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Juliana dos Santos Lopes

A ADOLESCNCIA EM SEMILIBERDADE:Um estudo fenomenolgico sobre o processo de mudana vivido por adolescentes em conflito com a lei

Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da UFMG Belo Horizonte 2006

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Juliana dos Santos Lopes

A ADOLESCNCIA EM SEMILIBERDADE:Um estudo fenomenolgico sobre o processo de mudana vivido por adolescentes em conflito com a lei

Dissertao apresentada ao Programa de PsGraduao em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas, da Universidade Federal de Minas Gerais, como requisito parcial para obteno do ttulo de Mestre em Psicologia. rea de concentrao: Psicologia Social Orientador: Prof. Dr. Jos Paulo Giovanetti

Belo Horizonte 2006

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Especialmente a minha me e aos adolescentes e educadores da Semiliberdade.

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Agradecimentos Deus por conceder-me sensibilidade, coragem e potencial intelectual necessrios aproximao, envolvimento e discusso deste tema. minha me, fonte de amor, com quem aprendi a ter garra profissional, f em Deus e confiana em mim.. meu pai que, ao longo da vida, ofereceu-me referncias e apoio necessrios minha formao pessoal . Ao Valtinho, que encorajou-me a transformar a riqueza de uma experincia em um projeto de pesquisa. Ao Miguel Mahfoud por iniciar-me pelos caminhos da pesquisa fenomenolgica, ajudando-me a me livrar de alguns resqucios da experincia vivida na instituio e a delimitar, com mais clareza, meu objeto de estudo. Ao Giovanetti que, com sua profunda humanidade e benevolncia, acolheu-me como orientanda, guiando-me com leveza, competncia e objetividade pelos caminhos da produo Intelectual, sem podar meu desenvolvimento ou formatar meu percurso. Ao querido mestre Escpio, porto seguro, que escuta minhas angstias, acolhe minhas dores e ajuda-me a manter a sade emocional durante os momentos de caos, tanto dentro quanto fora da Semiliberdade. Aos meus irmos: Margarete, pela pacincia em ler meus escritos e valorizar minha produo, Alexandra por tirar-me dos momentos de hibernao intelectual, mostrando-me a leveza da vida, por meio do lazer e descontrao e Clayson, com quem aprendo sempre a arte de lidar com os homens. Aos sobrinhos, meus amores: Arthur, Lucas e Luza, fontes de alegria em minha vida. amiga Dbora, presena certeira em momentos da vida, cujo amor fraterno foi essencial. amiga Patrcia, que manteve sua lealdade e com quem pude contar sempre e em tudo! amiga e colega de profisso Nilda, suporte essencial em minha vida e em minha atuao na Semiliberdade! Ao Cludio, com quem durante um longo perodo, compartilhei minha vida e esse projeto. Aos amigos do Grupo Mineiro de Psicologia Humanista, que acompanharam esse exerccio intelectual, compartilharam minhas aflies e mantiveram-me em contato com o mundo e com as pessoas. Principalmente, Marden, Cludio, Rita, Genilce e Luiz. Ao Diretor do Sistema Salesiano de Educao Popular, Pe. Jairo de Matos Fonseca e ao Diretor das Unidades de Semiliberdade, Ir. Alcides Felcio da Silva, que abriram as portas da Instituio, confiando em mim e viabilizando a realizao deste trabalho. s coordenadoras das Unidades de Semiliberdade, Tereza, Fernanda e Adriana, que me dispuseram parte de seu precioso tempo, ajudando-me a selecionar e contactar os adolescentes. Aos educadores da Semiliberdade, que me motivaram a iniciar esse projeto, mesmo antes de ele se tornar uma dissertao de mestrado. Em especial, Damaly, Rosemany, Elcio, Ricardo. Aos adolescentes que me permitiram aproximar de suas vivncias, entregando-me, com confiana, suas histrias e ensinando-me o valor de uma relao humana significativa. Aos demais professores e colegas do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFMG . Aos funcionrios do Programa de Ps-Graduao em Psicologia da UFMG, em especial Beth e Alessandro que, com simpatia, bom humor e pacincia, lidaram com minhas dificuldades. Dalva, pela dedicao e disposio em revisar o portugus deste trabalho, dentro de to pouco tempo!

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SEMILIBERDADE: 24 HORAS NO AR. Chegam calados, zangados, assustados... Olhos vermelhos... Maconha? Ou encharcados de lgrimas de sofrimento... Olhos esbugalhados, tensos, vidrados... CRACK? Ou medo do que h entorno... Olhos frios, duros... Maldade? Ou tentativa de se proteger do que h por vir... No sei... Pois so olhos que no se deixam olhar nos olhos. Vo se instalando, confiando, experimentando, testando... Ficam folgados! Brincam, reclamam: C t me tirando grando!!! Querem o poder, se impem. No conhecem o prprio poder transformador. Desafiam-me: - Sou Art. 157 sabia? - Fumo mesmo, e da! - Arrombo qualquer casa que quiser! - Esse sou eu: Um infrator!Confrontam-me

- Eu fao!!! - Mas no pode!!! - Eu fao!!! - Mas no pode!!! UFA!!!! No volto mais, vou desistir!!! De que adianta? De que vale tanto esforo? De que vale mostrar-lhes perspectivas... Esperanas...Que esperana? Saem daqui pro morro, saem daqui pro trfico, pra morte... De que vale!? E a a peteca... O futebol... O tot... E eles jogam e riem e discutem e se acertam e fazem acordos. ADOLESCENTES... E descobrem maravilhados: C com A = CA, S com A = SA. Olha aqui! Eu j sei ler! CASA! No me perco mais ao vir pra c! QUASE CRIANAS... Como no enxergar o brilho nos seus olhos quando so amados? Como deix-los sem um toque? Um afeto? Como lhes negar a chance de simplesmente se saberem humanos? preciso ficar, cuidar, acreditar e esperar... para um dia escutar: Quando sair, vou procurar a mulher que me denunciou, vou olhar no olho dela assim! E ela vai ter medo. Mas depois olharei assim... e lhe direi: - No quero mais me vingar de voc, descobri o valor da vida! Juliana dos Santos Lopes

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RESUMO Lopes, Juliana dos Santos. A Adolescncia em Semiliberdade - Um estudo fenomenolgico sobre o processo de mudana vivido por adolescentes em conflito com a lei. Dissertao de Mestrado. Programa de Ps-Graduao em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil, 216 p.

O presente trabalho teve como objetivo geral, avaliar os elementos vivenciados por adolescentes durante o cumprimento de Medida Scioeducativa de Semiliberdade, identificando aqueles experimentados como facilitadores de uma mudana para um percurso de vida mais construtivo. Para tanto, buscou-se, investigar o sentido da experincia de se cumprir uma medida como a Semiliberdade, relacionando os elementos encontrados nessa vivncia ao processo de mudanas estabelecido. Para alcanar tais objetivos, realizou-se um percurso histrico contextualizando as Medidas Scioeducativas no mbito das polticas pblicas, detectando as peculiaridades da Medida de Semiliberdade. Em seguida, optou-se por uma concepo de adolescncia como processo de desenvolvimento psicossocial, cuja principal caracterstica a busca por efetivar uma identidade significativa, conforme descrito por Erik Erikson. A partir dessa compreenso, procurou-se definir adolescente em conflito com a lei, analisando-se os efeitos do contexto social vivido por esses jovens sobre tal etapa de desenvolvimento humano. Conceituou-se, ento, mudana, tomando como base a teoria de Carl Rogers sobre processos de mudana e relaes humanas significativas. A metodologia escolhida foi a fenomenologia. A anlise das entrevistas permitiu-nos detectar um processo de mudana significativo, estabelecido a partir da coexistncia de elementos encontrados na instituio, com alguns intrapsquicos e outros externos ou sociais. Dentre os elementos vivenciados na instituio, destacamos: a) a Semiliberdade, experimentada como uma chance de sobreviver e mudar; b) a caracterstica de ambigidade (semipreso, semilivre) como uma possibilidade de exercer a liberdade de escolha; c) a presena de relaes humanas significativas, constitudas por interesse genuno, considerao e referncias seguras e afetivas; d) a existncia de regras estruturantes (e no impositivas) que sinalizem um limite vivenciado como organizador e) a existncia de um espao para se expressar em grupo (assemblias), que possibilite a descoberta de novas formas de elaborao de conflitos. Todos esses elementos, aliados a um posicionamento pessoal e a construo de um projeto de vida (elementos intrapsquicos) e ao reconhecimento social e estruturao da vida externa (elementos sociais), precisam estar presentes em maior ou menor graus para a instaurao, desenvolvimento e efetivao de um processo de mudana. Conclu-se, que um processo de mudana significativo pode ser desencadeado ou potencializado dentro desse tipo de instituio e que sua efetivao depende da intercalao desses elementos e, principalmente, da forma como so vivenciados e significados pelos adolescentes. Alm disso, compreendeuse que o processo de mudana no linear e que cada elemento que o constitui pode ser vivenciado com maior ou menor intensidade pelo adolescente, dependendo do nvel de desenvolvimento no qual se encontre. Palavras-chave: Adolescncia em Conflito com a Lei, Medidas Scioeducativas, Semiliberdade, Processo de Mudana.

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ABSTRACT Lopes, Juliana dos Santos. Adolescents at Semiliberdade - a phenomenological study about the process of change experienced by law offender adolescents. Masters degree Dissertation. Psychology Post-Graduation Program at the Faculdade de Filosofia e Cincias Humanas Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, MG, Brazil, 216 p.

This present paper has as a general goal to evaluate the elements experienced by adolescents during the fulfillment of the Social-educational Measure at Semiliberdade, identifying those experienced as change facilitators towards a more constructive life path. For this, one aimed as specific goal to investigate the meaning of the experience of fulfilling a Social-educative Measure at Semiliberdade, relating the elements found in this experience to the established process of change. In order to achieve these goals, a historic overview was made, in order to place the Social-educative Measures at Semiliberdade in context in the means of Public Policy regarding the children and adolescence assistance, to detect the peculiarities of the Semiliberdade Measure. Next, it is conceptually described adolescents and the law offender adolescence. Regarding the first topic, one searched for the concept of adolescents as a process of psychosocial development, of which the first characteristic is the search of a meaningful identity and the emergence of a psychosocial force of allegiance. After this understanding, it is defined law offender adolescents, analyzing the effects of a lifetime of exclusion, involvement with drugs traffic and self-destruction, during this phase of psychosocial development. It is then, defined theoretically the change, understood as a personal, dynamic experience, which happens amidst meaningful human relationships, constituted by facilitating elements. The phenomenology was the chosen method. There are three interviews presented, with young that were at Semiliberdade, who are currently free and considered to be on a constructive life course. From their report, it was possible to organize four major themes: previous life, life at Semiliberdade, change, current life. This structure allowed for an understanding of the process of change constituted by elements of the relationship, intrapsychic and external or social spheres. It is concluded that a meaningful process of change can be unchained or enhanced inside this kind of institution, and that its effectiveness depends on interlacing the elements on these three ranges and, mostly, on how these elements are experienced and understood by the adolescents. Besides that, it is understood that the process of change is not linear and that each element, which constitutes it, can be experienced with more or less intensity by the adolescents, depending on his/her level of development

Keywords: law offender adolescents, Social-educative Measures, Semiliberdade, Process of Change.

