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Ameaçada Pelo Amor Rake's Reward Joanna Maitland Arriscando sua reputação... Como dama de companhia da viúva lady Luce, Marina Beaumont tem instruções estritas para evitar que a velha senhora ceda a seu antigo hábito de jogar. Assim, quando lady Luce perde uma fortuna para o renomado libertino Kit Stratton, a posição de Marina fica seriamente ameaçada. Então, ela resolve visitar Kit em segredo para pedir-lhe que devolva o dinheiro que ganhou, e ele, surpreendentemente, concorda. Mas apenas se Marina o recompensar da maneira que Kit deseja... Doação do livro: Choy Lin(Desculpa se escrevi errado) Digitalização: Joyce Revisão: Andréa

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Livro de Romance histórico

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Ameaçada Pelo Amor Rake's Reward

Joanna Maitland

Arriscando sua reputação...

Como dama de companhia da viúva lady Luce, Marina Beaumont tem

instruções estritas para evitar que a velha senhora ceda a seu antigo hábito

de jogar. Assim, quando lady Luce perde uma fortuna para o renomado

libertino Kit Stratton, a posição de Marina fica seriamente ameaçada.

Então, ela resolve visitar Kit em segredo para pedir-lhe que devolva o

dinheiro que ganhou, e ele, surpreendentemente, concorda. Mas apenas se

Marina o recompensar da maneira que Kit deseja...

Doação do livro: Choy Lin(Desculpa se escrevi errado)

Digitalização: Joyce

Revisão: Andréa

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CAPÍTULO I

— Tenho esperado por muitos anos para conseguir isso, Hugo. E nada que possa me

dizer fará diferença.

Kit Stratton falava com uma calma certeza, sorrindo lentamente para seu irmão

mais velho, como se estivessem conversando a respeito da melhor maneira de dar um nó

de gravata ou sobre uma nova marca de bebida. Recostou-se em sua cadeira e passou

uma das pernas, enfiada numa bota de cano alto, por sobre o braço do móvel,

observando o irmão com certa expressão de cinismo. Poderia ser ele, Kit, e não Hugo, o

dono daquela magnífica biblioteca.

Sir Hugo Stratton parou de dar passos irritados pelo cômodo e encarou o irmão,

obviamente exasperado diante da resposta que ouvira.

— Pelo amor de Deus, Kit! — exclamou. — Deve estar ficando louco! A Stratton

Magna está na família há gerações! E está me dizendo que vai arriscar perdê-la numa

rodada de cartas com aquela velhota?! Não pode prosseguir com essa piada! Além do

mais, o que houve... bem, foi há tantos anos! Não pode, simplesmente, esquecer?!

— Não. Esqueceu-se do que ela me fez?

— Eu tinha outras coisas em mente — alegou, tomando um gole da bebida. — Coisas

sem importância, sei que vai dizer, apenas distrações. Aliás, uma delas está em Londres,

agora. — Kit ergueu os olhos para o irmão. Podia perceber que a raiva de Hugo

desaparecia aos poucos. — Pode ter certeza de que aprendi minha lição com Emma.

Passei a dedicar minhas atenções a damas que... Bem... Têm experiência e não

representam perigo algum a minha adorável condição de solteiro.

— Desde que os maridos delas não o peguem em suas camas — Hugo completou,

sarcástico novamente. — Onde pensa encontrar uma pele nova se um deles o pegar em

flagrante?

— Na verdade, Hugo, fui pego em flagrante algumas vezes. E minha pele, posso

assegurar-lhe, está intacta.

— Meu bom Deus! — Hugo ria, mesmo aborrecido, diante da atitude do irmão.

Nunca conseguira permanecer sério por muito tempo, ainda mais com o caçula da

família. — E o que houve, então? Esses maridos enganados o desafiaram para um duelo?

Matou algum deles?

— Não. Matar um adversário seria algo pouco... cavalheiresco, não acha? Além do

mais, eu era culpado. E as senhoras envolvidas eram... bem, deliciosas, mas pouco

valiosas.

— Ah, para mim já chega dessa conversa, Kit. Não estamos aqui para discutir seu

sucesso com o sexo frágil. Ainda mais porque quase toda a Europa já sabe de seus

feitos na cama. O que precisamos falar é a respeito dessa sua idéia. Não pode estar

falando a sério, meu irmão! Pode perder tudo para essa mulher! E, depois daquela última

vez, certamente não...

— Depois da última vez, não tenho a menor intenção de perder para ela — Kit

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afirmou, enfático, tornando a levantar-se. E, colocando a mão sobre o braço do irmão,

completou: — Nada que você disser me fará mudar de idéia, Hugo. Não pode imaginar

como foi humilhante para mim vir até você para implorar-lhe dinheiro a fim de pagar

minhas dividas. Eu sabia que você teria de tirar o dinheiro do dote da moça que eu havia

comprometido. Consegue imaginar como me senti? Eu podia ter apenas vinte e dois anos

naquela época, porém, pode acreditar, foi terrível. Doeu muito e ainda dói. Eu estava a

um passo da desgraça total.

