78 7979 - bibliotecas do saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre...

9
78 79

Upload: others

Post on 12-Oct-2020

0 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

78 7978 79

Page 2: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

80 81

Recanto das Emas

Page 3: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

82 83

Biblioteca Ariano Suassuna (1)Centro de Ensino Fundamental 113 – Recanto das Emas

Pedrinho perdeu o sono naquela noite. As palavras de Dona Benta o haviam impressionado profundamente. Na manhã seguinte Emília procurou-o e disse:– Nós precisamos endireitar o mundo, Pedrinho.– Nós quem, Emília?– Nós, crianças; nós que temos imaginação. Dos “adultos” nada há a esperar...– Dobre a língua, hein? Quando falar em “adultos”, excetue vovó e Simão Bolívar.

(Histórias do Mundo para Crianças, de Monteiro Lobato)

Artistas e educadores revivem o sonho de Monteiro Lobato: fazer “livros onde as

nossas crianças possam morar”[ ]

ejo a leitura como um futuro. Esta é a palavra.” Enquanto se desfaz do figurino usado na encenação da lenda do bumba-meu-boi com uma turma de alunos do 5º ano, a professora Patrícia Aparecida dos San-tos Moreira resume com convicção o sentido do seu dedicado trabalho à frente da Biblioteca Ariano Suassuna, instalada numa espaçosa sala no Centro de Ensino Fundamental (CEF) 113 da Região Administrativa do Recanto das Emas. Sem perceber, se espelhando no mestre, ela revive o sonho que Monteiro Lobato confidenciou em carta ao escritor mineiro Godofredo Rangel, no distante mês de maio de 1926.

Famoso pelos clássicos infanto-juvenis que criou quando o público infantil era ignorado pelos autores, Monteiro Lobato disse ao amigo que

“V

do futuroOs criadores

Organização no acervo e capricho na decoração:

“O livro leva a criança para um lugar melhor

Page 4: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

84 85

ainda ia “acabar fazendo livros onde as nossas crianças possam morar”. Se estivesse vendo o futuro que aconteceria nas muitas décadas seguintes, o escritor, que criou a primeira editora no país na época em que os livros eram impressos em Portugal e morreu em 1948, poucos anos antes da invenção dos aparelhos de televisão que levariam sua fantástica obra para dentro das casas por todo o Brasil, ficaria orgulhoso e tomado de felicidade.

Artistas e educadores como Patrícia seguem pela capital do país apos-tando toda a sua criatividade para transformar as histórias que Lobato e outros autores escreveram para os pequenos numa “casa” do tamanho do mundo, só deles, onde todos convivem livremente com a imaginação e as descobertas, e por isso são felizes. “O livro leva a criança para um mundo melhor, para o lado bom da vida”, justifica a professora, que usa a energia e o dom de artesã para renovar diariamente os encontros das crianças com os autores. “Não sei sentar e ficar parada, então faço oficinas, semanas do Monteiro Lobato, do palhaço... Vou inventando.”

Na outra ponta das singelas produções teatrais escolares, os resul-tados também fazem a felicidade dos que se empenham no trabalho de abrir as portas do conhecimento para os alunos. As crianças entram com tanto gosto nas fantásticas “casas” da fantasia que passam a identificar nos professores os personagens. Sempre vestida a caráter na hora de apresentar aos alunos as novidades de um conto, Patrícia se lembra da primeira vez que viveu essa reação. “Eu havia me transformado na Emília para ler com eles uma história de Monteiro Lobato. Já tínhamos terminado a atividade quando uma das crianças veio atrás de mim e pe-diu: ‘Emília, me leva pro Sítio do Picapau!’ Aquilo me deu uma alegria muito profunda, até hoje me emociono.”

As encenações montadas em parceria com as crianças desde que a biblioteca foi inaugurada estreitam o contato com os alunos, aumentam o interesse pela leitura e fazem parte de uma estratégia cuidadosamente planejada como parte do projeto pedagógico adotado pela escola. Cons-truído a partir de 2008, no início da gestão compartilhada pela diretora Meire Núbia Almeida da Silva com a equipe de servidores, familiares dos alunos e a comunidade, o projeto pedagógico parte do princípio de que um projeto de educação “implica pensar o tipo e qualidade de escola, e a concepção de homem e de sociedade que se pretende construir”.

