lei da criminalidade organizada
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Lei da Criminalidade Organizada
Carla Adriana Carvalho*
I. Introdução
A Lei n.º 6/97/M, de 30 de Julho, que estabelece o regime legal contra a
criminalidade organizada, revogando expressamente a Lei n.º 1/78/M, de 4 de
Fevereiro, tendo mantido alguns dos conceitos fundamentais no que se refere ao crime
de associação ou sociedade secreta, apresenta também alguns aspectos inovadores.
A nova Lei vai mais longe do que a anterior, quer no domínio das molduras
penais aplicáveis às várias modalidades de acção do crime de associação ou sociedade
secreta, quer ao nível das condutas puníveis, matéria em que se denota grandes
inovações.
Por outro lado, trata-se de um regime mais punitivo também do que o do crime
de associação criminosa, previsto e punido no Código Penal (artigo 288.º).
O Código Penal , aprovado pelo Decreto-Lei n.º 58/95/M, de 14 de Novembro,
não tinha revogado globalmente a Lei n.º 1/78/M, de 4 de Fevereiro. Manteve-se esta
Lei em vigor na parte em que a mesma se referia exclusivamente ao crime de sociedade
secreta, tendo sido revogados apenas os artigos 13.º, 14.º, 17.º e 18.º (alínea m) do
artigo 10.º do D.L. n.º 58/95/M, de 14 de Novembro).
A opção pela manutenção de um regime penal especial no domínio das
sociedades secretas funda-se na ideia de que tal regime reflecte a especificidade de
Macau1. O legislador assumiu as especificidades de natureza sociológica deste tipo de
* Jurista no Gabinete para a Tradução Jurídica.
1 Cunha Rodrigues, “Um Código para Macau”, Jornadas de Direito Penal, Macau - 1996.
1
organizações criminosas como fundamento bastante para um tratamento jurídico-penal
separado.
O facto de a Lei actual (Lei da Criminalidade Organizada) ter designação
diversa da constante na anterior Lei n.º 1/78/M, de 4 de Fevereiro (Associações de
malfeitores) é indicativa da alteração ao nível dos conteúdos operada pela nova Lei da
Criminalidade Organizada. Com efeito, a actual Lei da Criminalidade Organizada
(LCO), não obstante manter a posição nuclear do crime de associação ou sociedade
secreta, prevê e pune outras condutas geralmente associadas à actividade das
associações ou sociedades secretas, sendo o seu alcance, por essa razão, mais extenso do
que o da Lei anterior. E, para além de prever e punir mais crimes e crimes diversos dos
que constavam da Lei anterior, cria, também, mecanismos novos de combate à
criminalidade organizada.
As organizações criminosas a nível mundial têm diversificado as áreas e as
modalidades de actuação e têm também intensificado a violência dos meios utilizados.
Por outro lado, a investigação neste domínio tem sofrido grande evolução, tendo
vindo a ser criados a nível internacional novos mecanismos de prevenção e repressão
deste género de criminalidade especialmente perigosa.
No ordenamento jurídico de Macau tornava-se urgente a modernização e a
adequação dos meios existentes às evoluções referidas e à situação que se tem
verificado no território, permitindo ao mesmo tempo a eliminação de algumas
deficiências da Lei anterior.
II. Crime de associação ou sociedade secreta
a) Noção de associação ou sociedade secreta
A definição de associação ou sociedade secreta, que consta do artigo 1.º da
LCO, parece corresponder em grande parte ao resultado da construção jurisprudencial e
doutrinal em torno do conceito de associação criminosa, constante do Código Penal, o
2
que permite concluir que a especificidade sociológica das associações secretas, que
estaria na base da criação de uma figura diferente, não foi transposta para a construção
do tipo.
O conceito de associação ou sociedade secreta abrange qualquer organização
cuja existência se manifeste por acordo ou convenção ou outros meios, nomeadamente
pela prática dos crimes previstos das alíneas a) a v) do n.º 1 do artigo 1.º. Exige-se, por
conseguinte, uma estrutura organizatória - ainda que incipiente, pois bastará que se
ateste por qualquer meio a existência de «uma realidade transcendente à vontade e
interesses individuais dos seus membros»2.
Não é necessário, em consequência, que a organização tenha uma sede ou um
lugar determinado para reuniões, que os membros se conheçam, que haja reuniões
periódicas, que haja um comando ou uma direcção efectiva ou que existam estatutos ou
convenção escrita que a constitua e regule o seu funcionamento. Tal desnecessidade,
tendo sido fruto da elaboração doutrinal do conceito de associação criminosa, integra
expressamente a definição legal de associação ou sociedade secreta, como critério
delimitador do conceito (artigo 1.º, n.º 2 da LCO).
Estreitamente relacionado com a existência de um substrato organizatório,
encontra-se o requisito da estabilidade associativa, o qual é essencial para que se possa
falar em associação ou sociedade secreta. O requisito não pressupõe, todavia, uma
permanência de facto da organização, mas tão-somente que a intenção ou o objectivo da
organização seja a realização de uma actividade criminosa com uma certa duração.