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LISTA DE ABREVIATURAS

ABRINQ: Associao dos Fabricantes de Brinquedos . FEBEM: Fundao Estadual de Bem Estar do Menor. FUNABEM: Fundao Nacional de Bem Estar do Menor. CEIP: Centro de Internao Provisria. ILANUD: Instituto Latino Americano das Naes Unidas para a Preveno ao Delito e

Tratamento do Delinqente. LBA: Legio Brasileira de Assistncia. OAB: Ordem dos Advogados do Brasil. SAM: Servio de Assistncia ao Menor. SAMESE: Superintendncia de Atendimento s Medidas Socioeducativas. SAS: Secretaria de Ao Social. PSC: Prestao de Servios Comunidade.

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SUMRIO INTRODUO..............................................................................................................11 CAPTULO 1 - DA FEBEM S UNIDADES DE MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS................................................................................................................17 1.1 As polticas de atendimento criana e adolescente no Brasil. ................................17 1.2 O Estatuto da Criana e do Adolescente....................................................................25 1.3 As Medidas Scioeducativas.................................................,................................... 28 1.4 Privao de liberdade: Internao ou Semiliberdade................................................ 32 1.5 A Semiliberdade........................................................................................................ 35 1.6 O Regimento Interno, uma estrutura organizadora................................................... 38

CAPTULO 2 - ADOLESCNCIA: UM PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO PSICOSSOCIAL............................................................................................................40 2.1 As diferentes concepes tericas..............................................................................40 2.2. A teoria de Erik Erikson............................................................................................43

CAPTULO 3 - ADOLESCENTES EM CONFLITO COM A LEI: SERIA A MELHOR DEFINIO?..............................................................................................50 3.1. Crianas e adolescentes: um resgate da condio de cidados.................................50 3.2. Adolescente autor de ato infracional: existe um perfil? ...........................................53 3.3. Algumas palavras sobre a questo da violncia........................................................55 3.4. Sobre o envolvimento com o narcotrfico.................................................................56 3.5. Um adolescente em busca de uma identidade significativa......................................60

CAPITULO 4 - ELE NO NASCE INFRATOR: UMA CONCEPO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO.............................................................................65

CAPTULO 5 - SOBRE UM PROCESSO DE MUDANA: PARA ALM DA FORMAO DE CIDADOS.....................................................................................71 5.1. O conceito de mudana em Carl Rogers...................................................................72 5.2. Processos da vida e processos pessoais................................................................... 78 5.3. Sobre a relao facilitadora de um processo de mudana........................................ 81

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CAPTULO 6 - A FENOMENOLOGIA COMO MTODO DE APROXIMAO DO VIVIDO.......................................................................................................................... 87 6.1. Selecionando a amostra............................................................................................ 91 6.2. A Coleta de Dados.................................................................................................... 93 6.3. A Anlise dos Dados.................................................................................................95

CAPTULO 7 - ENTREVISTAS 7.1. Temas abordados e anlise da entrevista...................................................................98 7.1.1. Sujeito 1 Flvio..................................................................................................98 7.1.2. Sujeito 2 Pedro.................................................................................................114 7.1.3. Sujeito 3 Joo Paulo.........................................................................................130 7.2. Descrio da estruturas das vivncias por unidade temtica...................................164 7.2.1 Vida anterior medida......................................................................................164 7.2.2 Vivendo em (semi)liberdade..............................................................................167 7.2.3 Mudana.............................................................................................................180 7.2.4 Vida atual...........................................................................................................192

CAPTULO 8 - ARTICULANDO O DILOGO FINAL........................................193 8.1 Um percurso auto-destrutivo...................................................................................197 8.2 Semiliberdade e processo de mudana....................................................................199 8.3 Elementos Encontrados no Percurso da Semiliberdade...........................................200 8.3.1 O sentido da Semiliberdade...............................................................................200 8.3.2 A ambigidade: semipreso, semilivre................................................................201 8.3.3 Relao com a equipe........................................................................................202 8.3.4 As regras............................................................................................................203 8.3.5 As assemblias: possibilidade de se expressar..................................................205 8.4 Elementos vivenciados para alm dos muros da Semiliberdade............................205

8.4.1 A relao significativa diferenciada..................................................................206

CONSIDERAES FINAIS......................................................................................207 REFERNCIAS..........................................................................................................212 ANEXOS.......................................................................................................................216

INTRODUO

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Uma criana, vtima de violncia, em situao de vida desumana ou precria, desperta em muitos de ns sentimentos de compaixo. Segmentos da sociedade se mobilizam, por meio de projetos sociais e campanhas em torno da causa da infncia em situao de risco. No entanto, a reao social no est pautada nesses mesmos sentimentos quando essa criana se torna um adolescente agente de violncia, um autor de ato infracional. J no so mais vistos como adolescentes ou cidados de direitos, mas sim como delinqentes, que devem ser punidos exemplarmente, domados ou exterminados. Falar da possibilidade de mudana nesses adolescentes um desafio, mesmo dentro de setores da sociedade envolvidos com a causa da infncia e juventude. O trabalho como coordenadora de uma Unidade de Semiliberdade durante um ano e meio suscitou um pulsar de questes que deram origem a esta pesquisa. A Semiliberdade uma instituio que mantm adolescentes entre 14 e 19 anos, autores de diversos tipos de ato infracional e que, por isso, cumprem medida scioeducativa em regime semi-aberto, por determinao judicial. Um considervel nmero de profissionais (psiclogos, assistentes sociais, educadores), participa de tal trabalho, cujo principal objetivo o de promover a chamada cidadania e reinsero social. O envolvimento com esse tipo de trabalho pode ser inebriante. Refletindo acerca da intensidade de tal experincia, surge a imagem de um cais de porto, constitudo por referncias, valores e crenas pessoais, do qual se parte todos os dias em direo a um barco em alto mar: a Semiliberdade. Uma vez a bordo, conviver, durante 12 horas, com pessoas vindas de outros mundos, outras referncias, outras realidades, muitas vezes, fiis a valores conflitantes com os nossos. Ora navegvamos em guas calmas, um mar infinito, suave, como eram os momentos de sintonia profunda com a vivncia dos adolescentes, momentos de encontro, dos jogos de futebol, das manhs de faxina, das conversas na varanda... Ora nos deparvamos com tempestades, ondas enormes, trovoadas e alguns homens ao mar. Eram os momentos de angstia, de agressividade explcita ou velada, das ameaas, e das evases, das sensaes de impotncia, incertezas e desnimo. Ao final de um dia o retorno ao cais, no mais como a mesma pessoa. Permanecia a certeza da imprevisibilidade das condies do clima e do balano daquele mar no dia seguinte. Era assim, a vida em Semiliberdade. Como coordenadora, ocupava o lugar de autoridade na casa. Representava justamente a lei com a qual os adolescentes estavam em conflito. Era necessrio exercer a funo de coordenadora com a autoridade que lhe cabe, garantindo a vigncia das regras e colocando aos adolescentes os limites e restries

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necessrias. Mas, ao mesmo tempo, e principalmente, era fundamental funcionar como referncia, como guia. Conduzi-los em direo a um crescimento pessoal. Construir com eles uma modalidade de relao afetiva que os motivasse a ficar, os fizesse confiar e se interessar por iniciar uma mudana em suas vidas, uma vez que a possibilidade de evaso em um regime semi-aberto grande. O compromisso de provocar mudanas no percurso da vida daqueles meninos foi se tornando cada vez mais presente. Muitas vezes, daquele trabalho dependia sua perspectiva de vida ou morte. Cada momento vivido com eles precisava ser produtivo nesse sentido. O tempo que possuamos para as intervenes era curto e incerto. A qualquer momento aquele adolescente que ia se mantendo to bem, poderia pular o muro e ir embora. Muitas vezes, vimos isso acontecer. Em certa ocasio, cinco dos seis adolescentes que se encontravam na casa, resolveram arrumar suas coisas e pular o muro. Como protesto a uma medida disciplinar que seria adotada: haviam feito uso de maconha na casa e o Regimento Interno previa que, nesses casos, se chamasse a polcia, fizesse um Boletim de Ocorrncias e lhes aplicasse alguma restrio. Com aquela atitude de evaso, os adolescentes estariam colocando em risco todo seu percurso e mesmo a prpria vida. Na ocasio, nenhum deles foi contido fisicamente, nem convencido com argumentos legais a ficar na casa. A interveno feita a cada um foi o instrumento utilizado para evitar aquela evaso em massa, considerando a sua particularidade e confiando no vnculo afetivo j estabelecido. Na ocasio, apenas um se foi. Os demais confiaram e decidiram ficar, ainda que fosse para enfrentar a polcia, temida por todos, que foi efetivamente chamada. Episdios como esse e outros com final no to positivo, sempre nos faziam questionar a prtica, o nosso lugar como profissionais e como pessoas bem como nossos objetivos. s vezes nos perguntvamos sobre a validade de algumas de nossas intervenes. Tantos eram os questionamentos que foi necessrio um distanciamento, deixar o barco seguir seu rumo, para perceber o impacto de toda aquela experincia. E encontrar aquilo que mais intrigava e que suscitava uma investigao cientfica. A partir desse afastamento, foi observada uma grande mudana pessoal. Muitos preconceitos, crenas e valores perderam o significado, a partir da relao intensa, da (com)vivncia em Semiliberdade. Perante tal realidade, iniciou-se um questionamento acerca da existncia de algum processo de mudana significativa tambm vivenciado por aqueles adolescentes e sobre a nossa contribuio para a vigncia de tal processo. Vamos mudanas

