a alfabetizaÇÃo no currÍculo da escola organizada por ciclos no sistema estadual de educaÇÃo

Upload: thais-silva-verao-theodoro

Post on 07-Jul-2018

225 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    1/229

     

    UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO

    INSTITUTO DE EDUCAÇÃO

    PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

    RITA DE CÁSSIA SILVA GODOI MENEGÃO

    A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOSNO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    CUIABÁ – MT

    2008

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    2/229

     

    RITA DE CÁSSIA SILVA GODOI MENEGÃO

    A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOSNO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em

    Educação do Instituto de Educação da Universidade Federal

    de Mato Grosso para Defesa Pública como parte dos

    requisitos para obtenção do título de Mestre em Educação

    (Área de Concentração: Teorias e Práticas Pedagógicas da

    Educação Escolar, Linha: Formação de Professores e

    Organização Escolar), sob a orientação da Professora Doutora

    Jorcelina Elisabeth Fernandes.

    CUIABÁ – MT2008

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    3/229

     

    FICHA CATALOGRÁFICA 

    M541a Menegão, Rita de Cássia Silva GodoiA alfabetização no currículo da escola organizada

    por ciclos no sistema estadual de educação / Rita deCássia Silva Godoi Menegão. – 2008.

    215p.

    Dissertação (mestrado) – Universidade Federal deMato Grosso, Instituto de Educação, Pós-graduação emEducação, Área de Concentração: Teorias e PráticasPedagógicas da Educação Escolar, Linha de Pesquisa:Formação de Professores e Organização Escolar, 2008.

    “Orientador: Profª. Drª. Jorcelina ElisabethFernandes”.

    CDU – 372.41/.45

    Índice para Catálogo Sistemático

    1. Alfabetização – Currículo – Ciclos de formação2. Alfabetização – Primeiro ciclo – Currículo3. Alfabetização – Primeiro ciclo – Ensino Fundamental4. Alfabetização – Brasil – istória5. Alfabetização – Desenvolvimento curricular6. Professores – Formação continuada7. Ensino Fundamental – Ciclos – Mato Grosso

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    4/229

     

    Estar no mundo, sem fazer história, sem por ela ser feito, sem fazercultura, sem ‘tratar’ sua própria presença no mundo, sem sonhar, semcantar, sem musicar, sem pintar, sem cuidar da terra, das águas. Semusar as mãos, sem esculpir, sem filosofar, sem pontos de vista sobre o

    mundo, sem fazer ciência, ou teologia, sem assombro, em face domistério, sem aprender, sem ensinar, sem idéias de formação, sem politizar não é possível.

    (Paulo Freire, 1996, p. 58).

     A todos que fazem parte da minha história de amor, em especial, a meus filhos:Renan e Enio Júnior

     Ao Enio (in memoriam), companheiro de muitos anos, pelo amor, compreensão, carinho e peloapoio e incentivo em meus estudos. 

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    5/229

    AGRADECIMENTOS

     A Deus pela alegria de viver, amar e aprender sempre.

     Aos meus pais, Maria e José, que me receberam de braços abertos e desde então me nutrem deamor, de carinho e de cuidados.

     Aos meus irmãos, pela inabalável compreensão e força.

     À minha orientadora e amiga Profª. Drª. Jorcelina Elisabeth Fernandes, pelo diálogo

    constante, crítico e aberto sempre. Em especial, pelas lutas na construção de uma escola pública inclusiva, democrática e qualificadora.

     Aos membros da Banca Examinadora, Profª. Drª. Filomena Maria Monteiro, Profª. Drª. Andréa Rosana Fetzner e Profª. Drª. Lázara Nanci Amâncio, pela preciosa contribuição e generoso compartilhamento de conhecimentos.

     Aos professores do mestrado que com seus conhecimentos e incentivos nos auxiliaram.

     Aos meus familiares e amigos, pela presença e apoio irrestrito, especialmente nas horas de

    dificuldades.

     Aos colegas Eva, Sueleni, Irene, Leandro e Roberto companheiros nesta jornada, pelaalegria, cumplicidade e carinho.

     À Eva,Glória, Gina e Selma companheiras de tantas trajetórias, amigas para a vida inteira.

     Ás professoras alfabetizadoras e equipe gestora das escolas pesquisadas, pela disposição emcontribuir para a efetivação deste trabalho.

     A todos que de uma ou outra forma contribuíram comigo nesta prazerosa e produtivatrajetória.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    6/229

     

    RESUMO

    Esta investigação aborda a alfabetização nos Ciclos de formação tendo por objeto de estudo o

    currículo de alfabetização desenvolvido pelas professoras do 1º. Ciclo. O objetivo é

    compreender como as professoras alfabetizadoras desenvolvem o currículo de alfabetização

    no 1º. Ciclo do Ensino Fundamental da rede estadual de Mato Grosso no município de

    Cuiabá. A investigação se construiu pela abordagem metodológica através da pesquisa

    qualitativa e interpretativa e instrumentalizou-se pelo questionário, entrevistas e análise

    documental no diálogo com 9 nove professoras alfabetizadoras que atuam em três escolas. A

    questão norteadora se constituiu pelas seguintes indagações: Que currículo de alfabetização asprofessoras desenvolvem no 1º. Ciclo? Para as professoras alfabetizadoras, o que deve

    aprender um aluno que está sendo alfabetizado? A tessitura do aporte teórico se deu tomando

    por referência a comunicação dos estudiosos da organização em Ciclos: Mainardes (2007),

    Barreto; Mitrullis (2004), Freitas (2004), Arroyo (1999; 2004; 2007), Fetzner Krug (2001;

    2007); da alfabetização: Freire (2006), Mortatti (2004), Soares (2003; 2004; 2005); e do

    currículo: Gimeno Sacristán (2000), Gimeno Sacristán e Perez Gómez (1998), Pacheco

    (2005), entre outros. A análise dos dados indica que as bases teórico-conceituais de

    alfabetização e de currículo, assumidas pelas professoras, transitam entre duas concepções:uma na perspectiva conservadora e restrita de alfabetização onde as alfabetizadoras

    demonstram forte apego às aprendizagens básicas de leitura, escrita e aritmética, balizadas nasatividades de treinamento, de memorização mecânica e instrumental, elementos

    caracterizadores de uma concepção curricular tradicional baseada na organização escolar em

    séries que continua ocupando um espaço significativo nessas escolas; outra numa perspectiva

    de alfabetização mais ampla e inovadora onde se compreende como necessários a

    interpretação, o entendimento, o uso do raciocínio lógico possibilitando a compreensão de

    textos e resolução de problemas, ou seja, atuando com a proposição de atividades

    problematizadoras e reflexivas condizentes com um currículo de alfabetização emancipatório

    e com a organização escolar por Ciclos. De modo geral, o que se percebe é que, nessasunidades escolares, os elementos inovadores e os tradicionais convivem cotidianamente.

    Palavras-chave: 1º. Ciclo. Alfabetização. Currículo de alfabetização. Desenvolvimentocurricular.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    7/229

     

    ABSTRACT

    This investigation is about literacy in the formation Cycles having as the main objective the

    literacy curriculum developed by the elementary grade school teachers. The aim is to

    understand how the literacy teachers develop the literacy curriculum in the 1st Cycle of the

    Elementary Public School of Mato Grosso in the district of Cuiabá. The investigation was

    formed by the methodological approach through qualitative and interpretative research;

    questionnaires, interviews and documental analysis were used in the dialogue with 9 (nine)

    literacy teachers that work in three schools. The main issue is formed by the following

    questions: What literacy curriculum do the teachers develop in the 1st Cycle? For the literacy

    teachers, what should a student that is being taught to read, learn? The construction of thetheoretical approach happened based on the information of the scholars of the organization in

    Cycles as Mainardes (2007), Barreto; Mitrullis (2004), Freitas (2004), Arroyo (1999; 2004;

    2007), Fetzner Krug (2001; 2007); of literacy: Freire (2006), Mortatti (2004), Soares (2003;

    2004; 2005); of the curriculum: Gimeno Sacristán (2000), Gimeno Sacristán and Perez

    Gómez (1998), Pacheco (2005), among others. The data analysis shows that the conceptual-

    theoretical bases of literacy and curriculum, used by the teachers, are between two

    conceptions: one in the conservative and restricted perspective of literacy where the literacy

    teachers show strong attachment to the basic learning of reading, writing and arithmetic,based on training activities of mechanic and instrumental memorization, elements that

    characterize a traditional curricular conception based on the school organization in gradeswhich still occupies a significant space in these schools, and the other in a wider and more

    modern literacy where we can realize how the interpretation, the comprehension and the use

    of logical reasoning are necessary, allowing the comprehension of texts and resolution of

    problems, that is, acting with the proposition of problematic and reflexive activities that

    correspond to an emancipatory literacy curriculum and with a school organization in Cycles.

