a análise da periculosidade do agente na prisão preventiva – um estudo empírico da...

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  • Lvia Brasiliense Gentile

    A anlise da periculosidade do agente na priso preventiva um estudo emprico da

    jurisprudncia do Supremo Tribunal Federal

    Trabalho de concluso de curso da Escola de Formao, da Sociedade Brasileira de Direito Pblico (SBDP), sob a orientao da Prof Marta Cristina Cury Saad Gimenes.

    So Paulo 2007

  • 2

    Sumrio

    1. Introduo................................................................................pg.3

    2. Metodologia...............................................................................pg.7

    3. Anlise dos acrdos..................................................................pg.11

    3.1. HC 89.266/GO (DJ de 29.06.07)................................................pg.11

    3.2. HC 90.413-1/GO (DJ de 08.06.07).............................................pg.15

    3.3. HC 89.175-6/PA (DJ de 23.03.07)..............................................pg.18

    3.4. HC 88.476-8/DF (DJ de 06.11.06)..............................................pg. 23

    3.5. HC 89.196-9 (DJ de 16.02.07)...................................................pg.30

    3.6. HC 87.194-1/SE (DJ de 06.10.06)..............................................pg.34

    3.7. HC 84.981-4/ES (DJ de 22.04.05)..............................................pg.36

    3.8. RHC 85.112-6/SC (DJ de 05.08.05)............................................pg.38

    3.9. RHC 84.847-8/SP (DJ de 03.06.05)............................................pg.40

    3.10. HC 84.658-1/PE (DJ de 03.06.05)............................................pg. 41

    4. Concluso.................................................................................pg.44

    5.Bibliografia.................................................................................pg.47

  • 3

    1. Introduo

    Vivemos em uma sociedade que cada vez mais cobra das autoridades

    competentes posturas rgidas de combate criminalidade. Nesse contexto, o

    Judicirio tambm vem sendo freqentemente convocado para o debate, em

    especial o Supremo Tribunal Federal (STF), que tenta conciliar a necessidade

    de aplicao da legislao ordinria no campo penal e processual penal, com os

    direitos e garantias previstos em nossa Constituio.

    Uma das questes de maior relevncia que a Corte tem sido chamada a

    responder so os casos de priso preventiva fundados na garantia da ordem

    pblica. Segundo o Cdigo de Processo Penal brasileiro1, h quatro hipteses

    para a decretao de priso preventiva, dentre as quais se encontra a que tem

    base na garantia da ordem pblica. Esse tipo de priso cautelar sempre causou

    discusses tanto na doutrina como na jurisprudncia brasileiras, visto que ela

    encarada por muitos como uma antecipao da pena mascarada sob a forma

    de medida cautelar2.

    Defende essa corrente doutrinria que nessa hiptese de priso haveria

    violao do princpio da presuno de inocncia3, na medida em que o que

    importa nessas situaes seria o interesse da represso do indivduo pelo

    Estado, j que se considera que, solto, ele certamente causar prejuzos ao

    meio social. Haveria, portanto, presuno de culpabilidade do agente. Alm

    1 Art 312, CPP: A priso preventiva pode ser decretada como garantia da ordem pblica, da ordem econmica, por convenincia da instruo criminal ou para assegurar a aplicao da lei penal, quando houver prova da existncia do crime e indcio suficiente de autoria. 2 A respeito, ver: Gomes Filho, Antonio Magalhes. Presuno de inocncia e priso cautelar. Saraiva, 1991, pgs. 66 a 69. 3 Princpio que pode ser deduzido do disposto no art. 5, LVII da Constituio Federal: ningum ser considerado culpado at o trnsito de sentena penal condenatria.

  • 4

    disso, deve-se considerar que a priso preventiva uma medida de exceo

    tendo, portanto, de se pautar na legalidade estrita4.

    A priso preventiva, segundo pode ser depreendido do artigo 312 do

    Cdigo de Processo Penal, tem como pressupostos a prova da materialidade do

    crime e indcio suficiente de autoria (fumus comissi delicti, ou seja, a fumaa

    que indica que algum crime foi cometido por determinada pessoa5) e como

    requisitos a garantia da ordem pblica, a garantia da ordem econmica, a

    convenincia da instruo criminal ou a segurana da aplicao da lei penal,

    (circunstncias em que h periculum libertatis, isto , a liberdade do indivduo

    pode ameaar de alguma forma o curso normal do processo e, indiretamente,

    a sociedade)6.

    O problema surge na anlise de tais circunstncias de um ponto de vista

    concreto. Em primeiro lugar, o que podemos entender por ordem pblica?

    Intuitivamente, o conceito lembra trs idias principais: paz, tranqilidade e

    harmonia sociais. Assim, com base em algo to amplo, fica difcil definir as

    hipteses em que se pode dizer que h preocupao com essa chamada

    garantia da ordem pblica7.

    Fora isso, a garantia da ordem econmica outro conceito poroso e que

    parece estar inserido no de ordem pblica. Isso porque quando se quer

    proteger a ordem pblica impossvel no se defender tambm, embora

    indiretamente, as regras que regem o meio econmico. Da mesma forma, no

    4 Gomes Filho, Antonio Magalhes. Presuno de inocncia e priso cautelar. Saraiva, 1991, pgs. 66 a 69 e Pitombo, Srgio. Priso preventiva em sentido estrito, artigo encontrado em www.sergiopitmbo.nom.br. 5 Scarance Fernandes, Antonio. Processo Penal Constitucional. 5 edio revista, atualizada e ampliada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 pg. 329. 6 Scarance Fernandes, Antonio. Processo Penal Constitucional. 5 edio revista, atualizada e ampliada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007 pg. 329. 7 Muito interessantes so as reflexes de Srgio Pitombo, contidas no artigo supracitado: O que se garante a paz pblica, ou ordem pblica material. Torna-se, pois, imprescindvel verificar se a priso, ou a soltura importam, ou no, no quebramento da paz pblica, influindo sobre o processo. Vale dizer, se a tranqilidade e a ordem sociais devem-se garantir, por meio da priso processual. A paz pblica o produto da tranqilidade social, no artificial, e da ordem social, entendida como harmonia, na comunidade. Nos grandes centros urbanos, difcil aceitar que a priso preventiva, de que se cuida, decrete-se para servir ao processo (grifos no original).

  • 5

    plausvel se pensar em uma violao em qualquer setor da economia que no

    afete de alguma forma a ordem pblica8.

    Com base em leitura de trabalhos9 e acrdos que discutem o tema,

    pude identificar seis situaes principais nas quais os tribunais brasileiros, em

    especial o STF, discutem se possvel a decretao de priso preventiva com

    base na garantia da ordem pblica. So elas: i) clamor pblico, ii)

    periculosidade do agente, iii) gravidade do crime, iv) preveno especial

    (necessidade de se evitar novos crimes), v) confiabilidade da justia, vi)

    segurana do ofendido.

    Algo que notei nos acrdos estudados foram referncias de vrios

    ministros possibilidade de se manter a priso devido a uma provvel fuga do

    paciente. Isso foi citado de modo lateral e rechaado pela Corte em inmeras

    ocasies10, o que me levou a crer que essa seria uma hiptese de garantia da

    ordem pblica no aceita pelo Tribunal. Entretanto, em outros acrdos

    consultados encontrei orientao diversa11. De qualquer modo, estudando o

    assunto percebi que tanto a doutrina como a jurisprudncia classificam essa

    8Pitombo, Srgio. Priso preventiva em sentido estrito, artigo encontrado em www.sergiopitombo.nom.br. 9 Encontrei dois trabalhos acadmicos que realizaram uma pesquisa doutrinria e jurisprudencial acerca do tema que objeto desta monografia: o primeiro um artigo da Revista Brasileira de Cincias Criminais (n 44 ano 11 julho-setembro de 2003) intitulado Afinal, quando possvel a decretao de priso preventiva para a garantia da ordem pblica, de Gabriel Bertin de Almeida. O outro trabalho a tese de mestrado de Leslie Shrida Ferraz, Priso preventiva e direitos e garantias individuais, defendida na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo em 12 de novembro de 2003. Embora eu tenha utilizado algumas idias contidas em ambos os trabalhos, no pretendo dialogar diretamente com eles, visto que a pesquisa jurisprudencial realizada pelos autores j tem quatro anos, alm do que eu pretendi me focar no aspecto da periculosidade do agente, a fim de realizar uma anlise qualitativa, enquanto os autores de tais trabalhos realizaram um estudo emprico predominantemente quantitativo, identificando e contabilizando os casos de concesso ou no de habeas corpus em situaes em que a priso preventiva foi decretada com base na garantia da ordem pblica. Uma outra dificuldade que eu teria ao comparar tais pesquisas com a que aqui realizei a falta de preciso emprica dos autores, j que ambos no explicitaram totalmente os termos de pesquisa nem o espao temporal utilizados. 10 Dado obtido a partir dos precedentes trazidos nos votos em anlise. 11 Parece que STF no aceita a fuga como fundamento idneo quando o paciente fugiu com receio da prpria preventiva, mas, quando foge antes da decretao, e este o motivo preponderante da decretao da preventiva, ele aceito, sim, como fundamento da preventiva. No entanto, no estou totalmente segura dessa concluso, pois esse no o foco deste trabalho, de modo que no estudei a questo minuciosamente.

  • 6

    hiptese no mbito da aplicao da lei penal12 e no da garantia da ordem

    pblica.

    Tendo em mente essas possibilidades, optei por lidar com a questo da

    periculosidade do agente13. A periculosidade um argumento um tanto quanto

    sensvel para ser usado em um Tribunal como justificativa para a priso

    preventiva, pois envolve um juzo de culpabilidade, que no deve estar

    presente no momento da decretao da medida cautelar14. Alm disso, quem

    julgado perigoso deve, ao fim do processo de conhecimento, quando

    comprovadas a materialidade e a autoria delitivas, ser afastado da sociedade

    por meio de medida de segurana, no por meio cautelar, pois tal sujeito

    considerado inimputvel para efeitos penais.

    Isso se enquadra no fenmeno estudado por Zaffaroni15, qual seja, a

    formao de um sistema penal cautelar diferenciado do sistema penal de

    condenao, em que pesam fatores como suspeita do cometimento do delito (o

    direito penal entraria aqui apenas como critrio para a qualificao cautelar),

    alm de consideraes acerca de periculosidade e dano. a individualizao

    ntica do inimigo. Dessa forma, no importa muito a forma com a qual a

    sociedade ir puni-lo, seja medida de segurana, pena ou medida cautelar,

    contanto que ela consiga confinar os temidos inimigos, retirando-os do meio

    social.