Quanto aos fins da associação ou sociedade secreta, a LCO opera uma ligeira
alteração relativamente, quer ao tipo «associação criminosa» previsto no Código Penal
(artigo 288.º), quer ao tipo do anterior regime penal das sociedades secretas (artigo 2.º),
os quais definem o escopo da organização como sendo o da prática de crimes ou de
infracções penais. A LCO recorre a uma formulação com contornos mais fluidos do que
os que resultam das referidas normas, considerando «associação ou sociedade secreta
2 Jorge de Figueiredo Dias, AS «ASSOCIAÇÕES CRIMINOSAS» NO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS DE 1982 (ARTS. 287.º e 288.º), Coimbra, Coimbra Editora, 1988, p. 33.
3
toda a organização constituída para obter vantagens ou benefícios ilícitos» (artigo 1.º
da LCO).
Poder-se-á levantar a questão de saber se a intenção do legislador terá sido a de
permitir incluir no escopo da finalidade ilícita das associações ou sociedades secretas
outros crimes para além dos crimes comuns, em particular os crimes de direito penal
secundário.
Segundo um sector relevante da doutrina portuguesa3 e, também de parte da
jurisprudência4, no conceito de associação criminosa apenas se incluem as associações
que tenham por finalidade a prática de crimes comuns, ou seja, crimes no âmbito do
direito penal de justiça, estando, por isso, excluídos os crimes de direito penal
secundário e as contravenções.
No entanto, se se atender à evolução do conceito de organização criminosa a
nível internacional, poder-se-á verificar que as organizações criminosas são hoje vistas
como estruturas de fins comerciais e económicos que praticam crimes com cada vez
maior incidência na área do chamado direito penal secundário.
O âmbito do conceito de associação ou sociedade secreta expresso na LCO
poderia, então, interpretar-se como mais alargado do que o de associação criminosa. A
ser esta a interpretação correcta, o conceito poderá abranger as associações cujo escopo
é a prática de crimes ou infracções de outra natureza diferente da do direito penal de
justiça.
De qualquer forma, torna-se difícil identificar a priori as situações que, na
realidade, vão ser abrangidas por cada um dos tipos e qual o préstimo da permanência
de dois tipos de crimes com as semelhanças referidas, sendo que um deles poderia
assimilar o outro, mediante uma simples reformulação da redacção.
3 id., pp. 41 a 47.
4 Acórdão da Relação de Évora, de 31 de Janeiro de 1985, Colectânea de Jurisprudência, tomo 1, p. 329.
4
b) Modalidades da acção no crime de associação ou sociedade secreta
O tipo objectivo do crime de associação ou sociedade secreta é integrado por
diversas modalidades de acção: promover, fundar, fazer parte, apoiar, dirigir ou chefiar
(artigo 2.º da LCO). O paralelismo entre o crime de associação ou sociedade secreta e o
crime de associação criminosa é também aqui evidente, pois são as mesmas as
modalidades de acção que integram ambos os tipos.
Tendo em conta esse paralelismo, deverá interpretar-se as diversas modalidades
de acção nos mesmos termos em que se o faz no âmbito do crime de associação
criminosa, onde tem sido objecto de análise detalhada, referindo-se aqui apenas alguns
aspectos.
Os crimes que se consubstanciam em fazer parte ou apoiar a associação ou
sociedade secreta são integrados a título exemplificativo pelas acções enunciadas nas
alíneas a) a e) do n.º 2 do artigo 2.º da LCO. As acções enumeradas nas duas primeiras
alíneas são semelhantes às que constam do n.º 2 do artigo 288.º do Código Penal, que
descreve a acção de apoio a associação criminosa (fornecer armas, munições,
instrumentos de crime, guarda ou locais para as reuniões, ou qualquer auxílio para que
se recrutem novos elementos), correspondendo, em termos gerais, as restantes,
integradas nas alíneas c), d) e e) do n.º 2 do artigo 2.º, aos factos que constituíam
presunção da qualidade de membro de uma associação no anterior regime penal das
sociedades secretas (artigo 12.º da Lei n.º 1/78/M, de 4 de Fevereiro). Por conseguinte,
a LCO recorreu a conceitos semelhantes aos usados no artigo 288.º do Código Penal e
introduziu, simultaneamente, alguns elementos específicos das associações ou
sociedades secretas, sobretudo no que se refere à participação em reuniões ou
cerimónias rituais, que se julga serem características deste tipo de associação criminosa.
Uma interpretação baseada nomeadamente na comparação do n.º 2 do artigo 2.º
com o n.º 2 do artigo 288.º do Código Penal, poderia levar a concluir que a
exemplificação daquele número parece remeter apenas para ‘apoiar’ e não também para
‘fazer parte’, ou seja indicam ajuda, auxílio à manutenção e ao desenvolvimento da
organização e prossecução das suas actividades.
5
Os factos que constam das alíneas d) e e) - participar em reuniões ou cerimónias
rituais e utilizar senhas ou códigos de qualquer natureza, característicos de associação
ou sociedade secreta -, não indicam ajuda, auxílio à manutenção e ao desenvolvimento
da organização e prossecução das suas actividades. Na lei anterior tais factos eram
presunções da qualidade de membro, o qual deve entender-se como sendo parte do todo
que constitui a organização, contribuindo para a formação da vontade colectiva e
realizando trabalho prático no sentido da consecução do escopo criminoso.
