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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Mestrado em Psicologia ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE: processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim Belo Horizonte 2008

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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS

Mestrado em Psicologia

ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE:

processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada

Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim

Belo Horizonte

2008

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Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim

ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE:

processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Psicologia. Orientador: João Leite Ferreira Neto

Belo Horizonte

2008

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FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais

Rubim, Fernanda Pinheiro de Oliveira R896a Adolescência, criminalidade e semiliberdade: processos de

subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada / Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim. Belo Horizonte, 2009.

173f. Orientador: João Leite Ferreira Neto Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. 1. Adolescentes e morte. 2. Criminalidade. 3. Mortes

violentas. 4. Subjetividade. I. Ferreira Neto, João Leite. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Psicologia. III. Título.

CDU: 159.922.764

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Fernanda Pinheiro de Oliveira Rubim

ADOLESCÊNCIA, CRIMINALIDADE E SEMILIBERDADE: processos de subjetivação diante da perspectiva de uma morte anunciada

Dissertação apresentada ao Mestrado em Psicologia da Pontifícia Universidade

Católica de Minas Gerais, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em

Psicologia.

________________________________________

João Leite Ferreira Neto (Orientador) – PUC MINAS

____________________________________

Luis Antônio Baptista - UFF

____________________________________

Sandra Maria da Mata Azeredo - UFMG

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Esse trabalho é dedicado à memória dos adolescentes que morreram nas “guerras” e aos profissionais da semiliberdade que, mediante situações de morte, tentam produzir vida através do trabalho sócio-educativo.

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AGRADECIMENTOS

A realização desta pesquisa só foi possível porque contou com o apoio, o

auxílio e o carinho de muitas pessoas. Entre elas, gostaria de agradecer

especialmente:

. Ao Celso e a Marília, secretários do Mestrado, que gentilmente colaboraram

para resolução das questões burocráticas que envolveram esta dissertação. Aos

professores, que contribuíam com seus ensinamentos, em especial ao meu

orientador, João Leite Ferreira Neto, que conduziu a elaboração da pesquisa com

disponibilidade, carinho e atenção, e aos professores Sandra Maria da Mata

Azeredo e Luis Antônio Baptista, por terem aceitado o convite para participar desta

banca.

. A todos os adolescentes e profissionais das Unidades de Semiliberdade.

Gostaria de destacar: Alcides e Thereza, que abriram as portas das Unidades para

que esta empreitada fosse realizada, e adolescentes e profissionais entrevistados,

que contribuíram com suas experiências, dilemas e saberes, demonstrando que é

possível acreditar na vida, mesmo que as circunstâncias demonstrem o contrário.

. A Simone e Estela que colaboraram com indicações bibliográficas e com a

leitura minuciosa do pré-projeto dessa pesquisa.

. Ao meu marido, André, pelo incentivo, e a minha filha Helena, que, apesar

da pouca idade, se mostrou compreensiva e muitas vezes se pôs a “trabalhar” ao

meu lado, com seu “titibock” (notebook) para ver se eu terminava mais rápido para

brincar com ela. Aos demais familiares e amigos, em especial a minha mãe, Cica, e

a meus sogros, que muitas vezes possibilitaram minha ida a Belo Horizonte para que

os estudos que envolveram esse trabalho pudessem se efetivar.

. A Juliene, Nanny e Eliana, que cuidaram da minha filha e da minha casa nos

momentos em que estive ausente.

. A Noé, Thereza, Marília e familiares, que me acolheram em suas casas no

período das aulas.

Gostaria de agradecer também à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado

de Minas Gerais – FAPEMIG –, que financiou e execução desse trabalho.

A todos, meu muito obrigada e consideração.

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RESUMO

Este trabalho objetiva investigar os processos de subjetivação relacionados

às mortes violentas que atravessam a vida dos adolescentes e jovens do sexo

masculino autores de infração penal. Sua motivação está articulada à minha

trajetória profissional, relacionada ao acompanhamento desses sujeitos na medida

sócio-educativa de semiliberdade em Belo Horizonte, Minas Gerais. Foram

realizadas entrevistas semi-estruturadas com adolescentes, jovens e profissionais

inseridos na semiliberdade, o que permitiu analisar aspectos da subjetividade desses

sujeitos que convivem com a possibilidade da ocorrência de uma morte violenta. As

entrevistas realizadas com os profissionais, bem com as análises dos documentos

institucionais, objetivaram também observar aspectos da prática institucional que

podem ou não aprisionar esses sujeitos em contextos de morte. Outras ferramentas

importantes na coleta de campo foram o diário de campo, no qual constam

anotações feitas ainda no período em que eu atuava como coordenadora da

semiliberdade, e dados da realização da observação participante. A problematização

proposta por esta pesquisa tem como fundamento as teorizações sobre os

processos de subjetivação, ancorados na Análise Institucional e nas postulações

foucaultianas e deleuzianas. A análise dos segmentos que compõem a subjetividade

dos adolescentes que vivenciam as ameaças e as “guerras” contraídas no “mundo

do crime” evidenciou que, a partir da relação com a criminalidade, a subjetividade

desses sujeitos passa a funcionar pelo mecanismo da “correria”, da “atividade”, que

se apóia em ideais viris, individualistas, hedonistas e consumistas, típicos da

contemporaneidade. Como conseqüência, a vida banaliza-se e a possibilidade da

morte violenta é vivenciada intensamente. Esse modo de funcionamento, calcado na

“correria” e no medo da morte, também é um aspecto constitutivo da subjetividade

dos trabalhadores da semiliberdade.

Em suma, esses são os pontos centrais deste trabalho, que objetiva ser um

mais um instrumento de análise dos processos subjetivos atuais.

Palavras-chave: adolescência; criminalidade; semiliberdade; ameaças de morte;

processos de subjetivação.

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ABSTRACT The present study aims the investigation of the processes of subjectivity connected

to violent deaths related to adolescent’s lives and young boys who committed penal

offenses. Their motivation is linked to my professional trajectory, connected to

following these people in a social-educative measure of semi-freedom in Belo

Horizonte, Minas Gerais. Semi-structured interviews had been done with teenagers,

young ones and professionals in semi-freedom condition, that allowed to analyze

aspects of their subjectivity which cohabit with a violent death possibility. The

interviews made with professionals, as the analyses of institutional documents,

intended to observe aspects of institutional practices that can lead or not these

subjects in a death context. Another important research tool were the “field-diary”, on

which notes are reported from the period I worked as semi-freedom coordinator, and

data from participating observation. The discussion proposed by this research is

based on theorization about processes of subjectivization, grounded by Institutional

Analyze and by “foucaultian’s” and “deleuzian’s” postulations. The analysis of parts

that compose adolescent’s subjectivity who have been living with threats and “wars”

from the “criminal world” cleared that from the relationship with criminality, these

people’s subjectivity works through a mechanism of “running” and “activity”,

supported by vigorous, individualist, hedonist and consumerism ideals, typical of the

present time. Therefore, life is banalized and the possibility of a violent death is

intensely lived. This kind of living, based on “running” and fear of death is a

constitutive aspect of semi-freedom workers subjectivity.

In short, these are the central aspects of the present study, which intends to be

another instrument of present days subjective’s processes analysis.

Key-words: adolescence, criminality, semi-freedom, treats of death; subjectivizations

processes.

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LISTA DE SIGLAS

BO – Boletim de Ocorrência. CEIP – Centro de Internação Provisória. DOPCAD – Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente. ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente. ISJB – Inspetoria São João Bosco. PUC-MG – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. SAREMI – Superintendência de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator. SEDS – Secretaria de Estado e Defesa Social. SUASI – Subsecretaria de Atendimento às Medidas Sócio-Educativas. PPCAM – Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte. SIM – Sistema de Informação da Mortalidade. CRISP – Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade

de Minas Gerais.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO.....................................................................................................................................................11

1.1. Considerações preliminares............................................................................................................................11

1.2. Campo de estudo, instrumento de coleta de dados e metodologia........................................................13

1.3. Minha trajetória profissional nas Unidades de Semiliberdade...................................................................42

2. ADOLESCÊNCIA E CRIMINALIDADE .........................................................................................................51

2.1. Adolescência: algumas reflexões...................................................................................................................51

2.2. Algumas palavras sobre a questão da violência envolvendo adolescentes .........................................56

2.3. As políticas de atendimento destinadas aos adolescentes em conflito com a lei.................................81

2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente, a rede de atendimento ao adolescente em conflito com a

lei e as medidas sócio-educativas..........................................................................................................................88

3. A MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE SEMILIBERDADE........................................................................100

3.1. A semiliberdade e a proposta educativa salesiana...................................................................................100

3.2. Semiliberdade: a vida acontece, a vida se esvai.......................................................................................110

4. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PERSPECTIVA DE UMA MORTE QUE SE

ANUNCIA......................................................................................................................................................................120

4.1. Vidas ameaçadas: diferentes formas do funcionamento da subjetividade..........................................122

4.1.1. A banalidade da vida e a centralidade da morte.....................................................................................................127

4.1.2. O crime e as guerras: a brevidade da vida e o anúncio da morte......................................................................131

4.1.3. As ameaças, o medo e a hiper-realidade da morte...............................................................................................136

4.1.4. Para continuar vivo é necessário vivenciar “pequenas mortes”.........................................................................138

4.1.5. Crime: Deus, o Diabo, a vida e a morte.....................................................................................................................141

4.2. As “guerras”, as mortes, o trabalho sócio-educativo: os educadores sociais e os processos de

subjetivação .............................................................................................................................................................151

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................................................158

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................................164

APÊNDICES............................................................................................................................................................171

APÊNDICE A. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os profissionais da

semiliberdade...........................................................................................................................................................171

APÊNDICE B. Roteiro das entrevistas semi-estruturadas realizadas com os adolescentes da

semiliberdade...........................................................................................................................................................172

APÊNDICE C. Grupo com adolescentes realizado em 14/11/2007............................................................173

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1. INTRODUÇÃO

1.1. Considerações preliminares

Segundo levantamento do Instituto Médico Legal de Belo Horizonte, entre

2005 e 2006 ocorreram diariamente na cidade, em média, duas mortes violentas de

pessoas com idades entre 12 e 21 anos, totalizando 1.474 homicídios. Reportagem

publicada em julho de 2007 (FERREIRA; HERDY, 2007, p. 22) ratifica esses dados:

de acordo com ela, o tráfico de drogas tem como alvo pessoas cada vez mais

jovens1, uma vez que a morte e a prisão de traficantes mais velhos colocam meninos

e meninas na linha de frente da comercialização de drogas. “São jovens que

assassinam não apenas por questões estratégicas, mas pelo espírito de aventura,

para conquistar status e até mesmo impressionar mulheres”. “Eles pegam e falam:

matei fulano de tal, matei sicrano”. “Eles se valorizam por ter matado muitas

pessoas”, contou, à época, o delegado de homicídios Rodrigo Fragas (FERREIRA;

HERDY, 2007, p. 22). Na comunidade Pedreira Prado Lopes, em Belo Horizonte,

segundo ele, os executores não são os grandes chefes do tráfico, mas os

“soldados”, aqueles que ficam na linha de frente, atuando como sentinelas na

proteção da boca-de-fumo: “os criminosos têm como alvo os rivais, mas, se na rua

tiver uma família passando ou uma criança brincando, eles não se preocupam e

matam também”. No dia primeiro de setembro, dois adolescentes – um de quatorze

anos e outro de dezesseis – que seriam aliados de um dos homens do tráfico da

região foram fuzilados. A vingança envolveu a morte de cinco pessoas2 (FERREIRA;

HERDY, 2007; SANTOS, 2007). Tais assassinatos estão articulados às disputas por

1 Esses dados serviram de parâmetro para uma Ação Civil Pública movida pelos Ministérios Públicos Estadual e Federal contra a União, o Governo de Minas Gerais e a Prefeitura de Belo Horizonte, responsabilizando essas três instâncias governamentais pelos assassinatos cada vez mais freqüentes de adolescentes e jovens na capital mineira e região metropolitana. A ação foi motivada pelo recebimento recorrente de atestados de óbitos de adolescentes e jovens na Promotoria de Justiça da Infância e Adolescência. 2 Essas reportagens estão relacionadas à ocorrência de chacinas na região metropolitana de Minas Gerais e São Paulo em agosto e setembro de 2007, das quais muitos adolescentes foram vítimas.

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pontos de distribuição de drogas, poder, status e marcados, sobretudo, pelo ideal de

virilidade característico das relações estabelecidas entre grupos juvenis.

Segundo Zaluar (2004), embora as taxas de mortes violentas tenham crescido

no País em todas as regiões e faixas de idade, os mais atingidos são adolescentes e

jovens adultos do sexo masculino das metrópoles e regiões mais ricas ou de maior

crescimento populacional, respondendo por 84% do total. Trata-se de um grupo

envolvido, cada vez mais, em ações ilícitas, principalmente inerentes ao mercado

transnacional do tráfico de drogas. Ainda segundo o autor, entre 1981 e 1991 esses

óbitos teriam tido um aumento de 42%.

Diante desses dados, investigar os processos de subjetivação relacionados

às mortes violentas que atravessam a vida dos adolescentes autores de infração

penal fortaleceu-se como objetivo da presente pesquisa. Nessa investigação, os

estudos realizados foram organizados do seguinte modo:

� o primeiro capítulo traz a introdução do trabalho e a metodologia que o

norteou, além das inquietações e dos questionamentos que

mobilizaram as análises propostas nesta dissertação, vinculados ao

acompanhamento de adolescentes autores de infração penal na

medida sócio-educativa de semiliberdade.

� No segundo capítulo, introduz-se o problema da violência envolvendo

adolescentes e jovens, articulando essa temática aos processos de

subjetivação e enfatizando a imanência entre esses processos e as

questões políticas, jurídicas, legais que envolvem, neste caso

específico, a vida dos adolescentes em semiliberdade.

� O terceiro capítulo é dedicado a apresentar a medida de semiliberdade

na perspectiva salesiana, salientando que as práticas institucionais

podem deflagrar processos educativos, sociais, políticos, entre outros,

que potencializam ou não a permanência dos adolescentes na

criminalidade e, consequentemente, suas mortes prematuras.

� O capítulo 4 traz, de forma sistematizada, aspectos da subjetividade

dos adolescentes e jovens ameaçados de morte em decorrência do

envolvimento com a criminalidade, além de algumas considerações

sobre o trabalho sócio-educativo e as características da subjetividade

dos profissionais da semiliberdade, que têm seu cotidiano marcado por

evasões, situações de ameaça, “guerras” e mortes.

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� Por fim, o quinto capítulo apresenta as considerações finais.

1.2. Campo de estudo, instrumento de coleta de dado s e metodologia

Atuo em projetos sociais desde minha formação em psicologia e, no período

entre 2001 e 2005, trabalhei no acompanhamento de adolescentes e jovens

envolvidos em atos infracionais – condutas descritas como crime ou contravenção

penal – que se encontravam em cumprimento da medida sócio-educativa de

semiliberdade.

A medida de semiliberdade, como as outras medidas sócio-educativas

(advertência, reparação do dano, prestação de serviços à comunidade, liberdade

assistida e internação) é determinação do Estatuto da Criança e do Adolescente

(ECA), lei 8.069 de 13 de julho de 1990 (BRASIL, 1990). O ECA é instrumento legal

que garante a proteção integral à criança e ao adolescente, fundamentando-se na

Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988) e na Convenção Internacional dos

Direitos da Criança e do Adolescente (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS,

1989). De acordo com essa lei, o termo criança está relacionado “a pessoa até doze

anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de

idade” (BRASIL, 1990). Apesar de serem direcionadas a crianças e adolescentes,

em alguns casos é possível que jovens, com idade acima de 18 anos, cumpram

medidas sócio-educativas.

Os sujeitos da presente pesquisa são adolescentes e jovens (identificados, ao

longo do trabalho, por pseudônimos). Seu acompanhamento no cumprimento da

medida sócio-educativa de semiliberdade foi realizado nas Unidades gerenciadas

pela Inspetoria São João Bosco (ISJB), Província Religiosa Salesiana, mediante

convênio firmado em 2000 com a então Secretaria da Justiça e Direitos Humanos de

Minas Gerais, atualmente Secretaria de Estado e Defesa Social. A pesquisa iniciou-

se na Unidade Ouro Preto, localizada em Belo Horizonte e com capacidade para

atender oito meninos autores de infração penal. À época, eu exercia a função de

coordenação, tendo sido posteriormente transferida para a Unidade Flamengo,

localizada no município de Contagem, com capacidade para atendimento de doze

adolescentes. Em dezembro de 2002, essa Unidade transferiu-se para o bairro

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Santa Terezinha, em Belo Horizonte, mantendo a mesma capacidade de

atendimento e seu público-alvo: adolescentes do sexo masculino.

Em seus artigos 120 e 121, o ECA (BRASIL, 1990) postula que o regime de

semiliberdade pode ser determinado, sem prazo fixo, como medida sócio-educativa

inicial ou como forma de transição para o meio aberto, nos casos em que tenha sido

imposta inicialmente ao adolescente a medida sócio-educativa de internação. Ele

possibilita a realização de atividades externas, independente de autorização judicial.

A escolarização e a profissionalização são obrigatórias, bem como ações voltadas

para a inserção social do adolescente. Somente quando os recursos comunitários

forem precários ou inexistirem, o regime deverá desenvolver programas que

garantam a escolarização e a profissionalização.

Durante a realização deste trabalho junto a adolescentes que cumpriam a

medida de semiliberdade, foi possível constatar que a possibilidade de morrer

violentamente é vivenciada pelos envolvidos na criminalidade como um destino do

qual, muitas vezes, não é possível escapar. Diante da morte de outros adolescentes

que se encontravam em cumprimento de medida ou de algum “parceiro”, é

recorrente a seguinte fala: “poderia ter sido qualquer um de nós”. Suas famílias e

comunidades apresentam geralmente aceitação perante esse “destino”, reagindo ora

com sofrimento, ora com indiferença, sendo esse tipo de morte percebido como um

acontecimento qualquer, inserido na cadeia comum da vida.

Quando ouvi os tiros, eu tava almoçando. Fui lá ver e era meu primo. Ainda tava vivo, com a boca cheia de sangue. Tinha levado uns seis tiros. Eu voltei pra casa pra almoçar e tomar um banho. Essas tretas pra nós é normal. O que revolta é quando matam um pai de família. (Adolescente em cumprimento de semiliberdade, 18 anos)3.

Em dezembro de 2004, quando eu ainda coordenava a Unidade de

Semiliberdade Santa Terezinha, Adalberto, um dos adolescentes que cumpria

medida, foi assassinado quando realizava visita familiar. Esse adolescente

encontrava-se em casa devido às comemorações de fim de ano. A notícia de sua

morte foi recebida por um dos educadores que, bastante abalado, comunicou a

equipe. Diante da postura “resignada” da mãe, que aparentemente não demonstrava

sofrimento, desconfiou-se de que a informação pudesse, inclusive, tratar de um

3 Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 24 nov. 2004.

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“trote”. Os outros adolescentes que cumpriam a medida também não demonstraram

surpresa perante o ocorrido.

Às 8:00 horas a mãe do Adalberto [ou supostamente] ligou para a Unidade a fim de informar que ele havia sido assassinado. Segundo ela, ele fora em uma festa na vizinhança e tendo saído armado correndo atrás de uma pessoa, essa se vira e alveja-lhe o coração. A bala pegara no seu braço, atravessando-o e indo parar no peito. Como ela estava tranqüila, indiferente, julguei muito estranha a situação. Logo após esse telefonema, Hélio [pedagogo] liga para a vizinha de Adalberto, onde não só confirma a história com essa e também com a mãe. [...] Resolvemos dar a notícia referente ao assassinado de Adalberto quando os demais adolescentes chegassem mais tarde para evitar tumultos e contratempos4. [...] Às 16:00 horas só Adriano não havia chegado. Reunimos a turma na sala e Hélio falou-lhes do ocorrido. Embora reflexivos, não se abalaram muito com a notícia, acostumados que são com acontecimentos similares. [...] Ao tirar os pertences do Adalberto do armário, todos se concentraram no quarto e me ajudaram como que carregando alças de um caixão. (Relatório diário dos educadores, 01 jan. 2005)5.

Dois dias após o assassinato de Adalberto, sua mãe foi à Unidade para

buscar os pertences do filho. Seu corpo demonstrava abatimento, mas seu aparente

cansaço e tristeza não destoavam de outros momentos em que já havíamos estado

juntas. Apesar de perceber que ela já prenunciara a morte do filho devido a seu

envolvimento com o crime, talvez “velando-o” enquanto ele ainda estava vivo,

surpreendeu-me o fato de não expressar verbalmente saudades ou tristeza. Disse-

me que já esperava o acontecido e, diante dos objetos de uso pessoal do filho e

talvez devido à sua condição sócio-econômica, ateve-se cuidadosamente ao que

poderia ser reaproveitado por outros membros da família. Entre outras coisas,

encontrou uma escova de dente e levou-a para que seu outro filho pudesse usá-la.

Diante dessa morte e de tantas outras, pudemos perceber que o envolvimento

com a criminalidade instaura um modo diferenciado de ser, de morrer, de sofrer e de

continuar vivendo. O acompanhamento de adolescentes envolvidos em atos

infracionais está repleto de processos subjetivos, sociais, econômicos e políticos,

que nos colocam sempre diante da temática do fim da vida humana. São processos

intensos e, por vezes, contraditórios, que fazem com que a vida e morte se

intercalem a todo momento, devido ao envolvimento com a criminalidade e às

ameaças decorrentes dessa relação. Esses processos estão presentes nas

4 Os adolescentes também haviam sido liberados para estar com suas famílias devido às festividades de fim de ano. 5 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007.

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trajetórias dos adolescentes na maioria das vezes, marcadas por violências,

submissões, pobreza, racismo e miséria. Refletem-se no trabalho sócio-educativo

como uma impossibilidade: muitos projetos construídos não se efetivam.

Em alguns casos, vale destacar, essa impossibilidade está articulada a um

imperativo do mundo atual, que valoriza o “hoje e agora”, como também às vivências

típicas do “mundo do crime”6, que vinculam os sujeitos somente ao momento

presente e a uma dinâmica consumista, reforçando ações violentas dos

adolescentes envolvidos em atos infracionais, pois “o que se ganha fácil, sai fácil”.

Além disso, essa impossibilidade é permeada pela falta de políticas públicas que

dificultam, por parte dos adolescentes, o gerenciamento de suas vidas fora da

criminalidade. Esta discussão será apresentada de forma mais detalhada nos

capítulos dois e três.

Estar diante de um adolescente jurado de morte, deparar-se com evasões,

assassinatos e ameaças faz com que os profissionais que trabalham com o

cumprimento da medida de semiliberdade sejam afetados por sentimentos intensos

vinculados à morte. Por outro lado, possibilita um questionamento de múltiplos

aspectos da prática educativa que produzem, a meu ver, pequenos movimentos-

sinais de morte, que devem ser entendidos, na perspectiva do Institucionalismo,

enquanto movimentos de antiprodução (BAREMBLITT, 1998).

De acordo com Baremblitt (1998), o Movimento Institucionalista ou Instituinte

constitui-se como um aglomerado de escolas não-totalizáveis que têm como

características comuns a busca de processos de autogestão e auto-análise.

A autogestão é o processo que proporciona aos coletivos uma organização

independente no que diz respeito ao gerenciamento de sua vida. As comunidades

instituem-se, organizam-se e estabelecem maneiras livres e originais, produzindo os

dispositivos necessários para gerenciar suas condições e modos de existência. Em

todo processo instituinte-organizante, está presente certa divisão técnica do

trabalho, assim como alguma especialização nas operações de planejamento,

decisão e execução. Essas diferenças podem resultar em diferentes níveis de

hierarquias, mas as mesmas não abrangem escalas de poder. Os conhecimentos

essenciais são compartilhados e as decisões importantes são tomadas

coletivamente. As hierarquias equivalem a diferenças de potência, peculiaridades e 6 Expressão utilizada constantemente pelos adolescentes envolvidos em atos infracionais, para identificar as relações estabelecidas com a criminalidade.

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capacidades produtivas, que objetivam sempre ser funcionais para a vontade

comunitária.

A auto-análise, por sua vez, define-se como processo de produção e

reapropriação, por parte dos coletivos autogestionários, de um saber acerca de si,

suas necessidades, desejos, demandas, problemas, soluções e limites. Esse saber

geralmente encontra-se apagado, desqualificado e subordinado aos saberes

científicos-disciplinários, a serviço das entidades dominantes e de controle, tais

como o capital, os saberes instituídos, o Estado. Além disso, opera com critérios de

verdade e eficiência, imanentes aos valores de tais entidades. Sendo assim,

potências produtivas de todo tipo – naturais, psíquicas e sociais – são capturadas

pelas grandes entidades de controle e reprodução, e suas forças são voltadas contra

si, levando-as à autodestruição.

Nesta dissertação, os conceitos de autogestão e auto-análise estão

fundamentados na esquizoanálise proposta por Deleuze e Guattari (1976). A

concepção de subjetividade encontra-se remetida à idéia do desejo enquanto

produção. Esse desejo age em todo e qualquer âmbito do real, enquanto a

subjetividade se processa através de agenciamentos que podem ser psíquicos,

políticos, midiáticos. Para essa concepção de subjetividade, o desejo não tende à

morte, porque se constitui a essência da vida.

No caso dos adolescentes em conflito com a lei, pode-se afirmar que os

agenciamentos produzem sujeitos que se reconhecem e são reconhecidos pelo

social como “marginais”. Na construção dessa “identidade marginal”, operada por

entidades dominantes e de controle, ocorre a associação entre pobreza, negritude,

vestuário, comunidade em que residem a um possível e provável envolvimento com

a criminalidade. Nessa construção, são implementados movimentos-sinais de morte

que aprisionam esses adolescentes no “mundo do crime”, levando-os a processos

de autodestruição.

Considero que o trabalho sócio-educativo desenvolvido nas Unidades de

Semiliberdade pode contribuir para o rompimento desse processo autodestrutivo,

que culmina com o assassinato de inúmeros adolescentes se operar na produção de

linhas de segmentaridade flexível7, que, ocasionalmente, podem gerar linhas de fuga

(GUATTARI; ROLNIK, 1996). Para isso, o próprio trabalho sócio-educativo deverá

7 Conceito cunhado por Deleuze na obra Mil Platôs (1995), definido posteriormente nesta dissertação.

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desvencilhar-se também de pequenos movimentos-sinais de morte que entram em

cena durante sua execução, caracterizados por uma série de dificuldades –

incompleta efetivação dos direitos estabelecidos no ECA, desvalorização social do

trabalho dos profissionais envolvidos no sistema, permanência de práticas

referendadas pelo Código de Menores8, entre outras, encontradas no desenrolar do

própria atividade sócio-educativa. Tais dificuldades podem ampliar a segregação dos

adolescentes e o fortalecimento das relações e vivências típicas do “mundo do

crime”, que os aproximam efetivamente da morte (RUBIM, 2004).

Diante disso, alguns questionamentos fazem-se pertinentes: que valores

sustentam a vida dos adolescentes envolvidos em atos infracionais? Como estes

percebem a vida e, conseqüentemente, a morte? Como se posicionam perante as

“guerras” e ameaças provenientes das relações estabelecidas no “mundo do crime”?

Como essas experiências constituem esses sujeitos?

A metodologia escolhida para instrumentalizar esta pesquisa, lançando luz

sobre esses questionamentos, foi o estudo de caso. De acordo com Goode e Hatt

(1969, p.422), ela “[...] não é uma técnica específica. É um meio de organizar dados

sociais, preservando o caráter unitário do objeto social estudado”. Para Yin:

[...] o estudo de caso é uma inquirição empírica que investiga um fenômeno contemporâneo dentro de um contexto da vida real, quando a fronteira entre o fenômeno e o contexto não é claramente evidente e onde múltiplas fontes de evidências são utilizadas. (YIN, 1989, p. 23).

Compreender os processos de subjetivação envolvendo adolescentes que

vivenciam situações de ameaça na perspectiva do estudo de caso é relevante não

só pela contemporaneidade desse fenômeno, como também pelo intenso processo

de banalização da vida. Em muitas comunidades, como afirmado anteriormente,

viver ameaçado faz parte do cotidiano, e a possibilidade de uma morte prematura

em decorrência de um homicídio é vivenciada como processo natural, do qual,

muitas vezes, não se pode escapar. Segundo Beato Filho e Marinho (2007), a

população jovem é o grupo mais vulnerável em relação a esse tipo de violência:

A morte violenta é a principal causa de mortes para jovens entre 15 e 25 anos no Brasil. Na década de 1980, morriam 33 jovens para cada grupo de 100 mil vítimas por arma de fogo. Hoje, temos uma taxa de 55 para cada 100 mil habitantes. (BEATO FILHO; MARINHO, 2007, p. 185).

8 O Código de Menores de 1927, também conhecido como Código Melo Matos, antecedeu o ECA e baseava-se na correção e repressão (FROTA, 2002)

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A introdução acelerada das armas de fogo no País durante a década de 1980

foi fator preponderante para o aumento da violência e, sobretudo, dos homicídios.

Inicialmente, eram responsáveis por cerca de 45% dos óbitos, índice que passou

para 77% em 2004. Em grandes capitais, como Rio de Janeiro, Recife, Belo

Horizonte, Vitória e Salvador, esse índice saltou para 80-85% das mortes por

homicídios atualmente (ZALUAR, 2004).

No contato com adolescentes em semiliberdade, percebe-se que, para eles,

morrer prematuramente em decorrência de confrontos com grupos rivais ou com a

polícia é algo certo em suas trajetórias. Essa certeza pode ser observada no relato

que se segue: encontrava-me conversando com os adolescentes Gabriel e Artur na

varanda, quando o adolescente Pedro chegou dizendo: “sonhei que levei um monte

de tiro. Saí correndo para pegar um carro, um ônibus e aí acordei. Parecia real”.

Gabriel comenta: “que sonho mais cabuloso!”, e Artur expressou seu desejo: “eu

queria morrer dormindo”9.

Autores como Deleuze (1976), Guattari (1996) e Foucault (1984) propõem

que a subjetividade é imanente aos processos históricos, não sendo determinada

pelo social, mas tecida por micropoderes em conexão com processos sociais,

culturais, econômicos, midiáticos, ecológicos, que participam de sua constituição e

de seu funcionamento. Para Foucault (1984), a subjetividade dá-se na emergência

dos “jogos de verdade”, por meio dos quais o ser se constitui historicamente como

experiência. Logo, a concepção de subjetividade que orienta esta pesquisa é

contrária à idéia convencional centrada em um “eu” coerente, durável e

individualizado. Segundo Rose:

o eu não deveria ser investigado como um espaço contido de individualidade humana, limitado pelo envelope da pele, que foi precisamente a forma como, historicamente, ele acabou por conceber sua relação consigo mesmo. [...] Se os seres humanos acabaram por se conceber como sujeitos, com um desejo de ser, com uma predisposição ao ser, como alguns sugerem, de algum desejo ontológico, sendo, em vez disso, a resultante de uma certa história e de suas invenções. (ROSE, 2001, p. 144-145).

Baseando-nos nessas concepções, podemos definir processo de subjetivação

como:

9 Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade de Ouro Preto em 24 out. 2007.

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[...] o nome que podemos dar ao efeito da composição e recomposição de forças, práticas e relações que lutam ou operam para tornar os seres humanos formas diversas de sujeitos, capazes de tomar a si mesmos como sujeitos de suas próprias práticas ou de práticas alheias que atuam sobre eles. (ROSE, 2001, p. 143).

Portanto, a imagem atual que o ser humano tem de si mesmo como sujeito de

desejo deve ser compreendida em uma perspectiva histórica, onde linhas de

formação e funcionamento compuseram um modo de subjetivação particular: o

indivíduo. Deleuze e Parnet (1998) afirmam que essas linhas que compõem

indivíduos e grupos são de natureza bem diversa. A primeira é a segmentária ou

dura, constituindo um plano de organização, podendo ser remetida aos processos

identificatórios. No caso dos adolescentes envolvidos em atos infracionais,

destacamos as seguintes identidades: ser macho, ser poderoso, ser temido, possuir

uma arma, ter dinheiro, conquistar mulheres, enfrentar a morte cotidianamente –

além da rígida moralidade que os atravessa. A segunda linha também é de

segmentaridade, entretanto mais flexível, de certa maneira molecular, compondo o

plano de consistência. Traça pequenas modificações, produzindo diferenciações,

devires – conexões, atrações e repulsões que não coincidem com os segmentos,

com as identidades. Já a terceira linha é a linha de fuga, que se processa em

direção a uma destinação desconhecida, não-previsível, não-preexistente,

equivalendo aos processos de desterritorialização.

No que diz respeito aos adolescentes aqui abordados, o medo da morte e os

sentimentos que surgem com este podem proporcionar um funcionamento localizado

na primeira linha. As seguintes falas proferidas diante da morte de um adolescente

ratificam essa afirmação.

Eu sinto muito ódio, sinto muita raiva, penso em matar o cara. Só penso assim: se eu encontrar esse cara, eu vou matar ele também. Fazer a mesma coisa que ele fez com o colega. É isso que acontece. (Adolescente em cumprimento de semiliberdade, 18 anos)10.

Por outro lado, essa morte pode provocar nos adolescentes um

funcionamento em direção à quebra das identidades:

[...] em uma determinada hora, houve um momento especial onde os adolescentes discutiam projetos para 2005, como por exemplo: alistamento militar; passar o aniversário em casa, ou seja, liberado; não voltar mais para o crime; estudar; trabalhar para ajudar a família e até pegar exército para seguir carreira militar. (Relatório diário dos educadores, 05/11/2004).

10 Dados da entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2004.

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A possibilidade de fazer planos desvinculados da criminalidade pode significar

um rompimento com a identidade “ser menor infrator, marginal”. Diante de uma

morte, os adolescentes geralmente movimentam-se cada vez mais em direção ao

cometimento de outros atos infracionais, sendo comuns sentimentos de ódio

relacionados a vingança e retaliação. Esses movimentos favorecem identificações

com o crime: segundo eles, “poderia ser qualquer um de nós”, o que justifica a

necessidade de estar preparado.

Essas linhas de formação e constituição dos sujeitos não podem ser

pensadas de maneira dicotômica. São imanentes, passando umas pelas outras,

como um emaranhado. Nesse processo, o plano de organização – primeira linha –

não pára de trabalhar sobre o plano consistência – segunda linha –, tentando

sempre barrar as linha de fuga, os fluxos, os movimentos de desterritorialização e

desmanche das identidades. É importante mencionar que os movimentos de quebra

de identidades, de desterritorialização, serão capturados, produzindo novas

identidades. No caso dos adolescentes, é fundamental que os movimentos de

reterritorialização construam identidades descoladas do mundo do crime.

Diante dessas considerações, Rose (2001) afirma que a subjetividade não

deve ser pensada como dado primordial ou capacidade latente do ser humano. Ela

não é algo que se constitui a partir da socialização ou pela interação entre o ser

humano – biológico, com capacidades sensoriais, instintivas, sentidos e

necessidades – e um ambiente externo – físico, social, interpessoal – responsável

por uma interioridade psicológica. Todos os efeitos da interioridade psicológica,

juntamente com todas as capacidades humanas, são formados pela ligação dos

humanos a outros objetos, práticas e multiplicidades. São essas diferentes ligações

e relações que compõem os sujeitos como um agenciamento, fazendo com que o

ser humano se relacione consigo em termos de um interior psicológico: “como eus

desejantes, como eus sexuados, como eus trabalhadores, como eus pensantes,

como eus intencionais” (ROSE, 2001, p. 146). Uma forma melhor de ver os sujeitos

“é como agenciamentos que metamorfoseiam ou mudam suas propriedades à

medida que expandem suas conexões: eles não são nada mais e nada menos que

as cambiantes conexões com as quais eles estão associados” (ROSE, 2001, p.146).

A partir dessa concepção de subjetividade, é possível pensar a

experimentação da morte articulada a processos de subjetivação. Para lançar luz

sobre essa questão, torna-se preponderante compreender a maneira como o homem

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colocou-se diante da morte ao longo dos tempos. Embora a presente pesquisa tenha

como temática um modo específico de morrer – o violento –, parte-se do

pressuposto de que a própria morte enquanto condição humana é marcada de forma

singular pelas produções dos homens em diferentes momentos da história.

O percurso histórico envolvendo a temática da morte pode ser compreendido

por meio de uma pequena revisão das pesquisas de Ariès (1989 e 2003) e de

algumas considerações de Elias (2001). Toma-se como ponto de partida a Idade

Média, passando pelas mudanças efetivadas pela sociedade moderna e suas

inúmeras transformações na contemporaneidade.

Segundo Ariès (1989), durante a Idade Média a morte era regulada por um

ritual costumeiro, descrito como benevolência, que acontecia, sobretudo, em casa:

“aguarda-se a morte no leito, jazendo no leito, doente” (ARIÈS, 1989, p. 24). Uma

cerimônia pública era organizada pelo próprio moribundo que a ela presidia. Esse

acontecimento também era marcado pela presença de familiares, padre e médicos.

A câmara do moribundo convertia-se em lugar público. A entrada era livre. Os médicos de finais do século XVIII, que descobriram as primeiras regras de higiene, queixavam-se do superpovoamento dos quartos dos agonizantes. Importava que os parentes, amigos e vizinhos estivessem presentes. Levavam-se as crianças: não há a representação do quarto de um moribundo até o século XVIII que não inclua crianças. (ARIÈS, 1989, p.24).

Desse modo, a morte comum não se apoderava traiçoeira da pessoa. Mesmo

quando acidental, em conseqüência de ferimento, decorrente de alguma doença

como a peste ou mesmo a morte súbita, oferecia algum tempo para ser percebida.

Essa atitude de familiaridade, proximidade com relação à morte implica uma

concepção coletiva do destino: o homem daqueles tempos era profunda e

imediatamente socializado. A família não intervinha para retardar a socialização da

criança. Por outro lado, a socialização não separava o homem da natureza, sobre a

qual ele não podia intervir senão pelo milagre. A familiaridade com a morte é uma

forma de aceitação da ordem natural, ingênua na vida cotidiana e sábia nas

especulações astrológicas. O homem submetia-se, na morte, a uma das grandes leis

da espécie, não pensando nem em se esquivar dela nem em exaltá-la. Aceitava-a

como justa, o que carecia de solenidade para marcar a importância das grandes

fases por que todas as vidas devem passar. Por essas razões, Ariès (apud ELIAS,

2001) denomina a morte familiar como a morte domesticada, em contraponto à

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concepção trágica atual da morte, onde o medo se faz presente. Naquele período,

as pessoas morriam serenas e calmas:

Assim [calmamente] morreram as pessoas durante séculos e milênios... Essa atitude antiga, para a qual era ao mesmo tempo familiar, próxima e amenizada, indiferente, contrasta com a nossa, em que a morte provoca tal medo que não mais temos coragem de chamá-la por seu nome. (ARIÈS apud ELIAS, 2001, p. 20).

Nesse aspecto, Elias (2001) discorda de Ariès (1989; 2003), ao considerar

que a vida nos estados medievais era apaixonada, violenta e, portanto, incerta e

breve, enquanto o ato de morrer causava sofrimento e dor. A questão da brevidade

da vida contrasta-se com o momento atual, em que a medicina avançou o suficiente

para permitir um fim mais pacífico para pessoas que outrora teriam morrido de forma

agonizante – embora as conquistas do século XX e XXI não tenham evitado que

grande parte da população tivesse uma morte dolorosa, violenta e indigna.

Outro ponto que diferencia a concepção atual da morte em relação ao período

feudal é o fato de, naquele tempo, a experiência da morte ter sido menos oculta e

mais familiar. Elias (2001) exemplifica essa diferença com a literatura popular: os

mortos ou a Morte em pessoa são temas constantes em muitos poemas. Em um,

três pessoas vivas passam por um túmulo aberto e os mortos dizem: “o que vocês

são, nós fomos. O que somos, vocês serão” (apud ELIAS, 2001, p.13). Outro

apresenta uma discussão envolvendo a Vida e a Morte: a primeira queixa-se de que

a Morte estaria maltratando seus filhos (apud ELIAS, 2001, p. 13). Outra contribuição

de Elias (2001) em relação à compreensão dos modos de subjetivação relativos à

finitude da vida toca no nível social do medo da morte: no período feudal, apesar de

se temer a morte, não havia muitos meios para controlá-la, o que pode ter facilitado

maior aceitação no que se refere ao fim da vida humana.

Entre os séculos XI e XII, observam-se fenômenos como a representação do

Juízo Final, no fim dos tempos; a transferência do Juízo Final para o fim de cada

vida, no momento pontual da morte; os temas macabros e o interesse pela

decomposição física; o retorno à epigrafia funerária e um início de personalização

das sepulturas. Esses aspectos contribuíram para a construção da concepção de

morte como tragédia, substituindo paulatinamente a idéia de “destino coletivo da

espécie” pela vivência de morte enquanto particularidade (ARIES, 2003).

Durante o século XIX, novas mudanças irão fazer com que a morte se torne

uma experiência individual. Essas mudanças estão atreladas à concepção moderna

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do homem como sujeito universal, detentor de uma subjetividade particular,

marcada, sobretudo, pela razão, que proporciona domínio crescente dos fenômenos

naturais. Neste processo, a intolerância da morte do outro e de si próprio foi

recoberta por um sentimento característico da modernidade: evitar não ao doente,

mas à sociedade e ao círculo de relações o incômodo e a emoção demasiadamente

fortes, provocados pela presença da morte em plena vida, admitida hoje como

“sempre feliz”. Percebe-se, então, o início de um processo de escamoteamento,

onde é instaurada a “morte interdita”, processo acelerado entre 1930 e 1950, pela

transferência do local da morte, fazendo com ela ganhe atributos relacionados ao

individualismo e aos processos de exclusão. Já não se morre em casa, junto da

família e dos amigos, mas no hospital, e só.

A morte no hospital já não é uma cerimônia ritual presidida pelo moribundo no meio da assembléia de parentes e amigos. A morte é um fenômeno técnico obtido pela paragem dos sentidos, isto é, de maneira mais ou menos declarada, por uma decisão do médico e da equipe hospitalar. Na maior parte dos casos, aliás, o moribundo já perdeu a consciência há muito tempo. A morte foi decomposta, segmentada numa série de pequenas fases, das quais, não sabemos, em definitivo, qual é a morte verdadeira, se é aquela que se perdeu a consciência ou aquela em que se cessou a respiração. (ARIÈS, 1989, p. 56).

Neste processo de instrumentalização da morte, assistida de perto pelo saber

médico, percebe-se a presença dos mecanismos de disciplinarização descritos por

Foucault (1998), fazendo com que essa experiência seja normatizada e controlada

por práticas legitimadas cientificamente. Com o saber médico, instaura-se um novo

jeito de morrer, e médico e equipe hospitalar passam a ser considerados os

“senhores da morte”. Essa tentativa de controle fez também com que a morte se

tornasse “inominável”.

Tudo se passa, a partir de agora, como se nem tu nem aqueles que me são queridos, como se as pessoas, enfim, já não fossem mortais. Tecnicamente admitimos que podemos morrer, e tomamos providências em vida para preservar os nossos da miséria. Verdadeiramente, porém, no fundo de nós mesmos, não nos sentimos mortais. (ARIÈS, 1989, p. 66).

O progresso das ciências visando o controle dos fenômenos naturais, que

marca o momento histórico da modernidade, pode ser entendido como tentativa de

fazer com que o sentimento de imortalidade se torne cada vez mais presente em

nossa sociedade. Com o controle crescente do momento da morte, esperava-se,

além disso, o aumento da expectativa e da qualidade de vida, mas esse projeto não

obteve sucesso em sua totalidade.

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Diante das transformações sociais, econômicas, políticas e subjetivas

gestadas na contemporaneidade, uma mudança significativa na atitude dos homens

perante a morte é delineada, sobretudo nos sujeitos inseridos em comunidades onde

a violência deixa suas marcas no cotidiano. A morte não é, ali, vivenciada como algo

inserido na cadeia natural do desenvolvimento humano, marcada por doença,

envelhecimento ou fatalidade. Pode acontecer a qualquer momento, tendo como

locus principal não a casa, como na Idade Média, ou o hospital, como na

modernidade, mas o próprio espaço urbano. Não é mais presidida pelo sujeito ou

mediada pelo médico, mas uma “morte anunciada”, gerenciada por vários senhores -

o traficante, o policial, o adolescente rival com o qual também se estabelece a

“guerra” (conflito violento que culmina em ameaça), vivenciada e temida todos os

dias. De acordo com Carreteiro (2005), o fato de ser pobre, ter pequena participação

no mercado do narcotráfico e viver em uma localidade onde o tráfico tem grande

poder inscreve os sujeitos em um sistema em que a morte se anuncia como destino.

No contexto das relações capitalistas, a capacidade de consumir credencia e

qualifica os sujeitos, interferindo na maneira de vivenciar a vida e a morte. No caso

específico do Brasil, onde a desigualdade social é marcante, isso é ainda mais

visível: muitos se evolvem em ações violentas e encontram na criminalidade a

alternativa de acesso às mercadorias produzidas, colocando suas vidas em risco no

enfrentamento cotidiano da morte.

O aumento da violência e, por conseguinte, das mortes, segue no Brasil o

padrão internacional, articulado às mudanças no consumo observadas como um dos

efeitos do processo de globalização. Tais mudanças favoreceram o aumento

impressionante de certos crimes contra a propriedade – furtos e roubos – e contra a

vida – agressões e homicídios (ZALUAR, 2004). Contribuindo significativamente

para esse crescimento, o processo de transformação acelerado característico da

modernidade (GIDDENS, 1982), balizado na fragmentação social e no consumo,

com forte impacto sobre os jovens. Estes, em seus bairros e cidades, recebem

influências de um imperativo de consumo de um “estilo” marcado pela busca

desenfreada do prazer e do poder, caracterizado por ícones como arma na cintura,

dinheiro no bolso, conquista de mulheres e constante enfrentamento da morte.

A concepção de que a morte deve ser enfrentada está articulada à idéia de

um indivíduo completamente livre, revelando que as práticas do mundo do crime

vinculam-se a um ethos de virilidade centrado na idéia de “chefe”, indivíduo que se

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guia somente por si, não cedendo a ninguém e a nenhum poder superior. Essas

concepções, entretanto, contrastam com a organização hierárquica e militar das

quadrilhas nas quais esses jovens estão inseridos.

A grande maioria das mortes violentas nas comunidades brasileiras onde o

tráfico de drogas encontra-se organizado é decorrente de embates travados entre os

próprios sujeitos envolvidos na criminalidade, com causas diversas: interesses

comerciais, rixas, rivalidades pessoais. Além dessas causas, outras ratificam uma

motivação cada vez mais torpe para dar fim a uma vida, como um “olhar

atravessado” ou uma suspeita de traição, denunciando a existência de laços cada

vez mais frágeis nas relações humanas. As justificativas apresentadas pelos

adolescentes para sua inserção no mundo do crime organizam-se a partir do

paradigma pós-moderno, em que imagem e visibilidade são fundamentais: “pela

sensação”, “pela emoção”, “para fazer onda”, “para aparecer no jornal” são algumas

das respostas frequentes. A busca pela imortalidade está vinculada à fama midiática

assim obtida (ZALUAR, 1997) e, para isso, arriscam suas vidas em uma atitude

compulsiva com relação a seus atos criminosos.

Nesse circuito criminal, a morte mantém, ao mesmo tempo, caráter público,

pois acontece primordialmente na rua, e caráter individual, tendo como marca a

presença de um corpo estendido no chão, imagem cada vez mais corriqueira em

alguns bairros de cidades brasileiras. Sua representação pode ser remetida a um

“destino coletivo de quem escolhe o crime”, tornando-se um acontecimento marcado

pela aceitação, pela resignação ou por tentativas de desvio.

Diante dessas constatações, uma análise aprofundada sobre este universo

justifica o presente estudo, buscando contribuir com a informação e compreensão de

fenômenos que favorecem, atualmente, a morte prematura de jovens. Além disso,

nota-se a escassez de estudos acadêmicos que priorizem a temática em questão –

consultando sites de busca da internet11, nenhum trabalho articulando mortes

violentas e a medida sócio-educativa de semiliberdade foi encontrado. Geralmente,

os trabalhos envolvendo o adolescente autor de ato infracional enfocam legislação,

atendimento, família, relação com substâncias entorpecentes, causas da violência,

11 Alguns dos sites consultados foram: portal do Instituto Brasileiro de Informações em Ciências e Tecnologia (IBICT), portal da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), site da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e portal “Scientific Electronic Library Online” (Scielo). Último acesso em jan. 2009.

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entre outros, e a medida sócio-educativa privilegiada em boa parte dessas pesquisas

é a de internação. A questão das mortes violentas é abordada quase sempre de

forma tangenciada: admite-se que os adolescentes envolvidos na criminalidade

morrem muito e cedo, mas pouco se problematiza a rede de relações que

proporciona a naturalização da morte violenta enquanto destino.

