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1 A INEFETIVIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO ESTADO BRASILEIRO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO AOS DIREITOS HUMANOS EM FACE ÀS GARANTIAS JUDICIAIS Adriana Moura Mattos da Silva 1 RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade compreender o funcionamento do Sistema Interamericano de Direitos Humanos em sua perspectiva de integração ao Direito Brasileiro, buscando identificar suas falhas e correlacionando-as com o cumprimento das sentenças de responsabilização do Estado Brasileiro por violações aos direitos humanos proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH). ABSTRACT: The present work has by finality the comprehension of the operation of the Inter-American System of Human Rights in its interactional perspective with the Brazilian Law, chasing the identification of its flaws, correlating them with the fulfillment of the sentences of Brazilian State’s accountability for violations to the human rights, these pronounced by the Inter-American Court of Human Rights. 1 A ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA E AS SENTENÇAS DA CORTE IDH O Estado Brasileiro ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos apenas em 07 de setembro de 1992, promulgando-a em âmbito interno através do Decreto nº 678, de 06 de novembro do mesmo ano. O reconhecimento da competência da Corte Interamericana, porém, ocorreu apenas em 10 de dezembro de 1998. À data da respectiva ratificação, não havia ainda, na Constituição Federal do Brasil, a regra constante do §3º do art. 5º, que somente foi acrescentada através da Emenda Constitucional nº 45, em 30 de dezembro de 2004. Esta, atualmente, prevê que tratados de direitos humanos aprovados com quorum de Emenda Constitucional - qual seja votação por três quintos de cada Casa em dois turnos de votação - adquirem status 1 Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, pós-graduanda em Direito Constitucional pela Rede LFG/JusPodivm.

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A INEFETIVIDADE DE RESPONSABILIZAÇÃO INTERNACIONAL DO

ESTADO BRASILEIRO NO SISTEMA INTERAMERICANO DE PROTEÇÃO

AOS DIREITOS HUMANOS EM FACE ÀS GARANTIAS JUDICIAIS

 

Adriana Moura Mattos da Silva1

 

RESUMO: O presente trabalho tem por finalidade compreender o funcionamento do

Sistema Interamericano de Direitos Humanos em sua perspectiva de integração ao

Direito Brasileiro, buscando identificar suas falhas e correlacionando-as com o

cumprimento das sentenças de responsabilização do Estado Brasileiro por violações aos

direitos humanos proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte

IDH).

 

ABSTRACT: The present work has by finality the comprehension of the operation of

the Inter-American System of Human Rights in its interactional perspective with the

Brazilian Law, chasing the identification of its flaws, correlating them with the

fulfillment of the sentences of Brazilian State’s accountability for violations to the

human rights, these pronounced by the Inter-American Court of Human Rights.

 

1 A ORDEM JURÍDICA BRASILEIRA E AS SENTENÇAS DA CORTE IDH

O Estado Brasileiro ratificou a Convenção Americana sobre Direitos Humanos

apenas em 07 de setembro de 1992, promulgando-a em âmbito interno através do

Decreto nº 678, de 06 de novembro do mesmo ano. O reconhecimento da competência

da Corte Interamericana, porém, ocorreu apenas em 10 de dezembro de 1998.

À data da respectiva ratificação, não havia ainda, na Constituição Federal do

Brasil, a regra constante do §3º do art. 5º, que somente foi acrescentada através da

Emenda Constitucional nº 45, em 30 de dezembro de 2004. Esta, atualmente, prevê que

tratados de direitos humanos aprovados com quorum de Emenda Constitucional - qual

seja votação por três quintos de cada Casa em dois turnos de votação - adquirem status

                                                                                                                       1 Graduada em Direito pela Universidade Federal da Bahia, pós-graduanda em Direito Constitucional pela Rede LFG/JusPodivm.

 2

de norma constitucional, passando a integrar espécie de “bloco de constitucionalidade”

no ordenamento jurídico nacional.

A incorporação de tratados internacionais no ordenamento jurídico brasileiro

antes de 2004, portanto, não possuía regras especifícas nem quaisquer distinções aos

tratados de direitos humanos, funcionando todos eles, a partir de sua promulgação, com

status de Lei Ordinária.

Com a modificação causada pela EC nº 45/2004, entretanto, apresentou-se uma

divergência, relativa ao que ocorreria com os tratados de direitos humanos

anteriormente promulgados, se adquiririam tacitamente status constitucional ou não.

Até então, a regra prevalecente nos julgados do STF era lex posteriori derrogat

legi priori, pela qual a norma do tratado poderia ser modificada pela legislação

posterior, ainda que infraconstitucional, posto que de mesmo nível hierárquico. Esse

entendimento, porém, abria margem ao descumprimento unilateral dos tratados, indo de

encontro diretamente com compromissos assumidos pelo Estado perante a Comunidade

Internacional. Evidenciava-se, portanto, a necessidade de uma revisitação à

jurisprudência do Supremo, a fim de readequá-la à ordem internacional da atualidade.

O Supremo Tribunal Federal (STF), chamado à solução do impasse, no

julgamento unânime do Recurso Extraordinário 446.3432 em 03 de dezembro de 2008,

seguindo o voto do Exm.º Ministro Gilmar Mendes3, decidiu pela modificação do

entendimento do STF acerca do status dos tratados de direitos humanos anteriores à EC

nº 45/2004 .

Seguindo a lógica de Gilmar Mendes no julgamento de 2008, os tratados

anteriores à EC nº 45/2004 não integrariam o chamado “bloco de constitucionalidade”,

posto que não submetidos à votação de quorum especial e consequentemente não

possuidores de status constitucional; entretanto, dada a distinção constitucional a partir

do §3º do art. 5º, estes também não poderiam continuar com status infraconstitucional

simples, passando a possuir status denominado “supralegal”.

Esse posicionamento já tinha sido defendido pelo Ministro Sepúlveda Pertence

no julgamento do Recurso em Habeas Corpus (RHC) de nº 79.785, no ano de 2000,

mas à época foi rechaçado pela maioria do plenário do Tribunal.

                                                                                                                       2 O Recurso Extraordinário 446.343 discutiu, no STF, a questão da constitucionalidade da prisão do depositário infiel, tema trazido à tona em razão da proibição de prisão por dívidas constante do art. 7.7 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. 3 O inteiro teor do julgamento encontra-se disponível em < http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=AC&docID=595444 >. Acesso em 06 mar. 2013.

 3

A supralegalidade caracteriza-se, para o STF, pela superioridade hierárquica a

normas infraconstitucionais, mas ainda assim inferioridade perante a Constituição. Na

lição do eminente Ministro Gilmar Mendes:

Essa tese pugna pelo argumento de que os tratados sobre direitos humanos seriam infraconstitucionais, porém, diante de seu caráter especial em relação aos demais atos normativos internacionais, também seriam dotados de um atributo de supralegalidade. Em outros termos, os tratados sobre direitos humanos não poderiam afrontar a supremacia da Constituição, mas teriam lugar especial reservado no ordenamento jurídico. Equipará-los à legislação ordinária seria subestimar o seu valor especial no contexto do sistema de proteção dos direitos da pessoa humana.

Ressalte-se, ainda, que em caso de inconformidade de normas

infraconstitucionais em relação a tratados de direitos humanos anteriores à regra

especializante, esses operariam um “efeito paralisante” sobre a norma contraditória,

efeito este operado assim que promulgada a sua validade em âmbito interno e

alcançando inclusive norma de vigência posterior.

Ainda no voto do Eminente Ministro:

[...] diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.

Dessa forma, a exemplo da questão da prisão do depositário infiel, defendeu o

Exm.º Ministro que não houve revogação do dispositivo da Constituição Federal que

prevê tal modalidade, mas sim a perda de aplicabilidade do mesmo, em razão do efeito

paralisante que o Pacto de San José operou sobre a legislação infraconstitucional que a

disciplina, notadamente o Código Civil Brasileiro.

Tal julgado foi responsável pela definitiva fixação do entendimento do STF no

sentido de conferir aos tratados internacionais firmados pelo Brasil o status de norma

supralegal, o que, porém, não impede a submissão dos mesmos ao controle de

 4

constitucionalidade, haja vista se encontrarem em nível hierárquico inferior à

Constituição Federal.

Assim sendo, até o momento, apenas dois tratados a respeito de direitos

humanos foram recepcionados conforme as regras do §3º do art. 5º da CF: a Convenção

Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo

Facultativo, ambos promulgados por força do Decreto nº 6.949 de 25 de agosto de 2009,

sendo os demais tratados ainda considerados infraconstitucionais.

A Convenção Americana de Direitos Humanos, portanto, por ser anterior à regra

e consequentemente não tendo sido submetida à votação especial, permanece, pelo

entendimento do STF, com mero status supralegal, operando somente efeito paralisante

sobre o ordenamento jurídico brasileiro que esteja em desconformidade com seu texto.

É também essa dificuldade do Estado Brasileiro em lidar com normas

internacionais perante seu modelo constitucional a responsável pelos resultados pouco

eficazes das recomendações da CIDH e também das sentenças e resoluções da Corte

IDH.

Esse é, talvez, o maior obstáculo à verdadeira concretização da jurisdição

internacional no âmbito do direito interno brasileiro, realidade inclusive aplicável a

diversos outros países da América submetidos ao regime da Convenção. Entretanto, há

de se notar um claro atraso do Brasil em face aos demais países, que buscam já prever

constitucionalmente solução apta à incorporação dos tratados de que fazem parte. A

Constituição Venezuelana4, por exemplo, traz em seu bojo a atribuição de hierarquia

constitucional aos tratados internacionais de direitos humanos, bem como sua

aplicabilidade imediata e direta, cuja hermenêutica será sempre a mais razoável ao

indivíduo. De mesmo modo, a Constituição Argentina5 elenca um rol de diplomas

internacionais possuidores de status constitucional, incluindo aí os tratados de direitos

humanos. O próprio Paraguai6 e também o Uruguai7 trazem previsão de um integração

jurídica à ordem internacional, celebrando a unidade jurídica do sistema interno e

externo.

                                                                                                                       4 Art. 23 da Constituição Venezuelana. Disponível em < http://www.cgr.gob.ve/contenido.php?Cod=048 >. Acesso em 11 mar. 2013. 5 Art. 75.22 da Constituição Argentina. Disponível em < http://www.senado.gov.ar/web/interes/ constitucion/atribuciones.php >. Acesso em 11 mar. 2013. 6 Art. 145 da Constituição Paraguaia. Disponível em < http://www.constitution.org/cons/paraguay.htm >. Acesso em 11 mar. 2013. 7 Art. 6º da Constituição Uruguaia. Disponível em < http://www.parlamento.gub.uy/constituciones/ const004.htm >. Acesso em 11 mar. 2013.

 5

A prática cotidiana de integração de precedentes e normas ao direito interno tem

grande destaque no Sistema Europeu, mas ainda se encontra a passos lentos no contexto

Americano, especialmente no Brasil.

1.1 A implementação das sentenças no Brasil

A implementação de sentenças da Corte pode ocorrer de duas formas: sponte

propria (voluntária) ou forçada. Nesse momento, nos dedicamos às formas e

mecanismos de implementação voluntária das sentenças pelo Estado Brasileiro. Em

ponto posterior nos dedicaremos à análise da implementação forçada como maneira apta

a solucionar o descumprimento de sentenças.

Em referência à implementação voluntária, consoante o art. 69 da Convenção, o

Estado-Parte obriga-se a atender ao seu dever de cumprimento, atendido pelo Poder

Executivo na efetivação do título executivo judicial materializado na sentença da Corte,

assim como pelo Poder Legislativo, materializado em rol de obrigações limitado8.

No caso brasileiro, em primeiro plano, é importante diferenciar a natureza

jurídica das sentenças de natureza não nacional, que se dividem em duas categorias:

“internacionais” – a exemplo das sentenças de tribunais internacionais como a Corte

IDH – e “estrangeiras” – proferidas pelo Poder Judiciário de país diverso.