    In a general way, what is noticed is that, in these school units, the modern and the traditional

    elements go together

    Key words: 1 st Cycle. Literacy. Literacy Curriculum. Curricular Development.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    8/229

     

    SUMÁRIO

    INTRODUÇÃO E ORGANIZAÇÃO METODOLÓGICA DA PESQUISA...................11

    A origem da pesquisa: ...........................................................................................................14

    A trajetória do estudo.............................................................................................................21

    O lócus e os sujeitos do estudo...............................................................................................22

    Os instrumentos da investigação e a coleta de dados...........................................................24

    1 RETRATOS DA ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DE MUDANÇAS NA

    ORGANIZAÇÃO ESCOLAR ..............................................................................................30

    1.1  Alguns indícios das concepções de alfabetização no contexto da implantação dos

    ciclos no Brasil.........................................................................................................................30

    1.2 Os ciclos em Mato Grosso: o contexto educacional.......................................................53

    1.2.1 Ciclos: a proposta da rede estadual de Mato Grosso.......................................................56

    1.2.2 A organização escolar numa perspectiva democrática.....................................................57

    1.2.3 O enfoque curricular da Escola Ciclada de Mato Grosso................................................60

    2 O DESENVOLVIMENTO CURRICULAR NA ALFABETIZAÇÃO: CONCEPÇÕES

    E PRÁTICAS...........................................................................................................................68

    2.1 Concepções de currículo de alfabetização na organização em ciclos...........................68

    2.1.1 O currículo tradicional e a postura do professor alfabetizador........................................70

    2.1.2 O currículo emancipador e a postura do professor alfabetizador....................................76

    2.2 O currículo e seu planejamento: concepções e práticas................................................86 

    2.2.1 Planejamento curricular: prescritivo................................................................................90 

    2.2.2 Planejamento curricular: orientador................................................................................93

    2.3 O Desenvolvimento curricular........................................................................................96

    3 TECENDO UMA COMPREENSÃO SOBRE O CURRÍCULO DESENVOLVIDO NO

    1º CICLO...............................................................................................................................101

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    9/229

     3.1 Elementos configuradores do cenário encontrado nas escolas..................................101

    3.1.1 Alguns elementos caracterizadores das escolas e das professoras................................102

    3.1.2 A estruturação do coletivo pedagógico do 1º ciclo.......................................................115

    3.2 As bases teórico-conceituais de alfabetização e de currículo.....................................121

    3.2.1 Concepções de alfabetização dos sujeitos.....................................................................121

    3.2.2 Concepção do currículo de alfabetização......................................................................123

    3.2.3 Opções na organização curricular.................................................................................143

    3.3 O desenvolvimento curricular no contexto do 1º ciclo...............................................149

    3.3.1 As superações necessárias no planejamento curricular................................................149

    3.3.2 O desenvolvimento curricular no contexto da sala de aula..........................................172

    3.3.3 O significado das intervenções pedagógicas nas dificuldades de aprendizagens........180

    3.3.4 A formação continuada das professoras alfabetizadoras.............................................193

    CONSIDERAÇÕES FINAIS...............................................................................................200

    REFERÊNCIAS....................................................................................................................209

    ANEXOS................................................................................................................................216

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    10/229

     

    LISTA DE QUADROS

    Quadro 01 - Taxa de aprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental........................16

    Quadro 02 - Tabela de Progressão da escolaridade no 1º grau...............................................40 

    Quadro 03 - Demonstrativo de enturmação dos alunos..........................................................60

    Quadro 04 - Matriz Curricular do 1º. ciclo..............................................................................65

    Quadro 05 - Demonstrativo dos espaços físicos existentes nas escolas................................103

    Quadro 06 - Recursos existentes nas escolas........................................................................104

    Quadro 07 - Características pessoais das professoras...........................................................105

    Quadro 08 - Formação Acadêmica das professoras..............................................................108

    Quadro 09 - Situação profissional das professoras...............................................................110

    Quadro 10 - Tempo de experiência profissional...................................................................112

    Quadro 11 - Número de alunos por turma prevista na proposta...........................................116

    Quadro 12 - Número de alunos por turma nas escolas pesquisadas.....................................116

    Quadro 13 - Quantitativo de alunos com baixo aproveitamento..........................................143

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    11/229

     

    LISTA DE SIGLAS

    CBA Ciclo Básico de alfabetização

    CEFAPRO Centro de Formação e Atualização dos Professores

    IBGE Instituto Nacional de Geografia e Estatísticas

    INEP Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais

    LC Lei Complementar

    LDB Lei de Diretrizes e Bases Nacionais

    LOPEB Lei Orçamentária dos Profissionais da Educação Básica

    PASE Progressão com Apoio de Serviço Especializado

    PCN Parâmetros Curriculares Nacionais

    PEC Projeto Escola Ciclada

    PPAP Progressão com Plano de Apoio Pedagógico

    PS Progressão Simples

    RFC Retido no Final do Ciclo

    SEDUC Secretaria de Estado de Educação de Mato Grosso

    SME Secretaria Municipal de Educação

    UFMT Universidade federal de Mato Grosso

    UNESCO Organização das Nações Unidas para a educação, ciência e a cultura.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    12/229

     

    INTRODUÇÃO

    Usufruindo do legado que Paulo Freire – um dos educadores mais competentes e

    respeitados de nosso país – nos deixou, posso dizer que me compreendo, nessa empreitada,

    como uma mulher consciente de minha “inconclusão”, vivendo em permanente movimento de

    busca e de crescimento pessoal e profissional, tentando fazer da minha “historia um tempo de

    possibilidades e não de determinismos”. Freire dizia que, no âmbito da educação, a própria

    consciência da “inconclusão” é que faz da “educação” um processo permanente, pois o

    homem está em constante processo de aprendizagem. “Não é a educação que faz os homens

    educáveis, mas a consciência que o homem tem de que é um ser inacabado é que gera sua

    educabilidade” (FREIRE, 2005).

    Em uma cidade do interior de Mato Grosso, após concluir o magistério aos dezoito

    anos de idade, dou início a minha trajetória profissional como professora efetiva,

    genuinamente uma “professorinha”. Desde então, a educação, mais especificamente, a

    alfabetização, tem se tornado objeto de meu interesse e indagação.

    Meus primeiros anos como professora foram ministrando aulas para turmas do pré-

    escolar e 1ª. série, ou seja, com crianças de seis a sete anos, em escolas públicas. Nesse

    período, o trabalho era baseado na repetição mecânica, centrado na cartilha, e bastava ter

    formação inicial em magistério e conseguir aprovar pouco mais de cinqüenta por cento dos

    alunos da turma para ser considerada “boa” professora. Essa situação, apesar de naturalizada

    nessa época, sempre me foi incômoda, afinal por que só alguns aprendiam? Daí para frente

    sempre me via envolta em uma profusão de interrrogações. Quase sempre sem as

    “verdadeiras” respostas, diretas e objetivas, que a ciência positivista preconizava.

    Hoje, se olharmos o percurso da escolarização brasileira, podemos perceber que os

    problemas e desafios envolvendo a educação, de um modo geral, e a alfabetização, em

    particular, não se reportam somente a este “meu tempo histórico”, uma vez que não são

    atuais, eles vêm persistindo e se complexificando ao longo de décadas. Por outro lado,

    também se tornam crescentes os desafios postos aos professores, pois o ensino tem sido

    descrito como uma atividade cada vez mais exigente, onde o professor se vê obrigado a atuar

    em múltiplas e complexas tarefas associadas à docência.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    13/229

      12

    Dentro desse quadro, meu interesse é pela alfabetização e pelos Ciclos de Formação,

    pois estes fizeram parte de minhas vivências profissionais, como professora, nas denominadas

    séries iniciais, experiências essas que me imputavam reflexões na e sobre minhas ações

    pedagógicas cotidianas que, apesar de muito me inquietarem, na maioria das vezes ficavam

    sem respostas.

    Pela organização em Ciclos de Formação, meu interesse surgiu quando tive a

    oportunidade de atuar na função assessora pedagógica na SME e depois de técnica na

    Secretaria de Estado de Educação e, dessa forma, acompanhar os estudos, a elaboração e a

    implantação da proposta de Ciclos na rede. Nessas funções vivenciei os avanços, as

    dificuldades, os dilemas e as contradições enfrentadas para o entendimento e implementação

    da proposta, no que se refere aos marcos teóricos e práticos, desde a sua “suposta”implantação no cotidiano escolar. Do lugar que ocupava, tive o privilégio, por assim dizer, de

    ouvir as duas versões de um mesmo discurso, o do macro e o do microssistema.

    Durante meu percurso profissional, acompanhei os processos de mudanças que

    ocorreram com relação à alfabetização, envolvendo a base teórica e as orientações

    pedagógicas, até chegar à concepção emancipadora, que enfatiza a dimensão simbólica e os

    usos sociais da alfabetização, ou seja, alfabetização crítica.

    Os fracassos escolares, expressos na repetência e na evasão escolar, notadamente nosanos iniciais de escolaridade, principalmente entre os alunos oriundos da classe trabalhadora,

    têm se tornado um fenômeno recorrente. Esta situação coloca a alfabetização como um

    problema da educação em nosso país, o qual necessita ser enfrentado e o mais urgentemente

    possível sanado.

    Os problemas referentes à alfabetização, como os demais da educação, fazem parte do

    contexto social e são influenciados pela economia, pela política social, pelas desigualdades

    sociais, pelas prioridades de investimentos e gastos públicos na educação, pela formação deprofessores, pela gestão educacional e escolar, e poderia ainda citar outros.

    Mas gostaria de sublinhar que faço parte do grupo de profissionais que discorda que

    estas situações sejam naturais e inevitáveis, pois coaduno com as idéias de Paulo Freire

    (1996b, grifos do autor) quando diz que “[...] devemos nos reconhecer como seres

    ‘condicionados’, mas não ‘determinados’”. Para Freire a História é sempre tempo de

    possibilidades e não de determinismos, o futuro permite o reiterar, podendo até ser

    problemático, mas não inexorável. É com esse pensamento que me ponho a caminho,

    tomando por empréstimo as palavras de Freire (1996b, p. 19): “Como presença consciente no

    mundo, não posso escapar à responsabilidade ética no meu mover-se no mundo”.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    14/229

      13

    Por isso, o compromisso político e pedagógico que norteia o presente trabalho traz

    para discussão as reflexões sobre “a alfabetização na organização escolar em Ciclos de

    formação”, pautadas pela exigência de que a escola deve se qualificar tomando por referência

    o direito à educação, especialmente dos estudantes oriundos das classes populares, uma vez

    que eles, além de se constituírem no maior número de matriculados na rede pública, também

    são os que dela mais necessitam. Pois compreendo que é preciso lutar para reverter ou pelo

    menos minimizar o fracasso escolar que se faz presente no cenário educacional brasileiro e,

    em especial, no de Mato Grosso.