    De qualquer forma, no a inteno deste trabalho tachar um

    posicionamento correto a respeito do tema, mas sim verificar como o STF vem

    lidando com os pedidos de habeas corpus em que se discute tal hiptese para

    a decretao de medida cautelar. Isso porque possvel pensar a priso

    preventiva com base na garantia da ordem pblica de duas formas: ou se

    aceita a ordem pblica como fundamento idneo dessa medida cautelar, do

    que decorre a necessidade de fundamentao da mesma, ou simplesmente se

    12 Pitombo, Srgio. Priso preventiva em sentido estrito, artigo encontrado em www.sergiopitmbo.nom.br 13 Ver explicaes na parte da metodologia do trabalho. 14 Pois isso fere a presuno de inocncia, conforme expliquei acima. 15 Zaffaroni, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2007.

  • 7

    rejeita tal possibilidade, o que envolve um problema mais terico, relacionado

    pertinncia ou no dos preceitos processuais penais.

    A partir de agora irei mostrar a metodologia aqui utilizada.

    2. Metodologia

    O presente tpico de meu trabalho tem por finalidade delinear as

    escolhas metodolgicas realizadas desde a escolha do tema at a seleo final

    dos acrdos utilizados nessa caminhada.

    Desde o momento em que me decidi pelo estudo das prises processuais

    no mbito do Supremo Tribunal Federal, deparei-me com alguns problemas

    prticos durante a pesquisa. Inicialmente, minha idia era verificar os critrios

    que a Corte usava para a concesso (ou no) de habeas corpus nessas prises,

    a fim de elaborar uma espcie de placar de deferimento e indeferimento dos

    pedidos.

    Logo percebi, entretanto, que alm de ser uma abordagem muito

    extensa, no era uma anlise meramente quantitativa o que eu desejava

    alcanar ao trmino da monografia. Assim sendo, resolvi me debruar sobre os

    casos de prises preventivas, mais especificamente, apenas aquelas

    decretadas com base na garantia da ordem pblica.

    A partir de tal delimitao procedi a uma pequena pesquisa doutrinria

    com o intuito de me aprofundar um pouco mais no assunto. Isso me levou a

    pensar, conforme o explicado na introduo, que a priso preventiva nessas

    situaes parece se configurar como uma antecipao de pena e no como

    uma medida cautelar propriamente dita.

  • 8

    Isso, todavia, precisava ser verificado na prtica. A questo estava,

    portanto, em saber como o Supremo lidava com o assunto. Concederia os

    habeas corpus? Todas as vezes? Sob quais alegaes? Por maioria ou por

    unanimidade?

    Estava claro que eu tinha a inteno de elaborar um estudo mais

    profundo das alegaes dos ministros, o que foi de certo modo frustrado

    quando percebi o imenso nmero de casos que ainda restavam, mesmo aps a

    delimitao feita.

    No stio do Supremo16 realizei inmeras pesquisas durante os meses de

    julho e agosto, quando ainda no havia decidido por completo a abordagem

    que iria seguir. Ao realizar uma busca no tpico pesquisa de jurisprudncia

    do stio em 30 de agosto, ao digitar a expresso garantia adj2 ordem adj2

    pblica, foram encontrados 242 acrdos17, na sua quase totalidade habeas

    corpus18.

    Eis ento que percebi que meu universo de pesquisa ainda estava muito

    amplo, visto que minha inteno era me aprofundar em termos de

    argumentao, conforme j ressaltei. Desse modo, comecei a pesquisar

    separadamente cada uma das situaes em que se reputa como hiptese de

    priso preventiva para garantir a ordem pblica19. Os resultados encontrados,

    de forma resumida, foram20:

    Expresso utilizada21 Nmero de decises

    garantia adj ordem adj pblica e 5

    16 www.stf.gov.br 17 Em 12 de outubro realizei nova pesquisa utilizando os mesmos termos e encontrei 245 acrdos, sendo que os trs novos acrdos se localizavam justamente no espao temporal entre os meses de agosto e outubro. 18 Havia tambm alguns recursos de habeas corpus. 19 Vide consideraes feitas na introduo. 20 ltima pesquisa realizada em 12/10/07 no stio do Supremo. 21 Em alguns casos no houve diferena ao se utilizar adj ou adj2 entre as palavras buscadas; em outras situaes, todavia, a busca mostrou resultados distintos de acordo com o termo utilizado, conforme demonstrei acima.

  • 9

    periculosidade adj agente

    garantia adj2 ordem adj2 pblica e

    periculosidade adj2 agente

    16

    garantia adj ordem adj pblica e

    gravidade adj crime

    20

    garantia adj ordem adj pblica e

    clamor adj pblico

    11

    garantia adj ordem adj pblica e

    preveno

    5

    garantia adj ordem adj pblica e

    segurana adj ofendido

    Nenhuma

    garantia adj ordem adj pblica e

    confiabilidade adj justia

    Nenhuma

    garantia adj ordem adj pblica e

    credibilidade adj justia

    1

    garantia adj2 ordem adj2 pblica e

    credibilidade adj2 justia

    8

    Acreditei que a melhor opo seria escolher uma das hipteses acima

    elencadas para anlise, o que se revelou muito proveitoso para o presente

    trabalho. Dessa maneira, resolvi trabalhar somente com os casos de priso

    preventiva com base na garantia da ordem pblica fundadas em uma

    (suposta) periculosidade do agente, a partir da busca que havia apontado um

    nmero maior de acrdos (garantia adj2 pblica adj2 pblica e

    periculosidade adj2 agente).

    Com relao ao recorte temporal, ao proceder a uma primeira leitura

    das ementas pude notar que a maior parte dos julgados bem recente, de

    modo que optei por lidar apenas com os acrdos do incio de 2003 at 31 de

    agosto de 2007 (o mais prximo possvel do momento presente). Logo, dos 16

    acrdos encontrados com a expresso relativa periculosidade do agente, 10

    me serviram aos fins propostos.

  • 10

    A escolha do ano de 2003 como marco inicial de minhas pesquisas levou

    em conta alguns fatores. Em primeiro lugar, porque a maior parte dos

    acrdos encontrados extremamente recente (2006/2007) e, alm disso,

    pelo fato que em 2003 trs novos ministros entraram no quadro do STF22,

    sendo esse um dos anos em que mais mudanas ocorreram. Destarte, minha

    inteno foi obter uma orientao atual do tribunal em relao ao tema.

    Por fim, ao proceder leitura completa dos acrdos, notei que os

    ministros citaram uma srie de outros casos semelhantes, sendo que algumas

    vezes os eles mesmos os chamaram de precedentes. Entretanto, como quase

    todos no se encaixavam no recorte temporal estabelecido, no os analisei

    diretamente, apenas como partes importantes das argumentaes elaboradas.

    Dessa maneira, a partir dos acrdos selecionados, pretendi responder

    seguinte pergunta neste trabalho: o STF considera vlida a priso preventiva

    fundada na ordem pblica, amparada na periculosidade do agente acusado da

    prtica de um crime? Se sim, em todos os casos analisados? E, o que

    considero mais importante: os ministros justificam explcita e adequadamente

    seus votos em um assunto complexo como esse, que envolve a liberdade

    individual?

    22 O Ministro Carlos Britto entrou na vaga deixada pelo Ministro Ilmar Galvo, o Ministro Joaquim Barbosa, no lugar do Ministro Moreira Alves e, por fim, a vaga do Ministro Sidney Sanches foi preenchida pelo Ministro Cezar Peluso.

  • 11

    3. Anlise dos acrdos

    Passo agora anlise dos acrdos selecionados, que esto aqui

    elencados a partir de em uma seqncia cronolgica, que vai do caso mais

    recente ao mais antigo.

    3.1. HC 89.266/GO (DJ de 29.06.07)

    Geison Incio da Costa foi acusado da prtica do crime previsto no art.

    157, 2, I e II do Cdigo Penal (roubo duplamente qualificado). Ele teve a

    priso preventiva decretada com base nos elementos colhidos no inqurito

    policial e impetrou habeas corpus no STF para questionar a deciso do

    Superior Tribunal de Justia (STJ), que determinou a manuteno do decreto

    de priso. O relator do caso, no STF, foi o Ministro Ricardo Lewandowski.

    No referido acrdo do STJ, que objeto de anlise pelo relator, alegou-

    se que havia a necessidade da priso preventiva com base na garantia da

    ordem pblica, tendo em vista os indcios concretos de periculosidade do

    agente. Na situao em questo, cabe lembrar, o paciente se encontrava na

    iminncia de ser preso.

    Cabe aqui esclarecer que todos os acrdos que li a respeito de priso

    preventiva tm, em primeiro lugar, a preocupao de afirmar que esto

    presentes indcios suficientes de autoria e prova da existncia do crime, que

    so os dois pressupostos para tal medida cautelar23. Assim sendo, nos

    prximos acrdos comentados isso estar implcito em minhas consideraes.

    Alegaram os impetrantes da ao que a priso preventiva ofende os

    princpios do devido processo legal e da presuno de inocncia, uma vez que

    ela apresenta ntido carter de antecipao de pena24. Interessante notar que

    23 Vide explicaes dadas na introduo. 24 Pg. 1192 do acrdo.

  • 12

    essa considerao recaiu sobre qualquer tipo de priso preventiva, segundo o

    que se pode deduzir do trecho mencionado, e no apenas a respeito da

    modalidade com fundamento na garantia da ordem pblica. Isto , para os

    impetrantes, a existncia de priso preventiva seria, em si mesma,

    inconstitucional. No creio ser precipitado afirmar que o STF no aceita tal tese

    em absoluto, do contrrio, no teramos inmeros habeas corpus em que se

    vem discutindo o cabimento ou no dessa priso, nos mais diferentes casos

    possveis.

    Os impetrantes tambm afirmaram a falta de fundamentao da

    medida, a falta de interesse da sociedade na priso e caractersticas positivas

    do ru (residncia fixa, bons antecedentes, primariedade, entre outros). No

    entanto, posio consolidada na jurisprudncia brasileira que caractersticas

    positivas do ru no impedem a priso cautelar, fato lembrado algumas vezes

    pelos ministros, mas que na maior parte delas no recebeu maiores

    consideraes.

    O voto do relator foi seguido pela maioria dos ministros, exceo do

    Ministro Marco Aurlio. O Ministro Ricardo Lewandowski defendeu a

    excepcionalidade da medida e concorda com o entendimento do STJ de que

    esta realmente seria uma situao excepcional, tendo em vista que o paciente

    representa um perigo para a coletividade, sendo esse motivo suficiente,

    destarte, para o decreto de priso preventiva visando garantia da ordem

    pblica.

    O referido Ministro tambm transcreveu trechos da deciso do STJ que

    foram muito ilustrativos para o seu voto:

    Acrescente-se que o declarante Allan Francisco da Costa, tio do

    representado, afirmou que o trator Massey Fergunson, produto do crime,

    estava na posse de Geison e que foi deixado em sua fazenda e que, logo aps

  • 13

    suspeita de ser produto de ilcito, encaminhou o veculo polcia militar na

    cidade de Heitora, conforme declarao prestada s fls. 15-16.

