a autonomia da vontade À luz do direito...

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1 A AUTONOMIA DA VONTADE À LUZ DO DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO CONTEMPORÂNEO Eduardo Santos Rente * RESUMO A expansão do comércio internacional, como resultado do processo de globalização, intensificou as relações jurídicas transnacionais. Nesse cenário, o Direito Internacional Privado pode utilizar-se do princípio da autonomia da vontade como vetor de proteção da pessoa humana, frente à massificação dos contratos internacionais. Essa abordagem pode ser observada na Europa e nos Estados Unidos, enquanto no Brasil ainda há várias divergências quanto à interpretação e alcance desse princípio. Palavras-chave: Direito Internacional Privado – Autonomia da Vontade – Contratos Internacionais – Direito Comparado ABSTRACT The expansion of international trade as a result of the globalization process intensified the transnational legal relations. In this context, the private international law should apply the part autonomy as a way to protect the human rights, against the massification of international contracts. This approach can be observed in Europe and the United States, while in Brazil there are still differences in interpretation and scope of this principle. Keywords: Private International Law – Part Autonomy – International Contracts – Comparative Law SUMÁRIO: 1. Introdução: A pós-modernidade no direito e a proteção dos direitos humanos. 2. Contratos internacionais. 3. Direito comparado e autonomia da vontade: Europa e EUA. 4. A autonomia da vontade no direito brasileiro. O artigo 9º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro. 5. Considerações Finais e Conclusão. * Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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1

A AUTONOMIA DA VONTADE À LUZ DO

DIREITO INTERNACIONAL PRIVADO CONTEMPORÂNEO

Eduardo Santos Rente *

RESUMO

A expansão do comércio internacional, como resultado do processo de globalização,

intensificou as relações jurídicas transnacionais. Nesse cenário, o Direito Internacional

Privado pode utilizar-se do princípio da autonomia da vontade como vetor de proteção

da pessoa humana, frente à massificação dos contratos internacionais. Essa abordagem

pode ser observada na Europa e nos Estados Unidos, enquanto no Brasil ainda há várias

divergências quanto à interpretação e alcance desse princípio.

Palavras-chave: Direito Internacional Privado – Autonomia da Vontade – Contratos

Internacionais – Direito Comparado

ABSTRACT

The expansion of international trade as a result of the globalization process intensified the

transnational legal relations. In this context, the private international law should apply the

part autonomy as a way to protect the human rights, against the massification of

international contracts. This approach can be observed in Europe and the United States,

while in Brazil there are still differences in interpretation and scope of this principle.

Keywords: Private International Law – Part Autonomy – International Contracts –

Comparative Law

SUMÁRIO : 1. Introdução: A pós-modernidade no direito e a proteção dos direitos

humanos. 2. Contratos internacionais. 3. Direito comparado e autonomia da vontade:

Europa e EUA. 4. A autonomia da vontade no direito brasileiro. O artigo 9º da Lei de

Introdução às normas do Direito Brasileiro. 5. Considerações Finais e Conclusão.

* Graduado em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestrando em Direito Internacional pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

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1. INTRODUÇÃO: A PÓS-MODERNIDADE NO DIREITO E A PRO TEÇÃO

DOS DIREITOS HUMANOS

A globalização é um processo contínuo com repercussões na ciência do Direito,

principalmente em temas envolvendo a soberania dos Estados e o comportamento das

pessoas como sujeito de direito internacional. Fabio Morosini afirma que “a

globalização veio para ficar e está moldando o direito enquanto falamos”.1

Segundo Erik Jayme2, o atual Direito Internacional Privado exerce fundamental

importância na proteção da pessoa humana face à globalização.3

A globalização do mundo e, principalmente, a globalização do comércio

internacional geraram preocupações que se tornaram aparentes no decorrer das

Conferências da ONU sobre o comércio e o desenvolvimento. As conferências de

Seattle, em 1999 e a conferência de Bangkok, em 2000, foram marcadas por vários

protestos nas ruas, promovidas pelos "adversários do livre comércio".4 Essas

manifestações refletiram o medo de que o processo de globalização viole a dignidade da

pessoa humana, em especial nos lugares menos desenvolvidos. É o choque entre a

mundialização do comércio e a identidade cultural do indivíduo.5

Paralelamente ao temor acima mencionado, busca-se a efetivação dos direitos

humanos. Para Celso de Albuquerque Mello, a grande questão é que os direitos

1 MOROSINI, Fabio. Globalização e Novas Tendências em Filosofia do Direito Internacional: a Dicotomia entre Público e Privado da Cláusula de Estabilização. IN: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 549. 2 O Prof. Dr. Erik Jayme é professor catedrático de Direito Internacional Privado, Direito Comparado e Direito Civil da Universidade de Heidelberg. Nas palavras da Professora Cláudia Lima Marques “é um dos maiores juristas de nossa época, internacionalista reconhecido mundialmente, famoso por seu brilhantismo e por seu profundo humanismo” (MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. XVI). 3 Assim se manifestou Erik Jayme durante a conferência magna de abertura do Curso da Academia de Direito Internacional de Haia em 21/07/2000 (JAYME, Erik. O Direito Internacional Privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. IN: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 3). 4 Um episódio marcante sobre o tema ocorreu na França quando o ativista "antiglobalização" Jose Bové liderou um ataque a uma unidade da cadeia de restaurantes "fast-food" McDonald’s. O Supremo Tribunal francês confirmou, em 06/02/2002, uma pena de prisão de três meses para o ativista. O recurso interposto por Bové junto ao Supremo Tribunal baseou-se no argumento político de que o ataque que organizou com um grupo de outros ativistas foi "legal e necessário" em resposta às taxas punitivas norte-americanas ao queijo Roquefort e aos bens agrícolas europeus. Disponível em: < http://www.publico.pt/Mundo/jose-bove-condenado-a-tres-meses-de-prisao-por-ataque-a-mcdonalds_62101 > Acesso em: 01 set. 2010. 5 JAYME, Erik. O Direito Internacional Privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. IN: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 3.

3

humanos precisam se transformar em realidade e não permanecerem por décadas a fio

como um simples programa. Em termos jurídicos, as suas normas não podem ser apenas

normas programáticas.6

No mesmo sentido, Bobbio afirma que “o problema fundamental em relação aos

direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas sim o de protegê-los”.7

Há vários sistemas e formas para a proteção dos direitos humanos. Não podemos

dizer que há um melhor que outro, pois todos são necessários e complementares.8

Contudo, a proteção dos direitos humanos ganha relevância com a globalização e a

expansão dos mercados, pois gradativamente os Estados deixam de ser o centro de

poder e de proteção da pessoa humana.9 Simultaneamente, a sociedade percebe esse

esvaziamento traduzido como uma sensação de fragilidade, incerteza e crise.

Naturalmente que essa realidade se reflete na ciência do direito como um todo.

O mundo moderno que se desenvolveu e atingiu o auge através da racionalidade,

começa a dar espaço a uma era pós-moderna que tenta responder às incertezas deixadas

pela racionalidade e pela funcionalidade.10

Para Claudia Lima Marques, a pós-modernidade é:

uma tentativa de descrever o grande ceticismo, o fim do racionalismo, o vazio teórico, a insegurança jurídica que se observam efetivamente na sociedade, no modelo de Estado, nas formas de economia, na ciência, nos princípios e nos valores de nossos povos nos dias atuais (...) rompimento, de fim de uma era e de início de algo novo, ainda não identificado.11

Erik Jayme, ao avaliar a repercussão da cultura pós-moderna no direito,

identifica quatro elementos característicos: o pluralismo12, a comunicação, a narração e

o retorno aos sentimentos (le retour des sentiments).13

O pluralismo é uma característica relacionada com a identidade cultural do

indivíduo. Há uma grande variedade de estilos de vida e valores14 que coexistem

mediante um senso de tolerância entre as pessoas.15 6 MELLO, Celso de Albuquerque. O § 2º do Art. 5º da Constituição Federal. IN: TORRES, Ricardo Lobo (Org). Teoria dos Direitos Fundamentais. Rio de Janeiro: Renovar, 2ª Edição, 2004. p. 6. 7 BOBBIO, Norberto. A Era dos direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p. 24. 8 Como exemplo, tem-se os tratados internacionais de reconhecimento dos direitos humanos, a criação da Organização das Nações Unidas e as Organizações Não Governamentais. 9 JAYME, Erik. Op. Cit. p.4 10 MOROSINI, Fabio. Op.Cit. p. 551. 11 MARQUES, Cláudia Lima. A crise científica do direito na pós-modernidade. Arquivos do Ministério da Justiça, nº 50. Brasília: Ministério da Justiça, 1º semestre/1998, p.50. 12 Segundo Jayme, Recueil des Cours, 251 (1995), p. 60 e seg., o pluralismo é a grande característica do direito pós-moderno. 13 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995, p.247.