Hugo encarou-o, muito sério, depois seu olhar se desviou para o enorme retrato de

Emma, que pendia sobre a lareira. Estava calmo agora ao dizer:

— Eu entendo, Kit. Foi há muito tempo e todos já se esqueceram do que aconteceu.

E, se você desafiar essa mulher agora, novamente, vai fazer com que tudo venha à tona

outra vez. Esqueça...

— Não, não posso. Esperei por este momento durante cinco anos e pretendo vivê-lo

com muita intensidade. —Vendo que o irmão ia rebater suas palavras mais uma vez, Kit

ergueu a mão e prosseguiu: — Não se apresse em dizer que vou perder esse jogo.

Acredite, não tenho intenção de fazê-lo.

Hugo tentou sorrir. A longa cicatriz que trazia no lado esquerdo do rosto era

pouco visível, exceto quando sorria devagar, como agora.

— E como pretende garantir seu sucesso, meu irmão? — Hugo perguntou. — Será

que conseguiu tanta perícia assim no jogo enquanto esteve vivendo no Continente?

— Não. Mas aprendi a reconhecer todos os truques e manejos de um bom jogo.

Não precisarei trapacear para vencer. Joguei durante muitos anos, sim, mas aprendi

muito e minhas habilidades agora me garantem. Sabe que sempre tive boa sorte, não?

Nada mudou nisso. E agora tenho muito mais prática e experiência do que antes. Tenho

certeza de que vou ganhar, ainda mais porque ouvi dizer que lady Luce perdeu um pouco

da sua habilidade com as cartas.

Hugo apenas assentiu, pensativo. E Kit aproveitou sua concessão para continuar:

— Ótimo, então. Isso aumenta ainda mais minhas possibilidades de vitória. Lady

Luce tentou me arruinar no passado e teria conseguido se você não tivesse pago minhas

dívidas. Devo muito a você. E devo a ela também. Com a Stratton Magna como garantia,

vou levar essa mulher à sarjeta, você vai ver! E vou adorar apreciar sua queda.

Hugo agora negava de leve com a cabeça, sem conseguir entender como o irmão

conseguia nutrir tanto ódio por outro ser humano. E devia estar nutrindo-o havia anos.

Talvez, ponderou, se ele próprio tivesse passado tantos anos no Continente, também

tivesse voltado sem muito respeito para com a sociedade. Parecia que Kit aprendera que

as pessoas existiam a fim de serem usadas para a sua vantagem. Não via nada de bom

em aproximar-se de alguém, e isso poderia levá-lo ao fracasso...

O terceiro conde Luce andava pelo quarto da mãe, contrariado.

— Não pode prosseguir com isso — murmurou.

A condessa tomou um grande gole de xerez e saboreou-o antes de responder:

— Pelo amor de Deus, William, pare de se comportar como um elefante enjaulado!

O conde parou de andar de repente. Olhou para seu reflexo no grande espelho do

toucador, notando que, muito ao contrário, nada havia em sua aparência que pudesse ser

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comparado a um elefante. Como sua mãe podia soar tão ofensiva?, analisou.

Ela, por sua vez, encarava-o como se nada tivesse dito de mal. E a forma como o

olhava era a mesma que William detestava desde os cinco anos de idade. Agora, mais de

quarenta anos depois, ainda se sentia assim.

— A que se referiu quando me disse para não prosseguir? — indagou ela,

arrogante.

William pigarreou e abordou o assunto a respeito do qual sabia ainda exercer

alguma influência:

— Não pode continuar jogando com dinheiro que não possui, mãe. Deve...

Lady Luce levantou-se, ameaçadora. Mesmo muito mais baixa do que o filho, sua

presença impressionava pela corpulência.

— E quem vai me impedir? — perguntou em tom de ameaça.

— Eu vou — William replicou, mas evitando fitá-la nos olhos. — Não posso mais

continuar a pagar suas dívidas! Parece se esquecer de que tenho minha própria família

para sustentar!

— Ah, como eu poderia me esquecer?! Nunca vi tantos fedelhos gastando mais do

que têm! Você é ainda pior do que Clarence!

— Mãe! Como pode dizer isso?! Não é apropriado a damas mencionarem filhos

ilegítimos, embora o pai deles seja um grande duque! E a senhora sabe muito bem que

jamais fui infiel a Charlotte!

— Isso porque nenhuma outra mulher olharia para você! Mesmo que tivesse

dinheiro para atraí-las! E culpa inteiramente sua ter tido dez filhos! E não vejo por que

meu estilo de vida tenha de ser modificado para que você pague o que eles gastam!

Ainda mais porque não consegue manter seu...

— Mãe! Por favor, contenha-se!

Lady Luce olhou-o e sorriu com sarcasmo. Estava, obviamente, adorando o

embaraço que lhe causava. E William detestava isso também. Deu-lhe as costas e foi

até a janela; olhando para fora, seria mais fácil dizer-lhe o que teria de fazer.

— Meus filhos não são o principal assunto aqui — ponderou. — Meu pai deixou-lhe

muito dinheiro. Nem mesmo precisa gastar com esta casa. Tem condições de viver com

conforto e bem-estar, mas prefere ficar jogando, acreditando que eu sempre estarei

pronto a pagar o que fica devendo.