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acontecendo ali dentro, mas ser que se mantinham l fora? Ser que o que os adolescentes viviam ali os ajudava, de alguma forma, a permanecerem vivos e longe do crime? De todos os adolescentes que por ali passavam, alguns conseguiam ficar, cumprir a medida e sair por liberao judicial. Mais tarde recebamos notcias, nem sempre positivas, sobre o seu percurso. Alguns retornavam para o crime ou para outras instituies. Alguns morriam... Mas havia aqueles que mudavam seu percurso, conseguiam se manter fora da criminalidade, longe do trfico e vivos! Constituam famlia, se mantinham no trabalho, enfim, encontravam um lugar nessa sociedade. Por qu? O que se passava de diferente entre eles? Qual era a contribuio de nosso trabalho para aquele processo? Assim, aos poucos, foi nascendo o tema da presente pesquisa. Refletir sobre o processo experimentado por aqueles adolescentes pareceu-nos o melhor caminho para se compreender o que facilitava uma mudana significativa que se sustentasse e evolusse l fora. Mas, alm disso, a escolha desse tema tambm se pautou por um segundo interesse. Nos encontros das redes de atendimento criana e ao adolescente, muito vem se discutindo acerca da eficcia das medidas scioeducativas de privao de liberdade. No espao jurdico, todas as Convenes, Cartas de Direitos1 e o prprio Estatuto da Criana e do Adolescente priorizam a aplicao das medidas em meio aberto, considerando que manter o adolescente em uma instituio, em regime de privao total ou parcial de liberdade seria pouco efetivo para seu processo de mudana. Por isso, essa medida dever ser tomada apenas em carter excepcional, breve e respeitando algumas condies. As crticas mais severas esto voltadas para os Regimes de Internao, principalmente aqueles pautados num carter punitivo-correcional, herana das instituies autoritrias do Regime Militar. Nesse sistema, crianas e adolescentes que se encontravam nas ruas estariam em situao irregular e, por isso, seriam casos de segurana pblica. A Medida de Semiliberdade, por sua vez, pouco investigada. Sua aplicao tem sido restrita devido ao nmero reduzido de instituies que a desenvolvem. Alm disso, pouco material terico se produziu sobre a prtica realizada nessas instituies, que possuem uma condio bastante peculiar em sua estrutura e funcionamento. De acordo com Volpi, embora_______________ A Conveno Internacional Sobre os Direitos da Criana (C.I.D.C.) adotada em 1989, fala sobre os princpios de excepcionalidade e brevidade que devem ser considerados ao se impor um regime de privao de liberdade. Alm disso, as Regras Mnimas das Naes Unidas para a Administrao da Justia da Infncia e Juventude Regras de Beying, ressaltam que se deve recorrer, de maneira preferencial, a medidas educativas diversas da privao de liberdade.1

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uma medida de Semiliberdade seja entendida como capaz de substituir, em grande parte, a medida de Internao, a falta de unidade nos critrios por parte do judicirio na aplicao de Semiliberdade, bem como a falta de avaliaes das atuais propostas, tem impedido a potencializao dessa abordagem (VOLPI, 2002, p. 26). Para alm da discusso sobre o tipo de medida mais adequado s caractersticas de adolescentes em conflito com a lei, h uma questo que est presente no dia-a-dia de cada educador ou tcnico: a pergunta sobre como atend-los de forma realmente eficaz e a busca de estratgias pedaggicas, formas de interveno que proporcionem ao adolescente uma melhor integrao e um certo fortalecimento pessoal, que lhes sustente aps o desligamento, a fim de que no se deixem levar novamente pelo mundo do crime. Esses dois campos de interesse se intercalaram e constituram nosso objeto de estudo. Assim, o objetivo geral da presente pesquisa definiu-se como: avaliar os elementos vivenciados durante o cumprimento de medida scioeducativa de Semiliberdade, identificando aqueles que so facilitadores da mudana para um percurso de vida construtivo. Como objetivos especficos, buscamos: a) Investigar qual o sentido, para o adolescente, da experincia de cumprimento de medida scioeducativa de Semiliberdade; b) Identificar elementos constitutivos dessa medida, experimentados como facilitadores de um processo de mudana; c) Analisar o processo de mudana que se instaura na vida do adolescente durante esse perodo. Delimitada nossa proposta, tornou-se clara a necessidade de serem percorridas trs reas de conhecimento promovendo sua intercesso, a fim de melhor compreender os elementos surgidos no encontro com os adolescentes. Assim, investigamos o universo das medidas scioeducativas, as caractersticas da adolescncia e, em especial, dos adolescentes em conflito com a lei e o chamado processo de mudana. Organizamos o estudo da seguinte forma: No captulo 1, buscou-se definir o que so medidas scioeducativas. Para tanto, iniciamos um percurso histrico, mostrando o processo que culminou com a elaborao e aprovao do Estatuto da Criana e do adolescente, determinando a substituio das Instituies totalitrias (as FEBEMs), por Instituies de Medida Scioeducativa. Buscamos, ento, uma definio da Medida de Semiliberdade que se mostrou bastante peculiar no que diz respeito ao tipo de conteno que prope. Com essa percepo, verificamos a importncia de se acrescentar discusso a definio da estrutura proporcionada por um regimento interno, como elemento organizador. Para essa etapa, utilizamos como principais referncias as discusses propostas por Mrio Volpi, Karyna Sposato, Antnio Carlos Gomes da Costa e

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Emlio Garcia Mendes, alm de guias sobre as Medidas Scioeducativas, Legislao Brasileira e artigos que discutiam o tema. Com esse estudo verificamos que o tema adolescente em conflito com a lei vem sendo abordado, principalmente, no mbito jurdico e pedaggico. A discusso terica passava pela questo da cidadania e das caractersticas educativas que deveriam estar presentes nas Instituies que os atendem. Assim, optamos por buscar uma definio de adolescncia em geral e de adolescente em conflito com a lei em particular, procurando nos aproximar de uma compreenso mais relacionada psicologia social. No Captulo 02, investigamos algumas concepes tericas acerca da adolescncia na busca daquela que melhor nos atenderia. Aos poucos, a definio de adolescncia foi se desenhando como um processo de desenvolvimento, uma fase da vida cujas interferncias do espao social seriam fundamentais para sua plena realizao. Para tanto, utilizamo-nos principalmente da construo terica de Erik Erikson, que resgata a importncia dessa fase da vida para a efetivao de uma identidade significativa. No Captulo 03, buscamos uma definio do que seria o chamado adolescente em conflito com a lei. Retomamos a discusso sobre as polticas de atendimento, desta vez enfatizando a desconstruo dos rtulos e apontando o resgate da condio de cidados para esses adolescentes. Mais uma vez, os autores Mrio Volpi, Antnio Carlos Gomes da Costa e Emlio Garcia Mendes foram fundamentais. No entanto, nos deparamos com a necessidade de melhor compreender esses adolescentes do ponto de vista psicossocial. Assim, abordamos o contexto de envolvimento com o narcotrfico e da violncia, em que esto inseridos. Utilizamos, nesse momento, o esclarecedor trabalho de Alba Zaluar, procurando fazer uma articulao entre tal contexto e o processo de desenvolvimento psicossocial proposto por Erik Erikson. No captulo 04, procuramos definir o que estaramos chamando de mudana. Entendendo mudana como um processo interior, que envolveria muito mais do que mudanas de comportamento observveis, utilizamos a compreenso terica de Carl Rogers acerca de tal processo e acrescentamos as contribuies de Mauro Amatuzzi, essenciais para uma distino entre processos pessoais e processos da vida. No captulo 05, explicitamos o mtodo de investigao a ser utilizado. Mostramos como a pesquisa de orientao fenomenolgica seria a mais adequada abordagem do tema, uma vez que o processo de mudana se configura como um vivido passvel de ser investigado por um mtodo de aproximao da experincia proposto pela fenomenologia. Buscamos

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descrever, neste captulo, os procedimentos metodolgicos e os cuidados utilizados para a seleo da amostra e realizao das entrevistas. No captulo 06, apresentamos a anlise das entrevistas. Cuidamos para preservar as falas dos entrevistados que foram apresentadas na ntegra. Procuramos, alm disso, esclarecer grias e maneiras de falar para melhor compreenso do relato. Com os dados em mos, realizamos uma sntese descritiva da estrutura das vivncias na qual j se destacavam os elementos relativos ao processo de mudana. No captulo 07, realizamos um dilogo entre a sntese anteriormente elaborada e os tericos que contriburam para esse trabalho. Nas consideraes finais, retomamos brevemente o percurso realizado, acrescentando alguns pontos significativos e concluses alcanadas durante todo esse trabalho. Investigar o processo de mudana vivido por esses adolescentes uma forma de conhecer os caminhos trilhados. O presente estudo pretende contribuir para descortinar essa realidade e acrescentar novos conhecimentos prtica.

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CAPTULO 1 DA FEBEM S UNIDADES DE MEDIDAS SCIOEDUCATIVAS

Para alcanar uma melhor compreenso do que so, como funcionam e quais os objetivos das Medidas Scioeducativas, faremos u ma breve retrospectiva abordando um pouco da histria das polticas pblicas de atendimento s crianas e adolescentes no Brasil. Durante esse percurso, tentaremos enfatizar as propostas de atendimento destinadas s crianas ou adolescentes envolvidos com algum tipo de delito. No entanto, sabemos que ao longo da histria, em muitos momentos, no se fazia uma distino bem definida entre atendimento s crianas em condies de vida precria e atendimento aos considerados delinqentes. Em muitas situaes, a prtica de pequenos delitos e o envolvimento com o crime acabavam surgindo como conseqncia de uma situao geral de negligncia, descaso e excluso social, de uma parcela considervel de crianas e adolescentes no pas. Aps essa contextualizao, buscaremos esclarecer os princpios norteadores do Estatuto da Criana e do Adolescente2 (ECA), distinguindo-o do antigo Cdigo de Menores de 19793 e apontando seus avanos. Entenderemos o Estatuto como um instrumento criado a fim de garantir os direitos fundamentais de todas as crianas e adolescentes, prevendo a implantao de polticas pblicas para atender a esse objetivo. Dentre essas, ressaltaremos as Polticas de Garantias das quais fazem parte as Medidas Scioeducativas. Entraremos na discusso do que so as Medidas Scioeducativas, seus principais pilares, formas de aplicao e tipos de medida, priorizando a Medida Scioeducativa de Semiliberdade, com suas caractersticas objetivas e suas peculiaridades.

1.1 As polticas de atendimento criana e ao adolescente no Brasil

Conhecer a histria fundamental para se desfazer mitos e preconceitos que turvam ou impedem a compreenso do Estatuto da Criana e do Adolescente e, conseqentemente, das Medidas Scioeducativas. A falta de conhecimento dessa evoluo_______________2 3

Estatuto da Criana e do Adolescente Lei No. 8069 de 13 de julho de 1990. Cdigo de Menores de 1979. Lei N 6.697, de 10 de outubro de 1979.