As acções mais fortemente punidas são, tal como no crime de associação
criminosa, as de chefiar ou dirigir. Com efeito, os chefes ou dirigentes são, nas palavras
de Figueiredo Dias, membros especialmente qualificados5, pois a actividade que
prosseguem dentro da organização é especialmente perigosa, dado que, assumindo estes
as funções de gestão e planeamento da actividade criminosa da associação, são os
‘cérebros’ da organização.
c) Sentido político-criminal da punição das associações ou sociedades secretas
As organizações criminosas são estruturas muito sofisticadas que possuem
grande eficácia, pois não só mobilizam meios tecnológicos e financeiros de grande
envergadura, como também dispõem de uma estrutura humana extensa, constituída na
base de relações de grande fidelidade e coesão e têm, em geral, uma actividade violenta.
Além desses aspectos, as organizações criminosas, em geral, levam a cabo actos de
grande violência.
Estas organizações criminosas constituem, assim, uma ameaça especialmente
qualificada da ordem jurídica, da estabilidade e da segurança da comunidade, colocando
os cidadãos numa situação de medo constante dos crimes.
Por estas razões, a luta contra este sector da criminalidade exige a criação de
mecanismos especialmente dissuasores e eficazes em matéria de prevenção e repressão,
5 Jorge de Figueiredo Dias, AS «ASSOCIAÇÕES CRIMINOSAS» NO CÓDIGO PENAL PORTUGUÊS DE 1982 (ARTS. 287.º e 288.º), Coimbra Editora, 1988, p. 61.
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diversos dos que são disponibilizados para a prevenção e repressão da criminalidade
tradicional, a qual é muito menos complexa. Daí ser este diploma caracterizadamente
penalizador, tendo criado uma disciplina especial em diversos aspectos substantivos e
processuais, alguns dos quais serão discutidos a seguir.
Por detrás deste regime penal do crime de associação ou sociedade secreta estão,
assim, razões de política criminal que assentam na prevenção geral de intimidação e de
integração e se fundamentam na especial perigosidade que revelam estas associações, a
qual fundamenta, aliás, que neste diploma se tenha relegado, como se verá, para lugar
secundário a prevenção especial de socialização enquanto finalidade do direito penal.
III. Crimes distintos consagrados na Lei da Criminalidade Organizada
A LCO prevê e pune outros crimes: extorsão a pretexto de protecção (artigo
3.º); invocação de pertença a associação ou sociedade secreta (artigo 4.º); retenção
indevida de documento (artigo 6.º); tráfico internacional de pessoas (artigo 7.º);
exploração de prostituição (artigo 8.º); crimes enunciados no artigo 9.º sob a epígrafe
condutas puníveis em locais públicos; de conversão, transferência ou dissimulação de
bens ou produtos ilícitos (artigo 10.º); cartel ilícito para jogo (artigo 11.º); e violação de
segredo de justiça (artigo 13.º). Os crimes referidos são autónomos em relação ao crime
de associação ou sociedade secreta. Efectivamente, apesar de serem geralmente
atribuídos à prática das ‘seitas’, eles não têm na lei nenhuma relação de dependência ou
subordinação com o crime de associação ou sociedade secreta.
A quase totalidade destes crimes não constitui inovação, ou seja, trata-se de
fenómenos sociais já antes punidos pelo ordenamento jurídico-penal, sendo que alguns
deles são muito aproximados a tipos descritos no Código Penal. É o caso, por exemplo,
do crime de invocação de pertença a associação ou sociedade secreta, previsto e punido
no artigo 4.º da LCO, que descreve uma conduta que seria subsumível no crime de
coacção (artigos 148.º e 149.º do Código Penal), pelo que, neste caso, a LCO apenas
inova na medida em que acrescenta um elemento adicional a um tipo de crime já
existente, assim como ao nível da punição, agravando a moldura penal.
7
O artigo 9.º da LCO pune com pena de prisão até 1 ano quem, em locais
públicos ou de acesso público, ainda que reservado, importunar pessoas (alínea a)),
exibir atitude susceptível de provocar justo receio à segurança ou bem estar de alguém
(alínea b)), ou retiver , exigir ou constranger a entregar sem justificação, de forma
dissimulada ou não, dinheiro ou outros valores(alínea c)).
Relativamente ao caso previsto na alínea a) é talvez legítimo suscitar a questão
da necessidade político-criminal de submeter tal comportamento à intervenção do
direito penal e de prever uma sanção tão grave como a da pena de prisão. Por referência
aos conceitos de dignidade penal e de carência de tutela penal6, assim como do da
intervenção mínima do direito penal, poder-se-á considerar tal conduta como
socialmente danosa e intolerável contra a qual o direito penal seja o único meio eficaz
de reacção e protecção?
A Lei da Criminalidade Organizada prevê e pune no artigo 7.º o crime de tráfico
internacional de pessoas a par do crime de exploração de prostituição, no artigo 8.º.