4

Stuart Hall afirma que a questão da identidade está sendo extremamente

discutida, pois as velhas identidades que serviam de alicerce para estabilizar o mundo

social entraram em declínio, surgindo assim novas identidades, fragmentando o

indivíduo moderno.16

Esse movimento de fragmentação do indivíduo moderno - antes visto como um

sujeito unificado17 - é denominado de "crise de identidade", indicando assim um

processo mais amplo de mudança que está se deslocando para as estruturas e processos

centrais das sociedades modernas, abalando as referências que os indivíduos tinham do

mundo social estável.18

O pluralismo pós-moderno, conforme anteriormente mencionado, parte da noção

de tolerância e inclui, também, o direito à diferença. Nesse sentido, Mirian de Abreu

afirma uma “filosofia da diferença” que se expressaria no pluralismo que:

se expande em diversas situações, em diversas áreas do conhecimento; (...) de sujeitos a proteger, por vezes difusos, de agentes ativos de uma mesma relação, como os fornecedores, que se organizam em cadeia e em relações extremamente despersonalizadas, pluralismo enfim de fontes legislativas diversas regulando o mesmo fato e exigindo que o direito, em respeito à diferença que se manifesta, elabore uma nova teoria própria da pós-modernidade.19

14 JAYME, Erik. Visões para uma teoria pós-moderna do direito comparado. Revista dos Tribunais, a. 88, v. 759, janeiro/1999, p. 27-29. 15 MOROSINI, Fabio. Op.Cit. p. 552. 16 HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. 10ª Ed., 2007. Editora DP&A. p.7. 17 Durante seu trabalho, Stuart Hall estabelece três concepções de identidade que são: as concepções de identidade do sujeito do Iluminismo, do sujeito sociológico e do sujeito pós-moderno. Sobre o último, destaca o autor: “Argumenta-se, entretanto, que são exatamente essas coisas que agora estão "mudando". O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais "lá fora" e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as "necessidades" objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. O próprio processo de identificação, através do qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais provisório, variável e problemático. Esse processo produz o sujeito pós-moderno, conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial ou permanente. A identidade torna-se uma "celebração móvel": formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam (grifou-se). É definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são unificadas ao redor de um "eu" coerente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações estão sendo continuamente deslocadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cômoda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora "narrativa do eu". A identidade plenamente identificada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida que os sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identificar - ao menos temporariamente”. 18 HALL, Stuart. Loc. Cit. 19 CAMPOS, Miriam de Abreu Machado. A empresa na sociedade contemporânea. Nova Lima: abril/2007, p.8.

5

Como valor da sociedade pós-moderna, o pluralismo caracteriza-se pelo

reconhecimento de um direito subjetivo à diferença.20 No tocante à disciplina do direito

internacional, o direito à diferença compreenderá as características culturais específicas

dos indivíduos sujeitos de uma relação jurídica de direito internacional e a atribuição de

valor das diferentes comunidades humanas a comportamentos ou símbolos sociais.21

No que se refere ao pluralismo pós-moderno e à relação com o direito

internacional privado, vale ressaltar a passagem de Bruno Miragem:

Contudo, é certo que a utilização do termo “pluralismo” não é suficiente para determinar, por si, seu conteúdo em direito internacional privado. O pluralismo, enquanto respeite o diferente, traduz-se neste campo através da identificação de novos elementos de conexão, ou a partir do método de escolha da lei aplicável, característico do DIP. A busca destes novos elementos serve, então, para promover a aplicação, no caso concreto, da lei que esteja conectada não apenas formalmente (adequação técnico-formal), mas também materialmente, aos sujeitos da relação jurídica de direito internacional – sua adequação substancial. No mesmo sentido, o pluralismo termina por indicar uma significativa extensão da autonomia da vontade das partes22, de modo a permitir, inclusive, a escolha da lei aplicável a determinadas relações jurídicas no momento da celebração (grifou-se). O pluralismo, enquanto elemento característico da pós-modernidade afirma-se como um pluralismo de valores culturais, mas também de métodos e fontes, o que em direito internacional aponta para a promoção da cooperação entre os Estados tendo por objetivo o respeito ao indivíduo e a busca da “melhor solução” para o caso concreto.23

Como consequência do pluralismo, têm-se as diferenças culturais e o

correspondente direito a essa diferença. Também é o pluralismo que acaba gerando cada

vez mais antinomias legislativas. Diante desses impasses, a autonomia da vontade ganha

novos contornos. É justamente o pluralismo que justifica o maior alcance desse

elemento volitivo das relações jurídicas. Dessa forma, as partes, querendo, podem

promover a escolha da lei aplicável aos contratos, no momento da celebração. Forma-se,

assim, uma espécie de auto-regulação, na qual as partes, diante das diferenças,

promovem previamente as condições mais adequadas aos seus objetivos.

20 Erik Jayme cita como exemplo da identidade cultural do sujeito de direito pós-moderno, o direito de o indivíduo falar a própria língua. (JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne, p.251). 21 MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Conteúdo da ordem pública e os direitos humanos. Elementos para um direito internacional pós-moderno. IN: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 328. 22 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995, p.256. 23 MIRAGEM, Bruno Nubens Barbosa. Op. Cit. p. 330.

6

Erik Jayme, em sua obra24, conclui que a proteção da pessoa humana pode ser

feita por meio da autonomia da vontade das partes. Para o professor, há dois enfoques

jurídicos no direito internacional privado para a proteção da pessoa humana face à

globalização. A primeira abordagem consistiria na suspensão, por parte do Estado, das

regras imperativas de aplicação imediata ao contrato com o objetivo de garantir a

proteção desejada. Cita-se, como exemplo, o que ocorre nos contratos de trabalho.25

O segundo enfoque, ao qual o Prof. Jayme se filia, consiste no reforço da

autonomia da vontade das partes, que seriam livres para escolher a lei aplicável e o foro

competente para dirimir os eventuais litígios. Essa abordagem não deixa a pessoa

humana desamparada, desde que se garanta a informação apropriada às partes. A idéia é

que uma pessoa informada é capaz de promover uma “auto-ajuda” sendo capaz, assim,

de lidar com as características peculiares da globalização, deixando de enxergá-las

como uma ameaça.26

Retomando as características da pós-modernidade, de acordo com Erik Jayme,

tem-se que a segunda é denominada de comunicação intercultural. Os avanços

tecnológicos na área da informação (impulsionado notadamente pela Internet) geram a

propagação de dados por todo o mundo, atravessando as fronteiras dos Estados.

No relatório da UNESCO de setembro de 1997 verificou-se que:

A natureza internacional, interativa e descentralizada da internet e seu potencial para tornar disponível vastas quantidades de conteúdo para e de qualquer lugar do mundo faz surgir uma série de dilemas éticos e legais. Através do ciberespaço, são difundidos conteúdos diversificados e informações sob variadas formas (textos, imagens fixas ou em movimento e sons), provenientes de múltiplas fontes (e muitas vezes anônimas), originárias de qualquer parte do globo. (...) as legislações nacionais que tratam dessas questões são muitas vezes incompatíveis ou contraditórias entre si.27

A internet tem influenciado o plano internacional, tanto nas relações entre

Estados quanto nas relações entre Estados e indivíduos. O Conselho Constitucional da

França decidiu que o acesso à internet é um direito humano fundamental, sob o

24 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995. 25 JAYME, Erik. O Direito Internacional Privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. IN: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia de (Orgs). O Novo Direito Internacional: Estudos em Homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 18. 26 Loc. Cit. 27 UNESCO. The internet and some international regulatory issues relating to content: a pilot comparative study commissioned by the United Nations Educational, Sientific and Cultural Organization. Relatório de setembro/1997.

7

argumento de que a publicação de opiniões na rede mundial representa uma forma de

liberdade de expressão.28 Em julho de 2010, a Finlândia tornou-se o primeiro país do

mundo a decretar que o acesso à internet através de banda larga é um direito básico. A

lei finlandesa obriga todas as empresas de telecomunicação do país a oferecer o serviço

aos residentes. Suvi Linden, então ministra das Comunicações da Finlândia, ao

comentar os motivos da referida lei, considerou que os “serviços de internet não têm

mais a função de apenas entreter” e complementou afirmando que “a Finlândia

trabalhou duro para desenvolver uma sociedade informatizada”.29

Essa interferência da internet no cotidiano mundial é uma realidade inerente à

denominada sociedade da informação com reflexos, também, no âmbito privado. Ao

explicar as características da pós-modernidade no direito, o professor alemão indica,

como conteúdo da comunicação, o direito à informação que consiste na garantia de

fornecer aos litigantes estrangeiros o acesso a informações processuais e materiais.30

Naturalmente que a informação deve permear todas as fases da formação de um

contrato e, em especial, dos contratos internacionais. A autonomia da vontade sempre

foi um valor considerado nesse assunto, mas que, mediante a “realidade pós-moderna”

marcada pelas modificações conduzidas pelo processo de globalização, ganha maior

status, reafirmando-se como elemento capaz de adaptar os negócios jurídicos à

dinâmica intercultural e à multiplicidade de fontes legislativas.

Não só a autonomia da vontade como o princípio do pacta sund servanda, em

matéria de direito privado, serão tratados em favor do interesse social.31 Essa releitura

terá como fundamento a terceira característica do direito pós-moderno: a narração.

Conforme assinala Miragem32, “a narração é a característica da pós-modernidade,

ademais, por fornecer novos critérios para avaliar a correção ou não de uma dada obra

de inteligência”. E complementa dizendo que “um determinado juízo é certo ou

28 A manifestação do Conselho Constitucional da França ocorreu durante o julgamento que decidiu pela improcedência da lei antipirataria Loi Hadopi, que estabelecia várias restrições para a publicação e troca de informações por meio da internet. Disponível em: < http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/ 2009/07/16/franca-reconhece-internet-como-direito-fundamental-205755.asp > Acesso em: 05 set. 2010. 29 BBC Brasil. Finlandeses passam a ter acesso a banda larga garantido por lei. Disponível em: < http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2010/07/100701_finlandia_banda_larga_mv.shtml >. Acesso em: 05 set. 2010. 30 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995. p.258. 31 RAMOS, Carmen Lúcia Silveira. A constitucionalização do Direito Privado e a sociedade sem fronteiras. IN: FACHIN, Luiz Edson (Org.). Repensando fundamentos do direito civil brasileiro contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.3-29. 32 MIRAGEM, Bruno. Op. Cit. p. 333.