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histrica, aliada a uma lenta e, s vezes, inexistente implantao de polticas pblicas que atendam ao que determinado pela lei, so responsveis por um conjunto de mitos e crticas que gravitam em torno desse documento, sem a devida fundamentao. Essas crticas se tornam ainda mais extremadas quando o assunto a eficcia das medias aplicveis aos adolescentes autores de ato infracional. Lamentavelmente so enfatizados pela mdia exemplos de sistemas j comprovadamente falidos, que funcionam na contramo da evoluo histrica, como o caso das FEBEMs de So Paulo. Experincias inovadoras que buscam colocar em prtica alguns princpios norteadores do Estatuto, geralmente no so tratadas com real interesse pela mdia. Assim, a opinio pblica induzida a cometer erros de interpretao e a adotar posicionamentos equivocados como o de apoiar o movimento de reduo da maioridade penal, bem como o de se propor mudanas em partes ou mesmo em todo o Estatuto. As primeiras iniciativas do poder pblico visando a algum atendimento s crianas e aos adolescentes em circunstncias difceis foram oficializados em 1927 com a criao do primeiro Cdigo de Menores Brasileiro4. O Cdigo de 27 atuava especificamente sobre os rfos abandonados e filhos de pais ausentes ou desconhecidos. Os antigos enjeitados que eram abandonados pelas mes na Roda dos Excludos5. Para as crianas inseridas em famlias-padro, com moldes socialmente aceitos para a poca, destinavam-se os direitos civis, continuando a merecer proteo do Cdigo Civil Brasileiro. De acordo com Silva (2000), o Cdigo de Menores de 27 consagra o sistema dual de atendimento criana. De um lado, os chamados menores, de outro as crianas comuns. Da a caracterstica pejorativa do termo menor que inadvertidamente utilizado, ainda hoje, para se referir aos autores de ato infracional. A partir deste instrumento legal, criase a chamada: Doutrina do Direito do Menor, ou seja, um conjunto de leis especfico destinado aos casos considerados de condutas anti-sociais por parte de crianas e adolescentes. Esses casos passam a ficar sob a responsabilidade do Juiz de Menores, que se tornou o senhor onipotente, responsvel pela vida e destino dos chamados menores. A partir de ento, a criana estaria submetida ao que previa o Cdigo de Menores e no mais ao Cdigo Civil como os cidados comuns. No entanto, apenas no art. 68, o Cdigo de Menores_______________ Cdigo de Menores - Decreto no. 17943, de 12 de outubro de 1927. A roda dos excludos era um mecanismo criado pela Santa Casa de Misericrdia para receber donativos que, a partir de 1896, comeou a ser utilizado para receber crianas recm-nascidas e abandonadas por diversos motivos. Nesse mecanismo, a criana era depositada numa espcie de cilindro giratrio que permitia que a identidade da me fosse preservada. A criana ficaria sob os cuidados das irms de caridade. Considerando-se o destino dessas crianas na poca (morte nas ruas, ainda recm-nascidas, por abandono), o sistema foi considerado um avano!5 4

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ocupa-se do j ento denominado menor infrator, estabelecendo a obrigatoriedade de separao entre os menores delinqentes e os condenados adultos, o que no deixa de ser um de seus mritos. Com a vigncia do Cdigo de 27 tanto o menor abandonado quanto o delinqente tornam-se objeto de ateno e vigilncia da autoridade pblica, representada pelo Juiz de Menores que, ento, passa a ter o poder tanto de conceder-lhes atenuantes frente ao Cdigo Penal, quanto de determinar o seu recolhimento s chamadas Colnias Correcionais, primeiras instituies especificamente criadas para delinqentes. Essas instituies funcionavam sob a orientao do Servio de Assistncia ao Menor - SAM, rgo do Ministrio da Justia, equivalente ao atual Sistema Penitencirio. Para os menores carentes, eram destinados os Patronatos Agrcolas e as Escolas de Aprendizagem Profissional. Verifica-se que o Cdigo de 1927 promove aqui mais uma distino discriminatria entre o atendimento aos chamados carentes e aos menores delinqentes e que o carter coercitivo-punitivo j estava presente. Tanto nos Internatos de Correo, quanto nas chamadas Escolas de Aprendizagem Profissional, o trabalho e a disciplina eram enfatizados e utilizados como nico e principal instrumento de educao. Alm do SAM, surgem, neste perodo, diversas entidades federais de ateno s crianas e adolescentes ligadas figura da Primeira Dama do Pas. Como a Legio Brasileira de Assistncia - LBA e as Casas de Formao Profissional: Casa do Pequeno Jornaleiro, Casa do Pequeno Aprendiz etc. Essas entidades no deixam de ser importantes conquistas sociais para a poca, uma vez que voltam sua ateno para crianas e adolescentes em situaes difceis. No entanto, estavam totalmente vinculadas ao Estado e regidas por um modelo autoritrio e centralizador. Para Costa (1994), o perodo de 1945 a 1964 se caracterizou pela expanso conflituosa dessas conquistas. Um setor da sociedade buscava mant-las e aprofund-las, enquanto outro buscava fre-las e manter sob controle a tendncia organizao e mobilizao que passa a surgir entre a populao menos favorecida. O regime militar de 1964 vem desmantelar essas entidades federais, calando os movimentos sociais em surgimento e impondo um regime ainda mais autoritrio e desumano nas prticas em internatos do SAM. Foi um perodo marcado pela decadncia desse tipo de servio. Nas palavras de Antnio Carlos:

... o SAM passa a ser execrado perante a opinio pblica, pela imprensa de oposio do governo. Seu carter repressivo, embrutecedor e desumanizante desvelado opinio pblica que passa a conhec-lo como universidade do crime e sucursal do inferno. (COSTA, 1994, p. 126).

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No entanto, a situao poltica do pas ainda no permitia uma mobilizao da sociedade civil no sentido de exigir mudanas nessa realidade. O perodo que se estendeu de 1964 a 1980 foi marcado por duas importantes leis no campo do atendimento s crianas e adolescentes, mas que ainda no configuravam uma viso dos direitos. Trata-se da Lei n. 4.513/64 que estabelecia a Poltica Nacional de BemEstar do Menor e a Lei n. 6697/79 que estabelece o 2 Cdigo Brasileiro de Menores vigorando at a aprovao do ECA em 1990. Com o Cdigo de 1979, estava instaurada a chamada Doutrina da Situao Irregular em substituio Doutrina do Direito do Menor. Permanecia a discriminao entre as crianas de famlia regular de classe mdia e estvel e as consideradas em situao irregular. De acordo com Silva (2000), sob a categoria de situao irregular, estavam as crianas privadas das condies essenciais de sobrevivncia, mesmo que eventuais, as vtimas de maus-tratos e castigos moderados, as que se encontrassem em perigo moral, ou seja, as que viviam em ambientes contrrios aos bons costumes e as vtimas de explorao por parte de terceiros. Consolidava-se uma poltica de excluso em que as crianas oriundas de famlias de classe mdia tornavam-se padro de normalidade. Costa (1994) considera que, principalmente crianas pobres, negras ou abandonadas eram alvo de interveno policial e recolhimento para as instituies recm-criadas. A distino entre os carentes e os delinqentes, que j estava presente no Cdigo anterior, ainda mais intensificada com a vigncia dessa Doutrina, que adotava como objetivo principal a criao de servios especficos para os menores delinqentes. Com isso, o poder que antes estava nas mos exclusivamente do Juiz de Menores passa paras as do Estado e exercido principalmente pela polcia. Relembremos o contexto histrico dessa poca. A revoluo de 64 instaura uma ampla reforma, constituda por novos aparatos e instituies que eram entendidos como conquistas. A chamada Poltica Nacional de Bem-Estar do Menor era considerada uma inovao, atendendo aos objetivos do Governo Militar principalmente. Assim, so criadas a Fundao Nacional de Bem-Estar do Menor FUNABEM, em 1964, que iria gerir e modelar o funcionamento das Fundaes Estaduais do Bem-Estar do Menor FEBEM, instituies criadas a nvel estadual, responsveis pelo recolhimento e reeducao dos menores em situao irregular. Silva (2000) chama a ateno para a ideologia que perpassava todo o trabalho nessas entidades. Uma ideologia originada do dilogo estabelecido entre parte minoritria do Poder Judicirio e as Organizaes dos Estados Americanos. Ou seja, nenhum dos princpios

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j existentes sobre a Declarao Universal dos Direitos Humanos promulgada em 1948 ou de outros acordos e discusses mundiais eram considerados para fundamentar as prticas. Em um pas governado pelo Regime Militar, que menosprezava todo um discurso mundial em prol dos direitos humanos, baseando-se convenientemente em teorias e idias importadas dos Estados Unidos, era perfeitamente justificvel a criao de instituies que tinham como caracterstica um projeto arquitetnico semelhante s prises para adultos com muros altos, celas e grades, uma proposta pedaggica baseada nos preceitos do militarismo com nfase na segurana, na disciplina e na obedincia. Na opinio de Silva (2000), tudo isso estaria fundamentado teoricamente, uma vez que inspirava-se no modelo americano desenvolvido, dentre outros, por Donald W. Winnicott, para atendimento de crianas evacuadas ou tornadas rfs em virtude da 2a. Guerra Mundial. claro que estamos falando de uma utilizao deturpada das idias desse autor. Winnicott (1999) fazia uma relao entre a conduta anti-social ou a delinqncia juvenil e a privao da vida familiar. Descrevia situaes de privao emocional presentes nos primrdios da relao me-beb, como determinantes de tal conduta. Em uma palestra para Magistrados proferida em 1946, Winnicott prope a criao de lares substitutos ou internatos que pudessem oferecer a estrutura fsica e o quadro referencial e afetivo que no foram vividos na relao familiar. Para o autor, quanto pior fosse a histria pregressa de desestruturao no lar da criana, mais ela precisaria de uma estrutura firme que a contivesse. No caso de instituies, o rigor do ambiente era a base. No entanto, Winnicott tambm fala da importncia de um envolvimento afetivo daqueles que cuidam dessas crianas, um misto de amor e fora:

O comportamento anti-social no se trata de uma doena. Nada mais , por vezes, do que um S.O.S pedindo o controle de pessoas fortes, amorosas e confiantes. (...) A criana anti-social est simplesmente olhando um pouco mais longe, recorrendo a sociedade em vez de recorrer famlia ou escola para lhe fornecer a estabilidade de que necessita a fim de transpor os primeiros e essenciais estgios de seu crescimento emocional. (WINNICOTT, 1999, p. 122 e 123).

claro que a necessidade de um envolvimento afetivo, do amor e cuidado apontados pelo autor como essenciais para o tratamento dessas crianas, foi deliberadamente desconsiderada pelas pessoas e rgos responsveis pelo atendimento da poca. Priorizou-se a conteno e o rigor nas instituies.

