamento na

Constituição, sendo esta a fórmula ética de convivência, alicerçada em sistema de

valores e princípios.

No âmbito interno, a boa governança do Estado é pressuposto para que este se

mantenha firme diante do furacão globalização, ou seja, a boa governança é a maneira

pela qual o Estado deve impor-se perante o mundo globalizado, pois, retomando o que

já fora exposto sobre Kant, a união de todas as nações não implica sucumbir-se perante

um órgão soberano, mas sim de modo contrário, devem todos os Estados manter sua

própria identidade, como ocorre quando o indivíduo abdica do estado de natureza em

favor do estado civil.

Nesse sentido, a ordem internacional democrática exige que a boa governança

deva ser aquela que analisa e se promova dentro da realidade específica de cada Estado,

sem ter como base modelos uniformes. As instituições estatais constituem os meios

fundamentais de governança responsável a partir do reforço e da sustentabilidade destas,

tendo em vista o desenvolvimento sustentável e justo.

O papel do Direito, da Constituição, é o de estabelecer as margens, os limites

dessa sociedade, e, embora estes limites sejam cada vez mais amplos, eles

continuam a existir como requisito e mesmo razão de ser do Estado

(MAGALHÃES, 2002. p.77)

Será, então, através da Constituição que se dará a boa governança, na medida em

que aquela traz eficientes mecanismos de limitação e controle do poder através da sua

legitimidade perante a sociedade estatal, desfazendo, dessa forma, as ilusões geradas

pela governança global.

Em observância à teoria kantiana, deve-se ressaltar que a boa governança tem

que possibilitar a liberdade individual por meio de três fatores propostos pelo filósofo

ao longo de toda sua teoria, quais sejam: a educação dos cidadãos, o uso público da

razão e o princípio da publicidade. Deverá o Estado se preocupar com o esclarecimento

dos indivíduos que ali vivem, da maneira que Kant propõe:

É, pois, fácil instituir a ilustração em sujeitos individuais por meio da

educação; importa apenas começar cedo e habituar os jovens espíritos a esta

reflexão. Mas esclarecer uma época é muito enfadonho, pois depara-se com

muito obstáculos exteriores que, em parte, proíbem e, em parte, dificultam

aquele tipo de educação (KANT, 2008, p. 57)

Kant acredita que tal condição de educação, esclarecimento e, por conseguinte,

liberdade individual só será alcançada por meio da constituição republicana. Trazendo

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para a atualidade, a boa governança idealizada hoje se encontra submersa à ideia de

constituição republicana apresentada pelo filósofo. Sobre a constituição republicana

expõe Ricardo Terra:

A constituição republicana é uma ideia da razão ligada à do contrato

originário, reafirmando a liberdade civil, a igualdade dos homens, além de

sua sujeição a um sistema legal válido para todos, e que se origina na vontade

unida do povo. Correspondente à ideia do direito dos homens e à da justiça, é

uma constituição que garante a realização do direito, devendo para isso ser

representativa (TERRA, 2004, p. 46)

Dessa forma, até mesmo os governos não republicanos poderão e deverão seguir

os preceitos do ideal republicano, possibilitando a formação de um direito do Estado

harmônico com as necessidades de um posterior direito das gentes.

A boa governança aspira, em termos gerais, trabalhar com governos fortes e

sendo que, para sua formação, seja capaz de fornecer possibilidades em todos os

campos de cooperação, como, por exemplo, a saúde, a educação, transportes,

desenvolvimento rural, etc.; pressupõe, ainda, apoios específicos para as reformas da

administração pública e a melhoria da gestão das finanças e dos sistemas de segurança,

bem como o reforço da sociedade civil e da sua participação nas políticas públicas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra kantiana “A Paz Perpétua: Um Projeto Filosófico” tornou-se um ponto

cerne na discussão sobre a globalização, tendo em vista a necessidade de alcançar a paz

frente tal fenômeno, como lembra, a seguir, Jean-Christophe Merle:

“Quando filósofos falam, hoje, em uma paz justa, pensam eles,

„kantianamente‟, em uma paz universal e definitiva. Em resumo: em uma paz

eterna, em A paz perpétua, como um ordenamento jurídico universal no qual

ele reconheceu tanto uma lei quanto um poder superior” (MERLE, in:

GOMES, 2007, p. 183)

A preocupação com a solidariedade entre as pessoas costuma ser o problema

central nas diversas discussões sobre a globalização, entretanto, partindo de Kant, deve-

se entender que maior problema se encontra nas relações estatais, interestatais e

cosmopolita. Uma vez que um Estado se curva diante da governança global visando

apenas um desenvolvimento econômico (como na maioria dos casos) deixando os

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cidadãos a mercê de agirem como bem entenderem, os valores desse se perdem com o

tempo, transformando cada cidadão em um individuo sem norte, sem fundamento, vazio

de valores e preceitos sociais.

O problema do mundo, portanto, não está na globalização em si, mas em não

saber como viver dentro desta nova realidade. Ao contrário, a globalização que está

surgindo dentro do rápido desenvolvimento dos sistemas de comunicação e transportes,

deve ser considerada uma grande oportunidade para que os povos do mundo possam se

unir e harmonizar seus interesses para assim se beneficiar da melhor maneira com os

recursos materiais e culturais do mundo todo.

É necessário, antes de qualquer coisa, que haja em todos os aspectos, interno,

interestatal ou cosmopolita, a liberdade pautada na razão, núcleo de toda filosofia

kantiana, para que assim se possa constituir uma comunidade dos povos unidos em prol

da paz perpétua que garantirá a todos o direito de estar em paz, bem como ir e vir da

mesma maneira, em todo território.