8

equívoco, sobre sua adequação, só é possível atualmente pela afinidade de um

determinado saber aos costumes e critérios que se lhe imponham, tais como as noções

de eficiência, justiça, beleza ou verdade”.33

No direito internacional, têm-se as “normas narrativas” como resultado de uma

nova perspectiva de análise que considera a adequação social e a promoção humana

como fatores determinantes desse fenômeno. Dentre as normas narrativas de maior

relevância atualmente tem-se a proteção dos direitos humanos.34

A última característica da pós-modernidade no direito assinalado por Jayme é o

“retorno dos sentimentos”. Segundo o professor, esse retorno assinala a legitimação das

decisões jurídicas a partir de elementos não jurídicos, indicando uma nova

fundamentação do direito a partir da norma, mas para além dela. Trata-se da busca de

uma aceitação ou fundamento social ou axiológico da decisão jurídica.35

Essa nova tendência pós-moderna pode ser identificada através da

materialização das normas sobre o conflito de leis, que evolui de um caráter

instrumental para um caráter substancial, antevendo a solução concreta do caso como

resultado da incidência da lei nacional ou estrangeira.36

Todas as características apontadas pelo doutrinador alemão repercutem de forma

intensa na disciplina dos contratos internacionais, pois facilitaram e viabilizaram o

surgimento cada vez maior e constante de relações jurídicas envolvendo um ou mais

elementos estrangeiros. Nesse cenário, destaca-se a importância conferida à autonomia

da vontade, como uma faculdade das partes escolherem a lei que melhor regerá o

contrato internacional e que melhor tratará as diferenças e necessidades envolvidas.

2. CONTRATOS INTERNACIONAIS

Um dos campos de estudo do direito internacional privado é o dos contratos

internacionais. Conforme anteriormente mencionado, esse tópico de estudo tem sofrido

inúmeras modificações em razão da intensificação de relações jurídicas que

transcendem as fronteiras dos Estados, expandindo assim o comércio internacional.

33 Loc. Cit. 34 MIRAGEM, Bruno. Op. Cit. p. 335. 35 JAYME, Erik. Identité culturelle et intégration: le droit internacionale privé postmoderne. Recueil des Cours de l’Académie de Droit International de la Haye, 1995. p.44. 36 ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.100.

9

Para Strenger:

os contrato internacionais do comércio são todas as manifestações bi ou plurilaterais da vontade livre das partes, objetivando relações patrimoniais ou de serviços, cujos elementos sejam vinculantes de dois ou mais sistemas jurídicos extraterritoriais, pela força do domicílio, nacionalidade, sede principal dos negócios, lugar do contrato, lugar da execução, ou qualquer circunstância que exprima um liame indicativo de Direito aplicável.37

A internacionalidade de um contrato, segundo Nadia de Araujo, caracteriza-se

pela “presença de um elemento que o ligue a dois ou mais ordenamentos jurídicos.

Basta que uma das partes seja domiciliada em um país estrangeiro ou que um contrato

seja celebrado em um país para ser cumprido em outro”. Ela acrescenta que “as partes

podem procurar prever situações futuras, estabelecendo regras de direito substantiva no

bojo do contrato, para resolver essas situações, e ainda, determinar onde e como o litígio

dali decorrente será julgado, através de cláusula de eleição de foro e de arbitragem”.38

Batiffol também utiliza um critério jurídico para formular uma definição. Para

ele, o contrato será internacional “quando, pelos atos relativos à sua contratação ou a

sua execução, ou à situação das partes quanto à sua nacionalidade ou seu domicílio, ou à

localização de seu objeto, tem laços com mais de um sistema jurídico”.39

Para Loussouarn e Bredin, deve ser considerado contrato internacional “aquele

que tem ligações com vários sistemas jurídicos ou, em outras palavras, um contrato

cujos pontos de contato não se situam no mesmo sistema jurídico”.40

Jacob Dolinger destaca que, para a conceituação de contrato internacional, além

do critério jurídico, pode ser utilizado o critério econômico. Esse último foi aplicado

originariamente pela Corte de Cassação Francesa para determinar que um contrato é

internacional toda a vez que ultrapassar o quadro da economia interna.41

Luiz Olavo Baptista conjuga o critério jurídico com o critério econômico, ao

considerar que “internacional é o contrato que, contendo elementos que permitam

vinculá-lo a mais de um sistema jurídico, tem por objeto operação que implica o duplo

fluxo de bens pela fronteira ou que decorre diretamente de contrato dessa natureza”.42

37 STRENGER, Irineu. Contratos Internacionais do Comércio. 4ª Ed. São Paulo: Ed. LTR, 1998, p.93. 38 ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, 4ª Edição, p.364. 39 BATIFFOL, Henri. Contrats Et Conventions, Repertoire de Droit Internacional, T. I, p.564. 40 LOUSSOUARN, Yvon; BREDIN, Jean. Droit du Commerce International, Paris, Sirey, 1969, p.594. 41 DOLINGER, Jacob. Contratos e Obrigações no Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, Volume II, Capítulo V, p.224-225. 42 BAPTISTA, Luiz Olavo . Dos Contratos Internacionais: Uma Visão Teórica e Prática. 1. Ed. São Paulo: Saraiva, 1994. v. 1, p.24.

10

Dolinger observa que a jurisprudência brasileira também oscila entre o critério

jurídico43 e econômico44 para a caracterização de um contrato como internacional.45

A internacionalidade de um contrato pode conduzir a soluções distintas, pois a

regulamentação sobre o tema no direito convencional e na legislação interna pode ser

diferente quando ao critério adotado.46

A Convenção de Viena de 198047 aplica-se aos contratos de compra e venda e

mercadorias celebrados entre partes que tenham o seu estabelecimento em Estados

diferentes (quando estes Estados sejam Estados contratantes), ou quando as regras de

direito internacional privado conduzam à aplicação da lei de um Estado contratante. A

Convenção não considerará o fato de as partes terem o seu estabelecimento em Estados

diferentes quando este fato não ressalte nem do contrato nem de transações anteriores

entre as partes, nem das informações dadas por elas em qualquer momento anterior à

conclusão do contrato ou na altura da conclusão deste. Também não são levados em

consideração nem a nacionalidade das partes nem o caráter civil ou comercial das partes

ou do contrato.48

43 O Professor Jacob, a fim de ilustrar a utilização do critério jurídico para a definição de contrato internacional, destaca o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar no Recurso Especial nº 251.438/RJ (2000/0024821-5), julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça e publicado em 02/10/2000. O Ministro, na qualidade de vogal, se convenceu de que o contrato de garantia que estava em análise era um contrato internacional, porque nele existia elemento determinante de conexão real com o ordenamento de dois países, Estados Unidos e Brasil, estabelecido por empresas estrangeiras em favor de um consórcio nacional, em garantia de um contrato de construção celebrado no Brasil, para execução de obra no Brasil. STJ. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/websecstj/cgi/revista/REJ.cgi/IMGD?seq=1544255&nreg= 200000248215&dt=20001002&formato=PDF >. Acesso em: out. 2010. 44 Já no Recurso Especial nº 616/RJ (89.9853-5), julgado 24/04/1990 pela 3ª Turma do STJ, foi considerada a questão econômica ao se destacar o objetivo da atividade desenvolvida, bem como a visão jurídica, na análise dos domicílios e nacionalidades das partes contratantes. Destaca-se o seguinte trecho do voto do Ministro Cláudio Santos: "Não são apenas fatores geográficos ou relativos ao domicílio das partes que o caracterizam como contrato internacional, em oposição aos contratos internos, mas, sobretudo, a finalidade do contrato, ou seja, o transporte marítimo de país a país, portanto, transnacional, atividade econômica de apoio, principalmente, aos contratos de compra e venda entre pessoas de nacionalidades diversas, sujeitas a sistemas jurídicos diferentes, que acabam por vincular-se pela vontade das partes". STJ. Disponível em: < https://ww2.stj.jus.br/processo/jsp/ita/abreDocumento.jsp?num_registro=198900098535&dt_publicacao=13-08-1990&cod_tipo_documento=3 >. Acesso em: out/2010. 45 DOLINGER, Jacob. Op.Cit. p.484-485. 46 SIQUEIROS, José Luis. Los nuevos principios de UNIDROIT (2004) sobre contratos comerciales internacionales. IN: TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (orgs). O Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. RJ: Renovar, 2006, p.562-563. 47 O Brasil não faz parte da Convenção de Viena sobre os contratos de compra e venda internacional de mercadorias. Atualmente, 77 países integram o referido pacto. A relação dos países, bem como das respectivas datas de adesão, podem ser consultadas no endereço eletrônico: < http://www.uncitral.org/uncitral/en/uncitral_texts/sale_goods/1980CISG_status.html > 48 Artigo 1º da Convenção de Viena de 1980 sobre os Contratos de Compra e Venda Internacional de Mercadorias

11

As disposições da Convenção de Roma sobre a Lei aplicável às Obrigações

Contratuais serão aplicadas nas hipóteses que impliquem um conflito de leis.49 Além de

cuidar dos conflitos nos contrato internacionais, a Convenção consagra a autonomia da

vontade das partes, conforme segue:

Artigo 3º Liberdade de escolha 3- A escolha pelas Partes de uma lei estrangeira, acompanhada ou não da escolha de um tribunal estrangeiro, não pode, sempre que todos os outros elementos da situação se localizem num único país no momento dessa escolha, prejudicar a aplicação das disposições não derrogáveis por acordo, nos termos da lei desse país, e que a seguir se denominam por “disposições imperativas”.50

A Convenção do México de 199451, por sua vez, é direcionada especificamente

para os contratos internacionais, estabelecendo que “um contrato é internacional quando

as partes no mesmo tiverem sua residência habitual ou estabelecimento sediado em

diferentes Estados Partes ou quando o contrato tiver vinculação objetiva com mais de

um Estado Parte”.52

Quanto à autonomia da vontade, a Convenção do México traz um capítulo

específico sobre o tema. De acordo com essa norma internacional, o contrato será regido

pelo direito escolhido pelas partes e complementa, estabelecendo que “O acordo das

partes sobre esta escolha deve ser expresso ou, em caso de inexistência de acordo

expresso, depreender-se de forma evidente da conduta das partes e das cláusulas

contratuais, consideradas em seu conjunto. Essa escolha poderá referir-se à totalidade

do contrato ou a uma parte do mesmo”.53

A Convenção também consagra o princípio da proximidade, ao estabelecer que,

para as hipóteses em que não tendo as partes escolhido o direito aplicável, ou se a

escolha do mesmo resultar ineficaz, o contrato será regido pelo direito do Estado com o

qual mantenha os vínculos mais estreitos.54

Dolinger, ao expor que o princípio da autonomia das partes para escolher a lei

aplicável se relaciona de várias maneiras com o Princípio da Proximidade, ensina:

49 Artigo 1º da Convenção de Roma sobre a Lei aplicável às Obrigações Contratuais. 50 Artigo 3º (3) da Convenção de Roma sobre a Lei aplicável às Obrigações Contratuais. 51Ou, Convenção Interamericana sobre Direito aplicável aos Contratos Internacionais. 52 Artigo 1º da Convenção do México de 1994. 53 Artigo 7º da Convenção do México de 1994. 54 Artigo 9º da Convenção do México de 1994

12

Para os subjetivistas, quando as partes não escolhem expressamente a lei contratual, devemos não somente aceitar a escolha implícita, mas também estender o princípio para a escolha presumida, ou seja, a lei que entendemos que as partes teriam escolhido se estivessem conscientes da possibilidade, ou da necessidade, de escolher uma lei a ser aplicada. A lei indicada pelo princípio da proximidade é aquela que presumimos que as partes teriam escolhido, porque é natural que as pessoas prefiram a lei mais próxima, seja mais próxima à transação, seja aos próprios contratantes. Entendemos que a lei mais próxima é a mais adequada aos interesses dos contratantes, é natural admitir que esta seria a lei que as partes teriam voluntariamente escolhido. Assim, a proximidade caracteriza em favor constitutivo da teoria e do decorrente princípio da autonomia das partes.55

Os princípios UNIDROIT sobre os contratos comerciais internacionais não

adotam expressamente nenhum dos critérios formulados no âmbito do direito

convencional sobre a internacionalidade.56 Para UNIDROIT, há a presunção de que o

conceito aplicado aos contratos deve ser interpretado o mais amplo possível, conforme

comentário oficial do Instituto Internacional para a unificação do direito privado.57

Do preâmbulo dos princípios UNIDROIT de 2004 destaca-se o seu propósito. O

primeiro deles consiste no estabelecimento de regras gerais aplicáveis aos contratos

internacionais. No entanto, os princípios somente deverão ser aplicados quando as

partes tenham concordado em reger o contrato por eles. Note-se que não há qualquer

tratado ou lei no sentido de dar vigência aos princípios. Dessa forma, a natureza jurídica

desse documento é a de soft law, pois os interessados a utilizam de forma voluntária em

razão da excelência do trabalho.

A soft law tem sido a referência da regulação não estatal das corporações

transnacionais, como por exemplo o código de conduta da ONU e as recomendações da

Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE.58

55 DOLINGER, Jacob. Op.Cit. p.290-291. 56 SIQUEIROS, José Luis. Op.Cit. p.563. 57 The international character of a contract may be defined in a great variety of ways. The solutions adopted in both national and international legislation range from a reference to the place of business or habitual residence of the parties in different countries to the adoption of more general criteria such as the contract having “significant connections with more than one State”, “involving a choice between the laws of different States”, or “affecting the interests of international trade”. The Principles do not expressly lay down any of these criteria. The assumption, however, is that the concept of “international” contracts should be given the broadest possible interpretation, so as ultimately to exclude only those situations where no international element at all is involved, i.e. where all the relevant elements of the contract in question are connected with one country only. Disponível em: < http://www.unilex.info/instrument.cfm?pid=2&do=Comment&pos=1 > 58 RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. As empresas transnacionais e os novos paradigmas do comércio internacional. IN: DIREITO, Carlos Alberto Menezes; TRINDADE, Antonio Augusto Cançado; PEREIRA, Antonio Celso Alves (Orgs). Novas Perspectivas do Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em Homenagem ao Professor Celso D. de Albuquerque Mello. Rio de Janeiro: Renovar, 2008. p. 476-482.

13

Um exemplo de contrato em ressonância com as características do novo direito

internacional são as joint ventures. Marilda Rosado explica que:

As joint ventures ou associations d'entreprises, formadas no contexto do comércio internacional, são um instrumento fundamental para realização de negócios internacionais. Sua contemporaneidade é indiscutível, figurando como seus atores as empresas multinacionais, empresas estatais e privadas, países hospedeiros, agências de desenvolvimento, bancos e outros organismos internacionais atuantes no cenário mundial. Com a globalização as empresas têm de competir interna e externamente e, conseqüentemente, tem de estar constantemente aumentando a sua produtividade; com as uniões empresariais as empresas têm acesso às mais novas tecnologias ao mesmo tempo em que reduzem os custos de produção. Nesse contexto, as operações de reorganização das sociedades demonstram um aumento da concorrência societária.59

Luiz Olavo Baptista extrai da jurisprudência norte-americana quatro fatores

comuns às joint ventures internacionais: origem ou caráter contratual, com ausência de

forma específica; natureza associativa; direito dos participantes à gestão conjunta e

objetivo ou duração limitados.60

As joint ventures, por exemplo, representam uma alternativa para as empresas

transnacionais que desejam efetuar investimentos estrangeiros. Logo, repercutem todas

as tendências do direito já abordadas nesse trabalho. Conseqüentemente, não se pode

imaginá-las sem o amparo de princípios basilares do direito internacional privado, tal

como o da autonomia da vontade.

Nadia de Araujo constata que o princípio da autonomia da vontade tornou-se

universalmente aceito, com a adoção expressa tanto em convenções internacionais como

na legislação interna de diversos países. Segundo a professora, nos países da common

Law tem tido plena aceitação.61 No Brasil, conforme será abordado, ainda há certa

divergência doutrinária e a jurisprudência ainda não consolidou uma posição.

59 RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo - As Joint Ventures na indústria do petróleo. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2a Edição, 2003, p.100. 60 BAPTISTA, Luiz Olavo; DURAND-BARTHEZ, Pascal. Les Associations d’Entreprises dans Le Commerce International. Paris: Feduci, 1986 Apud RIBEIRO, Marilda Rosado de Sá. Direito do Petróleo - As Joint Ventures na indústria do petróleo. RJ: Editora Renovar, 2a Edição, 2003, p.104-105. 61 ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, 4ª Edição, p.372.

14

3. DIREITO COMPARADO E AUTONOMIA DA VONTADE: EUROPA E EUA

Durante o século XX, houve intenso debate sobre a questão da escolha de leis.

Nos Estados Unidos, a flexibilidade e equidade, aplicadas no caso a caso, nortearam

essas análises. Na Europa, prevalecia a teoria clássica da escolha de leis, consagrando o

princípio da segurança jurídica.62

No entanto, a globalização imprimiu mudanças profundas em todos os ramos da

ciência do direito, fazendo com que a disciplina do direito internacional privado

buscasse uma nova abordagem para os contratos internacionais. Nesse cenário,

consagrou-se o princípio da autonomia da vontade, no qual as partes podem escolher a

lei que será aplicada à relação jurídica pactuada.