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Essa concepo terica serviu como uma luva para compor o discurso dominante de que o problema do menor estava diretamente ligado ao problema da famlia, considerada desestruturada por encontrar-se fora dos padres da famlia burguesa. Outros fatores sociais no eram levados em conta, a no ser para comprovar que uma famlia pobre ou com uma configurao diferente do padro pai-me-filhos seria necessariamente desestruturada e, portanto, geradora de crianas com distrbios de conduta. Assim, uma instituio que buscasse atender tais crianas, deveria recriar uma estrutura com estabilidade ambiental e um certo padro de atendimento e cuidados. Winnicott (1999) sugeria, aos magistrados, que as crianas recebessem, nessas instituies, um amor apoiado na fora e que fossem cuidadas por pessoas que estivessem em ntimo contato com elas, a fim de mesclar o afeto e a fora necessrios a sua reorganizao emocional. Mas, dentro de um regime militar, essa concepo terica foi utilizada de forma recortada e distorcida, priorizando-se apenas aqueles elementos que serviriam para justificar prticas autoritrias da poca. Em termos de discusso, o enfoque correcional-repressivo que via o menino como ameaa social vinha sendo substitudo pelo enfoque assistencialista, que passa a v-lo como carente: sem um saber, sem uma histria, sem potenciais. De acordo com Costa (1994), esse enfoque assistencialista se pautava pela tentativa de oferecer criana aquilo que, acreditavase, ela no teria, seja por incapacidade, seja por lhe ter sido sonegado no mbito das relaes sociais.

O atendimento assistencialista dirige-se criana e ao jovem perguntando pelo que ele no , pelo que ele no sabe, pelo que ele no tem, pelo que ele no capaz. Da que, comparado ao menino de classe mdia, tomado como padro da normalidade, o menor marginalizado passa a ser visto como carente bio-psico-scio-cultural, ou seja, um feixe de carncias. (COSTA, 1994, p. 128).

Nessa perspectiva, o menor infrator precisaria ser retirado da sociedade, desta vez com a finalidade de oferecer-lhe uma estrutura no vivida no mbito familiar. Estranhamente, os portes fechados, muros altos e as celas seriam a chamada estrutura estvel. Essa fortaleza era justificada pelo argumento de que a equipe de trabalho precisaria de tranqilidade, autonomia e segurana, para desenvolver suas diversas atividades de reeducao. Vale a pena transcrever a orientao do Grupo de Trabalho do Tribunal de justia de So Paulo, apontada por Silva:

23 O Grupo de Trabalho recomendou que para essas unidades fossem contratados inspetores de alunos, monitores ou atendentes jovens e vigorosos (com um mnimo de escolaridade), a presena da guarda permanente (reedio do sistema penitencirio), correlacionamento policial perfeito (o mesmo tratamento para menores e adultos), que houvesse compreenso poltica (para justificar a necessidade de isolamento das instituies totais) e, sobretudo, confiana social (para que no houvesse ingerncia no que acontecia dentro dos muros das instituies). (SILVA, 2000, p. 04).

Parece que justamente esse ltimo item que, com o tempo, no se sustentou. Aos poucos, o argumento e a crena da sociedade de que a FEBEM seria um lugar ideal para a educao e socializao de crianas e adolescentes, em situaes de abandono ou delinqncia, foram abandonados a partir das denncias sobre o que vinha se passando por trs dos muros das FEBEMs. Mas as coisas comeam a mudar primeiro fora desses muros. A segunda metade da dcada de 70 traz consigo um processo de abertura poltica que possibilitou a emergncia de alguns setores populares. Assim, associaes de bairro, igrejas, grupos de oposio comeam a desenvolver diversos trabalhos de assistncia e atendimento preventivo s crianas. Surgiam experincias inovadoras e, na dcada de 80, muito estava acontecendo na rea do atendimento no-governamental. No entanto, no setor pblico, as novas concepes ainda esbarravam-se com a rigidez e morosidade caractersticas das instituies totalitrias. Costa (1994) destaca dois movimentos surgidos nesse perodo. Um vindo dos tcnicos, polticos e magistrados mais progressistas, envolvidos com a causa do menor e indignados com as situaes desumanas mantidas nas instituies que pretendiam seu bemestar. Esse grupo voltou-se para as experincias, em expanso alm dos muros, que comeavam a indicar novos caminhos. Criou-se uma equipe composta por um grupo de tcnicos do UNICEF, da parte progressista da FUNABEM, das Secretarias de Ao Social SAS, do Ministrio da Previdncia e Assistncia Social, com o objetivo de aprender a fazer com quem estava fazendo. Iniciava-se um perodo de grande mobilizao e discusso sobre a situao da criana e do adolescente no Brasil. O outro movimento surgia nas comunidades, nas novas organizaes nogovernamentais, na sociedade civil que se indignava com a situao daquelas crianas e se mobilizava no sentido de que fossem consideradas como Prioridade Nacional e no mais caso de Segurana Pblica como definia o Cdigo de Menores. Toda essa mobilizao d origem ao I Seminrio Latino-Americano de Alternativas Comunitrias de Atendimento aos Meninos e Meninas de Rua, em novembro de 1984.

24 A partir daquele evento, as alternativas comunitrias de atendimento se impuseram, como uma crtica em ato ao velho modelo assistencialista e correcional-repressivo, resultante da articulao entre o Cdigo de Menores e a desgastada Poltica Nacional de Bem-Estar do Menor. (COSTA, 1994, p. 135).

Mas foi com a participao dos prprios meninos e meninas de rua em evento realizado em Braslia6 em maio de 1996, que se acrescentaram novos elementos para engrossar o caldo. Com um alto grau de organizao e conscincia poltica, crianas e adolescentes do recm criado Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua levaram, para a discusso, suas vivncias. Denunciaram nesse evento, principalmente, todas as formas de violncia que vinham sofrendo. Violncia nas ruas, violncia policial, violncia nas instituies, violncia presente no descaso do poder pblico perante tais situaes desumanas. A constatao de tal nvel de maturidade e conscincia poltica imps uma nova tica sobre a questo daquelas crianas. Era hora de encar-los como cidados, que vinham sendo brutalmente lesados em seus direitos fundamentais como seres humanos. A luta deveria, ento, se pautar pela defesa de seus direitos e isso exigiria toda uma reformulao da concepo de atendimento e assistncia. Segundo Sposato (2001), com o advento da Conveno Internacional dos Direitos da Criana das Naes Unidas de 1989 que surge uma nova reflexo crtica entre os atores envolvidos com a questo. Comea-se a repensar a prtica. O perodo compreendido entre 86/88 foi marcado por um forte movimento do qual participaram o segmento jurdico, as polticas pblicas representadas por assessores progressistas, o movimento social, representado por considervel grupo de entidades no-governamentais como a Ordem dos Advogados do Brasil - OAB a Sociedade Brasileira de Pediatria - SBP e a Associao dos Fabricantes de Brinquedos ABRINQ dentre outros. A fora desse movimento e o prestgio dessas entidades influenciaram a elaborao da Constituio Brasileira de 1988. Que coloca a criana na condio de prioridade nacional. Todo esse percurso culmina com a redao do Estatuto da Criana e do Adolescente - ECA, projeto de lei votado e aprovado pelo Congresso Nacional, por unanimidade, em 25 de abril de 1990, entrando em vigor em 10 de outubro do mesmo ano.

_______________ I Encontro Nacional de Meninos e Meninas de Rua - Encontro com crianas e adolescentes que haviam passado por um amplo processo de discusso nos Estados, levando Braslia a face de uma cruel realidade social que vinham enfrentando ao longo de suas histrias.6

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1.2. O Estatuto da Criana e do Adolescente ECA

Sem dvida, o Estatuto da Criana e do Adolescente instaura um novo referencial poltico-jurdico frente ao ento vigente Cdigo de Menores. Como foi visto, o Estatuto surge para regulamentar as conquistas em favor da infncia e juventude no Brasil e resultado de um amplo processo de mobilizao social. Este novo instrumento legal surge dois anos depois da Conveno Internacional das Naes Unidas Sobre os Direitos da Criana de 1989, utilizando-se de seus princpios como pano de fundo para elaborao de seu texto. Assim, o Estatuto da Criana e do Adolescente, ratifica e sistematiza o que previsto na conveno sendo, por isso, considerado pelos diversos autores que trabalham com o tema (Sposato, 2001; Mendez, 1994; Costa, 1994 e Volpi, 2001), uma das leis mais avanadas no que diz respeito criana e ao adolescente elaborada nos pases da Amrica Latina. De acordo com Sposato, apenas o Brasil e o Peru alteraram totalmente seus ordenamentos jurdicos, distinguindo os programas para crianas e adolescentes vtimas dos programas para crianas e adolescentes infratores adotando assim, integralmente, os princpios da Conveno. Mas quais so as caractersticas desse novo instrumento legal que o torna to inovador? Segundo Costa (1994), o Estatuto inova em termos de concepo geral e processo de elaborao. Apresenta mudanas em relao ao Cdigo de Menores de 1979, no que diz respeito ao contedo, mtodo, gesto. Alem disso, adota um novo paradigma com relao compreenso do conceito de criana e adolescente. Com relao concepo geral, o Estatuto adota a Doutrina de Proteo Integral, em substituio Doutrina de Situao Irregular. Essa nova concepo proposta pelas Naes Unidas na Conveno Internacional dos Direitos da Criana e rompe de vez com a noo de que algumas crianas seriam objetos de interveno e controle do Estado, simplesmente por se encontrarem nas ruas ou favelas, em situao de vida precria. Eleva, ainda, essas crianas, bem como as demais (independente da situao social, cor, caracterstica ou condio financeira) categoria de cidados, titulares de direitos e, portanto, protegidos integralmente pelos princpios da cidadania social. O ECA, baseando-se na Doutrina de Proteo Integral, reconhece todas as crianas como seres humanos que possuem algumas necessidades para seu pleno desenvolvimento e formao. Como pessoas humanas e cidados possuem direitos fundamentais que devem necessariamente ser garantidos pelo Estado. Com esse novo paradigma, crianas e adolescentes so reconhecidos como pessoas em fase especial de desenvolvimento que, por isso, no tm ainda condies de se defender ou