— Seu miserável! Você me deixou desamparada quando...

William voltou-se, enfurecido.

— Isso foi há cinco anos, mãe, e aconteceu apenas uma vez! Sabe muito bem que eu

não poderia levantar uma soma tão alta em dinheiro em tão pouco tempo! Além do mais,

a senhora se recuperou bem depressa quando ganhou aquela fortuna de Kit Stratton,

lembra-se? Nem precisou mais da minha ajuda financeira.

— Ah, não? Pois saiba, seu infeliz, que eu...

— Chega, mãe! Agora vai me ouvir. Vai aprender a viver com seus próprios meios.

Se me procurar mais uma vez para que eu pague suas dívidas de jogo, será a última, eu

prometo! E isso acabará com a sua reputação! Porque todos saberão que não tem mais

com quem contar!

— Não ousaria fazer tal coisa com sua mãe! Seu nome também seria...

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— Bobagem! Toda a sociedade saberá que fui indulgente demais durante anos com

as suas jogatinas! Pode ser considerada autêntica, diferente, mãe, mas a sociedade se

cansa de tudo, até do que chegou a apreciar um dia. Agora sou o chefe desta família e

pode ter certeza de que estou falando a sério!

Lady Luce aproximou-se e, com o dedo em riste, bateu contra o peito do filho,

desafiando-o:

— É mesmo, William? Então, entenda bem o que vou lhe dizer: vou continuar me

comportando como bem entender. Se quiser jogar, nada que diga vai me impedir! Posso

até jogar esta casa e deixar que as minhas dívidas fiquem sem serem pagas. E vou

apregoar para toda Londres que tenho o seu apoio, mas que, se você não pagar o que

devo, irei parar na sarjeta! O que acha que pensariam de você, então? E, se eu for

parara na prisão, o que é ainda pior, o que dirão de meu filho? O que seus amigos

elegantes diriam disso? E seus filhos? Que comentários terríveis se fariam a seu

respeito?

William engoliu em seco. Sua mãe vencia mais uma vez. Ela não era uma mulher,

avaliou; era uma bruxa.

— Muito bem, o que me diz? — Lady Luce insistiu.

— Mãe, precisa entender que não tenho condições de ficar pagando tantas dívidas.

— Agora, ele tentava convencê-la pela razão. — Nossos rendimentos têm se tornado

menores a cada ano depois da guerra. Se essa situação continuar, vou ter de começar a

vender nossas propriedades menores. Não pode querer que eu faça uma coisa dessas,

não é? Afinal, é tudo o que tenho para deixar a meus filhos.

Lady Luce ergueu as sobrancelhas.

— Vou pensar no assunto — prometeu.

A tática por ele usada parecia estar funcionando, William analisou. Sua mãe

acabara de lhe dar uma mínima concessão de entendimento.

— Talvez, se tivesse outros interesses, algo que a divertisse mais... — disse ainda.

— Sinto-me muito bem como estou.

— Eu sei, mãe, mas... olhe, o que acha de arranjar uma dama de companhia? Uma

moça, jovem, animada...

Lady Luce encarou-o com olhos fuzilantes. Mesmo assim, ele prosseguiu:

— Quer que eu procure alguém? Pode deixar que pagarei o salário dela. Seu

dinheiro continuará a seu dispor, como sempre.

Lady Luce parecia pensar. Depois, para total surpresa do filho, assentiu,

concordando:

—Acho que você tem razão. Seria bom se eu tivesse alguém jovem em minha

companhia.

William respirou aliviado e inclinou-se diante da mãe, numa saudação de despedida.

A dedicada amiga de sua esposa, lady Blaine, devia conhecer uma moça apropriada para

o que queria. Precisava sair dali depressa, antes que sua mãe mudasse de idéia. E já

estava junto à porta quando ela o chamou, acrescentando:

— Quero apenas que essa tal moça saiba jogar também. Na minha idade, não tenho

mais paciência para ensinar ninguém a participar de uma boa partida.

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— Srta. Beaumont?

Marina voltou-se, notando que quem a chamara era um criado de ar arrogante, que

parecia pouco satisfeito diante de suas roupas simples e de seu chapéu surrado. Ela,

porém, ergueu o queixo; podia ser pobre, mas era uma dama. E não permitiria que um

simples criado a tratasse mal.

Cerrou um pouco os olhos e encarou o rapaz, notando vagamente que era quase tão

alta quanto ele. E, com voz gelada, respondeu:

— Sim, sou a srta. Beaumont.

O criado não conseguiu sustentar-lhe o olhar firme e, depois de alguns segundos,

desviou o seu.

— Poderia vir comigo, senhorita? — indagou, indicando a carruagem que aguardava

para levar Marina à casa de sua patroa.

Manter aquele rapaz em seu devido lugar era uma vitória pequena, mas importante

para Marina. Se iria viver em casa de lady Luce, devia deixar bem claro desde o

princípio que os criados precisavam tratá-la com respeito.