As sentenças da Corte Interamericana subsumem-se a um conceito de jurisdição

própria e plenamente integrável ao direito nacional9. Uma vez que o Estado tenha se

submetido à sua jurisdição, suas sentenças possuem eficácia plena e aplicabilidade

imediata no âmbito interno, valendo como qualquer outra sentença nacional que

estabeleça um título executivo, ao contrário das sentenças estrangeiras, que por

disposição constitucional10 exigem a homologação para operação de efeitos no território

nacional.

Pouco após a ratificação da competência da Corte IDH, em 2000, e em

consequência da dificuldade de distinção, pelos parlamentares brasileiros, entre

sentenças internacionais e estrangeiras, foi iniciada a tramitação do Projeto de Lei nº

                                                                                                                       8 Ver COELHO, 2008, p. 161-162. 9 Frise-se que, em se tratando de um tribunal internacional, a sentença não é proferida sob nenhuma soberania específica, possuindo natureza jurídica internacional e, portanto, não sendo estrangeira. Ver COELHO, 2008, p. 93. 10 Art. 105, inciso I, alínea “i” da Constituição Federal, que estabelece a competência do Superior Tribunal de Justiça para a homologação das sentenças estrangeiras.

 6

3.214/00, visando dispor sobre os efeitos jurídicos das sentenças da Corte IDH em

âmbito interno.

Inicialmente, o projeto de lei visava reafirmar a aplicabilidade imediata da

sentença da Corte, em plena consonância com a Convenção Americana e acentuando

ainda seu caráter de título executivo judicial com garantia desse seu aspecto para a

execução contra a Fazenda Pública. No texto da proposta original elaborada pelo

Deputado Federal Marcos Rolim11:

Art.1º As decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos, constituídas pela Convenção Americana de Direitos Humanos, cuja jurisdição foi reconhecida pelo Decreto Legislativo 678, de 06 de novembro de 1992, produzem efeitos jurídicos imediatos no âmbito do ordenamento interno brasileiro. Art.2o Quando as decisões forem de caráter indenizatório, constituir-se-ão em títulos executivos judiciais e estarão sujeitas à execução direta contra a Fazenda Pública Federal. §1o _ O valor a ser fixado na indenização respeitará os parâmetros fixados pelos organismos internacionais. §2o _ O crédito terá, para todos os efeitos legais, natureza alimentícia. Art.3o Será cabível ação regressiva da União contra as pessoas físicas ou jurídicas, privadas ou públicas, responsáveis direta ou indiretamente pelos atos ilícitos que ensejaram a decisão de caráter indenizatório. Art.4o Esta lei entra em vigor na data de sua publicação.

Entretanto, em 08 de agosto de 2001 é aprovada Emenda Substitutiva - pela

Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional da Câmara de Deputados – que

passa a exigir a homologação da sentença, em sessenta dias, perante o Supremo

Tribunal Federal12.

                                                                                                                       11 BRASIL. Projeto de Lei nº 3.214, de 08 de agosto de 2000. Dispõe sobre os efeitos jurídicos das decisões da Comissão Interamericana de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos e dá outras providências. Inteiro teor disponível em <http://imagem.camara.gov.br/ MostraIntegraImagem.asp?strSiglaProp=PL&intProp=3214&intAnoProp=2000&intParteProp=2>. Acesso em 25 mar. 2013. 12 “Artigo 1º O Poder Executivo encaminhará as decisões proferidas pela Corte Interamericana de Direitos Humanos em casos em que o Brasil foi parte, ao Supremo Tribunal Federal, com vistas à homologação, no prazo de sessenta dias, contados da data em que for delas cientificado. Artigo 2º O Supremo Tribunal Federal processará e julgará a homologação das decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos no prazo de sessenta dias, contados de seu recebimento.” Saliente-se que ainda não havia ocorrido a modificação operada pela EC nº 45/2004 que transferiu a competência de homologação de sentença estrangeira do STF para o STJ.

 7

Como assevera Rodrigo Meirelles Gaspar Coelho, com a modificação, o projeto

regulamentador foi desvirtuado, propondo “um sistema retrógrado e contrário à

interpretação sistemática da Convenção Americana e do ordenamento jurídico

nacionalI”13.

Desde o arquivamento da proposta legal, em 31 de janeiro de 2003, entretanto,

não há uma mobilização do Poder Legislativo para a a regulamentação de eficácia das

sentenças da Corte, no Brasil.

Apenas em novembro de 201014, o Conselho Nacional de Justiça lançou o

programa denominado “Justiça Plena”, com a finalidade de monitorar e dar

transparência ao andamento de processos judiciais com grande repercussão social,

trabalhando para a sua maior agilidade. As causas monitoráveis mais frequentes são

criminais, ações civis públicas, ações populares, ações de defesa do consumidor,

improbidade administrativa e meio-ambiente.

A iniciativa reúne oito órgãos relacionados ao Judiciário e promoção de direitos

no Brasil: Ministério da Justiça (MJ), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Advocacia-

Geral da União (AGU), Secretaria de Direitos Humanos (SDH), Conselho Nacional do

Ministério Público (CNMP), a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Defensoria

Pública da União e dos Estados e Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão

(PFDC). Esses órgãos coordenadores são responsáveis não somente pela estruturação do

sistema e monitoramento, mas também pela indicação das causas a serem

acompanhadas, juntamente às Corregedorias Nacionais (Corregedoria Nacional de

Justiça, da Justiça Federal, da Justiça do Trabalho) e das Corregedorias das Justiças

Estaduais e do Distrito Federal.

Dentre os processos de repercussão social, o programa inclui em seu

monitoramento as causas relativas às sentenças da Corte IDH. Entretanto, a efetivação

desse controle é dependente de troca de ofícios entre o CNJ e os tribunais competentes

pelas causas, todas controladas por um sistema próprio, o Sistema de Acompanhamento

de Processos de Relevância Social (SAPRS).

Atualmente, esse sistema acompanha oitenta processos em andamento e possui

doze casos já finalizados15, dentre eles, destaque-se, as causas relativas aos casos

Ximenes Lopes, Escher e outros (já concluído) e Garibaldi, o assassinato da missionária                                                                                                                        13 Consultar COELHO, 2008, p. 101. 14 Portaria nº 77 de 23 de novembro de 2010. 15 Dados do relatório do programa divulgado pelo CNJ em 03/07/2012. Disponível em < http:// www.cnj.jus.br/images/programas/justica-plena/relatorio_justicaplena.pdf >. Acesso em 14 mar. 2013.

 8

Dorothy Stang, da deputada Ceci Cunha e do sindicalista José Dutra, dentre tantas

outras causas.

No contexto atual brasileiro, essa é a única medida adotada para uma supervisão

interna do cumprimento das sentenças internacionais da Corte CIDH.

Evidentemente que o projeto do CNJ traz frutos positivos às causas de

repercussão, vez que uma vigilância mais proeminente sobre a atividade judiciária

brasileira é apta a evitar o abandono processual e a excessiva duração do processo.

Porém, é importante salientar uma atuação ainda incipiente do programa ora relatado, na

medida em que permanece funcionando através, principalmente, de troca de

informações, sem uma atuação mais positiva sobre a atividade judiciária. Ademais, esse

monitoramento atua exclusivamente sobre as questões processuais da causa

internacional, não cuidando de supervisionar as demais medidas impostas ao Estado

quando de sua responsabilização, como os pagamentos de reparações (realizado através

da edição de decretos) e implementação das medidas de satisfação.

1.2 Os casos do Estado Brasileiro na Corte IDH

Até o presente momento, o Estado Brasileiro já foi julgado por violações aos

direitos humanos em cinco diferentes casos sob a jurisdição da Corte IDH.

Todos os casos, sem exceção, giraram em torno da questão das garantias

judiciais e da proteção judicial – ainda que não de forma principal -, em razão da

ausência de devido processo legal ou razoável duração do processo no tocante à punição

de responsáveis pelos crimes ensejadores das demandas.

1.3.1 Caso Ximenes Lopes

Em 22 de novembro de 1999 foi recebida pela CIDH a denúncia de nº 12.237. O

que viria a ser o primeiro caso brasileiro submetido à apreciação contenciosa da Corte

IDH – e sentenciado em desfavor do Estado Brasileiro – derivou-se de uma petição de

iniciativa individual.

Damião Ximenes Lopes, brasileiro, portador de doença psiquiátrica de baixa

gravidade, em virtude de mais uma crise da doença, tinha sido internado por sua mãe

em “hospício”, como ocorrido em diversas outras de suas crises. Entretanto, dessa

 9

última vez, Damião viria a falecer na instituição, em razão de amplos maus tratos

sofridos durante sua internação para tratamento.

Apesar de datada de 1999, a denúncia somente foi encaminhada como demanda

para a competência da Corte IDH em 1º de outubro de 2004, após 5 anos de trâmite

perante a CIDH. O principal motivo da demora na evolução do caso se deu em razão da

ausência de cumprimento, por parte do Estado brasileiro, da expedição de informações

solicitadas pela Comissão, não tendo enviado nenhuma resposta até 9 de outubro de

2002.

A despeito de inicialmente tramitar perante a Comissão por violações aos artigos

4 e 5 da Convenção (direito à vida e direito à integridade física, respectivamente), o

caso chega à Corte com o acréscimo de violações aos artigos 8 e 25 da mesma

Convenção (direito às garantias judiciais e proteção judicial, respectivamente), em razão

da ineficiência do Estado Brasileiro na solução da causa em prisma interno.

Superando as questões preliminares, a Corte passou ao procedimento

contencioso do caso Ximenes Lopes vs. Brasil, cuja demanda foi recebida para

verificação de responsabilidade do Estado Brasileiro, pelas seguintes razões:

[...] pelas supostas condições desumanas e degradantes da sua hospitalização; pelos alegados golpes e ataques contra a integridade pessoal de que se alega ter sido vítima por parte dos funcionários da Casa de Repouso Guararapes (doravante denominada ‘Casa de Repouso Guararapes’ ou ‘hospital’); por sua morte enquanto se encontrava ali submetido a tratamento psiquiátrico; bem como pela suposta falta de investigação e garantias judiciais que caracterizam seu caso e o mantém na impunidade. [...] Acrescentou a Comissão que os fatos deste caso se vêem agravados pela situação de vulnerabilidade em que se encontram as pessoas portadoras de deficiência mental, bem como pela especial obrigação do Estado de oferecer proteção às pessoas que se encontram sob o cuidado de centros de saúde que integram o Sistema Único de Saúde do Estado.16

No julgamento, a Corte considerou que o Estado Brasileiro não acatou nenhuma

das pretensões sobre reparações e custas formuladas pela Comissão e representantes.

Em contraponto, o Estado Brasileiro alegou não ter ferido os artigos 8 (garantias

                                                                                                                       16 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Ximenes Lopes versus Brasil. Sentença de 04 de julho de 2006. Disponível em < http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_149_por.pdf>, Acesso em 04 fev. de 2013.

 10

judiciais) e 25 (proteção judicial) da Convenção, pois adotou todas as medidas cabíveis

para a investigação e processamento do fato em âmbito interno. Entretanto, o Estado

reconheceu sua responsabilidade no tocante à violação ao direito à vida e integridade

física da vítima.

Assim, a sentença foi proferida no sentido de estabelecer um dever estatal de

observância das necessidades específicas de pessoas acometidas por doenças mentais,

dada sua extrema vulnerabilidade. O tratamento, para a Corte, deve ser realizado de

forma a atender ao melhor interesse do paciente, prezando sempre por sua dignidade e

autonomia, para que se reduza o impacto da doença e seja possível uma melhora na

qualidade de vida.

Pela relevância do tema sobre pessoas portadoras de deficiência mental, a Corte

também expande seu entendimento para a fixação de importante precedente

jurisprudencial fixando o direito ao “respeito à dignidade e à autonomia das pessoas

portadoras de deficiência mental e a um atendimento médico eficaz”, que se traduz em

duas vertentes: o direito aos cuidados mínimos e internação digna e a não recomendação

da sujeição, considerada medida extremamente agressiva.

Como corolários dos direitos fixados, a Corte determinou ainda deveres do

Estado quanto aos portadores de deficiência mental, quais sejam o dever de cuidar,

regular, fiscalizar e investigar, para prevenção e punição de violações.