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de buscar seus direitos, nem possuem meios prprios de arcar com suas necessidades. Tais necessidades e direitos devem ser consideradas como prioridade absoluta para o pas que adota a Doutrina de Proteo Integral. Assim, as crianas tm primazia em receber proteo e socorro, precedncia no atendimento em servios e preferncia na formulao e execuo de Polticas Pblicas. O termo Integral tambm est relacionado ao fato de se estender a todas as crianas e adolescentes do pas, no somente quelas socialmente excludas. Para Costa (1994), essa Doutrina aponta para o valor da infncia e juventude como portadores da continuidade de seu povo, da sua famlia e da espcie humana e para o reconhecimento de sua vulnerabilidade. Para Sposato (2001), o ECA impe um novo modelo de Polticas Pblicas que adota medidas cabveis para pais, sociedade civil e o prprio Estado. Algo que deveria parecer bvio torna-se presente nos princpios do Estatuto: no a criana que se encontra em situao irregular, quando seus direitos so negligenciados e sim a pessoa ou instituio que se omitiu, de alguma forma, em relao garantia de tais direitos, uma vez que, neste caso, estaro deixando de cumprir com seu dever constitucional. Outra inovao do Estatuto a forma como foi elaborado. Trata-se de uma Lei com caractersticas diferentes das demais, na medida que foi pensada, discutida e elaborada no s pelo Poder Legislativo, mas por grande nmero de representantes da sociedade civil. Organizaes como o Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua, a Pastoral do Menor, ncleos de estudo ligados s Universidades dentre outros, estiveram presentes e atuantes na elaborao do Estatuto. O resultado de tal mobilizao o retrato dos interesses da sociedade civil. Para Costa (1994), o Estatuto da Criana e do Adolescente mais do que um projeto de lei , um projeto da sociedade. Outra caracterstica que o difere principalmente do Cdigo de Menores de 79 est relacionada gesto. O Estatuto prope uma descentralizao poltica e considera a participao popular como fundamental na exigncia de implantao, execuo e controle do funcionamento das polticas pblicas. A partir do Estatuto, o poder do Juiz sobre o destino das crianas tambm reduzido. Segundo Silva (2000), o Juiz passou a ser obrigatoriamente assessorado por uma equipe interprofissional, composta por psiclogos e assistentes sociais. No Cdigo de 1979 ficava ao seu arbtrio consultar ou no outro profissional. Uma vez apontadas todas essas caractersticas que definem o Estatuto da Criana e do Adolescente como uma das mais avanadas leis que diz respeito criana e ao

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adolescente, na Amrica Latina, vejamos como sua organizao e o que diz acerca do atendimento a adolescentes autores de ato infracional. O ECA constitudo de duas partes: a primeira delas versa sobre cinco Direitos Fundamentais que devem ser garantidos criana e ao adolescente: o direito vida e sade; o direito liberdade, ao respeito e dignidade; o direito convivncia familiar e comunitria; o direito educao, cultura, ao esporte e ao lazer e o direito profissionalizao e proteo no trabalho. J a segunda parte aquela que ir estabelecer Polticas de Atendimento que devero ser adotadas pelo Estado, com o objetivo de garantir tais direitos. Assim, quatro linhas bsicas de ao sero formadas: 1 - Polticas Sociais Bsicas: so dirigidas a um universo mais amplo de destinatrios. So aquelas que devero garantir o que direito de todos, independente da situao em se encontrem. Pertencem a essa categoria, as polticas que determinem a educao para todos, o direito sade como, por exemplo, a obrigatoriedade de vacinao infantil, o acompanhamento pr-natal. Mas tambm as que propiciem acesso cultura, esporte e lazer para todos. 2 - Polticas de Assistncia Social: essas j so voltadas s crianas ou famlias que delas necessitem por encontrarem-se em estado permanente ou temporrio de privao econmica ou social. o caso das chamadas bolsa-escola, bolsa-famlia, ou outros tipos de auxilio e complementao de renda. 3 - Polticas de Proteo Especial: so destinadas a casos ou grupos de crianas e adolescentes que se encontram em situaes extremamente difceis, a chamada: Situao de Risco pessoal e social. Segundo Costa (1994), a situao de risco pessoal e social se refere exposio da criana ou adolescente a fatores que ameacem ou, efetivamente, violem sua integridade fsica, psicolgica ou moral, por ao ou omisso da famlia, de outros agentes sociais ou do prprio Estado. Assim, so destinadas s crianas vtimas de abusos, maustratos, negligncias etc. 4 - Polticas de Garantias: essas polticas esto ligadas garantia dos direitos constitucionais inerentes a todo cidado (nesse caso ao adolescente) a quem se atribui algum tipo de crime (no caso, ato infracional). Nesse sentido, tais polticas devem garantir ao adolescente a quem se atribui a autoria de um ato infracional direitos constitucionais tais como: a presuno da inocncia, a ampla defesa por advogado e o direito de ser submetido a um julgamento justo para responder por sua conduta. Se for inocente, ser absolvido, se for culpado, ser submetido a uma medida scioeducativa, levando-se em conta a gravidade do ato

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infracional cometido, a sua situao socioeconmica e familiar e suas caractersticas peculiares como uma pessoa em processo de desenvolvimento.

1.3 As Medidas Scioeducativas

Um mito que insiste em pairar sobre o Estatuto da Criana e do Adolescente o de que este instrumento no responsabiliza os adolescentes pelos atos infracionais praticados. Muitos chegam a argumentar que o Estatuto s prev seus direitos, no definindo seus deveres legais. Esse mito reforado pelos meios de comunicao, pela polcia que, inclusive, se utiliza disso para justificar sua omisso ou arbitrariedade. Esse discurso est presente tanto em parcelas menos esclarecidas da sociedade, quanto em setores que deveriam conhecer o Estatuto a fundo, e prezar pela sua efetiva implantao. o caso de alguns polticos que insistem em defender a reduo da maioridade penal, ou de alguns profissionais que atuam na rea social. Mesmo alguns juzes, com menos experincia na rea da infncia e juventude, parecem desconhecer o funcionamento das medidas scioeducativas, muitas vezes, desconsiderando sua eficcia. Um dos elementos que contribui para que esse mito se mantenha a interpretao equivocada do termo inimputvel penalmente, citado na Constituio Federal7. A confuso est presente na distino entre o termo inimputvel e o termo irresponsvel. Quando se afirma que uma pessoa, com menos de 18 anos, inimputvel penalmente, significa dizer que no poder ser submetida aos critrios previstos no Cdigo Penal como so os adultos. No entanto, essa pessoa deve ser responsabilizada por uma conduta que rompe com o que socialmente aceito e infringe o que legalmente estabelecido, ou seja, uma conduta reconhecida como crime ou contraveno penal, o chamado Ato Infracional8. Mas, por se tratar de pessoa ainda em processo de desenvolvimento, dever ser submetida a uma legislao especfica que leve em conta esse aspecto. No caso do Brasil, o Estatuto da Criana e do Adolescente.

_______________ A Constituio Federal, em seu artigo 228, diz que: So penalmente inimputveis os menores de dezoito anos, sujeitando-se s normas da legislao especial. 8 O Estatuto define, em seu Art. 103, que considerado um ato infracional toda conduta descrita no cdigo civil como crime ou contraveno penal.7

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As garantias, direitos e deveres estabelecidos no Estatuto, para o adolescente autor de ato infracional, so equivalentes s dos adultos, exceto o limite mximo para a privao de liberdade. Garantir a esses adolescentes os mesmos direitos civis de um adulto a quem se atribui um crime significa dizer, por exemplo, que nenhum adolescente poder ser privado de liberdade pura e simplesmente por apresentar comportamentos considerados socialmente inadequados, por estar perambulando pelas ruas, por se suspeitar ou presumir que estaria envolvido com alguma atividade criminosa, devido sua situao scio-econmica. Assim, um adolescente s poder ser privado de sua liberdade, quando for autuado em flagrante, como acontece com qualquer cidado comum, ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciria competente, conforme prev o Art.106 do Estatuto. Nesse ultimo caso, poder ser intimado judicialmente a comparecer perante o Juiz, para responder a algum processo, inclusive ser mantido em regime de internao, antes da sentena, pelo prazo mximo de 45 dias9, nos casos em que haja indcios suficientes da autoria do ato infracional conforme ressalta o Art. 108. Mas, em hiptese alguma, dever ser privado de sua liberdade sem o devido processo legal, ou sem que lhe sejam assegurados seus direitos. Tal processo baseado no Estatuto da Criana e do Adolescente, que estabelece, em 23 de seus artigos (do Art. 103 ao 124), os procedimentos a serem adotados pela Justia, Ministrio Pblico e pelo Estado, na ocorrncia de atos infracionais. Uma vez constatada a autoria do ato infracional, ao adolescente dever ser aplicada uma das seis medidas scioeducativas. Todos esses artigos citados condenam, claramente, as aes arbitrrias da polcia, poder pblico ou de quem quer que seja, em casos de suspeita do envolvimento de adolescentes com atos infracionais. As Medidas Scioeducativas so sanes aplicveis apenas ao adolescente autor de ato infracional e esto baseadas em dois pilares: a proteo da sociedade, uma vez que a sociedade civil precisa ter garantidas sua proteo e segurana, e a proteo do adolescente, uma vez que esse cidado e, por isso, dever ter seus direitos garantidos, visto que dever do Estado garantir o direito de todos os cidados (vtimas e vitimizadores). Esse segundo pilar baseia-se, mais uma vez, nos princpios da Conveno Internacional que j previa, no tratamento ao adolescente que infringiu a lei, o cumprimento de todos os princpios processuais penais devidos, bem como um atendimento diferenciado, visando estimular a dignidade, o valor e fortalecer o respeito aos direitos humanos. Conforme afirma Volpi (2002), uma medida scioeducativa deve ter a funo de proteger, educar, oportunizando a insero do adolescente na vida social._______________9

Em Belo Horizonte, o CEIP (Centro de Internao Provisria) uma instituio que se presta a essa finalidade.