— Por favor, cuide para que a minha bagagem seja transportada em segurança —

pediu, apontando para os dois baús velhos que continham tudo o que ela possuía.

O rapaz obedeceu com presteza. E, ao ouvir o suave "obrigada" de Marina, pareceu

surpreso. Mas se lembrou logo de que aquela moça mostrara-lhe seu lugar e apressou-se

em ajudá-la a entrar na carruagem.

Dentro do veículo, Marina sentiu-se aliviada. Finalmente chegara a Londres. E em

breve estaria em companhia de lady Luce, a senhora que contratara seus serviços para

sentir-se mais animada. Marina sabia que podia desempenhar tal papel muito bem. Viera

o caminho todo desde Yorkshire pensando a respeito. Fora uma excelente companhia

para sua avó em seus últimos anos de vida; lera muito para ela, tocara piano a fim de

entretê-la, cantara para alegrá-la, até mesmo jogara cartas com ela. Naqueles últimos

anos, sua avó mostrara-se uma senhora muito altiva, como se ainda recebesse os

privilégios de ser irmã de um visconde. Lady Luce devia ser da mesma forma, Marina

avaliou. Todas as velhas senhoras que viviam sozinhas deviam ser parecidas.

Marina cerrou os olhos, tentando não ouvir os ruídos da cidade grande, nem sentir

os diferentes cheiros que lhe invadiam as narinas. Nunca imaginara que Londres pudesse

ser tão barulhenta. Em casa, sempre estivera acostumada aos sons e aromas da vida no

campo, ao canto dos pássaros, ao sussurrar do vento nos campos. Nada como o que ouvia

agora. E, se tinha de passar a viver em Londres, precisava começar a acostumar-se com

tudo.

Assim decidida, olhou pela janela; não fazia idéia de onde se encontrava, mas, aos

poucos, as ruas pareciam ficar mais tranqüilas. As casas começavam a ficar maiores,

mais imponentes. Tudo muito maior e mais elegante do que jamais vira em Yorkshire.

Olhava ainda para os contornos das colunas de uma casa quando a carruagem parou

junto ao meio-fio, do outro lado da rua. Tinha chegado. O criado, mais formal e educado

agora, já havia saltado da boleia e abria a porta para ajudá-la a descer. Ao pisar no

caminho que seguia pelo jardim, Marina viu que a porta da frente da casa se abria e um

homem alto e magro, já idoso, apareceu. Era quase completamente calvo. Ele lhe

pareceu saído de um conto de fadas, embora, imaginou, devesse estar usando uma roupa

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colorida de feiticeiro em vez do elegante e austero terno preto.

— Bem-vinda a Londres, srta. Beaumont — saudou o mordomo, com voz sem

expressão. — A senhora a espera no andar superior, em sua sala particular. Queria me

acompanhar, por favor.

Marina seguiu-o, aflita. Não esperava encontrar sua patroa tão cedo assim. Usava

ainda roupas de viagem, precisava de tempo para arrumar-se melhor, ficar mais

apresentável. Se lady Luce a visse assim, iria mandá-la de volta de imediato. Por isso

parou ao pé da escada.

— Tenho certeza de que lady Luce não irá querer me ver assim, ainda com a poeira

da viagem... — argumentou. — Por favor, leve-me até um cômodo onde eu possa me lavar

e trocar de roupa primeiro. O criado da carruagem pode trazer minha bagagem.

O mordomo voltou-se e encarou-a, perplexo, por segundos. Por fim, aquiesceu:

— Como desejar, senhorita. Por aqui, sim? Charles! Traga imediatamente a

bagagem da srta. Beaumont até seus aposentos!

— Sim, sr. Tibbs — respondeu o rapaz, que aguardava ainda à porta.

Mais uma vez, Marina sentiu-se satisfeita por mostrar aos criados daquela casa

que ela também tinha certa autoridade, pelo menos no que se referia a si mesma.

CAPÍTULO II

Marina passou os olhos pelo pequeno quarto com pouca e simples mobília. Imaginava

que deveria sentir-se feliz por não ter sido banida para o sótão, junto com os outros

criados da casa. Como dama de companhia, não era nem parte da criadagem nem

nobreza, mas algo vagamente indeterminado entre as duas categorias. Tinha de manter-

se distante dos criados, e lady Luce e seus amigos e familiares manteriam distância

dela também; em resumo, estaria sempre sozinha.

O mordomo lhe informara, de maneira um tanto paternal, que haviam lhe separado

aquele quarto, no mesmo andar dos aposentos de lady Luce, porque, assim, ficaria mais

próxima em qualquer necessidade, e Marina compreendera que deveria estar à

disposição da velha senhora em tempo integral.

Deu de ombros. Afinal, o que mais poderia esperar? Sua avó também fora muito

exigente quanto a sua presença e companhia. Precisava apenas reunir todas as suas

reservas de paciência e compreensão e preparar-se para atender a todas as vontades

de mais uma senhora idosa.