Assim sendo, após a extensa análise de provas, a Corte conclui pela

responsabilização do Estado Brasileiro pela violação dos direitos de Damião Ximenes

Lopes e também de sua família. Veja-se:

[...] que por haver faltado com seus deveres de respeito, prevenção e proteção, com relação à morte e os tratos cruéis, desumanos e degradantes sofridos pelo senhor Damião Ximenes Lopes, o Estado tem responsabilidade pela violação dos direitos à vida e à integridade pessoal consagrados nos artigos 4.1 e 5.1 e 5.2 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo tratado, em detrimento do senhor Damião Ximenes Lopes.17 A Corte considera, com base no acima exposto, que o Estado tem responsabilidade pela violação do direito à integridade pessoal consagrado no artigo 5 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 do mesmo tratado, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes

                                                                                                                       17 Sentença, § 150.

 11

Miranda e dos senhores Francisco Leopoldino Lopes e Cosme Ximenes Lopes.18 A Corte conclui que o Estado não proporcionou às familiares de Ximenes Lopes um recurso efetivo para garantir o acesso à justiça, a determinação da verdade dos fatos, a investigação, identificação, o processo e, se for o caso, a punição dos responsáveis e a reparação das conseqüências das violações. O Estado tem, por conseguinte, responsabilidade pela violação dos direitos às garantias judiciais e à proteção judicial consagrados nos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção Americana, em relação com o artigo 1.1 desse mesmo tratado, em detrimento das senhoras Albertina Viana Lopes e Irene Ximenes Lopes Miranda.19

A título de reparação, foram determinadas como partes lesadas o senhor Damião

Ximenes Lopes, bem como sua irmã Irene, sua mãe Albertina e seus irmão e pai,

destinando oitenta por cento do valor de indenização para divisão igualitária entre Irene

e Albertina e os restantes vinte por cento para divisão igualitária entre o irmão e o pai da

vítima.

A título de dano material, foram fixadas as seguintes reparações:

(i) em favor de Irene Ximenes Lopes Miranda, a quantia de US$ 41.850,00 a

título de perda de ingressos, por ter esta deixado seu emprego em razão da

causa;

(ii) em favor de Albertina Viana Lopes, a quantia de US$ 1.500,00 a título de

dano emergente, em razão dos gastos funerários e do transporte do corpo

para a necropsia.

Por dano imaterial, foram determinadas as seguintes reparações:

(i) em favor de Damião Ximenes Lopes, a quantia de US$ 50.000,00,

concedidas porque “não recebeu assistência médica nem tratamento

adequados como paciente portador de deficiência mental, que por sua

condição era especialmente vulnerável e foi submetido a tratamentos cruéis

desumanos e degradantes enquanto esteve hospitalizado na Casa de

Repouso Guararapes, situação que se viu agravada com sua morte”20,

distribuída pela proporção fixada entre sua mãe, irmã, irmão e pai;

(ii) em favor de Albertina Viana Lopes, a quantia de US$ 30.000,00 em razão

do “profundo sofrimento e angústia que lhe causou ver a situação deplorável                                                                                                                        18 Id., § 163. 19 Id., § 206. 20 Sentença, § 237, “a”.

 12

em que se encontrava seu filho na Casa de Repouso Guararapes e seu

conseqüente falecimento; e as seqüelas físicas e psicológicas posteriormente

produzidas”21;

(iii) em favor de Irene Ximenes Lopes Miranda o valor de US$ 25.000,00, pelo

sofrimento causado pela morte de seu irmão e todos os transtornos

decorrentes dos processos em âmbito nacional e internacional por ela

acompanhados;

(iv) em favor de Francisco Leopoldino Lopes (pai) e Cosme Ximenes Lopes

(irmão), o valor de US$ 10.000,00 para cada, quanto ao pai pelo sofrimento

com a morte do filho e quanto ao irmão pelas consequências psicológicas

desencadeadas pela morte da vítima.

No tocante às medidas de satisfação e garantias de não repetição, a Corte

estabeleceu três medidas principais:

(i) Obrigação de investigar os fatos que geraram as violações averiguadas no

caso, a fim de garantir aos familiares da vítima o conhecimento da verdade

dos fatos e por constituir “forma de esclarecimento fundamental para que a

sociedade possa desenvolver mecanismos próprios de desaprovação e

prevenção de violações como essas no futuro”22, buscando ainda reparar a

impunidade verificada no caso após os seis anos do fato;

(ii) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande

circulação, por uma vez no prazo de seis meses;

(iii) Estabelecimento de programas de capacitação “para o pessoal médico, de

psiquiatria e psicologia, de enfermagem e auxiliares de enfermagem, bem

como para todas as pessoas vinculadas ao atendimento de saúde mental, em

especial sobre os princípios que devem reger o tratamento a ser oferecido às

pessoas portadoras de deficiência mental, de acordo com as normas

internacionais sobre a matéria e as dispostas nesta Sentença” 23;

(iv) A Corte considerou que a sentença, com análise de mérito e das

consequências dos fatos por si só consiste em forma de reparação à família

da vítima e também uma forma de contribuir para que os fatos não se

repitam.

                                                                                                                       21 Id., § 237, “b”. 22 Id., § 245. 23 Sentença, § 250.

 13

A título de custas, fixou a quantia de US$ 10.000,00 a fim de que fossem

ressarcidos os gastos da família de Damião Ximenes Lopes e também do Centro de

Justiça Global, organização que a representou.

Determinou-se, ainda, que o cumprimento das obrigações de pagamento, pelo

Estado, deveriam ser realizadas em dinheiro, no prazo de um ano da notificação da

sentença, diretamente aos beneficiários, em dólares ou seu equivalente em reais, sem

qualquer dedução ou redução. Em caso de mora, concedeu-se a correção por juros no

equivalente bancário brasileiro. Quanto à efetivação das demais medidas, estabeleceu-se

o prazo específico determinado pela sentença ou o “prazo razoável” para seu

cumprimento.

As reparações pecuniárias contra o Estado Brasileiro foram cumpridas dentro do

prazo da sentença, através do Decreto 6.185, de 13 de agosto de 2007, com os valores

publicados convertidos em reais. A sentença, porém, como se verifica, não garantiu o

real cumprimento das obrigações em “prazo razoável” no tocante às questões

processuais.

No âmbito cível, a ação foi julgada em primeiro grau e em apelação somente no

ano de 2010 (mais de quatro anos após a sentença da Corte), confirmando a condenação

dos sócios da Casa de Repouso Guararapes ao pagamento de R$ 150.000,00 pela morte

de Damião Ximenes à sua mãe, Albertina.

A sentença de mérito da causa penal, esta iniciada no ano de 2000, foi proferida

apenas em 29 de junho de 2009, mais de nove anos de seu início e após mais de três

anos da sentença da Corte IDH, reconhecendo a culpabilidade dos réus pelo crime de

maus tratos qualificado pelo resultado morte, atribuindo-lhes pena de seis anos de

reclusão.

Entretanto, houve apelação, pelos réus. É apenas em 27 de novembro de 2012

que o processo penal é julgado definitivamente, resultando no reconhecimento da

extinção de punibilidade por prescrição, em razão da desclassificação do crime de maus

tratos qualificado pelo resultado morte para maus tratos simples. A Segunda Câmara

Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará considerou não existirem indícios

suficientes da morte em razão única e exclusiva dos maus tratos, declarando as perícias

e necropsias realizadas no cadáver de Damião Ximenes como inconclusivas no tocante

às lesões que por ele teriam sido sofridas, desclassificando o crime para maus tratos

 14

simples. É o que se verifica no excerto de acórdão publicado no Diário de Justiça do

Ceará24:

EMENTA: APELAÇÃO CRIMINAL. DELITO DE MAUS TRATOS QUALIFICADO PELO RESULTADO MORTE. AUSÊNCIA DE COMPROVAÇÃO DO NEXO DE CAUSALIDADE ENTRE A CONDUTA DOS ACUSADOS E O ÓBITO DA VÍTIMA. DESCLASSIFICAÇÃO PARA O CRIME DE MAUS TRATOS SIMPLES. PRESCRIÇÃO EM ABSTRATO. EXTINÇÃO DA PUNIBILIDADE. 1. Inexistindo provas suficientes, imperiosa se torna a desclassificação do crime de maus-tratos qualificado pelo resultado morte (art. 136, § 2º, do CPB) para sua forma simples (art. 136, caput, do CPB), em virtude da ausência de alicerce probatório capaz de evidenciar o nexo de causalidade entre as condutas dolosas (expor a perigo a vida ou a saúde) e o resultado culposo (óbito). 2. As duas necropsias realizadas no ofendido (uma delas pós-exumática) não foram capazes de atestar a causa mortis, constando das conclusões dos laudos ‘’(...) tratar-se de morte real de causa indeterminada (...)’. O auto de exame cadavérico pós-exumático chega mesmo a descrever que "(...) o crânio apresentava integridade de todos os seus ossos. Os demais ossos deste corpo também não apresentam fraturas (...)’. 3. Outrossim, tendo em vista o frágil estado de saúde do ofendido, que, antes da entrada na casa de repouso, já não vinha se alimentando direito e nem dormindo ou tomando sua medicação, existe a possibilidade considerável da vítima ter falecido por enfermidade pré-existente ao internamento, o que representaria concausa absoluta ou relativamente independente (art. 13, caput e § 1º, do CPB), excluindo o nexo de causalidade da conduta dos acusados em relação ao óbito. 4. A indeterminação pericial da causa da morte e a possibilidade concreta da existência de concausa independente, envolvendo circunstâncias que não estavam na linha de desdobramento físico das ações e omissões imputadas aos acusados, por força do princípio do ‘in dubio pro reo’, excluem a responsabilidade pelo resultado, restando somente a responsabilização pelos pelos atos praticados. 5. Operada a desclassificação, há que se reconhecer restar configurada, nos termos do art. 109, inciso V, da Lei Penal Codificada, a prescrição em abstrato da pretensão punitiva, uma vez que a pena máxima prevista para o delito do art. 136, caput, do CPB, é de 01 (um) ano de detenção. É que, da data do recebimento da denúncia (07/04/2000) até a data da publicação da sentença (29/06/2009), transcorreram mais de 04 (quatro) anos. 6. Apelo parcialmente provido, todavia, reconhecendo-se de ofício a extinção da

                                                                                                                       24 DJCE, 30/11/2012, Caderno 2 – Justiça, pág. 64.

 15

punibilidade. ACÓRDÃO: Vistos, relatados e discutidos os presentes autos de apelação-crime, acorda a Turma Julgadora da Primeira Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado do Ceará, sem divergência de votos, em conhecer do recurso, por ser próprio e tempestivo, para dar-lhe parcial provimento, reconhecendo-se de ofício a extinção da punibilidade, tudo nos termos do voto do relator. (grifo nosso, supressão no original)

É de se concluir, portanto, que, apesar de terminadas as investigações e a

apuração de responsabilidade, a sentença da Corte não foi capaz de garantir a

condenação penal dos responsáveis pela violação de forma integral, nem mesmo

conseguiu concretizar, em prazo razoável, a conclusão das investigações acerca da

responsabilidade pelos fatos. Ademais, o papel supervisional da Corte se restringiu a

três resoluções25 de avaliação das medidas adotadas pelo Estado e cumprimento ou não

das reparações, realizados com base em troca de ofícios com o Brasil acerca do

andamento dos processos judiciais bem como sobre o pagamento das reparações

pecuniárias.

1.2.2 Caso Nogueira de Carvalho e outro

Em 11 de dezembro de 1997 a CIDH recebeu a denúncia de nº 12.508, que seria

submetida à jurisdição da Corte IDH em 13 de janeiro de 2005, originária de petição

interposta por três grupos de defesa dos direitos humanos, de âmbito nacional e

internacional26.

A causa versou sobre a responsabilidade do Estado Brasileiro pela morte do

advogado Gilson Nogueira de Carvalho, que militava no Rio Grande do Norte contra a

impunidade, especialmente na denúncia das atividades criminais de grupos de

extermínio formados por policiais militares.