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importante compreender a diferena entre uma sano scioeducativa e uma pena. O adulto, ao cometer um crime, dever ser submetido a um processo com base no cdigo penal, em que a definio da pena se d pelo tipo de crime cometido, uma relao linear. J o adolescente dever ser encaminhado a uma medida scioeducativa. De acordo com Gomes Neto (2001), as medidas scioeducativas so sanes de carter pedaggico, sem carter de pena, ou seja, no se busca a punio ou retribuio ao adolescente pelo ato infracional praticado. Esse mesmo autor diferencia pena de sano. Esclarece-nos que, a pena uma das formas de sano, como existem as sanes administrativas, por exemplo. Uma pena aplicada relacionando-se a conduta (crime) ao que est disposto na lei. Por isso, na pena, h um tempo determinado, um carter punitivo diante de uma infrao cometida e no se levam em conta as caractersticas pessoais do autor da infrao. J uma sano scioeducativa dever ter um carter eminentemente pedaggico e socializante. Ao encaminhar um adolescente para cumprir uma medida, o Juiz deve considerar que seu objetivo especfico a reeducao e o retorno famlia e sociedade e no a punio pura e simples. Alm disso, para a aplicao de uma medida scioeducativa necessrio se levar em conta a capacidade do adolescente de cumpri-la, as circunstncias e a gravidade da infrao. Segundo Gomes Neto (2001), por circunstncias, o Estado quer dizer as condies pessoais do adolescente (psicolgicas, fsicas, sociais, familiares e econmicas), ou seja, o seu contexto pessoal, bem como a estrutura existente no rgo ou instituio, para o cumprimento da medida. por isso que podemos ter diferentes medidas scioeducativas aplicadas a dois adolescentes que cometeram o mesmo ato. Por outro lado, adolescentes que praticaram atos infracionais distintos podero ser encaminhados ao mesmo tipo de medida. Assim, o ato infracional cometido, no o que define o tempo e o tipo de medida. Essa definio est nas mos do juiz, que precisar avaliar inmeros fatores da vida do adolescente, tais como: a situao scio-econmica, a situao de risco pessoal, a possibilidade de apoio familiar, aspectos de seu desenvolvimento psicolgico. Para isso, o juizado dever contar com uma equipe tcnica, psiclogos e assistentes sociais, que lhe auxiliaro na compreenso da situao global do adolescente. Infelizmente, fatores como ausncia de vagas e de programas adequados, ou mesmo, fatores polticos, como a falta de interesse em se implantar as medidas scioeducativas previstas no Estatuto, acabam tambm determinando tal deciso. Com relao a esse aspecto, vale transcrever a seguinte afirmao indignada:

31 O bvio precisa ser dito. Qual seja, de que o Estatuto prev solues adequadas e efetivas questo da chamada delinqncia juvenil e o que nos tem faltado a efetivao destas propostas, seguramente por ausncia de deciso poltica, mas no apenas por isso, tambm pela inao da sociedade, que parece, em especial em nossos centros urbanos maiores, adormecida, indiferente ao destino de nossas crianas e jovens, prioridade absoluta da Nao Brasileira. (SARAIVA, 2001, p. 58).

O autor aponta, nessa afirmao, para um outro problema que contribui para intensificar o mito de impunidade atribudo ao Estatuto: nos grandes centros, algumas estruturas do regime anterior continuam a ser utilizadas para a aplicao de Medidas Scioeducativas, no contemplando, em sua prtica, o que realmente a caracteriza. Alm disso, verifica-se que, nas cidades do interior, medidas como a Liberdade Assistida ou Prestao de Servios comunidade nem mesmo so conhecidas, quanto mais aplicadas aos adolescentes. Outro mito que paira sobre o Estatuto o de que as penas atribudas aos adolescentes so brandas e, por isso, no so efetivas. Para Volpi (2001), privar de liberdade, por at trs anos, pessoas em plena fase de desenvolvimento e descobertas bastante significativo, principalmente quando a situao dessa privao extremamente precria e desumana. O autor argumenta que pases que adotam penas mais graves, como priso perptua, no conseguiram diminuir a prtica de atos infracionais por adolescentes. Enfim, no existe relao direta entre o agravamento da medida e diminuio da infrao, e sim entre a seriedade e o rigor com que a medida realizada e os seus efeitos na vida do adolescente. O Estatuto faz uma clara distino entre as medidas de proteo, aplicveis s crianas menores de 14 anos de idade, e as medidas scioeducativas. No caso de crianas, entende-se que o fato de se envolverem com algum tipo de infrao est ligado a uma situao de grave risco pessoal e social. Assim, a elas deve ser buscada toda forma de proteo, aplicando-se aos adultos as punies devidas, pois esses sim, esto negligenciando ou descumprindo o dever de garantir quelas crianas o direito educao e proteo adequadas. J no caso dos adolescentes, inegvel a importncia de lhes atribuir a responsabilidade por um ato infracional cometido, uma vez que esto em pleno processo de insero social. Segundo Mendez (2000), a responsabilidade neste caso penal dos adolescentes um componente central de seu direito a uma plena cidadania. Pretender construir cidadania sem responsabilidade constitui um contra-senso, produto da ingenuidade ou da incompetncia. Colocada essa distino, o Estatuto da Criana e do Adolescente estabelece seis medidas scioeducativas a serem cumpridas, evoluindo em termos da necessidade de

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conteno, proteo ou gravidade do ato infracional. De acordo com o Art. 112, verificada a prtica de ato infracional, a autoridade competente poder aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertncia; II - obrigao de reparar o dano; III - prestao de servios comunidade; IV - liberdade assistida; V - insero em regime de Semiliberdade; VI internao em estabelecimento educacional. As quatro primeiras medidas no implicam em restrio ou privao de liberdade, o que reservado s medidas V e VI. Os autores Volpi (2002), Saraiva (2001) e Costa (1994) acreditam que uma

efetiva e eficaz implantao das medidas em meio aberto, reduziria em muito a necessidade das medidas de restrio de Liberdade. Na opinio de Saraiva (2001), considerando-se que as medidas de privao de liberdade devem ser destinadas a adolescentes autores de atos infracionais graves, essa deveria ser bem menos aplicvel, uma vez que, salvo rarssimas excees, uma criana ou adolescente no comea sua carreira de infraes por um ato mais grave. Sem dvida, tero cometido outras infraes anteriormente, de menor gravidade, que no foram devidamente sancionadas, por uma medida de Liberdade Assistida ou de Prestao de Servios Comunidade.

1.4 Privao de Liberdade: Internao ou Semiliberdade

Volpi (2001) ressalta que o tipo de atendimento presente nessas medidas deve se basear numa viso do adolescente como sujeito que tem seus direitos humanos fundamentais garantidos, mas que, devido prtica do ato infracional, ter alguns de seus direitos, como o de ir e vir, cerceados. Alm disso, o Estatuto prev que sejam adotados 3 princpios bsicos para sua aplicao. O princpio da brevidade, da excepcionalidade e do respeito condio peculiar de desenvolvimento. As medidas privativas de liberdade (Semiliberdade e Internao) devem ser aplicadas em circunstncias efetivamente graves, seja para a segurana social, seja para a segurana do prprio adolescente10. Esse segundo elemento, justifica a permanncia em_______________ Do ponto de vista jurdico, o adolescente infrator grave todo aquele que recebeu a medida de privao de liberdade, prevista no art. 122 do ECA. Geralmente o adolescente considerado infrator grave, quando apreendido, recebe, como medida, a internao. De acordo com o Art. 122, a medida de internao s poder ser aplicada quando: I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaa ou violncia a pessoa; II por reiterao ou cometimento de outras infraes graves; III - por descumprimento reiterado e injustificvel da medida anteriormente proposta.10

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regime de Semiliberdade de adolescentes que no cometeram atos infracionais de grave ameaa ou violncia pessoa, mas sim, atos considerados leves, como porte de armas ou envolvimento com o trfico. No entanto, freqentemente encontram-se sob a ameaa de traficantes ou gangues rivais e a possibilidade de cumprirem uma medida em regime aberto, em sua prpria comunidade, torna-se invivel. Nesses casos uma medida como a Semiliberdade pode ser aplicada para a segurana do adolescente. Por outro lado, o envolvimento pode ser ainda inicial ou superficial e tal medida avaliada pelo juizado como mais oportuna para proporcionar uma chance de resgate desses adolescentes. Muitos adolescentes que vo para o regime de Semiliberdade geralmente j passaram pelo regime de Internao. Portanto, tambm podem ser considerados adolescentes infratores graves, segundo a definio de Mendez (2001), por serem reincidentes ou autores de atos infracionais como assaltos, furtos, trfico de drogas e homicdios. Existe uma busca da equipe da Semiliberdade de estabelecer uma parceria com os juizados a fim de que lhe sejam encaminhados adolescentes com um perfil mais adequado a esse tipo de medida. Mas, para isso, necessrio tentar encontrar uma distino mais clara entre uma Semiliberdade e uma Internao. A principal distino apontada pelo Estatuto da Criana e do Adolescente a possibilidade de realizao de atividades externas independentes da autorizao judicial. A lei sugere que a organizao e os objetivos educacionais sigam o modelo da Internao, sem o carter de total privao de liberdade que o caracteriza. Alm disso, a Semiliberdade pode ser aplicada como primeira medida, ou como processo de transio entre a Internao e o meio aberto. Podemos verificar que h pouca definio legal sob o carter dessa medida. Se ambas, Internao e Semiliberdade, so destinadas aos chamados adolescentes infratores graves, se ambas so consideradas privativas de liberdade, se em ambas deve ser assegurado ao adolescente o direito educao, convivncia familiar e comunitria, quais seriam as caractersticas que tornam a Semiliberdade uma medida to peculiar? Assim como a Internao, a Semiliberdade possui um aspecto coercitivo, uma vez que afasta o adolescente do convvio familiar e de sua comunidade de origem, mantendo-o em uma instituio. No entanto, a privao de liberdade nesse caso, relativa, uma vez que no suspende totalmente o direito de ir e vir do adolescente, apensas o restringe. Neste caso, seu direito ser condicionado s regras da instituio.

34 Todos os adolescentes que forem submetidos privao de liberdade s o sero porque a sua conteno e submisso a um sistema de segurana so condies sine qua non para o cumprimento da medida. Ou seja, a conteno no em si a medida scioeducativa, a condio para que seja aplicada. (VOLPI, 2002, p. 28).

A conteno , portanto, um elemento presente em ambas as medidas. Mas justamente a, no tipo de conteno, que comeam as diferenciaes. Se compararmos a Medida de Internao com a Medida de Semiliberdade, podemos identificar dois tipos de conteno. Uma que chamaremos Conteno Externa, que est relacionada presena de uma estrutura fsica (prdios, grades) criada para impedir o acesso do adolescente ao meio externo; e de pessoal (presena de policiais, e/ou agentes penitencirios), que tm como objetivo garantir efetivamente a segurana e a permanncia do adolescente na instituio. O outro tipo de conteno seria a chamada Conteno Interna, relacionada a proposta pedaggica. Trata-se de um tipo de conteno mais implcita e deve ser construda no trato com os adolescentes. Esses devem compreender que, embora no se encontrem em um local com grades e totalmente restrito, esto cumprindo uma medida imposta pelo juiz. Devem ser conscientizados de sua responsabilidade em cumprir tal medida, o que implica em se submeter ou se adequar s regras daquela proposta scioeducativa. Entendemos que os dois tipos de conteno devem estar presentes em ambas as medidas: Internao e Semiliberdade. A diferena est na nfase dada conteno interna, ou conteno externa. Assim, para o caso da Semiliberdade, necessrio um investimento bem maior na conteno interna, visto que a restrio da liberdade do adolescente relativa. Podemos concluir, ento, que um adolescente que encaminhado para um Regime de Internao, em que a privao de liberdade mais radical, deveria precisar principalmente desse tipo de conteno externa para se manter ali e conseguir se submeter a qualquer tipo de interveno scioeducativa. O adolescente que encaminhado para uma Semiliberdade, no entanto, deveria j ter essa condio sanada. Ou seja, deve ser capaz de se manter num local que restringe sua liberdade sem necessidade de uma conteno fsica. Embora consiga se manter cumprindo a medida de Semiliberdade, ainda no seria capaz de se conter num regime aberto, quer seja por no possuir condio interna, pessoal suficiente para se manter longe das infraes, quer seja por se encontrar sob grave ameaa em sua comunidade de origem.

