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98 99CEF 801,

Recanto das Emas

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Biblioteca Ariano Suassuna (2)Centro de Ensino Fundamental 801 – Recanto das Emas

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urante uma de suas concorridas aulas-espetáculo, em dezembro de 2013, Ariano Suassuna explicou para uma plateia atenta e encantada que no sertão nordestino a morte se chama Caetana. Na hora, não perdeu a chance de dar uma alfinetada na “desumana de olhar perverso” e ainda aproveitou para lhe mandar um recado: “Se ela está pensando em me levar, não pense que vai ser fácil, não. Ela vai suar! Se vier com essas besteirinhas de infarto e aneurisma no cérebro, isso eu tiro de letra.”

Mas a Caetana nem se importou. Sabia que tinha que cumprir as ordens e não se intimidava de jeito nenhum com as missões difíceis. O que ela não suspeitava é que, ao levar o bem-humorado mestre da cultura brasileira, iria provocar uma enorme reação dos romanceiros populares do Nordeste, que

“Nos palcos do firmamentoJesus concebeu um planoDe montar um espetáculoPara Deus Pai SoberanoE, ao lembrar de um dramaturgo,Mandou buscar Ariano”

(Trecho do cordel A chegada de Ariano Suassuna no céu, de Klévisson Viana e Bule-Bule)

A maioria dos alunos do CEF 801 votou em Ariano Suassuna para escolher o nome da biblioteca. O resultado foi o mesmo

do CEF 113, na mesma região administrativa, onde 67,95% dos moradores que não nasceram no DF vieram do Nordeste

A força da cultura

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nordestina

O espaço foi inaugurado em 2014: novas possibilidades

para as crianças

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ela jamais poderia controlar. Milhares de versos de cordel foram surgindo em seguida, por todo canto, para expressar o sentimento daquela perda.

Os poetas cantadores Klévisson Viana e Bule-Bule aproveitaram os versos da homenagem ao escritor para mostrar a todo mundo que a Caetana era, na verdade, uma grande trapalhona. No cordel da chegada de Ariano ao céu eles revelam que, na pressa, a moça acabou levando o escritor errado: “A morte veio ao país/Como turista estrangeiro,/Achando que o Brasil/Era só Rio de Janeiro./No rastro de Suassuna,/Sobrou pra Ubaldo Ribeiro.”

A moça levou a maior bronca quando chegou lá em cima com o autor de Viva o povo brasileiro. Afinal, a encomenda era “trazer um paraibano”, e ela carregou o baiano que nem havia sido convidado. Pensou que conseguiria tapear. Mas Jesus não quis abrir mão do dramaturgo que criou o Movimento Armorial e morava no Recife. Só pensava no “espetáculo para Deus Pai” e deu logo um ultimato: “Quero peça de humor/que o céu tá muito sisudo.”

A moça vestiu depressa o manto negro e voltou para a Terra resmun-gando: “Só faço que é pra o Senhor./Pra outro, juro não ia./Ele que se conformasse/Com o escritor da Bahia./Se dependesse de mim,/Ariano não morria.” Caetana não conseguiu escapar da tarefa. E depois nunca soube explicar por que os poetas populares ficaram espalhando por aí que o alvo da sua busca era eterno e ponto final.

“Sua arte nos fascina/Sua obra nos constrói/Ariano diz bem alto/Que a injustiça dói/;Suassuna é aroeira/Ariano é a madeira/De lei que cupim não rói”, recita Carlos Soares da Silva, no cordel Ariano Suassuna, o mestre da cultura nordestina. Depois de lembrar que o escritor “lutou de alma pura contra a arte descartável”, Klévisson Viana e Bule-Bule fazem coro com Soares: “Em qualquer dia do ano/Eu digo: viva Ariano/Padroeiro da cultura!”

A força dessa cultura corre no sangue que habita o Brasil de norte a sul e foi decisiva na consulta aos alunos do Centro de Ensino Fundamental (CEF) 801, no Recanto das Emas, para definir o nome do novo espaço que seria inaugurado em parceria com o projeto Bibliotecas do Saber. O resultado da votação foi o mesmo apontado pelos estudantes do CEF 113, localizado a pouca distância dali, na mesma região administrativa, onde 67,95% dos moradores que vieram de outros estados são nordestinos. A maioria das crianças cravou o nome de Ariano Suassuna.