Ainda perante a Comissão, houve apenas uma comunicação do Estado

Brasileiro, informando que o processo penal originário se encontrava em fase de

pronúncia. Nos próximos anos de tramitação da petição, porém, não houve respostas e a

CIDH considerou o esgotamento implícito dos recursos internos quando da submissão

da causa à Corte IDH.

                                                                                                                       25 Em 02 de maio de 2008, em 21 de setembro de 2009 e em 17 de maio de 2010. 26 Centro de Direitos Humanos e Memória Popular de Natal (CDHMP), Holocaust Human Project e Group of International Human Rights Law Students. O caso foi iniciado pelos pais da vítima, com o auxílio da Justiça Global.

 16

Apesar do acervo probatório, sendo esse basicamente testemunhal, a Corte

considerou-o limitado, decidindo pela não comprovação da responsabilidade do Estado

Brasileiro por violação aos artigos 8 e 25 da Convenção (garantias judiciais e proteção

judicial), arquivando a demanda.

1.2.3 Caso Escher e outros

Em 20 de dezembro de 2007 foi recebida pela Corte a demanda originária da

Comissão, de número 12.353, iniciada em 26 de dezembro de 2000, referente ao caso

denominado Escher e outros vs. Brasil. A petição que tramitou perante a Comissão teve

sua origem graças às organizações Cooperativa Agrícola de Conciliação Avante Ltda. e

Associação Comunitária de Trabalhadores Rurais. Posteriormente entraram na causa

diversas entidades como representantes das vítimas, incluindo-se o Movimento dos

Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e novamente a Justiça Global. A causa foi

julgada em definitivo na data de 06 de julho de 2009.

O caso foi submetido à Corte especialmente por se tratar de “oportunidade

valiosa para o aperfeiçoamento da jurisprudência interamericana sobre a tutela do

direito à privacidade e do direito à liberdade de associação, assim como os limites do

exercício do poder público”27, versando sobre as garantias judiciais (art. 8.1), proteção

da honra e da dignidade (art. 11), liberdade de associação (art. 16) e proteção judicial

(art. 25), além das violações à obrigação de respeito ao Pacto de San José.

A causa versou sobre a interceptação ilegal de linhas telefônicas dos dirigentes

das associações conectadas ao MST, fundada em decisão judicial desfundamentada e a

requerimento de autoridades policiais, cujas gravações posteriormente foram fornecidas

à imprensa brasileira e reproduzidas por esta em meio escrito e audiovisual.

A Corte decidiu pelo rol de vítimas como composto por Arlei José Escher,

Dalton Luciano de Vargas, Delfino José Becker, Pedro Alves Cabral e Celso Aghinoni,

alguns deles ouvidos na ocasião da audiência pública realizada em 2008.

Em referência ao art. 11 da Convenção (proteção da honra e dignidade),

considerou-se, conforme precedentes da Corte, o sigilo de ligações telefônicas como

                                                                                                                       27 Corte Interamericana de Direitos Humanos. Caso Escher e outros versus Brasil. Sentença de 06 de julho de 2009. Disponível em <http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/ articulos/seriec_200_por.pdf>. Acesso em 04 fev. 2013.

 17

uma derivação do próprio direito à vida privada consignado no dispositivo

convencional, asseverando:

[...] o artigo 11 aplica-se às conversas telefônicas independentemente do conteúdo destas, inclusive, pode compreender tanto as operações técnicas dirigidas a registrar esse conteúdo, mediante sua gravação e escuta, como qualquer outro elemento do processo comunicativo, como, por exemplo, o destino das chamadas que saem ou a origem daquelas que ingressam; a identidade dos interlocutores; a frequência, hora e duração das chamadas; ou aspectos que podem ser constatados sem necessidade de registrar o conteúdo da chamada através da gravação das conversas. Finalmente, a proteção à vida privada se concretiza com o direito a que sujeitos distintos dos interlocutores não conheçam ilicitamente o conteúdo das conversas telefônicas ou de outros aspectos, como os já elencados, próprios do processo de comunicação.”28 (grifo nosso)

Avançou, ainda, no sentido da proteção à honra e reputação do indivíduo, cujo

teor valorativo decorre diretamente de sua conduta perante a sociedade.

Em extensa análise do ordenamento jurídico brasileiro, especialmente quanto às

normas aplicáveis à interceptação telefônica, a Corte considerou que não foram

observados os requisitos constantes do próprio ordenamento interno brasileiro para a

instauração da vigilância questionada, qualificando a ilegalidade da mesma, concluindo

pela violação, pelo Brasil, do direito à vida privada das vítimas. Decidiu, ainda, que em

razão da divulgação dos resultados das escutas, operou-se também violação aos direitos

à vida privada, à honra e à reputação das vítimas.

A respeito do direito à liberdade de associação, a Corte decidiu no sentido de a

interceptação telefônica realizada sobre as ligações das vítimas interferiram diretamente

em seu direito de associar-se, na medida em que a divulgação de seu teor afetou as

atividades desenvolvidas pelas instituições que integravam, impingindo-lhes grande

temor.

Quanto às questões judiciais, decidiu a Corte pela procedência das violações no

âmbito processual penal pela ausência de atuação do Estado Brasileiro com a devida

diligência nos atos investigativos. No mesmo sentido, quanto aos procedimentos

administrativos, considerou a inexistência de atuação do Estado no sentido da

                                                                                                                       28 Sentença, § 118.

 18

responsabilidade administrativa pela fundamentação/justificação das medidas

determinantes à instalação das escutas telefônicas. Quanto às ações civis e ao mandado

de segurança que versaram sobre os fatos, não considerou haver nenhuma violação.

Ainda na análise de pedidos, decidiu a Corte pela inexistência de violação à

cláusula federal (art. 28 da Convenção) em relação aos artigos 1 e 2 do mesmo tratado.

Assim, determinadas as violações, procedeu o Tribunal à fixação das reparações

dos danos por elas causados.

A respeito do dano material, não foram fixados valores reparativos por ausência

de prova de prejuízos às associações envolvidas nos fatos, não constando dos autos

estimativa de valores prejudicados em razão da divulgação do conteúdo da

interceptação.

A título de dano imaterial, em razão das circunstâncias do caso, foi fixado o

valor de U$S 20.000,00 para cada uma das vítimas, a ser pago diretamente às mesmas e

em prazo de um ano. Novamente, como no caso Ximenes Lopes, considerou-se a

sentença uma forma de reparação per se.

Como garantias de não repetição, foram fixadas as seguintes medidas:

(i) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande

circulação bem como jornal de grande circulação no Paraná, por uma vez no

prazo de seis meses, bem como em site web dentro do prazo de dois meses;

(ii) Reconhecimento público da responsabilidade internacional;

(iii) Dever de investigar os fatos que resultaram na causa.

A demanda da Comissão de revogação da Lei nº 15.662/07 (do Estado do

Paraná) foi indeferida por ter a Corte a considerado inadequada à reparação da causa,

assim como o pleito de capacitação das autoridades investigativas brasileiras na medida

em que já existente programa com mesma finalidade.

A título de ressarcimento de custas processuais, fixou-se o valor de U$S

10.000,00, pago a cada vítima.

Em referência ao cumprimento das obrigações estabelecidas pela sentença, o

Estado Brasileiro realizou o pagamento às vítimas da causa através do Decreto nº 7.158

de 20 de abril de 2010, dentro do prazo de um ano fixado na decisão. A publicação da

sentença se deu no jornal “O Globo” de 23 de julho de 2010, no jornal “Correio

Paranaense” de 10 de agosto de 2010 e no Diário Oficial de 27 de setembro de 2010.

A respeito das investigações, alegou o Estado Brasileiro a ocorrência da

prescrição dos fatos, argumento acatado pela Corte. A supervisão, assim, foi concluída

 19

em 19 de junho de 2012, em sua segunda resolução sobre o caso, três anos após o

sentenciamento.

Evidentemente que a Corte não pode, sob pena de violar as próprias garantias da

Convenção, coagir o Estado a cumprir investigação de fato já prescrito, mas essa

questão é mais uma demonstração da fragilidade do sistema e sua completa dependência

aos procedimentos internos. No caso, resta cristalina a não concretização das

investigações e consequente ausência de desfecho, às vítimas, acerca da verdade dos

fatos, pela própria morosidade da Justiça brasileira. Pode-se considerar, dessa forma,

que apesar de dada por concluída a supervisão da sentença, essa não alcançou sua

máxima efetividade.

1.2.4 Caso Garibaldi

Na data de 06 de maio de 2003 foi recebida, pela Comissão, a denúncia de nº

12.478, versando sobre as violações de direito praticadas pelo Brasil em face das

investigações do assassinato de Sétimo Garibaldi, no ano de 1998. A demanda foi

submetida à Corte em 24 de dezembro de 2007 e teve sua sentença prolatada quase dois

anos depois, em 23 de setembro de 2009. A petição foi originada através da

representação de diversas organizações, a exemplo da Justiça Global, Rede Nacional de

Advogados e Advogadas Populares e MST.

Sétimo Garibaldi, que participava de uma ocupação do MST em uma

propriedade no interior do Estado do Paraná, faleceu em decorrência de ataque ao

acampamento onde se encontrava.

Pela Comissão, foram alegadas as violações aos artigos 8 (garantias judiciai) e

25 da Convenção (proteção judicial), incluindo ainda a violação ao art. 1º na medida do

descumprimento de observância dos direitos consagrados em seu bojo.

A respeito da violação às garantias judiciais, decidiu a Corte pela sua

procedência, na medida em que o Estado não cumpriu com diligência seu dever

investigativo, concluindo que o lapso de mais de cinco anos de investigação em âmbito

interno ultrapassou excessivamente o prazo razoável, caracterizando uma denegação de

justiça aos familiares da vítima29 e a consequente responsabilidade pela violação dos

direitos constantes dos artigos 8.1 e 25.1 da Convenção.

                                                                                                                       29 Sentença, § 139.

 20

Quanto à violação à cláusula federal (art. 28) alegada pela Comissão, esta foi

denegada na mesma linha do caso Escher e outros.

A título de reparação, no tocante às medidas de satisfação e garantias de não

repetição, a Corte determinou ao Brasil:

(i) Publicação da sentença em diário oficial ou outro jornal de grande

circulação bem como jornal de grande circulação no Paraná, por uma vez no

prazo de seis meses, bem como em site web dentro do prazo de dois meses,

pelo período de um ano;

(ii) Dever de investigar os fatos que resultaram na causa e proceder

administrativamente para investigação e sanção das faltas possivelmente

cometidas pelos agentes legais.

Foram negados os requerimentos da Comissão e dos representantes acerca do

reconhecimento público da responsabilidade internacional por não haver violação

aplicável às vítimas, assim como o pedido de revogação da Lei nº 15.662/0730 (do

Estado do Paraná), por não ser demonstrada a violação aos preceitos da Convenção.

Também foi denegado o pedido de cumprimento ao art. 10 do Código de Processo Penal

Brasileiro, na medida em que a Corte não pode influenciar em investigações das quais

não tenha conhecimento. Por fim, quanto às outras medidas de reparação solicitadas à

Corte, referentes a uma política para os trabalhadores sem terra, estas também foram

denegadas pelo mesmo motivo de se encontrarem além da esfera de avaliação de mérito

do Tribunal.

A título de dano material e imaterial foram fixados os seguintes valores:

(i) U$S 1.000,00 em benefício de Iracema Garibaldi, a título de danos materiais

sofridos em razão dos gastos com a busca de apoio de seus familiares ao

caso;

(ii) U$S 50.000,00 em favor de Iracema Garibaldi pelo sofrimento psicológico,

angústia e incerteza, sofridos pela negação de justiça pelo homicídio de

Sétimo Garibaldi;

(iii) U$S 20.000,00 em favor de cada um dos seis filhos de Sétimo e Iracema

Garibaldi, pelos mesmos motivos explanados no item (ii).

                                                                                                                       30 Saliente-se que a Lei nº 15.662/07 promulgada pelo Estado do Paraná também foi suscitada no caso Escher e outros. Essa lei concedeu, à Juíza Elisabeth Khater, o status de cidadã honorária do Estado do Paraná.