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1.5 A Semiliberdade

A Medida Scioeducativa de Semiliberdade considerada uma importante alternativa Internao devido sua natureza e finalidade (VOLPI, 2002). No entanto, uma medida ainda pouco aplicada no pas11. De acordo com recente pesquisa elaborada pelo ILANUD12, a Semiliberdade , dentre as medidas scioeducativas, a de menor implementao e a que menos possui uma construo terica especfica. A falta de uma proposta terica consistente e de critrios por parte do judicirio para a aplicao dessa medida, bem como de uma avaliao da efetividade dos programas j existentes so alguns dos fatores que prejudicam a expanso desse tipo de proposta. De acordo com Volpi (2002), constata-se a existncia de basicamente duas modalidades de aplicao da medida de Semiliberdade: a) programas caracterizados por unidades de atendimento para grupos de at 40 adolescentes, onde o acesso ao meio externo programado progressivamente a partir do processo de desenvolvimento educacional do adolescente. So conhecidas como semi-internatos; b) programas de Semiliberdade caracterizados por unidades comunitrias de moradia, para grupos de cerca de 12 adolescentes, para a manuteno e insero em programas sociais e comunitrios. No Estado de Minas Gerais, a Secretaria de Estado da Defesa Social, por meio da Superintendncia de Atendimento s Medidas Scioeducativas Samese, responsvel pela implantao das medidas scioeducativas em meio fechado. De acordo com dados fornecidos pela Samese, h doze unidades de medidas em meio fechado (Semiliberdade e Internao) no Estado. Quatro delas tm a gesto feita pelo Estado e por organizaes no-governamentais, e as demais so supervisionadas pelo Estado, o qual repassa verbas diretamente aos municpios para que estes administrem as Unidades. Dessas doze unidades, apenas duas so de Semiliberdade: A Casa de Semiliberdade Ouro Preto, localizada em Belo Horizonte, com capacidade para atender a 12 jovens, geralmente abrigando de 8 a 10 e a Casa de Semiliberdade Santa Terezinha, localizada tambm em Belo Horizonte, com capacidade para 15 jovens, geralmente abrigando entre 8 e_______________11 12

Ver o Quadro sobre Internao e Semiliberdade nos anexos. O Instituto Latino-Americano das Naes Unidas para a Preveno do Delito e Tratamento do Delinqente ILANUD, realizou um mapeamento da execuo das medidas scioeducativas em todo o pas, de acordo com a regio e o Estado. As informaes para a composio deste relatrio foram coletadas junto s autoridades estaduais responsveis, no perodo compreendido entre setembro de 2003 a fevereiro de 2004..

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12. Em ambas, a gesto feita por meio de uma parceria entre o Estado e o Sistema Salesiano de Educao Popular. No existe, at a presente data, Unidade de Semiliberdade para o sexo feminino em Belo Horizonte. Tambm no h um programa de atendimento ao egresso. Recentemente foi firmada uma parceria com a Pastoral do Menor, no entanto, o formato e a implementao do programa ainda esto em discusso. A legislao em vigor no especifica detalhadamente o funcionamento de uma Unidade de Semiliberdade. Sugere que a organizao e os objetivos educacionais sigam o modelo da Internao, sem o carter de total privao de liberdade que o caracteriza. As experincias atuais do 2 tipo tm sido desenvolvidas em Belo Horizonte. Como no h um documento especfico para orientar a execuo dessa medida, cabe s instituies estabelecer a metodologia que nortear seu trabalho. Algumas tm construdo sua prtica, criando um ambiente que atenda s necessidades bsicas, como a alimentao, proteo, instalaes mais humanas etc. Algumas tm buscado estabelecer um clima prximo ao familiar, por meio do atendimento a nmero reduzido de adolescentes e uma organizao da rotina de uma casa, o caso das duas casas existentes em Belo Horizonte. Em se tratando de estrutura fsica, as duas unidades no tm um projeto arquitetnico que priorize uma total conteno externa, como o caso dos Centros de Internao. Assim, funcionam numa casa alugada ou cedida pelo Estado, em um bairro comum, de Belo Horizonte (prximo ao centro urbano), sem qualquer identificao escrita de se tratar desse tipo de instituio. Todos esses elementos contribuem para diminuir um pouco o estigma, mas no o eliminam de todo. Diramos que se trata de uma casa hbrida. Seus portes geralmente permanecem trancados, mas os muros so baixos e de fcil transposio. Educadores, e no agentes penitencirios, permanecem com as chaves e regulam a entrada e sada dos adolescentes e demais pessoas da casa. Os quartos se intercomunicam como numa casa comum e o trnsito dos adolescentes dentro da casa livre. Nas salas da equipe tcnica e coordenao, tambm permitido o acesso do adolescente, salvo em momentos de reunio ou quando esto sozinhos. Com relao ao trnsito para o ambiente externo, verifica-se um processo gradativo. No incio, os adolescentes saem acompanhados por um educador e, aos poucos, vo sendo liberados para sarem sozinhos, mas sempre com um destino certo (escola, atividades externas, sade, trabalho etc). quando tero que assumir a responsabilidade de retornar no

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tempo determinado. Como podemos verificar, na Semiliberdade, a gradativa diminuio da conteno externa implica no fortalecimento da chamada conteno interna. Durante o tempo em que permanecem nas casas, os adolescentes participam de atividades pedaggicas e oficinas profissionalizantes, tambm rotinas cotidianas de convivncia. Alguns so encaminhados a emprego e a maioria inserida em escolas ou projetos de suplncia organizados pela instituio, conforme preconiza o Estatuto. Durante a semana passam dia e noite na Unidade, quando no se encontram em atividade externa. Os adolescentes so avaliados mensalmente, em sua adaptao s normas, crescimento pessoal, relaes interpessoais e com a comunidade. A Unidade funciona sob as regras de um Regimento Interno que estabelece algumas normas da casa, regras de convivncia, sanes advindas da transgresso s normas, sem desconsiderar os direitos fundamentais previstos em lei. O Regimento Interno estabelece tambm critrios para a liberao do adolescente nos finais de semana, para visita domiciliar. Alm disso, a forma de trabalho e tipo de interveno dos educadores est pautada na Pedagogia da Presena13, adotada pelos Salesianos, bem como nos ensinamentos de Dom Bosco. So realizadas discusses de caso na instituio e junto equipe tcnica do Juizado da Infncia e da Juventude. Bimestralmente enviado ao juizado um relatrio sobre o adolescente. Com base nas discusses e no relatrio, o Juiz decidir: 1) pela manuteno da medida: continuar na casa; 2) por uma progresso de medida: Liberdade Assistida ou liberao; 3) por uma regresso de medida: Internao. Alm disso, as atitudes dos adolescentes, dentro da casa, consideradas transgresses graves s normas do Regimento Interno, como brigas ou uso de drogas, por exemplo, so informadas ao Juizado por meio de um Relatrio Circunstanciado. Nessas ocasies, so sugeridas aes que vo desde uma advertncia a uma regresso da medida, que podero ser acatadas ou no. Os casos de evaso tambm so informados imediatamente ao Juizado e o adolescente nesse caso, passa a ser considerado em descumprimento de medida e a ele expedido um Mandado de Busca e Apreenso. As regras de convivncia, a organizao do espao fsico, o planejamento das atividades, sempre que possvel, so discutidos com os adolescentes, em bate-papos informais no caf da manh ou em outros momentos de encontro e em assemblias ordinrias realizadas, geralmente, uma vez por ms. Este um importante aspecto da proposta pedaggica que visa_______________13 Para saber mais sobre essa proposta pedaggica, consultar: COSTA, Antnio Carlos Gomes da. Pedagogia da Presena; Da Solido ao Encontro, 1a. Ed., Belo Horizonte, Modus Faciendi, 1997.

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ao desenvolvimento da cidadania. Volpi (2002) ressalta que deve-se evitar atitudes pseudodemocrticas. Existem limites legais na definio das regras que no so passveis de deciso do grupo, mas que podem e devem ser informadas da maneira mais clara e pedaggica possvel, inclusive por escrito. Esta observao aponta para a importncia de se trabalhar o Regimento Interno com todas as pessoas envolvidas no processo educativo.

1.6 O Regimento Interno, uma estrutura organizadora.

Nossa compreenso que o Regimento Interno deveria funcionar como um instrumento de estruturao que norteia as relaes naquela microsociedade - a Semiliberdade. Se um de seus objetivos ajudar o adolescente a lidar com a lei e a sociedade, a lei que a regulamenta as relaes dentro da prpria instituio, precisar ter sentido e conseqncias reais e bem definidas. importante, para a promoo da autonomia, que se tenha espao para a colocao e crtica das pessoas envolvidas a partir da prtica do dia-a-dia. As propostas de alteraes deste Regimento devem fazer parte de um amplo processo de discusso e no simplesmente alteradas conforme a situao ou preferncias pessoais. Volpi (2002) aponta para a necessidade de que a equipe utilize o planejamento e a avaliao como instrumentos pedaggicos importantes para a superao do espontanesmo e ativismo caracterizado pela ao sem reflexo. Uma estrutura confivel, onde o adolescente sinta que conhece as regras do jogo e que respeitado em sua individualidade, favorecer um processo coerente, efetivo e afetivo. O adolescente assume um papel dentro do grupo e a previsibilidade do cumprimento das normas, facilitar uma evoluo na sua autopercepo, na forma de relacionar-se, devido s respostas recebidas dentro de uma estrutura estvel, possibilitando novas experimentaes e, da, novos conceitos de si, do ser humano, dos direitos e deveres. O respeito ao Regimento Interno, individualidade, ao objetivo primeiro da instituio: educar (que no se limita ao ensinar) e uma estrutura institucional segura, ir ajud-los a reconhecer em suas atitudes, os valores, objetivando uma formao mais humanizada e uma relao entre seres humanos. Consideramos a importncia para o processo de desenvolvimento dos adolescentes, que as conseqncias de determinada atitude estejam claras e que realmente ocorram. Uma restrio, que no estiver relacionada transgresso, deixa de ter o efeito

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constitutivo do limite, para se tornar uma punio. Como punio, o limite sempre est centrado naquele que o coloca e no no que ele por si. Aplicando-se uma sano por motivaes pessoais e no porque tal ato tenha tal conseqncia, repete-se uma relao de dependncia vivida entre o adolescente e a autoridade. Nesse tipo de relao, a transgresso a uma norma torna-se uma forma de afrontar o outro como autoridade e de se afirmar. No uma escolha consciente do ato e suas conseqncias. De certa form