Chegou a pensar que poderia fazer de conta que lady Luce era sua avó. E, enquanto

trocava de roupa, seguia imaginando como seria sua vida naquela casa. Precisava ser

paciente, educada e tolerar qualquer coisa; afinal, agora, estava sendo paga para fazer

companhia a uma senhora.

Sorriu ao pensar no dinheiro que poderia enviar a sua mãe, em seu primeiro

pagamento. A mãe lhe dissera que deveria usar o dinheiro para comprar roupas novas,

porém Marina achava que poderia continuar com as que possuía no momento. Uma dama

de companhia, afinal, não deveria precisar de muitos vestidos para acompanhar sua

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patroa a um passeio ou ficar com ela enquanto tricotava. Marina decidira contentar-se

com o que possuía; em primeiro lugar estava a obrigação para com sua família.

Olhou-se no pequeno espelho pendurado sobre a cômoda. E achou-se satisfatória

no vestido cinza, limpo, bem cuidado, embora ainda trazendo as marcas das dobras por

ter sido tirado havia pouco do baú. Mas, como tinha corte elegante, dava-lhe um ar

refinado. Achou-se mais uma dama do que uma criada, e sorriu. Passou uma escova nos

cabelos, fez duas tranças e prendeu-as ao alto da cabeça, num coque. E seu rosto,

lavado, estava fresco, saudável. Aos vinte e três anos, Marina era uma mulher bonita,

morena, de traços suaves. Podia não usar jóia nenhuma, mas a sua beleza lhe parecia

suficiente. Olhou para a mão direita, onde trazia o anel simples que lhe ficara depois da

morte do pai, e seu sorriso desapareceu. Olhou-se mais uma vez no espelho, sabendo

que sua imagem era a de uma mulher discreta e educada. Lady Luce iria gostar. Não

teria motivo algum para mandá-la de volta a Yorkshire, e Marina sabia que isso não

poderia acontecer de forma nenhuma, pois sua mãe precisava de cada centavo que

ganharia naquele emprego.

Respirou fundo, pronta para encontrar a senhora com a qual poderia trabalhar

meses, anos até. Ao sair para o corredor, viu Tibbs, o mordomo, parado a pouca

distância, a sua espera.

— Essa porta é a dos aposentos de lady Luce — indicou ele mostrando uma porta à

esquerda das escadas. E continuou explicando: — Ninguém mais dorme neste andar, a

não ser quando a nossa patroa recebe hóspedes. Muito embora, agora, haja a senhorita.

— O conde não se hospeda aqui quando está em Londres? — Marina quis saber.

— Não, senhorita. A senhora e seu filho... bem... lorde William tem sua própria

casa na cidade. E sempre fica lá.

— Entendo. — Era compreensível que um homem adulto não quisesse ficar em

companhia da mãe, mesmo que fosse por um ou dois dias, Marina analisou consigo

mesma. Tibbs começou a dizer algo, mas se interrompeu, talvez para evitar palavras que

pudessem ser consideradas comentários impróprios para um criado. Porém Marina ficou

intrigada com o relacionamento do conde com a mãe. Talvez ela fosse exigente demais...

Senhoras idosas costumavam ser. E a paciência de um cavalheiro poderia não ser muito

grande.

O mordomo a conduziu até uma sala na parte da frente da casa. Com um gesto

largo, ele abriu a porta e anunciou, em bom tom:

— A srta. Beaumont, senhora.

Marina ouviu a porta se fechando logo atrás de si. Porém o cômodo em que se

encontrava dava a impressão de estar vazio.

— Não fique aí parada, menina — ela ouviu uma voz autoritária dizer-lhe, vinda das

profundezas de uma poltrona voltada para a janela da rua. — Venha até onde eu possa

vê-la!

Marina obedeceu, andando um tanto ao redor, para poder ficar diante de quem

estava na poltrona. Viu a figura praticamente afundada dentro dela, vestida de forma

luxuosa, exuberante até, mas com roupas já fora de moda, nas quais a abundância de

tecido parecia proliferar e as rendas praticamente cobriam toda a parte visível do

pano. Lady Luce usava uma peruca, coisa que havia muito ficara ultrapassada. Marina

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notou que, mesmo com o rosto enrugado devido aos muitos anos, a senhora havia sido

bastante bonita na juventude; e agora percebia que ela mais se parecia com uma fruta

murcha e frágil, embora ainda corpulenta.

— Nossa, me mandaram uma vassoura! — exclamou lady Luce, fazendo Marina

corar.

Sempre tinha sido um certo problema para Marina a altura que herdara de seu pai;

e, magra como era, dava a impressão de ser mais alta.

— Como está, senhora? — cumprimentou com calma, tentando sorrir mesmo diante

da rudeza com que fora recebida.

Lady Luce não respondeu de pronto. Olhava-a de cima a baixo com olhos

perspicazes.

— Imaginei que um membro da família Blaine fosse melhor apanhado — comentou

ela, sem preâmbulos. — Eu não daria um vestido assim nem a uma criada!

Aquele não era, definitivamente, um bom começo, Marina ponderou. Lady Luce

precisava saber naquele momento que ela não era da família Blaine, Marina pensou; e

que não podia vestir-se melhor. Tinha de falar a verdade, mesmo que isso fizesse com

que a velha senhora a mandasse de volta a Yorkshire.