 21

Como custas e gastos, foram estabelecidos U$S 8.000,00 a serem pagos a

Iracema Garibaldi, englobando possíveis gastos futuros derivados da causa.

O pagamento dos valores reparatórios e de custas foi efetuado através do

Decreto nº 7.307 de 22 de setembro de 2010, atualizado em reais, na véspera de

completar-se um ano da sentença da Corte.

Quanto às medidas de investigação, conforme resolução de supervisão de

sentença datada de 20 de fevereiro de 2010 e, portanto quase três anos após a mesma,

reiterou a necessidade do Estado Brasileiro em “conduzir eficazmente e dentro de um

prazo razoável o inquérito e qualquer processo que chegar a abrir, como consequência

deste, para identificar, julgar e, eventualmente, sancionar os autores da morte do senhor

Garibaldi [...]”, ao verificar que as medidas investigativas ainda encontravam-se

insuficientes à solução da causa. Desde então, porém, não foi efetivada qualquer

resolução nova acerca da causa, permanecendo a mesma supervisionada pelo

descumprimento acima relatado.

Atualmente, a causa penal acerca da morte de Sétimo Garibaldi encontra-se,

ainda, à espera de solução perante o Superior Tribunal de Justiça, em grau de Recurso

Especial31, relativamente à discussão do trancamento da ação promovida por habeas

corpus pela defesa do acusado, ainda no ano de 2012.

1.2.5 Caso Gomes Lund e outros

Talvez a principal causa brasileira já tramitada perante a Corte Interamericana

seja o caso Gomes Lund e outros, mais conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Ao

contrário das demais causas sentenciadas brasileiras, a principal matéria em discussão

não era a violação de garantias judiciais e proteção judicial, apesar de também

constantes do rol de direitos não observados pelo Estado Brasileiro. Em contrário, o

destaque da causa se deve essencialmente por trazer à tona a discussão sobre os atos

cometidos pelo Estado Brasileiro durante o período da Ditadura Militar, bem como

discutir a Lei de Anistia32, sendo o primeiro caso, na Corte, a avaliar as violações de

direitos ocorridas nesse período, bem como a reconhecê-las como responsabilidade do

Estado.

                                                                                                                       31 Desde 24 de dezembro de 2012 o Recurso Especial de nº 1351177 encontra-se concluso ao relator. 32 Lei 6.683 de 28 de agosto de 1979.

 22

O caso em comento iniciou-se em 06 de março de 2001, sob petição (de nº

11.552) de duas reconhecidas organizações de defesa dos direitos humanos: CEJIL

(cuja sigla em português é traduzida para Centro pela Justiça e o Direito Internacional) e

Human Rights Watch, especificamente seu escritório pertinente às Américas. A

submissão à Corte, entretanto, ocorreu apenas em 26 de março de 2009.

Requereu, a Comissão, o reconhecimento de uma série de violações a direitos

pelo Estado Brasileiro em referência às operações do Exército para combate à Guerrilha

do Araguaia. Consoante consta do parágrafo de nº 2 da sentença:

[...] responsabilidade [do Estado] pela detenção arbitrária, tortura e desaparecimento forçado de 70 pessoas, entre membros do Partido Comunista do Brasil […] e camponeses da região, […] resultado de operações do Exército brasileiro empreendidas entre 1972 e 1975 com o objetivo de erradicar a Guerrilha do Araguaia, no contexto da ditadura militar do Brasil (1964–1985)”. A Comissão também submeteu o caso à Corte porque, “em virtude da Lei No. 6.683/79 […], o Estado não realizou uma investigação penal com a finalidade de julgar e punir as pessoas responsáveis pelo desaparecimento forçado de 70 vítimas e a execução extrajudicial de Maria Lúcia Petit da Silva […]; porque os recursos judiciais de natureza civil, com vistas a obter informações sobre os fatos, não foram efetivos para assegurar aos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada o acesso a informação sobre a Guerrilha do Araguaia; porque as medidas legislativas e administrativas adotadas pelo Estado restringiram indevidamente o direito de acesso à informação pelos familiares; e porque o desaparecimento das vítimas, a execução de Maria Lúcia Petit da Silva, a impunidade dos responsáveis e a falta de acesso à justiça, à verdade e à informação afetaram negativamente a integridade pessoal dos familiares dos desaparecidos e da pessoa executada”. A Comissão solicitou ao Tribunal que declare que o Estado é responsável pela violação dos direitos estabelecidos nos artigos 3 (direito ao reconhecimento da personalidade jurídica), 4 (direito à vida), 5 (direito à integridade pessoal), 7 (direito à liberdade pessoal), 8 (garantias judiciais), 13 (liberdade de pensamento e expressão) e 25 (proteção judicial), da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em conexão com as obrigações previstas nos artigos 1.1 (obrigação geral de respeito e garantia dos direitos humanos) e 2 (dever de adotar disposições de direito interno) da mesma Convenção. (grifo nosso)

A primeira seção da sentença dedicou-se aos direitos de reconhecimento de

personalidade jurídica, à vida, à integridade e à liberdade pessoais, combinadas à

 23

obrigação geral do Estado de respeito aos direitos convencionais. A Comissão alegou

que o desaparecimento forçado é crime contra a humanidade e o Estado Brasileiro agiu

deliberadamente para que ocorresse o desencontro de informações para não-localização

das vítimas. O Brasil não retrucou sua responsabilidade, reconhecendo historicamente a

ocorrência dos fatos.

Traçando um panorama dos desaparecimentos forçados durante a ditatura militar

brasileira, bem como sobre a atuação da Guerrilha do Araguaia e as ações do governo

brasileiro durante e após os fatos, a Corte concluiu pela responsabilidade do Estado

Brasileiro pela violação aos direitos supramencionados em razão dos desaparecimentos

forçados.

Passando-se à análise da violação às garantias e proteção judiciais, a Corte

analisou a causa sob a ótica da Lei de Anistia (Lei nº 6.683/1979)33. A Comissão

asseverou que a investigação e punição pelos desaparecimentos forçados foram

impedidas em função de tal Lei e que esta não poderia, em nenhuma medida, impedir

que o Estado cumprisse a obrigação de processamento de responsáveis por violações

aos direitos humanos. A Lei foi defendida pelo Estado Brasileiro em razão da

bilateralidade de sua anistia. A Corte concluiu, em consonância à sua ampla

jurisprudência sobre análises análogas de outros Estados34, que devido à aplicação e

interpretação da Lei de Anistia, estas sem efeitos jurídicos, o Brasil violou os direitos

contidos no art. 8 e 25 da Convenção, bem como seu dever de adequar a sua legislação à

mesmo, proporcionando a ausência de investigação, processamento e punição dos fatos.

Quanto à liberdade de pensamento e de expressão, a Comissão sustentou a

existência de restrição indevida ao direito de acesso à informação, considerando o

desinteresse do Estado em fornecer informação acerca das violações de direitos

humanos por ele cometidas, entre as circunstâncias das ações promovidas pelos

familiares dos integrantes da Guerrilha e a constante recusa de entrega de documentos

esclarecedores.

A respeito da integridade pessoal, definiu-se a existência de violação à

integridade das vítimas e de parte de seus familiares.

                                                                                                                       33 Em 29 de abril de 2010, o STF, no julgamento da ADPF nº 153, decidiu pela recepção da Lei de

Anistia pela Constituição Federal de 1988, ressalvando-se “o desembaraço dos mecanismos que ainda dificultam o conhecimento do quanto ocorreu no Brasil durante as décadas sombrias da ditadura”. Disponível em <http://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/ADPF153.pdf>. Acesso em 20 mar. 2013. 34 A exemplo de Argentina, Chile etc. (casos Barrios Altos, Almonacid Arellano e Goiburú, dentre outros).

 24

No tocante às reparações estabelecidas, em face à sua quantidade, cabe

transcrever parte da sentença que as fixou e condensou:

8. Esta Sentença constitui per se uma forma de reparação. 9. O Estado deve conduzir eficazmente, perante a jurisdição ordinária, a investigação penal dos fatos do presente caso a fim de esclarecê-los, determinar as correspondentes responsabilidades penais e aplicar efetivamente as sanções e consequências que a lei preveja, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 256 e 257 da presente Sentença. 10. O Estado deve realizar todos os esforços para determinar o paradeiro das vítimas desaparecidas e, se for o caso, identificar e entregar os restos mortais a seus familiares, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 261 a 263 da presente Sentencia. 11. O Estado deve oferecer o tratamento médico e psicológico ou psiquiátrico que as vítimas requeiram e, se for o caso, pagar o montante estabelecido, em conformidade com o estabelecido nos parágrafos 267 a 269 da presente Sentença. 12. O Estado deve realizar as publicações ordenadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 273 da presente Sentença. 13. O Estado deve realizar um ato público de reconhecimento de responsabilidade internacional a respeito dos fatos do presente caso, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 277 da presente Sentença. 14. O Estado deve continuar com as ações desenvolvidas em matéria de capacitação e implementar, em um prazo razoável, um programa ou curso permanente e obrigatório sobre direitos humanos, dirigido a todos os níveis hierárquicos das Forças Armadas, em conformidade com o estabelecido no parágrafo 283 da presente Sentença. 15. O Estado deve adotar, em um prazo razoável, as medidas que sejam necessárias para tipificar o delito de desaparecimento forçado de pessoas em conformidade com os parâmetros interamericanos, nos termos do estabelecido no parágrafo 287 da presente Sentença. Enquanto cumpre com esta medida, o Estado deve adotar todas aquelas ações que garantam o efetivo julgamento, e se for o caso, a punição em relação aos fatos constitutivos de desaparecimento forçado através dos mecanismos existentes no direito interno. 16. O Estado deve continuar desenvolvendo as iniciativas de busca, sistematização e publicação de toda a informação sobre a Guerrilha do Araguaia, assim como da informação relativa a violações de direitos humanos ocorridas durante o regime militar, garantindo o acesso à mesma nos termos do parágrafo 292 da presente Sentença. 17. O Estado deve pagar as quantias fixadas nos parágrafos 304, 311 e 318 da presente Sentença, a título de indenização

 25

por dano material, por dano imaterial e por restituição de custas e gastos, nos termos dos parágrafos 302 a 305, 309 a 312 e 316 a 324 desta decisão. 18. O Estado deve realizar uma convocatória, em, ao menos, um jornal de circulação nacional e um da região onde ocorreram os fatos do presente caso, ou mediante outra modalidade adequada, para que, por um período de 24 meses, contado a partir da notificação da Sentença, os familiares das pessoas indicadas no parágrafo 119 da presente Sentença aportem prova suficiente que permita ao Estado identificá-los e, conforme o caso, considerá-los vítimas nos termos da Lei No. 9.140/95 e desta Sentença, nos termos do parágrafo 120 e 252 da mesma. 19. O Estado deve permitir que, por um prazo de seis meses, contado a partir da notificação da presente Sentença, os familiares dos senhores Francisco Manoel Chaves, Pedro Matias de Oliveira (“Pedro Carretel”), Hélio Luiz Navarro de Magalhães e Pedro Alexandrino de Oliveira Filho, possam apresentar-lhe, se assim desejarem, suas solicitações de indenização utilizando os critérios e mecanismos estabelecidos no direito interno pela Lei No. 9.140/95, conforme os termos do parágrafo 303 da presente Sentença.

Diante da inexistência, ainda, de resolução relativa ao cumprimento das

reparações supra transcritas, não será possível vencer alguns pontos.

Como consequência dessa causa, em 18 de novembro de 2011 foram

sancionadas as Leis 12.527 e 12.528. A primeira, com a finalidade de regulamentar o

acesso à informação constante de órgãos públicos. A segunda, relativa à criação da

Comissão da Verdade, que perpassa diretamente a obrigação do Estado Brasileiro em

investigar os fatos e atribuir responsabilidade pelos desaparecimentos forçados da

Guerrilha do Araguaia.