Por fim, o presente estudo justifica-se pelo aumento do número de homicídios

no município de Belo Horizonte. Segundo Zaluar (2004), este aumento tem sua

ascensão no final dos anos 1990, com tendência a superar os dados referentes à

cidade do Rio de Janeiro.

Diante desse universo, que envolve não só a facilidade de acesso a armas de

fogo como também uma cultura da violência disseminada em alguns segmentos

sociais e a falta de acesso a políticas públicas e programas sociais, entre outros, a

escolha do estudo de caso como metodologia de trabalho tornou-se ferramenta

importante para uma maior qualidade deste trabalho, por meio da utilização de

diferentes fontes de evidência, típica desse modelo de estudo:

� resgate de registros escritos coletados durante a intervenção em um

estabelecimento de semiliberdade, passo fundamental para direcionar

a coleta de dados, uma vez que, durante os cinco anos de minha

atuação junto à semiliberdade, inúmeros assassinatos foram

presenciados e, com eles, a relação dos adolescentes e profissionais

frente à temática da morte;

� pesquisa nos arquivos de uma das Unidades no período de 2000 a

2005. A escolha da Unidade esteve intimamente ligada à familiaridade

que mantenho com os fatos narrados nos documentos, já que foi

naquele estabelecimento que trabalhei mais recentemente. Houve

dificuldades na localização dos arquivos. Inicialmente, pensou-se que

estariam na Unidade, mas lá só havia arquivos referentes aos anos de

2006 e 2007. O educador que esteve envolvido na procura desses

documentos mencionou, então, a possibilidade de os mesmos estarem

na Inspetoria. Foram encontrados em um depósito para material de

limpeza, empoeirados e mofados. A leitura trouxe lembranças,

sentimentos de alegria e tristeza referentes aos momentos de

convivência com os adolescentes. Apesar de estarem esquecidos,

“mortos”, foi possível percebê-los como instrumentos para fazer viver;

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� pesquisa de campo com observação participante e entrevistas semi-

estruturadas com quatro profissionais da semiliberdade (APÊNDICE

A); entrevistas semi-estruturadas com dois adolescentes do sexo

masculino (APÊNDICE B) e entrevista não-estruturada em grupo com

seis adolescentes do sexo masculino, tendo como base a discussão do

filme “Escritores da Liberdade” (FREEDOM WRITERS, EUA, 2007)

(APÊNDICE C).

No primeiro contato estabelecido com o diretor e as coordenadoras das

Unidades de Semiliberdade visando a apresentação da pesquisa, foram

estabelecidos dias, horários e forma da coleta de dados. Posteriormente, foi

realizado o primeiro contato com profissionais e adolescentes da Unidade de

Semiliberdade Santa Terezinha. Estavam presentes três educadores e a pedagoga

da Unidade. Os profissionais foram receptivos - alguns haviam sido meus colegas de

trabalho, o que contribuiu para que toda a equipe se mostrasse bastante disponível.

Nessa primeira reunião, foram discutidos alguns encaminhamentos de adolescentes

para cursos profissionalizantes. Marcou-se a importância desses encaminhamentos

estarem conectados a suas expectativas. Um dos educadores apresentou-me aos

demais como ex-coordenadora da Unidade e mestranda da PUC-Minas. Elogiou

minha colaboração e trouxe para a discussão alguns adolescentes “bem sucedidos”

atualmente, a partir de “bons encaminhamentos” realizados pela equipe. Foi aberto

um espaço para a apresentação da pesquisa. Nesse momento, meu ex-colega

recordou-se de alguns adolescentes assassinados, mencionando que, em um

pequeno levantamento, haviam chegado ao número total de trinta e dois.

Após essa reunião, realizou-se o “Bom dia”, ritual de todas as entidades

vinculadas à Inspetoria São João Bosco. Nas Unidades de Semiliberdade, acontece

durante o café da manhã. É um momento de reflexão, oração e comemoração. A

Unidade tinha, à época, seis adolescentes em cumprimento de medida. Um deles

afirmou reconhecer-me do velório do pai de uma ex-colega de trabalho. Lembrei-me

de todo o sofrimento vivenciado naquele dia, o que evidenciou um dos aspectos da

pesquisa: a atual concepção trágica da morte, permeada por medo (ARIÈS, 1989;

2003). Como se vê, o fato de ter sido coordenadora das Unidades também facilitou o

estabelecimento do vínculo com os adolescentes.

É importante ressaltar que o fato de ter voltado a meu antigo local de trabalho

após longo período, deparando-me com situações vividas anteriormente que

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envolvem instabilidade, novidade e surpresa causou-me certo estranhamento.

Percebi como a dinâmica da violência e da morte se faz presente naquele local: ao

mesmo tempo em que tudo está tranqüilo, algo sério e violento envolvendo brigas e

ameaça entre os adolescentes pode acontecer, e os profissionais devem ficar

atentos a isso. Uma brincadeira considerada desagradável, uma palavra, um olhar,

um bater nas costas podem desencadear atos violentos e morte.

A perspectiva da tranqüilidade, no entanto, é marcada de forma veemente

pelos profissionais12 em seus relatórios. Talvez isso aconteça por necessidade de

negar o conflito, a morte. Desse modo, pode-se afirmar que a lógica da violência se

faz presente durante a realização desse tipo de trabalho, e negar essa lógica torna-

se condição para o desenvolvimento das práticas sócio-educativas.

Hoje a casa está com um clima bom, apesar da chuva. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 09/01/2004).13

Graças a Deus está tudo tranqüilo! Simão foi juntamente com Mafalda [técnica] e os adolescentes do Ouro Preto para a academia. Correu tudo bem. Os que ficaram aqui permaneceram tranqüilos assistindo aos filmes que foram locados. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 10/01/2004)14.

Boa noite!!! Bom dia!!! Hoje fui ate à PUC para saber e confirmar os dias de atendimento odontológico para os adolescentes, mas estará funcionando somente a partir de 19/01. Retornarei nesse dia. Bom, depois cheguei a Unidade e estava tudo tranqüilo. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 12/01/2004)15.

Recebemos o plantão às 7:00 com a casa bastante tranqüila, assim demos início as atividades. [...] o dia transcorreu bastante tranqüilo, salvo alguns transtornos, mas tudo na santa paz de Dom Bosco. Fiquem com Deus e até breve. (Relatório diário dos educadores, 17/02/2004)16.

12 O quadro funcional das Unidades de Semiliberdade é composto por profissionais de nível superior formados em direito, psicologia, assistência social, terapia ocupacional e pedagogia, chamados de técnicos; profissionais de nível médio, os educadores diretos (de acordo com a concepção salesiana, todos os profissionais são educadores); estagiários das mais diversas áreas; voluntários. Os diretores das Unidades são religiosos vinculados aos salesianos. 13 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007. 14 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007. 15 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007. 16 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007.

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Iniciamos as atividades com a Unidade relativamente tranqüila. (Relatório diário dos educadores, 10/05/2004)17.

A necessidade de pedir proteção a Deus também é recorrente na realização

do trabalho sócio-educativo. Devido ao envolvimento dos adolescentes em ações

criminais ou desavenças, são recorrentes situações de ameaça nas Unidades.

Essas ameaças fazem com que as vidas dos profissionais também fiquem expostas

e, como conseqüência, os próprios profissionais se sintam ameaçados. Recordo-me

de um adolescente que residia na cidade de Ouro Preto e viajava para lá

periodicamente, a fim de visitar sua família. Como era ameaçado na região central

da cidade, definiu-se que ele não poderia embarcar no ônibus na rodoviária,

localizada nessa área. Deveria então pegar o ônibus em outro local, em horários

diferenciados, em companhia de um educador. Muitas vezes, houve resistência e

temor na realização dessa tarefa. Na tentativa de proteger uma vida, outra era

colocada em risco, e os profissionais sabiam bem disso. Nesse e em outros

momentos em que o educador temia também ser assassinado, era comum

expressarem seus sentimentos da seguinte forma: “eu tenho família, filho pra criar”.

É comum também pessoas conhecidas e estranhas fazerem ameaças na

porta das Unidades ou por telefone, conforme os relatos que se seguem:

A partir das 17 horas recebemos vários telefonemas da Unidade Ouro Preto do educador Jeremias. Ele nos avisou que havia lá fora um adolescente evadido por nome de Fernando. Esse estava armado e dizia estar vindo para atirar em Maurílio e Murilo e outro por apelido “Monstrão”. Ambos haviam “zoado” ele quando estava acautelado no Ouro Preto, “zoação” desrespeitosa por sua opção sexual. (Relatório diário dos educadores, 16/01/2005)18.

[...] Às 14:40 o telefone tocou e alguém queria falar com o Jonas [adolescente]. Fiquei surpreso, pois pensei ser alguém da família e perguntei quem queria falar com o adolescente e a resposta foi a seguinte: é um inimigo dele aqui da “quebrada”, tá ligado? Respondi que Jonas não poderia atendê-lo, além de não estar na Unidade. O sujeito ficou nervoso e disse: fala pro Jonas pagar o que tá devendo aqui na “quebrada”, senão eu vou pular nele aí, “tá ligado”? (Relatório diário dos educadores, 23/01/2005)19.

17 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007. 18 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007. 19 Pesquisa de campo realizada nos arquivos da Unidade de Semiliberdade Santa Terezinha, em 2007.

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Os educadores, como mostram os relatórios, colocam suas vidas na mão de

Deus, pedido de proteção que parece tentativa de afastar ou negar a possibilidade

da ocorrência de ameaça ou assassinato.

As contribuições dos educadores entrevistados foram fundamentais. Além de

acrescentarem informações pertinentes à temática da morte envolvendo

adolescentes em conflito com a lei, suas percepções foram fundamentais para

esclarecer certas relações dos adolescentes com a criminalidade. O fato de estarem

implicados com o tema a partir de outro referencial possibilitou a desmistificação de

questões trazidas pelos adolescentes, sobretudo no que diz respeito ao medo da

morte.

A proposta de realizar tanto entrevistas individuais como em grupo com os

adolescentes teve como objetivo favorecer uma produção mais complexa de dados.

Partiu-se do pressuposto de que diferentes processos de subjetivação são

deflagrados quando os sujeitos encontram-se sozinhos ou reunidos. De fato, nas

entrevistas individuais observou-se maior reflexão no que tange à questão central da

pesquisa (processos de subjetivação envolvendo adolescentes que vivenciam

situações de ameaça devido a relações com a criminalidade), embora em alguns

momentos haja o uso de “respostas prontas” na tentativa de justificar a inserção no

crime. Já na entrevista realizada com o grupo, observou-se pouca crítica dos sujeitos

e a necessidade de afirmação de certa "conduta marginal”. A vivência da

criminalidade exige uma “identidade” – virilidade, poder, prestígio –, e os

adolescentes, quando em grupo, tentaram reafirmá-la de forma mais veemente.

A proposta inicial era que as entrevistas individuais fossem realizadas com

todos os adolescentes em cumprimento de medida. Geralmente, a Unidade de

Semiliberdade Outro Preto atende oito adolescentes, sua capacidade máxima.

Entretanto, só foi possível a realização de duas entrevistas individuais, devido à

assertiva existente no grupo de que, no mundo do crime, “falar demais” pode gerar

morte, mesmo diante da explicação sobre o caráter confidencial dos registros da

pesquisa. A entrevista em grupo, por sua vez, foi realizada com seis adolescentes –

devido à dinâmica da Unidade, dois se encontravam em atividades externas.

A pesquisa de campo com a observação participante foi o momento mais

significativo para a obtenção dos dados. As entrevistas instituíram uma oportunidade

específica para os adolescentes falarem da possibilidade de morrerem assassinados

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prematuramente. Houve grande dificuldade em falar da própria morte, bem como

das ações criminais que os colocam em risco.

Essa situação pôde ser observada durante o trabalho de campo. Certo dia,

cheguei à Unidade e os adolescentes ouviam rap na varanda, enquanto

conversavam sobre assuntos variados: meninas, escola, ser jovem. Em determinado

momento, perguntei como eles se imaginavam com 31 anos, minha idade na época.

Um deles respondeu: “é difícil pensar, posso estar morto. É a guerra”. Mais tarde, na

mesma conversa, ele disse: “ano que vem, se eu estiver solto e não estiver morto,

vou à praia”. Diante dessa fala, os adolescentes mencionaram a dificuldade de fazer

planos devido às guerras. Outro adolescente, que havia chegado dançando, afirmou

que o rap “doido” que estava tocando era “Furacão 2000”. Um deles diz: “ano 2000:

eu tava no céu, nem tava no crime. Agora é só morte”. Pela relação com a

criminalidade, os adolescentes experimentam e vivenciam situações de morte em

seus cotidianos, condição reafirmada a todo momento não só no presente, mas

também projetada em um futuro próximo20.

O medo de delatar alguém ou ser identificado também se evidenciou na

pesquisa. Segundo um dos adolescentes, “no mundo do crime é muito perigoso

saber demais”21 e, por conseguinte, as entrevistas punham em questão o medo de

falar, ser descoberto e colocar-se em situação de ameaça. A observação

participante, no entanto, permitiu o estabelecimento de um vínculo entre

pesquisadora e sujeitos da pesquisa. A percepção das situações de ameaça

vivenciada pelo grupo tornou-se mais evidente nos momentos de informalidade ou

atividades cotidianas vinculadas à dinâmica do trabalho sócio-educativo: “Bom dia”,

“Faxina”, “Formação Humana e Cidadania”, entre outras. Essas atividades têm como

objetivo trabalhar valores humanos, ético, políticos, auxiliando-os no processo de

desvinculação da criminalidade, tendo como instrumentos recursos artísticos,

visuais, debates, atividades culturais e de lazer, entre outras.

Segundo Becker, por meio da observação participante

[...] o observador se coloca na vida da comunidade de modo a poder ver, ao longo de um certo período de tempo o que as pessoas normalmente fazem enquanto seu conjunto diário de atividades. Ele registra suas observações o

20 Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade Ouro Preto em 03 out. 2007. 21 Observação participante. Pesquisa de campo realizada na Unidade de Semiliberdade Ouro Preto em 03 out. 2007.

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mais breve possível depois de fazê-las. Ele repara nos tipos de pessoas que interagem umas com as outras, o conteúdo e as conseqüências da interação, e como ela é discutida e avaliada pelos participantes e outros depois do evento. Ele tenta registrar esse material tão completamente quanto possível por meio de relatos detalhados de ações, mapas de localização de pessoas enquanto atuam e, é claro, transcrições literais das conversações. (BECKER, 1993, p. 120).

Os dados coletados durante a observação participante transformaram-se em

um diário de campo, onde a relação dos adolescentes com a criminalidade, suas

guerras e os processos de subjetivação deflagrados nesse contexto, bem como

aspectos do trabalho sócio-educativo perpassados por perdas e mortes foram

registrados. Tais registros, como instrui Becker (1993), foram feitos logo após a

realização das observações. A análise dos dados privilegiou o aspecto qualitativo,

oferecendo elementos para o questionamento das concepções políticas e subjetivas

que fundamentam as práticas sócio-educativas, além de suas formas naturalizadas

de perceber a vida e a morte, que podem manter os adolescentes vinculados à

criminalidade e, por conseguinte, reforçar a experimentação deste “destino”.

A pesquisa qualitativa responde a questões muito particulares. Ela se preocupa, nas ciências sociais, com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Ou seja, ela trabalha com um universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (MINAYO, 1994, p.21-22)

A presente pesquisa foi instrumentalizada a partir da análise temática de

conteúdo, que consiste em “isolar temas de um texto e extrair as partes utilizáveis,

de acordo com o problema pesquisado, para permitir sua comparação com outros

textos colhidos da mesma maneira” (RICHARDSON apud KIND, 2007, p. 2). Ela

pode ser realizada artesanalmente, por meio da leitura de todo o material coletado,

ou com softwares que, por exemplo, localizam os registros que se repetem (KIND,

2007). Aqui, o processo de análise dos dados foi feito de forma artesanal.

Os textos registrados feitos a partir da coleta de dados podem ser organizados em categorias e subcategorias, que expressem temas identificados. Nesse segundo momento o pesquisador iniciará o processo de categorização, abarcando a releitura de todo o material identificando unidades temáticas que podem ser definidas como expressões que representem núcleos de sentido sobre o tema investigado. (KIND, 2007, p.2-3)

Os estudos pós-estruturalistas desenvolvidos por Foucault, Deleuze e

Guattari e as contribuições da Análise Institucional também foram utilizadas nesta

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pesquisa. Elas não têm como objetivo a busca e a aplicação de um método de

acordo com as aspirações positivistas – o sentido de sua “metodologia” tange-se

pela ética. Foucault (apud FERREIRA NETO, 2002) diz tratar-se do desprender-se

de si mesmo, constante processo de “modificar o que se pensa e o que se é”, a

partir do encontro com novas questões concretas que permitem a construção de um

modo diferente de pensamento.

A proposta de escrever um capítulo metodológico orientado pelas

contribuições foucaultianas e pela Análise Institucional teve por norte esses

pressupostos. Buscou-se uma formalização inicial que auxiliasse no questionamento

acerca dos processos de subjetivação deflagrados a partir do momento em que um

adolescente encontra-se ameaçado, como também as práticas sócio-educativas,

que facilitam ou não a aproximação dos adolescentes a contextos de morte. Trata-se

menos de uma explicitação do método utilizado e mais do apontamento da

perspectiva adotada. Assim, pode-se definir “método” como o caminho percorrido.

É fundamental atermo-nos às freqüentes objeções dirigidas a pesquisas

amparadas nesse tipo de metodologia. Durante a apresentação da presente

pesquisa no local onde ela foi realizada, questionou-se a objetividade da mesma,

pela escolha metodológica que a orienta. No entanto, uma não-formalização a priori

não significa uma impossibilidade de sistematização a posteriori. Debruçar-se na

esfera do parcial não é equivalente a trabalhar na desordem e no aleatório, mas a

potencializar a criação, a construção e a afirmação do método como caminho a ser

percorrido. Significa, antes de tudo, contemplá-lo como bússola, norte que orienta os

passos a serem dados.

O problema investigado neste estudo tem relação estreita com minha

experiência profissional, convocando-me ao trabalho enquanto pesquisadora.

Foucault empreendia a associação entre o tema da pesquisa e sua experiência de

vida, afirmando que essa empreitada exige implicação do pesquisador em um

trabalho sobre si mesmo. A pesquisa não se desenvolve aquém da subjetividade do

pesquisador, deflagrando novos processos de mudança, algo inseparável do próprio

processo de investigação (FERREIRA NETO, 2002). A partir dessa postulação, a

noção de análise de implicações tangenciada pela análise institucional encontra

sentido:

A noção de implicação, trabalhada pelos analistas institucionais refere-se não a uma redução do impacto que uma determinada situação tem sobre a

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história do pesquisador, nem ao fato de considerar-se exterior ao processo em curso (isto é, saber incluído no campo de pesquisa). Menos ainda algo que sirva para simplesmente satisfazer a vaidade pessoal com o pretexto de reconhecer o direito daqueles que o ouvem de saberem com quem falam. A implicação não é uma questão de vontade, de decisão consciente. Ela inclui uma análise do sistema de lugares, o assinalamento do lugar que ocupa, que busca ocupar e do que lhe é designado ocupar com os riscos que isto implica. (BARROS, 1994, p.308-309).

Em “Os intelectuais e o poder”, Deleuze (1998) utiliza a noção de Foucault, de

que as teorias devem ser compreendidas como “caixa de ferramentas”: “é preciso

que sirva, é preciso que funcione” (FOUCAULT, 1998, p.71). Compara-se esse

conceito ao entendimento que Proust tinha de sua própria obra: “tratem meus livros

como óculos dirigidos para fora e se eles não lhe servem, consigam outros,

encontrem vocês mesmos seu instrumento, que é forçosamente um instrumento de

combate” (FOUCAULT, 1998, p.71). Essa assertiva deleuziana é referência para se

pensar, na presente pesquisa, a relação entre teoria e trabalho de campo. As

construções teóricas foram implementadas a partir de problemas reais que os

adolescentes vivenciam – o tráfico, as guerras, a certeza de que se irá morrer cedo.

Não há, pois, primazia de um sobre o outro.

Outro instrumento que tomo emprestado dessa “caixa de ferramentas” são os

analisadores. Segundo a Análise Institucional, eles podem ser inventados ou

produzidos “espontaneamente” no jogo de forças onde se instauram os processos

institucionais. São acontecimentos que produzem rupturas, desmanches, que

catalisam fluxos, que produzem análise, que decompõem (BARROS, 1994). As

ameaças sofridas e protagonizadas por alguns adolescentes que estiveram

acautelados nas Unidades, bem como os assassinatos que vitimaram vários outros

foram tomados a partir da perspectiva dos analisadores. Esses fatos produziram nos

profissionais da semiliberdade um questionamento a respeito de toda a organização

do trabalho das Unidades em diferentes aspectos: estrutura, relação com a Lei,

práticas sócio-educativas, relação entre os profissionais e suas especificidades

teórico-práticas. Ao promover um questionamento em relação ao trabalho sócio-

educativo desenvolvido na semiliberdade, seus atravessamentos e possibilidades,

vislumbra-se o desmanche dos diversos territórios que foram efetivados e, muitas

vezes, aproximam os adolescentes a contextos de morte.

A recusa do lugar de neutralidade do analista/pesquisador fez romper a

dicotomia entre sujeito que conhece e objeto a ser conhecido. Essa relação permite

argumentar que sujeito e objeto de conhecimento se produzem ao mesmo tempo, no

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mesmo processo, a partir de suas relações, não estando ligados por hierarquias e

submissões. Não há, pois, conhecimento-em-si, já que não existem seres-em-si,

mas configurações que se apresentam como resultado de determinadas condições

sócio-histórico-políticas.

Considerando o projeto foucaultiano que privilegia o viés da genealogia,

torna-se preponderante entendê-la como atitude de reconhecimento dos contextos

que determinaram nossos modos de existência, e afirmação da possibilidade de não

mais ser, fazer ou pensar o que somos, fazemos ou pensamos, proporcionando o

avanço do trabalho contínuo e insistente da liberdade (FOUCAULT, 1998). A

proposta foucaltiana busca investigar os acontecimentos da história, seus abalos e

surpresas, suas vacilações e embates, suas intensidades e enfraquecimentos. Por

isso, a análise genealógica não tem como objetivo a busca da origem (Ursprung),

mas a proveniência (Herkunft) e a emergência (Enteshung). Foucault (1998) afirma

que proveniência remete a marcas sutis e singulares, que se entrecruzam de

maneira emaranhada, constituindo uma complexidade marcada por um conjunto de

diferenças. Sua análise faz desabar a identidade, potencializando diversos

acontecimentos, desvios, falhas, acidentes que a formaram. Onde o Eu conclama

para si uma identidade coerente, a análise da proveniência faz ruir sua síntese

vazia. O genealogista encontra “na raiz daquilo que nós conhecemos e daquilo que

nós somos – não a verdade e o ser, mas a exterioridade do acidente” (FOUCAULT,

1998, p. 21).

Por isso, esta pesquisa privilegia o corpo, superfície de inscrição dos

acontecimentos: “a genealogia, como análise da proveniência, está portanto no

ponto de articulação do corpo com a história. Ela deve mostrar o corpo inteiramente

marcado de história e a história arruinando o corpo” (FOUCAULT, 1998, p. 22). Nos

processos de subjetivação envolvendo adolescentes envolvidos com a criminalidade,

conclui-se, seus corpos são superfícies de inscrição dos acontecimentos. Ouve-se

desses adolescentes relatos de agressões e abusos, sendo o corpo tratado como

objeto aprisionado a contextos de violência. De acordo com Rose, o conceito de

corpo é um fenômeno histórico: “nossa presente imagem dos delineamentos e

topografia do corpo- seus órgãos, processos, fluidos vitais e fluxos – é o resultado de

uma história cultural, científica e técnica particular” (ROSE, 2001, p.108). Esse

conceito está articulado à maneira como pensamos tradicionalmente a subjetividade:

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algo coerente, durável, em que o eu é entendido como limitado pelo envelope da

pele, ou seja, o corpo.

É possível, pois, que não exista essa coisa de “o corpo”: um envelope limitado que pode ser revelado para conter no seu interior uma profundidade e um conjunto de operações que funcionem à maneira de uma lei. [...] Em vez, de falar de “o corpo”, precisaríamos analisar apenas como um particular “regime de corpo” foi produzido, descrevendo a canalização de processos, órgãos, fluxos, conexões, bem como o alinhamento de um aspecto a outro. Em vez de “o corpo”, tem-se, pois, uma série de “máquinas” possíveis, agenciamentos de humanos com outros elementos e materiais. [...] O corpo é, pois, “não uma totalidade orgânica que é capaz de expressar globalmente a subjetividade, uma concentração de emoções, atitudes, crenças ou experiências do sujeito, mas um agenciamento de órgãos, processos, prazeres, paixões, atividades, comportamentos, ligados por tênues linhas e imprevisíveis redes a outros elementos, segmentos e agenciamentos. (ROSE, 2001, p.170)

A maneira como os adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa

de semiliberdade se relacionam com seus corpos está, muitas vezes, agenciada por

suas experiências de rua, caracterizadas por explorações, violências. Segundo

Ferreira (1993), no corpo são impressas cicatrizes, marcas que denunciam uma

relação submissa a contextos desenhados por trocas, onde ele se torna mercadoria,

possibilidade de ascensão no grupo e/ou sobrevivência. Para Diógenes (2000), no

corpo dos adolescentes enuncia-se a escrita da violência – corpos marcados a bala,

cortes, furos, fenda, cicatrizes, tatuagens –, registros que podem dispensar o uso da

linguagem oral. Nesses corpos, o código da violência está cravado, visível e

naturalizado, uma vez que essas marcas constituem “geografia” particular no

território-corpo. Não se fala sobre violência: fala-se sobre mortes, roubos,

“enxames”, “parada”. A violência é o olhar do “outro” sobre a natureza das ações

praticadas entre os sujeitos, um olhar que se concentra nos atos e desvia-se no

corpo como “superfície de escrita”.

É também no corpo que está registrado o “rito de passagem”, do jovem

“gado”, "bicho playboyzinho”, “otário” para os “iniciados”. Clastres (apud Diógenes,

2000) ressalta a importância, nas sociedades primitivas, dos ritos de passagem para

a idade adulta, estando eles quase sempre relacionados ao corpo: um corpo

“marcado” é um corpo “iniciado”, inserido em um campo de significados produtor de

novos códigos de linguagem, de sinais de inserção e de aceitação nesse palco

demarcado de sociabilidade. Muitas vezes, é através desse corpo “marcado”,

“furado”, que o adolescente assume um lugar no grupo, sendo reconhecido como

sujeito.

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A maneira como os adolescentes em cumprimento de medida sócio-educativa

de semiliberdade se relacionam com seus corpos está, muitas vezes, agenciada por

suas experiências de rua, caracterizadas por explorações e violências. Na admissão

de um novo elemento no grupo de adolescentes, principalmente nos com trajetória

de rua, é na superfície do corpo que se inicia o processo de pertencimento. É com

um corpo marcado, torturado, amordaçado que o adolescente é convidado a dar

provas de sua lealdade, esperteza e tolerância à dor. Selecionam-se assim os atores

que, em uma situação de conflito ou pressão policial, não seriam delatores. Deve-se,

por exemplo, oferecer as mãos a um dos componentes do grupo, que irá esfregá-la

até ferir, observando se o novato suporta silenciosamente a tortura. O maior grau de

tolerância confere um lugar privilegiado no grupo (DIÓGENES, 2000). Por outro lado,

a marca corporal também pode ser a porta de saída de um grupo, pois as traições

são muitas vezes rechaçadas através de castigos corporais. Também é pelo corpo

que se identifica o tempo de permanência de um adolescente na rua: os mais sujos

e maltratados indicam maior “adaptação” e conhecimento da rua, proporcionando ao

sujeito um lugar de destaque no grupo. Tal identificação traz, ao mesmo tempo, um

lugar de liderança e um aprisionamento do corpo ao espaço urbano – vemos surgir

no contexto social o “menino de rua”, o “pivete”, e o asfalto passa a ser o seu lar.

Além desse corpo marcado visivelmente, outros adolescentes carregam

marcas bem mais sutis, não menos violentas. É o corpo institucionalizado, isento de

movimentos autônomos, afastado da possibilidade de novas experimentações. Um

corpo objeto, sujeitado, desapropriado de descobertas afetivas.

Retomando as contribuições foucaultianas acerca da genealogia, é importante

destacar o que se nomeia por emergência (Enteshung). Em “Nietzsche, a

Genealogia e a História” (FOUCAULT, 1998), esse conceito remete-se a um ponto

de surgimento: é o começo e a lei singular de um acontecimento que, por sua vez,

produz-se por um jogo de forças, afrontamento, confronto, não como campo fechado

onde adversários travam uma luta, mas como não-lugar, interstício onde se

concretiza a emergência e, com ela, os acontecimentos, com toda a sua potência. O

confronto entre as forças é decorrente dos processos de dominação, cujos

procedimentos e regras se diversificam em cada momento da História. A emergência

aprecia a potência do acontecimento, desprivilegiando as certezas e as regras. A

partir do entendimento da genealogia como pesquisa da emergência e da

proveniência e não da origem metafísica, Foucault (1998) busca, em seguida,

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diferenciá-la da “história dos historiadores“, privilegiando o devir, a descontinuidade,

o acontecimento. Desnaturalizar a história e inseri-la no campo das práticas sociais

estabelece nova relação entre os sujeitos e suas existências, ancorada em

possibilidades e não em certezas.

Considerando os adolescentes e suas histórias de vida, é comum encontrar

explicações para suas trajetórias marginais a partir de histórias pregressas,

marcadas por arranjos familiares distantes do imaginário hegemônico, por pobreza,

não-acesso aos bens de consumo, entre outros, vistas como condições

fundamentais para o envolvimento com a criminalidade. O passado é utilizado para

explicar e reconhecer o presente. A vida não é vista a partir da perspectiva da

construção, mas da determinação, e o sujeito é compreendido como portador de

certa “identidade”, nesse caso, a “marginal”. A perspectiva da presente pesquisa vai

na contramão desse ideal, pois compreende a vida enquanto processualidade,

multiplicidade.

Outro aspecto que merece ser destacado da obra de Foucault (1998) é a

acoplagem dos saberes eruditos com os saberes dominados, promovendo a

insurreição destes últimos. Essa acoplagem está intrinsecamente relacionada à

abordagem metodológica proposta por este trabalho, privilegiando o saber do

próprio adolescente, convocado a “contar a sua história” nas entrevistas. Os saberes

dominados são conteúdos históricos presentes, mas desconsiderados no interior dos

estabelecimentos e das organizações. Ao serem reativados intensificam as lutas

promovendo processos instituintes. Saberes dominados caracterizam-se também

por serem não-competentes, não-conceituais, não-detentores da legitimidade e

reconhecimento dos saberes formais e científicos. É um saber da pessoa, do

psiquiatrizado, do doente, do adolescente em conflito com a lei. Não pode,

entretanto, ser caracterizado como um saber do senso comum, pois é não-unânime

e diferencial, pertencente a uma esfera particular e local. Ao genealogista cabe fazê-

los falar, pois é sua enunciação própria e local fator crucial para a recomposição das

relações de força que os constituem.

Levando em consideração esse aspecto da obra foucaultiana, esta

dissertação tomou corpo a partir do ponto de vista de diferentes sujeitos:

adolescentes envolvidos no processo sócio-educativo, profissionais que atuam com

esses adolescentes, além do olhar da própria pesquisadora, suas memórias e

observações atuais. Essa escolha fundamentou-se no entendimento de que este

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fenômeno atual – a morte prematura de jovens devido a seu envolvimento com a

criminalidade – deve ser visto como complexidade multifatorial. A aposta é que

diferentes percepções possam funcionar como um dispositivo que favoreça a análise

desse fenômeno.

A genealogia recusa a classificação acadêmica de método para produção do

conhecimento, sendo protagonista das lutas a serem travadas e intervindo com todo

o vigor na correlação de forças presentes. Por esse motivo, Foucault (1998)

considera-a uma tática. É com esse olhar que o presente trabalho se desenvolveu,

tendo, pois, caráter não só acadêmico, mas fundamentalmente ético, estético e

político.

Em decorrência da análise genealógica empreendida por Foucault, a

interrogação sobre a origem dos objetos deixa de ser questão, pois não se pretende

caracterizá-los como coisas-em-si, possuidores de determinado perfil, evidenciando

a existência de determinada essência. Esse pressuposto sustenta naturalizações e

trajetórias que levam a um começo de tudo, a um início verdadeiro. Efetivar a

afirmação de que os objetos não existem em si mesmos, mas que as práticas são

datadas e produzem seus próprios objetos, criando modos de subjetivação, é trilhar

outro caminho, que não é marcado pela busca das origens, posto que não há ponto

primeiro (nem último), mas pontos de fratura, bifurcação, produção desses sujeitos-

objetos. É nesse sentido que foi empreendido um estudo sobre a temática dos

processos de subjetivação atrelados ao contexto das ameaças sofridas ou

vivenciadas pelos adolescentes aqui retratados. Esses processos não se alojam na

interioridade dos sujeitos, como muitas teorias psicológicas postulam, mas são o

resultado das práticas sociais. Pensar os processos de subjetivação que constituem

os adolescentes envolvidos em atos violentos a partir desse viés é afirmar que a

questão da violência abarca toda uma conjuntura sócio-econômica e política, não

uma questão individual. Atrelado a essa conjuntura, a história de vida dos

adolescentes não pode ser entendida como linear, baseada em uma biografia em

que os fatos se sucedem ao longo do tempo, encaixando-se perfeitamente, com

início, meio e fim. Aqui, a história configura-se como jogo de forças em luta, onde

determinadas práticas, discursos, modos de subjetivação emergem, tornando-se

hegemônicos. A história é, nesse caso, desconstrução, desnaturalização das

certezas e verdades territorializadas, construção dos sujeitos-objetos em questão, a

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partir de forças que os estabeleceram, admitindo-se dispersão onde se presumia

unidade e identidade.

Não há, portanto, causalidade, linearidade, pressuposição, fatalismo, identidade, modelo. Há processualidade, conexões incessantes e permanentes, pedaços de sujeitos-objetos que criam outros, pedaços que se cortam e não mais se conectam. (BARROS, 1995, p.9).

Por isso, a proposta genealógica foucaultiana debruça-se sobre o que é

apresentado como natural, necessário e obrigatório, vislumbrando o afloramento do

que é singular, contingente e decorrente de imposições arbitrárias. Preocupa-se com

as questões do presente, as lutas contemporâneas, vislumbrando a desmontagem

de dispositivos históricos que possibilitaram a identificação de um objeto – “ser

marginal” – como algo natural, atributo do próprio sujeito.

Além da análise genealógica, que se preocupa em desvendar as formações e

modificações através das quais o ser se dá como podendo e devendo ser pensado,

Foucault (1984) realizou análises arqueológicas, que objetivam estudar as formas de

problematização. A arqueologia recai prioritariamente, mas não exclusivamente,

sobre os saberes; a genealogia problematiza as relações de poder, podendo

também incidir sobre a gênese dos saberes. Nesta dissertação, o questionamento:

“como é o processo de constituição da subjetividade do adolescente que se encontra

ameaçado devido ao seu envolvimento com o crime?” constitui-se como forma de

problematização.

Nas postulações de Foucault, sempre houve preocupação com determinados

problemas e práticas sociais característicos de sua sociedade, por isso ele teve

como meta promover um debate no nível do conjunto de saberes de uma época,

entendido como uma rede de formações discursivas ou um feixe de relações. As

entrevistas realizadas com os profissionais das Unidades de Semiliberdade

fortalecem-se se entendemos que os dados coletados e a análises empreendidas

são apropriadas, objetivando desnaturalizar os diferentes discursos e práticas – dos

técnicos e dos educadores – que podem facilitar ou não o envolvimento dos

adolescentes com a criminalidade. Amparados por essa visão, podemos afirmar que

não se trata de suscitar um questionamento acerca de uma teoria do conhecimento,

mas de identificar as linhas de formação e de constituição dos sujeitos adolescentes

que vivem situações de ameaça e as práticas objetivadoras que entrelaçam esses

processos de constituição.

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Branco e Neves (1998), após leitura e ponderações acerca das postulações

foucaultianas, fazem as seguintes observações sobre a abordagem histórica

proposta pela análise arqueológica e genealógica:

[...] partir dos “falsos objetos” e “acontecimentalizá-los”; reduzi-los a singularidades que se dissolvem em uma multidão de proveniências históricas e de emergências sociopolíticas. Toda singularidade remete, pois, a uma multiplicidade causal, e as objetivações são raras, como diz, Paul Veyne: seu caráter de necessidade aparente é um efeito a posteriori do conjunto de práticas que as produziu. Tudo, enfim, poderia ser diferente, e não há “necessidade” que não seja mera contingência objetivada. A análise histórica busca, justamente, captar o aleatório que casualmente conduziu à produção de um resultado específico, que, contudo, parece necessário. (BRANCO; NEVES, 1998, p. 91-92).

Tendo como referência as postulações acima, que enfatizam a possibilidade

de as coisas serem diferentes do que são, talvez um dos méritos dessa orientação

teórica seja o de reafirmar a invenção de diferentes formas de ser sujeito. No caso

dos adolescentes autores de ato infracional, torna-se preponderante questionar e

desnaturalizar práticas sociais, profissionais e coletivas que produziram determinada

“subjetividade marginal”.

1.3. Minha trajetória profissional nas Unidades de Semiliberdade geridas pela Secretaria de Estado e Defesa Social e pelos Salesi anos

Em dezembro de 1999, a Secretaria da Justiça e Direitos Humanos de Minas

Gerais, atualmente Secretaria de Estado e Defesa Social (SEDS), através de sua

então secretária, Dra. Ângela Prata Pace, procurou a Inspetoria São João Bosco

(ISJB), Província Religiosa Salesiana, com o objetivo de propor-lhe a execução da

medida sócio-educativa de semiliberdade. Até então, essa medida era executada

diretamente pelo Estado. Após avaliações, os salesianos assumiram em agosto de

2000 o trabalho com adolescentes autores de ato infracional.

De acordo com o convênio firmado entre o Estado de Minas Gerais e a ISJB

coube aos salesianos administrar duas Unidades de Semiliberdade, uma localizada

em Belo Horizonte e outra em Contagem. Outra determinação contemplada no

convênio imputou aos salesianos a gestão do processo sócio-educativo e a

elaboração da proposta pedagógica para o atendimento aos adolescentes. Já a

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SEDS responsabilizou-se por garantir a provisão dos recursos financeiros

necessários à administração das Unidades de Semiliberdade e à manutenção do

atendimento educacional e assistencial.

A ISJB deu início a seu trabalho na Unidade de Semiliberdade do bairro

Flamengo, em Contagem, no dia 1º de agosto do ano 2000. Posteriormente, foi

aberta a Unidade de Semiliberdade do Bairro Ouro Preto.

Minha inserção profissional na Unidade de Semiliberdade ocorreu no ano

2000. Comecei a atuar como coordenadora da Unidade Ouro Preto, juntamente com

outra profissional, também formada em psicologia. Possuíamos a mesma hierarquia

no quadro funcional da ISJB, exercíamos a mesma função, tínhamos a mesma

formação, mas pensávamos o processo sócio-educativo de forma distinta. Eu

executava os trabalhos seguindo uma linha mais participativa, enquanto ela optava

por uma forma de funcionamento, a meu ver, autoritária e centralizadora. O fato de

pensarmos e desenvolvermos o trabalho de maneira diferenciada gerava inúmeros

problemas, não só com relação às atividades dos educadores, mas também com os

adolescentes. Além disso, essa outra coordenadora mantinha um relacionamento

afetivo com os educadores, reforçado com inúmeros convites feitos por ela ao grupo

de profissionais para saírem depois do expediente. Os encontros aconteciam

geralmente em bares próximos à Unidade. Essa relação era utilizada para

desqualificar e enfraquecer meu trabalho, que era, segundo ela, frágil. Minha

tentativa de fazer com que as pessoas pensassem, se envolvessem no processo

sócio-educativo e nas tomadas de decisão, independente de sua função,

vislumbrando a quebra da dicotomia fazer-pensar (os técnicos e o coordenador, em

lugar de destaque, pensavam os processos, e os demais somente o executavam)

estava relacionada, segundo ela, a uma insegurança de minha parte. Afirmava-se

como “durona”, chegando a dizer que não era homem só por falta do órgão sexual

masculino. Outras questões também atravessavam nosso trabalho, fragmentando-o

ainda mais: o fato de ela de ter sido a única profissional a permanecer por longo

tempo no cargo de coordenador, cuja rotatividade era muito alta; a existência de

duas Unidades (a que atuávamos, “modelo”, e a outra, “patinho feio”, na fala dos

próprios profissionais); regime de trabalho de 12x36 horas, justificado pela direção

devido à necessidade de o coordenador permanecer o maior tempo possível nas

Unidades, o que, a meu ver, instaurou um movimento de vigilância e desqualificação

com relação aos outros profissionais, além do fato de os coordenadores não se

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encontrarem e trabalharem, por uma semana, apenas com um grupo de

profissionais.

Essas dificuldades fizeram com que a direção (salesianos) optasse por

somente um coordenador para cada Unidade. Fui então coordenar a outra Unidade,

em Contagem, transferida para o bairro Santa Terezinha em dezembro de 2002. A

partir dessa transferência, todos os aspectos da relação entre as coordenadoras

tornaram-se mais evidentes. A tentativa de fragilizar meu trabalho foi mantida

através de mecanismos competitivos. Como era a coordenadora mais antiga e mais

conhecida da rede de atendimento às medidas sócio-educativas, ela retinha

informações e não as repassava para a Unidade de Contagem, o que resultava em

nossa ausência a eventos, veiculada como “incompetência” de minha parte. A

relação de competição entre as Unidades fez com que os adolescentes deixassem,

muitas vezes, de ser o foco do trabalho, o que pode ser compreendido como um dos

fatores que promovem a manutenção do vínculo desse público com a criminalidade

e, conseqüentemente, a experimentação da morte prematura em decorrência de um

homicídio.

Acirrando ainda mais essa relação competitiva, a direção fazia de tudo para

elaborarmos um planejamento único para as duas Unidades, pois éramos “irmãs”

(esse era o termo utilizado). Minha estratégia foi manter um distanciamento para que

a equipe de Contagem pudesse ter clareza e desenvolver seu próprio trabalho,

reafirmando sua singularidade. Em muitos momentos, minha prática manteve-se

aprisionada a esta relação competitiva, e desvencilhar-me disso não foi fácil, mas

conseguimos construir um trabalho que, posteriormente, passou a ser reconhecido

por todos. Com a saída dessa coordenadora, por ter assumido outra função em uma

das obras salesianas, a psicóloga da Unidade que eu coordenava assumiu a

Unidade Ouro Preto, tornando possível a realização de um trabalho conjunto e o

reconhecimento de nossas singularidades. Apesar de “irmãs”, éramos, enfim,

unidades diferentes.

Quando comecei a atuar na Unidade de Semiliberdade, o trabalho de todos

os profissionais tinha como referencial o Estatuto da Criança e do Adolescente, a

Filosofia Salesiana e um Regimento Interno, cuja primeira edição foi elaborada em

1999 com a participação dos profissionais das Unidades, técnicos da

Superintendência de Atendimento e Reeducação do Menor Infrator (atualmente

Subsecretaria de Atendimento às Medidas Sócio-Educativas), técnicos do Juizado

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da Infância e Juventude e da Promotoria da Infância e Juventude. Após revisão em

2001, foi publicada uma segunda edição naquele mesmo ano, contando com a

participação dos órgãos mencionados acima, dos profissionais das Unidades e dos

adolescentes que se encontravam em cumprimento de medida. O Regimento

caracteriza os objetivos e competências da Unidade, estabelece direitos e deveres

dos adolescentes, regulamenta práticas relacionadas aos adolescentes e à equipe

de educadores e descreve as funções de cada profissional. Nessa segunda edição,

a função que ocupei era denominada Coordenador de Plantão (eram dois

coordenadores, que se revezavam a cada dia). Atualmente, o Regimento encontra-

se em sua terceira edição, formalizada em 2005. Como as demais, sua construção

fundou-se em um espaço de discussão, com a participação direta de todos os

profissionais e indireta dos adolescentes. Cabe aos profissionais das Unidades o

zelo por seu cumprimento, regulamentando, através de normas internas, as

atividades dos adolescentes, bem como seus direitos, deveres e restrições. Tal

regulamentação, quando necessária, pode ser efetivada através das sanções.

Em sintonia com o Regimento Interno e com o Projeto Político-Pedagógico

das Unidades de Semiliberdade (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2003), a tarefa

de coordenar uma equipe de educadores sociais tem como objetivo principal

possibilitar aos adolescentes autores de ato infracional a construção de valores

humanos, éticos, estéticos e políticos, que potencializem ações que valorizem a

vida. Entretanto, as sanções propostas pelo Regimento Interno caso o adolescente

infrinja alguma norma estabelecida apóiam-se muito mais em aspectos

comportamentais, o que traz problemas, perdendo, em alguns momentos, a

implicação que o adolescente tem de fato com a medida e com sua própria vida.

Essa relação estabelecida com a medida pelo cumprimento das regras determinadas

pelo Regimento Interno pode não ser eficaz no que se refere a uma re-significação

subjetiva frente ao ato infracional cometido e à relação que os adolescentes

estabelecem com a criminalidade. Ao se envolverem com o tráfico, aprimoram e

desenvolvem determinadas “habilidades subjetivas” que são, de certa forma,

condição para que possam ocupar lugar de destaque nessa estrutura. Esse lugar é

transplantado para o espaço de cumprimento de medida, fazendo com que exerçam

certa liderança perante o grupo, adquirindo status. Essas “habilidades subjetivas”

devem ser entendidas a partir da noção da subjetividade enquanto produção. Não

devem ser consideradas como interioridade ou capacidade interna dos sujeitos, mas

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como condição subjetiva, colocada em funcionamento pela conexão com processos

sociais, culturais, tecnológicos, dentre outros típicos do “mundo do crime”.

Entrevista realizada com um dos profissionais da semiliberdade mostra que a

posição privilegiada que um adolescente ocupa no tráfico de entorpecentes

possibilita maior acesso a bens de consumo – roupas, sapatos, cigarros, produtos de

higiene pessoal – considerados melhores em relação aos demais do mercado. Além

disso, geralmente esses adolescentes têm nível de escolaridade mais alto e uma

visão crítica que lhes permite contestar e argumentar, revertendo deliberações em

favor próprio. Todas essas “habilidades” fazem com que assumam lugar de

destaque, liderança e respeito entre os demais.

É um adolescente que, pra poder lidar com a equipe, ele tem uma capacidade de controle. Ele não é um adolescente impulsivo, agressivo. [...] eu acho que isso também ajuda né, a ter essa condição, esse status dentro da Unidade. Então junta o poder que ele tem na comunidade, com as condições sócio-econômicas que ele vai ter, esses valores que ele traz pra dentro da Unidade e essa capacidade, essa habilidade pessoal mesmo [...] que acaba fortalecendo, favorecendo muito em alguns momentos. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)22.

Essas “habilidades” também são utilizadas pelos adolescentes se apropriar da

medida, revertendo-a em seu favor a partir de um cumprimento considerado

satisfatório.

[...] eu consigo visualizar alguns adolescentes que estão mais vinculados ao tráfico de drogas e em termos assim de conseguir cumprir a medida no que se refere a Regimento Interno, a relações, é um adolescente que tem mais flexibilidade, é um adolescente que consegue meio que jogar com isso. [...] É um cumprimento meio que de fachada. Que é um adolescente que não desrespeita as regras, que não é flagrado em movimentos ou em situações de desacato ou de transgressões muito graves, né, que tem esse poder da argumentação. Então quando ele descumpre ou burla alguma norma, geralmente através do próprio diálogo ele consegue se retratar com o outro adolescente, com a equipe, com as normas, ele consegue então “cumprir a medida de boa”, que é o que eles falam [...] é um adolescente que na maioria das vezes não usa droga dentro da Unidade, que respeita os horários, que faz as visitas, [...] que freqüenta escola, que tem uma convivência bacana, mas que em termos de respeito mesmo, de se colocar em trabalho ou a trabalho, [...] eu acho que em alguns momentos a coisa fica mais no superficial. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos) 23.

Pode-se conjecturar que essas habilidades subjetivas que o adolescente

desenvolve ao se relacionar com o tráfico de drogas são fundamentais para sua

22 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 23 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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permanência nesse circuito e para sua sobrevivência. É preciso “jogar o jogo” para

permanecer vivo, jogo que pode ser caracterizado como “a arte de sobreviver em

situações adversas”. Essa hipótese deve ser considerada e vista como desafio por

parte dos profissionais envolvidos no trabalho sócio-educativo, pensando e

efetivando ações que vão de encontro à realidade vivenciada por alguns

adolescentes, sobretudo os envolvidos no tráfico e que não se põem a trabalhar “a

favor da vida”. Essa empreitada torna-se possível desde que se considere a

subjetividade enquanto processualidade. Nesse sentido, implementar ações sócio-

educativas que operem o desmanche da identidade tráfico-consumo-infrações-

benefícios pode ser uma alternativa para a desvinculação dos adolescentes do

tráfico de drogas.