Nesse sentido, embora com históricos distintos, observa-se uma convergência do

tema nos Estados Unidos e na Europa.63 Enquanto nesse o princípio da autonomia da

vontade é regido pela Convenção de Roma64, naquele aplica-se o Restatement65 e o

Uniform Comercial Code (UCC).66

Inglaterra, Alemanha e França sempre se mostraram favoráveis à autonomia,

mas havia uma divisão na academia européia sobre o assunto. Contudo, com o

crescimento do comércio internacional, a resistência à autonomia das partes foi sendo

62 REIMANN, Mathias, Conflict of Laws in Western Europe: A Guide through the Jungle. Irvington, N.Y.: Transnational Publishers, 1995, p.102-105. 63 RÜHL, Gisela. Party autonomy in the private international law of contracts. Transatlantic convergence and economic. IN: GOTTSCHALK, Eckart et al, Ed. Conflict of laws in a globalization world. Cambridge, N.Y.: Cambridge University, 2007. P.153-155. 64 Convenção de Roma - TÍTULO II - Regras uniformes – Art. 3.º - Liberdade de escolha - (1) “O contrato rege-se pela lei escolhida pelas Partes. Esta escolha deve ser expressa ou resultar de modo inequívoco das disposições do contrato ou das circunstâncias da causa. Mediante esta escolha, as Partes podem designar a lei aplicável à totalidade ou apenas a uma parte do contrato”. 65 Conflict of Laws 2d - Chapter 8. Contracts - Topic 1. Validity of Contracts and Rights Created Thereby - Title A. General Principles (Copyright (c) 1971 The American Law Institute). §187. LAW OF THE STATE CHOSEN BY THE PARTIES - (1) The law of the state chosen by the parties to govern their contractual rights and duties will be applied if the particular issue is one which the parties could have resolved by an explicit provision in their agreement directed to that issue. (2) The law of the state chosen by the parties to govern their contractual rights and duties will be applied, even if the particular issue is one which the parties could not have resolved by an explicit provision in their agreement directed to that issue, unless either (a) the chosen state has no substantial relationship to the parties or the transaction and there is no other reasonable basis for the parties' choice, or (b) application of the law of the chosen state would be contrary to a fundamental policy of a state which has a materially greater interest than the chosen state in the determination of the particular issue and which, under the rule of s 188, would be the state of the applicable law in the absence of an effective choice of law by the parties. (3) In the absence of a contrary indication of intention, the reference is to the local law of the state of the chosen law. Disponível em: < http://www.kentlaw.edu/perritt/conflicts/rest187.html >. Acesso em: nov. 2010. 66 U.C.C. - Article 1 - General Provisions - Part 3. Territorial applicability and general rules - §1-301. Territorial Applicability; Parties' Power to Choose Applicable Law.

15

atenuada até que, com a Convenção de Roma, o princípio passou a ser adotado de

maneira uniforme.67

Nos EUA, a divergência era entre a Suprema Corte e os estudiosos que

entendiam que a questão seria um problema de soberania, sendo, portanto, inadmissível

conceder tamanha liberdade às partes. Contudo, a Suprema Corte americana, em postura

mais flexível, procurou harmonizar a soberania com a autonomia das partes.68

Dessa forma, a autonomia das partes passou a ter uma abordagem universal, até

porque a maioria dos contratos previa cláusula de eleição de foro.

Apesar do sistema americano e do sistema europeu reconhecerem expressamente a

autonomia da vontade, em ambos ela não é ilimitada. Exige-se, nos dois sistemas, uma

conexão com a lei estrangeira para que as partes possam exercer a faculdade de escolher a

lei que irá reger o contrato. Contudo, restaria saber quando estaríamos diante de um caso

estritamente doméstico (afeto apenas ao direito interno). Sobre esse ponto, as cortes não

exigem muito para assumir uma conexão para um país estrangeiro, bastando que uma das

partes resida com habitualidade no exterior ou que uma das partes seja constituída no

estrangeiro. Há uma análise da essência, mas a exigência para caracterizar uma relação

suficiente para uma lei estrangeira é bem reduzida a fim de se privilegiar o princípio.

Logo, em caso de dúvida, será considerada a escolha feita pelas partes.69

Outra exigência é a relação substancial com o direito escolhido. Ambos os

sistemas não aplicarão a cláusula de escolha da lei caso não haja uma “relação

significativa” entre o contrato e o direito escolhido. A Convenção de Roma possui

requisitos menos rigorosos70, mas na prática há pequenas diferenças com o que ocorre

com a orientação das cortes norte-americanas. Apesar da exigência substancial, outro

argumento razoável poderá justificar a escolha e, nos casos concretos, há poucas

hipóteses na qual as partes não teriam boas razões para efetuarem a escolha de um

determinado direito. Na mesma linha de raciocínio, os tribunais americanos reduziram

as exigências que precisam ser cumpridas para encontrar uma relação significativa com

67 RÜHL, Gisela. Op.Cit. p.156. 68 BEALE, Joseph H. What Law Governs the Validity of a Contract. P.260-266. Harvard Law Review, Vol. 23, No. 1. Published by: The Harvard Law Review Association. Disponível em: < http://www.jstor.org/stable/1324559 >. Acesso em: nov. 2010. 69 RÜHL, Gisela. Op.Cit. p.159-160. 70 Convenção de Roma, Artigo 3.º - Liberdade de escolha - (3) A escolha pelas Partes de uma lei estrangeira, acompanhada ou não da escolha de um tribunal estrangeiro, não pode, sempre que todos os outros elementos da situação se localizem num único país no momento dessa escolha, prejudicar a aplicação das disposições não derrogáveis por acordo, nos termos da lei desse país, e que a seguir se denominam por “disposições imperativas”.

16

o direito escolhido.71 Portanto, a exigência de relação substancial não desempenha um

papel significativo na prática.72

Com relação à escolha da lei, tanto o sistema europeu quanto o americano

consideram lei no sentido propriamente dito e, consequentemente, eles não reconhecem

que as partes, para reger a relação jurídica, optem por princípios gerais de direito ou por

codificações não estatais. A Convenção de Roma faz referência às leis de um país,

enquanto que nos Estados Unidos, apesar do Restatement e do UCC serem silentes, a

jurisprudência sustenta essa conclusão. Logo, caso as partes desejem optar por esse

corpo de regras não estatais, deverão incorporá-las ao contrato nos limites de sua

liberdade. Note-se que mesmo essa limitação começa a mudar, havendo uma tendência

em aceitar regras não estatais.73

Há alguns tipos de contrato que o espaço da autonomia da vontade é reduzido

em razão de sua essência.

Os contratos de consumo são regidos por leis que priorizam a proteção do

consumidor. Com isso, a escolha do direito não afasta a legislação da residência

habitual do consumidor, podendo ser aceita a lei mais favorável.74

Os EUA tendem a invalidar as cláusulas de escolha da lei aplicável em contratos

de consumo sob a alegação de violação à política pública.75 A Convenção de Roma

dedica um artigo específico para os contratos celebrados por consumidores:

Artigo 5º Contratos celebrados por consumidores 1- O presente artigo aplica-se aos contratos que tenham por objeto o fornecimento de bens móveis corpóreos ou de serviços a uma pessoa, o “consumidor”, para uma finalidade que pode considerar-se estranha à sua atividade profissional, bem como aos contratos destinados ao financiamento desse fornecimento. 2- Não obstante o disposto no artigo 3.º, a escolha pelas Partes da lei aplicável não pode ter como conseqüência privar o consumidor da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei do país em que tenha a sua residência habitual (grifou-se):

71 Restatement (Second) §187 (2) (a) the chosen state has no substantial relationship to the parties or the transaction and there is no other reasonable basis for the parties' choice. 72 RÜHL, Gisela. Op.Cit. p.160-164 73 Loc. Cit. 74 RÜHL, Gisela. Op. Cit. p.167-171. 75 SYMEONIDES, Symeon C. Choice of Law in the American Courts in 2005: Nineteenth Annual Survey. The American Journal of Comparative Law, Vol. 53, No. 3 (Summer, 2005), pp. 559-652. Published by: American Society of Comparative Law; Disponível em: < http://www.jstor.org/ stable/30038714 >. Acesso em: nov. 2010.

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Se a celebração do contrato tiver sido precedida, nesse país, de uma proposta que lhe foi especialmente dirigida ou de anúncio publicitário e se o consumidor tiver executado nesse país todos os atos necessários à celebração do contrato; ou

Se a outra Parte ou o respectivo representante tiver recebido o pedido do consumidor nesse país; ou

Se o contrato consistir numa venda de mercadorias e o consumidor se tiver deslocado desse país a um outro país e aí tiver feito o pedido, desde que a viagem tenha sido organizada pelo vendedor com o objetivo de incitar o consumidor a comprar. 3- Não obstante o disposto no artigo 4.º e na falta de escolha feita nos termos do artigo 3.º, esses contratos serão regulados pela lei do país em que o consumidor tiver a sua residência habitual, se se verificarem as circunstâncias referidas no n.º 2 do presente artigo. 4- O presente artigo não se aplica: a) Ao contrato de transporte; b) Ao contrato de prestação de serviços quando os serviços devidos ao consumidor devam ser prestados exclusivamente num país diferente daquele em que este tem a sua residência habitual. 5- Em derrogação do disposto no n.º 4, o presente artigo aplica-se ao contrato que estabeleça, por um preço global, prestações combinadas de transporte e de alojamento.

Para os contratos de trabalho, os Estados Unidos, em casos recentes, indicam a

tendência de invalidar as cláusulas de escolha de lei sob a alegação de violação à

política pública, a exemplo do que vem ocorrendo nos contratos de consumo.

Na Europa, a Convenção de Roma também garante especial proteção aos

trabalhadores, conforme disposição abaixo:

Artigo 6.º Contrato individual de trabalho 1- Sem prejuízo do disposto no artigo 3.º, a escolha pelas Partes da lei aplicável ao contrato de trabalho não pode ter como consequência privar o trabalhador da proteção que lhe garantem as disposições imperativas da lei que seria aplicável, na falta de escolha, por força do n.º 2 do presente artigo (grifou-se). 2- Não obstante o disposto no artigo 4.º, e na falta de escolha feita nos termos do artigo 3.º, o contrato de trabalho é regulado:

a) Pela lei do país em que o trabalhador, no cumprimento do contrato, presta habitualmente o seu trabalho, mesmo que tenha sido destacado temporariamente para outro país; ou

b) Se o trabalhador não prestar habitualmente o seu trabalho no mesmo país, pela lei do país em que esteja situado o estabelecimento que contratou o trabalhador, a não ser que resulte do conjunto das circunstâncias que o contrato de trabalho apresenta uma conexão mais estreita com um outro país, sendo em tal caso aplicável a lei desse outro país.