    O indiciado revelou-se pessoa perigosa e a sua liberdade provisria

    acarretar danos ordem pblica.

    A periculosidade do indiciado justifica a decretao de medida

    extrema25.

    Ora, tais consideraes me pareceram extremamente subjetivas para

    fundamentar uma medida to severa como a priso preventiva, mas so

    justamente elas que determinaram o voto do Ministro-relator. Ser que

    aceitvel que o STF se deixe levar por argumentos do tipo algum disse que o

    indivduo fez isso e por isso eu acho que ele perigoso, como pareceu ocorrer

    aqui?

    necessrio ter sempre em mente que tanto o conceito de ordem

    pblica como o de periculosidade so muito amplos, possibilitando grande

    margem de discricionariedade ao juiz. Assim, pode-se pensar que cabe a ele

    julgar se determinadas condutas, a despeito de terem punies previstas no

    Cdigo Penal, so passveis de reprovao em momento anterior sentena

    condenatria transitada em julgado, em nome de um suposto interesse da

    coletividade. Mas isso de modo algum possvel, pois fere a presuno de

    inocncia, na medida em que h uma considerao prvia de culpabilidade

    antes do trnsito em julgado da sentena penal condenatria. A pessoa apenas

    pode sofrer medidas restritivas de sua liberdade com vistas ao regular

    andamento do processo, sem haver qualquer juzo de culpabilidade.

    Em um outro excerto da deciso do STJ se admitiu que a aferio de

    periculosidade foi deduzida a partir das informaes contidas no inqurito

    policial, aceitas e valoradas livremente pelo Judicirio. Segue o trecho:

    25 Pg 1195 do acrdo do STF.

  • 14

    A necessidade de garantia da ordem pblica se impe em razo da

    periculosidade do paciente, constatada no curso do inqurito policial, verificada

    no s em razo do modus operando empregado, com a utilizao de armas de

    fogo, imobilizao de vtimas e emprego real de violncia, bem como em vista

    das notcias de que contumaz praticante de delitos contra o patrimnio26.

    Como no afirmar que implica anlise subjetiva a decretao de uma

    medida cautelar que se baseia, dentre outras coisas, em notcias de que o

    indivduo costuma praticar esse tipo de crime? Os tribunais, em especial o STF,

    no deveriam seguir o supracitado princpio da presuno da inocncia,

    resguardando de forma adequada os direitos fundamentais contidos no artigo

    5 da Constituio Federal? Isto , no haveria a necessidade de existir

    elementos mais concretos para uma medida de tamanha singularidade como a

    priso preventiva, conforme admite o prprio Ministro Ricardo Lewandowski?

    Ocorre que ele disse claramente em seu voto que tais informaes

    contidas no acrdo do STJ no so abstratas, mas sim suficientes para formar

    um quadro da personalidade e dos antecedentes do paciente que, embora

    tenha reconhecido que so perfunctrias, prestaram-se a fundamentar a priso

    preventiva na presente situao27.

    O Ministro Marco Aurlio, por sua vez, proferiu um voto em sentido

    totalmente oposto ao do relator, na medida em que considerou que a

    primariedade e os bons antecedentes no condiziam com a suposta prtica

    reiterada de tais crimes, de sorte que no se pode ter uma posio definida a

    respeito antes de vir tona um decreto condenatrio.

    Quanto ao modos operandi do crime, apontado pelo STJ como um dos

    elementos apto a configurar a periculosidade do agente, alegou o Ministro:

    26 Pg. 1195 do acrdo do STF. 27 Pg. 1196 do acrdo.

  • 15

    A forma mediante a qual se deu o roubo, com o emprego de arma de

    fogo, diz respeito ao tipo penal. E, quanto ao tipo penal, deve-se aguardar a

    concluso do processo e a prolao da deciso28.

    Aps o voto do Ministro Marco Aurlio, o Ministro Ricardo Lewandowski

    prestou um esclarecimento, afirmando que a denegao do habeas corpus por

    sua parte se deu tambm devido preocupao da polcia no combate a uma

    suposta quadrilha, portanto, julgou ele ser uma forma de a sociedade

    acautelar-se contra delitos dessa natureza29. Assim, a 1 turma do STF

    acabou denegando o habeas corpus, por maioria de votos.

    Nesse momento, o Ministro parece estar usando um outro argumento,

    que no a periculosidade, para justificar sua deciso. Afinal, se ele defendeu

    que a priso seria importante na presente situao para a sociedade se

    prevenir contra delitos dessa natureza, porque ele j valorou

    negativamente a conduta praticada, considerando grave o crime praticado.

    Ocorreu, destarte, uma confuso de justificadoras para a priso

    (periculosidade e gravidade do delito), fato que parece ser comum nos votos

    dos ministros e que vou tentar comprovar de forma mais precisa a partir da

    anlise dos acrdos seguintes.

    3.2. HC 90.413-1/GO (DJ de 08.06.07)

    No presente acrdo, julgado pela 1 turma do Tribunal, Jorge Moreira

    Costa foi acusado de formao de quadrilha e falsificao de papis e

    documentos. Ele impetrou habeas corpus com pedido de liminar no STF contra

    acrdo do Superior Tribunal de Justia (STJ) que denegou seu pedido de

    liberdade, fundamentando a priso preventiva com os argumentos de garantia

    28 Pg. 1197 do acrdo. 29 Pg. 1198 do acrdo.

  • 16

    da ordem pblica, em vista de sua acentuada periculosidade30 e devido

    convenincia da instruo criminal.

    O impetrante alegou falta de fundamentao da deciso, inocorrncia

    dos pressupostos da priso preventiva, caractersticas favorveis do ru, bem

    como cerceamento do direito de defesa, pois o processo conteria provas

    ilcitas31.

    O relator, Ministro Ricardo Lewandowski, afirmou que em sede de

    habeas corpus no cabe a produo de provas, logo, disse ele que:

    (...) no se mostra factvel, como quer o impetrante, examinar as

    questes que levantou no tocante ao cerceamento de defesa, ilicitude das

    provas e inexistncia de indcios de autoria (...)32.

    Interessante, todavia, notar que as condies negativas do paciente,

    por sua vez, foram consideradas pelo magistrado de 1 grau, que tem trecho

    de sua deciso transcrita no voto do Ministro-relator; este, por sinal, seguiu-a

    sem ressalvas.

    Tal deciso tambm no trouxe argumentos slidos suficientes a provar,

    de modo concreto, a periculosidade do agente, pois nela constava apenas o

    seguinte:

    (...) as circunstncias dos crimes evidenciam sua periculosidade, dada a

    forma de execuo do delito, de sorte que necessria a manuteno no

    crcere, a fim de garantir a ordem pblica, convenincia da instruo criminal

    e aplicao da lei penal e, ainda, venha a delinqir novamente33.

    30 Pg. 676 do acrdo do STF. 31 Pg. 677 do acrdo. 32 Pg. 679 do acrdo. 33 Pg. 681 do acrdo.

  • 17

    Houve uma evidente falta de consistncia da argumentao, tanto do

    juiz de primeiro grau que, a partir do que foi transcrito pelo Ministro Ricardo

    Lewandowski, no trouxe elementos concretos que pudessem justificar a

    periculosidade do agente, como do prprio Ministro, que apenas confirmou tal

    deciso, enxergando nela indcios suficientes que comprovassem que o

    acusado representava um perigo para a sociedade, havendo o temor, destarte,

    que o mesmo viesse a obstruir a instruo criminal e frustrar a aplicao da lei

    penal.

    Um ponto curioso a ser notado o fato de que muitos dos acrdos que

    tratam de priso preventiva, inclusive este, costumam diferenciar a idia de

    ordem pblica (como algo abstrato) de fatores como periculosidade do agente,

    gravidade do crime e preveno, como se essas fossem circunstncias

    concretas que diferem da ordem pblica, quando na verdade so elas que

    justificam essa possibilidade de priso sendo, portanto, suas hipteses, ou

    melhor, seus requisitos.

    O referido acrdo continha ainda o voto do Ministro Seplveda

    Pertence, que acompanhou o relator, mas ressaltou que a gravidade do crime,

    por si s, no pode jamais fundamentar a priso preventiva34. E, embora o

    acrdo tambm fundamentasse a priso com base na garantia de aplicao

    da lei penal e convenincia da instruo criminal, alm da prpria ordem

    pblica, o Ministro no fez referncia a tais elementos.

    34 Pg. 682 do acrdo.

  • 18

    3.3. HC 89.175-6/PA (DJ de 23.03.07)

    Este habeas corpus, que foi denegado pela maioria dos votos da 1

    turma do STF, trouxe tambm uma discusso a respeito dos sucessivos

    recursos interpostos35, que no to relevante aos objetivos deste trabalho.

    Ao contrrio dos dois casos analisados, neste tivemos priso preventiva

    decretada no curso da ao penal, e no no inqurito policial36. No entanto, a

    impetrante da ao defendeu que a priso anterior ao trnsito em julgado do

    processo foi, na prtica, uma antecipao da pena, ferindo, dessa forma, o

    princpio da presuno de inocncia. O argumento foi rechaado pelo Ministro-

    relator Ricardo Lewandowski, que afirmou no ser possvel conferir tamanha

    amplitude ao referido princpio, pois, do contrrio, seria invivel a existncia de

    qualquer segregao provisria.

    A situao foi complexa, porque houve deciso condenatria do Jri pelo

    crime de homicdio duplamente qualificado, atribudo aos pacientes do habeas

    corpus, nos seguintes termos:

    Dispe a (sic) matria a smula n 9 do STJ: a exigncia de priso

    provisria, para apelar, no ofende a garantia constitucional da presuno de

    inocncia.

    (...) esse o reiterado entendimento do Supremo Tribunal Federal: a

    determinao para a expedio de Mandado de Priso no conflita com o

    princpio constitucional da presuno de inocncia (...)

    35 Discusso que se pauta principalmente em torno da Smula n 267 do STJ, que dispe: A interposio de recurso, sem efeito suspensivo, contra deciso condenatria no obsta a expedio de mandado de priso. 36Este caso no propriamente de priso preventiva, mas de priso decorrente de deciso sujeita a recurso. Mesmos nestes casos, a doutrina entende que os requisitos do art. 312 do CPP devem ser obedecidos, porque caso contrrio as prises seriam automticas, e os requisitos das cautelares precisam, em verdade, ser sempre analisados.

  • 19

    O Tribunal do Jri soberano, a deciso do Conselho de Sentena

    deve ser respeitada e, portanto, cumprida, e, nesse sentido,

    considerando que o Conselho de Sentena condenou os rus, esta

    magistrada Presidente do Tribunal do Jri determina que os mesmos

    sejam imediatamente conduzidos penitenciria de Americano37.