Quanto à função de coordenação, são necessárias ainda algumas

problematizações. Da maneira como está instituído na semiliberdade, esse cargo

articula-se ao monitoramento de ações sócio-educativas, acompanhamento e

formação dos educadores, atrelado de forma indissociável ao aspecto da autoridade.

A coordenação tem a competência de zelar pelo cumprimento do Regimento Interno

das Unidades de Semiliberdade, regulamentando as atividades dos adolescentes,

bem como seus direitos, deveres e restrições. Neste ponto, faz-se necessário

destacar o risco de engessamento de uma prática, estabelecendo-se, de acordo com

Baremblitt (1998), uma divisão entre função e funcionamento, inerente à oposição

entre processos revolucionários, instituintes, e processos geradores de exploração,

dominação e mistificação. No desenvolvimento das práticas sócio-profissionais, a

relativização e o questionamento de seus efeitos podem contribuir para a

transformação de uma realidade. No caso específico da Unidade de Semiliberdade,

esse entendimento poderá auxiliar a desenvolver práticas sócio-educativas que se

coloquem a serviço da construção de uma sociedade justa. Assim, relativizar a

função de coordenação é abrir-se para seu funcionamento, colocando em cheque a

reprodução e a perpetuação de ações autoritárias que desqualificam arranjos sócio-

institucionais distantes do hegemônico.

Nessa linha de pensamento, a tensa relação entre o jurídico e o pedagógico

faz-se presente. Atender estritamente o que o Regimento ou a Lei determina é

fechar-se no instituído, excluindo processos inventivos e colocando-se a serviço da

efetivação de ações que produzem ou reforçam mecanismos de exclusão. Por outro

lado, ignorar essa dimensão é reforçar ações e atitudes em que os limites não são

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considerados e ou reconhecidos. Enquanto educadores, mais do que considerar as

duas dimensões, faz-se necessário o desenvolvimento de uma prática sócio-

educativa que promova o envolvimento e a participação dos adolescentes. O

conhecimento e a construção conjunta das normas tornam-se preponderantes para

o estabelecimento de uma relação com o mundo, onde o outro passa a ser

considerado como sujeito.

As modificações no Regimento Interno que culminaram em uma terceira

edição refletem um pensamento crítico em relação às práticas desenvolvidas pelos

profissionais inseridos na semiliberdade, bem como uma invenção cotidiana, a partir

das mais diversas situações vivenciadas pelos adolescentes. A segunda edição

apresentava uma centralização na figura do coordenador, decorrente do desejo da

direção de que a coordenação estivesse o maior tempo possível na Unidade,

monitorando as ações educativas. Além disso, esse lugar vinha sendo ocupado,

como assinalado anteriormente, por uma profissional que monopolizava as ações e

as “atenções”, em espaços posteriormente ocupados por outros profissionais, com

suas especificidades. Essas duas questões estão refletidas nos seguintes incisos do

artigo 27 da segunda edição do Regimento Interno, relacionado às competências do

coordenador de plantão:

� “VIII - regulamentar, através de normas internas, as atividades dos

adolescentes, bem como seus direitos, deveres e restrições, aplicando

quando necessário as sanções previstas” (INSPETORIA SÃO JOAO

BOSCO, 2001, p. 24). É importante frisar que somente o coordenador

aplicava as restrições previstas no Regimento Interno. Os educadores

deveriam “canetar” – expressão usada pelos adolescentes –, ou seja,

marcar um “X” na infração cometida pelo adolescente em formulário

próprio;

� “XI - propiciar visitas das famílias em dias e horários previamente

estabelecidos” (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2001, p. 24). Na

organização do trabalho das Unidades, o profissional que de fato

acompanha de forma mais próxima as famílias dos adolescentes é a

assistente social;

� “XXIIII - conduzir semanalmente a avaliação dos adolescentes”

(INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO, 2001, p. 25). Esse processo de

avaliação acontecia e ainda acontece semanalmente, mas a

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coordenadora realizava-o sozinha, tendo como base o formulário citado

acima;

� “XXVIII - participar das reuniões de estudo de caso junto ao Juizado da

Infância e Juventude, quando julgar necessário, considerando

sobretudo o dia-a-dia da Unidade” (INSPETORIA SÃO JOÃO BOSCO,

2001, p. 25). A coordenadora que trabalhava na Unidade Ouro Preto,

tendo como base esse inciso, fazia questão de participar de todas as

discussões no Juizado, monopolizando a palavra. De certa forma,

minha presença nessas reuniões acabava sendo cobrada pela direção,

mesmo que de forma implícita.

Como observado, as atividades dos adolescentes e a aplicação das restrições

deviam ser regulamentadas pela figura do coordenador. Entretanto, as práticas

instauraram processos instituintes, a partir da organização de Assembléias em que

participavam todos os atores do processo sócio-educativo. Além disso, a avaliação

semanal dos adolescentes começou a ter como base uma discussão prévia

realizada com os profissionais e, com isso, toda a equipe passou a se

responsabilizar pela aplicação das restrições. Com essa nova dinâmica do trabalho,

os atendimentos aos adolescentes passaram a acontecer não só de lugares

instituídos pela psicologia, serviço social, pedagogia, mas a partir das relações e

vínculos estabelecidos entre cada profissional e cada adolescente, independente da

formação acadêmica ou hierarquia do quadro funcional. A necessidade de marcar e

deixar expresso no Regimento que cabe ao coordenador atender o adolescente

evidencia a monopolização e a centralização mencionadas anteriormente.

Em suma, na passagem da segunda para a terceira edição do Regimento

Interno, a autoridade no processo sócio-educativo fica mais fluida, exercida por

vários profissionais em momentos específicos, o que produz um “enxugamento” na

função da coordenação, que enriqueceu o trabalho sócio-educativo.

O lugar da coordenação apresentava-se também atravessado e

transversalizado pelo fato de ser ocupado por uma mulher (os cargos de chefia eram

ocupados quase sempre por mulheres; os dois homens que ocupavam a direção

tinham a sensibilidade como característica, o que era ressaltado por todos, apesar

da outra coordenadora fazer questão de ressaltar aspectos “masculinos” de sua

forma de ser). Além disso, ressalta-se o fato de a coordenadora ser uma das mais

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jovens da equipe (fato recorrente nas falas dos profissionais), ter nível superior e ser

natural do Rio de Janeiro.

Para Baremblitt (1998) o conceito de atravessamento vincula-se à rede social

do instituído, cuja principal função é a reprodução do sistema. Cada uma das

entidades que compõem a rede social opera na outra, pela outra e para outra, desde

a outra. Esse entrelaçamento opera exploração, dominação e mistificação. Os

atravessamentos listados acima denunciam formas instituídas de gerenciamento,

que se articulam a contextos de relações de gênero, que vinculam “ser mulher” a

determinadas características subjetivas como sensibilidade, afetividade, o que a

desqualificariam para um cargo de chefia, aspecto reforçado pela outra profissional

que também ocupava este cargo.

Em minha prática profissional na Unidade de Semiliberdade, procurei

desenvolver ações voltadas para a transmutação desses atravessamentos em

transversalidades, buscando construir um trabalho sócio-educativo pautado na ética

e em um ideal democrático. Para a Análise Institucional, “a transversalidade

veiculada pelas linhas de fuga do desejo e da produção é uma dimensão do devir

que não se reduz nem à ordem hierárquica da verticalidade nem a ordem das

horizontalidades nas organizações” (BAREMBLITT, 1998, p.195). Essa noção

sugere que o conhecimento atravessa as estruturas, rompendo hierarquias de

conteúdos, disciplinas, instituições e organizações. Isso implica em questões

organizacionais de como as práticas se estruturam, e em questões políticas de

desconcentração de poder. Na transversalidade, todos os conhecimentos, idéias e

ações são importantes e não são qualificadas a partir de referenciais etários, raciais,

de gênero ou origem. Algumas dessas ações, conhecimentos e idéias podem ser

mais complexos do que outras.

Acredito que, em alguns momentos, a transmutação dos atravessamentos em

transversalidades concretizou-se, o que pode ter facilitado, para os adolescentes,

uma apropriação de suas vidas de forma mais responsável, por meio de um

questionamento em relação a suas vinculações com a criminalidade.

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2. ADOLESCÊNCIA E CRIMINALIDADE

2.1. Adolescência: algumas reflexões

As categorias de infância e adolescência, tal como conhecemos hoje,

inexistiam na Idade Média. Para aquela sociedade, a infância era vista como a fase

em que a criança se encontrava totalmente dependente do adulto. Tão logo saísse

dessa fragilidade e alcançasse algum desembaraço físico, era misturada aos adultos

e passava a compartilhar de seus trabalhos e jogos (ARIÈS, 1991). A socialização

da criança, ou seja, o processo de transmissão dos valores e conhecimentos,

processava-se no cotidiano, pela convivência diária entre crianças e adultos.

Contudo, existia em relação à criança um sentimento superficial, que Ariès (1981)

denomina “paparicação”. Este sentimento

[...] era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida, enquanto ela era ainda uma criancinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato. (ARIÈS, 1981, p.11).

Esse primeiro período era superado quando a criança conseguia passar pelos

primeiros perigos e sobreviver. Acontecia de modo comum que ela fosse viver em

outra casa, com outra família. O sentimento conjugal e filial não era necessário nem

à existência nem ao equilíbrio da família.

No final século XIII, contudo, uma mudança significativa vem alterar esse

quadro. A criança não mais ficará misturada aos adultos, não mais aprenderá a vida

em contato com eles, sendo destinado a ela um lugar específico: a escola,

responsável não só pelo ensino, mas sobretudo pela vigilância e o enquadramento

da população infantil aos modelos da classe dominante.

A despeito das muitas reticências e retardamentos, a criança foi separada dos adultos numa espécie de quarentena, antes de ser solta no mundo. Essa quarentena foi a escola, o colégio. Começou um longo processo de enclausuramento das crianças, como dos loucos, dos pobres, das

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prostitutas, etc. que se estenderia até nossos dias, e ao qual se dá o nome de escolarização. (ARIÈS, 1981, p.11)

No início do século XIX, período marcado pela constituição da sociedade

moderna, a construção de uma série de discursos – médico, psicológico, sociológico,

religioso, político, pedagógico, jurídico e social – fez com que a adolescência

adquirisse estatuto de fase intermediária entre infância e vida adulta. Tendo como

referência Foucault (1995; 1998) podemos afirmar que esses discursos promoveram

o esquadrinhamento e a qualificação do corpo adolescente através da constituição

de um saber acerca dos processos físicos, psíquicos, sociais e morais dessa faixa

etária, constituindo uma identidade própria.

Em consonância com inúmeros estudos históricos e sociológicos, a

emergência da adolescência, seja como acontecimento no interior dos saberes,

inclusive científicos, seja como acontecimento que modifica as relações

intersubjetivas familiares, relaciona-se a complexos processos de mudança de

ordem social, na estrutura da família, operacionalizados, sobretudo, pelas novas

formas de inserção de seus membros no mundo do trabalho urbano industrial. Outro

fator relevante na instituição da adolescência foi a progressiva universalização da

escola básica, especialmente a pública, incitando a criação de novos padrões de

necessidades sociais (ADORNO; BORDINI; LIMA, 1999).

A distinção entre crianças, adolescentes e adultos proporcionada por esses

acontecimentos fez com que a adolescência começasse a ser percebida como

período diferenciado, marcado pelo desenvolvimento de características físicas,

subjetivas e sociais específicas, tornado-se um fenômeno universal e natural.

A identidade da criança e do adolescente é construída hoje numa cultura caracterizada pela existência de uma indústria da informação, de bens culturais, de lazer e de consumo onde a ênfase está no presente, na velocidade, no cotidiano, no aqui e no agora, e na busca do prazer imediato. A subjetividade é, então, construída no comigo mesmo, na relação com o outro e num tempo e num espaço social específicos. (SALLES, 2005, p.35).

A reflexão sobre a temática da adolescência traz consigo a necessidade de se

problematizar processos de subjetivação atuais marcados por determinados ideais:

escolha, êxito, auto-descoberta, auto-realização. Esses ideais se articulam a uma

concepção de subjetividade amparada pela noção de um sujeito auto-centrado,

responsável por suas escolhas pessoais. Na construção e efetivação de um projeto

de vida, os sujeitos tornam-se os personagens principais em relação a seus

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sucessos e fracassos. Desse modo, podemos afirmar que, atualmente, a

adolescência se configura como uma etapa de vida que suscita interesse,

caracterizada, sobretudo, por um trânsito maior em relação aos códigos rígidos do

moralmente louvável e do moralmente condenável (LYRA et al, 2002). Esse ideal

pode ser visualizado nas propagandas dirigidas aos adolescentes e jovens e

divulgadas pelo mass media, a partir de temas ligados a cultura e comportamento:

ser jovem é liberdade, vigor, ousadia (ABRAMO, 1997).

Existem explicações multifacetadas sobre a natureza, a gênese e a função da

adolescência. Cronologicamente, ela é entendida como o período posterior à

infância e anterior à vida adulta. No campo dos sentidos, pode ser pensada para

além de seu componente orgânico, constituindo-se como experiência subjetiva.

Porém, na sociedade contemporânea essa fase alcançou status de realidade,

experiência que não pode ser evitada nem prolongada indefinidamente.

A adolescência é percebida como uma cena crucial na construção das narrativas pessoais. Naturaliza-se a adolescência como um período essencial para o crescimento do indivíduo e para alguns sociólogos, de linha mais evolucionista, essencial para o desenvolvimento da sociedade, na medida em que os jovens constituiriam focos de mudança, de alterações no status quo. (LYRA et al, 2002).

Cabe ressaltar que os processos subjetivos que constituem o adolescente

devem ser pensados acoplados aos processos sociais, políticos e econômicos

característicos de uma sociedade capitalista, consumista e desigual. Em um país

como o Brasil, marcado por desigualdades, diferentes formas de ser adolescente se

instituem, sendo, porém, classificadas e tendo como parâmetro um modelo

idealizado, universal. Desse modo, podemos afirmar a existência de, no mínimo,

duas “adolescências”: a pobre, que vive nas ruas, excluída das escolas, explorada

no mercado de trabalho formal e informal, sem acesso às políticas públicas e aos

modernos equipamentos de diversão, constantemente assediada e recrutada pelo

narcotráfico e confinada em alguma instituição de exclusão como a cadeia e

presídios; e a constituída pelos “boys” e “patis”24, que tem acesso a escolas de boa

qualidade, bens de consumo e lazer, ao mercado de trabalho e que é valorizada

como o “futuro do País”. Essas afirmações não devem ser tomadas de forma

polarizada: para além das diferenças, os processos subjetivos são múltiplos, e

24 Termos usados pelos adolescentes admitidos na semiliberdade para dizer de meninas e meninos oriundos das classes média e alta.

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pertencer a uma classe ou outra não deve ser entendido como condição primordial

para o cometimento ou não de delitos.

Atrelado a essa diferenciação, promove-se uma identificação da juventude

abastada a vivências associadas a descobertas, experimentação, imediatismo, e

uma associação da juventude oriunda das favelas e de regiões periféricas a

sentimentos de medo, horror, sofrimento e violência. Geralmente, esses sentimentos

encontram-se atrelados a uma visão dessa juventude como problema social, o que

acaba sendo confirmado pela mídia e por especialistas que identificam essa fase da

vida à crise. Lyra e outros pesquisadores que estudam, entre outros temas, relações

de gênero e masculinidades (2002) afirmam que muitas políticas públicas que têm

como alvos adolescentes e jovens parecem se fundamentar nessa idéia de crise,

percebendo a adolescência como ameaça. Tal construção apóia-se na concepção

de que esse grupo vivencia situações de risco que podem ser internas (crise

identitária) ou externas (violência). De maneira geral, é comum encontrar no ideário

contemporâneo associações entre adolescência e desordem, irresponsabilidade,

problema social que deveria ser estudado e resolvido. Com este enfoque, situações

vivenciadas pela população infanto-juvenil adquirem status de “risco”, o que pode

ser identificado pelas expressões “gravidez de risco”, “risco de contrair HIV”, “risco

de se envolver com más companhias”, “risco de se tornar dependente de drogas

ilícitas”, “risco de perpetrar ações violentas”. “O risco generalizado parece, assim,

definir e circunscrever negativamente esse período da vida possibilitando a

construção de expressões absurdas como a própria prevenção da adolescência”

(LYRA; MEDRADO, 1999, p. 240).

Vários profissionais que atuam na rede de atendimento destinada ao

adolescente em conflito com a lei trabalham tendo como referencial esse enfoque,

vendo os adolescentes como um “problema em potencial”, principalmente se suas

vivências estiverem atreladas à “desestrutura familiar”: uma configuração familiar

marcada por violência, exploração e ausência de direitos passa a ser sinônimo do

envolvimento desses sujeitos com a criminalidade.

Olha, eu acho que a maioria deles que estão aqui, a mesma coisa: questão familiar mesmo. Descuido, né. E envolvimento com droga, seja no tráfico, seja no uso. É sempre isso aí. [...] De desestrutura familiar mesmo. Até mesmo os meninos que caem aqui, que vêm cumprir medida aqui, melhor

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dizendo, que tem uma estrutura familiar melhor, o processo dele é muito melhor. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos) 25.

O trabalho desenvolvido junto aos adolescentes em cumprimento da medida de

semiliberdade torna evidente que os que mantêm vínculos significativos com outras

pessoas, de suas famílias de origem ou não, têm mais chance de cumprir a medida

imposta e desvencilhar-se da criminalidade. Para além da idéia de “desestrutura”,

pode-se conjecturar que o enfraquecimento dos laços afetivos e sociais engendrados

pela modernidade líquida (BAUMAN, 2001) pode ser decisivo no processo de

envolvimento com a vida do crime. Contudo, muitas vezes as próprias famílias ou

pessoas que são referências para os adolescentes encontram-se dilaceradas, não só

devido às péssimas condições de vida, mas também no aspecto subjetivo, vivenciando

cotidianamente “situações de morte”, como desemprego ou subemprego, falta de

saneamento básico, ausência de políticas públicas nas áreas de educação e saúde,

submissão às regras do tráfico e morte prematura em função dessa vinculação.

A efetivação de programas que resgatem a positividade juvenil é apresentada

por Lyra et al (2002) como essenciais para a desnaturalização do processo de

identificação da adolescência a noções de crise e irresponsabilidade.

Ao se pensar em qualquer programa de ação direcionado a essa população, cabe investigar o modo como experimentam e interpretam essas situações problemáticas (ABRAMO, 1997), deixando claro que fazê-lo não é somente criar um espaço-simulacro no qual a fala do adolescente e do profissional reifiquem o que já se quer dizer ao primeiro, sendo, portanto, mais um espaço de reprodução social, e não de construção de um espaço de diálogo, condição sine qua non para o protagonismo juvenil. (LYRA et al, 2002, p. 12-13).

Segundo esses autores, é de fundamental importância a instauração de

movimentos sociais em que esses jovens tenham lugar e voz. Entretanto, nessa

empreitada, muitos obstáculos ainda devem ser superados:

Para falarmos de uma positividade do adolescente, cabe-nos caminhar na direção de uma tendência oposta vinda dos próprios jovens que, recentemente, têm-se organizado em fóruns especiais; seja em lutas contra o status quo, seja em favor de ideais conservadores. Movimento esse endossado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e de todos os fóruns de discussão feitos em torno dele. Verifica-se a existência de movimentos feitos por jovens objetivando mudanças mais amplas, em contraponto à irresponsabilização atribuída ao adolescente. Entretanto, estes movimentos, como assinala Melucci (1997), aparecem dissolvidos em meio à combinação de diversos outros fatores – pobreza, desemprego,

25 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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imigração –, não havendo ainda um espaço para que as vozes juvenis sejam ouvidas. (LYRA et al, 2002, p. 3).

Um princípio ético orientado pelo respeito aos adolescentes e jovens,

expresso pela criação de um espaço de acolhimento, exercício da autonomia e

responsabilidade, deve balizar as ações dos programas destinados a essa

população, que permitam que esses sujeitos problematizem suas próprias

adolescências, ressignificando-as na produção de novos modos de subjetivação.

Esse pode ser o começo de uma série de mudanças e, talvez, o ponto de partida

para oferecer a adolescentes e jovens uma atuação efetiva na solução dos

problemas que vivenciam.

2.2. Algumas palavras sobre a questão da violência envolvendo adolescentes

Como apresentado anteriormente, além da exaltação da juventude, há

atualmente uma identificação da adolescência a situações de medo, horror e

violência. As práticas de violência envolvendo a juventude poderão ser mais bem

compreendidas se considerarmos as postulações de Elias (1990; 1993) sobre os

atos violentos. Esses atos configuram-se como linguagem e norma social para

algumas categorias, em oposição às denominadas normas civilizadas, marcadas

pelo autocontrole e pelo controle social institucionalizado.

Elias (1990) menciona a existência de um processo civilizatório como uma

progressiva evolução almejando um autocontrole das práticas de violência, cuja

formulação mais radical foi implementada por Foucault, ao ressaltar a passagem da

punição para a vigilância em múltiplas instituições sociais. No entanto, a interação

social passou a ser caracterizada por estilos de sociabilidade, invertendo as

expectativas civilizatórias. No momento atual, em que a sociedade vivencia um

processo de mundialização, efetiva-se uma pluralidade de normas sociais e

diferentes formas de violência, relacionadas a variados processos de exclusão

econômica e social. Santos (2002) localiza essa mundialização como o primeiro

período do século XXI, que tem como características a globalização dos processos

econômicos e de novas questões sociais, que se manifestam de maneira simultânea

e com distintas especificidades nas diferentes sociedades. Esse quadro está

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relacionado aos processos de ruptura vivenciados pelas instituições socializadoras –

famílias, escolas, religiões – e pelo sistema de justiça penal – polícias, tribunais,

manicômios, entre outros –, todos tornados ineficazes em relação ao controle social.

(SANTOS, 2007). Esse processo de enfraquecimento das instituições coaduna-se às

postulações de Castel (1998): segundo ele, as práticas de violência constituem

quebra do contrato social e dos laços sociais, gerando fenômenos de “desfiliação” e

ruptura nas relações de alteridade, dilacerando o vínculo entre o eu e o outro.

A compreensão de Santos (2007) acerca das relações sociais orientadas pela

violência ampara-se nas contribuições de Héritier:

Denominamos violência toda coerção de natureza física ou psíquica suscetível de provocar terror, o deslocamento, a tristeza, o sofrimento, ou a morte de um ser vivo; todo ato de instrução que tenha por efeito, voluntário ou involuntário a usurpação do outro, o dano ou a destruição dos objetos inanimados. [...] trata-se de um modo de expressão e de ação visando satisfazer desejos, impondo seu poder, sua vontade, duas idéias a outro. (HÉRITIER apud SANTOS, 2007, p. 18).

Santos (2007) adota também como referência as contribuições de Maturana,

objetivando entender melhor a violência enquanto relação social:

A violência é um modo de conviver, um estilo relacional que surge e se estabiliza em uma rede de conversas que torna possível e mantém o emotivo que a constituí, na qual as condutas violentas são vividas como algo natural que não se vê. [...] a violência e a agressão são modos de relação próprios de um espaço psíquico que valida a negação do outro diante de qualquer desacordo desde a autoridade, a razão ou a força. (MATURANA apud SANTOS, 2007, p. 83-85)

Subjacente a todas as diferentes formas de violência, percebe-se – como

marco orientador da lógica da coerção social, como efetividade ou virtualidade

sempre lembrada ou como preceito operatório das relações – o exercício da

violência física. Dessa forma, podemos identificar o recurso à força e o uso da

coerção física e simbólica como parte constitutiva das relações sociais de violência:

o que caracterizaria especificamente a violência seria “o intento de irrupção e de

forçar a vontade, o desejo ou a intenção do outro” (ECHEGARAY; BORGANIA apud

SANTOS, 2007, p. 136). A violência é sempre precedente ou legitimada por uma

violência simbólica, exercida tendo como referência a subjetividade dos agentes

sociais envolvidos na relação.

A violência simbólica impõe uma coerção que se institui por intermédio do reconhecimento extorquido que o dominado não pode deixar de outorgar ao dominante quando somente dispõe, para pensá-lo e para pensar a si

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mesmo, dos instrumentos de conhecimento que tem em comum com o dominante e que constituem a forma incorporada da relação de dominação. (BOURDIEU, 1990, p. 10).

A partir do entendimento da violência como forma de sociabilidade, na qual se

estabelece a afirmação de poderes legitimados por uma determinada ordem social,

instaura-se a possibilidade de controle social. A violência constitui-se como um

dispositivo de controle aberto e contínuo. A noção de coerção ou força presume um

dano que se produz em outro indivíduo ou grupo social, independente de classe,

categoria social, gênero ou etnia. Podemos estender essa argumentação às

relações estabelecidas entre indivíduos e/ou grupos: a violência social

contemporânea configura-se nas relações de força, coerção e dano em relação ao

outro, enquanto atos de excesso que podem ser encontrados nas relações de poder

– seja no nível macro, do Estado, seja no nível micro, entre os grupos sociais.

A violência seria a relação social de excesso de poder que impede o reconhecimento do outro – indivíduo, classe, gênero ou raça – mediante o uso da força ou da coerção, provocando algum tipo de dano, um dilaceramento de sua cidadania, e configurando o oposto das possibilidades [do ideal] da sociedade democrática contemporânea. (SANTOS, 2007, p.20).

Além de a violência ser parte integrante das relações que caracterizam

determinados grupos sociais em nosso País, Santos (2007) afirma que, no Brasil,

podemos encontrar de forma instituída quatro tipos de violência: do Estado, contra o

Estado, difusa e simbólica. A violência do Estado deve ser entendida como a que

envolve diferentes nações, conflitos internacionais e conflitos internos – Estado-

nação –, como os que dizem respeito à polícia. A violência contra o Estado, por sua

vez, são todas as lutas empreendidas com o poder do Estado. Já a violência difusa

pode ser classificada em cinco grupos: criminal, micro-política, das instituições totais,

no campo e ecológica. Essa classificação esclarece a existência de diferentes tipos

de violência, relacionadas a contextos sociais, econômicos, políticos e subjetivos

específicos.

No acompanhamento de adolescentes em cumprimento da medida de

semiliberdade no período entre 2000 e 2005, foi possível perceber que as relações

que estabelecem com a criminalidade podem ser compreendidas a partir das

postulações de Santos (2007). São relações orientadas pela lógica da violência,

forma de sociabilidade que marca sua convivência com os outros sujeitos, podendo

ser observada nos conflitos existentes nas relações entre os adolescentes e entre

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eles e a equipe de profissionais que compõe o quadro funcional do programa.

Qualquer tipo de desavença, diferenças de posicionamentos em relação a um tema,

opiniões em relação à escolha de um programa de televisão podem se transformar

em brigas, ameaças e até em morte. Da mesma forma, diante de negativas da

equipe de profissionais frente a uma solicitação, como sair da Unidade, por exemplo,

podem acontecer conflitos sérios. É comum, nesses momentos, os adolescentes se

unirem e se posicionarem como adversários dos profissionais. Lideranças aparecem

e, com elas, a necessidade de mostrar quem é o mais forte e o mais viril.

Na interface juventude/violência, pode-se afirmar que a primeira teoria que se

preocupou em esclarecer o envolvimento de adolescentes e jovens em atividades

criminosas foi a da desorganização social (ZALUAR, 2004). Em sua obra “Integração

perversa: pobreza e tráfico de drogas”, Zaluar (2004) informa que os primeiros

estudos sistemáticos sobre grupos de jovens que se envolveram em conflitos

violentos foram realizados pela Escola de Chicago nos anos 1920. Esses conflitos

juvenis tinham como característica a demarcação de territórios baseada em

referenciais étnicos: italianos, judeus, irlandeses, negros, entre outros. Cabe

esclarecer que a expressão “Escola de Chicago” relaciona-se a uma série de

escolas e correntes de pensamento de diferentes áreas e épocas, implementadas na

cidade norte-americana de Chicago. Os estudos sociológicos desenvolvidos por

essa Escola tinham como temática os centros urbanos, pela primeira vez

pesquisados etnograficamente, em especial aqueles vinculados à violência. Zaluar

(2004), a partir dos estudos realizados por Tharsher e Wirth, explica que, para a

Escola de Chicago, a violência era um “defeito” ocorrido no processo de

socialização, disfunção que deveria ter medidas sociopolíticas corretivas. Esses

estudos produziram uma teorização que explicava a violência como decorrente da

imigração ou migração recente para determinadas áreas da cidade, marcadas pela

pobreza e decadência. Concomitantemente a esses processos que produziram uma

desorganização social, a desvalorização de certos costumes e tradições teria

deixado de influenciar e regular comportamentos, favorecendo crises morais,

familiares e sociais, contribuindo para o aumento da criminalidade juvenil. Em

consonância com essas postulações, Thrasher chamava essas áreas da cidade que

tinham como característica a pobreza e a decadência de “zonas de transição”,

“intersticiais” ou “cinturões de pobreza”, onde jovens marginalizados poderiam

ascender socialmente.

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Zaluar (2004) informa que a idéia de crise e desorganização social que

fundamentou estudos sobre a violência envolvendo jovens foi alvo de muitas críticas,

devido a seu compromisso com postulações teóricas do Funcionalismo, com um

ideal de ordem e uma forma homogênea de organização.

Na década de 60, quando novamente o crime se apresentou como uma das

mais sérias e graves questões públicas enfrentadas pela sociedade americana,

surgiram teorias para explicar o fenômeno da violência: a teoria da frustração

elaborada por Merton em 1965 e a teoria do rótulo desenvolvida por Matza em 1969

são algumas delas (ZALUAR, 2004). Para Merton, haveria uma lacuna entre as

aspirações de todo cidadão norte-americano que objetivava enriquecer e ascender

socialmente e as oportunidades reais dadas aos jovens pobres pertencentes à

segunda geração de imigrantes, que haviam incorporado os valores da sociedade

estadunidense. Contrariamente a essa idéia, Matza elegeu como objeto de estudo o

processo de rotulação da juventude oriunda dos guetos ou bairros pobres, tendo

como alvo os jovens de etnias inferiorizadas ou pertencentes a camadas pobres,

nomeados “delinqüentes”. Sua argumentação baseia-se no conceito de drift (estar à

deriva): esses jovens não estabeleceriam necessariamente uma vinculação com a

criminalidade, estando apenas vivendo os conflitos próprios de sua idade. O ponto

de destaque dessa postulação é a concepção de que as organizações juvenis não

existem independentemente do social, proliferando ou decaindo de forma articulada

a esse contexto, em uma trama de interações simbólicas entre os jovens que

compõem essas organizações e os representantes da lei e da ordem.

Essas teorias receberam críticas devido a seu vínculo com o positivismo, que

transformava as pessoas em objetos e seus comportamentos e atitudes em

fatalidade ou determinação. Tal postulação dificultava o entendimento de que os

sujeitos têm participação ativa em suas escolhas e ações, independentemente do

que vivenciam. Fato notório é que essas teorias foram transplantadas para outras

realidades sociais, como se não houvesse diferença entre as organizações juvenis e

as quadrilhas, galeras, turmas ou bandos encontrados em outras nações.

Vários países com realidade sócio-econômica nem tão marcada pela

desigualdade social enfrentam o problema da violência. Suas políticas sociais

governamentais não conseguiram assegurar os direitos sociais fundamentais para

grande parcela da população urbana e rural, fazendo com que os efeitos dessa

conjuntura recaiam preferencialmente sobre crianças e jovens. Adorno, Bordini e

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Lima (1999) informam que vários estudos ratificam o envolvimento infanto-juvenil em

atos marcados pela violência, como o de Araújo, realizado em 1996; o de Faria,

realizado em 1992; o de Hoffman, também realizado em 1992, e o de Singer,

elaborado em 1996. Mesmo em sociedades em que os programas sociais atuam de

forma mais efetiva, o que pode ser verificado pelos elevados índices de

desenvolvimento humano, condições e qualidade de vida, a preocupação com o

problema da criminalidade não é recente. Além disso, constatam-se semelhanças na

forma como o problema é percebido e enfocado atualmente pela sociedade

brasileira. Desde a segunda metade do século XIX, países como os Estados Unidos,

o Canadá e, especialmente, a França e a Inglaterra têm enfrentado situações

semelhantes à do Brasil e de outros países em que as políticas públicas ainda não

se efetivaram. Essa conjuntura tem favorecido percepções relacionadas à

adolescência vista como problema, gerando preocupações e inquietações sociais.

Por outro lado, enfoca-se o adolescente como objeto de atenção especial e

especializada, com ações que operam a restrição de suas horas de trabalho fabril; a

regulamentação da educação compulsória; o desenvolvimento de programas

próprios de lazer e ocupação do tempo livre, ao que tudo indica, raiz primária das

chamadas culturas juvenis. Nesse cenário, o adolescente impõe-se como ser

autônomo, especialmente nos grandes centros urbanos, percebido como portador de

um querer que precisa ser respeitado nos mais diferentes aspectos da vida pessoal:

escolha profissional, vestuário, consumo, lazer, iniciação e atividade sexual.

Entretanto, essa mesma autonomia é vista como fonte de riscos, em que a violência

e o conseqüente envolvimento com a criminalidade são como problemas centrais.

A principal diferença entre o Brasil e os países europeus com controle

rigoroso de armas e menor envolvimento de grupos juvenis com o crime organizado

está na junção, em território brasileiro, do acesso fácil às armas de fogo e a

participação do crime organizado na vida política, social e econômica do país. Feitas

estas considerações, não se pode negar que a problemática de jovens evolvidos

com a criminalidade ocupa em nosso País destaque cada vez maior nas páginas

policiais. Aumenta o número de adolescentes que invadem o espaço público com

práticas de mendicância, pequenos furtos, assaltos, homicídios, seqüestros, entre

outros. Alguns deles são jovens recrutados e explorados pelo mercado de trabalho

ou pelo narcotráfico, em que matar ou morrer são uma peça a mais da engrenagem

da desigualdade social.

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Tendo com base o acompanhamento de adolescentes em medida de

semiliberdade, pode-se afirmar que a questão da violência em Belo Horizonte parece

estar articulada a processos de desigualdade social, tendo como características

famílias em estado de pobreza ou miséria; desnutrição e alto índice de mortalidade

infantil; exploração do trabalho infantil; aumento do consumo de drogas entre os

adolescentes; alto índice de gravidez na adolescência; aumento do desemprego;

inexistência ou deficiência de equipamentos e espaços públicos de cultura, esporte e

lazer; baixa cobertura de programas sociais destinados à infância e juventude;

processos de subjetivação marcados pelo consumo e pelo individualismo; laços

sociais pouco sólidos; ideais de masculinidade e virilidade, entre outras. Além disso,

a desigualdade social de Belo Horizonte parece estar associada a processos sócio-

econômicos e subjetivos atrelados à história da cidade, explicitados mais adiante

neste trabalho.

Os adolescentes que chegam às Unidades de Semiliberdade estudadas nesta

pesquisa trazem em sua história as marcas dessa desigualdade. São, em sua

maioria, oriundos de famílias muito pobres, numerosas e geralmente chefiadas por

mulheres. Residem nas regiões mais periféricas e menos favorecidas em termos de

equipamentos sociais, sendo a maioria negra ou descendente dessa etnia. Têm

nível de escolaridade baixa ou são analfabetos. Muitos estão envolvidos com o

tráfico de drogas e justificam esse envolvimento com a necessidade de

sobrevivência. Devida à baixa escolaridade, sentem dificuldade de ingressar e

permanecer no mundo do trabalho. Esses dados são corroborados por Priuli e

Moraes (2006).

Estudos têm mostrado que as mortes por causas externas, muitas vezes

decorrentes de homicídios, têm como alvo preferencial essa população que chega

às Unidades de Semiliberdade. De acordo com um dos adolescentes entrevistados,

a falta de oportunidades no mercado de trabalho e a necessidade de manter o vício

de drogas são fatores decisivos para a entrada na criminalidade.

Ah, porque hoje em dia serviço tá muito pouco e também a criminalidade ela é ruim, mas tem gente que começa tipo assim, começa a fumar cigarro, depois começa a cheirar cola [...] eu ficava muito estressado dentro de casa com a minha avó, aí eu saía pra rua, assim, aí eu ia fumar droga, uma maconha, aí eu ficava mais tranqüilo. Aí eu fui acostumando, aí acabou que eu envolvi com uns meninos que já era mais de tempo da vida do crime. E aí eles foi me ensinando o que era bom e o que que era ruim da vida do

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crime. E aí eu fui aprendendo e caí na onda também e tô aí até hoje (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 26.

Essa “justificativa” aparece de forma naturalizada e possivelmente inscreve-se

no modo de subjetivação dos adolescentes envolvidos com o crime. Nesse modo de

funcionamento da subjetividade, pode-se conjecturar que a “ação, que é mais

primitiva que o pensamento e a palavra, constitui a parte mais importante de sua

conduta” (ZIMERMAN, 1999, p. 422). Nessa linha, é recorrente por parte do

adolescentes a afirmação de que na vida do crime não há espaço para reflexão,

somente para a “atividade”. A expressão deve ser entendida como conduta típica do

“mundo do crime” em que se deve estar vigilante, à espreita, “dormir com um olho

fechado e outro aberto” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade,

19 anos)27, pois qualquer “vacilo” pode se transformar em morte. No capítulo 3 desta

dissertação, esse assunto será mais bem abordado.

Outro aspecto apresentado pelos adolescentes ouvidos na pesquisa diz

respeito às “vantagens” relacionadas ao envolvimento com a criminalidade, ligadas à

obtenção de dinheiro fácil e acesso a mulheres, aspectos que fazem contraponto ao

sofrimento e aos riscos dessa inserção.

O lado bom é que você arruma dinheiro, muita muié. [...] Porque você tando com dinheiro aí você vai ter, aquela menina vai querer você. O lado ruim é porque você arruma guerra, não pode andar tranqüilo. . Eu tinha um parceiro, sabe. Foi antes de eu ir, foi antes de eu ir. Eles foi e mataram ele. Nós tava indo pra barraquinha. Nós dois. [...] Os cara foi e parou o carro. Tava eu do lado dele. Os cara foi lá e deu uma pá de tiro nele. Aí foi e deu pro meu lado e aí eu fui saí correndo. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)28.

O que é bom é que você ganha dinheiro fácil, muitas mulheres. [...] A coisa ruim é porque vem muito sofrimento, você perder o colega. Aí você tá ali, você tá ali na vida do crime, se você falar alguma coisa eles mata você. [...] Vamos supor, se você ouvir um cara é fazendo alguma coisa ali de errado eu chegar e contar pra polícia, falar pras outras pessoas, entendeu? Que é o ruim. E também os outros ficar devendo, se ter que correr atrás. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)29.

Risco de ser preso, isso e aquilo. Aí você começa a matar também. A coisa ruim é que se vai preso, aí você fica pensando também em morte, em muita coisa... em cadeira de rodas. Tem muitas pessoas que toma tiro aí e fica na cadeira de rodas. Não morre e fica na cadeira de rodas e fica sofrendo

26 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007. 27 Pesquisa de campo realizada durante atividade pedagógica em 23 out. 2007. 28 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 29 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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muito. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)30.

Os atos violentos que têm mortes como conseqüência têm aumentado. Nas

duas últimas décadas do século XX, nas grandes cidades do mundo e em alguns

países como o Brasil, os dados epidemiológicos evidenciam o crescimento da

morbidade e da mortalidade por causas externas (PRIULI; MORAES, 2006). De

acordo com estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS), no ano 2000

morreram cerca de 1,6 milhões de pessoas no mundo inteiro como resultado dessa

violência: 25% por acidentes de transporte, 16% por suicídio, 10% por violência

interpessoal, 9% por afogamento (PRIULI; MORAES, 2006).

No Brasil, o aumento da taxa de mortes por causas externas é fenômeno de

alta relevância. No começo da década de 80, ocupava o quarto lugar no patamar

das principais causas de óbito. A partir de 1989, passou para segundo lugar,

perdendo somente para doenças do aparelho circulatório. Nesse período, registrou-

se no País um coeficiente de mortes por homicídios de adolescentes e jovens com

faixa etária de 15 a 24 anos superior à estatística de países que se encontram em

guerra civil, como Israel, Croácia, Eslovênia e Irlanda do Norte (POCHMANN, 2002).

Se até meados da década de 1990 o aumento da violência se restringia às grandes

capitais da região sudeste, atualmente as taxas de homicídios elevaram-se em

capitais médias e pequenas. O fato de esse índice ser maior na região sudeste

evidencia que o aumento do número de homicídios não está articulado somente à

questão da pobreza e da desigualdade social, mas também a processos subjetivos

marcados, sobretudo, pelo individualismo e pelo consumo (ZALUAR, 2004). De

acordo com Velho (2000), a exacerbação da violência e o fortalecimento do “mundo

do crime” estão articulados à inadequação de recursos legítimos utilizados pela

população mais pobre para adquirir bens de valores publicizados pela mídia.

No que se refere a Belo Horizonte, os dados da Secretaria de Estado e

Defesa Social de Minas Gerais (SEDS) informam que, durante a última década do

século XX, o número de homicídios aumentou. Em 1997, foram 357 casos, e em

2002 esse patamar atingiu a marca de 853 mortes, crescendo aproximadamente

250%. Tendo como base os dados do Sistema de Informação de Mortalidade (SIM),

Silveira (2007) pontua que 79% dos homicídios ocorridos na cidade de Belo

30 Entrevista realizada com adolescente em 14/11/2007.

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Horizonte tiveram como causa o uso de armas de fogo. Complementando esses

dados, no ano de 1997 o número total de crimes violentos em Belo Horizonte era de

aproximadamente 12.000; em 1998 atingiu um patamar de 14.500 casos; em 1999,

18.000 crimes violentos na capital. Em 2002, pesquisa realizada pelo Centro de

Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade de Minas Gerais

(CRISP), intitulada “Mapa de Violência de Belo Horizonte”, teve como mérito dar

visibilidade aos crimes violentos em Belo Horizonte e demonstrar, por meio de

análise espacial da capital, que os homicídios concentravam-se em áreas

específicas da cidade, sobressaindo-se em seis dos mais de oitenta conglomerados

urbanos daquele período. A pesquisa desnaturalizava a associação habitual feita

entre favela e criminalidade, mas ratificava que o maior número de vítimas de

homicídios era registrado nas regiões onde a renda média atingia percentual menor

e os equipamentos públicos e privados eram mais precários. Um conjunto complexo

de fatores explica o aumento dos homicídios em Belo Horizonte. Dentre eles, estão o

aumento da venda de crack e de armas de fogo, estas últimas comercializadas por

preço cada vez mais acessível, usadas por pessoas cada vez mais jovens (BEATO,

2006).

A proximidade da moradia configurava-se como um dado importante, pois

grande parte das ações que provocavam os assassinatos tinha vizinhos como

protagonistas. Esses homicídios têm como motivação rivalidades pessoais, disputas

por pontos de distribuição de entorpecentes, rivalidades com grupos de outras

regiões e incursões policiais nas áreas de atuação desses adolescentes. O

acompanhamento dos adolescentes ratifica essas ocorrências:

[...] já teve situação de tipo assim: o cara ter paquerado a namorada do traficante, sem saber que o cara era o traficante e ali seria um motivo passional, né. O traficante agora porque foi traído ou terminou com a moça, ou matou a moça, agora quer matar o adolescente também. Ou por uma situação de numa “correria”, numa troca de tiros, alguém feriu ou matou o colega, o amigo, o parceiro de um outro. Então: “ah, ele matou meu parceiro, então agora eu vou vingar o meu parceiro”. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos).31

Ele foi assassinado [adolescente]. Por que? Porque foi liberado e continuou trabalhado em uma fábrica de calçados na Saudade, só que ele dizia o seguinte: “quando receber um dinheiro maior, vou ser patrão”. Aí começou a

31 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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comprar droga e vender, droga e vender. Só que lê foi vender droga no pedaço do outro. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos).32

O patrão dá a droga para o menino vender. Só que acontece o seguinte: começa a ficar tentado a surrupiar, a ganha mais um pouquinho. Então, às vezes ele não presta conta, faz dívida com o dono, com o gerente da boca. Está assinando a sentença de morte dele, entendeu? Porque o traficante não perdoa. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)33.

Os adolescentes usam a palavra “guerra” para dizer do conflito violento entre

grupos de adolescentes ou por questões de ordem pessoal:

Por que essas guerra começa? A maioria é por causa de droga. Começa a vender pedra. [...] A outra começa a vender muito e a outra boca começa a vender pouca e aí começa a outra a querer tomar a boca do outro... Aí vai e começa as guerra. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos).

Muita vez por causa do tráfico também, porque uma boca ali tá vendendo mais, a outra tá vendendo menos, aí eles vai arrumar, vai arrumar guerra. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)34.

O principal motivo é o tráfico. Eles têm a boca lá que eles vendem droga. Outros adolescentes, outras pessoas tentam tomar esse ponto, ou tenta uma região dentro da favela, região de cima com região de baixo, igual tem Morro Alto tem Caixa d´água e o pessoal do Curumim, né, vive em “guerra”. Principalmente por causa dessa disputa. E essa “guerra” aí mata um “conhecido”, um “parceiro”, [...] aí tem que correr atrás, ele vai armar pro “parceiro” de outro. E vai matando, vai matando o outro e vai. E aí uns assumem a responsabilidade de vingar: “vou ter que matar, esse cara matou meu parceiro, esse cara matou fulano, matou ciclano”. E por aí vai. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)35.

Os homicídios cometidos em função de rivalidades pessoais geralmente têm

como estopim traições amorosas, e as mulheres envolvidas nessas relações são

objetos disputados pelos adolescentes:

Tem isso também arrumar guerra por causa de mulher, ué! [...] Elas participam assim, tem umas que, igual, aqui tá a boca, aqui tá a outra. Aí elas fica vindo aqui, fica vindo aqui, só levando conversa. Tem mulher que faz casinha. Leva a pessoa também assim pro outro matar. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)36.

Eu lembro de ter surgido uma guerra em função de um relacionamento, de uma traição e aí no caso o lugar da mulher ficou meio que assim né, ela ciente de que com quem ela se relacionava, né, arriscar. [...] nos atendimentos os meninos na hora de comentar essa coisa assim do leva e

32 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 2007. 33 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 34 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 11 out. 2007. 35 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 36 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.

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traz, dos anúncios, dos avisos. “Oh, fulano de tal falou que se eu piá em tal lugar, fulano de tal vai arrancar minha cabeça. Então, aparece, faz-se menção à mulher, né, às meninas, um pouco nesse lugar. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)37.

Na tentativa de afirmar sua masculinidade, esses adolescentes, além de

mulheres, disputam poder e pontos de droga, instaurando uma rede social marcada

pela desconfiança, pela possibilidade da traição e por um jogo de intrigas que tem

por objetivo fortalecer uma imagem que demonstre valentia e autoridade: “pra

mostrar que é o cara, que tem moral no crime” (Profissional da Unidade de

Semiliberdade, 36 anos)38. Essas marcas possibilitam a esses sujeitos serem

reconhecidos na comunidade onde residem e conferem certo status característico do

“mundo do crime”, marcado sobretudo por um ethos de virilidade (ZALUAR, 2004).

Nas entrevistas com os adolescentes, essa associação crime-poder-droga-mulheres-

status-virilidade fica evidente:

As mulheres gosta de ver dinheiro e arma. E aí ela vendo isso, é que nem naquela gravação do Tropa de Elite o cara falando que as “cocotas” quando vê umas arma elas não querem nem saber daquele cara que trabalha. Elas só quer saber daqueles traficante que tem dinheiro e arma. [...] Ah, sei lá... Pra tipo botar medo em outra pessoa também, pra falar que é “a tal”, tipo elas gosta de fazer assim, tipo eu tô com uma arma, aí, tipo elas já começa tipo a “dar mole” pra mim, entendeu? Aí se eu fico com ela, ela começa a espalhar pra todo mundo: “ah, que eu fiquei com ele e pa”, aí tipo todo mundo começa a ter medo, entendeu? “Ah, não mexe com aquela menina ali não porque ela namora com o tal e aquele tal é, ele tem arma, tem tudo”. Aí os outros começa a ficar com medo, entendeu? Por isso que elas gostam da arma também. Pra “botar pressão” em outras pessoas, em outras mulheres também. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)39.

Nessa rede social, os relacionamentos são marcados pela busca de

reconhecimento. Instauram-se relações subjetivas, amorosas e sociais

fundamentadas na exibição e na necessidade de obter “ganhos”.