    Optei em estudar as questões relacionadas às perspectivas curriculares, pois  o

    currículo possibilita pela investigação focar diretamente os processos educativos, sendo

    possível discutir e, sobretudo, intervir na organização do trabalho pedagógico que o professore a escola realizam para a formação do alfabetizando. 

    O destaque será para as questões relacionadas ao desenvolvimento do currículo por

    compreender que ele é um dos mecanismos por intermédio do qual o conhecimento é

    distribuído socialmente. Dessa forma, o grau e o tipo de conhecimentos que os estudantes

    adquirem nas instituições escolares, ratificados e validados por elas, têm implicações no seu

    nível de desenvolvimento pessoal, em suas relações sociais e, mais concretamente, no status 

    que esse estudante possa conseguir em seu contexto. Nesse sentido, o presente estudo tem porfoco o currículo desenvolvido pelas professoras, nas turmas do 1º. Ciclo.

    A ação de organizar o trabalho pedagógico supõe alguns saberes concernentes ao ato

    de ensinar, e o professor é o protagonista nessa ação. Ele pode ser capaz de realizar mediações

    e intervenções em sua sala de aula e provocar mudanças e inovações na escola.

    Busco identificar e compreender nesta pesquisa “o desenvolvimento do currículo

    realizado pelas professoras alfabetizadoras do 1º. Ciclo da rede pública estadual de ensino no

    município de Cuiabá”. Este é o objeto que leva a proposição da pesquisa.Pela minha vivência pessoal e profissional, considero que a temática desenvolvida

    nesta pesquisa pode se tornar um auxílio para a reflexão e busca da construção de uma

    educação menos estigmatizadora, mais humana e includente. Para tal relevância, este registro

    deverá se fazer presente junto aos docentes e, assim, ser mais um material que, junto a outros,

    possa contribuir para a reflexão de suas práticas cotidianas, pois suas práticas repousam

    nessas relações de pensar-agir-pensar1  ou de ação-reflexão-ação2, principalmente situando o

    currículo como núcleo de sua atuação profissional.

    1 Termo usado por Gelta Xavier, 2006.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    15/229

      14

     A origem da pesquisa

    É muito comum ouvir que o ensino público no Brasil é de má qualidade. Diantedesse discurso que aponta a baixa qualidade da educação brasileira, o anseio da sociedade se

    pauta pela necessidade de buscar alternativas para facilitar o aprendizado dos estudantes e,

    desta forma, garantir a aquisição de conhecimentos cada vez mais necessários, em virtude das

    exigências impostas pela sociedade, pois uma boa escolaridade pode não garantir, mas, com

    certeza, pode contribuir na formação da pessoa humana e para a melhoria das condições de

    vida dos estudantes.

    As últimas décadas foram marcadas por mudanças de toda ordem: sociais, estruturais eeconômicas. O reflexo dessa situação no contexto escolar reincide no fracasso exigindo

    mudanças nos processos educacionais e proposições políticas capazes de impulsionar

    inovações na cultura escolar, nas relações entre escolas e comunidade e, conseqüentemente,

    entre professores e alunos na tentativa de assegurar a democratização da educação3. Esses

    aspectos trazem para o campo educacional uma série de condições não-satisfatórias impelindo

    lutas por direitos.

    Nos anos de 1980 a 1990, o número de estudantes que não conseguiram avançar do

    seu primeiro ano de estudo para o segundo ano com aprendizagem ficou em torno de 55%.

    Tal fato já era ocorrência comum na maioria das escolas brasileiras.

    No ano de 2000, quase 95% da população em idade escolar obrigatória (de 7 a 14

    anos) estavam matriculados na escola, tendo o país, na virada do século, finalmente

    conseguido dar concretude à obrigatoriedade do Ensino Fundamental. Esse contexto

    de massificação escolar, de heterogeneidade dos alunos, de mudanças na organização escolar

    via reformas, que principalmente as unidades escolares do Ensino Fundamental vêm

    vivenciando, tem sido segundo os estudiosos, o responsável pelo quadro educacional que se

    tem hoje. Essas alterações vindas em várias direções desafiam as escolas em seu que fazer.

    Diante de tal realidade, a principal preocupação está em saber como a escola deve

    trabalhar para dar conta do seu público, cada vez mais numeroso e diverso. Afinal, que

    conhecimentos escolares contemplariam as necessidades dessa nova parcela da sociedade que

    passou a freqüentar a escola?

    2  Donald A. Schon (1983; 1987) propôs o conceito de reflexão-na-ação, definindo-o como o processo medianteo qual os profissionais (práticos) aprendem a partir da análise e interpretação da sua própria prática.3  Nessas décadas ocorre o denominado acesso “democrático” às escolas.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    16/229

      15

    Compreendendo a ideologia segundo Freire (2006), não no sentido ingênuo,

    simplista, imobilizante, que ele tanto debatia, mas como algo que “[...] nos move

    curiosamente, como presença consciente no mundo, enfrentando a responsabilidade ética

    desse mover-se no mundo”, busco entender, baseando-me na história da educação brasileira, a

    importância da alfabetização, bem como o valor de ser alfabetizado numa sociedade

    grafocêntrica como a nossa.

    A alfabetização é um bem cultural produzido pela humanidade, seu acesso está

    vinculado aos bens econômicos e sociais mais amplos. Tal situação nem sempre consegue ser

    revertida pela mediação da instituição escolar, pois a história da educação no Brasil é marcada

    pela seletividade. A instituição escolar tem funcionado, em grande parte, como um espaço

    social cujo papel é colaborar para dar sustentação à forma em que a sociedade estaorganizada. Assim, baseada na lógica da exclusão, a escola tem expulsado muitos daqueles

    que nela ingressam, ainda em seu processo inicial de alfabetização.

    No período colonial, a ordem era manter o saber escrito nas mãos dos colonizadores.

    E, do império à república, a educação escolarizada continuou sendo privilégio de poucos, os

    conteúdos propostos eram alienados e de concepção elitista. Era grande o contingente de

    analfabetos.

    Na segunda metade do século XIX, houve um intenso e rico movimento político,econômico e legal, mas a escola primária permaneceu quase da mesma forma, conservando

    seu caráter mecanicista. O acesso ao saber escrito mantém-se como regalia de poucos, e a

    entrada do século XX não trouxe consigo avanços significativos na área educacional.

    Segundo Ferrari (1987 apud MOLL, 1996, p. 30), na década de 70, havia 7,7 milhões

    de analfabetos na faixa etária do ensino obrigatório e, na década de 80, compreendendo a

    mesma faixa etária, estimavam-se 8,4 milhões de analfabetos. Os dados oriundos dos censos

    realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE ratificam que osprogramas educacionais propostos pelos governos militares não colaboraram para diminuir o

    analfabetismo.

    Nas décadas anteriores a de 90, segundo dados do IBGE/INEP (2001), acima de 50%

    dos alunos matriculados na 1ª. série eram reprovados, sendo esta série considerada o “ponto

    de estrangulamento” do Ensino Fundamental. Ainda neste período, começaram a surgir

    experiências alternativas em vários estados e cidades, considerando principalmente os estudos

    de Jean Piaget que servem de referência para os trabalhos de Emília Ferreiro (1992).

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    17/229

      16

    Taxa de aprovação ao final da 1ª série do Ensino Fundamental4 

    1956 1987 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1997* 1998*

    41,8% 47% 46% 49% 51% 51% 51% 50% 53% 53% 65% 68,7%

    *nos anos de 1997 e 1998, algumas Secretarias de Educação passaram a adotar os ciclos, previstos naLDBEN

    As inovações teóricas que se apresentavam nesta década sobre a alfabetização na

    Europa, nos Estados Unidos e na América Latina foram referentes às pesquisas de Emília

    Ferreiro (1985; 1988; 1990; 1993). No Brasil elas exerceram influências de norte a sul na

    implantação de políticas públicas de alfabetização. Tais pesquisas deslocavam a discussão

    sobre alfabetização mudando o foco de análise: da professora que ensina e dos métodos e

    técnicas de alfabetizar, para compreender a criança que se alfabetiza e seu processo deconstrução de conhecimentos, no caso, a linguagem escrita.

    Vivia-se o período inicial, na área do ensino, da nova concepção que priorizava a

    alfabetização como processo. Essa concepção contrapõe-se às anteriores e com elas os

    métodos de alfabetização, as cartilhas, que orientavam até então o ensino e a aprendizagem da

    língua escrita pautada na decodificação. Embora transcorrida mais de uma década, acredito

    que essa situação ainda não foi superada, continua ativa e polêmica. E também é inserida

    nesse campo a discussão do ensino e da aprendizagem da língua materna a partir de uma ótica

    socioistórica e discursiva, aproximando os trabalhos de Vygotsky dos de Bakhtin, autores

    fundantes da reflexão interacionista sociodiscursiva.

    Ainda nesse período, as discussões curriculares, considerando a tendência crítica,

    assumem destaque e importância no pensamento pedagógico. No cenário internacional, em

    países como Espanha, França, Argentina e em alguns estados dos EUA, as mudanças são na

    forma da organização escolar em favor do ensino organizado por ciclos de formação.