    (grifos no original)

    O Tribunal de Justia do Par concedeu medida liminar em habeas

    corpus aos pacientes; todavia, posteriormente a liminar foi cassada e o STJ, ao

    final, denegou a ordem.

    Em seu voto, o Ministro Ricardo Lewandowski disse que a priso foi

    devidamente fundamentada, com base nas informaes trazidas na deciso do

    Jri e contidas nas contra-razes de apelao do Ministrio Pblico (MP), em

    que se tentou detalhar de forma precisa os fatos ocorridos, de modo a provar a

    periculosidade dos agentes e a gravidade dos crimes por eles cometidos. Nesse

    sentido, alegou o MP, de forma a comprovar tais idias:

    (...) na disputa pela terra, o terceiro denunciado representou contra a

    vtima junto ao IBAMA, fez ocorrncia policial e travaram batalha judicial. No

    satisfeito, decidiu por termo desavena e a sua maneira, encomendando aos

    prprios filhos a morte da vtima.

    (...) [no] momento em que trafegavam pela PA-140, o veculo que

    transportava a vtima foi fechado pelo veculo que conduzia os dois primeiros

    denunciados, quando Ducielton Moreira atirou em Milton Capcio, atingindo a

    lateral de seu veculo, fazendo com que seu condutor entrasse na rea

    pertencente Fazenda Sonho Meu. Ao tentar romper a cerca limite daquela

    propriedade, o carro ficou preso pelo arame farpado, fazendo com que a vtima

    e seu filho abandonassem o veculo procurando fugir da fria dos denunciados,

    37 Pg. 485 do acrdo do STF.

  • 20

    saindo um para cada lado. Todavia, dez metros aps, a vtima foi alcanada e

    alvejada com trs tiros disparados pelo primeiro denunciado38.

    A partir dessas informaes o referido Ministro considerou devidamente

    demonstrada a necessidade da priso cautelar para a garantia da ordem

    pblica, diante da elevada periculosidade demonstrada pelos rus, que

    cometeram o crime de homicdio por motivo torpe e de emboscada39.

    Ficou claro que, diante de tais dados trazidos pelo MP, a aferio de

    periculosidade pde ser feita de uma forma mais precisa do que nos acrdos

    anteriores. A gravidade do crime tambm estava de certa forma provada. A

    questo que restou foi a seguinte: so essas situaes, ou melhor,

    circunstncias que podem justificar a priso preventiva com base na garantia

    da ordem pblica? No h resposta certa para essa pergunta e o intuito do

    trabalho justamente verificar como o STF lida com o problema.

    O voto do Ministro Seplveda Pertence no acrdo anterior (HC 90.413-

    1/GO) foi claro ao negar a possibilidade de manuteno da priso preventiva

    com lastro apenas na gravidade do crime, opinio compartilhada pelo Ministro

    Marco Aurlio40 no primeiro acrdo por mim analisado (HC 89.266/GO).

    J o Ministro Ricardo Lewandowski pareceu crer que ambas as

    circunstncias so justificadoras da medida cautelar, conforme trecho de seu

    voto:

    (...) art. 312 do Cdigo de Processo Penal, que autoriza a priso

    cautelar para a garantia da ordem pblica, perfeitamente aplicvel ao caso,

    diante da elevada periculosidade demonstrada pelos rus, que

    38 Pg. 489 do acrdo do STF. 39 Pg. 490 do acrdo. 40 Pg. 10, nota 15.

  • 21

    cometeram o crime de homicdio por motivo torpe e de emboscada (...)41

    (grifos meus).

    Motivo torpe e de emboscada so circunstncias qualificadoras do

    crime de homicdio, segundo o art. 121, 2, incisos I e IV, do Cdigo Penal,

    respectivamente42. Ora, ento lcito concluir que o Ministro considera que

    tanto a gravidade do crime como a periculosidade dos agentes so motivos

    suficientes para a priso preventiva. Isso no equivale a dizer, no entanto, que

    a simples presena de qualificadoras enseja a priso preventiva devido

    gravidade do crime. Ser que haveria necessidade da juno dos dois fatores

    (periculosidade e gravidade do crime) para tanto? E se houvesse apenas um

    deles presentes, o Ministro ainda assim denegaria o habeas corpus? Da leitura

    isolada deste acrdo no podemos extrair uma concluso a respeito.

    Entretanto, da anlise dos acrdos anteriores foi possvel notar que, ao

    menos quanto periculosidade do indivduo, o Ministro Ricardo Lewandowski

    considerou fator suficiente para a manuteno ou decretao dessa priso

    cautelar ou, ao menos, o que ele considerou ser periculosidade.

    Mas, voltando ao presente caso, ainda haveria um terceiro fundamento

    para o voto do Ministro, qual seja, o fato de a credibilidade da Justia e a

    confiabilidade de outros rgos governamentais estarem em jogo43. Isso,

    todavia, no foi muito bem explicado em seu voto, de sorte que posso julgar

    ser essa uma obiter dictum e no a ratio decidendi de seu voto.

    41 Pg. 490 do acrdo. 42 Art 121. Matar algum: Pena recluso, de 6 (seis) a 20 (vinte) anos. (...) 2 Se o homicdio cometido: I mediante paga ou promessa de recompensa, ou por outro motivo torpe; (...) IV traio, de emboscada, ou mediante dissimulao ou outro recurso que dificulte ou torne impossvel a defesa do ofendido. (...) Pena recluso, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos. 43 Pg. 490 do acrdo.

  • 22

    Por fim, uma ltima observao cabvel ao voto do Ministro Ricardo

    Lewandowski a utilizao de doutrina, a fim de explicitar um pouco o que

    seria o conceito de ordem pblica44.

    J o Ministro Marco Aurlio apresentou um voto bem sucinto, em que

    sustentou que se est diante de caso em que a priso se fez para cumprimento

    de pena, sem formao devida da culpa, como seria de se esperar no processo

    penal. O Ministro tambm discordou da Smula 267 do STJ45, pois para ele a

    disposio contraria o princpio da no-culpabilidade, fatores que o levam a

    deferir a ordem de habeas corpus.

    O Ministro Seplveda Pertence acompanhou o Ministro Marco Aurlio, no

    seguintes termos:

    Entendo que nem a gravidade do fato imputado nem a intuio da

    periculosidade, a partir dele inferida, se encaixam nos fundamentos estritos da

    priso preventiva. Continuo convencido de que a admisso da priso

    preventiva, para a garantia da ordem pblica, no pode servir, com todas as

    vnias, para a antecipao da pena46.

    Aqui o Ministro no aceitou a periculosidade como fundamento,

    diferentemente do que decidiu no acrdo anterior (mais recente). Ser isso

    uma falha de coerncia entre seus votos? Talvez. Nunca teremos certeza do

    que se passa na mente de um juiz na hora de sua deciso mas, ao menos

    nesse caso, parece que o Ministro Seplveda Pertence quis dizer que o que

    inadmissvel para ele a periculosidade aferida, deduzida da gravidade do

    crime; ela poderia, portanto, ser fundamento da priso preventiva se verificada

    a partir de dados concretos47.

    44 Ele cita Mirabete, Julio Fabbrini. Cdigo de Processo Penal interpretado. 11. ed. So Paulo: Atlas, 2003. P. 803. 45 Ver nota 34. 46 Pg. 492 do acrdo. 47 HC 90.413, pg 682.

  • 23

    Da leitura dos votos dos Ministros Marco Aurlio e Seplveda Pertence

    percebi argumentaes coerentes, mas simplrias, principalmente se

    comparadas com a do Ministro Ricardo Lewandowski. Isso, no entanto, no

    motivo para uma crtica to veemente aos votos, ainda mais se se considerar

    que na matria penal o nus sempre da acusao, ou seja, seria esperado

    que para se manter a restrio de liberdade do paciente haja uma necessidade

    maior de argumentao, enquanto que para a sua defesa isso no seja to

    essencial.

    3.4. HC 88.476-8/DF (DJ de 06.11.06)

    Novamente temos em pauta um habeas corpus com pedido de liminar

    contra deciso do STJ que manteve priso preventiva de Josimar Pereira de

    Souza, acusado de tentativa de homicdio qualificado, com aumento de pena,

    em concurso de pessoas (art. 121, 2, incisos II, IV e V, 4, 2 parte;

    art.14, II e art. 29).

    Os impetrantes alegaram, semelhana dos outros acrdos aqui

    estudados, a ocorrncia de constrangimento ilegal do paciente, em razo de

    ausncia de fundamentao da priso preventiva decretada.

    Neste ponto, vale a pena uma observao: parece no ser precipitado

    demais afirmar que a suposta ausncia de fundamentao um argumento

    recorrente na defesa do paciente do habeas corpus, o que poderia levar

    concluso de que isso algo valorizado nos votos dos ministros do STF.

    Todavia, o que percebo at aqui justamente o contrrio, visto que o Tribunal

    no parece entrar no mrito da fundamentao da priso, mas apenas analisar

    o cabimento ou no em cada caso especfico de modo muito genrico, tendo

    em vista as possibilidades da ocorrncia da medida cautelar48.

    48 Esse ponto ser retomado mais adiante, bem como na concluso.

  • 24

    Da leitura do acrdo, percebi que novamente as justificativas da

    necessidade da priso foram muito questionveis, j que ela foi decretada com

    base nos autos do Inqurito Policial, do qual se poderia aferir, segundo o ato

    decisrio da medida, a gravidade do delito ocorrido, que trouxe insegurana

    comunidade e subtraiu a paz pblica49. Alm disso, alegou-se que:

    A natureza do crime, somada s circunstncias da situao ftica

    criminosa (...) revelam a periculosidade de que so possuidores os

    acusados e as obstinaes nos seus intentos, corroborando a necessidade da

    decretao da custdia preventiva dos representados50 (grifo meu).

    Mais curiosa ainda se mostrou a seguinte passagem do decreto de

    priso:

    Ademais, o conceito de ordem pblica no se limita a prevenir a

    credibilidade da justia em face da gravidade do crime, mormente em casos

    como esse, em que os motivos do crime so repugnantes51.

    O decreto, que teve trecho transcrito pelo Ministro Gilmar Mendes em

    seu voto, confuso e no deixa clara a necessidade da priso, pela anlise que

    pude fazer. Houve uma confuso entre as possibilidades de decretao da

    priso preventiva, bem como das circunstncias que legitimaram tal medida

    em face da garantia da ordem pblica. Os dois trechos acima elencados

    ilustram bem o segundo problema. No primeiro excerto h a idia de que a

    periculosidade pode ser inferida da gravidade do crime, algo que posso afirmar

    no ser unnime dentre os ministros do STF, pois j indiquei no presente

    trabalho que alguns deles diferenciam bem os dois critrios, inclusive no

    aceitando a gravidade do delito como justificadora da priso, pois isso no

    seria fundamento para a medida cautelar. Estaramos, ao invs disso, tendo o

    49 Pg. 591 do acrdo (ver nota 39). 50 Pg. 591 do acrdo (ver nota 39). 51 Pg. 592 do acrdo.

  • 25

    prprio julgamento do caso, transformando assim a priso em uma

    antecipao de pena e ferindo a garantia da presuno de inocncia52.