Em pouco tempo, o nome do mestre – que por mais de trinta anos ensi-nou estética e teoria do teatro, literatura e história da cultura brasileira na Universidade Federal de Pernambuco e também brilhou como advogado, contador de histórias e muitas outras sabedorias mais – já estava na placa

que os alunos ajudaram a descerrar, em 25 de março de 2014. Naquele dia, a biblioteca abriu as portas pela primeira vez, para a alegria de crianças como Kayron Ramon da Silva Santos, de onze anos, um pequeno campeão de leitura que se orgulha de ser aluno destaque do CEF 801.

O menino que assume ter “como hobby” assistir, toda semana, ao pro-

grama Matemática Rio, “porque gosta de resolver problemas”, nasceu em Piripiri, uma pequena cidade de 22 mil habitantes, no Piauí. Ele e os pais fazem parte dos 49,25% de moradores do Recanto das Emas que deixaram seus estados de origem para tentar uma vida melhor na capital do país. Kayron já sabe muito bem o que isso significa. “Quero estudar medicina, conseguir um trabalho e depois fazer engenharia civil”, anuncia.

Se depender da determinação com que agarra as oportuni-

dades que a biblioteca lhe oferece, o pequeno aluno do sexto ano vai ser tudo isso mesmo quando crescer. E muito mais. Até pode acabar, como Ariano, dono de um currículo tão comprido como costumam ser as letras de um cordel. Com um exemplar de Dom Quixote para crianças, de Monteiro Lobato, nas mãos, ele comenta o livro com segurança e faz surpreendentes compara-ções com a realidade do Brasil. “Estou lendo a história recontada de um fidalgo espanhol que se tornou um cavaleiro andante.”

Dom Quixote gostava da glória e também de justiça, diz Kayron. “Ele tinha uma loucura boa e o que achei mais in-teressante foi a amizade dele com o Sancho, porque tinham muito respeito um pelo outro.” E o que é uma loucura boa? “É uma loucura inocente, como assim... uma criança. Até uma certa idade, uns oito, nove anos, ela ainda não sabe distinguir o certo do errado. E aí, muitas vezes se imagina como aquilo que quer ser. A loucura boa levava Dom Quixote a bons lugares e a fazer justiça.”

Kayron garante que, aos onze anos, sabe distinguir muito bem a diferença entre o certo e o errado. “E sei que tem as leis, como no livro. Apesar de que, nisso, o Brasil não vai muito bem... Governador, presidente, deputado...”, diz, devagar, medindo as palavras. “A corrupção é um grande empecilho para a sociedade hoje em dia.” E você acha que o Brasil tem jeito? “Acho”, responde, sem hesitar. “Quando a corrupção diminuir. Quando os brasileiros escolherem melhor os representantes.”

O vocabulário e o pensamento maduros para a idade refletem o hábito adotado pelo menino de ler diariamente na biblioteca e levar livros para casa. Kayron conta que também assiste aos noticiários – “até porque sou um

Kayron: vocabulário maduro para a idade

reflete o hábito de ler diariamente

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cidadão brasileiro, tenho que acompanhar tudo” – e que já sabe como vai definir o voto nas urnas quando chegar aos dezesseis anos de idade: “Vou ver se é honesto, se não vai roubar, se não tem histórico de corrupção.”

O menino não fala em cidadania por acaso. No projeto educacional que orienta as ações dos professores, a missão é clara. A escola deve cumprir sua função social de garantir educação de qualidade, aprendizagens significativas e condições para que o aluno se torne um “cidadão crítico, reflexivo, digno e justo”. Para isso, destaca o documento, o ensino deve ser voltado para os princípios éticos “da autonomia, da responsabilidade, do respeito ao bem comum”. A leitura, considerada uma ferramenta básica nesse processo, é usada em todas as matérias.