— Acho que deve ter havido algum mal-entendido, senhora — disse. — Meu nome é

Beaumont, não Blaine. Tenho apenas um distante parentesco, por parte de minha avó,

com a família do visconde, que, porém, nunca foi reconhecida por eles, não depois de seu

casamento.

— Sei... — murmurou lady Luce, não parecendo muito satisfeita. — Mas sua mãe e o

novo visconde são primos, não é verdade?

— Sim. Mas não...

— Então, você é uma Blaine. O pai do antigo visconde era um tirano idiota, porém

isso não altera a linhagem de sangue, não para mim. Sua avó era filha de um visconde e

irmã do próximo. Portanto, sem dúvida, você é uma Blaine.

Ao que parecia, seria muito difícil argumentar com lady Luce, Marina analisou.

Mesmo assim, precisava tentar, em especial num assunto tão delicado.

— Perdoe-me, senhora — começou de novo —, mas deve entender que os Beaumont

jamais foram reconhecidos pela família do visconde, nem mesmo quando o irmão de

minha avó recebeu o título na linha sucessória.

— Isso aconteceu porque ele era exatamente como o pai — lady Luce rebateu. — O

que era de se esperar, já que todos os homens da família Blaine... — ela se interrompeu

a fim de olhar com mais atenção para o rosto de Marina, depois acrescentou: — Percebo

que você nada sabe sobre suas ligações aristocráticas, mocinha. Bem, talvez um dia eu

possa explicá-las a você. Mas há assuntos mais interessantes no momento. Para

começar, temos de fazer alguma coisa quanto a essa monstruosidade que você está

vestindo.

Marina percebia que teria também de defender seu guarda-roupa, porém lady Luce

estava tomando nas mãos as rédeas de sua aparência como tomara as de sua linhagem

de sangue.

— O único destino desse vestido deve ser uma fogueira — prosseguia a velha

senhora. — Ou, pelo menos, uma casa de caridade. Embora eu ache que, mesmo lá, as

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mulheres torceriam o nariz ao vê-lo. Não tem nada melhor para vestir, menina?

— Tenho um vestido de noite, senhora. Mas os outros que possuo são semelhantes

a este. Todo o dinheiro extra deve ser usado na educação de meu irmão, entende?

Harry está em Oxford. E pretende ser padre.

— Não aprovo que se gaste todo o dinheiro com os meninos, sabia? Eles são

educados e, depois, o que acontece com quem os educou? Hein? Eles são capazes de

tirar cada centavo dos pais e abandoná-los em seguida! Há sempre no que gastar.

Propriedades, mulheres, libertinagem!

— Mas Harry não...

— Seu irmão talvez não. Não sei nada sobre ele, afinal. Pode até ser um rapaz

direito, porém os filhos das famílias nobres... — Lady Luce meneou a cabeça em

desaprovação. Sua mensagem era clara: os filhos das famílias nobres não mereciam

confiança no que se referia a dinheiro. Talvez estivesse falando do próprio filho... E

continuou sem vacilar: — Uma dama tem de ser independente o suficiente para levar sua

própria vida da forma que quiser. Em especial quando é viúva.

O modo pouco ortodoxo com que lady Luce vivia estava começando a ficar claro

para Marina agora.

— É, mocinha, nós damos um herdeiro a eles e nosso dever está cumprido! —

continuou lady Luce. — E o mínimo que um marido pode fazer em troca é fornecer-nos

uma viuvez confortável. Mas os maridos parecem achar que seus herdeiros é que devem

ficar com tudo, cuidar de tudo, inclusive da mãe! Ei, menina, posso saber por que está

rindo?!

Marina não havia percebido que começara a sorrir diante da defesa da velha

senhora de seus próprios interesses.

— Desculpe-me, senhora — pediu de imediato. — Mas eu estava imaginando que a

senhora me faz lembrar minha própria avó. E eu sinto tanta falta dela!

— Bobagem! Estava pensando que eu falo coisas sem sentido, isso sim! E deve

achar que posso ser perdoada pelo que digo porque tenho idade avançada. Não é isso?

— Bem, sim, senhora, eu admito. Mas vejo que seus argumentos não devem ser

relevados. Parece-me uma mulher de opinião, uma oponente forte e firme para homens e

mulheres, e sua idade avançada nada tem a ver com isso.

Lady Luce ergueu as sobrancelhas, encarando-a. E, por um segundo, Marina

imaginou que não devia ter sido tão franca. A velha senhora poderia chamar o mordomo

e despachá-la de volta a Yorkshire sem discussão. Mas nada disso aconteceu. Lady Luce

olhou-a ainda por alguns segundos, depois sorriu de leve e comentou:

— É, acho que você serve. Assim que tivermos feito algo quanto ao seu guarda-

roupa, é claro. Vou tratar disso amanhã mesmo. Não deve ser vista como está. Dê uma

volta.

Obediente, Marina girou o corpo diante dela.

— Mais uma vez — ordenou lady Luce. Marina tornou a obedecer.