    No Brasil, alguns estados também implantaram os ciclos: em Porto Alegre, a escola

    Cidadã, em Belo Horizonte, a escola Plural. Estas cidades, com governos oposicionistas,

    implantaram os ciclos considerados mais radicais. Entre outros estados e capitais que também

    implantaram essa reforma, considerada menos radical, estão Brasília com a escola Candanga,

    Cuiabá com a escola Sarã e ainda os municípios de Chapecó, Blumenau, Ipatinga, Curitiba,

    Santo André, Santo Cristo, Caxias, Gravataí, Alvorada e outros.

    O Estado de Mato Grosso, especificamente a rede estadual, no final da década, em

    1997, implanta o ciclo básico de alfabetização – CBA, considerando-o uma importante

    4 - Ministério da Educação – Secretaria de Educação Fundamental - Programa de Formação deprofessores Alfabetizadores. Janeiro de 2001. p.9.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    18/229

      17

    iniciativa estratégica político-pedagógica de caráter democrático para enfrentar o fracasso

    escolar, pois, ao eliminar a reprovação no primeiro ano de escolaridade, contribui para a

    permanência de crianças em idade escolar no sistema de ensino. Dessa forma garantia,

    inicialmente, o direito à alfabetização (MATO GROSSO, 2001).

    Após três anos da implantação do CBA, em 2000, a Secretaria de Estado de Educação

    implanta os ciclos de formação denominada Escola Ciclada de Mato Grosso – “novos tempos

    e espaços para aprender a sentir, ser e fazer”, organização esta baseada, principalmente, na

    nova conceituação do tempo e do espaço. A constituição das turmas acontece de acordo com

    as fases de desenvolvimento humano: infância, pré-adolescência e adolescência. Na proposta

    pedagógica da escola ciclada, o tempo e os espaços para a construção dos saberes são mais

    flexíveis, o currículo é integrado, a metodologia é globalizadora e a avaliação é processual eformativa.

    Desde 2000, ano de implantação, a proposta tem sido alvo de críticas e até resistência

    por parte dos professores. No ano de 2004, atuei como líder da equipe do Ensino Fundamental

    na Superintendência de Ensino e Currículo, sendo responsável pela elaboração e

    implementação pedagógica da proposta, realizamos uma pesquisa diagnóstica em 60 escolas

    de 30 municípios, ou seja, em 15% das escolas organizadas em ciclos de formação da rede.

    Esta pesquisa priorizava as questões pedagógicas, com o objetivo de compreender o processode desenvolvimento da proposta nas escolas que a implantaram e também verificar o que

    estava, de fato, sendo colocado em ação (BORDALHO, 2007; FERNANDES, 2007;

    MENEGÃO, 2007 apud MONTEIRO, 2007, p. 169-188).

    Dentre os dados coletados, o que mais me chamou a atenção e causou inquietações foi:

    o discurso dos sujeitos pesquisados (professores, coordenadores pedagógicos, coordenadores

    de ciclos, diretores e secretários escolares) de que “[...] as crianças estão passando de

    ano/ciclo sem aprender a ler e escrever”. Acredito que essa situação seja gerada pelaconcepção teórica que embasa os ciclos de formação, que não admite provas e notas como

    momentos decisivos e definitivos de avaliação. Isto porque essa forma de avaliar, eliminando

    a verificação isolada e fazendo uso de instrumentos pontuais, não acompanha os processos

    contínuos e desiguais das aprendizagens e acaba por se tornar instrumento seletivo e

    classificatório, justificador da exclusão.

    Será que se pode aludir essa forma de pensar ao não-entendimento da nova lógica

    escolar, que considera o tempo de desenvolvimento humano do aluno para constituir as

    turmas? Na estrutura da organização escolar por ciclos, o ensino fundamental foi organizado

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    19/229

      18

    em três ciclos, de três anos cada, para os estudantes na faixa etária dos seis aos quatorze anos,

    com a formação dos coletivos de alunos considerando prioritariamente a idade.

    Os três ciclos correspondem à infância, à pré-adolescência e à adolescência, e este

    agrupamento de crianças e de adolescentes na escola fundamenta-se na relação

    desenvolvimento e aprendizagem embasada nas contribuições de Piaget, Wallon e Vygotsky.

    É principalmente na sala de aula, na ação dos professores, que as inovações

    pedagógicas acontecem, pois são eles os principais protagonistas das mudanças no interior das

    escolas. Portanto não se pode negar sua importância como “intelectuais transformadores” ou

    conservadores na organização e funcionamento didático-curriculares da escola.

    Compreendo ser necessário saber que conhecimentos os professores alfabetizadores do

    1º. ciclo priorizam na implementação desta proposta nas unidades escolares que a assumiram.Assim concordo com a posição de Fetzner Krug (2001), quando afirma que:

    [...] na escola por ciclos de formação, as crianças não aprendem somente aoserem reunidas por idade. As crianças constroem conhecimentosdependendo da qualidade da intervenção que lhes são oportunizadas, apartir do reconhecimento do seu desenvolvimento atual, de suaspossibilidades de idade, de tempo para aprender, da criação de espaçoseducativos que atendam a suas necessidades específicas e da veiculação deconhecimentos significativos.

    Diante dessa posição, torna-se claro a necessidade de investir na formação dos

    professores e também no desenvolvimento de pesquisas para transcender o censo comum do

    discurso existente de que “o culpado pelas situações da não-aprendizagem dos alunos é a

    organização em ciclos”. Afinal, este fracasso já estava instalado, e a nova organização veio no

    intuito de minimizá-lo ou superá-lo.

    Segundo Miguel Arroyo (2007):

    Não foram os ciclos que criaram o problema. Os ciclos fizeram um favor,porque permitiram descobrir que esse problema não era do professor quelidava com repetentes, mas da escola e do sistema como um todo [...].Durante décadas encobrimos repetentes na 1ª. e 2ª. séries, e ninguém gritou.E agora, quando alguns repetentes chegam às séries mais adiantadas semsaber ler e escrever, todo mundo grita. 

    Com relação à afirmação da não-aprendizagem dos alunos em função da organização

    em ciclos, é importante esclarecer que a demanda supostamente colocada como não-

    alfabetizada presente nas salas de aulas, no regime seriado, ou reprovariam, elevando os

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    20/229

      19

    índices estatísticos da repetência nas séries iniciais, ou abandonariam a escola, o que, a meu

    ver, é inadmissível.

    Freitas (2004), estudioso do assunto, entende que “Os ciclos estão inseridos em uma

    perspectiva de mudança mais ampla e sua importância está mais ligada à resistência

    necessária à lógica da seriação e à função excludente da escola do que a seu uso como solução

    pedagógica”. 

    Considero que os problemas referentes à alfabetização fazem parte de um conjunto

    maior que vai da economia à política social: desigualdades sociais, prioridades de

    investimentos, gastos públicos na educação, formação de professores, gestão educacional e

    escolar, entre outros. Há também problemas que podem estar relacionados aos procedimentos

    didático-pedagógicos, pois não se pode desconsiderar o peso da organização do trabalhopedagógico na formação do alfabetizando.

    Najar e Camargo (2006, p. 11-26) nos trazem a discussão referente à culpabilização

    da má qualidade do ensino que perdurou por anos responsabilizando o próprio aluno que “não

    aprendia”; hoje, culpabilizar o professor pela crise da educação em nosso país passa a ser

    elemento do senso comum. A prática de avaliação presente no interior da maioria das

    reformas educacionais implantadas serve, dentre outras coisas, para reforçar o diagnóstico

    prévio da baixa qualidade da escola pública, culpabilizar os professores pela crise e mostrarquão necessários seriam os ajustes neoliberais (CARDELLI, 1998 apud NAJAR;

    CAMARGO, 2006).

    Nesse sentido, a atividade docente no contexto escolar não é simples e natural, mas

    uma construção social e cultural que comporta múltiplas facetas. Imbernón (2006, p.19) nos

    chama atenção para fatores que não devem ser ignorados tais como “[...] o ambiente de

    trabalho, o clima e o incentivo profissional, a formação padronizada, a histórica

    vulnerabilidade política do magistério, o baixo prestígio profissional, a atomização e oisolamento forçado pela estrutura”. Ele aponta ainda “[...] a falta de controle inter e

    intraprofissional entre outros”.

    Entretanto a preocupação, neste estudo, se refere ao trabalho dos professores, no

    tocante ao desenvolvimento curricular da alfabetização no 1º. Ciclo. A relevância do estudo

    desta temática destaca-se pela sua atualidade e abrangência no contexto da rede estadual de

    Mato Grosso, por compreender que os professores e demais profissionais exercem ativo papel

    no processo de (re)interpretação das propostas educacionais. Desta forma, o que eles pensam

    ou acreditam têm implicações no processo de implementação dessas propostas. Portanto as

    percepções e experiências das pessoas envolvidas nos processos de implementação, os

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    21/229

      20

    docentes em especial, são essenciais para viabilizar a educação escolar numa lógica mais

    inclusiva, em contraposição à lógica excludente e seletiva.

    O grande desafio posto aos sistemas educacionais de ensino está em efetivar uma

    educação inclusiva, movida pelo conhecimento epistemológico de que todo ser humano

    aprende e pela vida inteira; pela superação da organização escolar seriada em prol da

    consolidação de uma nova forma de organização escolar, dentre as quais a opção esclarecida

    pelos ciclos de formação. Uma prática pedagógica pautada na preocupação em alfabetizar

    letrando; em estabelecer condições para que o coletivo docente seja protagonista ativo por

    intermédio do seu saber e saber fazer curricular, na construção dessa escola necessária onde o

    direito de aprender seja garantido ao estudante.