O livro de Monteiro Lobato que reconta a história do escritor espanhol Miguel de Cervantes saiu das prateleiras por indicação da professora de português, para trabalhos de grupo. Além da leitura, valendo três pontos logo garantidos pelo menino, as crianças do sexto ano receberam tarefas de redação, confecção de um livro, criação de um cordel e de três esculturas para representar os personagens Sancho, Dom Quixote e Dulcineia, “o grande amor dele”, segundo Kayron. Responsável pela coordenação, ele assegura que cada um dos colegas “vai deixar a sua marca” na produção coletiva.

“Alunos como o Kayron são uma prova viva da importância da biblioteca”, diz o diretor Afonso Wescley Santos. “A nossa maior felicidade é identificar, dentro da escola, crianças que usam o espaço, leem sem imposição e acabam se destacando pela autonomia e as notas excelentes.” As atividades baseadas na leitura são fundamentais para desenvolver as habilidades intelectuais que capacitam o aluno para uma aprendizagem autônoma.

As reflexões do menino sobre a realidade do país em que vive, a partir da leitura de Dom Quixote, confirmam o poder do livro como ferramenta indispensável nas ações da equipe da escola para levar o aluno a pensar, analisar, criticar, tirar suas próprias conclusões e estabelecer relações, como previsto no projeto educacional. Para conseguir resultados como esse, é preciso desenvolver metodologias desafiadoras, estimular o aluno a defender suas opiniões, a ter responsabilidade e respeito, explica Afonso.

A parceria dos professores com a biblioteca tem sido essencial nesse planejamento, diz o diretor, que resume o novo espaço em uma palavra: “preciosidade”. Tudo é feito de forma integrada. A Ariano Suassuna acolhe as reuniões de confraternização, as apresentações de novos professores e os encontros com as famílias, “um meio para construir um sentimento co-mum de pertencimento e estreitar a convivência com os livros”. As crianças mudam os hábitos e adotam atitudes de compromisso e responsabilidade.

“Eles ficam atentos aos prazos de devolução dos livros, dão sugestões para a compra de novos títulos e se preocupam com a arrumação da sala. Fazem os trabalhos com tranquilidade aqui dentro, demonstram respeito”, explica Mariana de Jesus. Responsável pela biblioteca, a professora come-mora a oportunidade de trabalhar num espaço adequado. “Sempre sonhei com essa possibilidade. Hoje tenho essa felicidade.”

Para incentivar os pais a ler com as crianças, a escola criou o projeto Sacolinha Literária. “É muito simples e barato, bastam uma sacola e um caderno grande, que circula por toda a turma”, mostra Mariana. Cada dia um aluno leva a sacola com o livro dentro, para ler com os pais. Depois, ele reconta a história no caderno, em forma de texto ou desenho, e devolve. Outra ferramenta testada com os pequenos é o carrinho que circula com livros e dicionários entre a biblioteca e as salas de aula.

“Também fazemos a Feira da Troca e a Feira Literária para aumentar o interesse das crianças e das famílias pelos livros”, lembra Afonso. A criati-vidade faz a diferença para driblar a insuficiência de verbas na escola, que tem 1.100 alunos, nos turnos da manhã e da tarde, confiando receber o ensino de qualidade prometido no projeto pedagógico. “Não é segredo para ninguém que os recursos estão muito escassos”, lamenta o diretor. Como também não é segredo a falta que eles fazem.

Na Bienal do Livro de 2014, em Brasília, o retorno do valor investido emocionou os professores. Cada escola pública recebeu uma verba do go-verno do DF para levar os alunos e adquirir novos títulos. A participação das crianças surpreendeu. “Elas chegaram lá animados, cheias de expectativa, mas já sabendo os livros que queriam comprar. Demonstraram conheci-mento, trocaram ideias. Muitas levaram até uma listinha”, conta Afonso.

“Criou-se um preconceito de que nas cidades com população de menor poder aquisitivo os livros não atraem”, critica o diretor. Os alunos mostra-ram que não é assim. “Aproveitaram totalmente a Bienal, se interessaram por tudo, não queriam sair de lá. E depois passaram a perguntar quando seria a próxima.” Na cidade de 145.304 habitantes, a renda per capita é de apenas 1,02 salário mínimo e 90% das pessoas empregadas trabalham no setor de serviços.