— Muito bem, sente-se, menina. Estou ficando com o pescoço duro de tanto olhar

para cima.

Marina sorriu e ocupou uma cadeira próxima.

— Muito bem, então, srta. Beaumont, fale-me sobre você. — A velha senhora

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parecia satisfeita por ver que, sentada, Marina ficava da sua altura. — Qual é seu

nome?

Surpresa por ver que ela nem mesmo sabia o nome de quem contratava, Marina

respondeu:

— Marina.

— Marina... Nome nada comum...

— De fato, senhora. Foi minha avó quem me deu este nome.

— E ela era estrangeira? — O tom de voz de lady Luce traía seu aborrecimento

pelo fato.

— Sim, senhora. Porém nunca a conheci. A família de meu pai serviu o Exército

durante anos. As mulheres seguiam os tambores também.

— Mesmo?! Sua mãe também? — Era claro que ela não aprovava tal

comportamento.

— Sim, senhora. Mas depois que a Paz de Amiens foi assinada, meu pai achou

melhor que sua esposa permanecesse na Inglaterra, já que eu e meu irmão éramos

pequenos. E nos estabelecemos em Yorkshire.

— E seu pai?

— Bem, ele era capitão no 95º Regimento. Morreu há nove anos, na batalha de

Ciudad Rodrigo, junto com meu tio.

Lady Luce assentiu devagar. Marina imaginava se ela também teria perdido entes

queridos em guerras. Muitas famílias nobres tinham.

— Mas, e sua mãe? Ele a deixou com algum rendimento? — lady Luce insistiu,

mesmo num assunto tão íntimo.

— Não, senhora. Minha mãe teve de dar aulas para garantir nossa renda. Ela tem

uma educação esmerada, seu pai foi um grande pensador e educou a filha da mesma

forma que educou o filho. Porém, diferentemente de minha mãe, meu tio nunca apreciou

os estudos. Adorava o Exército desde pequeno. Foi uma grande decepção para meu avô.

— Sei, sei. E quem era ele, esse grande pensador que foi seu avô?

— Bem, ele conheceu minha avó quando era secretario particular do visconde

Blaine, acredito.

De repente, um sorriso abriu-se nos lábios de lady Luce.

—E ele era excepcionalmente bonito também, não? — indagou ela. — Muito alto,

com traços refinados, cabelos negros e uma voz maravilhosa.

— Bem... sim. Minha avó costumava descrevê-lo assim. Chegou a conhecê-lo,

senhora?

Lady Luce continuou a sorrir, um sorriso um tanto secreto, e um olhar distante

divagava em seu semblante. Até que disse:

— Sim, eu conheci James Langley. Lembro de que todas as garotas eram loucas por

ele. Era o homem mais bonito que já tínhamos visto, mas tão... impróprio para qualquer

uma... — De repente, ela olhou para Marina como se tentasse ver alguma referência do

homem de quem falava. — Sua avó se deixou seduzir pelo belo rosto de James, não foi?

Marina corou, pois não estava acostumada a uma linguagem tão aberta com sua

mãe, sempre tão formal e fechada. Mas assentiu mesmo assim. E lady Luce insistiu:

— E, como resultado, o pai dela a deserdou, não foi?

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Mais uma vez, Marina assentiu.

— É exatamente o que eu poderia esperar dessa família. Não concordo com um

comportamento assim. Nunca concordei. Se eu tivesse tido uma filha...

A porta se abriu e o mordomo apareceu, fazendo uma breve mesura para anunciar:

— Lorde William está no hall, senhora, e pede-lhe que o deixe conversar por alguns

minutos com a srta. Beaumont.

— Ah, ele pede, é?! — ironizou a velha senhora. Marina estava surpresa. O que o

filho de lady Luce poderia querer lhe dizer?

— Então, acho que devo ser magnânima e permitir — declarou lady Luce. —

Conduza a srta. Beaumont até ele, Tibbs.

Marina seguiu o mordomo à biblioteca, no andar inferior. Talvez o conde quisesse

dar uma olhada na dama de companhia de sua mãe para saber se ela era apropriada ou

não, imaginou. E se ele não a aprovasse?, indagou-se. Tendo conhecido sua patroa,

achava pouco provável que qualquer opinião do filho pudesse fazer lady Luce mudar de

idéia...

O conde estava parado diante da janela, olhando para a rua. Diferente da mãe,

vestia-se na última moda, embora a calça justa não lhe caísse muito bem. Ele esperou

que a porta se fechasse para só então voltar-se e observar Marina, e não fez o menor

gesto para cumprimentá-la.

Ela compreendia. Para o conde, não passava de uma criada. Inclinou-se com

delicadeza, esperando que ele falasse primeiro.

Como a mãe fizera, William passou os olhos por ela, analisando cada detalhe.

Diante de olhar tão crítico, Marina apenas ergueu o queixo, altiva. Afinal, lady Luce não

insistira tanto no fato de ela ser uma Blaine?

— Srta. Beaumont — começou o conde, em tom afetado —, finalmente chegou.

Imaginamos que viesse mais cedo.