    J o segundo trecho mais confuso. Alegou-se que a ordem pblica no

    est relacionada apenas credibilidade da justia que, segundo se coloca,

    decorreria da gravidade do crime. Isto , quando a sociedade se depara com

    um delito considerado grave, pelo senso comum, haveria uma obrigao da

    Justia em aplicar exemplarmente uma punio, a fim de manter a confiana

    das pessoas na mesma. Alm do fato de o raciocnio ser retrgrado e fundado

    em questes emocionais, o decreto estipulou que a ordem pblica no deve se

    restringir a isso, visto que tambm seria importante considerar os motivos do

    crime que, na situao, seriam repugnantes. Mas o que seria ento esse

    conceito? Novamente posso perceber a dificuldade que o Judicirio tem em

    formular uma definio precisa nesse sentido53, sendo no rara essa confuso

    de critrios.

    No entanto, h um outro problema a ser discutido, conforme alertei

    anteriormente: o acrdo do STF, bem como o decreto em questo, no

    explicitaram qual foi a justificadora da priso preventiva, se a garantia da

    ordem pblica, a convenincia da instruo criminal ou a garantia de aplicao

    da lei penal. Parece que os trs fatores influram para tanto, mas em nenhum

    momento houve o estabelecimento de um como o decisivo, pelo menos no

    apontado de forma claro por algum dos ministros. Mas inegvel que as

    maiores consideraes feitas recaram no mbito da garantia da ordem pblica.

    Cito ainda a concluso do decreto de priso, igualmente contida no voto

    de Gilmar Mendes:

    52 Voto do Seplveda Pertence no HC 90.413-1/GO. 53 Tem-se, entretanto, uma definio de Moreira Alves que muito semelhante ao trecho acima discutido: no conceito de ordem pblica no se visa apenas prevenir a reproduo de fatos criminosos, mas acautelar o meio social e a credibilidade da Justia, em face da gravidade do crime e de sua repercusso. A convenincia da medida deve ser revelada pela sensibilidade do juiz reao do meio ambiente ao criminosa (STF, RHC 65.043-1/RS, rel. Min. Carlos Madeira, DJU, 22 maio 1987, p. 9756).

  • 26

    Assim, presentes os pressupostos da priso preventiva indcios de

    autoria e certeza da materialidade aliados necessidade da segregao do

    ru como medida de garantia da ordem pblica, convenincia da

    instruo criminal e garantia da aplicao da lei penal (...)54 (grifos

    meus).

    O parecer da PGR, tambm citado no voto de Gilmar Mendes, pelo no

    conhecimento da medida, fez longa transcrio do decreto de priso

    supracitado, especialmente dos trechos em que se enfatiza a gravidade do

    crime ocorrido, bem como seus pormenores que o tornaram ainda mais

    repugnante. O parecer tambm ressaltou o risco segurana de alguns

    indivduos envolvidos no caso, na hiptese de se conceder a liberdade do

    acusado, alm de explicar a questo da periculosidade no seguinte ponto,

    utilizando o voto de um ministro do STJ:

    (...) restando evidente das circunstncias objetivas do fato-crime a

    periculosidade do paciente, cuja conduta imputada contratar,

    mediante promessa de recompensa, dois agentes que praticaram o

    homicdio exige a sua constrio, em defesa da ordem pblica55

    (grifo da PGR).

    Outro argumento relacionado no parecer a importncia de se manter a

    credibilidade do Judicirio e mais do que isso, das prprias instituies

    pblicas, com base em precedente do prprio STF56. Ainda citado um habeas

    corpus, tambm julgado pela Suprema Corte, que legitimaria o no

    54 Pg. 592 do acrdo. 55 Pg. 495 do acrdo. 56 HC 80.717-8/SP. Rel. MIN. Ellen Gracie DJ 05.03.2004 h no acrdo transcrio da deciso de 1 grau denegatria do habeas corpus. Muito ilustrativo o seguinte fragmento: A garantia da ordem pblica no se resume em, to-s, evitar a ocorrncia de novos delitos. tambm, principalmente, resguardar a credibilidade e a respeitabilidade das instituies pblicas (pgs. 712 e 713 do acrdo).

  • 27

    conhecimento da ao57, e, por fim, frisa-se que a priso preventiva no fere o

    princpio da presuno de inocncia.

    Ainda no voto do Ministro Gilmar Mendes houve meno ao HC

    88.537/BA, ocasio em que ele foi relator e na qual estabeleceu trs

    circunstncias principais para a possibilidade de decretao da priso

    preventiva com base na garantia da ordem pblica, considerando-as vlidas:

    i) resguardo da integridade fsica do paciente;

    ii) impedir a reiterao de prticas criminosas, desde que lastreado

    em elementos concretos expostos fundamentadamente no decreto

    de custdia cautelar;

    iii) assegurar a credibilidade das instituies pblicas, principalmente

    do Poder Judicirio.

    No referido precedente citado pelo Ministro, que teve parte de seu voto

    transcrito no presente habeas corpus, houve longas citaes doutrinrias e de

    casos j julgados pelo STF58, a fim de se comprovar a necessidade da medida

    cautelar em certos casos.

    O Ministro Gilmar Mendes tambm discorreu a respeito da deciso do

    Tribunal do Jri, que mencionou que a liberdade dos acusados poderia causar o

    constrangimento de testemunhas, fato que foi utilizado pelo Ministro para

    fundamentar tanto a ordem pblica como a instruo criminal. Ordem pblica,

    na medida em que a priso cautelar teria a finalidade de impedir a reiterao

    57 Referncia ao HC 82.156/RJ citado sem muita propriedade no caso em questo, visto que esse habeas corpus no foi conhecido devido ao fato de no haver propriamente uma impugnao deciso do STJ que indeferiu a medida, apenas uma argumentao questionando a deciso de 1 instncia, com a citao de voto vencido de ministro do STJ. No nenhum pouco parecida a situao que est em anlise, pois parece ter havido uma concreta contestao deciso da instncia inferior, isto , o STJ. 58 HC 84.680/PA (1 Turma, unnime, Rel. Min. Carlos Britto, DJ de 15.04.05); HC 82.149/SC (1 Turma, unnime, Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 13.12.2002); HC 82.684/SP (2 Turma, unnime, Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 1.08.03); HC 80.717/SP (Plenrio, maioria, Rel. Min. Seplveda Pertence, DJ de 05.03.2004) e HC 83.157/MT (2 Turma, unnime, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ de 05.06.2006).

  • 28

    ou a consumao de novas prticas criminosas59, enquanto a instruo

    criminal estaria resguardada ao se evitar o constrangimento de testemunhas.

    A fim de confirmar o seu posicionamento, o Ministro Gilmar Mendes citou

    o RHC 81.395/ TO (2 Turma, unnime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de

    15.08.03), no qual tambm se entendeu vlida a decretao de uma priso

    preventiva com base tanto na garantia da ordem pblica quanto na aplicao

    da lei penal.

    No que tange garantia da lei penal, o ministro tambm ressalta que a

    fuga (circunstncia que se encontra no mbito da aplicao da lei penal,

    conforme explicado na introduo) no pode ser o nico fundamento da priso

    que, dessa forma, padeceria de idoneidade60.

    Finalmente, o Ministro Gilmar Mendes ainda arrolou dois precedentes61

    que, segundo suas prprias palavras, referiam-se ao fato de a priso

    preventiva constituir-se medida cautelar de natureza excepcional, destinada a

    coibir o periculum libertatais, em benefcio da atividade estatal62.

    Aps esse longo voto, que indeferiu o pedido e foi seguido pela maioria

    dos membros da 2 Turma, o que ficou de concreto? Na minha anlise, apenas

    que a priso preventiva uma medida excepcional, mas que parece poder ser

    aplicvel ao caso, pela nica razo de que o paciente pode vir a cometer algum

    ato indesejvel no futuro: seja ameaar as testemunhas existentes (instruo

    criminal prejudicada), seja cometer novos delitos (ordem pblica

    comprometida). Isto , est-se fazendo um exerccio de futurologia, havendo

    59 Pg. 602 do acrdo. 60 Para isso o Ministro Gilmar Mendes mencionou o HC 80.719 (2 Turma, unnime, Rel. Min. Celso de Mello, DJ de 26.06.01), no qual o Ministro-relator afastou vrias circunstncias como aptas a, isoladamente, fundamentar um decreto de priso preventiva. So elas: clamor pblico, possibilidade de fuga e preservao da credibilidade das instituies e da ordem pblica. Asseverou-se aqui que a priso preventiva no pode servir de antecipadora da pena, da a necessidade de ser bem fundamentada, respeitando-se sempre o princpio da no-culpabilidade. 61 HC 85.335/PA (2 Turma, unnime, Rel. Min Gilmar Mendes, DJ de 11.11.2005) e HC 87.425/ PE (1 Turma, unnime, Rel. Min. Eros Grau, DJ de 05.05.06). 62 Pg. 604 do acrdo.

  • 29

    uma dupla violao do princpio da presuno de inocncia: considera-se o

    indivduo culpado e se julga que ele ir delinqir novamente, da a necessidade

    da medida cautelar, raciocnio esse que parece se configurar um claro

    julgamento antecipado da conduta praticada.

    O Ministro Cezar Peluso, por sua vez, foi em sentido contrrio ao do

    Ministro Gilmar Mendes, concedendo a ordem de habeas corpus, pois para ele

    nenhum dos fatos narrados constituiu fundamento legal suficiente para a

    decretao da priso preventiva. Ele baseou seu voto em trs questes

    centrais: a suposta necessidade de acautelar o prestgio e a credibilidade da

    Justia, fato que, para ele, no corresponde a qualquer exigncia legal63, a

    ameaa a testemunhas a periculosidade dos acusados.

    A ameaa a testemunhas se enquadra entre as hipteses em que a

    convenincia da instruo criminal pode ser prejudicada, conforme o explicado

    na introduo. Todavia, ela tambm pode influir na ordem pblica, conforme

    cogitou o prprio ministro. No caso em questo, porm, isso no foi levado em

    conta como argumento para a manuteno da priso pelo Ministro Cezar

    Peluso, visto que para ele no se poderia inferir que o ru certamente

    ameaaria alguma testemunha caso fosse colocado em liberdade.