Estudos realizados nos Estados Unidos que tiveram como locus um clube

noturno freqüentado pela geração hip-hop (ZALUAR, 2004) mostram que as

mulheres categorizam os homens envolvidos na criminalidade, estabelecendo uma

hierarquia. No topo da pirâmide, encontram-se os traficantes de drogas, sujeitos que

possuem renda melhor devido ao lugar que ocupam na dinâmica do tráfico; em

segundo lugar estão os rappers que já gravaram álbum, seguidos dos repassadores 37 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 38 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 39 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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de drogas e dos freqüentadores assíduos do local. No acompanhamento dos

adolescentes em semiliberdade, essa mesma categorização foi observada. Também

por esse motivo, os meninos aspiram ocupar um dia o topo na hierarquia do tráfico,

posição que lhes traria não só mulheres, mas notoriedade. Essas mulheres “são

como testemunhos sexuais da masculinidade de um homem, por isso, não basta a

conquista, é preciso falar delas. Como troféus da masculinidade, são mais do que a

prova do objeto de desejo, mas a prova material do desempenho sexual” (ZALUAR,

2004, p.375). Ter muitas mulheres reforça o ideal viril. Logo, as relações amorosas

encontram-se capturadas pela lógica do mercado em que,

Uma cultura de risco impregnada pelo desejo de poder e reconhecimento chega como um apelo irresistível à auto-realização dos jovens. Essa auto-realização se faz através da força das armas e da posse das mulheres, vinculando esses jovens do meio social carente à possibilidade da demanda no mercado de consumo. (CAMPOS, 2006, p. 96).

Bauman (2001) afirma que o momento atual tem como características a

fluidez e a liquidez. Essa metáfora traz como marcos a renovação acelerada e a

inovação frenética, onde tudo é temporário. Tal cenário constituiu-se a partir da

perda de referenciais, que podem ser localizados numa mudança de registro, em

que a lógica paterna – hierarquizada, centralizadora e disciplinar – deixa de ser

parâmetro. Com essas mudanças, instituições como a família e a escola sofreram

alterações e, de certa forma, perderam seu poder em relação aos sujeitos.

A lógica da modernidade líquida pode ser transplantada para as relações

humanas. Em sua obra “Amor líquido”, Bauman (2004) teoriza sobre fragilidade dos

laços humanos, promovida pela cultura do descartável. O autor compara o

relacionamento pós-moderno a um shopping center, onde não se compra por

desejo, mas por impulso. As relações seriam mercadorias, prontas para serem

consumidas; se apresentam algum defeito ou não satisfizerem o cliente, são

trocadas por outras, consideradas melhores.

Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se pensar a forma como homens e

mulheres vêm se relacionado no momento atual. No caso de sujeitos que têm o

crime como referência, essa lógica evidencia a busca não do amor, mas de status e

reconhecimento social. Um fator que favorece homicídios nesse contexto das

relações amorosas é o valor que se atribui à vida do outro. Um simples gesto ou

olhar são motivos para se cometer um homicídio, que podem ser entendidos como

tentativas de auto-afirmação e busca de reconhecimento: “a lógica é a seguinte: [...]

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mostrar superioridade. Eu mato, eu sou poderoso, eu tenho poder de vida e morte

sobre você, ou sobre quem eu quiser” (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69

anos)40. As circunstâncias de um assassinato cometido por um adolescente

encaminhado para o cumprimento da medida de semiliberdade validam as

afirmações anteriores:

[...] Ele matou um pai de família porque a menina que estava em companhia dele falou: “esse cara mexeu comigo”. Aí foi tomar satisfações: “a sua menina, não sei quem é, e outra coisa, um homem na minha idade não se envolve mais com criança”. Pelo fato de ele ter chamado a menina de criança, ele disse: “que essa é minha mulher, minha mulher. Aí ele apontou a arma pro cara. “Pelo amor de Deus, você não me mata porque sou pai de cinco filhos. Ele disse: “Você vai cuidar deles no inferno”. E matou o cara friamente. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)41.

Nesse relato, pode-se observar que o apelo feito pela pessoa que se

encontrava em situação de ameaça insinua uma valorização da vida via paternidade:

“não me mate, sou pai de família”. Esse apelo, entretanto, não foi suficiente para que

a vida do “pai de família” fosse poupada, devido às leis reinantes na “vida do crime”.

Os dados coletados nas entrevistas e na observação participante mostram

que existe uma diferenciação dos valores da existência humana entre os

adolescentes. A vida dos chamados “Jacks”, “X9s”, “cagüetes” 42 não tem valor. Da

mesma forma, a vida dos “ratos de boca” e dos “ratos de cadeia” também não é

valorizada:

“Rato de boca” é o cara entocar a pedra ali e eu ver, aí ele sai e eu vô lá e pego a pedra dele e saio fora, sem ele saber. E aí ele vai lá pegar e cadê a pedra dele? Ainda mais se a droga não for dele e for de outra pessoa. Que que ele vai arrumar? Aí ele vai ter que correr atrás do dinheiro pra pagá a pessoa que ele pegô a droga e ele não vai sair mais no prejuízo. E aí o cara

40 Entrevista realizada em 30 out. 2007. 41 Entrevista realizada em 30 out. 2007. 42 O termo “Jack” está relacionado ao pseudônimo “Jack, o estripador”, utilizado para identificar um assassino em série que agiu em Londres na segunda metade de 1888. Suas vítimas prostitutas, e seus assassinatos típicos eram cometidos em locais públicos e semi-desertos. A garganta da vítima era cortada, e o cadáver submetido a mutilações no abdômen ou em outras partes. O nome foi tirado de uma carta enviada por alguém que dizia ser o assassino, publicada nos jornais à época dos crimes. Embora diversas teorias tenham surgido desde então, a identidade de Jack nunca pôde ser determinada (WIKIPEDIA, 2008). Entretanto, os adolescentes associam a palavra estripador à estupro. Já as expressões X9 e cagüete são utilizadas para nomear delatores.

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que “pilantrô”43, se ele sabe, vai matar o cara (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)44.

Às vezes, por exemplo, um menino evade e leva as roupas do outro. Então isso é, ele é um “safado”, ele é “rato de cadeia”, é um tipo de vacilo no crime, seria uma atitude mal vista dentro da criminalidade. Então tipo assim: ladrão que rouba de ladrão não tem cem anos de perdão. Eles percebem que um cara que “pilantra” o colega, ele tem que pagar. E aí às vezes paga com a vida. Então às vezes, [...] o adolescente evade e a gente teme o retorno dele porque as pessoas que estavam no ato quando ele “pilantrou”, [...] ou anunciam para os demais ou então se organizam para não recebê-lo. Quando ele chega, a gente percebe uma articulação deles para tentar fazer alguma cobrança, talvez não matando, mas castigando, batendo agredindo de alguma forma. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)45.

[...] Sérgio, Célio e Henrique agrediram Ricardo. Agimos de imediato inibindo a ação de violência. Motivo da agressão: Ricardo pulou o muro dos fundos da Unidade e furtou uma bermuda que segundo ele estava no varal do vizinho. O grupo se revoltou com a façanha de Ricardo porque segundo os adolescentes esse ato mancha a reputação da Unidade e a confiança fica abalada com os vizinhos que não já não os enxergam com bons olhos. Os adolescentes também falaram que o crime não aceita falhas e rato de cadeia... (Relatório diário dos educadores, 20/01/2005)46.

Souza (apud ARANZEDO, 2006) afirma que, apesar da vida ser um direito

previsto em vários textos legais, a vida humana não é categoria universal. O valor

atribuído a ela é relativo, pois quando somos interrogados sobre o valor de

determinada pessoa, o primeiro juízo que fazemos é sobre o valor de sua vida, suas

características, sua origem e como essa é avaliada socialmente. Para Zaluar (1994),

o ato de matar não é entendido genericamente como algo errado, criminoso ou ruim,

recebendo um julgamento de acordo com as regras de reciprocidade e justiça que

regem o cotidiano de alguns grupos sociais.

Pesquisa realizada por Aranzedo (2006) ratifica essa realidade: adolescentes

que cumpriam medida sócio-educativa de internação em Vitória, Espírito Santo,

foram entrevistados. Diversas categorias sociais foram apresentadas para serem

analisadas, e o resultado demonstrou que as categorias de estuprador, político,

viciado/drogado, homossexual e policial configuram-se como aquelas cujas vidas

são vistas como menos dotadas de valor pelos adolescentes.

43 Pilantragem é ação violenta não atrelada ao código do “mundo do crime”, como “matar os outro à toa, por pouca coisa, que não tem nada a ver” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos). Informação obtida através de entrevista realizada em 14 nov. 2007. 44 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007. 45 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 46 Pesquisa de campo realizada em 2007.

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O crime de estupro é visto como ato inaceitável para os adolescentes em

conflito com a lei e também por outras pessoas inseridas na criminalidade,

principalmente se envolve crianças. Observações realizadas durante o

acompanhamento de adolescentes confirmam esses dados. Quando recebíamos,

nas Unidades de Semiliberdade, adolescentes identificados como estupradores,

vivenciávamos situações de medo, pois as ameaças eram constantes, o que

geralmente culminava na evasão do alvo das ameaças. Além disso, a maioria dos

profissionais comungava com as opiniões dos adolescentes em relação aos sujeitos

“suspeitos” de estupro, e suas ações contribuíam para que esse adolescente fosse

excluído do grupo.

Quanto à categoria “político”, a avaliação parece estar relacionada às críticas

feitas pelos adolescentes e outras pessoas que residem na periferia das cidades à

postura de políticos que só visitam os bairros pobres na época de eleição, além de

recorrentes denúncias de corrupção envolvendo essa classe. Outro fator

preponderante é o fato de que, em determinadas comunidades, as ações do poder

público se concentram nas incursões policiais realizadas cotidianamente.

Associadas a essas argumentações, está a precariedade dos equipamentos sociais

que caracterizam essas áreas.

No que se refere à categoria “viciado/drogado”, Aranzedo (2006) leva em

consideração o estudo de Alvito (2000) e afirma que tal denominação serve para

pessoas que vêm de fora para adquirir drogas em suas comunidades e podem

cometer algum delito no intuito de adquirir recursos necessários para manter o vício.

Pressupor a vida dos homossexuais como sem importância revela uma

contradição inerente à realidade brasileira, país onde há aceitação maior em relação

a gays e lésbicas. Constata-se, a despeito disso, número acentuado de assassinatos

envolvendo esses sujeitos, vitimizados pelos denominados crimes de ódio,

caracterizados por chacinas e torturas (ARANZEDO, 2006). Talvez o valor atribuído

à vida dos homossexuais pelos adolescentes entrevistados esteja atrelado aos

modos de subjetivação que balizam as maneiras de ser, de pensar, de agir desses

sujeitos, amparados, sobretudo por mandatos de masculinidade. Segundo Aguirre e

Guell (apud ARANZEDO, 2006), tais mandatos são referenciais no processo sócio-

histórico de diferenciação entre comportamentos considerados esperados, aceitáveis

e inaceitáveis.

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Dados da pesquisa realizada por Aranzedo (2006) revelam também que a

não-valorização da vida dos policiais se fundamenta no fato de os adolescentes

terem sofrido atos de violência praticados pela polícia. A relação tensa que mantêm

com os policiais é um dos aspectos observados no Programa de Semiliberdade, e

será apresentada no capítulo 3 desta dissertação.

Por outro lado, o trabalho de Aranzedo (2006) e as reflexões produzidas por

essa pesquisa demonstram que somente a vida das pessoas com quem os

adolescentes mantêm relação afetiva têm valor para eles. Nessa categoria estão

familiares (em especial pai, mãe e irmãos), professores, colegas, namoradas.

Entrevista realizada com uma profissional da Unidade de Semiliberdade fortalece

essas observações:

Às vezes a vida dele vale, a vida daqueles que ele ama vale, mas a dos outros não tem valor, [...] ou nem a dele mesmo tem valor. Tem casos que o adolescente é completamente desligado desse princípio [...], é como se fosse indiferente. Você vai juntando as peças ao longo do trabalho [...] e vai detectando essa necessidade que o menino tem de não se vincular, de não se apegar, ou de ter que se posicionar assim pelo próprio medo de sofrer, pelo próprio medo de morrer ou pela própria história de sofrimento dele. [...] E já tem outros [...] que têm essa consciência do valor da vida dele, do valor da família, e aí ele fala de inocentes, aquelas pessoas com quem ele não tem “guerra”, são pais de famílias, pessoas que não têm envolvimento com o crime. Na favela onde ele mora, matar “inocentes” significa matar alguém que nunca fez mal a ele ou que não tem rivalidade. E aí essa pessoa [que mata “inocentes”] merece morrer. É como se fosse uma forma de se responsabilizar pelo que fez, seria pagando com a morte, [...] agora se o cara ou a menina têm envolvimento com a criminalidade ou faz parte de um grupo, essa pessoa a vida dela não tem valor. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)47.

Podemos concluir que, com o envolvimento com o crime, a vida perde valor, a

partir do momento que o próprio crime se apropria dessa vida, colocada a serviço

dele. Paradoxalmente, em uma tentativa negar essa apropriação, o adolescente

tenta reafirmar o valor de sua própria vida pela morte de outra pessoa.

As atividades da instituição de cumprimento da medida de semiliberdade que

são baseadas na convivência objetivam produzir um questionamento e a busca de

novas formas de resolução de conflitos, baseadas no diálogo e não na violência.

Segundo uma das profissionais entrevistadas, essas atividades têm o mérito de

produzir movimentos que despotencializam a morte, ao reafirmarem não só a vida

do adolescente como um valor, mas também a das outras pessoas:

47 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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o interessante é que a dele vale [...], e quando a gente fala assim: “mas como que você quer matar fulano”? E aí a gente tenta colocá-los pra pensar nesse valor ou nas outras possibilidades ou formas de resolver um determinado desacerto, [...] e aí eles colocam: “é ele ou eu”. Como se não tivesse condições de lidar com isso de uma forma diferente. E é muito interessante que ao longo do cumprimento da medida já teve dentro da própria Unidade pessoas de grupos rivais que conseguiram conviver e se relacionar sem acabar acontecendo uma situação de morte, ou de denúncia ou de um delatar o outro, [...] a partir da convivência e do diálogo às vezes isso é possível. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)48.

Uma situação vivenciada por mim retrata o que foi explicitado acima. Em

2001, após participar de uma reunião de trabalho no centro da cidade de Belo

Horizonte, encontrava-me em meu carro parada, aguardando o sinal abrir, e fui

abordada por um adolescente que almejava furtar meu relógio. Ao me reconhecer,

pediu desculpas e saiu bastante envergonhado: havia cumprido a medida de

semiliberdade, período durante o qual mantivemos uma relação próxima e afetuosa.

Outro dado importante analisado por Aranzedo (2006) é que os adolescentes

entrevistados atribuíram alto valor à própria vida, demonstrando grau elevado de

auto-estima – motivo relevante no cometimento do homicídio –, o que contrasta com

dados apresentados por Feijó (2001), que revelam como característica comum aos

adolescentes envolvidos na criminalidade a desvalorização de sua vida. Ao tomar

como pressuposto as afirmações de Aranzedo (2006), cabe o questionamento sobre

o que leva esses adolescentes a colocar sua vida em risco. Parece que o

envolvimento no crime coloca em funcionamento um modo de subjetivação em que

críticas e análises sobre as conseqüências possíveis advindas da inserção na

criminalidade – a própria morte, por exemplo – não têm lugar, devido à necessidade

de estar em atividade constante. Esse modo de subjetivação foi nomeado por mim

como “correria”, e será abordado no capítulo 3 desta dissertação.

Complementando essas análises, cabe ressaltar que são recorrentes, entre

os adolescentes escutados, explicações para os homicídios e outros atos violentos

envolvendo seus contextos familiares, muitas vezes entendidos como realidade a-

histórica, imutável e natural, em que determinados modelos se tornam hegemônicos

e qualquer desvio da ordem estabelecida é entendido como patologia e desestrutura

(RUBIM, 2007). Willems (apud ROMAGNOLI, 1996) apresenta visão contrária a essa

idéia:

48 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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[...] condições de vida diversas produzem diferentes arranjos familiares. Ou seja, no seu cotidiano indivíduos de diferentes regiões e de diferentes seguimentos sociais constroem um leque de alternativas que, na maioria das vezes, fogem ao padrão estabelecido pelos modelos de referência, correspondendo de um conjunto de possibilidades que concretamente se apresentam e se efetivam, no transcorrer do dia-a-dia desses sujeitos. (WILLEMS apud ROMAGNOLI, 1996, p.61).

De acordo com Romagnoli (1996), o processo de naturalização dos

agrupamentos familiares no século XX teve como um de seus principais vetores o

processo de industrialização, que promoveu o fechamento da família sobre si

mesma, fazendo surgir duas esferas distintas: a vida doméstica e a pública.

Consagra-se a família conjugal ou nuclear como o modelo dominante de

organização privada nas sociedades modernas e, a partir dessa cisão, submete-se

os agrupamentos familiares à inconstância do mundo industrial e ao isolamento na

esfera privada do lar. Passam a ser vistos como unidades de consumo – de bens, de

instrução, de saúde, de lazer, enfim, de tudo passível de ser comercializado.

Legítima e poderosa, a família conjugal habita o reino limítrofe entre o público e o privado, sendo que dela é esperado a efetivação de um cotidiano estável e seguro para que, como célula básica da sociedade, atue na construção de um espaço social que tenda sempre para o aprimoramento e para a harmonia. (ROMAGNOLI, 1996, p. 63).

Esse modelo hegemônico de família reflete a realidade das classes média e

alta, moderna e urbana. Pode ser caracterizado como um grupo social restrito em

estrutura, função e hierarquia. Quanto à estrutura, sua formatação é constituída pelo

casal e poucos filhos49. Os parentes não estão presentes no cenário familiar, com

residências próprias e vidas autônomas. Quanto às funções, restringem-se à

procriação e criação dos filhos, tendo como fio condutor o afeto. Sua hierarquia é

flexível, articulada à divisão do trabalho entre os sexos e ao conflito de gerações.

Nessa organização, a condição econômica ganha importância e legitima-se como

símbolo de status e poder. Esse modelo de família regrada, normatizada,

corresponde a uma determinada classe social – a burguesa – e carrega em si

aspectos que diferenciam seus componentes de sujeitos de outras classes sociais.

Esses aspectos estão relacionados à higiene, à moral, à sexualidade e à

intelectualidade, caracterizando o que é ser um representante digno da família

nuclear burguesa: um sujeito saudável, forte, limpo e bem alimentado.

49 Atualmente, instituem-se outras formas de constituições familiares no seio das classes média e alta, moderna e urbana, como as famílias monoparentais e as decorrentes das separações parentais, onde os companheiros dos pais ou mães tornam-se também membros.

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Tal modelo de família foi e ainda é um incentivo ao racismo e a uma série de

preconceitos. De certo, avalizou e produziu muitas das práticas endereçadas aos

pobres ainda hoje. É hegemônico apenas em certo imaginário social: empiricamente,

a família nuclear burguesa nunca foi majoritária, existindo grande variedade de

organizações familiares que perpassam as classes sociais em diferentes períodos

históricos.

A organização da maioria das famílias dos adolescentes que se envolvem em

atos infracionais foge dessa padronização. Entretanto, a essa forma de organização

familiar alternativa é imputada uma culpabilização no que se refere à trajetória

infracional dos adolescentes. Também é comum encontrar análises fundamentadas

cientificamente afirmando que o problema da criminalidade se centra na

personalidade delinqüente dos jovens. Mesmo entre os profissionais destinados a

atender esta população (entre psicólogos, assistentes sociais, educadores,

advogados), é comum perceber esse discurso culpabilizante e discriminatório, além

de expressões como “abacaxi”, “pepino”, “bomba” para se referir aos adolescentes

“problemáticos”. São freqüentes também práticas que visam “cortar o mal pela raiz”,

ou, ao contrário, apenas se livrar do “problema”, como a transferência de

adolescentes para outras Unidades da Rede de Atendimento.

Retomando a discussão sobre a temática da violência, é válido afirmar que,

contrariamente às idéias que culpabilizam famílias e adolescentes pelo envolvimento

em atos infracionais, este trabalho fundamenta-se na compreensão de que a

violência é fenômeno multifacetado e multifatorial. A origem desse vocábulo remete

à palavra vis, que significa “força”, e está articulada às noções de constrangimento e

uso da superioridade física sobre o outro. No que se refere ao sentido material,

o termo parece neutro, mas quem analisa os eventos violentos descobre que eles se referem a conflitos de autoridade, a lutas pelo poder e à busca de domínio e aniquilamento do outro, e que suas manifestações são aprovadas ou desaprovadas, lícitas ou ilícitas, segundo normas sociais mantidas por aparatos legais da sociedade ou por usos e costumes naturalizados. Mutante, a violência designa, pois – de acordo com épocas, locais, circunstâncias –, realidades muito diferentes. (MINAYO, 2003, p. 25).

Wieviorka (1997) afirma que, na contemporaneidade, a violência se expressa

a partir de um novo paradigma. Nas décadas de 50 e 60, instrumentalizava-se por

mecanismos ideológicos e políticos; atualmente, marca-se pela falta de

reconhecimento social e pela banalização do sujeito e das leis, possuidora de

caráter infrapolítico, manifestando-se em diversos setores e afirmando-se como um

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fim em si mesmo. Essa violência pode ser entendida a partir do fenômeno do

enfraquecimento dos laços sociais (SANTOS, 2007) e das questões colocadas pelo

mercado (BAUMAN, 1998). Com esse enfraquecimento, são reforçados padrões

individuais na busca por bens de consumo, e a construção de projetos coletivos fica

prejudicada.

As ações violentas implementadas por adolescentes são exemplos de

movimentos onde se busca reconhecimento. Com as relações sociais prejudicadas e

“necessidade” de consumir, engendram-se subjetividades onde a palavra não tem

lugar. O ato violento passa a ocupar o lugar da palavra e é efetivado de forma

naturalizada. Os depoimentos dos profissionais da semiliberdade retratam essa

situação:

[...] por exemplo, eu tenho 36 anos, na minha época, uma confusão era briga. Quem soubesse brigar mais ganhava. Hoje em dia não. Se der um “cocão” numa criança de 10 anos, dependendo de onde ele estar, do convívio dele, ele vai arrumar um revólver e vai matar. [...] É por aí. Hoje em dia não tem muita conversa. As coisas são resolvidas através da bala. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)50.

[...] quando eu era adolescente, havia os conflitos inclusive, entre bairros, naquela época, né. Mas não se tratava de “guerra” não. Não se falava em “guerra”, não. Ah, não! No dia que eu encontrar com fulano lá, eu vou acertar as contas com ele, resolver no braço. Resolvia o negócio no braço. Porque naquele tempo inclusive, não havia a facilidade de aquisição de armamento, igual existe agora. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos) 51.

Uma das grandes contribuições da medida sócio-educativa de semiliberdade

é o desenvolvimento de ações que vão contra essa forma naturalizada de resolver

os conflitos a bala. Tais ações apóiam-se em atividades coletivas em que os

adolescentes são convocados a encontrar soluções para os problemas pelo diálogo.

Segundo Arendt , “somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência,

por si só, jamais pode ter grandeza” (ARENDT, 1981, p.35). Ela baseia-se na

constituição da sociedade grega, em que a política nasce da palavra e, portanto,

pressupõe a discussão e exclui a violência (ARENDT, 1981). A palavra como

fundamento da política é princípio a ser resguardado e pode ser utilizado como um

dispositivo de combate à violência.

50 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 23 out. 2007. 51 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 30 out. 2007.

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Os meninos chegam na semiliberdade e não parecem que são aqueles meninos que estavam lá no CEIP. Porque lá eles são agressivos, eles se agridem o tempo inteiro. E aí eles vêm pra semiliberdade, eles convivem, sabe. Eles chegam a ter desavenças, mas se for pra ter uma análise de lá da internação pra medida de semiliberdade é totalmente diferente. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)52.

E aí na semiliberdade eles colocam que o desfio e a convivência, né, porque é uma convivência bastante intensa com outros adolescentes e com uma equipe que é grande e é muito próxima. Então essa convivência às vezes é o que é mais difícil pra eles. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos) 53.

Retomando as contribuições de Wieviorka (1997), uma das principais

mudanças articuladas ao novo paradigma da violência é dada pelas referências

crescentes de seus protagonistas a uma determinada identidade. No caso dos

adolescentes brasileiros, pobreza, raça, gênero e local onde residem são aportes

fundamentais. Problematizar os efeitos destas articulações nas relações

estabelecidas entre esses atores e o todo social, bem como o fortalecimento dessas

identidades, constitui-se como uma das tarefas do presente trabalho.

Uma série de transformações internacionais nas relações societais, no campo

político, econômico e subjetivo, marcadas, sobretudo, pela intensificação do

individualismo gerou uma nova ordem mundial. Nela, a violência passou a

apresentar nova roupagem, em que a violência não se apresenta enquanto

(...) luta contra a exploração, a sublevação contra um adversário que mantém com os atores uma relação de dominação, e sim, a não-relação social, a ausência de relação conflitual, a exclusão social eventualmente carregada de desprezo cultural ou racial. Ou seja: ela é também uma representação, um predicado que, por exemplo, grupos, entre os mais abastados, atribuem eventualmente, e de maneira mais ou menos fantasmática, a outros grupos, geralmente entre os mais despossuídos. (WIEVIORKA, 1997, p.7).

No caso específico do Brasil, o fenômeno da violência envolvendo, sobretudo,

crianças e adolescentes é marcado por um processo de “diabolização” ratificado por

referenciais raciais, sócio-econômicos, geográficos e relações de gênero. Esse

fenômeno recebe reforços constantes da mídia, que apresenta diariamente esses

protagonistas da violência como seres de segunda categoria.

A esse respeito, o conceito “abjeto” foi utilizado por Judith Butler (2003),

filósofa pós-estruturalista estadunidense que contribuiu para os campos do

52 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 30 out. 2007. 53 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada no dia 23 out. 2007.

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feminismo, da filosofia, da política e da ética. De acordo com essa autora, esses

seres “abjetos” fazem parte da constituição da sociedade, em que são construídos

modelos que devem servir de parâmetros para as condutas. Para os sujeitos cujos

comportamentos subvertem o padrão, a abjeção é a ordem que prevalece. Butler

(2003) ressalta que o processo de identificação e constituição do sujeito implica um

espaço de abjeção que deve ser entendido como exterior, mas que só ganha

relevância à medida que opera também “dentro” do sujeito. Trata-se do lugar onde o

sujeito se constitui enquanto tal.

O sujeito é constituído através da força da exclusão e da abjeção, uma força que produz um exterior constitutivo relativamente ao sujeito, um exterior abjeto que está, afinal, ”dentro” do sujeito, como seu próprio e fundante repúdio. (BUTLER, 2003, p. 155-156).

A autora enfatiza ainda, em resposta os questionamentos de Baudje Prins e

Irene Costeira Meijer, que a abjeção “relaciona-se a todo tipo de corpos cujas vidas

não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante”

(PRINS; MEIJER, 2002, p.161).

De acordo com Ferreira (2004), o termo “abjeto” relaciona-se a conceitos

como vil, desprezível, ignóbil, imundo, ligando-se à idéia de monstruosidade,

anormalidade, marginalidade. Isso explica a diferença de tratamento e de olhar

dirigidos a adolescentes e jovens envolvidos em práticas violentas, de acordo com

suas origens – classe média e alta e classes populares. É a essa última que os

“menores” e os “seres abjetos” pertencem.

Estas argumentações podem ser corroboradas nas discussões envolvendo o

assassinato de um jovem casal de namorados, Felipe Silva Caffé, 19 anos, e Liana

Friendenbach, 16 anos, ambos oriundos da classe média, ocorrido em 2003 e

amplamente veiculado na mídia, que pôs em cena um fervoroso debate em torno da

questão da inimputabilidade penal de crianças e adolescentes. De acordo com a

Revista IstoÉ (SILVA; SIMAS FILHO; MORAES, 2003), Liana, filha de um advogado

e uma pedagoga, cursava o 2º ano do ensino médio no colégio São Luiz, um dos

mais tradicionais de São Paulo. Felipe, quarto filho de um economista e uma

enfermeira, cursava o 3º ano do ensino médio no mesmo colégio. No dia 29 de

outubro de 2003, a jovem disse aos pais que passaria o fim de semana com amigas

de um grupo de jovens ligado à Congregação Israelita Paulista em Ilhabela, litoral

norte de São Paulo. Entretanto, no dia seguinte, saiu da escola acompanhada pelo

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namorado, com destino a Avenida Paulista, onde passaram a noite perambulando.

Já de manhã, seguiram de ônibus para Embu-Guaçu e caminharam cerca de oito

quilômetros até o sítio do Lê, uma área abandonada. Lá, armaram a barraca e foram

passear nas redondezas. Quando caminhavam para o lago, foram vistos pelo

adolescente R.A.A.C., 16 anos, conhecido como Champinha.

Pobre, filho de pai alcoólatra, Champinha estudou até a terceira série do

ensino básico. Entre os 10 e os 14 anos, ajudou a mãe no trabalho da roça. Após

este período, adoeceu, passando a apresentar freqüentes convulsões. Sem recursos

para tratamento, começou a viver nas ruas, prestando serviços a quadrilhas que

atuam no desmanche de carros. Apesar de não registrar nenhuma passagem pela

Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor (FEBEM)54, foi acusado de já ter

matado pelo menos uma pessoa. Sempre com um facão na cintura, impunha-se na

região pelo medo que transmitia aos vizinhos, conhecedores de seus crimes.

Quando avistou o casal Liana e Felipe, Champinha pensou em assaltá-los.

Percebendo que necessitava de auxilio, chamou Aguinaldo Pires, 41 anos,

companheiro de pequenos furtos e caseiro de uma chácara do local. Com uma

espingarda e o facão, Aguinaldo e Champinha não tiveram dificuldades para render

o casal. Na carteira de Liana, encontraram somente R$45,00. Frustrados com a falta

de maiores valores, transformaram o assalto em seqüestro e levaram o casal até a

chácara em que Aguinaldo trabalhava, onde tiveram a ajuda de Paulo César

Marques, conhecido como Pernambuco. Em um casebre em condições precárias, os

cinco passaram a noite em um mesmo quarto.

No dia seguinte, após Felipe ter argumentado que sua família não era rica e

que tinha um irmão policial, o casal foi levado a um local na mata, onde Felipe foi

assassinado por Pernambuco. De acordo com os depoimentos, Liana não viu o

namorado ser morto, mas ouviu os tiros, o que a deixou em choque: “ela ficou

tremendo o tempo todo e não falava nada. Só chorava”, disse Aguinaldo (SILVA;

SIMAS FILHO; MORAES, 2003, s/p). Assim que assassinaram Felipe, retornaram

com Liana para o cativeiro. No final da tarde, Pernambuco foi a São Paulo para

54 As FEBEMs são organizações estaduais destinadas aos adolescentes em “situação irregular” - infratores e aqueles considerados abandonados moral ou materialmente por seus familiares, de acordo com o Código de Menores de 1927. Vinculadas à Fundação Nacional do Bem-estar do Menor (FUNABEM), instituída pela Lei Federal 4513 de 01/12/1964, que executava a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM) em todo território nacional, em substituição ao Serviço de Assistência ao Menor. Com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, as FEBEMs deveriam ser reformuladas, mas essa reestruturação ainda não aconteceu em grande parte do território nacional.

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“vender Liana a seqüestradores experientes”. Até o dia cinco de novembro, ela

permaneceu refém de seus seqüestradores. Ameaçada com uma faca, era obrigada

a representar o papel de namorada de Champinha e passava os dias andando com

ele pela mata.

Na madrugada desse dia, Champinha e Aguinaldo levaram Liana para a mata

e Champinha assassinou-a com duas facadas no peito. Após cair, ela ainda levou

mais doze estocadas no tórax e uma no pescoço. Depois, Aguinaldo viajou para São

Paulo e Champinha foi para a casa de sua avó, onde permaneceu até ser preso no

dia 10, quando confessou o crime e levou a polícia até o local onde foram

encontrados os corpos de Liana e Felipe. “Ele disse que matou simplesmente

porque sentiu vontade de matar”, afirmou o delegado José Jaques (SILVA; SIMAS

FILHO; MORAES, 2003, s/p). Aguinaldo e Pernambuco foram presos poucos dias

depois.

Na época, o acontecimento trouxe à tona discussão sobre a redução da

maioridade penal, até então abafada pelas investidas brasileiras no mercado

internacional, pela discussão a respeito da ocupação americana no Iraque e pelos

sonhos que se renovam com os preparativos para as comemorações de fim de ano.

Em função desse homicídio, contudo, diversas análises foram feitas e partidos

tomados em prol ou contra a redução da maioridade penal. Blocos convergentes e

divergentes formaram-se, guiados ora por reflexões movidas pela emoção e

solidariedade, ora por discussões de cunho social e político.

Um dos pontos de vista possíveis sobre esse caso traz à luz a existência de

diferentes olhares e práticas sobre o adolescente e o jovem, dependendo de sua

origem. Além de ter acesso a defesa prévia e todas as garantias legais, quando um

adolescente ou jovem de classe média ou alta comete um delito, caracteriza-se tal

fato como algo circunstancial, associado a uma patologia, geralmente psíquica. Em

contrapartida, quando um adolescente ou jovem das classes populares comete uma

infração, a situação é explicada por sua “subjetividade perversa”, embasando-se nas

idéias de estrutura, totalidade, universalidade e imutabilidade. Há, percebe-se, pesos

diferentes para a vida dos protagonistas dessa história.

O homicídio dos adolescentes Liana e Felipe, tão alardeado pela mídia, não passaria de uma tragédia particular como tantas outras registradas cotidianamente em nossas delegacias de polícia não fossem as circunstâncias nas quais ocorreu. Não me refiro ao grau de crueldade na execução do crime, pois dezenas de Marias e Joões são mortos todo dia em

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situações tão ou mais bárbaras, e não são objeto sequer de uma nota nos jornais de primeiro escalão. O que difere este homicídio daqueles que já não vendem mais jornais é a posição ocupada pelas vítimas na sociedade. Na balança da mídia e de seus consumidores de tragédias pessoais, a vida de um adolescente de classe média vale muito mais do que a de João e Maria. (VIANA, 2003, p.1).

Imagens veiculadas pela mídia impressa e eletrônica reforçam a associação

entre pobreza e periculosidade, na qual “adolescentes audaciosos e violentos,

destituídos de quaisquer freios morais, frios e insensíveis [...] não hesitam em matar”

(ADORNO; BORDINI; LIMA, 1999, p. 65).

Viana (2003) afirma também que o fato de os adolescentes assassinados

pertencerem à classe dominante possibilitou uma série de identificações da

sociedade, que também se viu como vítima:

O que choca nas mortes de Liana e Felipe não são as circunstâncias da execução, mas a transferência que o leitor-telespectador-consumidor faz, colocando seus próprios filhos na situação das vítimas de fato. As mortes das Marias e dos Joões não chocam, pois se dão nas favelas, na periferia, em suma, em lugares demasiadamente distantes e "perigosos" - as aspas aqui são imprescindíveis - para a maioria dos filhos da classe média. Violento é Champinha, e não o Estado, que lhe negou uma infância minimamente digna, e a mídia, que só enxerga crianças e adolescentes miseráveis para mostrar a seus consumidores o quanto eles são "perigosos" e com que frieza eliminam uma vida. (VIANA, 2003, p.1).

Em suma, a produção de “infâncias e adolescências desiguais” (BULCÃO,

2002) no Brasil – a pobre, que necessita ser punida e trancafiada, e a abastada, que

necessita de orientação, cuidados e tratamento – tem como conseqüência o

desenvolvimento de políticas e ações diferenciadas para cada classe.

2.3. As políticas de atendimento destinadas aos ado lescentes em conflito com a lei

Um dos aspectos que caracterizou o desenvolvimento das políticas públicas

brasileiras foi o processo de exclusão de alguns sujeitos em relação aos direitos

concernentes a essas políticas. Segundo Frota (2002), o caso brasileiro suscita

muitas interpretações, mas todas têm um ponto de convergência: a idéia de que,

paralelamente à afirmação dos direitos de cidadania, foram sendo estabelecidos

critérios de exclusão/inclusão dos indivíduos no status de cidadão, em termos de

titularidade e exercício desses direitos.

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Os direitos civis e políticos foram introduzidos no Brasil quase que

simultaneamente na constituição Imperial de 1824, que promulgou a liberdade de

manifestação, de pensamento, de reunião e a garantia da propriedade privada.

Entretanto, como na Europa do século XVIII, nada foi estabelecido quanto à

capacidade dos indivíduos para o exercício desses direitos. Naquele período, grande

parte da população era escrava e os poucos trabalhadores livres encontravam-se

inteiramente dependentes dos proprietários de terra, impossibilitados de exercer as

denominadas liberdades individuais.

No campo dos direitos políticos, especificamente em relação ao direito de

voto, a Constituição Republicana de 1881 promoveu alterações pouco significativas,

eliminando a exigência de renda e mantendo a da alfabetização. Pelos critérios de

exclusão estabelecidos, cerca de 80% da população era considerada inapta para

votar. Esta situação tornava-se mais grave pelos altos índices de abstenção eleitoral.

Com as reformas constitucionais de 1934 e 1988, foram introduzidas as expansões

de voto. No campo dos direitos sociais, percebe-se forte intervenção estatal, o que

instaura a “cidadania regulada”, que encontra suas raízes não em um código de

valores políticos, mas em um sistema de estratificação ocupacional definido por

norma legal. Ou seja, são cidadãos aqueles membros da comunidade que se

encontram em qualquer uma das ocupações reconhecidas e definidas em lei. A

regulamentação das profissões, a carteira profissional e o sindicato público definem,

assim, os três parâmetros no interior dos quais passa a se definir cidadania.

No caso específico das crianças e adolescentes, estes foram, desde o século

XVII, excluídos da cidadania, sob a alegação de que seriam incapazes de escolha

responsável. Não eram considerados pessoas, excluídos do domínio público da

ação racional. A emancipação das mulheres e crianças, nos séculos XIX e XX,

atribuiu a eles personalidade legal, cabendo ao Estado um peso crucial na

identificação e estabilização desses novos sujeitos legais.

A Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente,

aprovado pelo Congresso Nacional em junho de 1990, foram os primeiros

documentos jurídicos legais brasileiros que consideram crianças e adolescentes

como sujeitos de direitos. A mudança trazida por esses documentos jurídicos elevou

a população infanto-juvenil à categoria de cidadãos. Entretanto, é notório que,

apesar da lei jurídica, que faz com que os direitos adquiridos possam ser exigidos,

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há uma distância enorme entre ela e a realidade em que vivem inúmeras crianças e

adolescentes.

Para entender esta disparidade, é importante observar o percurso histórico

das políticas de atendimento destinadas a adolescentes autores de ato infracional.

Até o século XIX, esse público era submetido às mesmas regras que os adultos.

Postman mostra que, na Inglaterra e na França,

ainda em 1780, as crianças podiam ser condenadas por qualquer um dos mais duzentos crimes cuja pena era o enforcamento. Uma menina de sete anos foi enforcada em Norwich por roubar uma anágua e depois dos distúrbios de Gordon, várias crianças foram enforcadas em praça pública. (POSTMAN, 1999, p. 67)

Nessa época, como já foi apresentado, não havia o conceito de infância, e as

crianças eram vistas como “adultos em miniatura” (ARIÈS, 1984). A socialização e a

educação das crianças vinham da convivência com os adultos: a criança aprendia na

medida em que ajudava o adulto em seus afazeres. Essa concepção que não

diferenciava crianças e adultos fundamentava as práticas jurídicas e, por isso, esses

sujeitos compartilhavam os mesmos espaços, as mesmas atividades laborais e as

mesmas penas.

Foi no século XIX que ocorreram os primeiros questionamentos dessa

indistinção, o que possibilitou o surgimento da Justiça de Menores, a partir do

entendimento de que se deveria imputar aos infratores menores de 18 anos medidas

educativas, diferenciadas das penas aplicadas aos adultos. Essa concepção já

portava a compreensão de que as penas afetavam com mais violência o sujeito na

peculiar condição de sujeito em desenvolvimento.

Segundo Bulhões de Carvalho, citado por Pilotti e Rizinni (1995), em 1899 foi

instituído em Chicago o primeiro Tribunal Especial para Menores e, em 1905, na

Inglaterra, fundou-se o Tribunal de Birmingham. Em 1911, tribunal semelhante foi

criado em Portugal. Outros países como Bélgica, França e Espanha também

instituíram corte semelhantes nesse período.

No Brasil, em 1913, foi criado o primeiro estabelecimento para atender

“infratores” e desvalidos. Em 1917, o Senado recebeu a primeira lei que não

considerava como criminosos adolescentes na faixa etária de 12 a 17 anos

(OLIVEIRA; ASSIS, 1999). No ano de 1927, foi criado o primeiro Código de Menores

brasileiro, baseado na Doutrina da Situação Irregular de 1927, reformulado em 1979,

mantendo, entretanto, as mesmas prerrogativas do anterior (PILOTTI; RIZINNI,

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1995). Nesse período, a infância tronou-se objeto de juristas e o termo “menor” foi

incorporado ao vocabulário corrente (BULCÃO, 2002; RIZZINI; PILOTTI, 1995). Não

houve problematização no que se referia à categoria “menor”, que incluía as

seguintes classificações: abandonado, desviado, delinqüente e viciado,

estigmatizando esses sujeitos.

O Código de Menores tinha como ponto central a idéia do controle social dos

“menores” infratores e daqueles considerados abandonados moral ou materialmente

por seus familiares, ou seja, o controle dos que eram considerados em “situação

irregular”. A lei dava aos juízes o poder de intervir nas famílias pobres consideradas

“desestruturadas” e determinar o destino de suas crianças e jovens. Enquadravam-

se na categoria dos abandonados moral e materialmente as crianças e adolescentes

com menos de 18 anos que se encontrassem casualmente sem habitação e meios

de subsistência devido à indigência, enfermidade, ausência ou prisão dos pais e

guardiões, e até os que tinham pai, mãe ou guardião, estando, entretanto,

envolvidos em atos contrários à moral e aos bons costumes. Eram considerados

delinqüentes os sujeitos de 14 a 18 anos de idade que haviam cometido ato

infracional, sujeitados a um processo especial, com responsabilidade penal

atenuada e encaminhados para prisões-escola (reformatórios) ou, na ausência

destas, para um estabelecimento anexo à penitenciária adulta. Delegava-se aos

Estados a execução do atendimento que se caracterizou, no período de 1930 a

1945, pela intervenção ativa no controle da população excluída.

Com a criação do Serviço de Assistência ao Menor (SAM) em 1942, vinculado

ao Ministério da Justiça, o modelo correcional repressivo foi estabelecido de forma

mais efetiva. Seu objetivo era gerir uma política sistemática da intervenção, com o

intuito de recuperar e reintegrar os jovens. Para isso, contava com reformatórios e

casas de correção, destinados a adolescentes autores de ato infracional, e com

patronatos agrícolas e escolas de aprendizagem de ofícios urbanos, destinados a

menores carentes e abandonados. A estrutura dos reformatórios era análoga à do

sistema penitenciário e a disciplina e o trabalho eram utilizados visando corrigir

condutas que respondiam a defeitos morais (MARTINS; BRITO, 2001).

Em 1979, foi instituída a Política Nacional do Bem-Estar do Menor (PNBEM),

e a execução do atendimento passou a ser feita nacionalmente pela Fundação

Nacional do Bem-Estar do Menor (FUNABEM), e nos Estados pelas Fundações

Estaduais do Bem-Estar do Menor (FEBEM). Entretanto, o trabalho desenvolvido

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nas FEBEMs manteve a mesma característica antecessor: crianças e adolescentes

pobres continuaram a ser tratados como “potenciais marginais” que necessitavam de

“tratamento”. As ações eram “corretivas” e “repressivas”, com métodos terapêutico-

pedagógicos que tinham como meta a “reeducação” e a “reintegração” do menor

para a vida harmônica em sociedade. Nesse período, ideais preventivos

caracterizaram as políticas de atendimento, vistas como capazes de evitar que os

“menores” incidissem na criminalidade. Acreditava-se que o tratamento

“biopsicossocial” reverteria a “cultura da violência” que se disseminava pelos

subúrbios por meio dos conflitos entre grupos de jovens. Isso seria, sob aquele

ponto de vista, fator decisivo para o fim da marginalidade, formando jovens

responsáveis para a vida em sociedade (PASSETTI, 1999).

Conclui-se, portanto, que todos os documentos legais referentes à infância e

adolescência no Brasil, de 1927 a 1979, buscaram legitimar uma intervenção estatal

absoluta sobre esse público, especialmente das classes pobres, rotulados

“menores”, sujeitos ao abandono e considerados potencialmente delinqüentes. Tal

panorama promoveu o fechamento da família sobre si mesma, alvo de intervenções

por parte de poderes legitimados, através de técnicas e discursos sobre a infância,

especialmente a infância pobre, sempre remetida a “famílias desestruturadas”. No

atendimento a esta clientela marcada pela pobreza, pelo desemprego, por péssimas

condições de vida, ressaltam-se freqüentemente “baixos coeficientes de

inteligência”, “baixo desenvolvimento afetivo e emocional”, “imoralidade”, “dificuldade

em estabelecer limites”55 como causas da “delinqüência”, “marginalidade”, “violência”

e “vagabundagem”. Essa visão foi responsável pela construção e ratificação de

estigmas que fizeram com que se produzisse uma associação direta entre pobreza,

conduta anti-social, doença e marginalização. A existência de crianças desnutridas,

abandonadas, maltratadas, vítimas de abuso, autoras de atos infracionais e outras

violações era atribuída à própria índole desses sujeitos.

A concepção de subjetividade entendida como interioridade, formada com

base nas influências sociais, tornou-se, como podemos perceber, discurso

55 Termos recorrentes em relatórios técnicos de um dos Juizados da Infância e Juventude /RJ, onde atuei com estagiária de psicologia em 1999. Anotações pessoais.

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competente para a culpabilização de algumas famílias e contextos sociais, chegando

à máxima de que “um ambiente perverso é causa de uma subjetividade perversa56”.

Torna-se evidente a existência de ações e políticas de atendimento

diferenciadas, quer se trate da criança pertencente à família burguesa, quer se trate

da criança oriunda da família popular. Ao redor da criança da família burguesa, foi

tecido um cordão sanitário que demarca seu campo de desenvolvimento, com

aportes da psicologia e da pedagogia, com vigilância discreta, que Donzelot (1996)

chama de “liberação protegida”. Dentro dessa área, o crescimento de seu corpo e as

aquisições da aprendizagem são apoiados por todos os saberes especializados. No

outro caso, desenvolve-se o que Donzelot chama de “liberdade vigiada”: certo

abandono das crianças pobres por parte dos poderes e saberes instituídos, que

promovem seu encaminhamento para espaços de maior vigilância e exclusão.

No acompanhamento desses adolescentes em semiliberdade, percebe-se

que, apesar de estarem submetidos, como toda a sociedade, aos ditames do

capitalismo e às exigências de consumo, inclusive de um estilo de vida marcado pelo

individualismo e competitividade, há a possibilidade do desenvolvimento de uma

sociabilidade coletiva e solidária. Porém, muitas vezes o atendimento e as políticas

destinadas aos adolescentes e suas famílias reforçam e tornam visíveis somente

sua condição sócio-econômica, marcada por violências, submissões, pobreza e

preconceitos. A inexistência de uma relação com o mundo baseada na efetivação de

direitos coloca essas famílias ora como algozes, ora como portadoras de uma

“desestrutura” responsável pelo “destino criminal” desses adolescentes. É

necessário prevenir, impedir definitivamente que o mal se instale. Nessa

argumentação, a noção de direito esvazia-se e as políticas acabam sendo feitas sem

se levar em conta as necessidades reais dessa população. Engendra-se assim um

processo de desqualificação de algumas existências e de alguns modos de

organização familiar (RUBIM, 2004).

Através de técnicas e saberes presentes em organizações destinadas ao seu

atendimento e acompanhamento, emerge a construção de discursos sobre a família

e a infância, sobretudo no que diz respeito à infância pobre, sempre remetida, por

sua vez, às “famílias desestruturadas”.

56 Trecho de parecer técnico de um relatório pertencente a uma das Varas da Infância e Juventude, Rio de Janeiro, 1999. Anotações pessoais.

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Desse modo, torna-se de fundamental importância um engajamento

profissional reflexivo e crítico, que coloque em cheque práticas autoritárias que

desqualificam arranjos sócio-institucionais distantes do hegemônico, arranjos

coletivos que, mesmo desconhecidos ou negados, caracterizam parte da

sociabilidade da população desfavorecida. Há que se pensar em políticas públicas

que reconheçam sua positividade, não enfatizando somente suas carências,

focalizadas não em uma “falta” relacionada aos padrões das classes média e alta,

mas nas características próprias dessa população.