Relativamente ao crime de tráfico internacional de pessoas, a LCO consagra
como objectivo do sujeito activo da acção criminosa o da satisfação de interesses de
outrem e não de interesses próprios, não estando, no entanto, definido quais sejam esses
interesses. O crime de tráfico internacional de pessoas em conjunto com o crime de
exploração da prostituição alargou o espectro de condutas puníveis na área dos crimes
contra a liberdade e autodeterminação sexuais, bem jurídico até agora tutelado pela
previsão como crime do lenocínio (artigo 163.º do Código Penal).
A prática do crime de lenocínio supõe a exploração da prostituição com intuito
lucrativo ou como modo de vida. Ora, o crime previsto no artigo 8.º da LCO, nos casos
previstos no seu n.º 1, não supõe a intenção lucrativa ou a profissionalidade, bastando
para o preenchimento do tipo o aliciamento, a atracção ou o desvio de outra pessoa para
a prática da prostituição, independentemente da sua intenção. Só na segunda parte do
mesmo número se prevê a exploração de prostituição, tendo-se, em função deste caso,
6 A este propósito ver, Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra Editora, 1997, pp. 399 e ss.
8
determinado como epígrafe do artigo a de exploração de prostituição. Mas, também o
n.º 2 do mesmo artigo prescinde da necessidade de remuneração para a qualificação da
conduta ali descrita como crime. Como vimos, o artigo 7.º, não refere igualmente qual o
tipo de interesses cuja satisfação implica o cometimento do crime, sendo que todos e
quaisquer interesses poderão ser considerados. Por conseguinte, os interesses protegidos
por estes tipo da LCO parecem não visar exclusivamente a tutela dos valores ético-
sociais dominantes, punindo as actividades de exploração do ganho da prostituta,
evitando punir os actos que apenas ponham em causa a moralidade sexual. Tal permite
concluir que a intenção descriminalizadora subjacente à exigência de intenção lucrativa
ou modo de vida no crime do artigo 163.º do Código Penal, é esvaziada nos crimes da
LCO.
Por outro lado, a formulação dos tipos não parece excluir a possibilidade de
dificuldades de qualificação de algumas condutas que na prática vão tornar difíceis de
traçar as fronteiras entre cada um dos tipos.
IV. Natureza penalizadora da Lei da Criminalidade Organizada
A LCO aparece como marcadamente penalizadora7, tanto directa como
indirectamente. Directamente, porque impõe a agravação das molduras penais de
ilícitos que já existiam como tal, não obstante a diferente formulação. Indirectamente,
porquanto desenvolve ou cria regimes especiais em alguns pontos da responsabilidade
criminal, da determinação da medida da pena e da sua execução.
Nomeadamente, reconhece o alargamento às pessoas colectivas do âmbito
subjectivo da responsabilidade criminal pelos crimes previstos no artigo 10.º (artigo
14.º da LCO), assim como restringe as condições de aplicação da liberdade condicional
(artigo 16.º da LCO), cria um regime especial de prorrogação da pena (artigo 21.º da
LCO), exclui a suspensão da execução da pena para alguns crimes (artigo 17.º da LCO),
alarga os prazos para efeitos de reincidência (artigo 20.º da LCO), agrava as penas
7 Sobre os conceitos de (des)criminalização e penalização ver Jorge de Figueiredo Dias e Manuel da Costa Andrade, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, Coimbra Editora, 1997, pp. 399 e ss.
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acessórias (artigo 18.º da LCO) e prevê a aplicação obrigatória da prisão preventiva em
certos casos (artigo 29.º da LCO).
a) Responsabilidade das pessoas colectivas
O princípio consagrado no Código Penal é o da individualidade da
responsabilidade criminal, estabelecendo-se que, salvo disposição em contrário, só as
pessoas singulares são susceptíveis de responsabilidade penal.
O artigo 14.º da LCO prevê a possibilidade de responsabilidade criminal das
pessoas colectivas privadas mesmo que irregularmente constituídas, bem como das
associações sem personalidade jurídica, no caso dos crimes de conversão, transferência
ou dissimulação de bens ou produtos ilícitos (artigo 10.º da LCO). Esta é uma opção de
cariz político-criminal que decorrerá da necessidade de punir directamente os
operadores comerciais, que são os principais protagonistas daquele género de crimes.
Efectivamente, pensa-se que um alvo fundamental na luta contra a criminalidade
organizada devem ser os rendimentos provenientes da actividade criminosa das
organizações criminosas.
Nesse sentido, considera-se essencial a criação de mecanismos que facilitem a
apreensão da propriedade de bens, rendimentos e valores provenientes do crime, que
permitam uma punição em virtude da dissimulação dos lucros e, paralelamente, um
regime que permita que as instituições de crédito e financeiras possam ou devam
colaborar estreitamente com as autoridades na despistagem do chamado branqueamento
de capitais8 e da origem ilícita dos rendimentos.
Parece tratar-se aqui de um caso em que é razoável a aplicação da excepção da
responsabilidade criminal colectiva, a qual só é possível em «casos excepcionalíssimos
8 Em Portugal, o Decreto-Lei n.º 313/93, de 15 de Setembro, que transpõe para a ordem jurídica portuguesa a Directiva n.º 91/308/CEE, do Conselho, de 10 de Junho, cria algumas soluções, das quais se destaca: 1. a obrigatoriedade de identificação dos intervenientes envolvidos em negócios e transacções , que recai sobre as instituições financeiras; 2. a recusa de realização da operação quando tal identificação não seja facultada; 3. a isenção do dever de sigilo profissional em certos casos tipificados.