E o que se quer, ali, construir? Pessoas capazes de “endireitar o mundo”, como propôs Emília a Pedrinho, na história de Monteiro Lobato? “Que-remos uma educação que abra oportunidades para as múltiplas formas de aprendizagem. Só assim poderemos construir os pilares de um outro mundo possível” explica Meire Núbia. “Um lugar especial, de esperança

e luta para combater os males da humanidade”, como pretende o projeto pedagógico do Centro de Ensino Fundamental 113.

Com 1.400 alunos distribuídos em três turnos de aulas, incluindo as tur-mas noturnas de 1º e 2º segmento da Educação de Jovens e Adultos (EJA), a escola trabalha intensamente para manter as crianças e os adolescentes fora do alcance dos “males” que colocam a Região Administrativa do Re-canto das Emas entre as dez mais violentas do Distrito Federal. A proposta é investir em ferramentas como o esporte e a leitura para estreitar os laços com os estudantes e afastá-los das ruas. Como ensinou Paulo Freire, nada de ser “como tijolo que forma a parede, indiferente, frio, só”.

Localizada a 25,8 quilômetros do Plano Piloto, a região criada em 1993 inchou em duas décadas o suficiente para alcançar uma população de 145.304 habitantes, a maioria (51,15%) do sexo feminino, como mostra a Pesquisa Distrital por Amostras de Domicílios – PDAD 2015 da Companhia de Pla-nejamento do Distrito Federal (Codeplan). Metade dos moradores nasceu em Brasília. Na outra metade, formada por emigrantes, 67,95% vieram de vários estados do Nordeste para buscar uma vida melhor no Planalto Central. A pesquisa mostra que o sonho estacionou na renda média de 3,49 salários mínimos e numa renda per capita de R$ 803,92.

Os dados que mais tiram o sono dos educadores estão nos 20,62% de moradores entre os 15 e os 24 anos, um contingente de 29.967 jovens na faixa de idade que a Organização das Nações Unidas aponta como a mais vulnerável nos crescentes indicadores da criminalidade. O que fazer para que esses garotos e garotas com tanto potencial para ser feliz e ajudar o país a crescer não entrem nessa estatística perversa como vítimas ou algozes?

A pergunta também caberia aos moradores do Recanto das Emas, que no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas por cem mil habitantes, superior à de estados como São Paulo (11) e Minas Gerais (19,8). O quadro da cidade onde o tráfico de drogas e a mão armada não se intimidam com a luz do dia retrata a epidemia de violência que se configura quando o índice é superior a dez por cem mil, nos parâmetros definidos pela Organização Mundial de Saúde (OMS), e espelha os desafios que os centros de ensino da região têm para vencer.

A comunidade escolar sente no dia a dia os efeitos dessa epidemia e aprendeu que só a prevenção pode evitar o pior. Um dia o medo paralisou o CEF 113, quando um rojão detonado por um aluno calou as aulas e levou o centro de ensino para os noticiários. Na hora que os jornais chegaram às bancas, a Biblioteca Ariano Suassuna começou a nascer. “Serei sempre grata à professora Ana Beatriz Goldstein, que visitou a escola depois que

Um dia o medo paralisou o CEF 113, quando um rojão detonado por um aluno calou as aulas e levou o centro de ensino para os noticiários. Na hora que os jornais chegaram às bancas, a Biblioteca Ariano Suassuna começou a nascer”

Page 5: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

86 87

leu a notícia. Ela era voluntária do projeto Bibliotecas do Saber e nos deu a ideia de fazer a parceria”, lembra Meire Núbia.

A diretora reconhece que o livro abre caminhos para as mudanças de comportamento e de visão de mundo e por isso já era prioridade no projeto pedagógico da escola. Ainda havia, no entanto, muitas dificuldades a superar. “É nosso papel incentivar a leitura, mas antes não tínhamos estrutura nem recursos para abrir o espaço. Quando D. Carmen [Carmen Gramacho] chegou aqui com o pessoal para avaliar as condições do local e ver o que precisava, foi como se um anjo tivesse caído do céu.”