    O contexto escolar tem sofrido alterações e recebido contribuições importantes nasúltimas décadas. Do ponto de vista teórico, por exemplo, a Pedagogia tem recebido

    contribuições significativas de outras áreas do conhecimento, principalmente da Psicologia,

    da Psicolingüística, da Sociolingüística, da Neurolingüística e da Lingüística no que se refere

    à alfabetização.

    Do ponto de vista da organização escolar, há que se considerarem as alterações via

    reformas que as unidades escolares da rede estadual do Ensino Fundamental de Mato Grosso

    vêm vivenciando, desde o Projeto Terra, o Ciclo Básico de Alfabetização – CBA (MATOGROSSO, 1997), até a Escola Ciclada de Mato Grosso (MATO GROSSO, 2001).

    Há que se considerar também como importante para a educação escolar,

    principalmente nos anos iniciais de escolaridade, o grande debate nacional que vem ocorrendo

    desde os meados dos anos 80 sobre a utilização dos métodos de alfabetização e, além disso, a

    introdução recente do conceito de Letramento.

    Há que se levar em conta ainda que a rigidez dos tempos e espaços que serviam de

    formato para programas e conteúdos artificialmente concebidos, homogeneizadores deprodutos de aprendizagem, com conhecimentos fragmentados e parcelados em disciplinas,

    apropriados para a organização seriada, fora substituída na organização escolar por ciclos.

    Nesta nova organização, a forma de enturmação dos estudantes se pauta pela idade,

    acompanhada de uma concepção de currículo que ordena uma relação imbricada entre

    estrutura, ambiente, cultura e conhecimento.

    Acredita-se que as situações expostas, provavelmente, em maior ou menor grau,

    tenham influenciado o cotidiano das escolas e a ação das professoras alfabetizadoras.

    Afinal, o que está acontecendo com a prática educativa, para que haja um discurso na

    rede afirmando que os alunos estão passando de ano/ciclo sem saber ler e escrever?

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    22/229

      21

    As professoras alfabetizadoras se sentem perdidas e já não sabem mais trabalhar o

    currículo da alfabetização, na organização em ciclos de formação humana?

    Podemos considerar a afirmação “as crianças estão passando de ano/ciclo sem

    aprender ler e escrever” como um pedido de auxílio, um desabafo, uma denúncia que os

    “educadores” fazem? Isto porque a maioria dos docentes reconhece a alfabetização como

    direito do aluno e considera importante que todos aprendam a ler e escrever. Os docentes

    alegam se sentirem bastante incomodados quando a aprendizagem dos alunos não é

    satisfatória. Ou pode-se considerar uma reação conservadora em defesa da escola tradicional e

    seus mecanismos de exclusão?

    É necessário ainda saber qual a compreensão do professor sobre a ampliação do tempo

    curricular na organização em ciclos de formação, que passou de 200 para 600 dias letivos e de800 para 2.400 horas para que o alfabetizando aprenda.

    Enfim, as mudanças que ocorreram nas últimas duas décadas, tanto na forma de

    organizar o ensino quanto as que se referem às contribuições teóricas sobre alfabetização,

    dizem respeito a diferentes abordagens, pressupostos e conceitos a partir dos quais os

    professores elaboram seu pensar e sua prática de alfabetização.

    Neste cenário, o lugar da pesquisa na alfabetização me leva a indagar: Que currículo

    de alfabetização os professores desenvolvem no 1º. Ciclo? Para os professoresalfabetizadores, o que deve aprender um aluno que está sendo alfabetizado? Diante dessas

    indagações, tenho como objeto de estudo desta pesquisa o Currículo desenvolvido pelos

    professores alfabetizadores no 1º. ciclo.

    Assim o objetivo principal para a realização deste estudo é compreender como os

    professores desenvolvem o currículo de alfabetização no 1º. ciclo do Ensino Fundamental da

    rede estadual de Mato Grosso.

    A trajetória do estudo

    Para construir o percurso de investigação do objeto deste estudo, fiz opção pela

    metodologia qualitativa interpretativa, de caráter indutivo e descritivo, pela especificidade e

    identidade ligadas aos interesses da pesquisa. Procurei a compreensão contextual do

    fenômeno analisado, privilegiando o desenvolvimento curricular realizado pelas professoras

    alfabetizadoras do 1º. Ciclo, concordando com Goodson (1995, p. 55) quando diz que:

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    23/229

      22

    Se for para ser útil, a teoria curricular deve começar com estudos que seconcentrem sobre escolas e ensino. A nossa teoria precisa desenvolver-se apartir do entendimento do currículo tal como é elaborado e realizado e como,ao longo do tempo, vem sendo reformulado.

    Para a análise dos dados, parto do pressuposto de que a prática do desenvolvimento

    curricular na organização em ciclos de formação, seja entendida e implementada pelas

    professoras, neste estudo, como o processo em que o alfabetizador atua numa perspectiva

    mais reflexiva e autônoma em seu cotidiano, superando a ação meramente técnica.

    Considero ser essa abordagem a mais adequada para o estudo dos dados, pois todos os

    detalhes do fenômeno podem ser significativos para a análise. Para isso, busquei amparo no

    referencial teórico de Bogdan e Biklen (1994, p. 49), segundo os quais “[...] a abordagem da

    investigação qualitativa exige que o mundo seja examinado com a idéia de que nada é trivial,

    que tudo tem potencial para constituir uma pista que nos permita estabelecer uma

    compreensão mais esclarecedora do objeto de estudo”. Dessa forma, coube-me buscar

    estratégias e procedimentos que me permitiram compreender mais nitidamente as

    experiências e o ponto de vista das informantes.

    O investigador qualitativo não só precisa saber trabalhar e recolher os dados, como

    também de ter uma boa idéia sobre o que os dados são (BOGDAN; BIKLEN, 1994, p. 145).

    A pesquisa qualitativa, se por um lado não pode servir para generalizações, por outro,

    pode contribuir para a definição e redefinição dos vários elementos que hoje servem de base

    para a elaboração de pesquisas e análises mais amplas sobre a prática pedagógica

    desenvolvida em contextos educacionais, cujos resultados precisam ser melhorados.

    Lócus e sujeitos do estudo

    A primeira característica da investigação qualitativa, de acordo com Bogdan e Biklen

    (1994), é a utilização do ambiente natural como fonte direta para a coleta dos dados, pois,

    segundo eles, os investigadores qualitativos freqüentam os locais de estudo. Isso ocorre

    porque se preocupam com o contexto e entendem que as ações podem ser mais bem-

    compreendidas quando são observadas no seu ambiente natural de ocorrência.

    Para tanto, elegemos o ambiente escolar como lócus privilegiado para a pesquisa.

    Inicialmente 10 escolas urbanas da rede pública estadual pertencentes ao município de

    Cuiabá, que representam 100% do universo a ser estudado, ou seja, cujas unidades escolarespossuem todo o Ensino Fundamental organizado por ciclos de formação. Destas 10 escolas, a

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    24/229

      23

    amostra se constituiu de 3 (três) escolas, sendo uma da regional Leste, uma outra da Oeste e a

    terceira da regional Norte. Esta definição não foi aleatória, a escolha se deu a partir dos

    critérios:

    a. 

    ser escola da rede pública estadual de ensino;

    b.  ter implantado a organização escolar por ciclos desde o ano 2000;

    c.  ter professores atuando desde o início do ano letivo de 2007, sem ter passado

    por licenças e/ou afastamentos;

    d.  ter o maior número de professores efetivos atuando no 1º. Ciclo;

    e.  ter demonstrado interesse em participar da pesquisa.

    Iniciei o trabalho aplicando um questionário de perguntas abertas e fechadas a 9

    (nove) professores do 1º. Ciclo nas 3 (três) escolas, com o objetivo de levantar algumascaracterísticas referentes à identidade do professor alfabetizador do 1º. Ciclo, no município de

    Cuiabá, precisamente na área urbana central.

    Posteriormente a esse trabalho, tendo em vista as unidades escolares que atendiam aos

    critérios estabelecidos, retornei às três escolas para esclarecer minha intenção, os

    procedimentos que usaria com os investigados e também para ouvi-los sobre suas dúvidas,

    sobre o tempo que poderiam disponibilizar, enfim, acertar um cronograma de trabalho.

    Realizei os procedimentos de pesquisa em 3 escolas, o que implicou a necessidade deperfazer um total de 9 sujeitos. Foi feita a escolha de uma professora regente da 1ª. fase, uma

    da 2ª. fase e uma da 3ª. fase do 1º. ciclo por unidade escolar.

    Os critérios estabelecidos para definir os sujeitos da pesquisa foram os seguintes:

    a.  ser professor regente que atua no 1º. ciclo, preferencialmente efetivo;

    b.  possuir experiência em alfabetização de no mínimo 3 anos de trabalho;

    c.  estar trabalhando com a turma desde o início do ano letivo, sem ter passado por

    licenças médica, especial ou outras;d.

     

    ter se disponibilizado para ser sujeito da pesquisa.

    Utilizei, preferencialmente, os professores efetivos no item “a” acima sobre os

    critérios determinados, porque após a primeira visita realizada nas dez unidades escolares,

    com o propósito de levantar dados de caracterização da identidade das professoras

    alfabetizadoras do 1º. Ciclo, nas escolas estaduais no município de Cuiabá, eu me deparei

    com a seguinte situação: uma significativa quantidade de professores alfabetizadores que, em

    fase de aposentadoria, devido ao número de anos trabalhados, tem por direito a licença

    especial de três meses para cada cinco anos trabalhados. Esse direito não é utilizado, pela

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    25/229

      24

    grande maioria, em seu percurso profissional, mas geralmente “guardado” para ser usado na

    fase de aposentadoria.