    Quanto periculosidade, foi muito ilustrativo o trecho em que o ministro

    disps:

    Quanto a outro fato invocado pela deciso de primeiro grau e que seria

    a periculosidade dos acusados, tambm no h nenhum fato especfico

    que a demonstre. O juzo de periculosidade , evidentemente, conseqncia

    de um juzo de culpabilidade. Ora, no se sabe ainda se de fato so culpados,

    porque no foram ainda submetidos a julgamento!64 (grifos meus).

    63 Para tanto o ministro cita os seguintes casos: RHC 67.382-1/SP, HC 82.909-1/PR e HC 84.884-2/ES. 64 Pg. 606 do acrdo.

  • 30

    justamente esse o ponto crucial com o qual estou lidando aqui. Se no

    h fundamentao, no se pode decretar uma medida to gravosa como a

    restrio de liberdade.

    Por fim, o ministro alegou que o risco de fuga tambm no motivo

    suficiente para justificar a priso preventiva, segundo a prpria jurisprudncia

    do STF65 levantada pelo Ministro, que foi voto vencido no acrdo.

    3.5. HC 89.196-9 (DJ de 16.02.07)

    Aderico Pereira foi acusado de praticar os crimes de estupro e atentado

    violento ao pudor, com qualificadora de presuno de violncia, j que a vtima

    era menor de catorze anos (arts. 213, 214 e 224, a, do Cdigo Penal, na forma

    dos arts. 71 e 226, III, do mesmo diploma legal). A priso preventiva foi

    decretada em 22 de outubro de 2003 e revogada em 08 de maro de 2004,

    por excesso de prazo na formao da culpa. Entretanto, a priso foi

    restabelecida graas a recurso em sentido estrito interposto pelo Ministrio

    Pblico Estadual junto ao Tribunal de Justia do Estado da Bahia.

    O decreto de priso foi fundado na ordem pblica pautada na gravidade

    do delito, em sua repercusso e no clamor social, circunstncias consideradas

    insuficientes pelo impetrante do habeas corpus, que ainda aventou outros

    fatores para defender a desnecessidade da medida cautelar (condies

    favorveis do paciente, o fato de a instruo criminal j ter se encerrado, o

    que no conferiria mais justificativa priso, falta dos outros pressupostos

    para a preventiva). Alm disso, o decreto de priso tambm estaria fundado na

    convenincia da instruo criminal, segundo o relatrio do Ministro Ricardo

    Lewandowski.

    65 HC 85.519-9/PR (Rel. Min. Eros Grau) e HC 82.903-1/SP (Rel. Min. Seplveda Pertence).

  • 31

    No voto do Ministro Ricardo Lewandowski, est contida uma definio

    doutrinria acerca do que seja a ordem pblica, bem como trechos da deciso

    de 1 grau e do STJ. De tais trechos se pode inferir que no havia nada

    concreto que justificasse a necessidade de segregao do paciente, bem como

    dos demais acusados do crime; havia apenas o desejo de se amenizar a

    repercusso social causada pelo crime, considerado grave pela sociedade.

    Nesse sentido, as informaes prestadas pela juza da Comarca de Condeba

    foram bem claras:

    O paciente e os demais acusados permaneceram na Comarca aps a

    concesso de liberdade provisria sem praticar qualquer ato comprometedor

    ordem pblica e instruo do processo66.

    O Ministro Ricardo Lewandowski se mostrou favorvel concesso do

    habeas corpus, defendendo que a priso preventiva no pode ser decretada

    apenas com base na suposta gravidade do crime. Para comprovar a idia ele

    ainda citou dois casos j julgados pelo STF: HC 87.730/MT, no qual se falou

    que a gravidade do tipo ou do fato criminoso em concreto no podem ser

    considerados para a decretao de priso preventiva com base na garantia da

    ordem pblica, alm de lembrar que existe firme jurisprudncia do Tribunal

    que assegura que, em regra, com o fim da instruo criminal, no h que falar

    em sua convenincia para manter a medida cautelar; e o HC 87.577/MT, no

    qual se disps que consideraes em abstrato acerca da magnitude do delito

    imputado aos pacientes no so suficientes para fundamentar a mesma

    hiptese de priso preventiva.

    O Ministro disse ainda que inexistia nos autos qualquer referncia

    eventual periculosidade do agente, de modo que no restou qualquer

    justificadora para a priso, visto que um suposto risco de fuga tambm no

    seria vlido como argumento67.

    66 Pg. 360 do acrdo. 67 O ministro citou um trecho do HC 87.425-8/PE, no qual se disps que a custdia cautelar no pode ter suporte na fuga do paciente.

  • 32

    A partir do exposto, creio que posso tirar algumas concluses. O Ministro

    Ricardo Lewandowski no aceitou a gravidade do crime como fundamento da

    priso preventiva. Segundo suas prprias palavras, o impacto do crime e a

    repercusso social no me parecem suficientes para considerar ameaada a

    ordem pblica68, da o deferimento da ordem de habeas corpus. Quanto

    periculosidade, que o foco deste trabalho, o Ministro no teceu grandes

    consideraes a respeito, apenas afirmou que no havia nada que a

    comprovasse. Todavia, j se sabe, pelos acrdos anteriormente analisados,

    que a periculosidade aceita por ele como hiptese de priso preventiva com

    base a garantia da ordem pblica.

    O Ministro Carlos Britto, entretanto, indeferiu o habeas, pois para ele a

    liberdade dos acusados estava gerando um risco muito grande para os

    cidados (os pacientes estavam aguardando o julgamento em liberdade), algo

    que o ministro tentou comprovar por meio de longo excerto da deciso da juza

    de 1 grau que determinou a priso preventiva dos acusados. A juza defendeu

    a necessidade da priso para garantir a ordem pblica e a convenincia da

    instruo criminal, pois a liberdade deles representa alta probabilidade de

    virem a perturbar a tranqilidade das vtimas69, alm do fato que a

    convenincia da instruo criminal evidencia a necessidade de coleta de provas

    no ser perturbada, impedindo a busca da verdade real70. Entretanto, a

    instruo criminal j estava consumada no momento do julgamento do habeas

    corpus pelo STF, de modo que o nico fundamento que restou para a priso foi

    a garantia da ordem pblica, conforme disps o prprio Ministro Carlos Britto.

    A partir dessas consideraes o Ministro passou a defender a

    necessidade da medida cautelar, que serviria como instrumento de garantia da

    ordem pblica. possvel identificar a, no entanto, algo perceptvel em quase

    todos os acrdos lidos: a confuso entre as circunstncias justificadoras de

    68 Pg. 363 do acrdo. 69 Pg. 367 do acrdo. 70 Pg. 368 do acrdo.

  • 33

    ameaa ordem pblica. Assim, em seu voto o ministro falou de segurana no

    meio social71, tentativa de se impedir que o acusado pratique novos delitos,

    garantia da incolumidade fsica das pessoas (possveis novas vtimas do

    paciente), gravidade dos delitos (o que causaria uma grande repercusso

    social) e clamor pblico72. Ora, no meio de tudo isso, qual o real fundamento

    da priso? difcil saber, pois quase todos os argumentos foram jogados nesta

    caixa indefinida que a ordem pblica.

    Cabe ainda lembrar que quando se argumenta, como foi o caso, que

    deve se manter o indivduo preso para que ele no faa novas vtimas, h uma

    dupla violao ao princpio da presuno de inocncia. Se considera, em

    primeiro lugar, que a pessoa realmente cometeu o delito e deve ser presa por

    isso, em uma clara medida antecipatria da pena, j que no ocorreu o

    trnsito em julgado da sentena condenatria. Em segundo, porque se est

    julgando que esse indivduo ir praticar novos crimes, isto , est se tentando

    prever a sua conduta futura, sem quaisquer elementos para tanto.

    Aps o voto-vista do Ministro Carlos Britto, houve um debate entre os

    ministros, durante o qual os argumentos foram repetidos.

    A Ministra Crmen Lcia votou acompanhando o relator, apenas

    ressaltando que o horror do crime no pode ensejar a no aplicao das leis ao

    caso.

    Finalmente, o Ministro Seplveda Pertence tambm acompanhou o

    relator, deferindo o habeas corpus. Ele alegou que elementos como gravidade

    do fato, menoridade das vtimas, clamor social e outros so insuficientes para

    fundamentar a priso e s evidenciam essa nsia de pr-julgar ou de atender

    a repercusses miditicas de fatos ainda no julgados73. Fora isso, ele atentou

    71 Trechos do HC 83.157-5/MT (Rel. Min Marco Aurlio) e do HC 84.761-7/SC (Rel. Min. Eros Grau) so citados pelo ministro para comprovar seu argumento. 72 O Ministro Carlos Britto citou trecho do HC 82.149-9/SC (1 Turma, Rel. Min. Ellen Gracie), no qual se disse que o crime em questo era daqueles que podem causar tumulto e pnico. 73 Pg. 380 do acrdo.

  • 34

    confuso da fundamentao do decreto de priso preventiva em primeiro

    grau.

    Destarte, a 1 Turma do STF concedeu o habeas corpus por maioria,

    vencido o Ministro Carlos Britto. No entanto, o que poderia parecer uma

    mudana de orientao dos ministros no tocante ao tema no o foi, pois esse

    caso estava pautado principalmente no argumento da gravidade do delito e

    no na periculosidade do agente, que at agora foi aceita pela maior parte dos

    ministros como fundamento idneo da priso preventiva com base na garantia

    da ordem pblica, embora isso seja extremamente questionvel, considerando

    ainda que muitas vezes essa alegada periculosidade se mostrou um tanto

    subjetiva e carente de contornos mais slidos.

    3.6. HC 87.194-1/SE (DJ de 06.10.06)

    Nildo Macdo da Silva foi denunciado em co-autoria com mais trs

    pessoas pela prtica de roubo qualificado e formao de quadrilha. O habeas

    corpus foi impetrado no STF contra deciso do STJ, que manteve a priso

    preventiva do paciente com base em sua periculosidade e sua personalidade

    voltada para o crime, que transparecia na suposta prtica de vrios delitos.

    Conforme estava disposto no acrdo impugnado:

    A reiterao de condutas delituosas, ainda que se cuide de ru portador

    de bons antecedentes, motivo suficiente para fundamentar o crcere

    cautelar, como garantia da ordem pblica74.

    O acrdo ainda discutiu questo relativa ao excesso de prazo na

    instruo criminal75, que no interessa aos fins deste trabalho.

    74 Pg. 627 do acrdo. 75 So citados, inclusive, quatro precedentes a respeito: HC 81.905-PE, HC 85.611/DF, HC 80.380/SP e HC 81.616/CE.