O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 4 (BRASIL, 1990),

responsabilizou não só a família dos adolescentes, como também a comunidade, a

sociedade em geral e o Poder Público pela efetivação dos direitos desses

indivíduos. Até então, apenas famílias dos adolescentes eram culpabilizadas e

responsabilizadas pelo não cumprimento da lei. Esse fato permitiu, entre outras

coisas, que a garantia de tais direitos fosse retirada legalmente do limite privado,

passando ao âmbito das políticas públicas, desenvolvidas e executadas em parceria

com vários Conselhos – Tutelares e de Direitos. Os Conselhos Tutelares são órgãos

permanentes e autônomos, não jurisdicionais e têm por função zelar pelo

cumprimento dos direitos da criança e do adolescente. Já os Conselhos de Direitos –

criados em nível Municipal, Estadual e Federal – têm por função a formulação de

políticas publicas destinadas ao cumprimento dos direitos da criança e do

adolescente. Ambos os Conselhos estão abertos à participação popular.

A política de atendimento caracterizada pelas políticas públicas

implementadas pelos Conselhos devem seguir as prerrogativas do artigo 86 do ECA,

que determina: “a política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente

far-se-á através de um conjunto articulado de ações governamentais e não

governamentais, da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”

(BRASIL, 1990, p.29).

Além disso, o atendimento a crianças e adolescentes deve ter como

referências políticas públicas distribuídas em quatro grandes áreas: políticas sociais

básicas, políticas de assistência social, políticas de proteção especial e políticas de

garantias. As políticas sociais básicas são as reconhecidas como “direito de todos e

dever do Estado”, devendo ter cobertura universal. Podem ser traduzidas pelos

direitos elencados no artigo 227 da Constituição Federal (BRASIL, 1988), sendo a

saúde e a educação prioridades, devido à situação sócio-econômica do País. Já as

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políticas de assistência social são os direitos dos que se encontram em estado

temporário ou permanente de necessidade, em razão de privação econômica ou

outros fatores de vulnerabilidade, devendo atingir “todos os que dela necessitam”.

Podem ser incluídas nessas políticas ações como distribuição de cesta básica,

abrigo provisório, auxílio temporário, creches comunitárias. As políticas de proteção

especial, por sua vez, referem-se aos direitos de crianças e adolescentes violados

ou ameaçados em sua integridade física, psicológica e moral, em razão de sua

conduta, da ação ou omissão da família, de outros agentes sociais ou do próprio

Estado, ou seja, em situação de risco social e pessoal. Caracterizam essas políticas

plantões interinstitucionais, abrigos, semiliberdade, programas para usuários de

drogas, entre outras. Por fim, as políticas de garantias são a defesa jurídico-social

dos direitos individuais e coletivos da população infanto-juvenil, atuando no terreno

baldio entre a lei e a realidade. Os seguintes órgãos são responsáveis por sua

implementação: Ministério Público, Defensoria Pública, Juizado da Infância e

Juventude, Delegacias Especiais, Conselhos, entre outros. Vale destacar que tais

políticas devem ser obrigatoriamente transitórias e emancipadoras, articulando-se a

programas derivados das políticas sociais básicas.

Essas mudanças implementadas pela promulgação do ECA fizeram com que

a criança e o adolescente, antes considerados portadores de necessidades e

objetos de intervenção jurídica, se tornassem cidadãos, detentores do direito de ter

direitos e do dever de ter deveres.

2.4 O Estatuto da Criança e do Adolescente, a rede de atendimento ao adolescente em conflito com a lei e as medidas sóci o-educativas

A promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente em 1990 foi

decorrente de várias mudanças na organização sócio-político-econômica do País,

bem como de uma série de reivindicações de movimentos sociais que, dentre outras

coisas, apontavam para a necessidade de problematizar as profundas

desigualdades da sociedade brasileira. Entre elas, merece destaque a dicotomia

menor/criança, estabelecida não só pelo Código de Menores de 1927, mas também

pela prática profissional dos vários atores envolvidos nesse processo. Essa

dicotomia produz uma articulação do primeiro termo com a infância pobre, das

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favelas, que trabalha nos sinais e, por vezes, incorre na delinqüência, precisando ser

confinada em alguma instituição de exclusão, como a cadeia e o orfanato. O

segundo termo, por sua vez, é associado a crianças e adolescentes das classes

dominantes, que não se conectam a essas discussões, ligadas a instituições

consideradas fundamentais para uma boa formação educacional e moral: a família e

escola.

Já em seu primeiro e segundo artigos, verificamos que o ECA traz

considerações distintas sobre essas classes, especialmente por não se tratar

apenas de uma legislação específica para a infância considerada “irregular”

(BULCÃO, 2002). As medidas sócio-educativas aplicadas aos adolescentes que

cometeram ato infracional passaram a ter como objetivo, portanto, além da

responsabilização imputada através de uma sanção, aspectos educativos e

socializadores, privilegiando a manutenção dos vínculos familiares e sociais. O artigo

100 do Estatuto enfatiza a perspectiva educativa dessas medidas aplicadas: “na

aplicação das medidas levar-se-ão em conta as necessidades pedagógicas,

preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e

pedagógicos” (BRASIL, 1990, p.36).

Costa (1992) salienta que a ênfase no processo educacional como condição

essencial para a estruturação das medidas articula-se à condição peculiar de pessoa

em desenvolvimento dada a crianças e adolescentes e fundamentada no Paradigma

do Desenvolvimento Humano baseado na concepção de sujeito de direitos.

Reconhece-se, mediante esse conceito, que esse público é detentor de todos os

direitos dos adultos que sejam aplicáveis à sua idade. Além disso, são reconhecidos

seus aspectos especiais, decorrentes da peculiaridade de seu processo de

desenvolvimento, que faz com que esses sujeitos não conheçam suficientemente

seus direitos, não estando em condições de exigi-los do mundo adulto e não sendo

capazes, ainda, de prover por si mesmos suas necessidades básicas sem prejuízo

de seu desenvolvimento pessoal e social. Deixar de ver crianças e adolescentes

como meros objeto de intervenção jurídica e social por parte da família, da

sociedade e do Estado é superar a concepção até então comum desse grupo como

meros portadores de necessidades estabelecidas pela Doutrina da Situação

Irregular e dos Códigos de Menores que antecederam o ECA.

As medidas sócio-educativas aplicadas aos adolescentes em conflito com a

lei são estabelecidas por autoridade judiciária competente, considerando a

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gravidade da infração e/ou sua reiteração, a existência de programas e serviços para

o cumprimento das medidas em nível municipal, estadual e federal e a capacidade

dos adolescentes para cumpri-las (BRASIL, 1990). Os pressupostos básicos que

orientaram a promulgação da ECA determinaram em seu próprio arcabouço legal,

portanto, uma tensão entre o campo subjetivo e campo jurídico. As prescrições

contidas no Estatuto são sucintas, mas abrem a possibilidade da invenção, tendo

como base os princípios estatutários e constitucionais. Nesse processo de interface

entre o jurídico e o subjetivo, é de suma importância que as instâncias envolvidas na

detecção e apuração do ato infracional, bem como na aplicação e acompanhamento

das medidas sócio-educativas (polícias, Ministério Público, Defensoria Pública,

Juizado da Infância Juventude e Unidades de Atendimento) dialoguem e construam

coletivamente os critérios avaliativos dos adolescentes nas respectivas medidas,

tendo como referência o que o ECA descreve em seus artigos sobre as

competências das instâncias na apuração do ato infracional e no acompanhamento

da medida sócio-educativa aplicada.

Em muitas situações, os adolescentes utilizam a rede de medidas sócio-

educativas com o objetivo de manter seu envolvimento com a criminalidade, como

abrigo, esconderijo ou simplesmente espaço que lhes permita viver novas

experiências afetivas. Nesse processo, perde-se a dimensão da lei e, com ela, a

possibilidade de o adolescente envolver-se em uma construção que lhe permita ter a

vida como valor. Assim, é fundamental que cada órgão funcione a partir de suas

competências, o que pode ser entendido tendo como referência a construção

teórico-prática proposta por Baremblitt (1998).

Se os órgãos envolvidos diretamente ou indiretamente na aplicação das

medidas deixam de cumprir o que lhes cabe, haverá conseqüências negativas na

execução do projeto político-pedágogico que orienta metodologicamente a prática

sócio-educativa das Unidades de Atendimento. Um exemplo: em uma de suas

passagens pela Unidade, reconhecendo que deveria ter sido aplicado a ele uma

medida mais severa, o adolescente Eduardo diz ter ganhado “boi” do juiz. Outras

expressões que denunciam a banalização do ato infracional são “juiz lero-lero” e “juiz

paia”, articuladas à idéia de contrariedade. Todas essas “falhas” operam no sentido

de fortalecer o envolvimento dos adolescentes em atividades criminais,

aproximando-os efetivamente da morte. A manipulação da rede torna-se também

questão quando as próprias Unidades de Atendimento que recebem os

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adolescentes os transferem com o intuito de simplesmente livrarem-se do

“problema”. Nesse movimento, vemos instaurar-se mais uma vez algo da morte:

sujeitos tornados objetos a partir de práticas onde a dimensão humana é ignorada.

Por esse motivo, é fundamental que as Unidades realizem uma avaliação constante

de suas práticas sócio-institucionais. O olhar indagador para o cotidiano é capaz de

trazer à tona, por detrás de afazeres instituídos, a possibilidade da construção de

projetos de vida.

Outro aspecto que necessita ser abordado é o que o ECA estabelece em

relação ao cometimento de delito por parte de adolescentes e a forma como essa lei

vem sendo implementada. Esse delito deve ser entendido como fato jurídico e

avaliado assegurando-se todas as garantias processuais, como a presunção da

inocência, a ampla defesa, o contraditório, o direito de contraditar testemunhas e

provas e todos os outros direitos de cidadania conferidos a quem se atribuiu a

autoria de um ato infracional. Determina-se que, após o adolescente ser apreendido

em flagrante, deve ser conduzido à Delegacia de Proteção à Criança e ao

adolescente (DOPCAD) e apresentado à autoridade judicial competente, ficando,

depois disso, internado provisoriamente no prazo máximo de 45 dias, enquanto

aguarda a sentença judicial (Art. 108 do ECA) (BRASIL, 1990)57. Contrariamente à

lei, no entanto, freqüentemente esses adolescentes permanecem em internação

provisória após o prazo estabelecido. Outro problema constante é a ausência de

defensores públicos, promotores e familiares durante as audiências que instauram o

devido processo legal para apuração do ato infracional, como assegura o Estatuto

da Criança e do Adolescente, em seu Capítulo II (“Dos direitos individuais”), artigos

106, 107 e 109, e Capítulo III, artigos 110 e 111 (BRASIL, 1990). A grande

quantidade de processos envolvendo adolescentes é a justificativa de parte dos

promotores para não participar das audiências. Em 2004, eram 22.000 processos

para quatro defensores58. Essa ausência instaura um mecanismo que desconsidera

a vida, ferindo os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, conforme art. 3º

do ECA (BRASIL, 1990).

57 Em Belo Horizonte, a Internação Provisória é realizada no Centro de Internação Provisória Dom Bosco (CEIP). 58 Informação verbal obtida em reunião realizada entre as Unidades de Semiliberdade e técnicos do Ministério Público, em 2004.

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A relação que os adolescentes estabelecem com a polícia também é fator que

reforça o descrédito à lei, gerando sentimentos de revolta e ações violentas por parte

dos adolescentes, que vêem os policiais como “inimigos” que devem ser combatidos.

É comum ouvir histórias envolvendo subornos, espancamentos e tortura por parte de

policiais. Os relatos que se seguem são de dois adolescentes – Eduardo e Alfredo –

que cumpriram a medida de semiliberdade, e ilustram essa convivência marcada

violência, preconceitos e a “necessidade” de se “provar que é macho”. A relação que

Alfredo estabelecia com os policiais era muito mais intensa e hostil do que a

estabelecida por Eduardo, causada, entre outras questões, pelo fato de que Eduardo

fugia do estereótipo estabelecido pelas práticas sociais que instauram pré-

julgamentos e identificações em relação à possibilidade de “ser bandido”. Ambos

vestiam-se de forma que não levantava suspeitas: com roupas boas, sem o corpo

marcado com desenhos feitos a furo ou tatuagens. Entretanto, Alfredo, ao contrário

de Eduardo, é negro. Por mais de uma vez, ouvi Alfredo relatar ter sido torturado por

policiais, tendo sido, inclusive, amarrado em uma árvore de cabeça para baixo e

espancado. Sua família tinha a casa constantemente invadida e seus objetos

revirados por policiais. Em uma dessas invasões, os familiares fizeram contato com

a Unidade, mostrando-se temerosos quanto à realização das visitas domiciliares do

adolescente. Alfredo chegou a realizar visitas monitoradas por seus familiares, que

foram buscá-lo na Unidade. A atuação incisiva da polícia parecia estar relacionada

ao envolvimento do irmão do adolescente com o tráfico de drogas. Somente após o

falecimento desse irmão, em dezembro de 2003, a Unidade teve ciência de seu

envolvimento com o tráfico, por meio de matérias de jornal. Até então, a família dizia

à equipe que a ação da polícia era corriqueira na comunidade onde residia. A morte

do irmão de Alfredo foi “comemorada” com fogos de artifício e um churrasco pela

comunidade, pois ele era conhecido e temido devido à crueldade que envolvia sua

trajetória no crime. A família teve que se mudar da região e Alfredo começou a

realizar as visitas na residência de um dos tios.

O trecho da entrevista que se segue revela que um ideal de virilidade

ancorado na idéia de ser macho fundamenta as ações do adolescente e do policial.

[...] quando nós tivemos que chamar a polícia em uma ocasião pra registrar um boletim de ocorrência, o rapaz, o garoto, xingou, desacatou o policial. Aí eu disse, mas assim, com uma... – calma rapaz, você tá se arriscando aí. – Não, o que ele pode fazer é mostrar quem ele é; que ele é covarde, tirar essa arma da cintura e dar um tiro na cara. Isso só vai provar pra você que

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ele é covarde, eu tô indefeso. Eu digo: - não. Você não está indefeso. [...] O policial foi chamado aqui em função do outro menino que fez uso de droga. Você tá bancando o advogado dele, querendo comprar briga. Daqui a pouco você vai estar também sendo enquadrado. Como realmente foi. O policial pegou, levou. Ele chegou aqui quando voltou e contou que foi agredido, que o policial bateu nele, e tal. A gente não sabe se é verdade, se bateu ou não. Existe a possibilidade porque o policial pensa assim: tudo homem. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)59.

As ações policiais, lidas a partir das postulações de Diógenes (2002),

produzem nos adolescentes envolvidos com a criminalidade, sobretudo os

vinculados às gangues, um olhar sobre a polícia como personagem que opera um

movimento “dentro/fora” do seu campo de sociabilidade. Para a autora, o campo de

sociabilidade das gangues é toda a extensão territorial relativa à sua dinâmica: o

“point”, as praias, os bailes, entre outros.

Ao se projetar como “inimigo”, propulsor de enfrentamentos, de embates dinamizadores de tensão, da descarga da adrenalina e das BPM, a polícia se insere num mesmo terreno, cujos meios de embate e enfrentamento não se diferenciam daqueles utilizados pelas gangues. A polícia, como em um jogo de espelhos, possibilita a existência, a produção e o registro oficial da gangue como agrupamento violento. A polícia institui a gangue enquanto grupo classificado e registrado. Por outro lado, ao se colocar como agente repressivo das ações ensejadas entre as gangues, a polícia se apresenta como um “outro”, estranho que precisa ser combatido. (DIÓGENES, 2000, p. 200-201).

É importante destacar que, nesses casos, uma corporação que tem como

objetivo a busca pela justiça é a primeira a ferir direitos, colocando em risco a

integridade física dos cidadãos, o que inscreve a polícia na mesma dinâmica violenta

dos adolescentes envolvidos em ações delituosas. Ao não cumprir o que lhe cabe –

garantir a segurança pública – e atuar de maneira semelhante aos adolescentes

envolvidos com o crime, a polícia acaba por reforçar ações violentas dos

adolescentes e seu descrédito em relação à Justiça. Diógenes (2002), ao citar

Girard, atesta essa hipótese:

Em toda a parte há o mesmo desejo, o mesmo ódio, a mesma estratégia, na mesma ilusão da diferença, enorme na uniformidade mais completa. À medida que a crise se exacerba, todos os membros da comunidade tornam-se gêmeos da violência. Nos mesmos afirmaremos que eles são uns duplos uns dos outros. Na indiferenciação todos se denominam gangues60, todos

59 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 60 Segundo Zaluar (2004), o conceito de “gangue” está remetido ao contexto norte-americano. Diógenes (2000) não faz esse recorte conceitual. Utiliza os termos “gangue” e “galera” para identificar grupos jovens rivais de uma determinada área de Fortaleza, sem diferenciar esses dois termos. Os questionamentos produzidos por essa dissertação não terão como referência as terminologias utilizadas acima – apesar de elas aparecerem no corpo do trabalho –, pois os adolescentes em

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são marginais. Para os jovens integrantes das gangues, a polícia e a justiça são “gêmeas” entre si, gêmeas entre eles, todos têm em comum a necessidade de afirmação e demonstração de força e poder através do uso ostensivo da violência. (DIÓGENES, 2002, p. 210).

Quando surge a necessidade de acionar a Polícia devido às transgressões

que ocorrem na Unidade envolvendo os adolescentes, há muita tensão, relacionada

à incerteza quanto a um atendimento e quanto a possíveis embates envolvendo

policiais e adolescentes. Em muitas situações, o atendimento foi realizado muito

tempo depois – um deles, com 48 horas de atraso. Além disso, são frequentes as

ameaças a adolescentes por policiais, implicando em temores quanto à segurança.

Outro aspecto que gera tensão é a maneira como os policiais abordam adolescentes

ou reagem mediante provocações que possam existir. Em muitas ocorrências, existe

a necessidade de os educadores se colocarem contrários ao posicionamento de

policiais, colocando limites, inclusive, com seus próprios corpos.

São essas ações da polícia e os enfrentamentos estabelecidos entre ela e os

adolescentes que produzem o discurso sobre a violência e as a instauração das

“guerras”, o que pôde ser percebido em uma das atividades das Unidades durante a

realização do trabalho de campo. Os adolescentes João e Pablo mencionam de

forma exaltada a “guerra” que travam com os “alemão”, os “polícia”. Ao falarem,

gesticulam e movimentam seus corpos, como se estivessem armados. Suas

expressões demonstram raiva, sobressalto e medo. Realizam uma encenação em

que uma “guerra” real, efetiva, é narrada. Dizem que se armam e ficam na espreita

na tentativa de estarem prontos caso a polícia faça uma incursão na favela.

Eles [os policiais] têm que se preparar para entrar. Cê acha que o polícia vai subir o morro sozinho? Ele é igual a nós: também tem medo de morrer. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 16 anos)61.

Esses polícia não tem coração. Mata você na “carada”. Eles pia no morro tudo armado. É só tapa na cara. Eles mata nós é de “quebrada”. É igual

semiliberdade vinculam-se ao crime de diferentes formas: às vezes atuam individualmente, às vezes atuam em duplas (com “parceiros”), outras se vinculam ao crime através do envolvimento com o tráfico de drogas. Essa associação pode ser remetida ao conceito de “quadrilha” apresentado por Zaluar (2004). Feitos os devidos esclarecimentos, ressalto que as teorizações feitas por Diógenes sobre os enfrentamentos envolvendo adolescentes e polícia são semelhantes ao que foi observado por mim durante experiência como profissional e pesquisadora. 61 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007.

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eles pegô nós lá62. Eles mata nós é na “crocodilagem”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 15 anos) 63.

É pela ação da polícia e outras não-embasadas no “código do crime” que os

adolescentes criam referenciais de diferenciação entre o que é considerado ou não

violência. Embates violentos travados no cotidiano com grupos de adolescentes

rivais, com pessoa específica com a qual o adolescente tenha “guerra”, são

vivenciados como processos naturais, desde que embasados pelo código do crime,

em que ações violentas são “justificadas” caso não se cumpra as regras: não roubar

na comunidade, não delatar, não ficar com a droga de outra pessoa, entre outros.

Uma das entrevistas realizadas com um dos adolescentes ratifica essa idéia:

Adolescente: “Falar com você que eu já perdi parceiro, mas tudo morreu foi só na pilantragem”. Pesquisadora: “Como assim? O que é pilantragem”? Adolescente: “Pilantragem é matar os outro à toa, por pouca coisa, que não tem nada a ver”. Pesquisadora: “O que é pouca coisa na vida do crime e o que é muita coisa na vida do crime pra pessoa perder a vida?” Adolescente: “Pouca coisa: querer matar os outro à toa, assim, porque tem gente assim que mata, que já matou e aí sente mais vontade de matar ainda e qualquer coisa que... E aí vamos supor: aí uma pessoa vai falar alguma coisa com ele, ele já começa a endoidar, isso e aquilo. Ele tá com a arma na mão e quer matar a pessoa à toa. É isso daí que acontece”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 64.

O imaginário que o adolescente em conflito com a lei irá construir em relação

à polícia, ao sistema judiciário e às medidas sócio-educativas e seus agentes é

marcado por corrupção, maus-tratos e pela lógica da violência. A esse respeito,

inúmeras vezes fui questionada por adolescentes que iniciavam o cumprimento da

medida de semiliberdade sobre o que queríamos em troca, pois os tratávamos bem,

com respeito, “igual gente”.

O policial é o primeiro agente a operar a engrenagem para apuração e

detecção do ato infracional. Ao ser flagrado em uma situação de suposto delito, o

adolescente é encaminhado à Delegacia de Proteção da Criança e do Adolescente

(DOPCAD) objetivando a comprovação da materialidade e a autoria da infração.

Sobre isso, por várias vezes os adolescentes relataram que, com suborno, livraram-

se do “BO” (boletim de ocorrência). Após ser encaminhado à DOPCAD, o

62 Durante a realização de uma atividade externa em um dos shoppings da cidade, os adolescentes “deram um perdido” nos educadores, separando-se deles, e foram para o Bairro Sumaré. Chegaram à Unidade escoltados por policiais, que afirmaram que os adolescentes haviam feito uso de droga. 63 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007. 64 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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adolescente é interrogado pelo Ministério Público, que poderá representá-lo ao juiz

para que seja aplicada uma medida sócio-educativa (conforme art. 180 do ECA)

(BRASIL, 1990). Porém, quem lhe “profere” a sentença é um dos técnicos do CEIP.

Dessa forma, ações que são de competência do judiciário são executadas por

profissionais vinculados ao atendimento realizado na Internação Provisória. Essas

incoerências possibilitam que as ações da polícia, do sistema judiciário e das

Unidades de Atendimento fiquem na abstração, fazendo com que o adolescente

experimente “o vazio da lei” (DIÓGENES, 2002).

O adolescente exerce a violência por um vazio de palavras que sejam mobilizadoras de nomeação e reconhecimento social, por um descrédito na legitimidade das palavras. Ações que [...] falam por si sós, através dos gestos, dos códigos, das roupas, dos adereços, das tatuagens. [...] Quando a polícia realiza o enfrentamento às gangues, mobiliza-se através da lógica da guerra, muita ação, nada de palavras. A justiça se tece na muda “aplicação” do Estatuto, concebida na idéia de que a lei nada tem a dizer (DIÓGENES, 2002, p. 212-213).

Para Diógenes (2002), a violência exercida pelos adolescentes é um ato de

expressão de um vazio, de uma ausência de sentido, de um nada. Ao acompanhar

os adolescentes em atividades externas, essas considerações são confirmadas.

Fora da Unidade, adolescentes que até então conversam sobre atos corriqueiros do

dia-a-dia envolvendo seus afazeres, suas paqueras, escola, entre outros assuntos,

transformam-se em “bandidos. A ostentação da imagem de “perigoso” e “temido” é

fundamental no processo de reconhecimento social. Assim, a violência envolvendo

grupos de adolescentes não tem característica instrumental, sendo puro espetáculo.

Nessa linha de raciocínio, pode-se identificar a ação das políticas de

segurança que, da mesma forma, dispensam o uso da palavra.

Elas se constroem na perspectiva do enfrentamento e do combate, acionando um aparato repressivo cuja tônica tem sido o terror e o uso da violência. Elas reagem à violência mobilizada pelos jovens, mobilizando não apenas uma violência em cadeia, mas essencialmente, reforçando o vazio das palavras e, conseqüentemente, o vazio de autoridade e da lei (DIÓGENES, 2002, p.213).

Todas essas questões refletem-se diretamente na prática sócio-educativa que

atua na valorização da palavra, permeada por aspectos como respeito, dignidade e

cidadania, que deveriam ser orientadores de todos os órgãos. Se assim fosse,

haveria o reconhecimento das práticas desenvolvidas pela polícia e pelos órgãos do

sistema judiciário como pertencentes ao campo da lei, e adolescentes, educadores,

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familiares e a sociedade de modo geral não compartilhariam sentimentos como

medo, injustiça e descrença em relação aos órgãos de cumprimento dessa lei.

A facilidade de retomar a medida após evasões é outro aspecto que necessita

ser considerado. Muitos adolescentes evadem na certeza de que, ao se apresentar,

retornarão. Esse procedimento produz descrédito em relação à lei e faz crescer o

sentimento de impunidade. Em um de seus retornos, por exemplo, Eduardo “ganhou

de presente” do Juizado um vale-transporte, voltando sozinho à Unidade após

meses de evasão. O adolescente foi encaminhado cinco vezes para a Unidade de

Semiliberdade. Seu último encaminhamento foi motivado por uma progressão,

devido ao fato de ter cumprido a medida de internação por seis meses. Ao chegar à

Unidade, teve dificuldade para se envolver nas atividades propostas e manteve

relacionamentos motivados por interesses particulares. Aproxima-se das pessoas

visando receber algo em troca. É importante ressaltar que, nesse período, a Unidade

vivia um momento de reorganização: eu havia assumido a coordenação há poucos

meses, a equipe de educadores encontrava-se envolvida com questionamentos que

buscavam a melhora de sua auto-estima e qualidade de trabalho, além da

expectativa de uma mudança de sede, que até então funcionava no bairro

Flamengo, em Contagem. Ao retornar, o adolescente encontra a Unidade de “cara

nova”. Esta fala é recorrente entre os educadores, sendo direcionada também a ele:

“parece achar que a Unidade ainda está vivendo no tempo onde ele esteve aqui,

onde era zoeira total. Conversamos com ele e explicamos que as coisas mudaram e

que é melhor dar valor a esta nova oportunidade”. (Relatório diário dos educadores,

20/11/2002)65. Fez-se contato com a unidade onde havia cumprido a medida de

internação, no intuito de obter informações sobre seu processo sócio-educativo, o

que foi em vão, explicitando um funcionamento entre as unidades de atendimento

em que somente questões internas são privilegiadas. Desta forma, não foi possível

saber que avaliação a unidade fazia do momento do adolescente, que efeitos a

medida havia produzido e que aspectos deveriam ser privilegiados no atendimento.

É fato que o adolescente fugiu da referida unidade pulando o muro. Foi

encaminhado juntamente com ele um relatório técnico mencionando aspectos

negativos de seu comportamento, privilegiando, entretanto, os interesses da

unidade, que explicitava sua vontade em “devolvê-lo” para a semiliberdade.

65 Pesquisa de campo junto aos arquivos da Unidade Flamengo, em Contagem, MG.

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A partir de uma proposta de integração, as equipes efetivaram articulações

através de discussões em “estudos de caso”, onde os encaminhamentos se

constroem. Outra prática instituída é a visita do adolescente à unidade de

atendimento antes de seu encaminhamento, no caso de progressão de medida. Em

relação ao acautelamento provisório, um membro da equipe da Unidade de

Semiliberdade dirige-se à instituição que o recebe, com o objetivo de ter o primeiro

contato com o adolescente, apresentar-lhe a medida e obter daquela equipe

informações fundamentais para que seu cumprimento possa ser iniciado.

A existência de práticas que “fragmentam” adolescentes vão contra

prerrogativas estatutárias e constitucionais estabelecidas no ECA, que dão ênfase

ao aspecto educativo, ao conceito de criança e adolescente como sujeito de direitos

e pessoa em condição peculiar de desenvolvimento e ao princípio da incompletude

institucional.

Do ponto de vista organizacional, nota-se que o Estatuto tem como finalidade central articular instâncias governamentais e não-governamentais com funções de natureza distinta e complementar “nas áreas das políticas sociais básicas, dos serviços de prevenção e de assistência social, de proteção jurídico-social e de defesa de direitos”. (Mora, [s.d.]:241). Toda a arquitetura do documento legal concorre para o estabelecimento de uma lógica de cooperação entre os órgãos, o que não impede que, na prática, se estabeleça uma lógica de concorrência de recursos, de espaço, de poder e de prestígio. (FROTA, 2002, p.73-74).

Entretanto, a realidade atual, ainda marcada por fragmentações, concorrência

de recursos e descumprimento da lei pode ser entendida a partir da relação que se

estabelece entre as práticas preconizadas pelo ECA, balizadas a partir da Doutrina

da Proteção Integral, e a presença recorrente de práticas atreladas à Doutrina da

Situação Irregular, que considera crianças e adolescentes objetos passivos de

controle por parte da família, da sociedade e do Estado. Esta doutrina era o subsídio

das práticas referendadas pelo Código de Menores de 1927, que antecedeu o ECA.

As análises construídas ao longo deste capítulo ganham relevância no que se

refere à temática desta dissertação – os processos de subjetivação que constituem

os adolescentes envolvidos na criminalidade mediante o anúncio constante da

possibilidade da morte – ao se ampararem na concepção de subjetividade que as

orienta. Como já salientado anteriormente, a subjetividade não é pensada como

atributo do sujeito, mas tecida por processos econômicos, políticos, midiáticos,

institucionais, práticas sociais, entre outros.

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No caso dos adolescentes envolvidos em atos infracionais, merecem

destaque as ações e discursos dos profissionais que compõem a rede de

atendimento do adolescente em conflito com a lei, ações que podem instaurar

subjetivações constituídas por práticas de liberdade, mediante o incessante

descompromisso com as formas instituídas de ser, pensar e agir, marcadas por um

ideal individualista e hedonista. Práticas que coloquem em cheque as subjetivações

comprometidas pelo assujeitamento ao atual capitalismo, em que ser consumidor

torna-se regra. Neste contexto, podemos afirmar que as forças que administram o

capitalismo contemporâneo já entenderam que a produção de subjetividade é tão

importante quanto a produção material dos bens de consumo e, por isso, investiram

maciçamente nesse processo (GUATTARI; ROLNIK, 1996).

Considerando esta realidade, reafirmar o valor da vida como princípio ético,

estético e político faz-se urgente. Por isso, torna-se fundamental a instituição de

práticas que permitam aos adolescentes em conflito com a lei acreditar na vida,

despotencializando processos vinculados à criminalidade, que os conduzem à morte.

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3. A MEDIDA SÓCIO-EDUCATIVA DE SEMILIBERDADE

3.1. A semiliberdade e a proposta educativa salesia na

A proposta educativa salesiana tem como norte o Sistema Preventivo,

teorizado por Dom Bosco em 1841. Trata-se de um estilo de vida, uma

espiritualidade, um jeito de educar, em que a convivência entre educador e

educando é marco fundamental para o crescimento de todos os envolvidos no

processo educativo. Este pressuposto torna-se relevante diante da afirmação de

alguns profissionais que atuam em obras Salesianas de que o fato de realizarem um

trabalho de abrangência humana e social possibilita a construção cotidiana de

valores como solidariedade, justiça, dignidade, reafirmando a vida em todos os seus

aspectos, além de permitir aos educadores “serem melhores a cada dia”,

pensamento do qual partilham a maioria dos profissionais. Logo, muitos dos que

atuam na semiliberdade vêem seu trabalho como missão, e talvez isso permita o

enfrentamento cotidiano da morte também por parte do corpo técnico.

Mas quando eu fui procurar a Inspetoria, eu fui procurar um emprego e após o término do treinamento eu saí de lá consciente de que além de um emprego, eu tinha uma missão, entendeu? [...] E isso pra mim tem sido uma coisa muita importante porque me fez crescer como pessoa, como ser humano, porque eu passei a enxergar um lado da vida que eu não conhecia. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)66.

A proposta salesiana tem como base valores que identificam a educação

como responsável pela formação da personalidade dos sujeitos. Esses valores

encontram-se articulados pelo tripé razão, religião e amorevolezza.

Scaramussa e Zeferino (1995) informam que, no pensamento de Dom Bosco,

razão significa, antes de qualquer coisa, razoabilidade. Para ele, é necessário

educar os jovens com clareza de idéias, transparência, desprezando atitudes

permeadas por pressão emotiva e sentimental, estabelecendo um diálogo que

66 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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provoca no educando uma resposta amadurecida, racional e crítica, entendida como

moralidade, naturalidade, seguimento da norma, escala correta de valores.

A religião é o segundo elemento do tripé que fundamenta o Sistema

Preventivo Salesiano. Configura-se enquanto pedagogia espiritual, em que o

sobrenatural é visto como elemento indispensável ao crescimento do jovem. Não se

trata de religião no sentido de práticas religiosas ou de piedade, mas de desenvolver

junto aos jovens valores como a fé, proporcionando o cumprimento de seus deveres

como cidadão e cristão.

É comum adolescentes em cumprimento de medida solicitarem autorização

para participar de cultos e missas. Seu interesse por religiões de cunho evangélico,

com práticas autoritárias, é preponderante. Mesmo gerenciada por religiosos

católicos, a Unidade não tem nenhuma objeção quanto a essa participação, desde

que sejam cumpridos normas e horários estabelecidos pelo Regimento Interno. Uma

hipótese possível para essa escolha religiosa dos adolescentes é que a procura por

espaços e ideologias mais autoritárias e menos libertárias relacione-se a uma busca

de limite e Lei, até então vivenciado por eles de forma precária, devido ao contexto

social-político-econômico-subjetivo de qual fazem parte. Experimentar a fé de

maneira “endurecida” pode articular-se à vivência da morte no cotidiano, permeada

pela vinculação desta com a figura do “capeta”. Seriam, assim, necessários rituais

religiosos para espantar a má influência, tema que será abordado mais adiante

nesta dissertação.

A amorevolezza é o terceiro elemento constitutivo do tripé salesiano, tendo

como significado o amor que se tem e que se demonstra. Segundo Dom Bosco e

estudiosos do Sistema Preventivo, é fundamental, no processo educativo, que o

educador se interesse por cada um dos jovens em particular. Quando um educando

percebe que é amado pelo educador, tem facilidade de se identificar a ele como

portador de valores. Se isso não acontece, está criada uma barreira entre os dois e

dificilmente o processo educativo será deflagrado.

A Assistência Presença é outro referencial importante do Sistema Preventivo,

e significa abordar o jovem no ponto em que se encontra. No pensamento de Dom

Bosco, a presença junto ao educando é fortemente educativa e vislumbra despertar

interesse, incentivar, apoiar, demonstrar afeto e resgatar a auto-estima. Para ele, o

lugar privilegiado para exercê-la é o pátio. Em linguagem salesiana, “pátio” não

expressa conceito limitado a um lugar, mas todo o espaço ocupado pelo jovem

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quando não está em atividade formal e onde sua espontaneidade se expressa com

maior intensidade. Durante o período em que atuei na semiliberdade, o Pátio foi o

lugar privilegiado do acontecimento.

De acordo com a Análise Institucional (BAREMBLITT, 1998), o acontecimento

é todo ato, processo e resultado da atividade afirmativa do acaso, que pode ser

entendido como modo de devir caracterizado por ser aleatório, imprevisível e

incontrolável. É o momento de aparição do novo, da diferença e da singularidade.

Estes atos, processos e resultados são decorrentes de conexões insólitas que

escapam das constrições do instituído. São a base de transformações de pequeno

ou grande porte, que modificam a história em todos os seus níveis e âmbitos. Sendo

assim, pode-se falar do pátio como lugar onde a vida se processa, onde encontros

podem ser efetivados, onde sonhos, metas e objetivos podem ser construídos. Em

muitos momentos, quando estive com os adolescentes no pátio, contaram-me

histórias sobre suas vidas. Um deles em especial – assassinado em 2004 – falava-

me de sua infância, das brincadeiras no bairro onde morava, até o dia em que me

contou que descobriu pela avó que a mãe o havia jogado em uma lata de lixo.

Lembro-me também do dia em que lemos juntos livros de poesia que ele trouxe

emprestado da biblioteca da escola. Neste ponto, as seguintes indagações podem

ser colocadas: em que momento o acaso no percurso desse adolescente foi

capturado por um processo de morte? O que o fez desistir de sonhar? Que aspectos

da prática sócio-educativa podem ter comprometido a afirmação da vida em sua

trajetória?

Silveira (2003) pontua que o Sistema Preventivo foi desenvolvido por Dom

Bosco em um período em que suas preocupações estavam remetidas a questões

religiosas, morais, econômicas, sociais e culturais, que o impulsionavam a pensar

estratégias para impedir que jovens e adultos se envolvessem com a marginalidade.

A complexidade das situações juvenis foi abordada por Dom Bosco em um nível

essencialmente bipolar, assistencial e educativo. Na concepção do Sistema

Preventivo, prevalece o pressuposto da educação como prevenção e a prevenção

na educação.

O conceito de prevenção, hoje largamente difundido, foi transplantado do

saber médico para diferentes áreas, como a pedagogia e o terapêutico. Pode-se

falar, segundo alguns teóricos, em três níveis de prevenção. A prevenção primária

engloba políticas, programas e medidas em favor da família, da juventude, da saúde,

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da escola, da formação profissional, do tempo livre, sobretudo educativo,

direcionados a uma população não-selecionada de pessoas, para a qual existe um

risco geral de desvios, de marginalização ou de patologia social. A prevenção

secundária é dirigida a pessoas que já manifestaram sintomas de adesão a modelos

de comportamento incorretos de marginalização, de patologia. Finalmente, a

prevenção terciária destina-se a pessoas que estruturaram um comportamento

socialmente inaceitável, com desvios de tipo secundário, uma ou mais formas de

estigmatização, aceitando uma identidade negativa generalizada. Busca prevenir

recaídas, neutralizar efeitos negativos, desestruturar comportamentos inaceitáveis,

reparar o quadro das motivações e reestruturá-los.

Questionar esse aspecto da prática salesiana torna-se preponderante, pois a

idéia de prevenção desqualifica sujeitos e trajetórias, ao afirmar que existe, para

determinada parcela da população, um risco geral de desvios, marginalização ou

patologia social. Ignora-se, assim, o contexto político-social-econômico-subjetivo a

que determinada população se encontra submetida, culpabilizando individualmente

os sujeitos. Práticas referendadas por esse tipo de concepção podem fortalecer

modos de subjetivação amparados em ideais preconceituosos, que desvalorizam

alguns tipos de existência. No caso dos adolescentes em conflito com a lei, podem

reforçar ainda mais os padrões típicos da criminalidade.

Atrelado ao conceito de prevenção, encontram-se os conceitos de

periculosidade e de norma. Etimologicamente, norma quer dizer esquadro, aquilo

que é reto, perpendicular. Logo, algo que se incline para a direita ou para a

esquerda, o oblíquo, seria o anormal, ou porque se desvia de como deve ser, de

uma essência ideal em seu aspecto ontológico, ou por não ser a maioria dos casos

e, portanto, não servir de padrão de uma característica mensurável. Esse último

caso refere-se ao caráter estatístico, no sentido daquilo que é freqüente. A noção de

norma encontra-se também articulada à perspectiva evolutiva, na qual a normalidade

é parâmetro de características de determinada fase do desenvolvimento, por se

encontrar na maioria dos casos ou por apresentar caráter geral que, como indício de

uma essência ou de sua realização, adquire valor de perfeição realizada, de tipo

ideal. Os diversos sentidos do termo direcionam-se para algo comum: um padrão

através do qual toda e qualquer diferença excede. A positividade que caracteriza a

norma é subtraída para tudo que dela se afaste. Para o a-normal, negação lógica do

normal, acentua-se o que não é, o que falta, o que se apaga. Os conceitos de

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desviante e marginal apontam para a mesma acepção encontrada no termo a-

normal, sendo desviante e marginal aqueles que não se enquadram, que estão à

margem, excluídos.

Foi através das instituições médico-pedagógicas que o termo “normal” foi

incorporado ao uso popular que, no século XX, na França, significava o “protótipo

escolar e o estado de saúde orgânica” (CANGUILHEM, 1995, p. 209). Com o

surgimento da medicina social e seu cunho normalizador em relação à saúde e

ordenação das populações urbanas, houve a naturalização da moral, objetivando

reformar física e moralmente o cidadão. Ultrapassando os muros do hospital, o

poder médico direcionou-se aos demais estabelecimentos, sobretudo à escola, lugar

por excelência da prevenção, e assumiu, com a ajuda da pedagogia, o controle da

infância não somente no que se refere à doença e à loucura, mas da criança

anormal, desviante, que se torna um empecilho ao funcionamento das engrenagens

da produção capitalista.

Houve, portanto, um processo histórico de apropriação do conceito da norma

da biologia para o campo social. Entretanto, essa apropriação foi apenas metáfora

do poder sobre as representações sociais, já que as normas instituídas na

sociedade não são as mesmas que regulam a vida biológica. Neste sentido, com

essa apropriação, constroem-se analogias entre o ser vivo e a sociedade concebida

como organismo. De acordo com Canguilhem (1995), renomado estudioso da

biologia, a vida é uma atividade normativa e, como tal, produz uma polaridade

dinâmica, onde se encontram dois estados: o de saúde e o de doença. A existência

de duas ciências biológicas – a fisiologia e a patologia - é decorrente de tal

postulado. A patologia é uma ciência peculiar à vida, já que não se podem localizar

estados de doença nos movimentos físico-químicos. Isto significa que, não sendo a

vida indiferente às condições as quais ela se efetiva, institui normas, não para

proceder a um julgamento antropomórfico de valor, mas para a regulação da

polaridade essencial entre composição-decomposição, assimilação-desassimilação,

que caracterizam todo e qualquer organismo. Se, por um lado, as normas biológicas

são fenômenos naturais, peculiares à vida, as normas sociais não podem ser

concebidas como orgânicas. Se assim fosse, afirma Caguilhem, “seria loucura dos

homens não se conformar com elas. Como os homens não são loucos e como não

existem sábios, segue-se que as normas sociais têm que ser inventadas e não

observadas” (CANGUILHEM, 1995, p.233-234).

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Com a transposição das normas da regulação da vida orgânica para a social

através da concepção da natureza como moral, instituem-se funções de comando e

obediência. Desse modo, quem está fora, transgride. Não se leva em conta que no

mundo natural nada existe de exterior que o comande ou que o ordene e, se nele

encontramos leis necessárias e, portanto, imanentes, elas não produzem nunca a

transgressão. Rigorosamente, no mundo natural não existe o a-normal, negação

lógica do normal, aquilo que se desvia do “dever ser” férreo da lei. Como afirma

Canguilhem, “o patológico não é a ausência de norma biológica, é uma norma

diferente, mas comparativamente repelida pela vida” (CANGUILHEM, 1995, p.113-

1114). Não existe vida sem normas de vida e o estado mórbido é sempre uma

maneira de viver (CANGUILHEM, 1995).

Definir a normalidade a partir da inadaptação é aceitar mais ou menos a idéia de que o indivíduo deve aderir à maneira de ser de uma determinada sociedade, e portanto, adaptar-se a ela como uma realidade que seria ao mesmo tempo um bem. (CANGUILHEM, 1995 p.257)

Essa visão mecanicista da adaptação, quando aplicada à educação, exclui

aspectos da vida social-política-econômica-subjetiva de milhares de pessoas que

vivem à margem da sociedade, principalmente por não terem acesso a condições

mínimas para exercer sua cidadania. Esta falta de condições é transformada em

“desestrutura”. Aos profissionais sociais, é delegada a tarefa de “cortar o mal pela

raiz”, agindo preventivamente antes que a patologia social se desenvolva e penetre

de tal forma nas entranhas dos indivíduos que eles já não possam mais viver em

sociedade.

Levando em consideração o conceito de norma, que aprisiona as

subjetividades e estabelece formas instituídas de ser sujeito, cabe um debate sobre

os processos de subjetivação deflagrados no agenciamento espaço-corpo na

produção de subjetividade envolvendo adolescentes autores de infração penal. Essa

proposta visa problematizar as maneiras naturalizadas de se pensar a relação entre

esses sujeitos e o espaço urbano, marcada pela associação pobreza-criminalidade e

pela necessidade de se comportar e agir de acordo com o padrão estabelecido.

Encontro-me agora em minha casa – espaço racionalizado, planejado,

higienizado, confortável –, mas me encontro também percorrendo favelas,

presenciando encontros e desencontros, alegrias, tristezas, conquistas... histórias de

vida e morte marcadas pela violência e pelo intuito de circular pelo espaço urbano

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como consumidor. As maneiras de ser, perceber, viver e se colocar no mundo,

marcadas pelo “desejo” de consumir estão articuladas a processos de subjetivação,

engendrados pelo capitalismo e pela produção de indivíduos. A subjetividade não é

processada a partir do modelo “recipiente”, através do qual coisas exteriores seriam

interiorizadas, e sim a partir de um entrecruzamento de determinações coletivas de

várias espécies: sociais, econômicas, tecnológicas, da mídia. Ali, as imagens e

mercadorias que circulam no espaço urbano ganham destaque. A possibilidade de

consumi-las credencia e qualifica os sujeitos perante o social.

Considerando os adolescentes autores de ato infracional e as contundentes

críticas dirigidas por eles aos “boys”, aqueles que possuem o tênis de marca, que

andam sempre “nos panos” (bem vestidos) e têm tudo “do bom e do melhor”,

percebe-se uma identificação desses últimos como inimigos e de seus bens de

consumo como os mais importantes “objetos de desejo”. Na impossibilidade de “ser

como eles”, tira-se à força.

Por outro lado, a imagem que os outros atores sociais têm dessa população

envolvida em ações violentas é respaldada pela idéia da periculosidade. Esse

conceito é elaborado no processo de constituição da sociedade disciplinar do final

do século XVIII e início do século XIX. Seu aparecimento vincula-se à reforma e

reorganização do sistema judiciário e penal nos países da Europa e do mundo,

considerando o contexto sócio-econômico e político em que cada país se

encontrava. No bojo dessas transformações, que visavam normalizar

comportamentos, surge na criminologia a noção de periculosidade, que determina

que o indivíduo deva ser considerado pela sociedade também por suas

virtualidades, não somente pelos atos contrários à lei que tenha cometido. No caso

das crianças e adolescentes oriundos das favelas das grandes cidades, suas

origens, bem como a pobreza e a negritude, são indícios fortes de um “possível” e

“provável” envolvimento com a criminalidade. Não é preciso ter cometido um ato de

delinqüência, basta que, como atores-símbolo da violência, exibam suas identidades

– ser pobre, negro e favelado – para que a cidade “reconheça” que a violência tem

um lugar e é protagonizada por um outro fora de mim. Especificamente no que se

refere à pobreza, Bauman (1998) afirma:

Cada vez mais, ser pobre é encarado como um crime; empobrecer como produto de predisposições ou intenções criminosas – abuso de álcool, jogos de azar, drogas, vadiagem e vagabundagem. Os pobres, longe de fazer jus

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a cuidado e assistência, merecem ódio e condenação – como a própria encarnação do pecado. (BAUMAN, 1998, p. 59).

A partir das contribuições de Bauman (1998), podemos afirmar que o

adolescente em conflito com a lei

[...] tem de cometer esse ato perigoso e deplorável porque não tem nenhum status dentro do grupo [...] que fizesse o padrão desse grupo parecer-lhe natural, e porque, mesmo se tentasse dar o melhor de si, e fosse bem sucedido, para se comportar exteriormente da maneira exigida pelo padrão, o grupo não lhe concederia o crédito da retribuição do seu ponto de vista (BAUMAN, 1998, p. 19).

Esse adolescente pode ser identificado como “estranho”, categoria produzida

por todas as sociedades, “sujeira” tratada como tal (BAUMAN, 1998).

Os estranhos são pessoas que não se encaixam no mapa cognitivo, moral ou estético do mundo – num desses mapas, em dois ou em todos os três. [...] por sua simples presença deixam turvo o que deve ser transparente, confuso o que deve ser uma coerente receita para ação; [...] poluem a alegria com a angústia; [...] obscurecem e torna tênues as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. [...] Encobrem limites julgados fundamentais para a vida ordeira e significativa, sendo assim acusadas de causar a experiência como a mais dolorosa e menos tolerável. (BAUMAN, 1998, p. 27).