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4. A AUTONOMIA DA VONTADE NO DIREITO BRASILEIRO. O ARTIGO 9º

DA LEI DE INTRODUÇÃO ÀS NORMAS DO DIREITO BRASILEIR O.

A possibilidade de eleição do direito aplicável aos contratos internacionais é

objeto de divergência na doutrina brasileira. A primeira manifestação data o ano de

1863, quando Pimenta Bueno disse que a autonomia da vontade das partes “se exerce

expressamente quando os contratantes, ou a parte que dispõe, declaram quais são,

detalhadamente, suas determinações, ou quando explicitamente se submetem ao regime

de tal ou tal lei, que será então a reguladora”.76

Antes do processo de codificação do direito privado brasileiro, Augusto Teixeira

de Freitas recebeu do governo imperial a tarefa de consolidar as leis civis que se

encontravam esparsas.77 O seu trabalho conhecido como “Esboço do Código Civil”

consagrava, nos termos do art. 1.965, a autonomia para a escolha da lei aplicável.78

O professor Lauro Gama explica que “embora não se tenha convertido em lei, o

‘Esboço’ permaneceu como referência de autoridade doutrinária em nosso país, sem,

todavia, gerar exemplos concretos de aplicação da autonomia da vontade nos contratos

internacionais”.79

De fato, o “Esboço do Código Civil”, embora não adotado pelo império

brasileiro, influenciou outros projetos jurídicos à época, tal como a codificação na

Argentina.

76 PIMENTA BUENO, José Antonio. Direito Internacional Privado e Aplicação de seus Princípios com referência às Leis Particulares do Brasil. Rio de Janeiro. J. Villeneuve, 1863, p.112. 77 Decreto nº. 2.337, de 11 de janeiro de 1859 - Approva o contracto celebrado com o Bacharel Augusto Teixeira de Freitas para a redacção do projecto do Codigo Civil do Imperio - "Aos dez dias do mez de Janeiro de mil oitocentos e cincoenta e nove, perante o Exm. Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios da Justiça, Conselheiro José Thomaz Nabuco de Araujo, compareceu o Bacharel Augusto Teixeira de Freitas, e por elle foi dito que pelo presente contracto se obriga a redigir o projecto do Codigo Civil do Imperio..." Disponível em: < http://www6.senado.gov.br/legislacao/ListaPublicacoes.action?id=77325& tipoDocumento=DEC&tipoTexto=PUB >. Acesso em: Dez. 2010. 78 Art. 1.965. Não prevalece o disposto nos arts. 1.936 e 1.937: 1º. Quando as partes nos respectivos instrumentos, ou sem instrumento posterior, houverem convencionado que o contrato seja julgado pelas leis do império, ou pelas de um país estrangeiro determinado (art.32); 2º. Quando as partes nos respectivos, ou em instrumento posterior, se tiverem obrigado a responder pelo contrato no Império, ou em um país estrangeiro determinado (art.32). 79 SOUZA JR., Lauro da Gama e. Autonomia da vontade nos contratos internacionais no Direito Internacional Privado brasileiro: Uma leitura constitucional do artigo 9º da Lei de Introdução ao Código Civil em favor da liberdade de escolha do direito aplicável. IN: TIBURCIO, Carmen; BARROSO, Luís Roberto (orgs). O Direito Internacional Contemporâneo: Estudos em homenagem ao Professor Jacob Dolinger. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.602.

19

O Brasil, no tocante ao código civil, promulgou, em 1916, o projeto de Clóvis

Beviláqua, que incluía uma lei de introdução. Essa última, corroborando a idéia de

Teixeira de Freitas, preceituava:

Art. 13. Regulará, salvo estipulação em contrário, quanto à substância e aos efeitos das obrigações, a lei do lugar, onde forem contraídas. Parágrafo único. Mas sempre se regerão pela lei brasileira: I. Os contratos ajustados em países estrangeiros, quando exeqüíveis no Brasil. II. As obrigações contraídas entre brasileiros em país estrangeiro. III. Os atos relativos a imóveis situados no Brasil. IV. Os atos relativos ao regime hipotecário brasileiro.

Beviláqua adotava a autonomia da vontade, entendendo como lícito a

estipulação da lei que regulamentaria o contrato, ressalvando, apenas, algumas hipóteses

afetas ao entendimento de ordem pública. Ele assim escreveu:

A verdadeira opinião parece-me aquela que, em primeiro lugar, atende à autonomia da vontade. Certamente não se erige o querer individual em força dominadora, cujo império desfaça as determinações das leis. De modo algum. A vontade individual para produzir efeitos jurídicos tem de colocar-se sob a égide da lei, da qual tira toda a sua eficácia social. Assim é que as leis de ordem pública impedem que a vontade produza efeitos jurídicos em contrário às suas prescrições.80

O professor Rodrigo Octavio, que antes de exercer o cargo de ministro do STF

de 1929 a 1934 já havia sido Consultor-Geral da República e Subsecretário de Estado

das Relações Exteriores81, era favorável à autonomia da vontade:

E, assim como na ordem interna, com a elasticidade que a lei faculta, a vontade do homem é livre de agir na subordinação dos atos aos dispositivos ou normas legais, do mesmo modo o problema se apresenta em relação às legislações diferentes. Fora do império das leis locais, que por sua natureza sejam necessariamente obrigatórias, e das de ordem pública, podem as partes, contratando, pondo em ação a vontade livre, sujeitar-se a quaisquer das leis que, por qualquer razão de direito, possam intervir na execução ou efetividade do ato que se pratica.82

80 BEVILÁQUA, Clóvis. Princípios Elementares de Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 3ª Edição, 1938, p. 358-359. 81 Disponível em: < http://www.stf.jus.br/portal/ministro/verMinistro.asp?periodo=stf&id=127 >. 82 OCTAVIO, Rodrigo. Direito Internacional Privado (Parte Geral). Rio de Janeiro: Editora Freitas Bastos, 1942, p.154-155.

20

Pontes de Miranda, ao contrário, não admitia a liberdade das partes:

A autonomia da vontade não existe, no Direito internacional, nem como princípio, nem como teoria aceitável. Porque: a) na parte de cogência, há uma lei aplicável, que poderá conferir à vontade, por estranha demissão de si mesma, o poder de desfazer tal imperatividade, quer dizer ─ um imperativo que se nega a si mesmo, que se faz dispositivo; b) fixados pela lei aplicável os limites da autonomia, dentro deles não há escolha de lei, há “lei” (ou outra coisa, lei revogada, página de livro, memorando, cartas), que constitui conteúdo, citação, parte integrante de um querer.83

Durante a vigência da introdução ao código civil, a doutrina já se dividia sobre a

possibilidade ou não da autonomia da vontade e seus limites. A situação se agravou com

a revogação dessa disciplina pelo decreto-lei nº 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de

Introdução ao Código Civil Brasileiro). Basicamente, não houve mudanças formais no

modelo, mas a LICC retirou do texto a expressão “salvo disposição em contrário” que

constava no artigo 13 da introdução ao código civil e que se referia à lei aplicável aos

contratos internacionais. Logo, o tema passou a ser normatizado pelo artigo 9º da Lei de

Introdução ao Código Civil:

Art. 9º. Para qualificar e reger as obrigações, aplicar-se-á a lei do país em que se constituírem. § 1º. Destinando-se a obrigação a ser executada no Brasil e dependendo de forma essencial, será esta observada, admitidas as peculiaridades da lei estrangeira quanto aos requisitos extrínsecos do ato. § 2º. A obrigação resultante do contrato reputa-se constituída no lugar em que residir o proponente.

Essa omissão foi chamada por Lauro Gama de “silêncio eloquente sobre a

autonomia da vontade”.84 Para o autor, essa situação “acendeu a polêmica em torno da

permanência, ou não, da autonomia da vontade no direito internacional privado

brasileiro. E hoje no Brasil, sobre o assunto, existem basicamente três vertentes

doutrinárias”.85

A primeira corrente afasta a autonomia da vontade para a escolha da lei aplicável

ao contrato. Com a revogação da introdução ao código civil e a falta de disposição

normativa expressa que acene pela autonomia, essa parcela da doutrina conclui pela

impossibilidade das partes elegerem a lei que regerá a relação jurídica pactuada. Como

83 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Internacional Privado. Tomo II, Parte Especial, Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1935, p. 156-157; 84 SOUZA JR., Lauro da Gama e. Op. Cit. p.605. 85 Loc. Cit.