  • 35

    O Ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, afirmou que a garantia da

    ordem pblica se consubstanciaria na periculosidade da quadrilha que o agente

    foi acusado de integrar, com base em informaes das decises das instncias

    inferiores e do Ministrio Pblico. Destarte, sustentou seu voto no sentido de

    sanar a intranqilidade social que a liberdade do agente poderia causar. O

    interessante que o trecho que o Ministro citou, referente deciso do

    magistrado de primeiro grau, no dizia respeito periculosidade, mas sim

    gravidade da infrao praticada, o que supostamente causaria essa

    intranqilidade a que fez referncia o ministro.

    O Ministro Joaquim Barbosa ainda citou trs precedentes para

    fundamentar a legitimidade da priso preventiva em caso de periculosidade do

    agente: HC 83.277 (Rel. Min. Ellen Gracie, DJ de 26.09.03), RHC 81.516 (Rel.

    Min. Sydney Sanches, DJ de 11.04.03) e HC 82.179/BA (ReL. Min. Gilmar

    Mendes, DJ de 1. 08.03).

    Apenas consegui encontrar o inteiro teor do HC 82.179 no stio

    eletrnico do STF. Esse acrdo aceitou como fundamentos da priso

    preventiva a gravidade do crime e a periculosidade do agente. Todavia, o que

    se percebe que os ministros entenderam que a periculosidade apenas pde

    ser inferida a partir do modo como foi praticado o crime, sendo que a mera

    gravidade abstrata do crime ocorrido, por si s, no justificaria a medida

    cautelar. Isto , devemos ter um crime grave, com circunstncias que

    choquem a sociedade, tais como modo de execuo do delito, crueldade dos

    atos praticados etc. Ento, a partir da, ter-se-ia uma base suficiente que

    permitiria alegar a periculosidade do indivduo e, juntamente com os outros

    fatores elencados, afirmar a necessidade da priso.

    Pelo que eu pude verificar nos acrdos lidos, isso demonstra uma

    tendncia extremamente comum quando da fundamentao de um decreto de

    priso preventiva, seja pela autoridade que efetivamente a decretou, seja por

    uma instncia julgadora que analisa o cabimento ou no da medida: na quase

  • 36

    totalidade dos casos, mais de um fundamento foi trazido tona. Assim,

    justifica-se a priso com base na garantia da ordem pblica, na convenincia

    da instruo criminal e para garantir a aplicao da lei penal. Da mesma

    forma, quando se quer dizer que a priso foi decretada com base na garantia

    da ordem pblica, foi freqente a alegao de mais de uma circunstncia

    justificadora para tanto, tais como periculosidade, gravidade do delito, clamor

    pblico, entre outras.

    O HC 81.516, por sua vez, foi decidido monocraticamente e j transitou

    em julgado (decidiu-se pelo no conhecimento da ao). Da no haver

    acrdo nem emenda disponveis. J o HC 83.277 teve o pedido de liminar

    indeferido em 21 de julho de 200376. Nessa deciso no se fez qualquer

    meno periculosidade, pelo menos no material com o qual pude ter contato.

    E, se o HC 81.516 no foi sequer conhecido, obviamente no temos aqui

    qualquer elocubrao do Tribunal a respeito da periculosidade como

    fundamento para a manuteno da priso preventiva, ao contrrio do que

    disse o Ministro Joaquim Barbosa em seu voto.

    3.7. HC 84.981-4/ES (DJ de 22.04.05)

    Edson Paves de Medeiros foi preso em flagrante delito pela prtica do

    crime de homicdio tentado (art. 121, 2, II e IV, e 121, 2, II e IV, c/c art.

    14, II, do Cdigo Penal) e teve seu pedido de liberdade provisria negado pelo

    indeferimento do habeas corpus impetrado no STJ, deciso contra a qual o

    paciente se voltou por meio da presente medida.

    O relator para o caso, Ministro Carlos Velloso, elencou as circunstncias

    e os motivos do crime, a partir de trechos da denncia, tais como motivo torpe

    do crime, que os delitos foram perpetrados mediante simulao77 e que no

    76 Essas duas informaes foram obtidas graas a uma solicitao por email no stio do STF, em http://www.stf.gov.br/portal/jurisprudenciaEmail/criarSolicitacaoEmail.asp. 77 Pg 173 do acrdo.

  • 37

    tiveram as vtimas oportunidades de esboar defesa alguma78. Alm disso, o

    Ministro tambm transcreveu parte da deciso do STJ, que foi bem clara ao

    afirmar:

    (...) a soltura do paciente acarreta risco iminente de leso ordem

    pblica79.

    E, mais adiante:

    Desta forma a gravidade dos delitos, em tese, praticados pelo

    paciente, bem como o seu modus operandi, at onde a estreita via do

    mandamus permite chegar, denotam, concretamente, indcios de sua

    periculosidade, suficientes fundamentao da segregao cautelar80

    (grifos no original).

    Aqui apareceu novamente algo para o qual eu j havia chamado a

    ateno anteriormente: freqente que se argumente que a periculosidade

    decorre da gravidade do delito, como se a pessoa dita perigosa apenas o

    fosse devido suposta gravidade dos atos por ela praticados,

    desconsiderando outros fatores mais concretos, bem como uma anlise mais

    aprofundada das caractersticas do agente.

    Isso porque, independentemente de se considerar a periculosidade uma

    justificativa vlida para esse tipo de medida cautelar, a necessidade de

    fundamentao da deciso imprescindvel em qualquer caso. Isto , se se

    quer segregar um indivduo porque ele demonstra traos de periculosidade,

    essencial que, em primeiro lugar, se mostre, concretamente, essa

    periculosidade. E isso, pelo que pude demonstrar at agora, no foi cumprido

    com rigor pelo Judicirio brasileiro, em especial o STF81.

    78 Pg 173 do acrdo 79 Pg 174 do acrdo. 80 Pg 174 do acrdo. 81 O STF, assim, chancelou essas decises de primeiro grau, que entenderam que a periculosidade decorre da gravidade do crime e de seu modus operandi.

  • 38

    No presente acrdo, o Ministro Carlos Velloso aceitou o entendimento

    do STJ de que, no caso, a periculosidade decorreria da gravidade do crime, ao

    afirmar que se essa periculosidade alia-se gravidade e violncia do crime,

    tenho como perfeitamente justificada a priso, que ocorreu em razo do

    flagrante82. O Ministro ainda citou precedente83 nesse sentido, a fim de dar

    maior solidez ao seu voto.

    Os outros ministros tambm aceitaram os argumentos, de forma que a

    2 turma, por votao unnime, denegou o habeas corpus.

    3.8 RHC 85.112-6/SC (DJ de 05.08.05)

    Paulo Roberto Ponath foi denunciado, acusado de participar de

    organizao criminosa oriunda de Joinville e cujas atividades consistiam no

    furto de caixas eletrnicos por todo o pas, bem como na ocultao dos ativos

    auferidos nas subtraes. Sua priso preventiva foi decretada principalmente

    para se evitar a continuidade de prticas ilcitas, j que o risco de reiterao

    delitiva seria enorme, dadas as circunstncias existentes. O presente habeas

    corpus teve a finalidade, portanto, de impugnar a deciso do STJ que manteve

    a segregao cautelar do agente.

    O Ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, novamente se utilizou da

    argumentao contida nas outras etapas do processo (decretao da priso,

    julgamento de recurso, deciso do STJ a respeito) para concordar com a

    afirmao de que havia um risco para a ordem pblica, na medida em que

    havia a possibilidade de o indivduo voltar a delinqir, fato esse que tambm

    foi fundamento para se alegar sua periculosidade.

    82 Pg. 177 do acrdo. 83 RHC 67.261-2/SP (Rel. Min. Moreira Alves, 1 Turma, DJ de 14.04.89).

  • 39

    Alm disso, outro fato que chamou a ateno no caso foi o fato de o

    indivduo ser membro de organizao criminosa. Conforme disse o relator em

    seu voto:

    Com efeito, ao contrrio do que se alega na petio inicial, existem nos

    autos elementos concretos, e no meras conjecturas, que apontam o

    paciente como importante integrante da organizao criminosa em

    comento84 (grifos meus).

    Mas ser que a circunstncia de algum ser membro de uma

    organizao criminosa suficiente para justificar sua priso com base na

    garantia da ordem pblica, por mais que isso esteja comprovado a partir de

    elementos concretos, conforme afirmou o ministro? Isso algo no mnimo

    questionvel e deveria merecer uma reflexo um pouco maior pela Suprema

    Corte de nosso pas.

    Dois precedentes85 ainda foram aventados pelo Ministro Joaquim

    Barbosa, a fim de mostrar que o STF aceita a reiterao criminosa e a

    periculosidade do agente como fundamentos da priso cautelar.

    Todavia, ao final de seu voto, est presente a seguinte concluso do

    Ministro: Concluo, portanto, que a manuteno da priso cautelar do paciente

    necessria, como forma de ao menos dificultar a atuao da organizao

    criminosa86. Essa fala revelou que, no fundo, a segregao do indivduo

    deveria se dar por um motivo de controle: as organizaes criminosas

    existentes esto fora do controle do Estado, logo, o Judicirio apareceria como

    uma alternativa para, se no ser a soluo, pelo menos para amenizar esse

    problema, por meio da retirada desses indivduos do meio social, o que de

    outro modo no poderia ser feito antes da condenao. O importante para ele

    84 Pg 319 do acrdo. 85 HC 82.684/SP (Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 1.08.03) e HC 72.865/SP (Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 09.08.96). 86 Pg. 320 do acrdo.

  • 40

    que o indivduo continue preso para dificultar as atividades da organizao

    criminosa e, assim, tentar conferir um pouco mais de tranqilidade

    comunidade. Se isso ou no funo do Judicirio fica difcil responder, ainda

    mais quando o problema envolve direitos fundamentais, qual seja, a liberdade

    de ir de vir. Mas certamente no se pode fechar os olhos a essa atuao de

    nossos Tribunais, independentemente de a considerarmos recomendvel ou

    no.

    Os outros ministros da 2 Turma acompanharam o Ministro-relator e o

    habeas corpus foi indeferido por unanimidade.

    3.9. RHC 84.847-8/SP (DJ de 03.06.05)

    Esse recurso ordinrio em habeas corpus foi interposto em favor de Luis

    Carlos Costa Matiussi e Daniel Tcmazin Matiussi Junior, denunciados e presos

    preventivamente pela prtica dos delitos tipificados nos arts. 12, 2, II e 14,

    da Lei 6.368/1976 (que trata de trfico ilcito de entorpecentes), c/c o art. 69

    do Cdigo Penal.

    O relator para o caso novamente foi o Ministro Joaquim Barbosa, que

    conheceu do recurso ordinrio e afastou a argumentao dos recorrentes de

    que a segregao cautelar no foi devidamente fundamentada. Para o Ministro

    a necessidade de resguardo da ordem pblica era patente no caso em questo,

    em razo da possibilidade de reiterao delituosa pelos recorrentes. Em sua

    argumentao o ministro atentou para o fato de que se estava diante de uma

    organizao de traficantes e que era preciso resguardar a ordem pblica

    desse tipo de associao criminosa, tentando-se ao mximo fazer cessar suas

    operaes87.