No contexto internacional, o ideal kantiano prevalece para dar ao mundo rumo

nas tentativas gloriosas da globalização, sem com isso perder de vista a soberania dos

Estados nem a postura global. Até então, como ressalta Quintão Soares, o que temos são

meras tentativas de constituições globais:

Todavia, de acordo com sua própria nomenclatura, as constituições civis

globais pretendem ser parciais - não almejam ser constituições mundiais - e,

em consonância com discurso da razão instrumental, limitadas a

determinados sistemas sociais, tais como economia, ciência, meio-ambiente e

cultura (SOARES, 2008, p.368)

Ocorre que, por um raciocínio kantiano, para que haja instituído o Direito

Internacional de forma a criar constituições mundiais, é necessária a criação de sansões

que regulem as ações humanas e governamentais. Ainda, que as relações sejam entre

homens racionais, a filosofia kantiana ensina que a liberdade externa só é alcança com

limites à mesma, ou seja, por coação. Nesse sentido, está o segundo artigo definitivo

para a paz perpétua, que preceitua Estados livres como condição para a viabilidade do

direito das gentes.

Diante da soberania dos Estados livres, o problema encontra-se na criação de

regras para a limitação dos mesmo que os faça agir conforme um dever, como previne

Francisco Rezek:

Frente aos atos ilícitos em que o Estado acaso incorra, não é exato supor que

inexista no direito internacional um sistema de sanções, em razão da falta de

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autoridade central provida de força física. Tudo quanto é certo é que, neste

domínio, o sistema de sanções é ainda mais precário e deficiente que no

interior da maioria dos países. A igualdade soberana entre todos os Estados é

um postulado jurídico que ombreia, segundo notória reflexão de Paul Reuter,

com a sua desigualdade de fato: dificilmente se poderiam aplicar, hoje,

sanções a qualquer daqueles cinco Estados que detêm o poder de veto no

Conselho de Segurança (REZEK, 2008, p.2)

Tem-se então, no aspecto global, o problema da globalização que, enquanto não

é solucionado, permite ao forte a dominação pela falta de uma disciplina jurídica que o

limite e liberte os demais.

Para tanto, o avanço da tecnologia e a aproximação dos indivíduos devem ser

vistos como fatores que fortalecem a globalização e estão cada vez mais em alta

velocidade de expansão, tornando cada vez mais indispensável evolução nos ambiente

jurídico de relações globais.

Encontra-se, então, o limiar de uma solução para o referido problema no terceiro

artigo definitivo da obra kantiana: o direito cosmopolita. Esse direito, no entanto, não

buscará suprimir as soberanias dos Estados. Como define o próprio artigo “o direito

cosmopolita deve limitar-se às condições da hospitalidade universal” (KANT, 2008, p.

184). Jean-Christophe Merle compartilha do mesmo raciocínio:

Hoje os cidadãos e as violações sistemáticas aos direitos humanos expõe um

número elevado de situações de guerra universais: „guerras de todos contra

todos‟ (...) A União de Nações não é mais nem menos do que uma aliança

para a proteção e para a promoção da paz dos Estados-Membros. O

sonhe da paz eterna tem de ser realizado em sua inteireza ou de permanecer

no céu estrelado do imperativo categórico (MERLE, in: GOMES, 2007, p.

194) (g.n.)

Alguns intérpretes acreditam que o direito cosmopolita foi reduzido, por Kant,

ao direito de visita. Entretanto, ao se observar toda filosofia kantiana, é possível

entender que Kant chega ao ápice de todo seu pensamento em apenas uma frase. Com o

terceiro artigo definitivo foi possível concluir sua tese pautado sempre no princípio por

ele tanto preceituado, qual seja, a liberdade.

O direito cosmopolita concluso na ideia de hospitalidade universal possibilita a

paz, mantém as soberanias estatais, encerra o colonialismo e permite que todos tenham,

por liberdade, o devido acesso no mundo. E, dessa forma, conclui Ricardo Terra:

Em resumo, a realização do estado de direito exige a constituição republicana

no interior dos Estados, a federação das nações no plano internacional e o

reconhecimento dos direito da pessoa em qualquer lugar do globo; este seria

o caminho para a paz (TERRA, 2004, p. 54)

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É evidente a complexa relação do ideal de paz kantiano com o que se busca

atualmente, no entanto deve-se ter em mente que essa busca prática não suporta o

encargo de seguir linearmente todas as aspirações kantianas. Drasticamente seguido por

essa ideia, há quem diga da ilusão da completude do ideal de paz, apesar de todo

pensamento kantiano ir de encontro com os fatos e perspectivas atuais. Para tanto, Kant

expõe o lógico argumento:

O que nos cabe como um dever é, pelo contrário, agir de conformidade com

a ideia desse fim, mesmo que não haja a mais ínfima probabilidade teórica de

que possa ser realizado, na medida em que tampouco sua impossibilidade é

demonstrável (g.n.) (KANT, 2003, p.196).

Nesse sentido, é possível ver a globalização como algo de caráter prático e hábil

para o mundo, sem maiores mazelas. Mas, para que isto possa ser objetivado, será

necessária atenção aos preceitos de estudiosos de todos os tempos, em especial

Immanuel Kant que, com conhecimento, muita lógica e boas perspectivas, apontou de

maneira excepcional os meios e fins para uma positiva realização de uma comunidade

global.

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