A Comissão da Verdade tem por objetivo esclarecer os fatos relacionados aos

crimes praticados contra militantes sob a vigência da Ditadura Militar no Brasil. Mais

especificamente quanto ao Caso Gomes Lund, vem atuando com a intenção de

identificar as vítimas (sua localização e também de seus restos mortais) dos

desaparecimentos forçados da Guerrilha do Araguaia. Atua, de mesmo modo, na

identificação dos agentes causadores das violações. Também a fim de localizar os

corpos, foi criado o Grupo de Trabalho Tocantins, posteriormente renomeado para

Grupo de Trabalho Araguaia, que trabalha com a análise de documentos públicos e

expedições de busca.

 26

Em relatório submetido à Corte e efetuado pela Procuradoria Geral do Brasil35,

também foram narradas diversas ações judiciais (ressaltem-se as ações civis públicas

promovidas pelo Ministério Público) que visam à responsabilização pelos fatos e

solicitação de indenização por parte dos familiares das vítimas.

A respeito do tratamento médico e psicológico, o Brasil alegou a cobertura do

Serviço Único de Saúde (SUS) aos familiares das vítimas.

Já no tocante às publicações, conforme o relatório acima citado, ambas foram

realizadas e a sentença também foi disponibilizada on-line em site específico.

A sentença, com os nomes dos capítulos e subtítulos – sem as notas de rodapé –, e sua parte resolutiva foi publicada integralmente no Diário Oficial da União em 15 de junho de 2011. O resumo da sentença foi publicado no jornal O Globo em 15 de junho de 2011.

A pedido dos familiares das vítimas, o ato público de responsabilização não foi

efetivado pelo Estado Brasileiro.

A título da obrigação de instituição de programa de direitos humanos nas forças

armadas, o mesmo foi elaborado, mas ainda encontra-se em fase inicial perante o

Ministério da Defesa.

Por fim, quanto à tipificação do crime de desaparecimento forçado, foram

demonstradas as tramitações de dois projetos de Lei e da Convenção Americana sobre o

Desaparecimento Forçado de Pessoas. Não há, ainda, porém, uma definição concreta do

tipo penal nem mesmo sua incorporação definitiva ao direito interno.

2 A (IN)EFICÁCIA DA IMPLEMENTAÇÃO DAS SENTENÇAS DA CORTE

IDH NO BRASIL: ANÁLISE CRÍTICA

Como visto caso a caso em capítulo anterior, as sentenças da Corte

Interamericana já proferidas contra o Estado Brasileiro não podem ser consideradas

como efetiva e integralmente cumpridas, por diversos motivos. Saliente-se que o

cumprimento integral da sentença é dever do Estado perante o Sistema Interamericano,

conforme disposição expressa do art. 68.1 da Convenção, apesar de os meios internos

                                                                                                                       35 Disponível em <http://2ccr.pgr.mpf.gov.br/coordenacao/grupos-de-trabalho/justica-de-transicao/ relatorios-1/Escrito%2014%20de%20dezembro%20de%202011.pdf>. Acesso em 20 mar. 2013.

 27

de sua concretização serem estabelecidos com certa liberdade pelo Estado

responsabilizado.

A exemplo do Caso Ximenes Lopes, cuja conclusão ocorreu após seis anos de

sentenciamento pela Corte e com a finalização das investigações penais no sentido de

reconhecimento da prescrição, não há como se reconhecer uma contribuição positiva do

Sistema Interamericano para o resultado definitivo nesse espeque. Evidencia-se, de

pronto, que a morosidade do sistema processual brasileiro continuou prevalecendo

mesmo após a responsabilização do Estado.

O mesmo se pode afirmar quanto ao caso Escher, cujo resultado definitivo foi

apenas verificável em 2012, três anos após a sentença da Corte, e que culminou com o

reconhecimento da prescrição, impedindo a própria reabertura da investigação dos fatos.

Também há de se destacar que o caso Garibaldi se encontra ainda sem desfecho,

permanecendo a supervisão de sua sentença em aberto, justamente em relação ao não

cumprimento integral da obrigação de investigação dos fatos, mesmo após três anos de

sentenciamento.

Mesmo quanto ao caso Gomes Lund e outros, com pouco mais de dois anos de

sentenciamento, este não foi, ainda, sequer submetido ao sistema de supervisão de

sentenças, não constando quaisquer relatórios ou resoluções da Corte a seu respeito.

Inicialmente, em se tratando de um país marcado pelo sistema judiciário pouco

eficiente36, e em um contexto de causas submetidas à Corte relativas essencialmente às

garantias judiciais, não se pode falar em efetividade de decisões. O Brasil,

reconhecidamente marcado por uma estrutura judiciária deficiente, abriga uma infeliz

tradição de violação ao princípio da razoável duração do processo, destacando-se

principalmente a lentidão de investigações penais.

A simples determinação sentencial, aliada a um sistema supervisional das

medidas ainda fragilizado, não possui o condão de impulsionar o funcionamento do

processo judiciário brasileiro, não surtindo os efeitos esperados dentro do prazo

                                                                                                                       36 A morosidade do Judiciário brasileiro traduz-se na insatisfação de seus protagonistas. Em pesquisa de satisfação realizada pelo CNJ no ano de 2011, com a participação de mais de dezoito mil usuários da Justiça dentre partes e advogados e em todo o Brasil, 56,7% dos entrevistados afirmou que os processos nunca são concluídos no prazo previsto pela Legislação, enquanto 30,3% afirmaram que em poucas vezes isso ocorria. A insatisfação evidencia-se, portanto, em alcance de mais de 86% dos usuários dos sistemas judiciários brasileiros. Na mesma pesquisa, em relação aos magistrados, dos 803 profissionais participantes, 80,3% deles respondeu que o volume de trabalho atribuído não permite a conclusão dos processos no prazo legal. Dados do CNJ. Disponível em < http://www.cnj.jus.br/gestao-e-planejamento/gestao-e-planejamento-do-judiciario/pesquisa-de-satisfacao-e-clima-organizacional>. Acesso em 19 mar. 2013.

 28

esperado, o prazo “razoável”. Ainda que encerrados os procedimento de supervisão de

sentença, pela Corte, com o reconhecimento de cumprimento das medidas, é essencial

distinguir o cumprimento “possível” do cumprimento “devido”.

As determinações da Corte em face da República Brasileira visam à reparação

dos danos de forma ampla, atingindo diretamente a reintegração da dignidade da vítima

e o direito de conhecimento da verdade dos fatos. Não se busca uma condenação que

ultrapasse os limites do devido processo legal, mas uma verdadeira investigação que

resulte na descoberta da verdade da causa, com atribuição da responsabilidade

individual de agentes e/ou pessoas envolvidas.

Naturalmente, a condenação penal e/ou administrativa aplicáveis serão

decorrentes da investigação adequada, na medida em que conhecidos os fatos e

determinada a culpabilidade dos sujeitos ativos das violações. Exigir-se a condenação,

porém, não contempla a análise da causa sob o prisma do devido processo legal.

Assim, permanece a Corte refém da concretização de suas imposições em

âmbito interno, dependente da transformação de um sistema processual lento em um

sistema obediente ao princípio do processo de duração razoável. E isso não se verifica,

pela própria evidência dos casos de responsabilização sofridos pelo Brasil.

A cultura jurídica brasileira de supremacia constitucional ainda apresenta

entraves à evolução da integração ao Sistema Interamericano e demais sistemas

internacionais, pouco valorizando a estrutura supranacional normativa e

jurisdicionalmente.

A mera existência da obrigatoriedade de implementação das sentenças da Corte

IDH – decorrente da submissão voluntária à sua jurisdição – não possui “força” apta a

combater, por si só, essa cultura tão enraizada na sociedade brasileira,

consequentemente não garantindo sua efetividade plena.

O papel do Sistema Interamericano, todavia, não é de todo inócuo perante o

Estado Brasileiro. Evidentemente que as recomendações da Comissão e decisões da

Corte encontram obstáculos graves à sua concretização no plano da realidade fática,

mas o mero processamento das demandas possui um papel educativo fundamental para

a própria transformação dessa “resistência” da ordem jurídica brasileira à intervenção

internacional.

E, ressalte-se, não apenas um papel educativo, mas também uma influência

possivelmente formadora de jurisprudência interna consoante aos julgados da Corte,

resultante na internalização gradual do Sistema.

 29

A maior dificuldade das mudanças graduais é, por essa razão, a satisfação das

causas já julgadas.

A necessidade de uma política de supervisão de sentenças mais ativa é também

responsável por parte dessa morosidade no cumprimento de decisões. Das causas

narradas no tópico anterior, demonstrou-se uma média de duas resoluções de supervisão

por causa, em lapsos de duração de dois a seis anos, extremamente intercalados.

A ausência de uma política de sanções ao descumprimento de sentenças e

resoluções também se revela fundamental para o desvalor das mesmas pelo Estado-

Parte, notadamente o Brasil. Em um sistema pouco tradicional de integração

supranacional como o americano, o estabelecimento de sanções tem papel educativo

fundamental para o enraizamento de seus preceitos.

Ainda que a sanção apresente-se em perspectiva, e não concretamente, a sua

simples previsão já possui caráter iminentemente preventivo às condutas violadoras,

uma vez que a possibilidade de punição atua sobre o Estado como forma de influência

em suas decisões políticas.

2.1 Soluções ao descumprimento de sentenças

Como já salientado, o Sistema Interamericano necessita estabelecer mecanismos

mais concretos de atuação quanto ao descumprimento das sentenças da Corte respectiva.

Considerando-se que, para a sentença ser proferida, na maior parte dos casos, já

houve a tramitação do processo perante a Comissão e presume-se o descumprimento das

recomendações por ela emitidas, a desobediência às obrigações sentenciais caracteriza

uma dupla falta de compromisso do Estado para com seus deveres de proteção aos

direitos humanos.

A Prof. Flávia Piovesan37, em seu posicionamento do qual compartilhamos,

defende a necessidade de estabelecimento de sanções aos Estados que descumpram as

decisões internacionais, a exemplo de expulsão pela Assembleia Geral da OEA - de

forma análoga à possibilidade de expulsão do Conselho da Europa, no Sistema Europeu.

Há de se mencionar que existe a possibilidade de suspensão do Estado-membro,

aplicável, por analogia, a violações de direitos humanos, vez que já existente quanto a

rupturas da ordem democrática38.

                                                                                                                       37 Ver PIOVESAN, 2012, p. 158. 38 Fundamento presente no art. 9, “a” da Carta da OEA.

 30

É necessário, para isso, promover uma maior integração entre os órgãos políticos

da OEA e os órgãos do Sistema Interamericano, para que aqueles possam adotar

medidas relativas ao cumprimento de disposições da Corte e Comissão, fortalecendo

seu grau de vinculação e consequentemente difundindo o respeito à Convenção no

Continente Americano.

Essa mudança, entretanto, presume uma ampla reforma da própria concepção da

normatividade internacional nas Américas, a fim de superar o posicionamento não-

intervencionista ainda em voga.

As transformações necessárias não envolvem, porém, grandes modificações

normativas, pois a própria Carta da OEA traz previsões genéricas que podem ser

aplicáveis à solução da controvérsia. Caracterizam-se, principalmente, por uma

mudança de atitude dos órgãos envolvidos no Sistema Interamericano, a fim de que

atuem mais concretamente, não apenas quanto à promoção dos direitos humanos, mas

també quanto à condenação de suas violações.

André de Carvalho Ramos39 assevera que, apesar de não constar na Carta da

OEA quaisquer preceitos específicos quanto a sanções por violações de direitos

humanos, esta possui cláusula geral aberta em seu art. 53, que teria o condão de

autorizar esse tipo de conduta por parte da Assembleia Geral da organização:

A Assembleia Geral da OEA é o órgão político final no procedimento de responsabilização internacional do Estado diante de descumprimentos do rol de direitos fundamentais constantes da Declaração Americana de Direitos e Deveres do Homem e a Carta da OEA. Nesse sentido, estabelece o artigo 54, alínea a, que compete à Assembleia Geral ‘decidir a ação e as políticas gerais da Organização’ o que abrange avaliar a situação de respeito aos direitos humanos nos Estados membros. Esse órgão, constituído de representantes de todos os Estados signatários, tem cunho eminentemente político e analisa todas as informações referentes a uma determinada situação de violação de direitos humanos (encaminhadas pelos Estados ou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos) e recomenda a adoção de medidas pelos Estados. No caso de não cumprimento da recomendação da Assembleia Geral, o Estado fere a Carta da OEA, possibilitando a edição de sanções coletivas adiante expostas. Embora o artigo 53 não mencione expressamente o poder de ordenar sanções, incumbiria à Assembleia da OEA, enquanto

                                                                                                                       39 Consultar RAMOS, 2012a, p. 192.

 31

órgão central da organização, propor sanções coletivas pelo descumprimento dos preceitos da OEA, o que no caso, seria o desrespeito aos direitos humanos. [...]