Podemos afirmar que, na sociedade atual, a produção de estranhos está

relacionada aos modos de subjetivação que trabalham na incessante construção de

identidades. A psicologia, corpo de discursos e práticas, tem importância particular

em relação aos agenciamentos contemporâneos de subjetivação, em que uma série

de temas merece destaque: escolha, êxito, auto-descoberta, auto-realização. Dessa

forma, as práticas atuais de subjetivação produzem um ser que deve estar

conectado a um “estilo de vida”, ancorado na idéia de escolha pessoal que, por sua

vez, está remetida à lógica do mercado (ROSE, 2001)

No caso dos adolescentes em conflito com a lei, esse estilo de vida é

configurado pela busca desenfreada pelo prazer, por uma arma na cintura, dinheiro

no bolso, mulheres, um bom carro, entre outros. É comum ouvir desses

adolescentes que suas ações são balizadas por um querer e por uma vontade

pautados na concepção de um indivíduo completamente livre, que não é guiado ou

influenciado por ninguém. Entretanto, nessas maquinações da subjetividade

podemos afirmar que, ao mesmo tempo em que se produzem sujeitos livres e ávidos

por consumir, produz-se também uma “incapacidade” para tal, remetida às diferentes

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formas de apropriação dos meios de produção e das mercadorias produzidas. Dessa

forma, podemos afirmar que esses sujeitos

incapazes [...] de pagar para ter suas escolhas respeitadas, [...] experimentando o mundo como uma armadilha e não como um parque de diversões [...] Uma vez que as únicas senhas para defender a liberdade de escolha estão escassas em seu estoque ou lhes são inteiramente negadas, elas precisam recorrer aos únicos recursos que possuem em quantidade suficientemente grande para impressionar. Elas defendem o território sitiado [...] através de rituais vestindo-se estranhamente, inventando atitudes bizarras, quebrando, garrafas, janelas, cabeças, e lançando retóricos desafios à lei. (BAUMAN, 1998, p. 41-42).

Em suma, problematizar as relações do adolescente em conflito com a lei

com o espaço urbano, com o mercado e o processo de criminalização da pobreza –

nesta dissertação, tendo como parâmetro o município de Belo Horizonte – é também

endereçar perguntas à cidade, indagando sobre os processos que a constituíram.

A história da capital mineira foi gestada e produzida dentro de ideais

positivistas. Em dezembro de 1897, nasceu Belo Horizonte, primeira cidade

brasileira cientificamente planejada pelo engenheiro Aarão Reis. Seu projeto

urbanístico determinava deliberadamente que não haveria lugar para pobres dentro

de suas fronteiras. Entretanto, a cidade não é só forma, mas também movimento.

Assim, em 1912, após quinze anos de sua inauguração, Belo Horizonte já estava

clivada entre a cidade oficial e a satélite, onde se instalaram grupos que não se

enquadravam no plano original. A muralha invisível da Avenida do Contorno não

impediu que os pobres ocupassem a cidade e circulassem por ela.

Belo Horizonte hoje, e algumas imagens urbanas:

� homem negro, pobre, magro, maltrapilho, sujo entra em um

supermercado de um bairro nobre da capital mineira. É olhado por

todos, e as marcas que traz em seu corpo trazem também a sensação

de iminente perigo e violência. Chega ao caixa com uma latinha de

molho de tomate; o dinheiro que possui não é suficiente. Retorna às

prateleiras e volta ao caixa com uma latinha menor - naquele momento,

seus míseros R$ 0,90 transformam-no em “consumidor”. Após o

pagamento, vai embora com seu produto e, com sua saída, certo

incômodo se esvai...;

� menina negra, aproximadamente 10 anos, tenta vender suas balas em

um restaurante em área nobre da cidade. O garçom interpela-a, mas

ela não desiste. Dois garçons retiram-na do restaurante: um deles

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segura suas pernas e o outro, seus braços. A menina é jogada para

fora e as pessoas continuam saboreando seu almoço...;

� ponto de ônibus no centro da cidade. Jovem branca e adolescente

negro, cabelos descoloridos, marcas e tatuagens pelo corpo, colares

no pescoço. Um policial aborda-os no intuito de saber se o adolescente

“incomodava” a jovem. Eles estavam juntos67.

Cento e oito anos após a inauguração da cidade de Belo Horizonte, cenas de

indiferença, preconceito e tentativas de controle são protagonizadas. O mecanismo

urbanístico-panóptico, que tinha como objetivo o controle social, ganhou nova

roupagem, que elege o corpo como objeto de informação, nunca de comunicação.

No agenciamento corpo-espaço-consumo, ocorre o esquadrinhamento e o

aprisionamento das subjetividades-corpos em modelos pré-concebidos de

percepção-ação articulados à violência.

Problematizar as relações dos sujeitos com o espaço urbano e a dinâmica da

violência que o caracteriza torna-se fundamental. Ferreira Neto (2004) indaga essas

relações partindo do pressuposto de que a desigualdade estabelecida pelo

capitalismo contemporâneo instaura formas de segregação que se revelam no

espaço urbano e se materializam em muros erguidos, guaritas de portões que

demarcam e privatizam este espaço. Práticas cotidianas estão também entrelaçadas

no processo de subjetivação que constitui a maneira de andar nas ruas, de fechar os

vidros dos carros ou no olhar sempre desconfiado para os “estranhos”. Medos, ódios

insensibilidade, indiferença. Sentimentos que caracterizam as novas formas de viver,

sentir, perceber e interpretar os encontros na cidade. As classes mais abastadas

passam a acreditar que o espaço público é perigoso e, por isso, procuram ordenar

os encontros públicos pela seletividade e segregação, que se alia, então, à violência

urbana.

Por um lado, o medo do crime é usado para legitimar medidas progressivas de segurança e vigilância. Por outro, a produção cada vez mais intensa de falas sobre o crime passa a ser o contexto no qual os habitantes geram e fazem circular estereótipos, classificando diferentes grupos sociais como perigosos e, portanto, como grupos a serem temidos e evitados. (CALDEIRA apud FERREIRA NETO, 2004, p. 114-115).

67 Situação foi vivenciada por mim e um adolescente quando saímos da Unidade para providenciar sua carteira de identidade. As outras imagens apresentadas são observações realizadas cotidianamente em Belo Horizonte.

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Esses posicionamentos constituem processo de subjetivação coletivo e

bipolar, baseado na violência e insegurança compartilhadas pelos dois pólos,

intensificando ainda mais a desigualdade e o distanciamento. Diante desse

panorama, alguns questionamentos se colocam, mais como provocação do que

conclusão: como pensar os encontros na cidade a possibilidade da afirmação da

diferença, se as pessoas se encarceram em suas casas, em círculos cada vez mais

fechados, contra círculos vizinhos, estranhos e cada vez mais antagônicos, como a

dicotomia asfalto/favela? Que formas de circulação e apropriação do espaço urbano

podem ser efetivadas descartando-se a equação

diferença/desigualdade/segregação? Como conviver com a diferença, se ela é

apresentada aos sujeitos como suspeita e perigosa? Que processos micropolíticos

podem ser engendrados diante de tanta intolerância? Somando-se a essas

indagações, Ferreira Neto questiona: “seremos capazes de tomar o heterogêneo

como simples diferença e não mais como uma desigualdade irreconciliável?”

(FERREIRA NETO, 2004, p. 115).

Pequenas linhas de fuga poderão ser traçadas se a produção de

subjetividade humana e maquínica engendrar processos de singularização que

recusem a subjetivação capitalística. Essa é uma condição primordial, pois não se

trata somente da questão da qualidade de vida, mas do porvir da vida enquanto tal,

em sua relação com a biosfera. Para tanto, é necessário apostar na idéia de que a

cidade pode se tornar lugar de encontro e convivência, possibilitando que a

diferença não seja aliada na efetivação de práticas preconceituosas e excludentes.

Reafirmar a cidade como lugar de encontro e da afirmação da diferença significa

potencializar modos de subjetivação descomprometidos com os modos de

subjetivação atuais que desqualificam alguns modos de existência.

3.2 Semiliberdade: a vida acontece, a vida se esvai

SEMILIBERDADE: 24 HORAS NO AR. Chegam calados, zangados, assustados... Olhos vermelhos... Maconha? / Ou encharcados de lágrimas de sofrimento... / Olhos esbugalhados, tensos, vidrados... CRACK? / Ou medo do que há entorno... / Olhos frios, duros... Maldade? / Ou tentativa de se proteger do que há por vir... / Não sei... Pois são olhos que não se deixam olhar nos olhos.

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Vão se instalando, confiando, experimentando, testando... / Ficam folgados! Brincam, reclamam: “Cê tá me tirando grandão!!!” / Querem o poder, se impõem. Não conhecem o próprio poder transformador. / Desafiam-me: / Sou Art. 157 sabia? / Fumo mesmo, e daí! / Arrombo qualquer casa que quiser! / Esse sou eu: Um infrator! / Confrontam-me / Eu faço!!! / Mas não pode!!! / Eu faço!!! / Mas não pode!!! / UFA!!!! Não volto mais, vou desistir!!! De que adianta? De que vale tanto esforço? / De que vale mostrar-lhes perspectivas... Esperanças...Que esperança? / Saem daqui pro morro, saem daqui pro tráfico, pra morte... De que vale!? E aí a peteca... O futebol... O totó... / E eles jogam e riem e discutem e se acertam e fazem acordos. / ADOLESCENTES... / E descobrem maravilhados: C com A = CA, S com A = SA. / “Olha aqui! Eu já sei ler! CASA! Não me perco mais ao vir pra cá!” / QUASE CRIANÇAS... / Como não enxergar o brilho nos seus olhos quando são amados? / Como deixá-los sem um toque? Um afeto? / Como lhes negar a chance de simplesmente se saberem humanos?/ É preciso ficar, cuidar, acreditar e esperar... para um dia escutar: “Quando sair, vou procurar a mulher que me denunciou, / vou olhar no olho dela assim! E ela vai ter medo. Mas depois olharei assim... / e lhe direi: - Não quero mais me vingar de você, descobri o valor da vida!” (LOPES, 2006, p. 5).

Constitui-se proposta da medida sócio-educativa de semiliberdade promover

um corte na trajetória infracional dos adolescentes. Para isso, o projeto das

Unidades de Semiliberdade apóia-se no Estatuto da Criança e do Adolescente (que

coloca limites legais no ir e vir de adolescentes e na permanência deles com suas

famílias), bem como no Regimento Interno (que estabelece uma regulamentação na

vida dos adolescentes por meio de normas, o que vai contra a regulamentação da

“vida do crime”, com rotina diferente da estabelecida pela medida de semiliberdade).

Segundo um dos adolescentes entrevistados, o limite colocado pela medida sócio-

educativa é aspecto fundamental no processo de desvinculação da criminalidade:

É porque tanto lá fora a maioria das vezes você sai, se tá na rua mesmo, ninguém tá te segurando pra você sair, aí a gente acaba fazendo besteira. [...] Igual assim, você quer sair de casa não tem ninguém pra te segurar igual aqui na Semi e aí você sai. Pode sair, voltar a hora que quiser (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos) 68.

Aqui, é apropriado trazer novamente as contribuições de Bauman (2001)

referente à modernidade líquida. Diante do esfacelamento e enfraquecimento de

instituições como a família e a escola, os adolescentes que têm como referência seu

grupo de pares se espelham no traficante, no dono da boca. Segundo Zaluar (2004),

o principal motivo de orgulho entre os meninos é fazer parte da quadrilha, portar

armas, participar de iniciativas ousadas de roubos e assaltos, adquirir fama e

ascender na hierarquia do crime, tornando-se o “dono da boca” ou o “patrão”.

68 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.

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Em entrevista realizada com um dos profissionais da Unidade de

Semiliberdade, essa situação relatada pelo adolescente é corroborada. Segundo ele,

no momento em que o adolescente é acautelado na semiliberdade, está “colado no

crime, que é um não sentido”69, sendo perceptível uma diferenciação entre a rotina

do crime e a estabelecida pela semiliberdade:

Poucos são os casos onde o adolescente tinha uma rotina na família, na comunidade dele. Uma rotina que eu digo, assim, semelhante a da semiliberdade, com algumas atividades, com alguns compromissos, com horários. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)70.

Ao iniciar o cumprimento da medida, uma série de regras é apresentada aos

adolescentes. Ao mesmo tempo em que se instala uma cobrança quanto ao

cumprimento das mesmas, marca-se uma diferença em relação à “vida do crime” e

uma nova forma de regulamentação da vida.

Eu acho que quando eles não estão em cumprimento de medida há uma, como é que eu posso explicar... é como se eles tivessem um... [...], que acorda, que faz o que quer, a hora que quer e não fazer também. Então eles não têm, não voltam o olhar pra um cuidado com a alimentação, não têm preocupação com, é um uso que eles fazem na maioria das vezes da própria casa, de ir em casa, tomar um banho, trocar os “panos”, igual eles falam; às vezes se alimentar, às vezes nem têm esse costume e voltar pra “correria”. Então eles dividem o dia e a noite deles em curtição, que tá relacionado com uso de droga, com namoro, com baile, com dar volta de carro, dar “rolé” e com a “correria”, que seria o momento dele estar atuando, seja vendendo a droga, seja cometendo os assaltos. Então o relato da rotina é um pouco nessa: do repouso, e geralmente o repouso, o momento do descanso também é bem curto. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)71.

Essa nova forma de regulamentação tem como base a promoção de uma

crítica, que vai de encontro a um processo subjetivo marcado pela ausência de

crítica, simplesmente uma atuação, fazer contínuo, “atividade” constante, pautada

por sensações que proporcionam emoção e exibição. Hoje, os atos infracionais

tornaram-se mais freqüentes e passaram a ser cometidos com mais violência.

Se antigamente dava um tempo maior, agora não. Ele quer mais, e mais, cada vez mais. Acredito eu... é aquela... que é querer viver perigosamente. Porque existe isso no ser humano, entendeu? O perigo atrai, entendeu? Aí

69 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 70 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 71 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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eles correm atrás disso: a emoção. Como eles falam: a adrenalina, entendeu? (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos) 72.

Segundo Zaluar (2004), os adolescentes e jovens que se juntam a grupos

armados para assaltar declaram os seguintes motivos para essa “escolha”:

“sensação”, “emoção”, “fazer onda”, “aparecer no jornal”. Ainda segundo ela, “na

circularidade do bolso cheio de dinheiro fácil que sai fácil do bolso, ficam compelidos

a repetir sempre o ato criminoso, como se fosse um vício” (ZALUAR, 2004, p.161). É

dessa forma que é estabelecida a “correria” e a vivência da morte no cotidiano. Ao

entrevistar um dos adolescentes, essa questão se concretiza:

Pesquisadora: “Esse tempo que você tá na Semi faleceu alguém que passou por aqui?”. Adolescente: “Faleceu”. Pesquisadora: “E como é que foi pra você e para os outros meninos?” Adolescente: “Ah, foi ruim. Um menino que, um menino que, falaram pra mim que morreu lá na Amazonas. [...] Fiquei muito triste. Fiquei com muita ‘atividade’ também por causa da Semi. Nó. [...] Fiquei com muita ‘atividade’ porque ele morreu saindo da Semi. [...] Fiquei olhando onde é que eu tô saindo, ficava olhando.” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos) 73.

Além das atividades desenvolvidas na Unidade de Semiliberdade, a relação

com os educadores é vista pelos adolescentes como algo que potencializa o

cumprimento da medida e o afastamento da criminalidade:

Pesquisadora: “E o que facilita o cumprimento?” Adolescente: “As atividades, os educador conversa, me ajudando”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)74.

Ah, o que acontece aqui, os educadores eles dão uns bons conselhos, conversam com nós, arrumam um curso, escola, talvez até um emprego mesmo para ajudar nós, ajudar a família também, é, faz nós ficar mais feliz. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 75.

Já a distância da família, operada pelo cerceamento da liberdade, é vista por

eles com um dificultador:

Pesquisadora: “E o que é difícil aqui na semiliberdade?” Adolescente: “Só saudade de casa mesmo”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)76.

72 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 73 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 74 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 75 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 76 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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Difícil pra mim é porque não dá pra sair na rua, porque sente a vontade demais de ver sua família, ver os amigos, de ir para um baile, curtir um pagode... não dá, entendeu? Mas por outro lado também é bom porque você reflete mais um pouco da vida o que tá fazendo, o que você fez no passado e agora seguir em frente, melhorar as coisas. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 77.

Apesar de essa distância ser vista por eles como algo ruim, percebe-se, como

já salientado anteriormente, que esse corte produz reflexões em relação ao

envolvimento com a criminalidade.

Os adolescentes elegem as atividades promovidas pela semiliberdade como

os principais vetores operantes na promoção de uma crítica frente ao que vivenciam

no “mundo do crime”.

Pesquisadora: “Mas estas atividades, como é que ajudam vocês?”. Adolescente: “Ah, ajuda. Na hora que você tá fazendo aí você tá pensando”. Pesquisadora: “Tá pensando...” Adolescente: “Na vida”. Pesquisadora: “O que em relação à vida?” Adolescente: “Pensando o que que vai arrumar quando sair”. Pesquisadora: “Estando lá fora não pensa nessas coisas?” Adolescente balança a cabeça afirmando que não. Pesquisadora: “Por que?” Adolescente: “Porque a gente não tem tempo. Tem que pensar antes. Lá fora lá, você tando lá fora se você não tiver planejando nada pra fazer você vai começar a trocar de novo [tiro]. Aí tem que começar a arrumar um planejamento já. [...] Tando aqui dentro dá pra pensar”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos) 78.

A vida do crime produz a “correria”. Deve-se estar atento, sobressaltado,

vigilante, em “atividade”. Não há espaço para pensar nas conseqüências que a

vinculação com o crime pode gerar, porque é necessário colocar-se em risco

constantemente. A vida está a serviço da criminalidade, e o enfrentamento da morte

é algo corriqueiro, mas nem sempre percebido. Na maioria das vezes, os

adolescentes não têm clareza quanto aos motivos que determinaram o cometimento

de um ato infracional. Segundo um educador:

[...] raros casos que os adolescentes conseguem dizer, ou que ele tenha uma motivação maior pra atuar, pra cometer. Então tem adolescente que consegue de alguma forma justificar o envolvimento, seja responsabilizando alguém ou seja justificando por uma necessidade em casa, ou por uma forma de chamar atenção. Eles não têm isso de uma forma muito clara, uma forma consciente. Mas a maioria deles não sabe distinguir, ou não sabe qual foi a razão daquilo ali. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)79.

77 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007. 78 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 79 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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Esse falta de justificativa pode estar relacionada ao processo de envolvimento

com a criminalidade. Na fala dos adolescentes, é possível identificar uma cadeia,

“uma coisa puxa a outra”. Primeiro o adolescente começa a fumar, depois a roubar,

vender droga e cometer assaltos. O ponto final é a “guerra” e, nesse momento, o

adolescente tem como alternativa matar ou morrer:

Tem a ilusão vendo os outros praticar e fica com o interesse também de, sente vontade de usar também e aí quando usa, aí outra pessoa fala que é bom. Aí você está curtindo a onda e aí noutro dia você já começa a pensar naquilo, na onda que você curtiu, aí você vai querer mais e mais. Aí depois que começa na criminalidade mesmo de entrar para vida do crime, vender droga, querer fazer assalto a mão armada. Também querer matar... (Adolescente em cumprimento de semiliberdade, 18 anos)80.

A medida de semiliberdade coloca em xeque a “correria”, já que proporciona

reflexão, cuidado em relação a si próprio. O tempo da medida é tempo de deparar-se

com a vida, olhar, contemplar, projetar o futuro e angustiar-se. Outro espaço-tempo

é instaurado, em que a questão da finitude é colocada, bem como novas relações

com a vida e a com morte. Esta, vivenciada anteriormente como “destino coletivo” de

quem escolhe o crime, passa a ser temida.

O cumprimento da medida pode ser interpretado como tentativa de sair do

crime ou, no mínimo, possibilidade de afastamento das “guerras”. Por um período, o

adolescente tem sua vida de volta, e a possibilidade da morte fica em suspenso. Ele

consegue conviver, estudar, realizar atividades culturais, de lazer. Apesar disso, a

morte bate à porta, por exemplo, com o assassinato de um adolescente que

conheciam. Acontecimentos dessa natureza mantêm o grupo sobressaltado.

Qualquer carro desconhecido, qualquer pessoa “mal-encarada” ou até o toque da

campainha fazem com que os adolescentes se sintam ameaçados e temerosos com

relação às suas vidas. Nesses momentos, a reflexão advinda do cumprimento da

medida é capturada novamente pela “correria” e pelo medo de morrer.

Podemos conjecturar que o fato de ter uma arma em sua cintura faz com que

o adolescente se sinta poderoso, instaurando sensações permeadas por

onipotência, destemor, proteção, invencibilidade e imortalidade. Talvez por isso, o

fato de ter que abrir mão de sua arma em prol do cumprimento de medida sócio-

educativa traga vulnerabilidade e medo em relação à própria vida. O depoimento de

80 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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um educador é significativo e chama atenção para um cuidado excessivo em relação

à vida que o adolescente desenvolve ao estar em semiliberdade:

Parece que quando eles estão vulneráveis mesmo, né. Eu acho que aqui dentro, por exemplo, tá todo mundo bem, como dizem eles, “de presente” né, chega alguém e pode... [...] Parece que eles confiam muito na própria defesa deles mesmo enquanto tá armado, se não tá armado, se tá com a turma dele, se não tá. Aqui não. Aqui eles não estão armados, aqui eles não estão com turma, com “parceiro”, né. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos)81.

A notícia de um assassinato faz com que os adolescentes se coloquem no

lugar do sujeito que morreu: poderia ter acontecido com eles. Essa morte, portanto,

tem a função de evidenciar uma possibilidade que é sempre recorrente.

Pesquisadora: “Quando morre assim algum adolescente assassinado pela guerra o que você pensa?”. Adolescente: “Nó, fico triste. Penso muita ‘treta‘ [...] Podia ser eu, podia ser alguém que eu conheço, que andava junto comigo” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos) 82.

Por isso, mediante um assassinato, não é possível para os adolescentes

nenhuma crítica a respeito do fato de que o mesmo tenha ocorrido em decorrência

do envolvimento com o crime: “quando acontece uma perda eles ficam tão

alvoroçados, tão assim mexidos com essa morte, que é como se o dia deles

estivesse chegando e aí eles têm que viver tudo de uma vez” (Profissional da

Unidade de Semiliberdade, 32 anos)83. O que fica aparente é a ansiedade, a

agressividade, o medo. São comuns falas do tipo: “morreu hoje, enterra; amanhã faz

dois dias”, “não tem jeito mesmo”; “hoje foi ele, amanhã pode ser eu”; “tem que estar

preparado pra isso”84. Ao se colocar como aquele que não teme a morte, estando

disposto a enfrentá-la, o adolescente tenta afirmar para si mesmo e para o outro que

é onipotente, imagem que se ancora em um ideal de virilidade e, ao mesmo tempo,

torna-se necessária para enfrentar a morte no cotidiano.

A reflexão sobre as consequencias geradas pelo crime, como sofrimento,

perdas e morte fica prejudicada quando os adolescentes estão em grupo. É

importante, ali, mostrar certo conformismo frente à situação, pois isso demonstraria

81 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 82 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 83 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 84 Falas de adolescentes durante o período em que atuei como coordenadora das Unidades de Semiliberdade. Anotações pessoais.

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força e virilidade. Nesse momento, eles falam da morte com aceitação: é o

inevitável, o que os obriga a se armar, a ficar na “espreita” ao sair e chegar da

Unidade, a subir os muros da Unidade e instalar cerca de proteção, a analisar e

traçar um plano de fuga caso alguém invada a instituição. Como essa força e

virilidade são apenas aparência, é comum, na ocorrência de um assassinato, o

aumento do uso de drogas e de outras infrações relacionadas ao não-cumprimento

das normas do Regimento Interno. Além disso, em atendimentos individuais os

adolescentes mostram-se mais reflexivos, embora essa contemplação ainda se

baseie na certeza da morte e no sofrimento que ela trará para familiares e pessoas

queridas.

Segundo os adolescentes, a medida de semiliberdade tem eficácia maior se o

adolescente não estiver em “guerra”.

Não adianta não [cumprir a medida]. Pra mim, não, porque aqui você tem uma possibilidade assim de segurança, entendeu, porque você tá cumprindo medida. Mas depois que se sai lá na rua, a gente é outra coisa, entendeu? Porque o cara vai saber que é ocê? tá na rua, aí o cara vai querer matar ocê. Aí como o cara quer matar ocê, ocê vai querer matar o cara também. Aí vai querer entrar na vida do crime de novo. Vai querer envolver com outros grupos, comprar arma só pra matar o cara. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)85.

[...] quando eu tava preso, eu saí e meu pensamento era roubar mais, traficar mais, matar. Isso e aquilo. Mas agora que eu tô aqui, eu tô pensando em mudar de vida. Mas chega lá fora lá, talvez pode ter acontecido alguma coisa, que nem o meu colega morreu e eu falei que eu vou correr atrás. Aí, se eu sair lá fora lá, ainda mais que o cara que matou ele sabe que eu “colava” com ele aí, querer matar ele também. Aí eu vou sair da vida do crime, tô lá de boa trabalhando, aí chega e mata eu. Por isso que eu falo. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 86.

[...] é difícil demais. Porque guerra não acaba. Só acaba quando a outra pessoa morrer. Se a outra pessoa tiver guerra com outro vai ficar com aquilo na cabeça: eu tenho guerra com ele! Eu tenho guerra com ele! Vai só indo. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)87.

Eu acho assim, que a Semi não muda ninguém assim não. Eu acho que muda assim: vai da cabeça do adolescente. [...] A ajuda também ajuda, só que eu tô falando assim, igual não adianta ele ficar falando ali e continuar. Ele vai ter que entrar e achar na Semi assim, “não, vou sair daqui e mudar

85 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 86 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 87 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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de vida”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos) 88.

Como mostram esses relatos, é “lá fora” que tudo se decide. Apesar de a

medida ser possibilidade de vida, por afastar o adolescente temporariamente da

guerra, voltar para o “mundão” traz novamente a expectativa da morte. É preciso

armar-se para se proteger. De qualquer forma, apesar das guerras e da proximidade

da morte, pode-se afirmar que os adolescentes vêem a medida de semiliberdade

como uma oportunidade, a partir da qual são inseridos ou voltam a freqüentar a

escola, começam a fazer cursos, passam a ter acesso a atividades culturais e de

lazer e podem se reaproximar de seus familiares pela rotina que a Unidade impõe e

pelo trabalho que é realizado com a família.

As atividades culturais e de lazer têm importância muito grande no trabalho

desenvolvido na semiliberdade. Os adolescentes realizam-nas com prazer e as

Unidades, através de articulações com os equipamentos sociais do município,

conseguem oferecer um leque de opções e oportunidades. Nesse ponto, localiza-se

uma das incoerências proporcionadas a partir da inserção do adolescente na rede

de medidas sócio-educativas: a maioria só tem acesso a atividades culturais e de

lazer, como também a direitos básicos, como saúde, educação e alimentação, após

o cometimento de um ato infracional. São direitos que lhes são negados, assim

como a possibilidade de escolha em relação à vida, não relacionada à infração e,

conseqüentemente, à certeza de que irão morrer prematuramente.

Ele [o adolescente] vai ter acesso às coisas que ele não teve antes. Isso confunde demais os meninos. Igual um caso aqui, por exemplo, chega aqui o menino, tem quatro ou cinco refeições diárias, ele tem computador, ele tem o espaço que ele nunca teve, aparecem propostas pra ele que de repente lá fora ele não vai ter, entendeu? (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)89.

Essa situação está relacionada às políticas públicas de vários Estados

brasileiros. Geralmente, os governantes elegem como prioridade ações voltadas

para a segurança, deixando de lado programas locais que poderiam melhorar as

condições de vida da população menos favorecida.

Porque eu acho que o governo também é muito falho, sabe. Principalmente na questão assim: deixa o adolescente, o menino chega nessa idade de 16

88 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007. 89 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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anos, mas se você voltar lá atrás, você vai ver que esse menino, quando era criança, ele não teve oportunidade de nada, entendeu? Aí quando ele chega nesse ponto que tá aqui, que é o que? Que é uma internação, que é uma medida de semiliberdade, o Estado entra achando que o programa vai conseguir fazer com que aquela pessoa mude. Eu acho que tá errado. O programa tinha que começar lá quando ele era criança. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)90.

Recordo-me de algumas situações vivenciadas por adolescentes

acompanhados pela semiliberdade que exemplificam essa situação. Um deles foi

assassinado em 2005, em decorrência de sua atuação no crime. Quando ainda

cumpria a semiliberdade, participou de um encontro de capoeira em Barbacena,

Minas Gerais. Ao retornar, conversamos bastante sobre a viagem, o encontro, as

paqueras. Quando perguntei do que mais havia gostado, respondeu-me: “o

banheiro”. Diante dessa resposta, considerada por mim estranha, indaguei o motivo.

Ele havia achado “coisa de outro mundo” poder colocar a temperatura da água de

acordo com o seu gosto. Segundo ele, além de sair muita água do chuveiro, era

“doido demais” sair quente de um lado e frio do outro. Em outra ocasião,

acompanhei um adolescente de 12 anos ao cinema. Tivemos que sair às pressas,

pois ele ficou muito receoso. Por mais que acreditasse que nenhum personagem

sairia da tela, temia tal possibilidade. Em outro episódio, foi realizado um almoço

mais “caprichado” na Unidade para celebrar o Natal. Naquele ano, durante todo o

mês de dezembro trabalhou-se com os adolescentes a temática “sentido da vida”, e

uma das atividades era a preparação do alimento pelos próprios meninos. Um

educador que gostava de cozinhar ficou responsável pela condução da atividade e

sugeriu que fosse feita uma lasanha. A maioria não conhecia esse prato.

Tais situações, apresentadas como surpreendentes para os adolescentes,

são, para nós, simples, corriqueiras, vivenciadas como naturais. Temos acesso a

quatro ou cinco refeições diárias; habitamos casas ou apartamentos que oferecem

certo conforto; vamos ao cinema, trabalhamos, estudamos, vivemos uma vida digna,

com direitos são garantidos. Entretanto, para a maioria dos adolescentes essas

situações são exceções e só podem ser vivenciadas enquanto estiverem em

cumprimento de medida. Talvez por isso seja comum “regredirem” em relação à

medida, “aprontarem” quando estão para serem liberados. Com o término da

medida, todas essas coisas se dissipam e, muitas vezes, a volta para casa significa

morte. Assim, a vida acontece, a vida se esvai. 90 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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4. PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO NA PERSPECTIVA DE UMA MORTE QUE SE ANUNCIA

Que lugar escuro, ei moço, por favor, eu queria saber Ei, eu te conheço, me falaram que você tinha morrido; nossa, que treta, hein, mano! Eu sou apenas o que os seus olhos vêem! Que lugar estranho é esse? Ha, ha, ha! Não vejo graça nenhuma, mano! Aí, me desculpa! Qual que é dessas pessoas, tá todo mundo gritando, que calor insuportável! Quem é aquele maluco lá que tá de chapéu, sobretudo, ele tá me olhando com um olhar estranho, meu, vixi mano, dá até arrepio! Como você se sente? Estou sentindo meu corpo estranho, uma dor de cabeça tremenda, parece que a minha cabeça vai explodir! Calma, porque logo você vai se acostumar, aqui não tem mais nem menos, todos somos iguais! Como que eu vim parar aqui? Relaxa irmão, é normal, cada minuto que passa chega pessoas piores e dessesperadas como você! Mas eu não queria vir prá cá, eu nem sei onde eu estou, eu tava indo fazer um rolê, mano, com os meu amigos! Amigos? O que tá acontecendo com a sua voz? Respire fundo e feche os olhos! Eu não consigo respirar fundo, estou sentindo um cheiro estranho que queima dentro do meu nariz! Então somente feche os olhos! Que pesadelo horrível! Porque que tá todo mundo correndo? Ué, tão falando no meu nome?O que tá acontecendo? Aí, dá licença; deixa eu passar,deixa eu ver o que tá acontecendo! Nossa, tem um maluco coberto com um plástico preto, só dá pra ver o tênis dele, vixi, da hora hein, é igual ao meu, que eu roubei na semana passada! Ô mãe, o que a senhora está fazendo aqui? Não é ninguem da nossa familia? Por que a senhora está chorando? Ô mãe, fala comigo. Ah, não quer falar, firmeza, fica aí chorando por uma pessoa que a senhora nem comhece, vai! Alá, meu irmão também tá chorando, aqui é normal as pessoas morrerem por causa de drogas, roubos, acertos de contas. Que culpa tenho eu se tem um cara morto? Aí, tão falando que o presunto era nóia da vila, era um maluco que trabalhava, começou a usar e não segurou a onda! A droga é só pra quem é, né, mano? Ha, ha, ha! Ih, ó quem tá ali, meu primo! Ei joe, vamo ali buscar algo para clarear a mente? Ei! Ou! Meu, o que tá acontecendo, ninguém quer falar comigo, hoje não é meu dia! Eu estou com uma dor de cabeça tremenda, parece que vou desmaiar. Caramba, tão colocando o maluco num lugar escuro e frio, e eu que tô sentindo arrepio! Que frio, véi! Bom, depois dessa estou pensando em parar de usar drogas; vou empenhar a televisão da minha coroa; acertar os manos que eu ainda tô devendo; vou tirar um cochilo e aí tudo certo, amanhã será outro dia! Caramba, quem consegue dormir com um barulho desse, um falatório danado, gritos, choros, todo mundo que chega passa abatido e nem olha no meu rosto, que cheiro é esse? Um perfume de rosas, flores, vela queimando, devo estar mal, continuo com muita dor de cabeça. Ô mãe, dá um copo d'água, ô mãe, a senhora continua chorando, logo isso passa, dor de cabeça é normal, quem deve estar com dor de cabeça é o mano que morreu ontem, tomou quatro tiros na cabeça. Falando em morreu ontem, o que essa coroa de flores está fazendo dentro de casa? E esse

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caixão? E esse pessoal da rua? Ô mãe, dá licença, deixa eu ver quem tá aí dentro... ó, que brincadeira é essa? Eu tô aqui, esse não sou eu? Gente, pára de chorar, alguém pode me explicar o que tá acontecendo? Você deve aceitar a morte com uma finalidade, já faz anos que você vem procurando sarna pra se coçar! Que papo é esse que morri, o que você tá fazendo aqui dentro da minha casa? Ué, não falaram que eu tinha morrido? Por enquanto eu sou o único que consegue te ouvir! Então como eu morri? O maluco que morreu ontem é exatamente você! Sua vida custou apenas uma pedra que você fumou e não pagou! Relaxa, irmão não fica nervoso, você não é o unico que morre assim; daqui a pouco você vai conhecer mais um nóia, nóia não, desculpa irmãozinho, não quis te ofender! E agora, o que vai ser da minha vida? Vida? Que vida? Você já era, ou melhor, o que vai ser da sua alma! Ha, ha, ha!! Ei, maluco, você tá me tirando, você fala uma pá de baboseira e fica aí rindo da minha cara? Posso falar uma coisa, estou acustumado em ver família reunida gritando, chorando, e te confesso que isso me dá um prazer danado! Família destruída te dá prazer? Claro, o meu maior prazer é quando você conhece o mestre! Mestre, que mestre? O mestre do prazer, dono de tudo aquilo que você gosta, o que te ajudou a fugir do conselho da sua velha, a mentir para as pessoas, e não ajudar o proximo, e a matar aquele mano! Eu não consigo ver minha mãe assim sofrendo, chorando, eu quero abraçar ela, mas eu não consigo! Você teve todo tempo da vida, agora é tarde demais... bom, deixa eu cumprir meu trabalho, se apresse porque o mestre está te esperando! Não, eu tenho que fazer alguma coisa para tentar salvar a minha alma! Você teve a sua chance ontem de manhã! Chance? Que chance? O melhor de cima mandou um evangélico na porta da sua casa para falar da verdade e do verdadeiro amor e da sua salvação, e você se recusou em abrir aquele portão, meu mestre gostou muito, ha, ha, ha!!! Eu tenho um visita para você! Visita? Que visita? Uma pessoa que jamais te esquece! E aí, Zé, lembra de mim? Você tirou a minha vida porque eu não tinha dinheiro! Hoje eu sofro aqui vagando e pensando, mó saudade dos meus filhos, da minha esposa e da minha familia! Que Deus tenha piedade da sua alma!!! Vamos, Zé! Chegou a hora de você ir ver o mestre! Ha, ha, ha! Não, não, não... Aí, moleque, chega aí! Fala, tio! É aqui que o corpo está sendo velado? É aqui mesmo!!! Então ele morreu mesmo? Aham !!! Meus pesames!!!91

91 Letra da música “Paraíso paranóia”, do Grupo Expressão Ativa.

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4.1. Vidas ameaçadas: diferentes formas do funciona mento da subjetividade

O capítulo 1 apresentou a obra “Diálogos”, de Deleuze e Parnet (1998). Nela,

os autores afirmam que a subjetividade é tecida por linhas de natureza diversa: de

segmentaridade dura ou molar, de segmentaridade flexível ou molecular e linhas de

fuga. Essa concepção de subjetividade é amparada pela idéia de funcionamento e

mostra-se contrária as teorizações das diversas correntes da psicologia que, entre

outros dispositivos, compreendem e produzem os mais diversos sujeitos: “infratores”,

“boys”, “patis”, “trabalhadores”, “crentes”, “consumidores”, entre outros. De acordo

com Rose (2001), essas identidades são maquinadas por uma variedade de

agenciamentos, nos quais uma territorialização fixa identidades por meio de

diferentes máquinas: desejantes, de trabalho, pedagógicas, punitivas, de consumir,

espirituais, de mercado, dentre outras. Através dessas máquinas, uma particular

relação com o eu é administrada, forjada e agenciada.

No trabalho de pesquisa realizado na semiliberdade, é possível perceber as

nuances dessas três linhas que compõem a subjetividade dos adolescentes em

conflito com a lei. Em uma atividade específica desenvolvida pelos educadores com

os adolescentes, essas linhas se evidenciaram, revelando aspectos da subjetividade

daqueles que vivenciam, sobretudo, situações de “guerra” e ameaça. Nessa

atividade, cada adolescente deveria criar uma personagem ou um objeto, nomeá-lo

e descrevê-lo, ressaltando suas características. Posteriormente, esses personagens

seriam reunidos em um único texto, tornando-se componentes de uma história.

No início da atividade, o adolescente Francisco recusou-se a participar,

apesar de ter iniciado um desenho. A pedagoga que coordenava a atividade o

convidou, insistindo: “vamos lá, dá uma vida pra ele”. Mediante esse convite, o

adolescente respondeu: “vida? Ele não tem futuro. Tá com o corpo todo deformado

de bala. Ele é violento”. Apesar da resistência, o adolescente participou da atividade

e, ao final, apresentou o desenho de um menino com uma arma na mão, envolto em

uma poça de sangue, com as seguintes frases: “Ele mata ‘alemão’. Ele é mau. Ele é

matador. Ele não usa droga”.

Após todos os adolescentes terem terminado seus desenhos, iniciou-se a

montagem da história coletiva, com cada um apresentando suas personagens.

Nesse segundo momento da atividade, Francisco novamente apresentou resistência.

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A pedagoga convidou-o novamente: “vem participar da história com seu

personagem”. O adolescente respondeu: “história, que história? Ele faleceu

ontem”92.

Ao final da apresentação, os adolescentes apresentaram a seguinte

composição: “Max era grafiteiro, fazia arte. Vivia no paraíso, mas é tentado por

Rafael que gostava de mulheres, de usar correntes de prata e roupas chiques e por

Lúcius, irmão do capeta”93. A história contou também com a participação dos

seguintes personagens: um pastor, que, apesar de ter uma vida complicada – usava

drogas, brigava com sua família – se regenera, e Mateus – personagem criado por

Francisco –, que tenta corromper a todos, vira americano e foge para os “Estados

Sumidos”.

Nessa história, podemos reconhecer diversos aspectos da subjetividade dos

adolescentes que se vêem ameaçados e que foram apresentados ao logo desta

dissertação. “Ser mau”, “ser violento”, “ser matador” são identidades produzidas em

contextos sociais em que a violência se apresenta como uma das formas de

sociabilidade, tornando-se relação “natural” e às vezes “necessária”. Além dessas

identidades, podemos afirmar também que a subjetividade dos adolescentes em

conflito com a lei é maquinada por processos hegemônicos, que entendem e

instituem uma forma de ser adolescente balizada em torno de ideais viris, em que a

conquista das mulheres é garantia de status e poder e a forma de se vestir (“usar

correntes”, “roupas chiques”) é valor reverenciado pelos iguais.

Considerando as postulações de Deleuze e Parnet (1998) sobre a

subjetividade, podemos conjeturar que as identidades mencionadas são segmentos

que constituem a chamada linha dura. Outro segmento que constitui essa linha e

que tangencia a questão da morte é a necessidade de enfrentá-la. Cada vez que o

adolescente sai vitorioso de uma “correria”, efetivando uma ação criminal, essas

identidades são fortalecidas.

Segmentos da segunda linha, que possui aspectos mais flexíveis, foram

revelados a partir do questionamento operacionalizado pela medida. Esse

questionamento pode produzir uma nova forma de relação social, em que a palavra,

e não a ação violenta, torna-se significativa. A partir da palavra, novos

92 Dados obtidos em pesquisa de campo realizada em 2007. 93 Dados obtidos em pesquisa de campo realizada em 2007.

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agenciamentos podem ser maquinados, a morte passa a ser temida e o risco

evitado. Esses processos podem deflagrar desterritorializações que colocam em

cheque a “correria”, proporcionando a valorização da vida humana. Em um

movimento contrário, as identidades do “mundo do crime” podem ser também

reterritorializadas: para manter-se vivo, é necessário vencer o “inimigo” e, por isso, o

adolescente volta à “guerra”. Na semiliberdade, vários adolescentes evadiram com

esse propósito: matar quem os perseguia. A reflexão proporcionada pela medida

presentifica a morte, trazendo à tona a angústia e o medo de morrer. Por isso,

podemos afirmar que voltar à “guerra” é uma tentativa de reafirmar a própria vida.

Em suma, o segmento que orienta a constituição dessa linha é o medo de morrer.

Os conceitos de territorialização e desterritorialização foram apresentados por

Deleuze e Guattari nas obras “O Anti-édipo” (1976), “Mil Platôs” (1995) e “O que é a

filosofia?” (1992). Devem ser entendidos como processos concomitantes,

fundamentais para compreender as práticas humanas. São utilizados para explicar

como se efetiva a construção e a destruição ou abandono dos territórios humanos,

quais os seus componentes, seus agenciamentos, suas intensidades. Quanto ao

conceito de território, cabe esclarecer que, para Deleuze e Guattari, ele não se

articula somente à idéia de apropriação de parcela geográfica por um indivíduo ou

coletividade:

A noção de território aqui é entendida num sentido muito amplo, que ultrapassa o uso que fazem dele a etologia e a etnologia. Os seres existentes se organizam segundo territórios que os delimitam e os articulam aos outros existentes e aos fluxos cósmicos. O território pode ser relativo tanto a um espaço vivido, quanto a um sistema percebido no seio da qual um sujeito se sente “em casa”. O território é sinônimo de apropriação, de subjetivação fechada sobre si mesma. Ele é o conjunto de projetos e representações nos quais vai desembocar, pragmaticamente, toda uma série de comportamentos, de investimentos, nos tempos e nos espaços sociais, culturais, estéticos, cognitivos. (GUATTARI; ROLNIK, 1996, p. 323).

Sendo assim, os conceitos apresentados acima são importantes dispositivos

para a compreensão não apenas de questões filosóficas, mas também das práticas

sociais e da temática da produção da subjetividade.

Retomando a reflexão sobre as linhas que constituem a subjetividade, pode-

se perceber que o trabalho executado na semiliberdade deflagra processos

subjetivos localizados, sobretudo, nas duas primeiras linhas. Movimentos de

desterritorialização podem ocorrer quando os adolescentes são informados da morte

violenta de pessoas conhecidas. Assim, a linhas de segmentaridade podem se

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transformar ocasionalmente em linhas de fuga. A afirmação “não quero morrer desse

jeito”, proferida em 2005 pelo adolescente Vinícius diante do assassinato do

adolescente Alex, deflagrou movimentos e posicionamentos diferenciados em

relação à vida e à morte. Até então, o adolescente, diante de “guerras” e dos

conseqüentes falecimentos, demonstrava ódio e desejo de vingança. Pudemos

perceber em Vinícius um movimento contrário: ele finalizou o cumprimento de sua

medida em 2005, e a última notícia que tivemos dele foi a de que estava bem. Havia

arranjado um emprego no mercado de trabalho formal, mantendo-se afastado do

crime.

Considerando a realidade desses adolescentes e seus processos subjetivos

vinculados à vida e à morte, podemos postular que, a partir do medo da morte

“diferentes mecanismos de encobrimento e negação dessa realidade são

produzidos” (ELIAS, 2001, p. 21). Esses mecanismos perpassam as linhas que

constituem a subjetividade dos adolescentes, produzindo fantasias coletivas em

torno da idéia de vida eterna. Atrelado aos sentimentos de culpa que afloram a partir

dos questionamentos e desterritorializações deflagrados pela medida de

semiliberdade, o medo da morte é remetido ao contexto da punição, marcado por um

discurso religioso que relaciona o crime à influência maligna, ao Demônio,

personalizado na figura das más companhias, das más influências. Os rituais do

perdão e da absolvição instituídos pelas igrejas que seguem a doutrina judaico-cristã

colocam para os adolescentes a possibilidade de cometer muitos “erros” – roubos,

assassinatos, uso/tráfico de drogas – e serem perdoados no final de suas vidas. Por

isso, a morte vivenciada como punição em decorrência das más ações cometidas é

um segmento constitutivo da subjetividade de parte dos adolescentes envolvidos em

conflito com a lei, podendo ser observado na seguinte letra de rap, discutida com os

adolescentes durante a realização da pesquisa:

Hoje eu sei, quanto mal eu causei, / Cada tiro que eu dava escutava um grito, / Me perdoa meu Deus, os tiros e as dores, / Hoje sou eu quem sinto. Numa cama, em coma, / Não reage, não fala / Meu sangue está morrendo / Com projétil de uma bala. / "aquele cara, metia mó mala, / Não tinha idéia, com ele é na bala. Desacreditou, eu engatilhei, / O cara sacou, então atirei. / A lei do cão, foi ele quem fez, / Segura ladrão, chegou sua vez! / Lembra do meu irmão? Você riscou do caderno, / Mandou pro inferno, / Agora tó, senti a dor, / Sempre haverá o melhor ou pior, / Pra quem se achar o terror, ahã". Deus, alguém está chamando o nome do senhor, / Pra conseguir o último perdão. / "me responda se puder me ouvir, eu imploro. / Deus, meus olhos si fecharam, / Me de uma luz, vinde à mim Jesus".

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"eu sou a luz que veio ao mundo, / Para que todos aqueles que crêem em mim, / Não permaneçam nas trevas. / Vai ladrão, abre seu coração, / E conquista seu último perdão". Deus, eu matei tanta gente, / Que nem consigo mi lembrar do barulho do, "pá", / Travou minha mente, feriu meu subconsciente, / Estou aqui, pedindo perdão, e si é tarde ou não, / Ouça a voz do meu coração, / Porquê meus lábios não se mexem. / Meu corpo está, totalmente paralisado, / Presinto meu fim, minha morte sem perdão, / Me deixa sem paz, piedade de mim; / Eu já perdoei, quem me baleou, e que pare a matança? / Não quero vingança, tanto matei sem ter motivo, / E agora respeito a todo ser vivo. / Talvez em teu livro da vida, / Meu nome esteja quase apagado, / Sem carinho, sem amor, sem dó, / Eu pratiquei o terror e só. / Machuquei, muitas famílias, / Formei, minha própria quadrilha, / E agora me sinto abandonado, / Agora sim, sou pobre coitado. / Servi ao diabo, e nem reparei, / Que estava errado, e que deus é a lei, / Única, que eu contrariei, / Te imploro senhor, / Estou entre a morte e a vida, / Está acabando minha respiração, / Pelo amor de deus... / Dê meu último... Chora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Vai, vai, implora, seu último perdão. / Ah meu deus! / Minha vida inteira foi só pensar, / "eu vou me dar bem, atirando em alguém, / Ao invés de morrer eu gosto de matar". Mas, eu exagerei, tanta gente matei sem dó, / Por causa de pedra e pó, / Uma bala crânio e só. Chora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Vai, vai, implora, seu último perdão. Um homem chora, reza, ora, / Pedindo à deus, / A lágrima rola no canto dos olhos, / Implora. E só agora, o homem chora, / E quando o homem chora, / Precisa, pedir o seu perdão94.

Nessa letra, podemos destacar outros segmentos constituintes da

sujetividade dos adolescentes vinculados à criminalidade: a disposição para matar

ou morrer, pois os conflitos só se resolvem à bala; o sentido da vida relacionado à

concretude da morte, pois na “correria” está implícito um “não pensar”; a morte

violenta como “destino” de quem escolhe o crime: “segura ladrão, agora chegou sua

vez”; o mais forte, mais poderoso, mais esperto como vencedor do embate – sempre

haverá “o melhor ou o pior pra quem se achar o terror”; as ações violentas motivadas

por vingança e coisas banais – “não quero vingança, tanto matei sem motivo”; a

associação entre o crime e a dimensão diabólica – “não permaneçam nas trevas”,

“servi o diabo e nem reparei”; a sensação de onipotência e a associação entre crime

e prazer – "eu vou me dar bem, atirando em alguém, ao invés de morrer eu gosto de

matar”.