10
e plenamente justificados pelo perigo que certos interesses graves da comunidade
correriam com a manutenção do princípio da responsabilidade individualizada»9. Com
efeito, muitas das vezes são empresas, grupos económicos ou até associações que
prosseguem as actividades de branqueamento, enquanto operadores económicos. Por
outro lado, tais operações têm efeitos graves nas economias, chegando mesmo a
provocar sérios desequilíbrios. Por essas razões, nos crimes económicos consagra-se em
muitos países, nomeadamente em Portugal10, a responsabilidade criminal colectiva.
A norma do n.º 1 do artigo 14.º, no entanto, em atenção ao carácter excepcional
da responsabilidade criminal colectiva, delimita cautelosamente as suas condições: em
primeiro lugar, tem que verificar-se uma conexão entre a actividade do agente e a
pessoa colectiva ou associação que representa, o que significa que a sua actuação deve
ocorrer no exercício das suas funções ou em nome e no interesse colectivo, requisitos
que a lei estabelece para os membros titulares dos órgãos ou cargos de direcção ou
chefia, e para os representantes ou mandatários, respectivamente; em segundo lugar,
nos termos do n.º 3, a responsabilidade tem-se por excluída quando o agente actuar
contra ordens ou instruções expressas de quem de direito.
b) Liberdade condicional e prorrogação da pena
Não há, segundo a LCO, lugar a concessão de liberdade condicional nos casos
de reincidência nos crimes de associação ou sociedade secreta, de extorsão a pretexto de
protecção, de tráfico internacional de pessoas, nos previstos nas alíneas a) e b) do n.º 1
do artigo 10.º e de violação do segredo de justiça quando se tratar da situação prevista
ao abrigo do n.º 2 do artigo 13.º (artigo 16.º da LCO).
A exclusão da liberdade condicional em caso de reincidência nos referidos
crimes estará provavelmente fundamentada pela especial perigosidade que o agente
revela pela prática reiterada dos mesmos crimes. Ora a perigosidade resulta do
justificado receio de que o condenado venha a praticar, durante o período de liberdade
9 Beleza dos Santos, Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 73.º, p. 292.
10 Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, que institui o novo regime em matéria de infracções antieconómicas e contra a saúde pública. A responsabilidade criminal das pessoas colectivas vem consagrada no artigo 3.º do mesmo diploma.
11
condicional, os mesmos crimes em que reincidiu. Por conseguinte, a maior perigosidade
suscita exigências acrescidas de prevenção.
As mesmas razões terão estado subjacentes na determinação do instituto da
prorrogação da pena aqui especialmente previsto para o crime de associação ou
sociedade secreta (artigo 21.º da LCO). Com efeito, também neste caso se terá
pretendido dar resposta à maior perigosidade11 do agente, revelada em situações de
reiteração do crime (no caso da alínea a) do n.º 1 do artigo 21.º da LCO), ou em que,
atendendo às circunstâncias do caso, à vida anterior do agente, à sua personalidade e sua
evolução durante a execução da pena e aos indícios de continuidade de vinculação ou
ligação a associação ou sociedade secreta, haja expectativas fundadas de que o
condenado não conduzirá a sua vida de modo responsável sem cometer crimes (alínea
b) do n.º 1 do artigo 21.º da LCO).
c) Suspensão da execução da pena
O artigo 17.º da LCO exclui a suspensão da pena de prisão quando se trate dos
crimes de associação ou sociedade secreta, de extorsão a pretexto de protecção ou de
tráfico internacional de pessoas, assim como dos crimes previstos nas alíneas a) e b) do
n.º 1 do artigo 10.º, e de violação do segredo de justiça no condicionalismo do n.º 2 do
artigo 13.º. Não, no entanto, nos casos em que se aplique o regime especial previsto no
artigo 5.º, o qual prevê a atenuação especial ou a substituição da pena no caso de acções
contrárias à manutenção de associação ou sociedade secreta ou de acções de
colaboração com as autoridades.
O regime da pena de suspensão da execução da pena de prisão previsto no artigo
48.º do Código Penal prescreve um pressuposto formal que consiste em exigir que a
medida concreta da pena não seja superior a três anos. Ora algumas das molduras penais
abstractas dos crimes a que se refere o artigo 17.º da LCO têm por limite mínimo a
duração de 5 anos. Poderá concluir-se que o objectivo da norma é o de alargar a
11 Em relação à Pena Relativamente Indeterminada (artigo 83.º do Código Penal Português), o Professor Figueiredo Dias justifica político-criminalmente a referida pena com base na ideia de que «a culpa do imputável especialmente perigoso é uma culpa agravada, susceptível de legitimar uma agravação da pena pelo facto que lhe seja aplicada.» Cf. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, pp. 559 e s.
12
aplicação da suspensão da execução da pena aos casos de crimes que, enquadrando-se
no condicionalismo previsto no artigo 5.º, são punidos com uma moldura penal cujo
limite mínimo é superior à medida concreta da pena prevista no artigo 48.º do Código
Penal?