É de se ressaltar que a possibilidade sustentada pelo Professor adequa-se

perfeitamente ao sistema da OEA, vez que a Comissão e a Corte possuem a

incumbência de, anualmente, apresentar seu relatório, à Assembleia Geral, acerca dos

casos por ela tramitados. As violações de direitos humanos nele constantes, porém, não

são devidamente avaliadas e discutidas na esfera política da organização, possibilidade

essa que poderia autorizar, conforme o entendimento acima transcrito, a edição de

medidas sancionatórias com a capacidade de forçar o cumprimento de recomendações e

sentenças.

Essa possibilidade já contempla os Estados não participantes do Pacto de San

José, no tocante às obrigações da Carta da OEA, em referência ao relatório da

Comissão, o que amplia o alcance da proteção dos direitos humanos sem

necessariamente impor o tratado aos países não aderentes. Entretanto, a sua análise

continua precária, havendo apenas uma classificação do acompanhamento das

recomendações em “cumprimento total”, “cumprimento parcial” e “pendente de

cumprimento”.

Assevere-se, ainda, que, no tocante à Corte, a mera “sanção” pela inclusão de

casos não cumpridos no relatório anual da Corte à Assembleia Geral da OEA (art. 65 da

Convenção), também não opera efeitos práticos.

Ademais, há de se questionar a eficácia do modelo bifásico ainda vigente no

Sistema Interamericano, que acaba por redundar em uma demora processual, o que em

muitos casos facilita a ocorrência, em âmbito interno, de prescrições de crimes, por

exemplo. Destaca ainda o proficiente André de Carvalho Ramos40:

A lentidão do processamento dos casos desde a data da petição da vítima de violação aos direitos humanos na Comissão até uma sentença definitiva da Corte Interamericana também chama a atenção. Há casos nos quais a Comissão gasta anos para se convencer sobre a existência ou não de violação de direitos humanos e, então, decidir propor uma ação de responsabilidade internacional contra o Estado pretensamente infrator na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que, por seu turno, também gasta anos para sentenciar o caso.

                                                                                                                       40 Consultar RAMOS, 2012a, p. 246.

 32

No Sistema Interamericano, noutro giro, ao contrário do Europeu, não existe a

instituição supervisora do Comitê de Ministros, capaz de avaliar as violações.

Por fim, frise-se a necessidade de uma efetiva ampliação do rol de legitimação à

propositura de petições perante a Corte IDH, que hoje se restringe à Comissão (a

colegitimação dos Estados-membros nunca foi exercida), exatamente pela necessidade

de processamento prévio da demanda, que em nada auxilia o acesso direto à justiça

internacional por parte dos sujeitos mais interessados em sua concretização: os

cidadãos.

A propositura individual de ações diretamente perante a Corte é peça

fundamental para a difusão do Sistema entre os cidadãos dos países nele envolvidos.

Quanto maior a quantidade de protagonistas do sistema, maior a difusão da informação

acerca de suas decisões e, por consequência, maior a cobrança de cumprimento, vez

que, atingida diretamente a sociedade, esta se posiciona como fiscalizadora e exige

resultados, postura que tende a contaminar as instituições e órgãos nacionais.

Essa ampliação, porém, deve ser acompanhada de ampla reforma estrutural –

inclusive com a atribuição de caráter permanente ao seu funcionamento - a fim de que

se confira à Corte a possibilidade de analisar as demandas recebidas com a devida

diligência e de forma eficaz. Evidente que a popularização do sistema repercutirá

diretamente no aumento de demandas e, para sua análise ser, de fato, veloz e efetiva, a

Corte não poderá funcionar apenas em períodos alternados.

Saliente-se que essa reforma não pode ser desprovida da devida reconfiguração

estrutural do sistema - realizada de forma preparativa - o qual necessita, além de melhor

aparelhamento (envolvendo desde estrutura física a pessoal), de maior divulgação e

facilitação quanto a seu acesso, deixando-se claras as regras de funcionamento, a fim de

que não seja a Corte confundida com uma quarta instância jurisdicional.

Por fim, em um cenário ideal de real atuação positiva e ampla do Sistema

Interamericano, será possível atribuir à Corte maior legitimidade e força decisiva

através da obrigatoriedade não só de adesão à Convenção, como também de

reconhecimento da competência jurisdicional da Corte, atitudes essas que poderão ser

convertidas em condição essencial para integrar e participar da OEA e de seus órgãos

relacionados.

Em face à existência de diversos sistemas de proteção dos direitos humanos, é

importante realizar o estudo de cada um deles, com a finalidade de identificar, na sua

 33

estrutura e funcionamento, soluções ao descumprimento de medidas de

responsabilização internacional, as quais eventualmente possam ser aplicáveis ao

Sistema Interamericano no auxílio ao seu desenvolvimento e na superação do modelo

atualmente falho.

2.1.1 Sistema Europeu

Dentre os sistemas de proteção aos direitos humanos em funcionamento, aquele

mais consolidado e fortalecido, e de forma melhor integrada à sociedade tutelada, é o

existente na Europa.

O Sistema Europeu surge diretamente provocado pelas atrocidades da II Guerra

Mundial, contextualizando-se em um momento de ruptura e consequente reconstrução

dos direitos humanos, alinhando-se à busca pela integração e cooperação entre os países

europeus.

Dentro desse contexto facilitado de atuação, por ser a Europa uma região mais

homogênea e juridicamente integrada, os desafios ao cumprimento dos deveres de

proteção aos direitos humanos reduz-se cabalmente em comparação ao Sistema

Interamericano, atuante sobre região com sérias desigualdades quanto à sua proteção e

mesmo quanto ao regime democrático adotado nos seus países-membro. Atualmente,

com a inserção de países do Leste Europeu no Sistema, apresentam-se maiores

dificuldades à sua concretização, mas ainda de forma pontual.

A Corte Europeia, dentre as cortes regionais, demonstra-se mais judicializada, e

seu acesso é facilitado de modo que qualquer cidadão pode perante ela postular

diretamente41, sem a necessidade de intermediação de uma Comissão42, como no caso

interamericano.

Deve-se salientar, ainda, o preparo doutrinário e cultural dos Estados europeus

para a aceitação de um Tribunal Internacional que delibere acerca de seu direito interno

e também sobre fatos desenrolados sob a tutela de sua soberania. A resistência à

integração entre Corte e direito interno demonstra-se praticamente superada, muito em                                                                                                                        41 Simultaneamente à mudança no funcionamento do Sistema houve um crescimento exponencial das demandas perante a Corte na medida em que se ampliou o acesso à mesma. Foi necessário, portanto, um reaparelhamento a fim de se atender satisfatoriamente às provocações, e uma mudança de postura da Corte no sentido de atuar mais energicamente no estabelecimento de medidas de reparação e prevenção. 42 O Sistema Europeu já possuiu uma Comissão com funções análogas às do Sistema Interamericano, entretanto, a partir de 1998, com a adoção do Protocolo nº 11, a dualidade Comissão/Corte foi substituída por uma Corte permanente cuja competência perpassa inclusive sobre a análise de admissibilidade da demanda.

 34

razão da própria evolução da União Europeia, que alimentou o sentimento de

supranacionalidade ali presente, ultrapassando a lógica não-intervencionista ainda

presente no Continente Americano.

Esse sentimento supranacional é responsável por conferir à Convenção Europeia

uma ideia de ordem pública regional, bem como de uma noção mais atinente à sua

constitucionalidade material, facilitando a absorção de seus preceitos e as consequentes

responsabilizações por suas violações.

Além disto, a obrigatoriedade da jurisdição da Corte Europeia (art. 32 da

Convenção Europeia) não permite escusas dos Estados à proteção dos Direitos

Humanos, a exemplo do que ocorre no Continente Americano.

Em sua jurisprudência, ainda, a Corte Europeia já firmou entendimento que a

permite maiores intervenções no direito interno dos Estados-parte, sentimento

compartilhado por estes, proporcionando a opção de fixação de obrigações de realizar

importantes mudanças normativas, algo ainda extremamente discutido no âmbito das

Américas.

Quando não possível, porém, o retorno ao status quo ante de maneira integral

em razão do direito interno, a Corte Europeia tem competência para firmar uma

indenização pecuniária substitutiva, que faz coisa julgada.

Noutro giro, existem diversos mecanismos de pressão para o cumprimento das

sentenças proferidas pela Corte43. Além de um Comitê de Ministros44 com competência

supervisional e composto por todos os Estados submetidos à sua jurisdição, outras

formas de pressão são amplamente praticadas, como as diplomáticas (em função do

interesse de integração da União Europeia e mesmo de participação da organização),

bem como o power of embarassment45 (poder da vergonha) de ser considerado Estado

violador perante o Comitê de Ministros e à Comunidade Europeia como um todo.

                                                                                                                       43 Inicialmente, e em razão do texto da Convenção Europeia (art.41), as medidas estipuladas pela Corte encontravam entraves à sua implementação por autorizar o descumprimento quando conflitante a decisão com o direito interno do país responsabilizado, permanecendo as sentenças com caráter meramente declaratório da violação de direitos. Com a mudança de postura da Corte, que passou a determinar efetivas obrigações para o Estado violador, com apoio do Comitê de Ministros, as sentenças passaram a ser efetivamente “condenatórias”. Ver RAMOS, 2012a, p. 177. 44 Órgão do Conselho da Europa que possui competência no Sistema Europeu, notadamente de supervisão sentencial conforme art. 46 da Convenção Europeia de Direitos Humanos. 45 O power of embarassement tem grande papel preventivo no Continente Europeu em razão das consequências da Segunda Guerra Mundial. As violações trágicas de direitos humanos descobertas na Alemanha, por exemplo, foram motivo de vergonha de toda a Europa perante a Comunidade Internacional, exatamente por, naquele continente, existir um sentimento de unidade muito vivo entre seus Estados. Essa ideia de unicidade traz, aos Estados, um sentimento de dever de vigilância não só sobre atos seus, mas também de seus vizinhos.

 35

Há de se destacar a medida mais grave de sanção ao Estado violador e

decumpridor de sentenças, qual seja a possibilidade de expulsão do Conselho da

Europa46. Essa possibilidade, por atacar fundamentalmente a cultura de integração

europeia e a própria possibilidade de participação da política do continente, demonstra-

se altamente eficaz na prevenção de violações ao Pacto Europeu.

Apesar de se demonstrar como um sistema de funcionamento exemplar, a

existência da previsão do art. 41 da Convenção47 é capaz de permitir descumprimentos.

Ainda que a Corte tenha mudado seu entendimento a fim de trabalhar mais

positivamente, a norma ainda existe, e pode sofrer outras mudanças interpretativas

significantes, que não sejam necessariamente relacionadas à melhoria do sistema.

Por fim, é necessário ponderar acerca do acesso direto à jurisdição da Corte, vez

que o amplo acesso pode ser mal compreendido pelos cidadãos, banalizando-se o

funcionamento da mesma. Esse apelo em causas descabidas - que necessariamente

passam pela análise de admissibilidade -, provocados por um mero descontentamento

com a decisão final pátria, já sobrecarregam o sistema, per se.

2.1.2 Sistema Universal

Enquanto o sistema regional europeu de proteção é o mais consolidado, o

Sistema Universal existente no âmbito da ONU é o mais complexo, composto de forma

convencional (através dos tratados) e mesmo extraconvencional (através de resoluções

dos órgãos da ONU).