    87 Pg. 372 do acrdo.

  • 41

    Isso nos remete ao caso anterior, no qual o Ministro Joaquim Barbosa

    tambm se mostrou preocupado em manter um indivduo preso para tentar

    prejudicar as atividades de uma organizao criminosa, alm de igualmente

    mencionar o risco de reiterao dos delitos, da gravidade do delito e da

    periculosidade dos agentes.

    Ele no aceitou o risco de fuga como fundamento, ao falar que assiste

    razo aos recorrentes quanto ao argumento de que no se encontram

    foragidos, de modo que desnecessria a segregao no que se refere

    garantia da aplicao da lei penal88. Todavia, ele acreditava que a priso

    preventiva deveria ser mantida devido gravidade do delito que, somada

    periculosidade dos recorrentes, configuraria fundamento suficiente para a

    medida cautelar. Entretanto, o Ministro disse claramente que s a gravidade do

    delito no bastava para a decretao da segregao, confirmando assim uma

    espcie de tendncia do STF, de acordo com o que eu pude demonstrar da

    anlise dos acrdos anteriores. Isto , a periculosidade, por si s, pode ser

    trazida como fundamento para a priso preventiva (embora geralmente ela

    esteja associada a outras circunstncias); a gravidade do delito, no.

    Ao final de seu voto, que foi aceito por todos os ministros da 2 Turma,

    o que resultou no indeferimento do habeas corpus por unanimidade, o Ministro

    Joaquim Barbosa ainda trouxe dois casos julgados pelo STF no sentido de que

    o perigo da reiterao criminosa e a periculosidade do agente so fundamentos

    legitimadores da priso cautelar89.

    3.10. HC 84.658-1/PE (DJ de 03.06.05)

    Esse acrdo muito semelhante aos dois ltimos aqui analisados.

    Teresinha Medeiros de Souza foi acusada de integrar uma quadrilha de trfico

    88 Pg. 372 do acrdo. 89 HC 82.684 (Rel. Min. Maurcio Corra, DJ de 1.08.03) e HC 72.865 (Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 09.08.96).

  • 42

    internacional de rgos, cujo lder era de nacionalidade israelense, com

    ligaes tambm com a frica do Sul. Ela foi denunciada e presa sob a

    acusao de praticar os delitos descritos nos arts. 14, 2, III e 15, caput, da

    Lei 9.434/1997 (relativos remoo e ao trfico de rgos), c/c o art. 288 do

    Cdigo Penal (formao de quadrilha ou bando).

    O Ministro Joaquim Barbosa, que tambm foi o relator deste caso,

    afirmou que estavam presentes os pressupostos para a decretao da priso

    preventiva (prova de existncia do crime e indcio suficiente de autoria),

    segundo trecho por ele transcrito, em seu voto, do decreto de priso que,

    todavia, no foi muito explicativo.

    Quanto aos requisitos da medida, havia dois elencados e explicados pelo

    ministro: a garantia de aplicao da lei penal e a garantia da ordem pblica. A

    primeira se relacionava possibilidade de fuga da paciente, pelo fato de a

    quadrilha da qual ela era integrante manter relaes com outros pases, sendo

    ela um dos seus principais membros na poca. J a garantia da ordem pblica

    se consubstanciaria nas circunstncias de se evitar a reiterao delitiva e em

    virtude da periculosidade da paciente. No entanto, em nenhum momento do

    acrdo, nem no que foi apresentado da deciso de primeiro grau, houve a

    preocupao de se justificar essa alegada periculosidade. No houve excerto

    do decreto de priso, nem de decises de instncias inferiores que ao menos

    tentassem dar um maior aspecto concreto a esse elemento. Pelo contrrio, a

    ementa do acrdo questionado, do STJ, foi sucinta e tambm confusa. Com

    relao garantia da ordem pblica, aparece:

    (...) no h falar em ausncia de fundamentao do decreto de priso

    preventiva, restando evidenciada a sua necessidade como forma de garantia

    da ordem pblica, em face da flagrante ofensa da dignidade da pessoa

    humana, bem como para impedir o cometimento de novos crimes90 (grifos

    meus).

    90 Pg. 356 do acrdo.

  • 43

    O que significa essa flagrante ofensa da dignidade da pessoa humana

    e o que ela tinha a ver com a ordem pblica fica difcil saber, ao menos

    segundo a ementa que foi transcrita no voto do Ministro Joaquim Barbosa.

    Por fim, o ministro trouxe dois precedentes91 que, segundo ele,

    apontavam no sentido de que a periculosidade do agente, o risco de reiterao

    criminosa e a evaso do distrito de culpa seriam suficientes para a manuteno

    da priso cautelar. Assim, denegou-se a ordem, por deciso unnime da 2

    Turma, novamente.

    91 HC 72.685/SP (Rel. Min. Moreira Alves, DJ de 09.08.06), j citado no ltimo acrdo aqui analisado e HC 69.876/RJ (Rel. Min. Carlos Velloso, DJ de 18.12.92).

  • 44

    4. Concluso

    Ao longo deste trabalho procurei delinear o modo como o STF lida com

    os casos de priso preventiva decretados com base na garantia da ordem

    pblica, mais especificamente, aqueles em que o fundamento dessa medida

    cautelar foi a periculosidade do agente.

    Um ponto a ser ressaltado so os dados quantitativos obtidos. Dos dez

    acrdos analisados, nove foram pelo indeferimento do pedido de habeas

    corpus, de modo favorvel manuteno da priso preventiva com base na

    periculosidade do agente, o que nos levaria a concluir, em um primeiro

    momento, que o STF aceita essa periculosidade como causa vlida para a

    decretao da priso preventiva. Alm disso, o nico acrdo que foi deferido

    (rechaando a priso, portanto) no tinha a periculosidade como principal

    fundamento, mas sim a gravidade do delito.

    Todavia, no podemos nos esquecer dos votos vencidos presentes nos

    acrdos, tendo em vista que no h posicionamento solidificado acerca do

    tema, que controverso, sendo que a maior parte das aes judiciais surgiu

    nos ltimos anos. Isto , se de um lado obtivemos um placar no qual 90%

    dos habeas corpus foram indeferidos, talvez seja precipitado demais afirmar

    que o STF aceita de forma absoluta o argumento da periculosidade como

    fundamento da priso preventiva, ainda mais se considerarmos as idias

    contidas nos votos vencidos, ou seja, que a priso preventiva nessas situaes

    parece se configurar como uma antecipao de pena e no como uma medida

    cautelar propriamente dita. Essa foi uma das hipteses que eu tinha no incio

    do trabalho92, idia essa qual acabei aderindo aps ler os argumentos de

    ambos os lados nos acrdos analisados.

    Quanto anlise qualitativa, muitas concluses interessantes foram

    obtidas. A primeira delas foi a falta de fundamentao dos ministros para o

    92 Vide introduo e metodologia.

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    indeferimento do pedido, pois em vrios acrdos apenas se afirmou que

    determinado indivduo era perigoso com base em boatos ou em supostos

    crimes cometidos anteriormente, mas sobre os quais no recaiu qualquer

    condenao. E, conforme procurei deixar claro, quando se diz que determinada

    pessoa deve ficar presa para que ela no faa novas vtimas, estamos diante

    de uma dupla violao do princpio da presuno de inocncia. Uma vez

    violado, porque se est antecipando a pena do suposto delito cometido, visto

    que no ocorreu o trnsito em julgado da sentena penal condenatria porque,

    como o prprio nome diz, a priso preventiva, enquadrando-se no mbito

    processual, e no decorrente de sentena. J a segunda violao ao princpio

    reside no fato de se julgar que aquele indivduo ir cometer novos crimes

    devido ao seu carter perigoso, em uma clara previso de sua conduta futura

    sem uma justificativa legal satisfatria.

    Tambm foi possvel notar uma certa tendncia de cada ministro de

    decidir de determinada forma, embora haja algumas excees. O Ministro

    Joaquim Barbosa, por exemplo, nos trs acrdos em que foi relator decidiu

    pela no concesso do habeas corpus, utilizando-se de argumentos

    semelhantes em cada um deles. O mesmo pode ser dito com relao ao

    Ministro Ricardo Lewandowski. Isso porque, apesar de o nmero de acrdos

    analisados ter sido pequeno, conseguiu abranger totalmente o objeto de meus

    estudos, dentro do espao temporal delimitado.

    Outro aspecto recorrente foi a confuso entre as hipteses

    caracterizadoras da ordem pblica (periculosidade, gravidade do crime, clamor

    pblico, etc), o que me pareceu ser uma tentativa dos ministros de robustecer

    sua posio. Assim, quer-se provar que a priso no deve ser mantida apenas

    porque a pessoa perigosa, mas tambm porque ela cometeu um delito grave,

    porque isso afetou o clamor pblico, dentre outros fatores. Destarte, a juno

    de inmeras circunstncias que possam integrar esse conceito to vago que

    a ordem pblica parece dar a impresso de maior fundamentao da priso

    preventiva. Da mesma maneira, pude notar a utilizao de mais de um

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    fundamento para a priso preventiva (garantia da ordem pblica, convenincia

    da instruo criminal, garantia de aplicao da lei penal), o que me pareceu ter

    a mesma finalidade acima explicada.

    Finalmente, julgo ser necessrio atentar para a questo da

    constitucionalidade do art.312 do Cdigo de Processo Penal, mesmo no tendo

    sido o assunto central deste trabalho, mas apenas indiretamente abordado.

    Isso porque a manuteno de um termo to vago como ordem pblica em

    um diploma legal no mnimo questionvel nos dias de hoje, pois dessa forma

    a ordem pblica passa a servir de justificativa para as medidas cautelares

    que de outro modo no viriam tona.

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    5. Bibliografia - Almeida, Gabriel Bertin de. Afinal, quando possvel a decretao de priso preventiva para a garantia da ordem pblica in Revista Brasileira de Cincias Criminais (n 44 ano 11 julho-setembro de 2003). - Ferraz, Lslie Shrida. Priso preventiva e direitos e garantias individuais, tese de mestrado defendida na Faculdade de Direito da Universidade de So Paulo em 12 de novembro de 2003. - Gomes Filho, Antonio Magalhes. Presuno de inocncia e priso cautelar. Saraiva, 1991. - Mirabete, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18 edio. So Paulo. Editora Atlas S.A 2007. - Pitombo, Srgio. Priso preventiva em sentido estrito, artigo encontrado em www.sergiopitombo.nom.br. - Scarance Fernandes, Antonio. Processo Penal Constitucional. 5 edio revista, atualizada e ampliada. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007. - Zaffaroni, Eugenio Raul. O inimigo no direito penal. Rio de Janeiro, Revan, 2007.