A seguir, serão apresentadas várias características do funcionamento das

subjetividade dos adolescentes, sobretudo dos que se encontram ameaçados.

94 Letra da música “Último Perdão”, do Grupo Expressão Ativa.

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4.1.1. A banalidade da vida e a centralidade da mor te

Para Elias (2001), uma das conseqüências do processo civilizador foi o

recalcamento da morte: “com a expectativa de vida mais longa, a morte é adiada. O

espetáculo da morte não é mais corriqueiro. Ficou mais fácil esquecer a morte no

curso da vida” (ELIAS, 2001, p.15). Entretanto, como apresentado no capítulo 1

desta dissertação, em muitas comunidades brasileiras a experiência da morte é algo

comum, acontecimento trivial, corriqueiro. Vários processos contribuem para isso:

precariedade ou ausência de políticas públicas, subemprego, presença e controle

social da vida via tráfico, extrema violência nas relações entre “polícia” e “bandido”,

entre outros. Além disso, o monopólio da violência física no Brasil esfacelou-se em

decorrência do poder paralelo do tráfico. Podemos afirmar que, concomitantemente

a todos esses processos, existem no País algumas formas de sociabilidade que se

aproximam das “sociedades medievais guerreiras” caracterizadas por Elias (2001).

Nessas sociedades, as agressões, os embates físicos e os duelos eram

acontecimentos triviais e significativos na vida das pessoas.

[...] se não todos, pelos os membros do estrato mais alto nessas sociedades portam armas como apêndice indispensável em sua interação com os outros. Pessoas fisicamente fracas ou incapacitadas, velhos, mulheres e crianças permanecem em geral confinados à casa os ao castelo, vilarejo ou quarteirão urbano habitado por seu próprio povo; só podem aventurar-se fora com proteção especial. (ELIAS, 2001, p. 58).

Da mesma forma, essa sociabilidade está presente sobretudo nas relações

estabelecidas entre os moradores das favelas e regiões periféricas das grandes

cidades brasileiras. Nesses espaços, ataques físicos são um aspecto normal da vida

social. Se não todos, ao menos os membros do mais alto escalão (traficantes)

exibem suas armas como troféus. As pessoas que não se envolvem no tráfico vivem

subjugadas às suas leis. Os processos de subjetivação deflagrados nesses espaços

diferenciam-se dos tidos como hegemônicos, que caracterizam a vida dos

“habitantes do asfalto”. Conseqüentemente, diferentes processos relacionados à

morte são produzidos. Se na vida dos “habitantes do asfalto” ela é tabu, nas favelas

a vida e a morte são experiências banalizadas em decorrência das “guerras”

travadas no cotidiano. Nesses embates, a expectativa da morte em confrontos

sangrentos está constantemente colocada, e a possibilidade de morrer

pacificamente é vivenciada como exceção.

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Tendo como referência a brevidade da vida, podemos afirmar que os

adolescentes envolvidos na criminalidade balizam suas ações em torno dos ideais

da sociedade capitalista, que tem como ícones o individualismo, o narcisismo, o

hedonismo e o consumo. Todos esses ideais coadunam-se na constituição de

subjetividades referendadas por um ideal individualista, ancorado na idéia de eu.

Nessa forma de subjetivação, a idéia de que “cada um existe apenas para si mesmo,

independente de outros humanos e do mundo externo” (ELIAS, 2001, p. 65) se

fortalece.

Os processos subjetivos vinculados ao valor que se atribui à vida humana

também estão marcados pelos ideais capitalistas, baseados na idéia de que a

capacidade de consumir se equipara ao valor de uma vida. No mundo

contemporâneo, os sujeitos estão encantados pelas coisas, pelas mercadorias, e

desencantados pela vida. Nesse processo, vida e consumo tornam-se equivalentes.

Na busca desenfreada pelas coisas, o adolescente envolvido na criminalidade tem

dificuldades em estabelecer vínculos, o que reforça o ideal de onipotência, em que

“minha cabeça é meu guia”. Porém, ao se deparar com a possibilidade da morte, é

muito comum o adolescente concluir que sua vida não tem sentido e,

conseqüentemente, sua morte também terá essa característica. Cabe ressaltar mais

uma vez que os processos subjetivos – nesse caso, os relacionados à vida e à morte

– são imanentes às práticas sociais, que legitimam determinadas formas de ser, de

agir e de alguns estilos de vida como ideais – no caso dos adolescentes, a vida dos

“boys” e das “patis” –, cabendo aos demais, oriundos das favelas e periferias, a

pertença a uma segunda categoria e a um estilo de vida desprezível, característico

dos seres “abjetos”. As relações estabelecidas no mundo do crime são

caracterizadas pela falta de confiança e, por isso, os adolescentes são compelidos a

não se vincular às pessoas. A inexistência de vínculos afetivos significativos faz com

que o adolescente atribua esse não-sentido à própria vida, principalmente quando

pensa na morte. A máxima “os mortos só vivem na memória dos vivos” tem peso

significativo.

De acordo com Foucault (1992) esses sujeitos que têm suas existências

desprezadas são classificados como homens infames. As postulações do autor

podem ser reportadas às seguintes classificações: homens de má-índole, de má-

fama, seres miseráveis, desprezíveis, abjetos, indignos, odiosos. Foucault (1992)

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também menciona que essas existência estão destinadas a não deixar rastro, o que

só se torna possível devido ao seu encontro com o poder.

[...] é o encontro com o poder: sem este choque é indubitável que nenhuma palavra teria ficado para lembrar o seu fugidio trajeto. O poder que vigiou aquelas vidas, que as perseguiu, que, ainda que por um só instante, prestou atenção às suas queixas e ao seu leve burburinho e que as marcou com um golpe das suas garras, foi também o poder que suscitou as poucas palavras que delas nos restam. [...] Todas aquelas vidas, que estavam destinadas a passar ao lado de todo o discurso e a desaparecer sem nunca terem sido ditas, não puderam deixar traços – breves, incisivos, enigmáticos muitas vezes – senão em virtude do seu contato momentâneo com o poder. (FOUCAULT, 1992 p. 96-98).

Tendo como referência Foucault (1992), afirma-se que a vida do adolescente

envolvido na criminalidade pode ser caracterizada como infame. Diversos processos

subjetivos, políticos, econômicos, sociais e midiáticos compuseram uma

subjetividade que pode ser remetida à seguinte identidade: “menor infrator”,

existência portadora de uma inferioridade, destinada a não ser lembrada.

Esses aspectos da vida dos “menores infames”, bem como suas tentativas de

não cair no esquecimento a partir do fim de suas breves existências, puderam ser

observados durante a execução desta pesquisa. Em uma das visitas à Unidade, os

adolescentes estavam envolvidos na elaboração de uma pauta com diversos

assuntos a serem discutidos na próxima assembléia. Essas assembléias são

reuniões que acontecem mensalmente e contam com a participação de todos os

envolvidos no processo sócio-educativo: adolescentes e profissionais. É o momento

para a construção das normas que sustentarão as relações comunitárias e para o

desenvolvimento de ações protagonistas, que poderão implicar em um processo de

apropriação das vidas desses meninos por eles mesmos. Nas assembléias, é

necessário um exercício constante entre as demandas de um sujeito e as do

restante do grupo, entre o que a lei determina e o que é solicitado. Nesse dia aqui

citado, quando teve início a construção da pauta, a coordenadora da Unidade trouxe

um livro e pediu que a discussão fosse anotada. Ofereci-me para fazer a ata e os

adolescentes se impressionaram com a rapidez da minha escrita. Ao final, mencionei

que seria importante que todos os presentes assinassem o livro de ata, e suas

assinaturas seriam um compromisso em relação à discussão que aconteceria na

próxima assembléia. Um dos adolescentes disse: “deixa eu escrever meu nome aí

porque vocês podem receber a notícia que eu morri”. Eu argumentei: “mas você é

tão jovem ainda!”. Ele respondeu: “mas é essa vida”. Questiono mais uma vez: “que

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vida?”, e ele responde: “a vida do crime”95. Escrever seu nome talvez fosse a prova

de sua existência e uma tentativa de afirmar a vida, por mais breve e “abjeta” que

esta tenha sido.

A certeza do adolescente de que sua existência será breve relaciona-se aos

ensinamentos do “mundo do crime”, que tem nas idéias difundidas pelas quadrilhas

um forte aliado. Nas quadrilhas, impera a dinâmica mercadológica que caracteriza as

relações trabalhistas, e a força de trabalho, sob a égide do valor de troca, é o próprio

corpo, a vida do adolescente, colocados a disposição da “firma”. Esses adolescentes

“trabalhadores” são tratados como objetos que podem ser “descartados” a qualquer

momento, caso não cumpram as regras estabelecidas pela lei do tráfico.

A partir de Zaluar (2004), podemos afirmar que os processos de subjetivação

relacionados ao mundo do crime têm o tráfico de drogas como importante

engrenagem. As quadrilhas que agenciam adolescentes e jovens instituem a

criminalidade como meio de vida pelo ensino de técnicas, pela transmissão dos

valores, da história dos seus personagens e pela instituição das regras. Dessa

forma, a quadrilha opõe-se à família e com ela compete, bem como com outras

formas de organização vicinal: os times esportivos, as organizações de moradores,

as escolas. Por isso, para os moradores:

a quadrilha é uma agência de socialização de seus filhos que inspira temor, pois os encaminha para a violência e para a morte prematura. Na ótica dos próprios jovens, a quadrilha é uma “escola do crime”, um aprendizado do vício, uma engrenagem da qual não se consegue sair quando se quer. (ZALUAR, 2004, p. 199).

É ditado corrente que a “vida imita a arte”, mas no acompanhamento dos

adolescentes vemos a “arte imitar a vida”, através das brincadeiras e encenações

que traziam à tona características da “escola do crime”. Essas brincadeiras faziam

parte do cotidiano dos adolescentes na semiliberdade e aconteciam nas atividades

desenvolvidas. Uma delas – brincar de boca – foi bastante significativa: “olha o pó,

olha o pó! Maconha de dez, maconha de cinco e tem crack também!”96. Nessa

brincadeira, os adolescentes simularam uma cena em que um “X9” era executado

por ter “entregado aos alemão” um dos “parceiros” da “firma”. Outros aspectos

podem ser observados no relato que se segue:

95 Observação participante. Pesquisa de campo realizada em 2007. 96 Observação participante. Pesquisa de campo realizada em 2007.

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Após a realização improvisada de um teatro, fizemos uma discussão. Os adolescentes representaram situações de uma boca de fumo, além de se mostrarem familiarizados. Apontaram o tráfico como forma de sobrevivência e apesar da possibilidade de uma vida breve, falaram da dificuldade de buscarem outra maneira de viver devido ao “costume com o dinheiro”. (Relatório diário dos técnicos, 08/09/2003).

Com certeza, “a arte imita a vida”, e nesse processo a morte apossa-se da

vida e transforma-se em “destino coletivo”, de que, para muitos, não é possível

escapar.

4.1.2. O crime e as guerras: a brevidade da vida e o anúncio da morte

Estamos diante de um novo tipo de guerra, em que já pereceram, somente no Rio de Janeiro durante a década e 1980 mais homens jovens do que os americanos mortos na guerra do Vietnã. Acostumados com a defesa da violência dos dominados diante do poder injusto, ficamos de mentes atadas diante dos dados inegáveis [...] da violência do dominado contra o outro dominado mais próximo. [...] se é fácil denunciar a violência policial, que fazer com a violência de quadrilhas, [...] com a violência dos ataques pessoais ao semelhante que podem resultar em sua morte por causa de um par de tênis, ou de um olhar enviesado? (ZALUAR, 2004, p. 194).

Os conflitos que culminam na morte prematura de muitos jovens que têm o

crime como referência acontecem devido a questões pessoais – desavenças,

traições, entre outras – e estão relacionados ao não-cumprimento do que é

estabelecido pela “lei do crime”.

Pesquisadora: “Quais que são as regras no mundo do crime?” Adolescente: “Ah, não dá mole. É quando você rodar, não caguetá o outro. Não pegar namorada do outro. Tem também, deixa eu ver... você tem que pagar o dinheiro certo [da droga]”. Pesquisadora: “O que o crime não perdoa?”. Adolescente: “Não perdoa é quando alguém rouba alguma coisa da favela, quando alguém xisnova”. Pesquisadora: “São essas as regras”. Adolescente: “Aí paga com a vida. Em favela você paga com a vida” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)97.

Todas essas situações, marcadas por padrões de conduta que não condizem

com o que está estipulado pela “lei do crime”, fazem com que as “guerras” tenham

início, podendo até acontecer dentro do mesmo “bonde” ou “facção”.

Ah, de vez em quando acontece, [...] tipo de discutir, um discutir com o outro, ou tá drogado. Já aconteceu isso [...] . Porque os dois andava junto, entendeu, aí um foi brincar com o outro e o outro foi lá é “apelou”. Aí os dois começou discutir na hora; aí na hora que um foi sacar a arma, o outro já sacou a arma primeiro e aí [...] foi lá e atirou [...] É isso que gera “guerra”

97 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.

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também com pessoas junto. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 98.

As guerras travadas entre “facções” acontecem não só devido à disputa por

pontos de distribuição de drogas, prestígio e poder, mas também para manter a

coesão do próprio grupo, do “bonde”, como no caso das galeras.

Vamos supor, tá meu “bonde” aqui e o “bonde” dele lá. Entendeu? Tipo, eu tô de “rolé” no baile e sem querer eu esbarro no cara. O cara acha ruim e começa a brigar. Aí o meu “bonde” não vai achar bom. Aí vai querer entrar no meio também e o “bonde” do cara não vai achar bom e vai querer entrar no meio também. Aí começa o “bololô” e aí que começa a “guerra”. Aí que começa a “guerra”, de um querer matar o outro. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos) 99.

Segundo Zaluar (2004), as quadrilhas são organizações compostas por um

número relativamente pequeno de pessoas, geralmente jovens, com chefias

instituídas, que objetivam enriquecer rapidamente através das atividade ilegais que

realizam. Esses grupos possuem como características o fascínio pelas armas, as

demonstrações de poder que impõem terror aos moradores do local onde atuam,

exacerbando machismo, e a necessidade de controlar o território onde agem. Já as

galeras não possuem chefias instituídas, regras explicitadas e rituais iniciáticos,

tampouco promovem o enriquecimento de seus membros através de práticas ilícitas.

Os que enriquecem nas galeras, chegando a conseguir certa notoriedade social, são

os “DJs” e os “MCs”, que produzem estilos de dança funk ou fazem música para os

bailes. Quando incorrem na criminalidade, os jovens das galeras o fazem de maneira

transitória e intermitente. Apesar das diferenças, nas duas organizações os conflitos

podem acabar em agressões graves e assassinatos, pois são movidas pela “lógica

da guerra, provocada pelas pequenas feridas no orgulho” (ZALUAR, 2004, p. 198).

Na semiliberdade, foi possível constatar que os adolescentes ameaçados de

morte se vinculam principalmente às quadrilhas. Alguns contraíram guerras devido

aos conflitos individuais. Outros, por pertencerem às galeras, tiveram que “tomar

partido” perante um desentendimento ou uma provocação, ficando ameaçados.

Essa lógica da guerra parece se entrelaçar ao que Zaluar denominou

inicialmente de “ethos da virilidade” (ZALUAR, 1988; 1993) e, posteriormente, de

“ethos guerreiro” (ZALUAR, 1997; 1998), caracterizado como uma disposição para a

luta, para o conflito. 98 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 99 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.

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No dia-a-dia na semiliberdade, é possível observar nos pequenos gestos, nas

pequenas ações dos adolescentes, tentativas de auto-afirmação permeadas por

atitudes caracterizadas pelo “ethos guerreiro”, relacionado à produção social da

categoria “sujeito homem”, utilizada para justificar reações violentas a qualquer tipo

de contrariedade, mesmo que um simples “olhar atravessado” ou lançado à mulher

ou namorada. Segundo Zaluar (2004) essas relações revelam “a dureza e a

crueldade diante do sofrimento alheio” (ZALUAR, 2004, p.62). O depoimento abaixo

fortalece essas observações:

Quando eles estão juntos, conversando, trocando experiências e informações [...]. Aquilo que eu falei no início: eu tenho que ganhar um espaço aqui nesse grupo. Então como é que eu vou fazer? Também desacatando, ofendendo, brigando... sou poderoso. No mundo do crime a pessoa é respeitada pela quantidade de atos; ter muitos crimes faz com que o sujeito tenha um bom conceito perante os outros. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)100.

Tem hora que não adianta pedir desculpas. Xinga mais ainda. Acha que é a questão de manter a postura de valente, entendeu? “Eu não me dobro”. Que é outra coisa que eu acho que interfere muito neles é isso: “Não volto atrás, não volto atrás”, pra não ficar mal visto pelo grupo: “ah, você é um lero-lero, você é um comédia”. Pra ele é muito importante a visão que os seus pares têm sobre ele. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)101.

Entretanto, é a partir desse ethos, desse modo de funcionamento endurecido

da subjetividade – marcado pela ameaça, pela manipulação – que o ato violento, a

“guerra”, se efetiva. Paradoxalmente, também será a partir desse “modo de

funcionar” do adolescente que o trabalho sócio-educativo se desenvolverá, conforme

o depoimento de um educador:

Hoje ele virou pra mim e falou assim: “olha, eles falam que a semiliberdade não ajuda a gente não, mas eu já melhorei muito”. [...] ele chegou aqui ele era super agitado, ele queria ganhar tudo no grito. Hoje em dia ele consegue comunicar, ele consegue não ser agressivo sabe. Porque a gente não pode assustar com o grito sabe. A gente tem que mediar o grito. Mas assustar com ele não. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)102.

O modelo de masculinidade “desafiadora” ou negadora de qualquer poder ou

autoridade (ZALUAR, 2004) pode ser reconhecido na semiliberdade através de

pequenas ações dos adolescentes que visam burlar a segurança da casa, o

100 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 101 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 102 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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educador, o coordenador, o diretor. O uso de drogas na Unidade é um bom

exemplo. É comum o adolescente chegar da rua, onde teve a oportunidade de fazer

uso de drogas sem que ninguém o importunasse, e fumar um “baseado” (maconha)

bem diante do educador. Diante das intervenções dos profissionais, que visam uma

responsabilização em relação ao ato ilícito cometido, são constantes as retaliações

por parte dos adolescentes, exemplificadas na seguinte fala: “cadeia não é eterna,

qualquer dia eu pulo aqui e vou à forra” (Profissional da Unidade de Semiliberdade,

69 anos)103.

O desafio ao outro parece relacionar-se a uma “necessidade de onipotência”,

em que ações se vinculam a um “querer individual”. Isso é bastante perceptível em

relação às drogas: “eu paro quando eu quiser”. Podemos estender essa hipótese

relacionada à “onipotência” aos atos violentos cometidos pelos adolescentes. A

produção dessa sensação é fundamental para que ele desafie a morte, instaurando

uma relação de dominação em relação ao outro. O fato de ter se envolvido em uma

troca de tiros e sair vitorioso provoca no adolescente a sensação de ter burlado a

morte. Isso faz com que o adolescente se sinta poderoso, o que o leva a repetir o

ato. Nas guerras travadas no cotidiano, o adolescente vivencia muitas perdas –

alguns parceiros se vão, outros ficam com a saúde debilitada. Esses acontecimentos

fomentam vingança, constituindo-se em um fator que favorece uma compulsão em

relação ao ato de matar. Por outro lado, essa realidade sinaliza para o adolescente e

para seus familiares a possibilidade de uma vida breve, vivenciada como certeza:

Saulo falou que sabe que não tem muito tempo de vida devido às suas guerras no morro. (Relatório diário dos educadores, 28/09/2003).

Julio ficou acordado até por volta das 2 horas da manhã. Ele fala que quer morrer, matar e roubar, fala que não tem futuro e que não tem oportunidades. (Relatório diário dos educadores, 06/10/2003).

Rodrigo diz que não vai voltar para a casa da mãe, pois não quer morrer cedo. (Relatório diário dos educadores, 21/11/2003).

O adolescente Adalberto está desanimado, sem motivação e dizendo que sua vida não tem jeito e que irá morrer lá pelos 20 anos de idade. (Relatório diário dos educadores, 25/11/2004)104.

Antes do almoço a mãe do Leandro veio buscar seus documentos, ela chorava muito e disse que ele pode ser morto a qualquer momento. (Relatório diário dos educadores, 13/09/2004).

103 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 104 Este adolescente morreu assassinado no dia 31/12/2004.

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Hoje fizemos de Formação uma tentativa de construção de um projeto de vida com cada um [...]. Ficou claro que eles não possuem perspectiva e que tem como referência a brevidade da vida. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 25/08/2003).

A certeza da brevidade da vida faz com que o adolescente se movimente na

busca por mais tempo para viver, e por isso é necessário “viver tudo de uma vez”.

Devido às guerras, no entanto, isso só irá se concretizar caso ele consiga eliminar

seu “inimigo”.

Antônio hoje está com falas assim: estou com mau pressentimento que vou morrer com 17 anos, mas antes irei matar uns três. (Relatório diário dos educadores, 23/06/2004).

Cristino no final da semana foi surpreendido por Joãozinho, seu rival, que ele achava que tinha morrido. Ele fica muito nervoso dizendo que a solução para esses casos é matar ou morrer, e ele está disposto a isso. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 03/08/2004).

Em conversa com Leandro ele disse de sua decisão de evasão e do acerto de contas com os assassinos de seu tio. Disse que no final de semana esteve no bairro Ribeiro de Abreu e tentou matar um dos assassinos do tio após ter ficado de tocaia a noite toda. Fala que desferiu dois tiros: um acertou na barriga e o outro na perna da vítima. Disse ter tomado a decisão: “acabar com a guerra matando as pessoas. É só assim que termina”. (Relatório dos técnicos e coordenação, 06/09/2004).

Nessas postulações sobre as “guerras” dos adolescentes, os processos de

subjetivação podem ser melhor compreendidos pelas considerações de Zaluar

(2004) sobre os processos subjetivos e sociais deflagrados a partir do cometimento

de um assassinato:

Mais que uma proibição, o assassinato de outro ser humano é um tabu de conotações sagradas. Uma vez quebrado esse tabu, o homem, responsável por mais de 90% dos homicídios ocorridos no Brasil, se sente todo poderoso igual aos deuses que tem o poder sobre a vida e a morte. É preciso enxergar essa dimensão destrutiva do poder, do simbólico e da paixão pelo ato de matar: o triunfo sobre o outro, o orgulho por sua destruição, o prazer de ser o senhor da vida e da morte. (ZALUAR, 2004, p.339)

Além de instituírem uma forma específica de se lidar com o tempo, as

“guerras” também instituem uma regulação em relação à circulação dos

adolescentes no espaço urbano. Nessa regulação, o adolescente fica privado de

circular por determinadas áreas da cidade devido às ameaças. Um novo paradoxo

instala-se: privar-se dessa circulação pode significar permanecer vivo por mais

tempo; por outro lado, pequenos movimentos-sinais de morte são produzidos, pois

em muitos casos é preciso abrir mão do convívio com a família, deixar de conhecer

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lugares e pessoas, abandonar vivências e experiências que poderiam ser

significativas.

Saulo não poderá realizar visitas em casa, pois corre risco de vida em sua região. A mãe está tentando pagar as suas dívidas com os traficantes, mas não pagou tudo ainda. [...] Saulo disse que não vai ao passeio proposto pela Unidade porque é muito perto de sua “quebrada” e ele teme ter vontade de fugir e voltar pra casa. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 23/09/2003).

Conversei com Elias sobre a possibilidade de cursos e ele optou por Confecção de Bijuterias. [...] Deverá iniciar em 13/10. [...] Elias não pode circular no centro de BH e disse que poderá pegar o ônibus 2004 perto da Unidade Ouro Preto e ir direto, sem problemas. (Relatório diário dos técnicos e coordenação, 23/09/2003).

Com as limitações colocadas pelo “mundo do crime”, é comum que os

adolescentes passem a brevíssima vida no mesmo lugar. Muitos nascem e morrem

sem ir ao cinema, sem ir ao estádio de futebol, sem passear pela cidade. Suas

existências limitam-se às fronteiras da favela.

4.1.3. As ameaças, o medo e a hiper-realidade da mo rte

Durante o período de trabalho na Unidade de Semiliberdade, foi possível

perceber que, por mais que os adolescentes se mostrassem corajosos para

enfrentar a morte cotidianamente, um grande temor marcava seus comportamentos,

suas atitudes, seus modos de ser. Apesar do medo não ser aparente em seus

discursos, é ele que, durante a “correria”, serve de orientação: é preciso estar alerta,

precaver-se, pois vive-se constantemente a possibilidade da morte.

Pesquisadora: “Você acha que os adolescentes que estão envolvidos com o crime têm medo de morrer?” Adolescente: “[Fica em silêncio. Demora a responder]. Medo tem, né! Só que tem que ficar lá pra arrumar um dinheiro”. Pesquisadora: “E quando sai pra fazer uma correria, você acha que pensa nisso?”. Adolescente: “Ah, não pensa não! Pensa só no dinheiro”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)105.

Essa precaução faz com que o medo se transforme em sentimento encoberto

pela “correria”, pela “atividade”, tornando-se essencial para o adolescente enfrentar

o risco cotidiano da morte. Entretanto, é necessário negá-lo em prol da afirmação de

virilidade e da própria permanência no crime:

105 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007.

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Em relação à morte, é uma coisa que assusta muito a todos. Eles têm a postura de que: eu não tenho medo de morrer, mas eles lutam o tempo inteiro contra a morte, sabe. É uma luta diária contra a morte. Se toca uma campainha aqui, menino sai correndo. Ele tá correndo por causa de quê? Não tem medo da morte! Então é uma coisa muito assim: eu acho que a morte tá muito próxima deles e muito distante no “psicológico” porque ele acha que não vai morrer. Porque ele acha que sempre vai estar fugindo da morte. E mexe muito com todos. Mexe com todos. Todo têm medo né, apesar de falar que não. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)106.

Reportando-nos a Elias (2001), podemos afirmar que não é a idéia da morte

que provoca medo e horror, mas a imagem antecipada da mesma. As guerras

contraídas pelos adolescentes fazem com que essa imagem seja algo constante nas

vivências cotidianas: a todo momento, sua morte é anunciada. Esse anúncio tem

dimensão trágica, com a certeza de uma morte violenta. É comum os adolescentes

sonharem que estão sendo atacados, cravejados por balas. Em contrapartida,

reafirmam o seguinte desejo: “eu queria morrer dormindo”.

Podemos afirmar que os questionamentos e as reflexões produzidas pela

medida de semiliberdade despotencializam a “correria” e operam no sentido de

intensificar esse medo, que adquire, em alguns casos e em determinadas ocasiões,

um superdimensionamento, abrindo espaço para fantasias de morte: gestos, ações e

pessoas podem significar ameaça. Essas postulações podem ser observadas no

relato que se segue.

Em outubro de 2007, a coordenadora da Unidade de Semiliberdade Ouro

Preto acompanhou os adolescentes em um passeio à Lagoa da Pampulha. Em

determinado momento, dois rapazes que passavam de moto resolveram parar

próximo ao grupo. João ficou muito nervoso e exclamou: “vou sair quebrando”. Ao

ouvir João, a profissional viu-se ameaçada e argumentou com o adolescente que era

necessário saber para onde iriam as motos, para correrem na direção contrária. Os

rapazes foram embora e o grupo chegou à conclusão de que tudo não havia

passado de uma “viagem”. Podemos afirmar que essa “viagem” é possível devido à

inserção do adolescente na criminalidade e o estabelecimento da “correria” –

“atividade” constante: deve-se estar atento, suspeitar de tudo, não se pode confiar

em ninguém e é fundamental agir – um dos aspectos de sua subjetividade. No caso

específico do adolescente João, cabe ressaltar que ele se encontrava ameaçado

não apenas pelo tráfico de drogas, mas também por um sargento da polícia.

106 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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Segundo a coordenadora, “a morte está do lado dele”107. Depois do ocorrido, a

profissional que acompanhava os adolescentes tentou amenizar o clima nervoso e

agitado. Um dos adolescentes afirmou: “eu ia jogar uma manga nos caras”. Ao ouvir

tal afirmação, João disse: “como você vai parar um 38 com uma manga?”. A

sensação de ameaça e o medo da morte é tão real que, mesmo não tendo visto

arma alguma, João afirma se tratar de um revólver calibre 38. A coordenadora diz

para João: “se você corresse para o lado errado, eu pararia você com uma goiaba”.

Para João, essa não seria a saída, pois com ele no chão, “era só terminar o

serviço”108. Nesse relato, observamos formas diferenciadas de se lidar com

situações de ameaça por parte dos adolescentes, que agem, e por parte da

profissional, que racionaliza. Nas diversas situações em que a vida de um

adolescente esteve ameaçada, as ações destes eram balizadas por

comportamentos que buscavam sanar a ameaça: fugir, esconder-se ou livrar-se do

“inimigo”. Já os profissionais buscavam mediar a situação pela palavra – o que, na

vida do crime, não faz o mínimo sentido e seria procurar a morte.

Sabemos que o medo da morte é constitutivo do humano, e algumas

situações – o nascimento de um filho, a morte de uma pessoa amada – fazem com

que o experimentemos de forma intensificada. Entretanto, podemos afirmar que, no

caso dos adolescentes, o medo constante da morte é engrenagem fundamental na

constituição de suas subjetividades, e todas as situações de ameaça que vivenciam

potencializam a hiper-realidade da morte.

4.1.4. Para continuar vivo é necessário vivenciar “ pequenas mortes”

Durante a realização do trabalho de campo, foi possível vivenciar, de forma

angustiante, a concretude de uma ameaça de morte. Em um dos dias, ao chegar a

Unidade, encontrei o adolescente Diego na varanda. Começamos a conversar e

fomos interrompidos pela terapeuta ocupacional, que o chamou. Ao retornar, Diego

manteve-se cabisbaixo e calado. Diante da pergunta sobre o que havia acontecido,

ele responde: “estou ameaçado de morte”. Havia acabado de obter essa informação

pela profissional. Quanto aos motivos da ameaça, ele menciona um problema que

107 Pesquisa de campo realizada em 2007. 108 Pesquisa de campo realizada em 2007.

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teve com o adolescente Alessandro, no CEIP: ao sumir um cobertor, Diego foi

apontado como culpado, motivo das ameaças que haviam chegado por telefone.

Indago se não seria o caso de uma transferência para a outra Unidade de

Semiliberdade e ele informa que não: além de as Unidades estarem próximas,

Alessandro já esteve em cumprimento de medida de semiliberdade, conhecendo

bem as duas Unidades e suas rotinas. Diego diz que os profissionais responsáveis

pelo atendimento informaram sua situação ao Ministério Público e ao Juizado da

Infância e Juventude, solicitando sua inserção no Programa de Proteção à Criança e

ao Adolescente Ameaçado de Morte (PPCAM).

O PPCAM de Minas Gerais, criado em 2003 pela Secretaria Especial dos

Direitos Humanos, foi pioneiro no Brasil. Sua implantação foi decorrente do grande

número de assassinatos de adolescentes em cumprimento de medida sócio-

educativa naquele período, e seu objetivo é garantir o direito à vida, à integridade

física e moral de crianças e adolescentes envolvidos em situações de ameaça. Após

uma série de avaliações realizadas pelo Programa, tendo com parceiros o Ministério

Público, o Juizado da Infância e o Conselho Tutelar, a criança e o adolescente

ameaçados são retirados de suas comunidades e encaminhados para casas de

parentes e abrigos. Dependendo da gravidade da ameaça são acionadas entidades

de outros municípios para que esses sujeitos sejam recebidos nesses locais109.

Ao buscar maiores esclarecimentos com o diretor das Unidades, fui informada

que o real motivo da ameaça contra Diego foi o fato de o adolescente ter deixado

escapar para os demais no CEIP que ele havia tido relações sexuais com sua irmã.

Por isso, no início do cumprimento de sua medida na semiliberdade, teve que “ficar

no seguro”, ou seja, trancado em um cômodo separado, período em que foi

realizado um trabalho com os adolescentes para que Diego pudesse permanecer na

Unidade “são e salvo”. Esse trabalho tornou possível uma convivência mínima entre

Diego e os demais, mas ele se mantém excluído do grupo. Sua história se espalhou

pela rede de atendimento, bem como sua identidade: “Jack”. Alessandro, então,

quer matá-lo. Como afirmado no capítulo 2, existe uma categorização da vida

humana estabelecida pela criminalidade e, nela, a vida de um estuprador não tem

valor.

109 Informação verbal. Pesquisa de campo realizada nas Unidades de Semiliberdade, em 2007.

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Quando retornei à Unidade na semana seguinte para a realização da

pesquisa, não encontrei Diego. Ele havia sido encaminhado para o Programa de

Proteção. Provavelmente, estaria vivendo em outro bairro ou município, com outro

nome. Ele estaria bem? Será que o veria novamente? Teria ao menos notícias

suas? Esses questionamentos fizeram com que eu experimentasse sensação

vinculada à morte: Diego teria que abrir mão de sua vida, sua identidade, do vínculo

com pessoas e lugares. Alguns cortes teriam que ser feitos para que ele

permanecesse vivo.

As entrevistas realizadas durante o trabalho de campo evidenciaram que,

para driblar a situação de ameaça com sua família e com os próprios profissionais

das Unidades de Semiliberdade, o adolescente tem que realizar cortes, vivenciar

perdas, o que, na maioria das vezes, é bastante difícil. Isso pode ser percebido nas

observações realizadas por uma profissional da Unidade no que se refere ao

encaminhamento de um adolescente ao PPCAM.

O Programa de Proteção pagava aluguel, dava uma ajuda para as despesas e a mãe querendo mais. E a mão reclamando, responsabilizando esse filho por todas as mudanças que a família sofreu. E essa cobrança da mãe trazendo uma angústia pra esse adolescente, um sentimento de culpa e de certa forma no entendimento dele, sugerindo e induzindo ele a voltar pra criminalidade. Porque todas as mudanças que em função dele a família tinha sofrido tava trazendo sofrimento porque são rompimentos também. Essa família sai da comunidade que ela tava, larga a casa que ela tava construindo, uma série de mudanças. Então esse conflito até dentro da própria família traz uma outra sensação de morte pra esse adolescente. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)110 .

Ou outros que foram incluídos que a gente nunca mais teve notícia, [...] da coisa do sigilo, da proteção mesmo. Então é muito estranho, a gente, quando a gente vê um caso que o adolescente fala da situação de morte, de risco, quando a família avalia isso e a família se mobiliza pra mudar, vender as coisas, sabe, a gente é, consegue entender melhor, consegue lidar um pouco melhor, porque parece que há toda uma mobilização, né, do menino, da família, do Juizado, da Promotoria, da equipe aqui pra esse salvamento. Mas quando a gente percebe que um dos lados dos envolvidos não tem caminhado muito nesse sentido, não tem considerado muito isso aí, isso é mais angustiante. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)111.

Considerando as dificuldades encontradas por adolescentes e suas famílias

nesse processo de quebra de vínculos almejando resguardar vidas, os comentários

de um adolescente em debate realizado após a exibição do filme “Orfeu”, de Cacá

Diegues, que aborda as lutas de uma comunidade contra a violência cotidiana, 110 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 111 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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fortalecem essa perspectiva: “como que a namorada do Orfeu pede para ele sair da

favela se a vida dele toda está lá!” (Relatório diário dos técnicos, 01/09/2004). Em

muitas situações, esse pedido é endereçado aos adolescentes ameaçados. Alguns

tentam efetivá-lo e vêem a mudança de bairro como possibilidade de vida:

Adolescente: “Eu tô querendo ficar de boa, mas eu tenho as guerras. Eu saí lá do bairro onde é que eu morava”. Pesquisadora: “Então uma tentativa de sair da guerra” é...”. Adolescente: “Mudando do bairro”. Pesquisadora: “E foi fácil mudar? Você nasceu nesse lugar?”. Adolescente: “Nasci. É difícil, né?”. Pesquisadora: “Tem quanto tempo que você saiu de lá?”. Adolescente: “Quanto tempo? Tem um ano”. Pesquisadora: “A família mudou junto?”. Adolescente: “Mudou”. Pesquisadora: “Tem alguma coisa que foi difícil deixar pra trás?”. Adolescente: “Ah, os colegas, o bairro que eu já estava acostumado desde pequeno”. Pesquisadora: “E nesse bairro que você tá morando?”. Adolescente: “Nesse bairro que eu tô morando agora é bom”. (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 18 anos)112 .

Para outros adolescentes, muitas vezes a própria medida, as privações que

ela realiza, o cerceamento da liberdade devido às situações de ameaça, objetivando

proteção, instauram outro tipo de morte, fazendo com que o descumprimento da

medida seja inevitável:

Já até aconteceu da gente barrar e não deixar sair acreditando que deste modo estaria protegendo ou resguardando esse menino. E o menino ficou uma, ficou duas, dois finais de semana até que falou: “eu não agüento ficar aqui dentro, vocês estão me matando desse jeito. Melhor eu ir lá e resolver isso do que ficar confinado aqui dentro” [...]. Quando ele fala: “tô morrendo aqui dentro, vocês estão me matando aqui dentro”. É dizendo disso mesmo. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)113 .

Enfim, podemos afirmar que, para o adolescente romper com o circuito crime-

ameaça-guerra-morte via medida de semiliberdade, modos de subjetivação

contrários à “correria” devem ser instaurados. Uma das engrenagens na constituição

desses modos de subjetivação é a reflexão advinda dos questionamentos

proporcionados pelo cumprimento da medida. Entretanto, para muitos adolescentes,

o simples fato de permanecer em semiliberdade é algo insuportável.

4.1.5. Crime: Deus, o Diabo, a vida e a morte

Elias (2001) menciona que, diante da certeza da finitude da vida humana, é

típico das sociedades desenvolverem práticas mágicas para lidar com a angústia

112 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 21 nov. 2007. 113 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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que a idéia da morte provoca. Segundo ele, em sociedades menos desenvolvidas114,

caracterizadas por uma expectativa de vida mais curta, essas práticas andam de

mãos dadas com maior insegurança e são amplamente difundidas.

No acompanhamento dos adolescentes em semiliberdade, percebemos que

essas práticas mágicas caracterizam suas percepções em relação à vida e à morte

e, muitas vezes, são utilizadas para dar sentido a perdas e desresponsabilizar os

sujeitos pela forma como conduziram suas existências. Lembro-me da forma como o

adolescente Saulo explicava a morte prematura de sua mãe por cirrose hepática

ocasionada pelo uso abusivo de álcool. Para ele, sua mãe morreu cedo devido a

uma “macumba” que sua tia fez, amarrando a boca de um sapo e fazendo, com isso,

sua mãe beber até morrer. Talvez esse pensamento mágico proporcionasse ao

adolescente menos sofrimento, pois a morte de sua mãe não estaria relacionada a

seu comportamento em relação à bebida, mas a uma pessoa alheia aos sofrimentos

que ambos vivenciaram.

Essas práticas mágicas são atribuídas às figuras de Deus e do Diabo ou

Capeta, e utilizadas para justificar o envolvimento com o “mundo do crime”. Pelos

depoimentos coletados durante a pesquisa, percebe-se que grande parte dos

adolescentes atribui sua vinculação com a criminalidade e as conseqüentes

“guerras” ao Capeta.

As convicções do adolescente João reveladas na entrevista grupal

corroboram essas afirmações. Durante a realização do trabalho de campo, João

afirmou: “a guerra é do Capeta”. “Ele entra pra matar, roubar e destruir”. O

adolescente foi contestado: “mas aí põe a culpa no Capeta?”. João justificou: “Não, o

capeta facilita”. “Põe a droga, a arma na sua mão”. “O único que tem solução pra

guerra é Deus”115. Essa crença é parte constitutiva da subjetividade de João e de

muitos adolescentes envolvidos no crime, e possibilita buscar na vivência religiosa

um corte em relação à vida do crime.

As percepções dos profissionais da semiliberdade em relação a essa

realidade reafirmam as proposições apresentadas acima:

114 O presente trabalho não comunga com essa classificação feita por Elias em relação a maior ou menor desenvolvimento de uma sociedade. Acreditamos que o que diferencia uma sociedade da outra diz respeito a seus processos subjetivos, políticos, econômicos, sociais estabelecidos em um momento histórico específico, não havendo diferença qualitativa, mas realidades distintas de acordo com suas especificidades. 115 Dados da entrevista grupal. Pesquisa de campo realizada em 14/11/2007.

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[...] geralmente o menino que tem um envolvimento muito bravo mesmo com o tráfico de drogas, com mortes, essas coisas, geralmente o menino foi no Centro Espírita, eles têm, o pacto de fechar o corpo usando guias, sabe. Costuma aparecer muito menino assim que fala: “eu tenho meu corpo fechado porque eu estive com tal pai de santo e fiz uma guia” [...]. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)116 .

Assim, as crenças de João podem ser entendidas como recursos usados por

grande parte dos adolescentes para se colocarem do lugar de vítima. São tentativas

de não se implicar nos atos cometidos, de não sentir culpa e não se responsabilizar

pelas mortes decorrentes desses atos, afirmando que a brevidade de suas próprias

vidas está atrelada ao “destino de quem escolhe a vida do crime”.

De acordo com uma das profissionais da Unidade, é comum os adolescentes

tornarem-se “fiéis” de igrejas evangélicas, por acreditarem que nessa prática

religiosa encontrarão solução para as “guerras” contraídas. O relato da ida de um

adolescente a um culto religioso evidencia esse fato:

[...] ele esteve na igreja domingo e quando o pastor orou, ele caiu, passou mal, e aí quando os outros adolescentes começam a debochar dele, ele fala que o demônio tá querendo mais vidas. Falou que ele vai mandar mais pra ele, mais almas para ele. Então quer dizer, ele associa a essa vivência que ele teve na igreja, de ele desmaiar, de passar mal com a oração, a uma vinculação com o demônio, e é como se ele fosse um instrumento. [...] Então fica muito simples né, você dizer que é o demônio que se apropria do seu corpo e quer mais vidas e você vai lá e tira vidas. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)117 .

Por outro lado, essas igrejas reforçam tal concepção, ao atestarem a relação

entre a criminalidade e o mal. Podemos observar isso no depoimento do pastor

Marcos sobre o seu trabalho de evangelização:

O culto geralmente é feito nas comunidades. E geralmente nas comunidades têm esse tipo de pessoas, que são delinqüentes né, que fazem parte do mundo das drogas, [...] eles também vão ao culto e ficam no meio das pessoas e através do nosso trabalho muitos deles largam as armas, se reintegram à sociedade, acertam as suas vidas jurídicas; que eu já entreguei vários à Justiça e vários deles acertaram suas vidas, como agora, por exemplo eu vou estar entregando alguns que querem se entregar à Justiça e eles vão realmente conscientizando que eles estão tomados por uma força maligna, que através do ensinamento bíblico eles querem ter qualidade de vida, querem se reintegrar à sociedade. E tem tido um êxito muito grande, não somente no estado do Rio de Janeiro, como em outros estados brasileiros e até no exterior, né. Eu tenho feito esse trabalho com

116 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 117 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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muito carinho e só Jesus Cristo tem o poder de mudar a vida do homem, ou seja, a palavra, a palavra de Deus. (Pastor Marcos, 2007)118.

A grande maioria dos cultos evangélicos, além de terem como característica

um ritual de purificação, incluem em seu discurso um ideal de virilidade que é

utilizado objetivando a conversão:

Eu quero nesse momento, você que está aí assistindo esse culto, você entenda que nós estamos aqui num objetivo só: libertar você do cigarro, da maconha, da cocaína, das armas de fogo, do palavrão, da prostituição, do adultério. Porque só através da palavra de Deus a sua vida pode mudar. Como está escrito lá em João 8, 32: “Conhecereis a verdade e a verdade vós libertará”. Nada mais do que o homem pra roubar, matar e destruir, mas Jesus veio pra dar vida e vida com abundância. Você que está aí tanto tempo no crime, faça a prova da palavra de Deus. Você que tantas vezes tá drogado, tá embriagado, faça a prova da palavra de Deus. Eu sei que você está sentido algo diferente porque aqui nesse culto não está rolando cachaça, nem maconha, nem cocaína. Aqui não tem bagunça, aqui não têm cosias eróticas. Nós estamos falando da realidade do criador do céu e da terra; do sol, da lua, das estrelas. Eu quero que você que está aí com uma arma na mão; se você é macho mesmo, a bíblia diz que os verdadeiros adoradores, adoram em unção, espírito e verdade. O homem, o macho, não é o que vai pra cima de uma mulher, nem que dá tiro, nem que luta caratê. O verdadeiro macho é o que adora a Deus. Essa é a palavra que eu deixo pra você que está aí ouvindo: abra seu coração e aceita Jesus como seu criador. (Pastor Marcos, 2008)119.

Além dos adolescentes lançarem mão dessas construções mágicas

baseadas no discurso religioso para legitimarem seu envolvimento com a

criminalidade, muitos educadores comungam com essa visão, em que a “influência

maligna” seria a responsável pelo envolvimento dos adolescentes com o crime:

[...] muitos deles têm Deus. Mas eu não sei... se é até uma questão assim de que o menino ta, de que o menino foi levado a ta vamos dizer assim com Deus e perto do capeta, sabe. É uma coisa muito assim. É muito assim: eles têm Deus, mas ao mesmo tempo que eles têm Deus, eles têm a má influência muito próxima também. [...] O mal mesmo, porque [...] todo momento de oração é respeitado, sabe. Mas, muitas atitudes faz a gente pensar se realmente o cara tem Deus mesmo assim com ele, sabe. [...] É uma contradição. [...] Porque muitas vezes você ta ali fazendo oração com os meninos e de repente o menino vira o Capeta. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)120 .

É comum encontrar, nos relatórios dos profissionais, apelos dirigidos ao ser

divino, que seria o único capaz de desligar o adolescente da criminalidade: “[...]

118 Dados colhidos em reportagem realizada com o Pastor Marcos. Jornal O Globo Online em 31 out. 2008. 119 Dados colhidos em reportagem realizada com o Pastor Marcos. Jornal O Globo Online em 31 out. 2008. 120 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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realmente a nossa única esperança está em Deus, só ele poderá mudar a cabeça

desses adolescentes” (Relatório diário dos educadores, 12/01/2004).

Uma das profissionais entrevistadas demonstrou ter uma visão crítica em

relação a essa postura. Para ela, é necessário questionar crenças, valores,

entidades, mas isso muitas vezes não é fácil para o educador, até porque o

imaginário que associa o crime ao “diabólico” está presente no contexto familiar de

muitos adolescentes:

Então assim, tentar chamá-lo pra essa responsabilidade, pra esse domínio, pra essa escolha, pra essa condição, é um processo educativo. [...] mas, em alguns momentos das visitas que a gente faz, a gente vê que muitas das mães, muitos pastores, muitas famílias inteiras associam determinadas atitudes do adolescente a uma “macumba”, a um “trabalho” que tenha sido feito e por isso ele entrou nessa vida, ou a uma praga que foi rogada por uma sogra [...] Não é o filho. É uma entidade, é o demônio, um espírito maligno que está fazendo isso. [...] e o adolescente meio que pega isso e de certa forma ele não tem que se haver. Não é ele! Então assim vacilar essas afirmações [...] é a longo prazo porque aí você tem que ter uma “veinha” de acesso ao afeto mesmo desse menino, você tem que ter uma posição meio que de ascensão sobre ele no sentido assim de um saber, ou de uma transferência, de alguma coisa, que permita você colocar isso em cheque pra ele para que ele pelo menos questione. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)121 .

Podemos afirmar que essas práticas mágicas apoiadas em crenças são em

grande parte instituídas por um discurso religioso que tem como referência a

doutrina judaico-cristã.

Nesta dissertação, a concepção de discurso fundamenta-se nos trabalhos de

Foucault (1984; 1985; 1986; 1990; 1996). Para ele, os discursos não são apenas um

conjunto de signos, significantes que se referem a conteúdos, portando significados

quase sempre ocultos, dissimulados, distorcidos. Não podem ser concebidos como

conteúdos e representações escondidos nos e pelos textos, constituindo verdades

não imediatamente visíveis. Para Foucault (1986), os discursos são práticas sociais,

dispositivos importantes na constituição das subjetividades. A conceituação de

discurso como prática social apresentada em a “Arqueologia do Saber” (FOUCAULT,

1986) desconstrói a idéia de que estruturas lingüísticas permanentes são

responsáveis pela constituição dos sujeitos. Essa conceituação torna-se mais

evidente nas obras “Vigiar e punir” (FOUCAULT, 1995) e “Ordem do Discurso”

(FOUCAULT, 1996), em que o autor expõe a idéia de que o discurso sempre se

produz em função das relações de poder. Posteriormente, nos três volumes de seu 121 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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trabalho sobre a “História da Sexualidade” (FOUCAULT, 1990; 1984; 1985) ele

explicita que há uma dupla e mútua relação entre as práticas discursivas, ainda que

permaneça a idéia de que o discurso é constitutivo da realidade e produz, com o

poder, inúmeros saberes que articulam a produção de subjetividade.