Com as primeiras atividades organizadas na biblioteca, os resultados não demoraram a aparecer. “Percebemos que os alunos que leem mais começam logo a mudar a postura, a ter outro comportamento na sala de aula. É nítido também o progresso, a forma como desenvolvem a fala e a escrita. Acostu-mados a recorrer aos livros, eles já pedem para aumentar o acervo e, nos intervalos das aulas, enchem a biblioteca. Ganhamos um grande presente!”

Na espaçosa e confortável sala finalmente inaugurada em 1º de agosto de 2013, a série de troféus que dividem as prateleiras mais altas da biblioteca com os livros retrata uma face do esforço que a escola vem desenvolvendo para afastar as crianças e os adolescentes que estão sob os seus cuidados dos riscos das ruas e combater a epidemia de violência. São os prêmios conquistados pelos alunos em torneios de futsal, vôlei, basquete e atletismo, modalidades que eles praticam com dedicação nas duas quadras de esportes da escola, mostrando que há luzes, sim, apontando as saídas na escuridão.

O trabalho de atrair meninos e meninas para os puxados treinos e com-petições e para as atividades com os livros faz parte da função coletiva de “preparar indivíduos saudáveis, felizes e ativos para a vida em sociedade”, prevista no projeto pedagógico, e exige um permanente empenho dos professores. “Há um dinamismo no processo de atração das crianças para a biblioteca. Sempre é preciso inventar algo para chamar a atenção, para encantar”, revela Patrícia Moreira.

As iniciativas garantem momentos mágicos na biblioteca, como a ence-nação, com as crianças, da tradicional história de Catirina – a moça da roça que queria a qualquer custo comer a língua do boi de estimação do patrão para satisfazer um incontido desejo da gravidez e botou o marido, Francisco, na maior saia justa. Tudo dentro do espírito inovador do escritor escolhido pelos alunos e servidores para dar nome à biblioteca. O momento inspirado da votação deu a vitória ao escritor paraibano Ariano Suassuna, o mestre na arte do encantamento que marcou as suas disputadas aulas-espetáculo e o precioso legado que deixou para a humanidade.

Os projetos de leitura inspirados em obras de artistas que fazem pensar, como Suassuna, são integrados com os planos de trabalho dos professores de português. E as crianças cobram novas atividades”

A abertura da biblioteca trouxe resultados rápidos: “Os alunos que leem mais começam logo a

mudar a postura”

Page 6: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

88 89

Ariano era um gênio da dramaturgia e também do ensino, do direito, da cultura. Foi um dos fundadores do Teatro do Estudante Pernambucano e publicou os primeiros textos no Recife, onde foi morar com a família, desde 1942, na adolescência, e viveu o resto da vida. Em 1947, então um jovem poeta e romancista, ele mostrou que veio para brilhar ao apresentar a primeira peça, de título instigante – Uma mulher vestida de sol – que lhe rendeu o prêmio Nicolau Carlos Magno, primeiro de uma infindável lista de reconhecimentos. Poucos anos depois, sua obra-prima O Auto da Com-padecida, encenada no Teatro Adolescente do Recife, levou a medalha de ouro da Associação Brasileira de Críticos Teatrais e começou a ganhar o mundo, traduzida em nove idiomas.

No CEF 113, os projetos de leitura inspirados em obras de artistas que levam a pensar, como Suassuna, são integrados com os planos de trabalho dos professores de português. E as crianças, claro, cobram novas atividades, resultado das metodologias adotadas em conjunto pela equipe de educado-res que aposta no que disse um dia o mestre Paulo Freire: “Ensinar exige alegria e esperança.” Livres para sonhar, elas gostam do espaço, da troca de ideias e de conhecimento, das discussões sobre os livros que elas mesmas escolhem e alcançam com as próprias mãos. “Vejo que criaram um sentido de pertencimento, adquiriram amor aos livros. Se deixar, ficam o tempo todo”, diz Patrícia.

Bem cuidado, o espaço é mantido com a ajuda das quatro crianças do projeto Amigos da Biblioteca, eleitas a cada semestre. Animadas, as meninas Rayssa Christianne, Loyse Wiañe, Raquel Louise e Jane Emily Evelynn se

orgulham da lista das tarefas para deixar tudo bem organi-zado. Elas dão baixa nos livros devolvidos, controlam a en-trada dos pequenos leitores e confeccionam as carteirinhas, que custam R$ 2. O dinheiro vai para a compra de livros indicados pelos pequenos leitores. Atentas à limpeza, as meninas não deixam ninguém comer nada ali dentro. E ainda ajudam as crianças menores a guardar as mochilas.