A baixa renda per capita no Recanto das Emas corresponde aos níveis insuficientes de escolaridade. De acordo com a Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios 2015, da Companhia de Desenvolvimento do Pla-nalto Central (Codeplan), 73% dos moradores não estudam e 38,48% não conseguiram terminar o ensino fundamental. O índice representa 55.088 pessoas, mais de um terço da população total. Os livros da biblioteca que

Criou-se um preconceito de que nas cidades com população de menor poder aquisitivo os livros não atraem”, cri-tica o diretor. Os alunos mostraram que não é assim: “Aproveitaram to-talmente a Bienal, se interessaram por tudo, não que-riam sair de lá”

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chegam às residências pelas mãos dos alunos ajudam a minimizar a falta de acesso à internet, declarada por 39,35% dos moradores.

A média de pessoas por domicílio, na cidade, é de 3,51. Como na casa de Kayron, que mora com os pais e comemora, depois de reinar por onze anos como filho único, a chegada de uma irmãzinha. Se depender da família, o número para aí. “A minha mãe não quer mais”, assegura o menino. Eles fazem parte dos 21,05% de pessoas que acessam a rede por celular e dos 37,66% de residências com internet.

Proibido de brincar na rua enquanto a mãe está no trabalho, o aluno do quinto ano Khristian Lima de Roma, de dez anos de idade, gosta de ver desenhos na televisão e de fazer origamis, um de seus passatempos preferidos. Mas, quando está na escola, o canto preferido do menino que sonha trabalhar com as artes é uma das mesas da biblioteca Ariano Suassuna, onde ele solta a imaginação criando quadrinhos inspirado nas leituras. “Desenho tirinhas para fazer um gibi e misturo os personagens”, revela. Os heróis da vez são um menino dragão, que tem um robô para ajudá-lo nos deveres da escola, e a amiga Ninja de Fogo. Leitor assíduo, ele também gosta de desenhar “criaturas místicas, como a fênix” e risca várias, com facilidade, enquanto conversa.

Kayron e Khristian estão entre as crianças de zero a cartorze anos de idade que formam 21% da população do Recanto das Emas. O número faz páreo com o de jovens na faixa dos 15 aos 24 anos, que representam 20,62%. Os idosos são minoria, apenas 10%. O restante, quase a metade, são moradores de 25 a 59 anos de idade. Os dois meninos sonham chegar a essa faixa com o futuro realizado.

Khristian mira no trabalho de artistas como o cartunista e cantador Klévisson Viana, o cearense de Quixeramobim que ocupa a cadeira nº 11 da Academia Brasileira de Literatura de Cordel, e nos heróis dos quadrinhos da Turma da Mônica. “Quero seguir esses passos, ser tipo o Mauricio de Sousa”, planeja, Khristian, enquanto pega um livro de poesias de sua autora preferida, Cecília Meireles.

Kayron não tem a menor dúvida sobre o futuro traçado para a medicina e a engenharia e não se descuida da parte que lhe cabe para chegar lá. A rotina é de estudos. Conversas no whatsapp, só mesmo “para os parentes verem que estou vivo”. Televisão, só depois das tarefas. “Sou muito equilibrado. Só vejo um pouco à noite.” Khristian assume as veias de artista e gesticula para reforçar o advérbio: “Eu sou um pouquiiiiinho desequilibrado. Passo o tempo pendurado no caderno, desenhando.”

Khristian quer ser artista e a biblioteca é o seu

lugar preferido: “Desenho tirinhas para gibis”

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108 109Espaço valorizado: os

alunos dão sugestões para compra de novos livros e ajudam a arrumar a sala

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Acervo de livros infantis: segundo o

diretor, a biblioteca é “uma preciosidade”

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Integração: biblioteca é usada para reuniões de alunos e atividades

com as famílias

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Ferramentas para pensar: a leitura facilita todas as ações

da equipe pedagógica