    Estes professores afastados em licença, segundo as normativas da SEDUC, não podem

    ser substituídos por professores efetivos. Isso tem gerado às escolas necessidades de contratar

    professores interinos. Esse motivo foi um dos principais filtros de minha definição pelas 3

    (três) escolas.

    Optei pelos seguintes instrumentos e procedimentos metodológicos: questionário,

    entrevista e análise de documentos oficiais, uma vez que meu empenho está em conseguir

    descrever, analisar e compreender o currículo tal como é desenvolvido em um determinado

    tempo de acordo com as situações de trabalho vividas e denominadas pelos próprios docentes

    segundo as condições, os recursos e as pressões reais de suas atividades cotidianas.Elegi a aplicação desses três instrumentos considerando a necessidade de triangulação

    das informações e consistência da análise.

    Busquei, assim como Bogdan e Biklen (1994), “[...] analisar os dados utilizando toda

    a sua riqueza, respeitando, tanto quanto possível, a forma em que estes foram registrados ou

    transcritos”.

    Os instrumentos da investigação e a coleta de dados

    Foi aplicado, no primeiro semestre de 2007, um questionário, cuja finalidade era

    caracterizar as escolas e delinear o perfil dos professores alfabetizadores do 1º. ciclo que

    atuam nas escolas onde o Ensino Fundamental é organizado em ciclos, no município de

    Cuiabá. Dessa forma, esse instrumento serviu para mostrar algumas práticas realizadas pelos

    professores. Foi um momento importante também para que a pesquisadora e sujeitos da

    pesquisa criassem um clima de cordialidade e confiança.

    Retornei às unidades escolares com o segundo questionário a ser aplicado. Este

    instrumento foi organizado de forma semi-estruturada. Sua aplicação se deu no final do ano

    letivo de 2007, as professoras o responderam por escrito de forma individual, mas todas de

    uma só vez, contando com a minha presença. Em uma das escolas, isso não foi possível, e

    uma das professoras ficou com o questionário para responder e me entregar no outro dia.

    As indagações foram elaboradas tendo por propósito levantar dados junto às

    professoras alfabetizadoras, em busca de compreender melhor as concepções e as

    experiências dos sujeitos da pesquisa, bem como a significação atribuída por eles ao objeto

    estudado, durante a execução dos seus trabalhos pedagógicos.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    26/229

      25

    Levei junto comigo alunas do curso de Pedagogia, já em experiência de estágio, para

    ficarem com os alunos enquanto as professoras, reunidas em minha presença, respondiam ao

    instrumento.

    O tempo de aplicação durou cerca de uma hora, elas começavam o registro

    preocupadas em não demorar muito, mas depois se empolgavam com as questões que lhes

    provocavam reflexões acerca de seu cotidiano.

    Em investigação qualitativa, as entrevistas podem ser empregadas de dois modos, com

    a estratégia dominante para a coleta dos dados ou, como nesse caso, utilizadas em conjunto

    com outras técnicas.

    Sua finalidade foi apreender as impressões subjetivas, organizadas a partir do ponto de

    vista dos sujeitos. O roteiro para a entrevista foi pré-elaborado, preocupei-me em perceber ospontos críticos, as teorias implícitas, as hipóteses manifestas, os processos contraditórios nas

    próprias crenças, assim como nas semelhanças entre os pensamentos e a maneira de agir.

    As entrevistas foram realizadas posteriormente ao questionário; nesse momento, eu,

    pesquisadora, e os sujeitos já estávamos bem mais familiarizados, o que é considerado

    condição propícia à natureza desta pesquisa. Apesar da familiaridade, a entrevista realizada

    pode ser considerada de cunho mais formal, uma vez que foram determinados o dia e o

    momento para o encontro. Contudo os sujeitos demonstraram estar à vontade, pois tomei ocuidado de começar com conversas amenas esperando o tempo suficiente, até senti-las

    dispostas a responder às indagações, para então dar início à entrevista.

    As unidades escolares foram o ambiente definido para a realização das entrevistas, que

    aconteceram no final do ano letivo de 2007, de forma individual, com o consentimento das

    professoras, obedecendo ao dia e hora marcados por elas.

    Mesmo assim, estive por diversas vezes nas escolas sem conseguir entrevistá-las, pois,

    de um modo geral, as professoras que trabalham com crianças nessa faixa etária nãocostumam deixá-las a sós. Isso me obrigou a levar estudantes/estagiárias do curso de

    Pedagogia para ficar com os alunos enquanto elas estivessem sendo entrevistadas, diante da

    experiência anterior que tive na aplicação dos questionários.

    O objetivo da entrevista era buscar explicações sobre as ações, o jeito de fazer,

    conceber, pensar e agir dos professores na realização de suas atividades e ou trabalho, em

    especial o planejamento curricular e os planos de aulas. Isto porque, segundo Bogdan e Biklen

    (1994, p. 134), “[...] a entrevista é utilizada para recolher dados descritivos na linguagem do

    próprio sujeito, permitindo ao investigador desenvolver intuitivamente uma idéia sobre a

    maneira como os sujeitos interpretam aspectos do mundo”. 

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    27/229

      26

    A entrevista foi realizada com três professoras alfabetizadoras do 1º. ciclo, por

    unidade escolar, em três escolas da rede estadual no município de Cuiabá. As entrevistas

    tiveram a duração média de uma hora, para cada sujeito entrevistado. Para esse procedimento,

    fiz uso de um gravador, fato esse importante a registrar, pois, para o seu uso, eu sempre pedia

    autorização, e, somente após a concessão, as falas eram gravadas em microfitas cassetes e,

    posteriormente, transcritas.

    Nessa ação, procurei muito mais estimular as professoras a relatarem seu dia-a-dia

    com os ciclos do que indagar a respeito de teorias e conceitos presentes na proposta da Escola

    Ciclada de Mato Grosso. Para o procedimento, parti inicialmente de um roteiro semi-

    estruturado, a partir do qual fui aprofundando as explicações sobre suas ações, seu jeito de

    fazer, conceber, pensar e agir quando na realização de suas atividades docentes.Tendo a clareza de que as regras não podem ser aplicadas seguramente a todas as

    situações de entrevistas, embora possam ser feitas algumas afirmações gerais, fui a campo

    com as sugestões de Bogdan e Biklen (1994, p. 137) de que o que se revela mais importante é

    a necessidade de ouvir cuidadosamente o que as pessoas dizem, encarando cada palavra como

    se ela fosse potencialmente desvendar o mistério, que é o modo de cada sujeito olhar para o

    mundo. Nesse sentido, segundo os autores, é necessário fazer sempre perguntas no intuito de

    clarificar. E, caso não consiga entender, tomar esse defeito como meu e não como falta desentido do que o sujeito esta a dizer; nesse momento, é preciso voltar e refletir um pouco mais

    sobre o que foi dito.

    A técnica de entrevista demanda flexibilidade. Ser flexível não é possuir um conjunto

    de procedimentos ou estereótipos predeterminados, ser flexível constitui-se em responder à

    circunstância imediata, quando entrevistador e entrevistado estão frente a frente.

    A análise documental (oficial) foi proposta, sustentada pela teoria de Bogdan e Biklen

    (1994, p. 180). Acredito que o material escrito nos documentos externos e internos quecirculam dentro da própria organização, tal como o sistema escolar, pode revelar informações

    preciosas acerca das relações de poder estabelecidas na escola, bem como as regras e

    regulamentos que as determinam, capazes de propiciar revelações potenciais acerca de qual o

    valor e qual o grau de participação dos membros na organização.  

    Isso me impeliu ao uso dos documentos oficiais. Num primeiro momento busquei, nos

    documentos externos, os discursos oficiais da SEDUC, esboçados no Livro Escola Ciclada de

    Mato Grosso, suas proposições no que se referem à organização escolar por ciclos. Nesse

    material, procurei identificar as orientações básicas e as nomenclaturas empregadas na sua

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    28/229

      27

    caracterização. Assim coletei dados a respeito da estruturação dos ciclos, da matriz curricular,

    do processo de enturmação, dentre outros.

    Esse documento trazia também informações sobre os contextos político-educacionais

    mato-grossenses em que os ciclos foram implementados.

    Em seguida, fiz uso dos documentos internos, tais como planejamento anual, planos de

    aulas, pelo fato de serem os textos escritos pelos próprios sujeitos, o que coaduna com o meu

    interesse em compreender como a alfabetização é definida na escola pelo coletivo de

    professores do 1º. ciclo. Esse material também possibilitou visualizar como as professoras

    alfabetizadoras interagem com os discursos “oficiais” e “extra-oficiais” sobre os conteúdos

    curriculares e saberes que os alfabetizandos precisam dominar para serem alfabetizados. O

    “planejamento curricular” elaborado pelos professores do 1º. Ciclo, os “planos de aulas” dasprofessoras, serviram ainda como ponto de partida e de significação para a identificação do

    conteúdo, objeto deste estudo, manifestos alguns de forma explícita ou latente, em vinculação

    com outras técnicas utilizadas nesta pesquisa.

    Segundo Franco (2005, p. 24, grifos do autor), “[...] esse procedimento tende a

    valorizar o material a ser analisado, especialmente se a interpretação do conteúdo ‘latente’

    estipular, como parâmetros, os contextos sociais e históricos nos quais foram produzidos”.

    Uma das escolas me entregou um planejamento único de todos os professores do 1º.Ciclo para que eu tirasse cópia. Uma outra escola me entregou o planejamento anual,

    composto por quatro bimestres, realizados para cada uma das turmas do ciclo. Uma terceira

    escola me entregou o planejamento anual realizado individualmente por professora. Obtive

    também algumas amostras de cadernos dos alunos.