O sistema convencional é, por si só, composto de três mecanismos

diferenciados: não contencioso (pela aplicação de técnicas internacionais de solução e

controvérsias); quase judicial – esse dividido em petições de Estados e de particulares -

; e contencioso, efetivado perante a Corte Internacional de Justiça. De outro lado, o

sistema extraconvencional compõe-se por procedimentos especiais efetivados perante

órgãos da ONU e com base no dever geral de cooperação internacional dos Estados com

os direitos humanos (Carta da ONU, art. 55 e 56).48

                                                                                                                       46 Fundamentada nos artigos 3º e 8º do Estatuto do Conselho, que preveem o dever de cada Estado-membro em respeitar os direitos humanos e a possibilidade de expulsão por determinação do Comitê de Ministros. 47 “Se o Tribunal declarar que houve violação da Convenção ou dos seus protocolos e se o direito interno da Alta Parte Contratante não permitir senão imperfeitamente obviar às consequências de tal violação, o Tribunal atribuirá à parte lesada uma reparação razoável, se necessário.”. 48 Ver RAMOS, 2012a, p. 75.

 36

O mecanismo convencional não contencioso efetiva-se por meio de relatórios

periódicos subsidiados por informes dos Estados-parte dos tratados, estes analisados a

fim de serem condensados no relatório final por cada comitê específico do tratado. Esse

controle, apesar de mais abstrato, vem ensejando medidas concretas por parte dos

comitês, inclusive com visitas in loco.

Com esse sistema de comitês, foi estabelecido o notório Comitê de Direitos

Humanos, que atua no âmbito do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos. Seu

procedimento envolve exame de admissibilidade, instrução probatória e fase

deliberativa, na qual o Comitê adota uma deliberação concluindo ou não pela existência

de violação.

A respeito do mecanismo convencional quase judicial, há de se dividir entre

petições dos Estados e petições de indivíduos. No primeiro, os Estados possuem a

faculdade de demandarem entre si, enquanto no segundo os indivíduos podem

demandar contra o Estado.

No tocante ao mecanismo convencional judicial, a apuração das violações de

direitos humanos se dá perante e Corte Internacional de Justiça (CIJ), a fim de

estabelecer ou não a responsabilidade internacional do Estado pelos fatos. Somente

podem demandar perante a CIJ os Estados, e o reconhecimento da sua competência é

facultativa. As suas decisões, porém, são dotadas de extrema força, na medida em que o

sistema de punições vigente no âmbito da ONU é essencialmente mais concreto e possui

diversas possibilidades de sanção a Estados infratores (a exemplo dos conhecidos

embargos internacionais, suspensões e até a mais grave, expulsão da Assembleia Geral

da ONU e também de seus órgãos).

Por fim, quanto aos mecanismos extraconvencionais, estes se tratam da

aplicação de técnicas do soft law49 à política dos direitos humanos.

Pode-se concluir, portanto, que o sistema universal é extremamente setorizado, o

que facilita a sua atuação. Ademais, existem competências específicas para demandas

específicas, fato que auxilia no controle e supervisão de medidas impostas. Ao final, é

ainda verificável uma maior força no sistema, na medida em que as Nações Unidas são

órgão internacional amplamente reconhecido e têm legitimidade de atuação variada para

estabelecer sanções e restrições aos países violadores de direitos humanos.

                                                                                                                       49 Elementos como resoluções, declarações, princípios, declarações etc.

 37

No tocante à competência jurisdicional da CIJ, porém, essa é bastante limitada,

haja vista que o acesso à mesma não permite a atuação direta do indivíduo nem mesmo

de organismos não estatais, conhecendo como partes apenas os Estados (art. 34.1 do

Estatuto), não focando na questão central dos direitos humanos: os interesses do

indivíduo.

2.1.3 Sistema Africano

O sistema de proteção aos direitos humanos existente no Continente Africano é

o mais recente e incipiente dentre os regionais, não se encontrando, ainda, sequer

consolidado. O maior retrato disso é o fato de a Carta Africana dos Direitos do Homem

e dos Povos ter sido adotada apenas em 1981 e entrado em vigor somente em 1986,

quando inclusive o Sistema Interamericano encontrava-se já em pleno funcionamento.

Isso se deve, essencialmente, aos problemas tradicionais daquela região, notadamente os

acúmulos históricos de luta contra desconlonização, pela autodeterminação dos povos e

respeito à diversidade cultural e social.

A grande dificuldade do sistema, ainda maior que no continente americano, é

adequar o direito interno às previsões do direito internacional. Mesmo ratificando

inúmeros tratados sobre direitos humanos, os Estados Africanos enfrentam graves e

constantes violações, de forma sistemática (diversas guerras civis, sistemas estruturais

básicos deficitários, regimes ditatoriais etc.).

Há grandes dificuldades em estabelecer os parâmetros de funcionamento da

Corte em razão de diversas declarações facultativas constantes do Protocolo. Ainda que

um Estado o tenha ratificado, este pode, por exemplo, não reconhecer determinada

legitimação, caracterizando limitação ao acesso individual e até mesmo de ONGs à

Corte.

Além disso, não constam do Sistema Africano regras claras de supervisão das

sentenças, nem mesmo uma definição clara entre atuação da Comissão e da Corte.

Seus maiores desafios são, portanto, consolidar-se – com a afirmação de

credibilidade da Corte - e superar as dificiências estruturais do Continente onde se

insere, harmonizando o cumprimento de sentenças à consolidação do regime

democrático nos Estados.

2.2 Soluções em Direito interno

 38

Efetivamente, com a implementação do programa “Justiça Plena” pelo CNJ, o

acompanhamento das causas relativas às sentenças da Corte – e também das

recomendações da Comissão – foi facilitado, mas ainda não se encontra plenamente

consolidado e muito menos é realizado de forma completa.

Enquanto as obrigações sentenciais forem relativas ao pagamento de valores e

outras medidas reparativas mais simples (como publicação de sentenças, divulgação da

causa etc.), a supervisão é facilitada exatamente pelo Estado brasileiro não impor

entraves ao seu cumprimento. Eventualmente os pagamentos e medidas são cumpridas

próximo ao fim dos prazos, mas ainda não houve caso de descumprimento evidente dos

mesmos.

Entretanto, quando as obrigações se referem ao âmbito judicial, há diversos

problemas quanto à concretização das medidas. A Corte costuma exigir a investigação e

atribuição de responsabilidade aos culpados pelo fato violador de direitos humanos,

enquanto que o direito interno brasileiro apresenta diversos obstáculos à sua

materialização. A prescrição de um crime, por exemplo, tem aptidão de desautorizar

inclusive a investigação dos fatos, não se operando apenas sobre o direito de ação.

Neste giro, como já destacado, é possível desde 2011 acompanhar as medidas

relativas à investigação e punição dos agentes violadores através do Programa Justiça

Plena, implementado pelo Conselho Nacional de Justiça em parceria com diversos

órgãos do sistema judiciário, mas o sistema ainda encontra-se em fase inicial,

necessitando de melhor aparelhamento e estabelecimento de formas de controle mais

efetivas, uma vez que ainda refém da voluntariedade dos tribunais em responder às

comunicações e ofícios solicitantes de informações.

Ademais, saliente-se que a Corte tem competência para determinar medidas

legislativas em direito interno e, nesse caso, não há um controle efetivo de nenhum

órgão ou instituição do Estado, apenas da supervisão realizada pela Corte IDH.

Com o fracasso do Projeto de Lei nº 3.214/00, porém, não houve novas

tentativas de positivação da controvérsia, o que poderia, em muito, ter auxiliado no

cumprimento das sentenças já proferidas e estabelecido um standard de conduta

nacional perante esse tipo de situação, com a atribuição concreta da competência para

acompanhamento interno de seu cumprimento, que ainda permanece genericamente sob

guarda do Poder Executivo.

 39

Ainda assim, mesmo que se adotem medidas legislativas, demonstra-se

necessária uma adequação do entendimento praticado pelos tribunais superiores

brasileiros à forma interpretativa das normas convencionais, a fim de que se evitem

controvérsias como aquela causada pela Lei de Anistia, analisada perante o STF e

também perante a Corte IDH no Caso Gomes Lund. Um grande passo para isso já vem

sendo dado em alguns países pela simples aplicação ou mesmo pela simples discussão

do precedente jurisprudencial internacional em âmbito interno, através dos tribunais

superiores.

Essencial, por fim, a mudança do pensamento excessivamente cartesiano acerca

da não-constitucionalidade dos tratados internacionais de direitos humanos já ratificados

anteriormente à EC nº 45/2004. A homogeneização do valor atribuído às normas

internacionais de direitos humanos, de mesma natureza, é essencial para o seu

fortalecimento como uma unidade protetiva e dotada de força suficiente para incentivar

mudanças internas de conduta do Estado, de sua legislação e de seu sistema processual.

CONCLUSÕES

Da análise das causas onde o Estado Brasileiro figurou como parte, sua grande

maioria relacionava-se à violações das garantias judiciais constantes do art. 8º da

Convenção Americana, especialmente no tocante à razoável duração do processo, o que

culminou, por diversas vezes, na demora injustificada para a averiguação dos fatos e

atribuição de responsabilidade.

Constatou-se, ainda, que o Brasil apresenta um sistema judicial interno

deficitário e, por essa razão, vem sendo responsabilizado reiteradamente pelo Sistema

Interamericano no tocante à violação das garantias judiciais consagradas na Convenção

Americana de Direitos Humanos.

Notadamente quanto essas garantias judiciais, foi possível perceber que as

sentenças de responsabilização proferidas pela Corte Interamericana encontram entraves

à sua efetivação integral em razão desse sistema interno deficitário brasileiro, mas

também em decorrência da fragilidade do sistema de supervisão de cumprimento da

Corte.

Por essas razões, o contexto atual do sistema interamericano exige a elaboração

de políticas positivas para efetivar o respeito às decisões da Corte IDH, realizando-se

 40

um controle de cumprimento de sentenças que não dependa exclusivamente da

voluntariedade do Estado em fornecer informações.

Uma forma de solucionar tal controvérsia é através do estabelecimento de

sanções no âmbito da OEA. Considerando que o Sistema Interamericano possui vias de

conexão com a Assembleia Geral da Organização, o melhor relacionamento entre as

esferas do sistema (política e causídica) tem o condão de conferir maior força às

decisões da Corte IDH, especialmente através da fixação de sanções concretas aos

Estados violadores.

A mudança necessária não exige especificamente alterações normativas amplas,

mas, de fato, uma mudança de paradigma de atuação dos órgãos envolvidos no Sistema

Interamericano, de forma que fiscalizem, cobrem e sancionem os Estados violadores

mais positivamente.

Verificou-se possível, através do estudo da Carta da OEA, o exercício da

competência da Assembleia Geral da OEA em punir Estados membros que violem,

reiteradamente, os direitos humanos. Essa competência deriva essencialmente da

competência da Assembleia Geral em avaliar o cumprimento dos deveres dos Estados –

dentre eles encontra-se a obediência aos direitos humanos -, relacionando-se também

com a possibilidade de suspensão do membro de sua participação na Organização por

ruptura de regime democrático.

Realizando, ainda, um estudo em direito comparado, concluiu-se também que o

Sistema Interamericano encontra-se ainda em consolidação, apesar de encontrar-se já

em pleno funcionamento e ter alcançado maior notoriedade nas últimas décadas. A sua

estrutura, porém, continua apresentando deficiências já superadas pelo modelo Europeu,

de excelência, que hoje permite a petição individual direta perante a Corte e adota um

sistema unifásico de estrutura, que em muito facilita a sua difusão.

Consoante tais conclusões, pode-se finalizar no sentido de que o Brasil, com sua

cultura ainda por demais não-intervencionista, necessita de mecanismos positivos

internacionais para que respeite de forma integral a Convenção Americana e as decisões

provenientes de seus órgãos anexos, a fim de internalizar as condutas necessárias e criar

políticas internas de obediência e cumprimento. Uma vez que não possível o

cumprimento voluntário integral das sentenças da Corte no Brasil, faz-se indispensável

a fixação de medidas para o cumprimento forçado das mesmas, a fim de que se tutele o

maior bem protegido pelos direitos humanos: o ser humano.

 41

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