21

exemplo de adeptos a essa corrente, pode-se citar João Grandino Rodas86, Nadia de

Araujo87 e Maria Helena Diniz.88

A segunda corrente entende que há a autonomia da vontade, mas de “forma

indireta e restrita ao universo das normas supletivas (facultativas). Assim, para Serpa

Lopes e Oscar Tenório, a omissão legislativa sobre o tema não suprimiu a autonomia da

vontade, mas passou a reconhecê-la de forma indireta, ou seja, quando autorizada pela

lei do local da celebração do contrato, indicada conforme o artigo 9º da LICC, e, mesmo

assim, apenas no terreno das normas supletivas, sendo inextensível a matérias sujeitas a

normas imperativas ou afetas à ordem pública.89 No mesmo sentido, defende Luiz

Olavo Baptista.90 Também filiado a segunda corrente, cite-se Irineu Strenger, que diz

que “o art. 9º não exclui a autonomia da vontade se ela for admitida pela lei do país

onde se constituir a obrigação”.91

Por fim, tem-se a terceira corrente que se coloca em defesa da autonomia da

vontade. Nessa posição, destacam-se Haroldo Valladão e Jacob Dolinger. Para eles, não

se pode interpretar o artigo 9º como uma proibição e, portanto, a autonomia da vontade

não foi afastada pela LICC. Segundo Haroldo Valladão:

A nova Lei de Introdução de 1942, artigo 9º, não se referiu à autonomia da vontade. Era expressão proibida no regime ditatorial de que padecia o Brasil, e que explicou, também, a ausência do foro do contrato ou de eleição no Código de Processo Civil, de 1939-1940, promulgado no mesmo clima. Mas um princípio básico, qual o da autonomia, não podia desaparecer, assim, por omissão. Foi o que decidiu logo a jurisprudência para o foro de eleição, baseado no domicílio especial, previsto no Código Civil e incluído no domicílio em geral do artigo 134 do Código de Processo Civil. São argumentos também aplicáveis ao artigo 9º, uma vez que a Lei de Introdução adotara, fundamentalmente, o princípio do domicílio, e aí o domicílio especial, de eleição, do contrato, Esboço de Teixeira de Freitas, art. 32, indica não só o juiz competente, mas, e principalmente, a lei aplicável. Entenderam, assim, os anotadores da lei, que a autonomia continuava, para Oscar Tenório, Lei de Introdução, art.9º, nas imperativas e facultativas; para os Espínolas, Lei de Introdução, cit. com sua exegese anterior, só para as facultativas.92

86 RODAS, João Grandino. Elementos de conexão do Direito Internacional brasileiro relativamente às obrigações contratuais. IN: RODAS, João Grandino (coord.). Contratos Internacionais. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 3a Edição, 2002, p.59. 87 ARAUJO, Nadia de. Contratos Internacionais - Autonomia da vontade, Mercosul e Convenções Internacionais. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2004, p.118. 88 DINIZ, Maria Helena. Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada. São Paulo: Editora Saraiva, 2ª edição, 1996, p. 254-256. 89 SOUZA JR., Lauro da Gama. Op. Cit. p.606-607. 90 BAPTISTA, Luiz Olavo. Dos contratos internacionais – uma visão teórica e pratica. Editora Saraiva, 1994, p.48-49. 91 STRENGER, Irineu. Direito Internacional Privado. São Paulo: Editora LTR, 2000, p.658. 92 VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado. Ed. Freitas Bastos, 1980, V. I, p.366.

22

Em razão da parcimônia do legislador, o professor Jacob Dolinger destaca a

importância da doutrina no campo do Direito Internacional, entendendo que ela

desempenha “o duplo papel de intérprete da jurisprudência e de sua guia e orientadora”.

Assim, ao tratar da autonomia da vontade na interpretação do artigo 9º da LICC, ensina:

Portanto, todos aqueles que estudam e se dedicam à nossa disciplina e sobre ela escrevem e publicam, incorporando-se à sociedade dos doutrinadores do DIP, devem se conscientizar de sua responsabilidade de condutores e orientadores desta área do direito em nosso País e, no caso presente, se capacitar que o interesse de nossa economia, de nossas relações comerciais internacionais, de nosso prestígio e da confiabilidade de nossas empresas no plano internacional, dependem, em considerável medida, de nos apresentarmos com abertura para o cenário internacional, admitindo, claramente, o direito dos contratantes brasileiros assinarem um pacto no Brasil em que determinam, voluntariamente, a aplicação de lei de outro sistema jurídico. [...] Outrossim, o direito brasileiro sempre admitiu a interpretação teológica da lei, e segundo esta, é indubitável que, considerada a realidade das relações jurídicas internacionais da atualidade, considerado o panorama do direito internacional privado contemporâneo, considerados os interesses da economia brasileira, em crescente internacionalização, que o artigo 9º da LICC não impõe qualquer óbice à escolha de outra lei que a lex contractus.93

O professor Lauro da Gama e Souza Junior, ao avaliar a autonomia da vontade

nos contratos internacionais no direito internacional brasileiro, propõe uma leitura do

art. 9º da LICC à luz da Constituição Federal com o objetivo de afirmar a liberdade de

escolha do direito aplicável. Para ele, a autonomia da vontade é uma liberdade

fundamental com acento constitucional, que não pode ser restringida sem previsão legal

expressa (reserva legal simples), nem a partir de interpretação extensiva e

desproporcional do art. 9º da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro.94

Assim, o fundamento que serve de amparo para a interpretação constitucional

em favor da autonomia da vontade encontra abrigo no inciso II do artigo 5º da CF/88:

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: ... II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (grifou-se);

93 DOLINGER, JACOB. Direito Internacional Privado (Parte Especial) – Contratos e Obrigações no Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Ed. Renovar, 2007, p. 456-458. 94 Dolinger destaca que o Professor Agustinho Fernandes Dias da Silva, 10 anos antes da promulgação da Constituição de 1988 já havia se manifestado no sentido de que não havia no ordenamento jurídico brasileiro nenhuma norma proibindo a escolha da lei competente e, segundo a Constituição, ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa, senão em virtude de lei. (DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado (Parte Especial) – Contratos e Obrigações no Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 461).

23

Não se pode perder de vista que a interpretação de qualquer norma inserida no

ordenamento jurídico deve se alinhar com os preceitos constitucionais, sob pena de

afastá-la por contraposição à lei maior. Tal fato decorre do princípio da supremacia

constitucional. Sobre o método de interpretação das normas, o prof. Cláudio Pereira de

Souza Neto esclarece:

Deve o método de interpretação buscar realizar o interesse público e o bem-estar geral, inevitavelmente afetados pela concretização das normas constitucionais, e não só se ater a preocupações com a correção formal da operação silogística. Para isso, torna-se inevitável a utilização de teorias capazes de refletir sobre a constituição não só do ponto de vista lógico-formal, mas também sobre o prisma dos reflexos concretos da norma constitucional interpretada na realidade social.95

Daniel Sarmento, ao tratar das “liberdades humanas existenciais”, ensina que há

um espaço no qual o Estado não deve intervir, uma vez que não há interesse público

legitimando essa atuação. Tal fato, deriva do sistema constitucional de proteção do

indivíduo. O professor diz ainda que o reflexo dos direitos fundamentais das relações

privadas não tem o condão de restringir o espaço de liberdade de uma sociedade, mas

garantir que essa sociedade se mantenha pluralista e democrática.96 Sarmento também

afirma que o ser humano precede o Direito e o Estado, que apenas se justificam em

razão dele.97 Quando o Estado atenda contra uma liberdade do individuo, há uma lesão à

dignidade da pessoa humana e complementa dizendo que “os valores que dão lastro aos

direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento jurídico, condicionando a

interpretação das normas legais e atuando como impulsos e diretrizes para o legislador,

a administração e o Judiciário”.98

Observando a doutrina de direito constitucional e aplicando os princípios

norteadores desse direito à interpretação do direito internacional, sobretudo do artigo 9º

da Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, Lauro Gama assim sintetiza o

desenvolvimento de sua tese:

95 SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Jurisdição constitucional, democracia e racionalidade prática, Rio de Janeiro: Editora Renovar, 1ª Edição, 2002, p.166. 96 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p.170, 171 e 215. 97 SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2003, p.59. 98 SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2004, p.155.

24

O artigo 9º LICC, interpretado conforme a Constituição Federal, não proíbe a eleição, pelas partes, do direito aplicável ao contrato internacional, pois tal escolha repousa na autonomia privada, que deriva da cláusula constitucional de liberdade, inscrita dentre os direitos e garantias fundamentais, e se sujeita ao princípio da legalidade (artigo 5º, II, da Constituição); Admitir no artigo 9º da LICC uma condição vedatória não prevista no ordenamento positivo, implica igualmente em afronta à proporcionalidade em sentido estrito, eis que impõe sacrifício desproporcional à garantia de liberdade da pessoa, em favor da regra definidora do direito aplicável ao contrato (lex loci celebrationis) despida de qualquer conteúdo constitucionalmente relevante; Não havendo no ordenamento positivo norma proibitiva de exercício da autonomia da vontade em matéria de contratos internacionais, a autonomia privada (artigo 5º, II, da Constituição), que se irradia objetiva e expansivamente por todo o sistema do direito provado, assegura, por si só, a validade e eficácia da escolha do direito aplicável feita pelas partes, desde que observados os limites impostos pelas normas e pela ordem pública.99

5. CONSIDERAÇÕES FINAIS E CONCLUSÃO

Com relação à Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro, em que pese às

diversas correntes sobre a interpretação do artigo 9º, há na doutrina uma convergência

sobre o tema: a referida norma precisa ser atualizada para se adequar ao Direito

Internacional Privado Contemporâneo.