    Nesses documentos, “planejamento curricular e planos de aulas”, procurei identificar

    os seus elaboradores, ou seja, os partícipes dessa construção, buscando também saber os

    principais materiais consultados para a sua elaboração e ainda os conhecimentos e conteúdosque priorizaram, no documento, para trabalhar com suas turmas de alunos.

    Fiz uso desse material como uma possibilidade de apreender a compreensão própria de

    cada professora num espaço-tempo distanciado de sua ação de planejar o currículo. Assim

    aproveitei a amostra para tentar captar o significado que atribuem ao tempo curricular no

    processo de alfabetização, bem como caracterizar como os professores organizam o tempo e o

    espaço no desenvolvimento do currículo no processo de alfabetização.

    Considerei as sugestões de Bogdan e Biklen (1994, p. 206), para quem os

    pesquisadores iniciantes devem utilizar estratégias referentes ao modo de análise no campo de

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    29/229

      28

    investigação, deixando a análise mais formalizada para quando estiver de posse da maior

    parte dos dados.

    Esse processo só foi possível através de uma leitura mais minuciosa das orientações

    propostas nesses documentos para o trabalho curricular no 1º. Ciclo.

    Franco (2005, p. 24) nos alerta que “[...] os resultados da análise de conteúdos devem

    refletir os objetivos da pesquisa e ter como apoio indícios manifestos capturáveis no âmbito

    das comunicações emitidas”. Ele diz ainda que é “[...] com base no conteúdo manifesto

    explícito que se inicia o processo de análise”. Franco ainda aconselha ao pesquisador não

    descartar a possibilidade de uma real análise acerca do currículo “oculto”, das mensagens e de

    suas entrelinhas, o que conduz para além do que pode ser identificado, quantificado e

    classificado, para o que pode ser compreendido mediante códigos peculiares e característicos.O processo de análise dos dados qualitativos é de natureza complexa, pois exige

    procedimentos e decisões acerca da experiência do pesquisador e determina os prováveis

    caminhos na determinação dos procedimentos de análise.

    Realizei a codificação dos registros dos materiais coletados com a pretensão de criar

    e especificar as categorias e ainda definir a estruturação dos conceitos e concepções mais

    abrangentes. O processo de codificação reuniu uma série de meios que serviram para

    organizar o conjunto de categorias que indicam as tendências mais marcantes ou significativassobre a problemática estudada.

    As categorias foram levantadas, em grande parte, no próprio processo de construção

    do referencial teórico e também a partir do próprio conteúdo dos dados levantados, o que

    contribuiu para especificar e expandir seus conteúdos.

    Assim, para orientação das análises, os dados foram organizados em três grandes

    categorias e respectivas subcategorias

    1. Os elementos configuradores do cenário encontrado nas escolas.1.1 Alguns elementos caracterizadores das escolas eprofessores do 1º Ciclo.

    1.2 A estruturação do coletivo pedagógico do 1º Ciclo.

    2. As bases teórico-conceituais de alfabetização e de currículo.

    2.1 Concepções de alfabetização dos sujeitos

    2.2 Concepção de currículo de alfabetização

    2.3 Opções na organização curricular

    3. O desenvolvimento curricular no contexto do 1º. Ciclo.

    3.1 As superações necessárias no planejamento coletivo.

    3.2 O desenvolvimento curricular no contexto da sala de aula.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    30/229

      29

      3.3 As ações de intervenção pedagógica pedagógica nas dificuldades de

    Aprendizagem.

    3.4 Formação Continuada das professoras alfabetizadoras.

    Esta organização orientou a estrutura desta dissertação que se constitui de uma

    introdução e três capítulos.

    A  Introdução traz a origem e a trajetória da pesquisa, o lócus, os sujeitos, os

    instrumentos da investigação e a coleta de dados.

    No  Capítulo 1, Retratos da alfabetização no contexto de mudanças na

    organização escolar,  dediquei-me a retratar a alfabetização e a organização por ciclos emtempos e espaços determinados, buscando evidências na história que possibilitassem o

    entendimento relacional entre ambos. Para tanto, contei especialmente com a colaboração de

    Mortatti (2004; 2006), Moll (1996), Freire (2001), Freitas (2004), Barreto e Mitrulis (2001) e

    Mainardes (2007). 

    O  Capítulo 2, O currículo na alfabetização e seu planejamento: concepções e

    práticas, foi  organizado tendo por aporte teórico a compreensão e a produção deconhecimento no que diz respeito ao planejamento desenvolvimento curricular. Conta com as

    contribuições de Freire (2006), Gimeno Sacristán (2000), Gimeno Sacristán; Pérez Goméz

    (1998), Moreira (2004; 2006), Pacheco (2005), Goodson (2001), Fetzner Krug (2001; 2007),

    Lima (2006) e Arroyo (1999; 2004; 2006; 2007) na busca de entendimento sobre o currículo

    na alfabetização.

    No Capítulo 3, Tecendo uma compreensão sobre o currículo desenvolvido no 1º.Ciclo realizo a interpretação e atribuição de significados sobre os dados coletados em campo,

    num esforço de produção teórico-prática que a reflexão sobre estes propicia.

    E nas  Considerações Finais, trago os resultados da pesquisa em uma síntese que

    condensa a análise.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    31/229

     

    CAPÍTULO 1

    RETRATOS DA ALFABETIZAÇÃO NO CONTEXTO DE MUDANÇAS NA

    ORGANIZAÇÃO ESCOLAR

    Neste capítulo procurei direcionar o meu olhar para o contexto histórico da educação,

    em busca de retratar alguns períodos significativos da alfabetização, bem como o

    entendimento de leitura, escrita e de alfabetizado nos períodos retratados. Deste modo tomei

    por base as concepções de alfabetização, considerando o processo de mudança na organização

    da escola pública brasileira, em particular do sistema estadual de Mato Grosso, na tentativa de

    compreender o movimento relacional entre ambos – alfabetização e organização escolar por

    ciclos.

    Captar alguns dos aspectos presentes neste movimento relacional entre a alfabetização

    e a organização escolar por ciclos torna-se importante neste estudo, considerando que estes

    processos de mudanças ocorrem simultaneamente nos espaços escolares.

    1.1 Alguns indícios das concepções de alfabetização no contexto da implantação dos

    ciclos no Brasil

    Alfabetização e organização escolar por ciclos constituem-se, neste momento, em

    grandes desafios postos à educação brasileira, pois fazem parte das exigências de

    transformação nos processos e práticas educativas, os quais se dizem preocupados emrecuperar a concepção de educação básica como direito de todos e não como privilégio das

    elites.

    Historicamente, as concepções acerca da alfabetização foram se formando como uma

    prática plural e multifacetada, com diferentes sentidos e significados, no contexto

    socioistórico-cultural econômico e político, sob a égide de diferentes concepções que

    acarretaram mudanças nas definições metodológicas e nos procedimentos didáticos.

    A organização escolar por ciclos também não é única, apresenta formas e concepções

    diferenciadas a depender das políticas e contextos dos quais são provenientes. Dessa forma,

    elas podem apresentar semelhanças, sem, contudo, serem iguais.

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    32/229

      31

    A idéia não é historicizar exaustivamente sobre estas temáticas, mas certamente é

    necessário reportar-me à trajetória histórica, em busca de melhor entender como a

    alfabetização e a organização escolar por ciclos vêm se configurando no panorama

    educacional.

    Esta trajetória pode contribuir também com a minha finalidade de tentar sinalizar as

    intencionalidades, nem sempre explícita, as quais levaram os mais diversos sistemas de ensino

    a adotarem esta ou aquela forma de organização escolar. Ou seja, entender como a política de

    ciclos vem sendo delineada e delimitada nos Estados Brasileiros, para então compreender a

    situação em que se encontra a alfabetização na organização escolar por ciclos de Mato

    Grosso, em especial o 1º. Ciclo, onde foco meu objeto de estudo.

    Neste sentido, farei uma revisita a determinados períodos da história da educação,desde o descobrimento do Brasil aos dias atuais, para compor um breve histórico da

    alfabetização e da organização por ciclos. Organizei os fatos compreendidos como

    importantes em quatro (4) períodos, na tentativa de melhor situar os tempos descritos.

    Para melhor abrangência, trouxe para o histórico dos ciclos os trabalhos de Barreto e

    Mitrulis (2001, p. 103-140) e, para o histórico da alfabetização, contarei com as contribuições

    de Moll (1996), Freire (2001) e, sobretudo, os estudos de Mortatti (2004; 2006). Os

    estudiosos a quem me reporto, têm seus trabalhos reconhecidos como os mais completosacerca dos temas que serão abordados. Contei também, para compor esse histórico, com as

    contribuições do recente estudo de Mainardes (2007), que trata das políticas de ciclos no

    Brasil.

    1º. Período – Do descobrimento do Brasil (1500) até o período pombalino ou de

    remodelação iluminista (1759-1808)

    No primeiro período, de 1500 a 1549, tempo de instalação das capitanias hereditárias,

    não havia nenhuma preocupação com educação escolarizada. Esta preocupação veio surgir

    com a chegada dos jesuítas após 1549 e sua permanência até os anos de 1759 e estava

    vinculada à disseminação da doutrina católica. O interesse inicial era dedicado à criança

    indígena, mas foi tomando outra estratégia e agregando índios, mestiços colonos e órfãos

    vindos de Portugal, tanto nas “escolas de ler e escrever”, onde o ensino primário deveria ser

    um prolongamento da catequese, quanto nos colégios, cujo objetivo era preparar os

    missionários (FREIRE, 2001, p. 46).