“Quando se reconhecem como parceiros nas atividades, os alunos se sentem também

donos, ganham responsabilidade, adquirem hábitos e aprendem a cuidar”, explica Patrícia. A diferença que a biblioteca faz na vida deles atinge também as famílias. “Os professores incentivam as crianças, que por sua vez incenti-vam os pais. É um efeito cascata.” Os alunos se animam ao contar onde está a diferença. “Antes eu gaguejava muito, só melhorei depois que comecei a frequentar a biblioteca e a ler mais”, diz a pequena Emily, do quinto ano.

Mas importante mesmo, para Emily, é que “ficou melhor” na hora de fazer as provas. “A gente aprende como escrever e fica tendo mais respos-ta.” Colega de turma da menina, Artur diz que a vantagem dos livros é que “ajudam a gente a ficar mais esperto, mais inteligente”. “O livro é o que dá a nossa inteligência”, emenda Cauã. Na hora de levantar a mão para resumir o que significa uma biblioteca para eles, as crianças do quinto ano vespertino foram rápidas nas respostas. Inteligência foi a mais citada, ao lado de “aprender, escrever melhor, desenvolver o cérebro, conhecimento, pensar, imaginar, estudar mais, soltar a imaginação, aventura...”

Nas reuniões de pais e conselhos de classe, os familiares concordam que o hábito de frequentar a biblioteca tem transformado a vida das crianças. Tudo o que leem é aproveitado para introduzir práticas capazes de ajudar os pequenos a se preparar para os dias que virão. “Vejo como meu filho me-lhorou na concentração, na fala e aperfeiçoou a escrita”, conta a servidora pública Shirley Sousa Tezelli, mãe do aluno do quinto ano Davi Sousa, que leva para casa tarefas como fazer os delicados origamis originados da cultura oriental com base nas leituras.

“É gratificante, dentro de um processo de educação tão complexo e cada vez mais informatizado, num mundo tão digital, ver as crianças buscando mais livros e os pais também participando”, comemora a diretora Meire Núbia. A biblioteca aumentou o interesse da comunidade. “Muitos vêm, fazem as suas carteirinhas, levam livros para casa.” Muitos pais começaram a doar livros. Os moradores já percebem a biblioteca como um lugar pri-vilegiado e pedem que seja aberta para a comunidade à noite. “Mas faltam servidores para atender”, lamenta Meire Núbia.

E o que falta para melhorar? A resposta dos pequenos surpreende pela maturidade e revela como o foco na busca da autonomia abre horizontes para eles. Entre apelos como “permissão para levar os gibis para casa” e “desenhos animados”, as crianças pedem: mais livros de literatura brasileira, folclore, Segunda Guerra Mundial, desenhos animados e ...cordel! E “aumentar” a biblioteca. “Ora, é lógico”, diz Paulo Freire no projeto político pedagógico do centro de ensino. Até parece que ouviu a proposta de Emília para Pedrinho: “Numa escola assim vai ser fácil estudar, trabalhar, crescer, fazer amigos, educar-se, ser feliz. É por aqui que podemos começar a melhorar o mundo.”

A biblioteca tem transformado a vida das crianças. Vejo como meu filho melhorou na concentração, na fala e aperfeiçoou a escrita”, conta a mãe de Davi Sousa, que faz delicados origamis com base nas leituras

Patrícia e as quatro Amigas da Leitura

eleitas no semestre: ajudantes dedicadas

Page 7: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

90 91

A leitura é fundamental nos planos de trabalho da equipe pedagógica: “Ensinar exige

alegria e esperança”

Page 8: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

92 93

Alegre e à vontade: alunos se sentem em

casa na biblioteca

Page 9: 78 7979 - Bibliotecas do Saberbibliotecasdosaber.com.br/arquivos/cap2.pdf · no primeiro semestre de 2016 registrou a taxa de vinte mortes violentas ... basquete e atletismo, modalidades

94 95

Pedidos das crianças: mais livros de literatura

brasileira, folclore, cordel... e aumentar a biblioteca