A ser realmente essa a intenção do legislador, a redacção do artigo não parece
expressá-la de forma perfeita.
Se, pelo contrário, se pretendia excluir a suspensão da execução para certos
crimes, nomeadamente para o de associação ou sociedade secreta, previsto e punido no
artigo 2.º, ela estaria à partida excluída pois nesse caso o pressuposto formal a que está
sujeita a sua aplicação jamais estaria preenchido.
De sublinhar a não adopção na LCO da condição a que estava sujeita a isenção
de pena12, prevista no artigo 11.º do anterior regime penal das sociedades secretas, nos
termos da qual a isenção só seria aplicável se as revelações feitas sobre os fins, planos
ou actividades da associação se mostrassem profícuas à acção da justiça (artigo 11.º, in
fine, da Lei n.º 1/78/M, de 4 de Fevereiro). O novo regime apenas exige que o agente
impeça, que realize um esforço sério ou que revele dados fundamentais sobre a
associação e a identidade dos seus membros, não estando condicionada a sua aplicação
ao sucesso da investigação. É um regime de todo mais consentâneo com o respeito pela
dignidade da pessoa que presta as informações.
d) Reincidência
No âmbito da reincidência, o n.º 2 do artigo 69.º do Código Penal determina que
o crime anterior por que o agente tenha sido condenado não conta para a reincidência se
entre a sua prática e a do crime seguinte tiverem decorrido mais de 5 anos.
A LCO, em relação aos crimes previstos nos artigos 2.º, 3.º, 7.º, alíneas a) e b)
do n.º 1 do artigo 10.º e n.º 2 do artigo 13.º, abre uma excepção ao regime do Código
12 O artigo 11.º do anterior regime penal das sociedades secretas referia-se a isenção de pena, mas dada a confusão terminológica entre isenção de pena e suspensão de pena, poderá razoavelmnte questionar-se se o que era aí visado não seria antes a suspensão da execução da pena.
13
Penal, permitindo que o espaço de tempo que medeia entre cada um dos crimes vá além
dos cinco anos, sem estabelecer qualquer limite em substituição (artigo 20.º).
A reincidência é uma causa de agravação da pena resultante da culpa agravada 13
do agente por este não ter respeitado e observado a advertência contra o crime que
resultou da condenação ou condenações anteriores. Todavia, para que realmente possa
falar-se numa culpa agravada, deve ser possível estabelecer-se uma conexão entre o
desrespeito pela advertência contida na condenação anterior, o qual resulta da prática do
segundo crime, e a própria advertência. É essa a razão da previsão de um prazo de
«prescrição» da reincidência14, ou seja, porque se crê que a partir de determinado limite
temporal já não será possível estabelecer-se qualquer conexão material. Daí que fosse
talvez mais conveniente, sob este ponto de vista e tendo em conta o princípio da
proporcionalidade, a determinação de um limite em substituição daquele que se prevê
no regime geral.
Conclui-se, assim, que a motivação do artigo 20.º da LCO parece assentar quase
exclusivamente em razões de perigosidade do agente, abstraindo de quaisquer
exigências do princípio da culpa.
e) Penas acessórias
Por fim, em matéria de penas acessórias, a LCO faz corresponder aos crimes dos
artigos 2.º, 3.º, 7.º, 9.º e alíneas a) e b) do artigo 10.º a aplicação de penas acessórias
(alíneas a) a l) do n.º 1 e alíneas a) a c) do n.º 3 do artigo 18, devendo ter-se presente,
nesta matéria, que terá que se evitar que a aplicação de tais penas venha a significar
uma violação do princípio da não automaticidade dos efeitos das penas e dos crimes,
bem como ter presente o princípio da culpa, para que na prática este instituto não se
transforme num instrumento puramente intimidatório e de carácter retributivo.
13 «Só de forma mediata podendo entrar em linha de conta a sua perigosidade eventualmente aumentada», como defende o Professor Figueiredo Dias no seu Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 262.
14 Figueiredo Dias, Direito Penal Português. As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, 1993, p. 266.
14
Este regime intenta, na senda do Código Penal, atribuir às penas acessórias a
natureza de verdadeiras penas, dotando-as, com excepção das de encerramento
definitivo de estabelecimento ou de dissolução judicial (alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo
18.º), de moldura penal e estabelece, simultaneamente, como pressuposto material a
gravidade do facto praticado, quanto às previstas no n.º 1 do artigo 18.º.
Trata-se, porém, de um regime pouco claro, uma vez que prevê um grande
número de penas acessórias, sem dispor outros critérios para além dos já referidos e
que, por outro lado, não exclui a aplicação cumulativa das mesmas (n.º 6 do artigo 18.º
da LCO).
f) Prisão preventiva
O artigo 29.º da LCO impõe, tal como o artigo 193.º do Código de Processo
Penal, a aplicação da prisão preventiva aos crimes previstos nos artigos 2.º, 3.º, 7.º,
alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 10.º e n.º 2 do artigo 13.º.