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    33/229

      32

    Mesmo considerando a dualidade do “instruir” e “catequizar” os indígenas, a educação

     jesuítica foi uma ferramenta básica na formação da elite colonial, uma vez que foi reduzindo

    suas ações aos colégios e destinando o ensino aos filhos dos colonizadores e senhores de

    engenho. Segundo Freire (2001, p. 42), a preocupação da Companhia de Jesus não era voltada

    à alfabetização e nem à educação para todos.

    A reforma de Pombal, em 1759, beneficiou Portugal e trouxe retrocesso para a

    educação no Brasil. Os cursos seriados dos jesuítas foram substituídos pelas “aulas avulsas”

    dadas por professores improvisados, que as ministravam em suas próprias casas, sem

    considerar questões de continuidade dos conteúdos e a relação entre as disciplinas estudadas

    (FREIRE, 2001, p. 46).

    2º. Período – Do Império ao primeiro período republicano – Introdução dos

    “grupos escolares”

    Nesse período, de 1822 a 1859, pelos relatos de Freire (2001, p. 47), deu-se

    continuidade às “aulas avulsas” no ensino elementar. Apesar da Constituição de 25 de março

    de 1824, no seu Capítulo IV, que trata da obrigação escolar, Art. 179, § 32, determinar a

    instrução primária gratuita a todos os cidadãos, uma vez que não existia um sistemaeducacional próprio de um Estado nacional.

    Os deputados brasileiros foram à Europa observar o sistema educacional e de lá

    trouxeram o método Lancaster e Bell, chamado também de ensino mútuo, simultâneo ou

    monitorial, adotado em 15 de outubro de 1827, no Brasil (FREIRE, 2001, p. 54).

    Para as preocupações políticas da época, a vantagem desse método era que um só

    mestre poderia ter até seiscentos discípulos, solucionando, assim, o problema da falta de

    docentes formados para atuarem com essas turmas. Este método propunha lições com poucasidéias, para melhor repetição e fixação, e as atividades dadas eram sempre pré-requisitos para

    as próximas lições.

    A precariedade na educação, segundo Freire, prosseguiu, uma vez que “[...] não havia

    formação profissional adequada para cuidar da alfabetização dentro do Estado Nacional

    Brasileiro”. As camadas médias faziam seus estudos através de “aulas avulsas” nas escolas de

    primeiras letras e nos liceus provinciais. Os filhos dos senhores de terras e escravos

    começavam seus estudos com preceptores em suas casas, na maioria das vezes com o tio-

    padre “ilustre” da família ou leigos trazidos da Europa para esta finalidade, algumas vezes nas

    escolas públicas (FREIRE, 2001, p. 53).

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    34/229

      33

     

    No Primeiro Império ‘As escolas de primeiras letras’, a duração era de doisa três anos, para o sexo masculino, o currículo constava de: ler, escrever, asquatro operações de aritmética, prática de quebrados, decimais e

    proporções; noções gerais de geometria prática, gramática da línguanacional e princípios de moral cristã e de doutrina da religião católica.Aprendia-se a ler nos textos da Constituição do Império e de história doBrasil. O currículo para o  sexo feminino excluía a geometria, resumiaaritmética às quatro operações e acrescentava prendas domésticas. Aideologia da interdição do corpo começa a ser incorporada à legislaçãoescolar através dos conteúdos educacionais diferenciados pelo sexo(FREIRE, 2001, p. 53-54).

    Segundo Mortatti (2007, p. 54), “[...] o ensino das primeiras letras continuava

    significando o ensino dos rudimentos da leitura e escrita muito próximos do ensino das letrasdo alfabeto”. A autora chama a atenção para o fato de que, apesar de ter sido indicado o

    ensino simultâneo da leitura e escrita desde meados do século XIX, a leitura continuou em

    primeiro plano e a escrita, secundarizada ou apenas como assinatura do próprio nome.

    Acredita-se que isso se deva tanto ao fato de ser o ensino da escrita mais dispendioso quanto

    pela atribuição à importância do ato de ler.

    E o ensino da leitura se baseava, predominantemente, no método dasoletração e no método da silabação, os quais eram tidos como rotineiros e‘tradição herdada’, embora, ao longo da década de 1870, tenha sidodisseminada pelo menos uma discussão sistemática dessa ‘rotina’ e umaproposta para a metodização do ensino da leitura, com base no método dapalavração (MORTATTI, 2007, p. 54, grifos da autora).

    Para ensinar a leitura, nesse período, valiam-se dos métodos de marcha sintética,

    compreendidos como da “parte” para o “todo”.

    No que se refere à “leitura”, a idéia era apresentar o nome das letras para iniciar o

    ensino dos usualmente chamados “métodos de soletração/alfabético”; ou dos seus sons

    correspondentes, “método fônico”; ou das famílias silábicas, “método da silabação”, devendo

    sempre dar atenção à ordem crescente de dificuldades.

    “Quanto à “escrita”, esta era reduzida à caligrafia e ortografia, e seu ensino, à cópia,

    ditados e formação de frases, enfatizando-se o desenho correto das letras”. (MORTATTI,

    2007, p. 5).

    Por volta dos anos de 1890, surgem os métodos analíticos em oposição teórica aos

    métodos sintéticos. Partem das unidades maiores (palavra, frase, texto) para as unidades

    menores (letra, fonema, sílaba) através da decomposição. Utilizam o raciocínio dedutivo

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    35/229

      34

    partindo do complexo para o simples, do todo para as partes. Os mais usuais foram o da

    palavração, da sentenciação e o da historieta.

    A partir de 1896, o embasamento da reforma estava nos novos métodos de ensino, em

    especial no então “revolucionário” método analítico para o ensino da leitura, sob forte

    influência da pedagogia norte-americana, tendo por fundamento didático a concepção de

    caráter biopsicofisiológico da criança, cujo entendimento era o de que a apreensão do mundo,

    pela criança, era sincrética.

    Mainardes (2007, p. 55) considera o período de 1918 a 1921 como anterior aos ciclos,

    onde o elemento-chave, no discurso oficial, era a promoção em massa, com a justificativa de

    reduzir as taxas de reprovação, o desperdício de recursos financeiros e promover todos os

    alunos (por falta de vagas no ensino primário). Nesse mesmo período, com “Carta Circular de1918, Thompson “inaugurou” a palavra “alphabetização” para designar oficialmente o ensino

    inicial da leitura e da escrita”. (MORTATTI, 2004, p. 60).

    A discussão sobre métodos prosseguiu até meados dos anos de 1920, segundo Mortatti

    (2004), recaindo sobre o ensino inicial da leitura, uma vez que se entendia como ensino inicial

    da escrita a questão de caligrafia (vertical ou horizontal) e a do tipo de letra a ser usada

    (manuscrita ou de imprensa, maiúscula ou minúscula). Essas questões exigiam

    abundantemente treino, mediante exercícios de cópia e ditado.Surge também, nesse período, segundo os relatos de Mortatti (2004), uma outra

    tradição, o ensino da leitura envolvendo ações didáticas “como ensinar” a partir da definição

    das habilidades visuais, auditivas e motoras da criança “a quem ensinar”, sendo “[...] o ensino

    da leitura e escrita tratado como uma questão de ordem didática subordinada às questões de

    ordem psicológica da criança”.

    Os pressupostos dos métodos sintéticos e analíticos tinham por fundamento teórico o 

    empirismo-associacionista de aprendizagem, calcado no modelo de “estímulo resposta”. Seufoco de atenção se centrava em como ensinar, o alfabetizando era tido como uma

     

    tábula rasa,

    folha em branco, ou seja, alguém que não tem conhecimento e experiência anterior sobre a

    língua, aprende recebendo e memorizando informações prontas sobre letras, sílabas e palavras

    dadas pelo professor, tido como o detentor de todos os saberes.

    A língua era concebida como um código a ser decifrado e codificado, predominando a

    prática mecânica da memorização da grafia correta de palavras, cópias e ditados sem sentido,

    assim como uma leitura descontextualizada, desprovida de significado para os alfabetizandos,

    uma vez que a linguagem era trabalhada distanciada do seu uso real e de sua função principal,

  • 8/19/2019 A ALFABETIZAÇÃO NO CURRÍCULO DA ESCOLA ORGANIZADA POR CICLOS NO SISTEMA ESTADUAL DE EDUCAÇÃO

    36/229

      35

    a interação entre as pessoas (função comunicativa real). Ler era, antes de tudo, dominar a

    técnica de leitura e escrita.

    O aprendizado do sistema de escrita estava reduzido ao domínio de correspondências

    grafo-fonêmicas (decodificação e codificação) e na ênfase aos aspectos gráficos e

    psicomotores como requisitos para prontidão da alfabetização, isto é, bom traçado, boa

    coordenação motora e boa discriminação visual e auditiva.

    Os métodos sintéticos e analíticos foram criados em virtude da urgência de facilitar as

    habilidades de aprender a ler e escrever.

    Na década de 1920, resultante da “autonomia didática” ditada pela “Reforma Sampaio

    Dória” e das necessidades políticas e sociais que emergiram, incluindo a resistência dos

    professores quanto ao uso do método analítico, deu-se início à procura de propostas capazesde solucionar os problemas acerca do ensino e aprendizagem iniciais da leitura e da escrita.

    Tomando por base os estudos de Mainardes (2007), nesse mesmo período, retomam-se

    as discussões sobre os ciclos, travadas desde 1910, logo após a introdução dos primeiros

    grupos escolares no Brasil. Essas discussões acirram-se mais nos meados do século