[...] o discurso não é uma estreita superfície de contato, ou de confronto, entre uma realidade e uma língua, o intrincamento entre um léxico e uma experiência; [...] analisando os próprios discursos, vemos se desfazerem os laços aparentemente tão fortes entre as palavras e as coisas, e destacar-se um conjunto de regras, próprias da prática discursiva. (FOUCAULT, 1986, p.56).

Devido a essas proposições, Foucault resolve

(...) não mais tratar os discursos como conjunto de signos (elementos significantes que remetem a conteúdos ou a representações), mas como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 1986, p.56).

A partir da definição do discurso como prática social, Foucault diz que a

subjetividade é constituída por práticas discursivas e não-discursivas, e que essas

práticas estão imersas em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente.

Dessa forma, os enunciados e as visibilidades, os textos e as instituições, falar e ver

constituem práticas sociais permanentemente articuladas às relações de poder, que

as supõem e as atualizam.

Podemos afirmar então que, para Foucault, o conceito de prática discursiva

não se confunde com a simples expressão de idéias, pensamentos ou formulação

de frases. Exercer prática discursiva significa falar segundo determinadas regras, e

expor as relações que se dão dentro de um discurso. Quando as Igrejas que têm

como referência a doutrina judaico-cristã se apropriam de um discurso religioso

relacionando o bem e a vida à figura divina e o mal e a morte à figura do Demônio,

fala e faz falar um discurso segundo algumas de suas regras, fixando identidades e

maneiras de ser, de perceber e de se colocar no mundo, que reafirmam, por

exemplo os enunciados “a vida à Deus pertence” e “o Demônio tá querendo mais

almas”122. Essas práticas discursivas potencializam ações vinculadas ao “mundo do

crime”, territorializando uma certa “subjetividade marginal”.

122 Fala de um adolescente. Dados de pesquisa de campo realizada em 2007.

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Segundo Maingueneau (1993), as formações discursivas devem ser

compreendidas no interior de um campo discursivo, estando relacionadas a

determinados campos de saber. Quando nos dirigimos aos adolescentes em conflito

com a lei e falamos em um discurso religioso conectado às práticas discursivas e

não-discursivas instituídas pelas igrejas judaico-cristãs e por práticas pedagógicas,

psicológicas, jurídicas, entre outras, estamos afirmando que cada uma delas

compreende um conjunto de enunciados, apoiados em determinado sistema de

formação discursiva: da pedagogia, da psicologia, do direito e das outras formações

que compõem a subjetividade desses sujeitos. No caso específico do discurso

religioso e das práticas desenvolvidas na semiliberdade, seus enunciados têm força

de “conjunto” e se situam como novos campos de saber, tangenciando mais de uma

formação. Desse modo, podemos afirmar que a formação discursiva funciona como

“matriz de sentido”, e os falantes – aqui, os adolescentes, os profissionais da

semiliberdade e os demais sujeitos que fazem parte da vida dos adolescentes – nela

se reconheceriam, porque as significações ali lhes parecem óbvias, “naturais”.

Como mostra esta pesquisa, para os adolescentes envolvidos com o crime os

enunciados “a vida a Deus pertence” e “a morte só acontece quando é chegada à

hora” são vivenciados como verdades absolutas. Isso pôde ser observado no

discurso do adolescente Pablo, que diz que um sujeito tentou matá-lo, o que só não

aconteceu porque o revólver mascou cinco vezes, pois “não era chegada a hora”.

Esses enunciados orientam também a vida de pessoas não envolvidas no crime que

crêem em Deus: teme-se a morte da mesma fora, mas especialmente em situações

de doença, acidentes ou nascimento de um filho. Nesses momentos, os mecanismos

de fé e esperança são utilizados para potencializar a vida e negar a morte. Na

realização deste trabalho, a confirmação disso evidenciou-se na afirmação “não

posso morrer, tenho um filho para criar” proferida diversas vezes por profissionais da

semiliberdade quando se deparavam com situações de ameaça que envolviam a

vida dos adolescentes e presentificavam suas próprias mortes. Para eles, no

entanto, essa relação é transitória, enquanto é vivida cotidianamente pelo

adolescente ameaçado de morte, como uma hiper-realidade.

Vislumbrando esclarecer a imanência entre o discurso religioso e a produção

de subjetividade articulados às práticas discursivas e não-discursivas que associam

a vida à dimensão divina e a morte à figura do Demônio, foi realizada uma pequena

revisão histórica dessa temática.

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Historicamente, a figura do Demônio é constituinte das crenças da

Antiguidade, sendo identificado, no politeísmo, a um gênio inspirador, bom ou mal,

que dirige o caráter e o destino de cada indivíduo, alma ou espírito. Platão, ao

escrever a respeito de Sócrates, menciona que este se comunicava com um espírito

invisível chamado Daimon ou Daymon. Nessa perspectiva, pode-se atribuir ao

demônio a capacidade de guardar conhecimentos por toda uma existência,

identificado como “ser repleto de conhecimento” (WIKIPEDIA, 2008). Do mesmo

modo, nas culturas orientais a figura do Demônio não possui necessariamente

natureza maligna e é remetida a todas as criaturas tidas como místicas ou espirituais

– fadas, gnomos e anjos. Encontramos ainda antigos relatos sobre essa entidade

nas antigas culturas da Mesopotâmia, Pérsia, Egito e Israel. Entretanto, nesses

contextos o demônio é visto como espírito maligno, a quem eram atribuídas todas as

desgraças: doenças, destruição das plantações, inundações, incêndios, pragas,

ódios e guerras.

Atualmente, podemos afirmar que o termo “Demônio” abarca espíritos do

folclore, da mitologia, das religiões judaico-cristãs, com representações diversas.

Porém, a mais conhecida foi atribuída à Igreja Católica e caracteriza o Demônio

como espírito mal, ser intermediário entre o homem e Deus, de cor vermelha, feições

humanas, chifres, rabo pontiagudo e um tridente. De acordo com essas religiões, o

demônio é um anjo que, tendo se rebelado contra Deus, foi precipitado no Inferno e

procura a perdição da humanidade. Nesse contexto o ato homicida seria atribuído ao

Diabo. A relação morte violenta/Diabo presente no ato homicida corrobora as

afirmações de Zaluar (2004). Segundo ela, esse ato expressa uma tentativa de se

igualar a Deus. Esses mecanismos puderam ser observados durante o

desenvolvimento de toda a pesquisa, tornando-se uma problemática intrigante.

Considerando essa postulação, podemos afirmar que as práticas e os

discursos produzidos pelas religiões judaico-cristãs são ferramentas importantes na

produção dessas subjetividades identificadas como personificação do mal –

“menores infratores”, “seres abjetos”, “menores infames”, os “estranhos”123.

Nesse contexto, o uso e o tráfico de drogas e as “guerras” são importantes

para a associação mal-crime-Demônio. Esses componentes puderam ser

observados durante atividade criada pelos adolescentes, que acontece 123 Essas denominações parafraseiam obras como Bulcão (2002), Butler (2003), Foucault (1992) e Bauman (1998).

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semanalmente na Unidade. Essa atividade foi nomeada “Desembolar a Fala”,

expressão usada pelos meninos quando querem conversar para esclarecer ou

propor alguma coisa. O objetivo dessa atividade é trabalhar as relações entre os

adolescentes e entre estes e os profissionais. Ultimamente, esse momento também

é usado para fazer programações e planejamentos no que se refere ao dia-a-dia, e

para responsabilizar adolescentes em relação a transgressões cometidas.

Nessa atividade, foi trabalhado com os adolescentes o filme “À Procura da

Felicidade” (The Pursuit Of Happyness, EUA, 2006). A personagem principal, Ghris

Gardner (Will Smith), após tentativas de manter a família unida, é abandonada pela

mulher, que não suportava mais as privações financeiras que passavam. Ele passa

então a viver sozinho com seu filho Christopher, de cinco anos. Ao buscar melhores

condições de vida, Chris começa a estagiar em uma importante corretora de ações,

sem salário algum, enfrentando diversas dificuldades sem desistir, encontrando

forças na confiança e no afeto que ele e o filho nutrem um pelo outro. Superados os

obstáculos, transforma-se em um importante corretor de ações.

Tendo como referência esse filme e a temática “Convivência” – assunto

trabalhado com os adolescentes no mês de outubro – foi proposta discussão

introduzida com os seguintes questionamentos: “o que é a felicidade? Alguém é feliz

completamente ou existem somente momentos felizes?”. Os adolescentes afirmaram

que ninguém é completamente feliz, e que, em suas vidas, são raros os momentos

de alegria, principalmente devido a suas inserções na criminalidade. Falou-se da

importância de buscar tais momentos, ressaltando a diferença entre “esperar” e

“esperançar”, este último termo remetido à idéia de movimento. Essa idéia passou a

ser trabalhada a partir da metáfora “sair da caverna”: sair do que é seu, sair do “seu

mundo” e lançar-se à procura do outro. No debate, os adolescentes associaram a

imagem da caverna ao crime e às dificuldades encontradas por quem decide romper

com a criminalidade. Em determinado momento, um dos responsáveis pela atividade

me perguntou sobre minha “caverna” e, diante desse questionamento, o adolescente

João exclamou: “você não tem caverna não!”. Aleguei que tinha, sim, “caverna”, e

que minha vida não era sempre tranquila, apesar de as “cavernas” serem diferentes

para cada um. João disse que eu não estava entendendo: “minha caverna é o crime

igual a dos meninos; ela é vermelha é preta, cor do sangue e da morte”. No debate

que se seguiu, os adolescentes começaram a identificar o crime com o Capeta, e a

medida de semiliberdade foi remetida à idéia de estar “em cima do muro”. Diante da

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perguntas: “você saiu da caverna?” “Como a semiliberdade tem ajudado nesse

processo de saída da caverna?”, a seguinte resposta foi dada por Pablo: “estou em

cima do muro. Melhorei com relação às drogas, mas tô segurando o revólver numa

mão e a Bíblia na outra”124.

Na semana seguinte, essa discussão foi retomada, e seu ponto de partida foi

o texto “O Mito da Caverna” (CHAUÍ, 2003), escrito pelo filósofo Platão. Trata-se de

uma parábola escrita cerca de 200 anos antes de Cristo, e mostra como podemos

nos libertar da condição de escuridão que nos aprisiona através da luz da verdade.

Compõe-se de um diálogo metafórico, onde as falas na primeira pessoa são de

Sócrates, e seus interlocutores, Glauco e Adimato, são os irmãos mais novos de

Platão. No diálogo, é enfatizado o processo de conhecimento, sendo apontada a

visão de mundo do ignorante, que vive de senso comum, e a do filósofo, em sua

eterna busca da verdade.

Após a leitura do texto, novamente os adolescentes foram questionados

sobre suas “cavernas”: “Como está a sua caverna?” “Você saiu da caverna?”. Além

de mencionarem o crime, relacionaram a “caverna” ao tráfico de drogas e às

“guerras” que ele produz, causando a morte de inúmeras pessoas. Segundo um dos

adolescentes, “essa guerra não tem fim, é só tristeza e morte”. Essa fala retrata a

condição dos adolescentes no que diz respeito à certeza de uma morte prematura e,

ao mesmo tempo, configura-se como possibilidade para o trabalho sócio-educativo,

visando um processo inverso: a produção e a manutenção ética da vida. Segundo os

adolescentes que participaram da atividade, apesar de não haver saída para a

“guerra”, é possível que uma pessoa que esteja envolvida somente no crime dê um

rumo diferente à vida. Vincular-se a uma religião ou torna-se pai são apontados

como acontecimentos que podem gerar uma escolha de vida que não passe pela

criminalidade.

Eu conheço um cara que era muito envolvido mesmo. Sua treta era roubar carro. Mas quando teve um filho falou que não queria mais essa vida. Disse que ia sair do crime e saiu mesmo. Hoje vive “de boa” (Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 19 anos)125 .

Por outro lado, eles desaprovam os sujeitos que se mantêm ao mesmo tempo

vinculados a uma religião – através da participação em rituais religiosos – e ao

124 Pesquisa de campo realizada em 17/10/2007. 125 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 14 nov. 2007.

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crime: “você não pode ir lá se esconder atrás da bíblia se você tá no crime”

(Adolescente em cumprimento de medida de semiliberdade, 16 anos). Princípios

fundamentais do discurso religioso são negligenciados no crime, pois a vida do outro

não tem valor. O adolescente acaba atribuindo esse desvalor à sua própria vida, a

partir do momento em que ela vira moeda de troca, transformando-se em operador

do mercado transnacional do crime.

Em suma, a relação entre o discurso religioso e a constituição da

subjetividade dos adolescentes faz com que a figura de Deus seja remetida à vida,

mesmo que seja à “vida do crime”, e o Diabo à morte, o que pode ser observado no

depoimento de Pedro: “uma vez tentaram me matar. [...] Eu não morri porque Deus

não quis. O diabo tá sempre rondando, ele sempre quer sangue”126.

Esse discurso está atrelado aos modos de subjetivação atuais relacionados

às maneiras de vivenciarmos os processos relacionados à vida e à morte. Trata-se

de uma construção maniqueísta legítima e poderosa, baseada nas dualidades

Deus/Diabo, Bem/Mal, Vida/Morte, nas quais os processos de subjetivação instituem

determinadas identidades. Com relação à criminalidade e, especificamente, ao ato

de matar, os adolescentes colocam-se como marionetes, ora na mão de Deus, ora

na mão do diabo. Acreditar nisso parece ser a saída para permanecerem no mundo

do crime e enfrentarem a morte cotidianamente, já que sua ocorrência não estaria

articulada às ações criminais, mas à vontade divina.

4.2. As “guerras”, as mortes, o trabalho sócio-educ ativo: os educadores sociais e os processos de subjetivação

[...] o Roberto [adolescente] era uma pessoa que, eu falo no meu caso pessoal, nós tínhamos um relacionamento excelente, entendeu? Ele era muito carinhoso e afetuoso comigo. Então a morte dele me atingiu demais, ainda mais que ele morreu por causa de R$ 63,00, entendeu, por causa de R$ 63,00. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)127 .

[...] a morte é muito estranha, [...] produz raiva... nos coloca diante de nossa impotência e humanidade, limitação, desconhecimento... nossa! Acho que não sei te dizer... O que sei dizer é que repenso, me pego diante de perspectivas diferentes para conduzir o meu trabalho... claro que não só as mortes me levam a isto, mas elas também... como que se isso pudesse

126 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 127 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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contornar, talvez possa, fazendo com que cada um deles [adolescentes] vivencie sensações, reflexões, sentimentos que apazigue! Na sexta soube do Manoel Rodrigues da Silva, um negro que tinha estrabismo, também foi morto! [...] Pessoalmente fico triste, penso na Maria [mãe], nossa que dor! Que desilusão, elas insistem tanto... Penso neles, nas atividades alegres, sonhando... e na gente participando de tudo isso... confirmando com uma certeza que aqueles momentos podem ser mais constantes! Que certeza? E penso também, que na maioria das vezes, é como se não tivessem escolha. Às vezes, como te falei, eles falam que o sonho que não se realiza é o fim das “guerras”. Essas “guerras” são muito loucas. E o pior é que eles buscam, criam e se sentem parte através delas. [...] O que percebo de comum é que para a aqueles que vivenciam uma situação de guerra, [...] a sensação é de alarme soando... uma tensão, revolta... às vezes desespero, paranóia quase. A cada toque de campanhia é uma taquicardia! Deus que livre, nada conforta! Eles não acreditam em nada. Os que não vivenciam, mas sabem de histórias, o termo que eles usam é “cabuloso”. Penso que dizendo o quanto é confuso e amedrontador. Mas é meio que natural para eles, como se fizesse parte, tolerável, sabe? O que me incomoda neles nestas circunstâncias é que apesar da solidariedade e da discrição que lidam com a situação de um colega, é a passividade. Desesperança como se de fato não fosse acabar. Nestas horas penso o quanto é valioso cada instante, o quanto tudo é de fato tão intenso e tão prioritário. Confesso que diante desses acontecimentos, num determinado momento me dá um aperto com relação a algumas liberações. Aí recupero o fôlego e me lembro que por mais força que tenhamos, o futuro só a Deus pertence. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)128 .

O trabalho realizado na semiliberdade faz emergir muitos dilemas,

questionamentos, angústias, vivenciados de maneira intensa pelos profissionais que

o executam. Esses dilemas estão relacionados às recorrentes perdas devido aos

constantes assassinatos de adolescentes, e ao enfrentamento cotidiano de outras

situações relacionadas à realidade desse público: ameaças, explorações,

sofrimentos, preconceitos e “escolhas” que conduzem à morte. Em vários

momentos, o trabalho sócio-educativo é conduzido na direção contrária ao

enfrentamento dessas questões.

Como ilustração, podemos citar uma atividade realizada na Unidade de

Semiliberdade. A proposta inicial era discutir com os adolescentes suas dificuldades

em relação ao cumprimento da medida. Foi solicitado também que eles pensassem

ações que pudessem contribuir na solução de seus problemas. Os adolescentes

apontaram inicialmente suas relações com o narcotráfico, argumentando que, se a

Unidade oferecesse mais atividades externas, não usariam droga dentro da

entidade, deixando subentendido que esse uso aconteceria nos momentos em que

circulassem sozinhos pela cidade. As discussões giraram em torno do problema das

drogas, das vinculações com o tráfico de as conseqüentes “guerras” contraídas a

128 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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partir dessas relações. Os depoimentos dos adolescentes João e Pablo são

esclarecedores no que se referem às “guerras” que travam com “os alemão”, os

“polícia”. Pablo mencionou que João faz a ronda no Morro das Pedras, afirmando:

“ele usa touca ninja. Fica lá de cima vendo se não vai lombrá. Eu sou bandido

mesmo e não vou mudar. Com os alemão não tem jeito não”129.

Ao ouvirem esses relatos, os educadores argumentaram que a proposta

inicial da atividade havia se perdido, insistindo para que a discussão anterior fosse

retomada. Podemos perceber implícitas nessa solicitação as dificuldades e

fragilidades que os profissionais apresentam quando são colocados diante das

“guerras” e das conseqüentes ameaças de morte. Torna-se necessário barrar o que

não se pode ouvir: os adolescentes estão envolvidos em uma “guerra” e, segundo

eles, “o caminho é sem volta” (Adolescente em cumprimento de medida de

semiliberdade, 18 anos).

Apesar de compartilharmos com os profissionais que desenvolviam essa

atividade os mesmo temores e angústias, eu e a psicóloga do grupo procuramos

fazer o caminho inverso: permitir a fala dos adolescentes, visando um

questionamento sobre a maneira como se posicionam perante os problemas que

encontram em suas comunidades. Apesar de nossas angústias, acreditávamos que,

ao pensarem sobre suas próprias vidas, pensariam também na possibilidade de

morrerem prematuramente a serviço do crime. Quanto à droga, ao invés de

tamponar essa realidade, afirmávamos que sabíamos que ela era um sério problema

em suas vidas, mas dizíamos da importância de pensar uma maneira de resolver

esses conflitos de forma pacífica, vislumbrando a manutenção de suas existências.

Acredito que nossas posturas se diferenciaram da dos demais profissionais, devido a

meu olhar de pesquisadora, que requer certo afastamento em relação à temática

abordada, e à orientação psicanalítica da profissional da Unidade, que elege a

palavra e a escuta como possibilidades de intervenção.

Dando seqüência, pedimos a eles que pensassem em um jeito de se

proteger das “guerras”, ressaltando que poderiam contar conosco. Diante desse

oferecimento, o adolescente Clóvis desabafou: “Vocês querem me ajudar? Então me

dá um revólver para eu me proteger”. Novamente reforçamos a importância de

buscarem alternativas pacíficas, afirmando que, nessas situações, uma mudança de

129 Pesquisa de campo realizada em 17/10/2007.

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endereço poderia ser solução. O adolescente Artur respondeu: “não tem jeito não.

Nesse mundo até as pedras se trombam. O fim da guerra é você dentro de um

caixão”. Insistimos nessa argumentação, perguntando a Clóvis se ele conhecia

alguém que teria saído do crime. Ele disse: “do crime sim, mas da guerra não”.

Insistimos mais uma vez, e o adolescente reafirmou: “mora por um tempo, mas

depois tem que voltar. É lá a sua vida, é lá que você mora, que você nasceu”130.

Alguns educadores ainda solicitavam que retornássemos à proposta inicial da

atividade, “esquecendo” a interferência entre os problemas relacionados à

vinculação com a criminalidade e o cumprimento da medida. Podemos concluir que

esse “esquecimento” é decorrente da ansiedade e do medo no que refere às

ameaças que os adolescentes vivenciam. É muito comum a adoção, por parte do

profissional, de condutas típicas da “atividade” que caracteriza a subjetividade do

adolescente ameaçado de morte, como percorrer diferentes trajetos ao ir e voltar do

trabalho, identificar situações e pessoas “suspeitas”, permanecer em estados

constantes de ansiedade, se deprimir e adoecer devido aos conflitos relacionados à

iminência da morte que caracteriza o trabalho. Ao ser questionado sobre o estado de

ameaça característico de sua atividade profissional, um educador afirma:

A gente acostuma, Fernanda. Faz parte do pacote. [...] Mas quando eu fui procurar a Inspetoria, eu fui procurar um emprego e após o término do treinamento eu saí de lá consciente de que além de um emprego, eu tinha uma missão, entendeu? E mergulhei nela de cabeça. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)131 .

Essa concepção missionária do trabalho sócio-educativo deixa implícito seu

caráter heróico e a possibilidade de crescimento pessoal. Tal visão é “necessária”

para o enfrentamento cotidiano da morte, relacionado não só a ameaças sofridas

pelos adolescentes, mas também a ações violentas cometidas por eles, o que pode

ser verificado nos relatos de três profissionais entrevistados:

[...] muitas vezes a gente tem ouvido coisas bárbaras que no nosso dia-a-dia faz a gente se sentir muito mal. Mas a gente tem que dar a possibilidade da escuta pra poder desenvolver o trabalho. [...] no caso assim de quem matou, como matou, quando assaltou, que refém que foi feito, da agressividade que foi imposta num assalto, entendeu? Então Fernanda, [...] nós educadores a gente tem que estar com a mente aberta, com o coração aberto, porque é pesado. Tem horas que você escuta coisas assim que a gente não aceita. Não é aceitável. E você vai saber que você vai estar com

130 Pesquisa de campo realizada em 03 out. 2007. 131 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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o adolescente ali porque você tem que trabalhar com ele. Você ta entendendo? E que se você virar a cara pra ele, você ta virando a cara pro trabalho, entendeu? [...] E pra gente, educador, fazer essa separação é muito difícil. Tem horas que a gente sai daqui de dentro, 12 horas aqui dentro, tem hora que é um horror, tem hora que é uma maravilha. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)132 .

[...] Eu tenho feito o meu trabalho de modo satisfatório, porque senão eu aqui não estaria. E isso pra mim tem sido uma coisa muita importante porque me fez crescer como pessoa, como ser humano, porque eu passei a enxergar um lado da vida que eu não conhecia. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 69 anos)133 .

[...] É um trabalho assim que deixa tudo à flor da pele, é um repensar permanente das coisas. Eu acho que é uma oportunidade assim muito interessante de vida. De vida. [...] em termos assim de lidar com o diferente, de lidar com situações de tensão, com a tolerância, com as possibilidades, com as limitações, sabe. Tudo isso é muito constante, é muito intenso. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)134 .

Em relação às ameaças, existe a compreensão de que elas fazem parte da

dinâmica do trabalho e, por isso, é importante discutir com os adolescentes sobre

esse assunto. Entretanto, essa condição traz para os profissionais stress e

ansiedade. Grande parte dos profissionais, mesmo quando está de folga, busca ter

notícias do retorno dos adolescentes para as Unidades quando eles estão

realizando, por exemplo, visita familiar, devido às ameaças:

Eu acho que o recurso que a gente tem é de contar com o próprio adolescente. É ele que vai saber quem e aonde que ele vai ter esse risco, então a gente meio que confia nele. [...] O nosso trabalho não tem essa capacidade e nem essa função de avaliar aonde que tem a “guerra” [...]. Então se o adolescente, igual esse Artur, é fato que matou o parceiro dele e que ele foi tirado da escola e de um curso em função de uma região que ele não pode circular. Fica uma dúvida: só ali que ele não pode? Essas pessoas elas na saem daquele lugar, elas vão ficar permanentemente ali ou elas vão cruzar com ele num outro local? [...]. [...] Às vezes tem uma rivalidade, mas não é uma rivalidade prestes a matar. Só que é algo tão delicado, que a gente não tem como mensurar isso e determinar vai, não vai; faz, não faz. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 32 anos)135 .

Podemos entender que o stress, a ansiedade, a angústia e o medo

provenientes dessas situações de ameaça são aspectos constitutivos do trabalho

sócio-educativo, trazendo desterritorializações e reterritorializações no que se refere

à subjetividade dos profissionais. A forma como um educador vivenciou o

132 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 133 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 134 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 135 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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assassinato de um adolescente em 2004 é esclarecedora nesse sentido: após o

acontecido, ele pediu demissão. Longe do trabalho, consegue avaliar sua atuação, o

que lhe permite retornar após um período de afastamento. Em relação a isso, ele

teceu os seguintes comentários:

Eu acho que eu me entreguei muito num certo momento a ficar junto como os adolescentes, a entrar na vida deles. Eu acho que eu entrei demais em certas horas. Eu acho que eu queria mais do que eles que eles mudassem. [...] Eu não tinha a experiência que eu tenho hoje de saber e classificar assim: o que é dele é dele; [...] e é ele vai ter que conseguir fazer isso. Eu achava que a gente como educador, [...] Eu achava que a nossa ajuda, ia dar um rumo. [...] E quando nessa primeira saída que eu tive, eu me deparei com isso: eu querer mais do que o adolescente. Eu queria porque queria e na verdade ele não queria. Então depende dele. [...] E é por isso que eu sofri muito. Porque quando esse menino que morreu, ele teve aqui, ele fala pra mim, eu não queria que ele continuasse no caminho dele e eu ainda tento mudar ele da rota dele. Quero que ele vá pra minha. E ele acaba sendo assassinado e eu coloquei na minha cabeça que a culpa era minha, que eu não soube orientar, entendeu? Por eu estar tão próximo, achar que eu estava tão próximo, eu poderia ter contribuído de alguma forma. E aí foi quando eu pedi pra sair, que eu não estava dando conta, entendeu? (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)136 .

Nesse período de afastamento, as vivências proporcionadas pelo trabalho

instauraram um novo modo de se posicionar diante da morte:

[...] eu não vou mesmo em velório de mais ninguém. Inclusive isso é uma coisa que está até no meu dia-a-dia mesmo, que as pessoas têm morrido que eu conheço e eu não quero ir, sabe. Ficou aquela coisa meio assim: eu não quero ir, eu não vou. Porque eu quero ter [...] outra imagem. Quero ter a imagem do vivo, sabe. Eu acho que isso ta muito na gente educador. Você coloca isso na cabeça e você, sabe, você quer sempre vida, alegria, você quer esquecer o lado da tristeza. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 36 anos)137 .

Em outro assassinato que vitimou um adolescente de 17 anos em 2005,

podemos perceber características dos processos subjetivos deflagrados na relação

estabelecida entre os profissionais e o trabalho sócio-educativo no que se refere à

morte. A morte violenta dos adolescentes também é vivenciada pelos educadores

como um processo natural, um “destino”.

[...] eu tava trabalhando, [...], estava de plantão, os meninos estavam pra escola e de repente todos eles vêm batendo no portão, aquela algazarra toda e aí eu fui atender e eles falaram que o menino tinha sido [...] baleado. E eu: “baleado, né”, e aí, como é que ele ta”? “Tá lá” [adolescente] “A polícia tá lá”? [educador] “Ta sendo atendido”? [educador] “Ta” [adolescente]. “Então vamos ficar tranqüilo” [educador]. E aí o telefone tocou. Eu atendi.

136 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007. 137 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 23 out. 2007.

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Era a diretora da escola perguntando se eu já sabia o que tinha acontecido. “Não”. “O que aconteceu’? “Só estou sabendo mais ou menos”. Aí ela falou: “ta morto, o Márcio”. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos)138. .

Olha, isso não me afeta muito não, sabe. Nesse dia quando a diretora ligou e ela perguntou se a gente sabia e eu falei que já sabia ela..., eu perguntei como é que ele tava, ela falou: “ele ta morto”. Aí eu não sei, assim eu com relação a essas coisas eu sou muito tranqüilo. Eu não me abalo muito não, sabe. Eu consigo lidar. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos)139 .

É. Não tem como você esquecer. [...] Eu acho que isso passa um pouco pela questão de você vivenciar um pouco a realidade dos meninos e saber que isso pode acontecer a qualquer memento, sabe. Então isso não é um susto não. Você sabe disso. (Profissional da Unidade de Semiliberdade, 33 anos)140 .

A vivência de um assassinato ou a evasão de um adolescente deflagra

questionamentos em relação às práticas institucionais que caracterizam o trabalho

sócio educativo. Após esses acontecimentos, é comum a equipe se reunir com o

propósito de repensar suas ações, vislumbrando uma melhor organização do

trabalho. Esse rearranjo das atividades desenvolvidas tem como objetivo fazer com

que o adolescente permaneça na medida e consiga se desvincular da criminalidade.

Entretanto, essas avaliações são geralmente permeadas por discussões que trazem

à tona as relações de poder, as relações de gênero, as disputas coorporativas

envolvendo os profissionais que, nesses momentos, ostentam suas identidades:

educadores e técnicos.

Em suma, após essas considerações podemos afirmar que as ameaças, as

evasões e os conseqüentes assassinatos que marcam a trajetória de grande parte

dos adolescentes admitidos nas Unidades de Semiliberdade fazem emergir nos

profissionais questionamentos vinculados ao próprio trabalho sócio-educativo e a

suas percepções em relação à vida e à morte. Esses questionamentos podem se

transformar em “analisadores”, instaurando processos de desterritorialização e

reterritorialização, operando na construção de novos territórios subjetivos e novas

organizações no que se refere à dinâmica do trabalho sócio-educativo.

138 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 139 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007. 140 Dados de entrevista. Pesquisa de campo realizada em 30 out. 2007.

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5. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho propôs-se a analisar os processos de subjetivação que

constituem os adolescentes e jovens do sexo masculino ameaçados de morte devido

ao envolvimento com a criminalidade. As motivações para tal empreitada estão

relacionadas à minha trajetória profissional, vinculada ao acompanhamento desses

sujeitos na medida sócio-educativa de Semiliberdade. Nesse acompanhamento,

passei a conviver com pessoas que, por suas relações com a criminalidade, são

identificadas pela sociedade como “menores infratores”. Ao conviver e me vincular

com esses sujeitos, foi possível descobrir, dia a dia, outras “identidades” que lhes

são negadas: adolescentes, jovens que gostam de namorar e impressionar as

meninas, apaixonados por futebol. A construção de identidades que rotulam esses

adolescentes como “menores infratores” está articulada aos processos de

subjetivação atuais, que e tem como características a fixidez, o binarismo baseado,

sobretudo, nas dicotomias: bem/mal, favela/asfalto, rico/pobre, e na idealização de

um eu constante, imutável. Esses processos aprisionam esses sujeitos nessas

identidades fazendo com que os adolescentes e jovens em questão pensem,

andem, se vistam, falem, enfim, existam de modo bem específico: o marginal.

Juntamente com essa “descoberta”, deparei-me com dilemas, questionamentos e

vivências perpassadas por sentimentos de alegria, por poder sonhar com cada um

deles uma vida melhor, mas também de tristeza, desesperança acompanhada da

certeza dolorosa de que, para muitos, o caminho é mesmo sem volta, restando-lhes

morrer violentamente. Porém, pequenos movimentos dos adolescentes e jovens no

sentido de reafirmarem a vida como valor que deve ser respeitado me levaram a

persistir, a insistir e a refletir sobre os diversos aspectos da subjetividade

relacionados à vida e à morte que marcam a trajetória desses sujeitos. Nesse

movimento foi gestada a presente dissertação.

Deparar-me com a realidade desses adolescentes e jovens em semiliberdade,

percebendo-a de forma histórica, e acreditar que o trabalho sócio-educativo é uma

ferramenta importante na desconstrução dos modos de subjetivação relacionados à

“correria” instituída pela vida do crime foi a crença que me orientou. Pude perceber a

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inter-relação entre a pesquisa, a ética e a liberdade, sem perder de vista a imanência

entre saber-poder teorizada por Foucault (1998). A execução da pesquisa e a

escolha da metodologia que a orientou se amparou nas palavras desse autor:

Cada vez que eu tentei fazer um trabalho teórico, foi a partir de elementos de minha própria experiência: sempre em relação com processos que eu vi desenrolar em torno de mim. É porque pensei reconhecer nas coisas que vi, nas instituições as quais estava ligado, nas minhas relações com outras fissuras, abalos surdos, disfunções, que eu empreendia um trabalho, alguns fragmentos de autobiografia. (FOUCAULT, 1994, s/p).

Considerando as afirmações foucaultianas e a perspectiva histórica que

fundamentou este trabalho, buscou-se um entendimento sobre os processos que

instituem a morte violenta como destino para muitos sujeitos e os que naturalizaram

a adolescência como um período conturbado, sujeito à crise, produzindo uma

associação entre pobreza, delinquência, negritude e favela. Para tanto, foi

necessário demonstrar que questões políticas, econômicas, jurídicas, institucionais,

midiáticas e culturais se entrelaçam no processo de constituição da subjetividade

dos adolescentes inseridos na criminalidade, o que geralmente é negligenciado

pelas teorias “psi” e por maquinações da subjetividade apoiadas na idéia de

identidade. Essas considerações foram tecidas ao longo dos capítulo 2 e 3 desta

dissertação.

As evidências apresentadas no decorrer da pesquisa também estão apoiadas

em dados estatísticos, que revelam que adolescentes e jovens do sexo masculino

oriundos das periferias das grandes cidades são os mais atingidos pela violência.

Porém, grande parte desses estudos objetiva tecer considerações generalizadas

sobre o fenômeno da violência envolvendo adolescentes e jovens, a partir de

referenciais que não abordam a temática da produção de subjetividade. Por isso,

cabe ressaltar que esta pesquisa poderá contribuir com trabalhos futuros que elejam

os processos de subjetivação desses meninos como problema de estudo.

Ao empreender estas considerações finais, posso conjecturar que um mérito

da presente pesquisa talvez seja demonstrar que o espectro do adolescente e jovem

criminoso, sem ambigüidades, síntese do mal absoluto, “menor infrator”,

“monstruoso”, “abjeto”, “infame” está atrelado a modos de subjetivação

contemporâneos que desumanizam e diabolizam esses sujeitos. A coleta de dados

realizada pelas entrevistas e pela observação participante, em que foi proporcionado

aos adolescentes falar sobre o que lhes aflige – o medo da morte – que não pode

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ser expressado e assumido, por constituir-se como condição necessária para a suas

permanências no “mundo do crime” possibilitou um maior esclarecimento sobre

estas questões. A análise desses dados pode gerar generalizações, reflexões e

discussões, funcionando como instrumento importante na desnaturalização das

certezas construídas em relação às identidades desses sujeitos.

Os depoimentos dos profissionais entrevistados e a pesquisa nos arquivos da

Unidade demonstraram que a trama institucional e as práticas profissionais são

mecanismos essenciais na produção da subjetividade dos adolescentes,

fortalecendo ou não a efetivação do “destino” de quem “escolhe” a “vida do crime”: a

morte violenta.

Nessas considerações finais, cabe ainda destacar outra constatação: devido à

realidade sócio-econômica dos adolescentes em conflito com a lei e da insuficiência

das políticas públicas brasileiras que garantam os direitos básicos da população,

esses sujeitos só têm acesso a direitos básicos após cometerem delitos. Esse fato

pode ser um fator que impulsiona adolescentes a reincidirem nas infrações,

solidificando suas vinculações com a criminalidade. Posso conjecturar que uma

mudança em relação à política destinada a essa população se faz necessária, visto

que a maioria dos governos prioriza em seus mandatos aquelas destinadas à

segurança, contrariamente à efetivação de direitos básicos de adolescentes e

jovens.

Quanto ao envolvimento com a criminalidade e a vivência da morte violenta

como destino, pude atestar que o crime instaura um modo de funcionamento da

subjetividade apoiado na “correria”, na “atividade” e em ideais vinculados à

“modernidade líquida” descrita por Bauman (2001), dentro do modelo da

masculinidade desafiadora descrito por Zaluar (2004). Tendo a “correria” como

referência, o adolescente repete o ato criminoso de forma compulsiva, guiado

sobretudo pela “necessidade” de consumir do momento atual. Por outro lado, a

medida de semiliberdade pode ser mecanismo para operar desterritorializações e

reterritorializações no que se refere à trajetória infracional do adolescente.

Entretanto, ao gerar reflexão a medida intensifica o medo da morte, até então

dissimulado pela “correria”.

Ao problematizar as relações de adolescentes e jovens com a criminalidade, a

temática das “guerras” mereceu destaque, pois nelas se dá o anúncio da morte, que

adquire feição hiper-real. Instaura-se a banalidade da vida, na medida em que as

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relações sociais que caracterizam o cotidiano desses sujeitos são perpassadas por

uma sociabilidade que tem na violência sua forma de expressão.

Ao tecer considerações sobre as linhas que compõem a subjetividade desses

adolescentes, evidenciaram-se as associações de crime, drogas e “guerras” à

dimensão diabólica. Essas associações tornaram-se problema de pesquisa e

possível objeto de estudos futuros. Vincular o crime ao demônio é um dispositivo

utilizado que objetiva uma não-implicação e, consequentemente, uma não-

responsabilização pelos atos cometidos. Para analisar essa articulação, as

teorizações foucaultianas sobre o discurso foram importantes instrumentos,

apoiando-se nas práticas discursivas implementadas sobretudo pelas religiões

judaico-cristãs.

Ao problematizar o modo de funcionamento da subjetividade dos

adolescentes ameaçados de morte, tornou-se preponderante desenvolver análises

sobre a subjetividade dos trabalhadores da semiliberdade. Nessa empreitada, foi

possível perceber que, no trabalho sócio-educativo, as perdas instauradas pelos

assassinatos dos adolescentes presentificam a morte para os profissionais, indo

contra as maquinações da subjetividade contemporânea, que negam o anúncio da

morte através das relações instauradas pelo processo civilizador e pelos

mecanismos de encobrimento da morte descritos por Elias (1990;1993; 2001). Além

disso, esse trabalho instaura novos modos de lidar com a vida e a morte. Em seu

fazer cotidiano, os profissionais vivenciam alternadamente sentimentos de alegria e

de desesperança em relação ao futuro dos adolescentes atendidos pelo programa

de semiliberdade. O trabalho é permeado pelo medo e pela ansiedade decorrentes

da presença constante da morte, que os coloca em “atividade”. Por isso, estas

problematizações sobre a sujetividade dos profissionais que acompanham

adolescentes em conflito com a lei também são campo de análise a ser explorado

futuramente por pesquisadores que se interessam por essa temática.

Por fim, cabe destacar que a composição desta dissertação deve ser

entendida como um compromisso ético, pois seu intento é produzir reflexões que

poderão ser utilizadas como dispositivo para a desconecção de linhas que compõem

a subjetividade de adolescentes e jovens inseridos na criminalidade, que se afirmam

como sujeitos pelo enfrentamento cotidiano da morte, além do modo ser da

população que diaboliza esses sujeitos, acreditando que, por sua “insignificância”,

merecem a morte. Em suma, apoiando-me nas palavras de Rose (2001), quero

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enfatizar que, apesar de não podermos negar as maquinações atuais da

subjetividade, podemos “ao menos reforçar a questionabilidade das formas de ser

que têm sido inventadas para nós e começar a inventar a nós mesmos de forma

diferente” (ROSE, 2001, p.198).

A vida acontece...

Atualmente, o adolescente Gabriel – que permaneceu em cumprimento de

medida durante um ano e dois meses – e o adolescente Clóvis encontram-se

evadidos da Unidade de Semiliberdade gerenciada pelos salesianos. A evasão de

Gabriel aconteceu em decorrência do encaminhamento de um “parceiro” do jovem

assassinado pelo adolescente para a Unidade onde ele se encontrava. Já Clóvis

apresentou-se ao Juizado da Infância e Juventude e foi encaminhado para a

Unidade de Semiliberdade do Instituto Pauline, uma vez que a evasão da Unidade

Ouro Preto foi motivada por um desentendimento com outro adolescente que

também cumpria medida naquela Unidade. Na Unidade para a qual fora

encaminhado, permaneceu poucos dias, evadindo em seguida. Segundo

informações obtidas por contato telefônico com um dos profissionais entrevistados,

Clóvis já foi apreendido após evadir e envolveu-se na tentativa de homicídio de um

adolescente que estava cumprindo medida na Unidade de Semiliberdade Ouro

Preto. Por isso, foi incluído no Programa de Proteção. De acordo com a profissional

que forneceu essas informações, a equipe da semiliberdade vivenciou de forma

apreensiva o episódio: “nossa foi um susto! A gente não pensava que aconteceria...

nem sei!”.

Os outros adolescentes que cumpriam semiliberdade à época da pesquisa

foram liberados. Diego mora sozinho no bairro Nova Pampulha, com apoio de Frei

Mariano, fazendo bicos como bombeiro hidráulico e fazendo contatos

constantemente. Pedro vive com a tia, próximo à residência da avó, e às vezes

encontra-se com a mãe. Sempre pede notícias das pessoas da equipe, afetivo e

com seu jeito simples. João, por sua vez, está morando com os irmãos em uma casa

independente, construída após sua liberação, no lote da avó. Faz contato e pergunta

por componentes da equipe, sempre os mesmos. Estava com dificuldades para

retornar à escola. Francisco montou um barzinho em sua comunidade e, apesar de

não ter concluído os exames para tirar carteira, é visto dirigindo. Não se sabe se

ainda mantém vínculo com a criminalidade. Artur foi à porta da Unidade algumas

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vezes, emagrecido, aparentando estar sob efeito de drogas. Atualmente, não se tem

notícias dele.

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WIKIPÉDIA. 2008. Disponível em <http//pt.wikipedia.org/wiki/Jack_o_Estripador>. Acesso em 11 dez. 2008.

YIN, Robert K. Case Study Research : design and methods. New York: Sage Publications Inc., 1989.

ZALUAR, Alba. Exclusão e políticas públicas. Revista Brasileira de Ciências Sociais . São Paulo, v.12, n.35, out.1997.

ZALUAR, Alba. Integração perversa : pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2004.

ZIMERMAN, David. Fundamentos psicanalíticos : teoria, técnica e clínica. Porto Alegre: Artmed, 1999.

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APÊNDICES

APÊNDICE A. Roteiro das entrevistas semi-estruturad as realizadas com os profissionais da semiliberdade

Nome fictício: ______________________________

Sexo: ___________

dade: __________

Tempo de serviço: ____________

Função: _________________

Formação: _______________

Data da Entrevista: _________________

1) Como é o seu trabalho? Conte um pouco do seu cotidiano.

2) O que você pensa sobre o seu trabalho?

3) Como percebe o envolvimento dos adolescentes com a criminalidade?

4) Que tipos de atos infracionais eram mais comuns quando começou a trabalhar?

Houve alguma modificação?

5) Quais são as dificuldades na realização do seu trabalho diante da relação dos

adolescentes com as drogas e tráfico?

6) O que você imagina que sejam os motivos que levam os adolescentes entrarem

nas guerras e sentirem-se ameaçados?

7) Como as famílias dos adolescentes lidam com estas ameaças?

8) Durante a realização do seu trabalho, teve conhecimento do assassinato de

algum adolescente?

9) Que tipos de vivências e situações estes assassinatos provocaram em você, nos

seus colegas de trabalho e nos adolescentes?

10) Como estas mortes atravessam o seu trabalho?

11) Tem conhecimento do desenvolvimento de alguma política destinada a este

público?

12) Há mais alguma informação ou comentário que gostaria de acrescetar?

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APÊNDICE B. Roteiro das entrevistas semi-estruturad as realizadas com os adolescentes da semiliberdade

Nome fictício: _______________________________________________

Idade: __________

Ato infracional: ____________

Medida cumprida anteriormente:_______________________

Data da Entrevista: _______________________________________

1. Há quanto tempo cumpre a medida sócio-educativa de semiliberdade?

2. Que dificuldades você encontra no cumprimento da medida de semiliberdade?

3. No seu entender, por que os jovens “entram no crime”?

4. Acha que é difícil “sair do crime”? Por quê?

5. Você conhece alguém que tem “guerra” e encontra-se ameaçado?

6. Quais são os motivos para uma “guerra” começar?

7. É difícil acabar com as guerras? Por que?

8. Conhece alguém que consegui resolver essa “guerra”?

9. Como as famílias dos adolescentes envolvidos em “guerras” lidam com essas

ameaças?

10. Como a medida pode ajudar os adolescentes envolvidos em “guerras” a

solucionar o problema da ameaça?

11. Quando morre algum adolescente assassinado o que você pensa?

12. Há mais alguma informação ou comentário que gostaria de acrescentar?

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APÊNDICE C. Grupo com adolescentes realizado em 14/ 11/2007

Participaram da atividade cinco adolescentes: Clóvis, Gabriel, Pedro, João e

Felipe, que havia acabado de chegar do CEIP.

Expliquei novamente do que se tratava a pesquisa e os princípios éticos que a

orientam. Informei mais uma vez que trabalhei por cinco anos na semiliberdade e

que vi muitos meninos morrerem devido às “guerras”. Mas antes, perguntei se eles

sabiam porque se faz uma pesquisa e Pedro respondeu que é para saber de alguma

coisa. Em seguida expliquei a metodologia: veríamos duas cenas do filme

“Escritores da Liberdade” e depois discutiríamos. Expliquei o contexto do filme que

se trata das “guerras” estabelecidas entre gangues nos EUA. Coloquei então a

proposta da filmagem. Houve uma pequena discussão e eles não quiseram realizá-

la: “eu não quero aparecer, filma o João”. “Esse negócio de filme”... Informei

novamente que o objetivo era ter um relato da discussão, pois para mim seria difícil

discutir e aprender as questões trabalhadas pelo grupo. Além disso, disse à eles que

depois poderíamos assistir a filmagem e que poderia ser interessante nos ver no

vídeo. Mas foi em vão; não aceitaram. Talvez mostrar o rosto, a voz em uma

filmagem traz a possibilidade de serem identificados e por conseguinte se colocarem

em risco. Propus então vermos as cenas do filme gravando posteriormente a

discussão. Inicialmente eles aceitaram. Até então estávamos na varanda, mas

devido o aparelho de DVD ser pequeno, ter uma potência reduzida e também a

chegada do adolescente Felipe houve dispersão o que ocasionou dificuldade para

iniciar a discussão. Essa só foi possível mediante a intervenção do diretor das

Unidades de Semiliberdade.

As cenas do filme que retratam as “guerras” entre as gangues americanas

envolvendo questões raciais e étnicas impactaram os adolescentes. Percebi em

seus rostos e corpos um grande incômodo. Quando falei novamente que as

discussões seriam gravadas eles demonstram grande resistência e um deles chegou

a querer sair da sala e não participar do grupo. Diante de tal situação, resolvi não

fazer a gravação. João disse: “não vamos falar de morte, vamos falar de vida!” Fiz

mais uma vez o convite: “vamos falar de morte para que vocês tentem permanecer

vivos”. Retomamos a discussão a partir da seguinte afirmação: “são relatos que

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muitos de vocês conhecem: quem aqui de vocês já perdeu um amigo na “guerra”?

(esta pergunta é feita no filme). A partir da afirmativa os adolescentes começaram a

dizer das razões que fazem com que as “guerras” sejam estabelecidas: tráfico de

entorpecentes, dinheiro, mulheres, traições, furto de drogas. “Se você é de uma

facção e arruma “treta” com um de outra, aí começa a “guerra” (Pedro). Além da

“guerra” envolvendo grupos rivais, falaram das “guerras” estabelecidas entre os

membros da mesma facção e os motivos segundo os adolescentes são: inveja

relacionada à dinheiro, mulher, e arma; briga, entre outros.

A afirmação de que não há solução para acabar com as “guerras” foi algo

recorrente: “depois que entra não tem mais jeito, só acaba matando ou morrendo”

(Gabriel).

Em um determinado momento João afirmou que “a guerra é do capeta”. “Ele

entra pra matar, roubar, destruir”. A partir dessa afirmação um dos educadores que

participava da atividade faz o seguinte questionamento: “mas aí põe a culpa no

capeta?” “Não, o capeta facilita”. “Põe a droga, a arma na sua mão”. “O único que

tem solução pra “guerra” é Deus”.

Encerrou-se o grupo com o convite para as entrevistas individuais. Um dos

adolescentes aceitou com a entrevista sendo realizada em seguida.

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