A opção do legislador terá sido fundamentada pela natureza, a gravidade e a
especial perigosidade desses crimes, pois constituem uma forte ameaça à ordem e
tranquilidade públicas.
A decisão que não aplicar ou não mantiver a prisão preventiva nos crimes
referidos no artigo 29.º da LCO e nos crimes previstos no artigos 4.º e 16.º da Lei n.º
1/78/M, de 4 de Fevereiro, é susceptível de recurso, o qual deverá ser julgado no prazo
máximo de 30 dias a partir do momento em que os autos, que sobem em separado,
sejam recebidos no tribunal superior, nos termos do artigo 1.º do Decreto-Lei n.º
15/98/M, de 4 de Maio.
Por conseguinte, excepto quanto à tramitação, que é idêntica, estabelece-se um
regime oposto ao que prevê o artigo 203.º do Código de Processo Penal no que se refere
à causa do recurso, pois neste caso recorre-se da decisão de aplicação ou manutenção
das medidas, ao contrário do regime do D.L. n.º 15/98/M, de 4 de Maio.
15
Em anotação ao artigo 203.º do Código de Processo Penal, Manuel Leal-
Henriques e Manuel Simas-Santos consideram que a referida norma « alude à decisão
que aplicar ou mantiver medidas. Daí que se deva ter por irrecorrível decisão que não
aplique ou que revogue medida de coacção»15.
Pode concluir-se, assim, que também neste aspecto o regime penal da
criminalidade organizada se configura marcadamente penalizador e orientado para a
especial perigosidade das condutas e dos agentes envolvidos.
V. Outras medidas especiais de prevenção e repressão da criminalidade
organizada
A investigação nesta área mostrou que as políticas criminais tradicionais não são
eficazes contra este género de criminalidade pois estão direccionadas para uma
criminalidade menos complexa, menos violenta e menos infiltrada nas estruturas da
organização política da sociedade.
Nesse sentido, as medidas de prevenção e repressão desta criminalidade
geralmente propostas são as seguintes: redução da pena ou mesmo isenção nos casos de
colaboração com as autoridades públicas; programas de protecção de testemunhas e das
vítimas; criação de estruturas policiais especializadas na investigação das organizações
criminosas; ênfase na cooperação e coordenação entre as várias estruturas
administrativas e judiciais existentes; vigilância através de meios electrónicos;
apreensão de bens, rendimentos e valores; isenção do dever de sigilo bancário em caso
de transacções suspeitas; obrigatoriedade de registo detalhado de transacções bancárias
acima de determinado montante; controlo da imigração; formação especializada do
pessoal com competência para investigar este género de crimes; etc.16
15 Manuel Leal-Henriques e Manuel Simas-Santos, Código de Processo Penal de Macau. Notas. Legislação. Macau, 1997, anotação ao artigo 203.º, pp. 472-473.
16 COMMISSION ON CRIME PREVENTION AND CRIMINAL JUSTICE, Fifth session, Vienna, 21-31 May 1996, Implementation of the Naples Political Declaration and Global Action Plan against Organized Transnational Crime - Report of the Secretary-General, in http://www.ifs.univie.ac.at (versão inglesa).
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a) Atenuação especial, substituição ou dispensa de pena
A LCO prevê no artigo 5.º um regime de atenuação especial, de substituição, ou
mesmo de dispensa da pena nos casos em que o agente se esforce seriamente por
impedir a continuação da associação ou sociedade secreta ou comunique à autoridade a
sua existência, designadamente declarando a identidade de outros membros ou
apoiantes e revelando os fins , planos ou actividades dessas associações, de modo a que
a autoridade possa evitar a prática de crimes. Neste caso, a aplicação dos institutos
referidos afasta-se das ideias político-criminais que originalmente presidiram à sua
criação, isto é, dos fins de prevenção especial de socialização, para servir propósitos
mais práticos, de eficiência na investigação do crime e dos seus agentes, numa área em
que as dificuldades de prova são evidentes.
De sublinhar que a adopção de uma qualquer destas condutas aqui referidas por
parte de condenado preso determina que as autoridades competentes realizem todas as
providências necessárias para garantir a integridade física do mesmo (artigo 40.º).
b) Protecção de testemunhas
No âmbito da protecção de testemunhas, a LCO prevê um regime especial de
segredo de justiça no domínio dos factos e actos processuais relativos aos crimes
previstos na mesma, que estejam cobertos por segredo de justiça ou a cujo decurso não
seja permitida a assistência (artigo 13.º), sendo que o segredo se mantém até 10 anos
após o trânsito em julgado da decisão final. Assim, por comparação com a moldura
penal do crime de violação de segredo de justiça previsto no artigo 335.º do Código
Penal, que é aí punido com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa até 240 dias,
elimina a possibilidade de aplicação de pena de multa e agrava as molduras penais da
pena de prisão.
Além disso, o n.º 2 do artigo 26.º permite a tomada de declarações para
memória futura nos casos em que haja razões para crer que o declarante (onde se inclui
o ofendido, as testemunhas, o assistente, a parte civil ou o perito) venha a deslocar-se
para o exterior por temer represálias ou manifestar por qualquer forma impossibilidade
de ser ouvido em julgamento.