Dolinger ressalta que a Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro “é uma

das mais antigas, senão a mais antiga lei de Direito Internacional Privado no mundo

moderno; ela precisa ser substituída, mormente agora que já temos um novo código

civil. Vários projetos foram apresentados no Congresso, sem maiores conseqüências até

o presente momento”.100

Nadia de Araujo propõe uma substituição do artigo 9º da Lei de Introdução às

normas do Direito Brasileiro pelas normas da Convenção Interamericana sobre o Direito

Aplicável aos Contratos Internacionais. Ela destaca que “a Convenção serviria não só

para regular os contratos internacionais entre os parceiros latino-americanos, mas

também como regra conflitual a todas as relações contratuais internacionais”.101

99 SOUZA JR., Lauro da Gama. Op. Cit. p.622-623. 100 DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado – Parte Geral. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 9ª edição atualizada, 2008, Cap. V – Fontes do Direito Internacional Privado, p. 64. 101 ARAUJO, Nadia de. Direito Internacional Privado. Teoria e Prática Brasileira. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, 4ª Edição, p.376.

25

Lauro Gama diz que, apesar da autonomia da vontade nos contratos

internacionais encontrar fundamento na constituição federal, isso não atenua “a urgência

e relevância de uma renovação legislativa do Direito Internacional Privado

brasileiro”.102

Interessante notar que, apesar do tema da autonomia da vontade suscitar

incertezas, estas são afastadas quando tratadas no âmbito da arbitragem. Isso decorre da

Lei 9307/96 (Lei de arbitragem):

Art. 2º A arbitragem poderá ser de direito ou de eqüidade, a critério das partes. § 1º Poderão as partes escolher, livremente, as regras de direito que serão aplicadas na arbitragem, desde que não haja violação aos bons costumes e à ordem pública (grifou-se). § 2º Poderão, também, as partes convencionar que a arbitragem se realize com base nos princípios gerais de direito, nos usos e costumes e nas regras internacionais de comércio.

Carmen Tiburcio defende que a autonomia a que se refere o parágrafo 1º do

artigo 2º da Lei de arbitragem não tem limites, salvo as hipóteses de fraude à lei ou

ofensa à ordem pública. Logo, para as hipóteses de arbitragem interna (envolvendo

partes domiciliadas no Brasil e um contrato aqui celebrado e com execução no próprio

país), ainda assim os contratantes poderão optar pela lei estrangeira para regular a

relação jurídica.103

O projeto do novo Código de Processo Civil104 propõe alterações relevantes no

que tange à autonomia da vontade para a escolha do foro competente. Destaca-se o

artigo 24 do referido projeto:

Art. 24. Não cabem à autoridade judiciária brasileira o processamento e o julgamento das ações quando houver cláusula de eleição de foro exclusivo estrangeiro, arguida pelo réu na contestação. Parágrafo único. Não se aplica o disposto no caput às hipóteses de competência internacional exclusiva105 previstas neste Capítulo.

102 SOUZA JR., Lauro da Gama. Op. Cit. p.626. 103 TIBURCIO, Carmen; DOLINGER, Jacob. Direito internacional privado: arbitragem comercial internacional. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.97-98. 104 Brasil. Congresso Nacional. Senado Federal. Comissão de Juristas Responsável pela Elaboração de Anteprojeto de Código de Processo Civil. Brasília, 2010. Disponível em: < http://www.senado.gov.br/ senado/novocpc/pdf/Anteprojeto.pdf >. Acesso em: dez. 2010. 105 No projeto do novo CPC, as hipóteses de competência internacional exclusiva estão prevista no artigo 22: “Cabe à autoridade judiciária brasileira, com exclusão de qualquer outra: I – conhecer de ações relativas a imóveis situados no Brasil; II – em matéria de sucessão hereditária, proceder a inventário e partilha de bens situados no Brasil, ainda que o autor da herança seja de nacionalidade estrangeira ou tenha domicílio fora do território nacional”.

26

O jornal Valor Econômico publicou, em 16/09/2010, uma reportagem sobre os

reflexos do anteprojeto do novo Código de Processo Civil brasileiro nos Contratos

internacionais.106 Destaca-se da referida notícia:

Aspecto pouco conhecido do recente anteprojeto de novo Código de Processo Civil (CPC) é a alteração, para melhor, das regras sobre a jurisdição internacional dos tribunais brasileiros. Ao conferir caráter obrigatório à cláusula de escolha do foro inserida em contrato internacional, a comissão de juristas incumbida da reforma acatou as sugestões formuladas por professores de direito internacional privado, preocupados em alinhar o Brasil à tendência mundial de privilegiar a autonomia da vontade nas relações transnacionais (grifou-se). [...] Meritória, a proposta de reforma do CPC cria um sistema coeso e responde adequadamente à tormentosa pergunta sobre qual o foro competente para julgar um litígio contratual de índole internacional. Para fazê-lo, lança mão de princípio-chave na matéria: a autonomia da vontade das partes. [...] o juiz brasileiro abster-se-á de julgar a demanda, rendendo-se à vontade das partes (grifou-se). O anteprojeto elimina a inconstância da jurisprudência nacional sobre o tema. [...] Não raro, nossos tribunais, mesmo diante da expressa eleição de foro estrangeiro no contrato, optam por desprezar a vontade das partes e a boa-fé objetiva, privilegiando uma suposta primazia da jurisdição brasileira. Com o anteprojeto de CPC, que promove normas eficazes e transparentes para a eleição de foro em contratos transnacionais, nosso país dá um passo enorme rumo à modernidade em matéria de direito do comércio internacional (grifou-se). E também dá um belo exemplo de colaboração e diálogo profícuo entre a comunidade acadêmica especializada, o Judiciário e o Poder Legislativo.

Dolinger, ao analisar um caso de arbitragem de 1977 entre a Califórnia Asiatic

Oil Company e a Texaco Overseas Petrolium Company contra a Líbia, julgada por

René-Jean Dupuy, destaca que um dos pontos de litígio foi se as partes teriam direito de

escolher a lei para reger o contrato. O árbitro se manifestou dizendo que “a resposta a

esta questão não apresenta qualquer dúvida: todos os sistemas jurídicos, sejam quais

forem, adotam o princípio da autonomia da vontade aos contratos internacionais”.107

A doutrina internacional privilegia a possibilidade da autonomia da vontade, não

só em respeito ao que as partes acordaram, mas em obediência, também, ao princípio da

segurança jurídica.

Para Barroso, “o sistema jurídico ideal se consubstancia em uma distribuição

equilibrada de regras e princípios, nos quais as regras desempenham o papel referente à

106 ARAÚJO, Nadia de; VARGAS, Daniela; SOUZA JR., Lauro da Gama. Contratos internacionais e o novo CPC. Jornal Valor Econômico. Disponível em: < http://www.valor.com.br/arquivo/847377/ contratos-internacionais-e-o-novo-cpc >. Acesso em: Out. 2010. 107 Journal de Droit International (CLUNET 1977, p. 353) IN: DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado (Parte Especial) – Contratos e Obrigações no Direito Internacional Privado. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2007, p. 481

27

segurança jurídica – previsibilidade e objetividade das condutas – e os princípios, com

sua flexibilidade, dão margem à realização da justiça no caso concreto”.108

Quanto ao comércio internacional, Marcelly Gullo explica que:

Tratando-se especificamente do comércio internacional, a segurança jurídica é imprescindível, porque é fator decisivo para inserção dos Estados neste mercado competitivo, fomentando seu desenvolvimento econômico, produção e atração de investimentos. Serve como instrumento à política, uma vez que proporciona a comunicação global, facilita a negociação e cooperação, e leva os sujeitos a comportarem-se de forma estratégica dentro dos limites normativos capazes de manter a estabilidade do sistema.109

A autonomia da vontade é fundamental no atual direito internacional privado,

sendo contemplada pelos mais diversos contratos internacionais. Esse princípio

representa ainda uma forma de proteção da pessoa humana face à globalização, pois

configura maior segurança jurídica nas relações transnacionais.

Nos Estados Unidos e Europa, a aplicação do princípio da autonomia da vontade

possui contornos bem definidos, enquanto no Brasil há uma forte divergência

doutrinária.

Dessa forma, a modernização da legislação é fundamental para que o Brasil

mantenha sintonia com as melhores práticas de Direito Econômico, impulsionando

ainda mais a entrada de investimentos diretos estrangeiros.110 Nesse contexto, o projeto

de um novo código de processo civil brasileiro deve ser utilizado pelo legislador como

uma oportunidade de sanar as incertezas deixadas pela Lei de Introdução às normas do

Direito Brasileiro, sem, contudo, descartarmos a possibilidade do país ratificar as

Convenções sobre o tema, como por exemplo, a Convenção Interamericana sobre o

Direito Aplicável aos Contratos Internacionais.

108 BARROSO, Luís Roberto. Interpretação e aplicação da Constituição: fundamentos de uma dogmática constitucional transformadora. São Paulo: Saraiva, 6ª Edição, p. 352. 109 GULLO, Marcelly Fuzaro. A organização mundial do comércio e a jurisdicionalização do comércio internacional. Centro de direito internacional. Revista Eletrônica de Direito Internacional, Belo Horizonte, 2007. Disponível em: < www.cedin.com.br/revistaeletronica >. Acesso em: 05 set. 2011. 110 O Brasil passou a ocupar a 5ª colocação no ranking dos países que mais receberam investimentos estrangeiros, ficando atrás apenas de Estados Unidos, China, Hong Kong e Bélgica. - United Nations Conference On Trade And Development (UNCTAD); World Investment Report 2011 - Non-Equity Modes Of International Production And Development - United Nations: Julho/2011, p.29. Disponível em: < http://www.unctad-docs.org/UNCTAD-WIR2011-Full-en.pdf >. Acesso em: 01 ago. 2011.

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