17
Quanto à protecção das vítimas, além dos regimes do artigo 26.º e do artigo 5.º,
não há outras normas que protejam especificamente a situação das vítimas do crime
organizado.
Em todo o caso, os programas de protecção de testemunhas e de vítimas são em
geral pouco eficazes. É que, as relações que se estabelecem no seio das organizações
criminosas são de mútua confiança e de extrema fidelidade (sendo que na maioria dos
casos assentam em afinidades de carácter étnico). Torna-se, por essa razão,
extremamente difícil destruir essa confiança e fidelidade e, mesmo que tal seja
conseguido, há que quebrar ainda a barreira do temor de represálias, pois as
organizações criminosas são estruturas muito eficazes e capazes de actos de grande
violência, ou seja, neste domínio têm uma capacidade dissuasora que pode ser superior
à capacidade persuasora da lei e das autoridades.
c) O ‘agente infiltrado’ e ‘infiltração’ de membros das organizações criminosas nas
instituições públicas
Pelas mesmas razões apontadas acima, relativamente à obtenção de prova
testemunhal, é também muito difícil infiltrar agentes, pois tal representa um grande
risco e não é fácil entrar nas relações de confiança que caracterizam as organizações
criminosas.
A LCO, não obstante essas dificuldades, introduziu a figura do agente infiltrado
sob a epígrafe de condutas não puníveis no artigo 15.º, prescrevendo alguns requisitos,
nomeadamente o de que a ‘infiltração’ depende de prévia autorização da autoridade
judiciária ou de posterior validação nos casos de urgência relativa à aquisição da prova (
n.ºs 2 e 3 do artigo 15.º da LCO, respectivamente). Preenchidas tais condições, não
serão puníveis as condutas de funcionários que se tenham tornado membros de
associação ou sociedade secreta para fins de prevenção e repressão criminal (n.º 1 do
artigo 15.º da LCO).
Por contraposição, a infiltração de membros e apoiantes das organizações
criminosas no seio das autoridades públicas é comparativamente mais fácil e não
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envolve sério risco. Por essas razões existem, de facto, muitas infiltrações deste género,
sendo conhecida a utilização de métodos de corrupção e intimidação sobre agentes e
representantes das autoridades públicas.
Tendo isto em consideração, a prática por funcionário de algum dos crimes
previstos no artigo 2.º determina a agravação da moldura penal dos mesmos crimes em
um terço nos seus limites máximo e mínimo, nos termos do n.º 5 do artigo 2.º.
Por outro lado, a pena acessória de proibição do exercício de funções públicas,
por um período de 10 a 20 anos é sempre aplicada quando for um funcionário o agente
dos crimes de associação ou sociedade secreta, extorsão a pretexto de protecção ou
tráfico internacional de pessoas, assim como dos crimes previstos no artigo 9.º ou nas
alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 10.º da LCO (artigo 18.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, da
LCO).
d) Apreensão de coisas e direitos
Partindo da ideia de que é de primacial importância para a eficácia da prevenção
e repressão do crime organizado a criação de mecanismos que permitam abalar os
recursos financeiros e impedir o seu uso, a LCO prevê um regime de apreensão de
coisas e direitos no artigo 31.º.
Nos termos deste regime, a autoridade judiciária procede à apreensão de bens
móveis ou imóveis, direitos, títulos, valores, quantias e quaisquer outros objectos
depositados em instituições de crédito, quando tiver razões para crer que aqueles estão
relacionados com os crimes previstos e punidos na LCO, se destinam à actividade
criminosa de associação ou sociedade secreta, constituem o produto ou lucro dessa
actividade ou a recompensa emergente desses crimes ou resultaram de transformação ou
conversão do seu produto, lucro ou recompensa (n.º 1 do artigo 31.º da LCO).
Por outro lado, estabelece-se um sistema de cooperação com as instituições de
crédito ou semelhantes, associações, sociedades civis ou comerciais, repartições de
registo ou fiscais e demais entidades públicas ou privadas, as quais não podem recusar a
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prestação de informações ou apresentação de documentos a pedido de um juiz,
respeitantes às coisas e direitos a que se refere o n.º 1 do mesmo artigo (n.º 2 do artigo
31.º da LCO).
VI. Conclusão
Em suma, a Lei da Criminalidade Organizada é um exemplo, por um lado de
penalização, pois agrava desde logo as molduras penais, abstraindo da comprovação
existente, até de natureza estatística, de que a previsão de penas longas não tem muitas
vezes o efeito intimidatório desejado e, por outro lado, de neocriminalização, pela
previsão e punição de novos crimes e pela alteração dos elementos dos tipos de crimes
já existentes.
Além desses aspectos, é uma lei que visa essencialmente combater a
perigosidade dos agentes dos crimes ali previstos, não se formulando limites em atenção
ao princípio da culpa, estruturador do ordenamento jurídico-penal.
Por fim, o facto de disponibilizar novos mecanismos de repressão da
criminalidade organizada que poderão ser úteis e aumentar a eficácia da investigação
criminal não significa que realmente se venham a verificar tais resultados, sendo
necessária uma concomitante intervenção ao nível das estruturas institucionais,
normativas e disciplinares das entidades que participam na administração da justiça.
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