Marina nem tentou desculpar-se pelo atraso. Talvez o conde estivesse acostumado

a viajar no melhor meio de transporte disponível, mas ela não podia dar-se a esse luxo.

Continuou olhando-o em silêncio.

— No entanto, não é este o motivo da minha vinda até aqui — ele prosseguiu,

formal. — Temos algo mais importante a discutir.

Como Marina se mostrasse surpresa diante de tais palavras, William esclareceu:

— Imagino que lady Blaine não a tenha colocado a par das minhas exigências.

— Não, de fato, ela nada disse. Escreveu apenas que...

Era evidente que o conde não tinha interesse no que Marina ia dizer, e a

interrompeu:

— Isso não importa, senhorita. O que importa são as instruções que vou lhe passar.

Seu papel nesta casa será o de impedir que minha mãe faça extravagâncias tolas. Já

deve ter ouvido falar sobre o gosto que ela tem pelo jogo.

— Não, senhor. Nada sei sobre o estilo de vida de sua mãe.

O conde parecia impaciente.

— Muito bem. Então, os fatos são os seguintes: minha mãe adora jogar. E já

chegou a apostar mais do que poderia pagar. E, assim, seu papel aqui, srta. Beaumont, é

impedir que isso volte a acontecer.

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Marina engoliu em seco. Como poderia garantir tal coisa?! O que lady Luce poderia

pensar? Ela saberia sobre o que seu filho estava fazendo?

— Não entendo, senhor... — começou, e, mais uma vez, ele a interrompeu:

— É bem simples. Estou lhe dando este emprego para que impeça minha mãe de

jogar. Como vai fazê-lo, cabe à senhorita.

— Mas eu imaginei que havia sido empregada pela condessa...

— Nas aparências, sim, porém sou eu quem vai lhe pagar. Portanto sou eu seu

empregador de fato. E fará o que mandei.

— E... sua mãe concordou com esse... acordo?

O conde dava sinais de começar a ficar irritado.

— Não, e nem deve saber. Não lhe diga nada. Se o fizer, será demitida

sumariamente.

Marina estava pálida como uma folha de papel. Notou que lorde Luce sorria de leve

ao prosseguir:

— Lembre-se, srta. Beaumont, que sou eu, e não minha mãe, quem lhe paga o

salário. E é a mim que deve dar satisfações se falhar na tarefa que estou lhe dando.

Isso é tudo. Pode ir agora.

Nada mais havia a ser dito. Marina inclinou-se lentamente e deixou a biblioteca.

Sentia seu coração bater disparado; compreendia, por fim, por que lady Blaine havia

escrito aquela carta sucinta, fria, a sua mãe. Marina chegara a imaginar por que aquela

parenta distante teria se lembrado dela depois de tantos anos de afastamento, para

oferecer uma posição de certo conforto. Mas, como o orgulho era um luxo que os

Beaumont não podiam ter, Marina aceitara o emprego. E agora podia ver que acabara de

cair numa armadilha.

Estava sozinha em Londres, sem ninguém a quem recorrer para, pelo menos, pedir

um conselho. Se fosse leal a lady Luce, o conde a demitiria. Se agisse como ele queria,

lady Luce poderia desconfiar e mandá-la embora. Depois do dinheiro que gastara para

chegar a Londres, acabaria sendo apenas um fardo para sua mãe, se tudo desse errado.

E sua única chance de ajudar sua família estaria arruinada.

Respirou fundo, pensando. Não podia deixar-se abater, analisou. Precisava fazer o

que era seu dever. De alguma forma, tinha de encontrar um meio de satisfazer tanto o

conde quanto sua mãe. E assim ganhar o dinheiro necessário para enviar para a sua casa

e evitar que a mãe continuasse na penúria em que se encontrava. Era o que precisava

fazer. E era o que faria.

CAPÍTULO III

— Meu bom Deus, achei que havia .dito que possui um vestido de noite! É esse?!

Rígida, Marina postava-se diante da condessa, enquanto esta, após a exclamação

franca e direta, olhava cada detalhe de sua roupa. Era um vestido simples, mas limpo, de

corte tradicional e, diferente dos outros vestidos de Marina, não apresentava remendo

algum.

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Mas a condessa estava profundamente aborrecida. Levantou-se de sua poltrona e

ajeitou as vastas saias, negando devagar com a cabeça, em desaprovação.

— Sim, este é meu melhor vestido — Marina disse, por fim.

Lady Luce produziu um estranho som com a boca, que poderia ser tomado por uma

risada abafada. Depois disse:

—Vamos cuidar do seu guarda-roupa amanhã mesmo. Quanto a esta noite... Bem, eu

não deveria levá-la a Méchante, mas... — E, voltando-se para a porta, acrescentou: — É.

Você é de fato o que eu poderia esperar de William: uma garota aprumada demais, séria

demais.

— Senhora, por favor, quem é Méchante? — Marina ousou perguntar.

Lady Luce voltou-se para explicar:

— É uma dama... digamos, que uma moça direita não deveria conhecer. É filha de

uma mulher muito liberada e sua história é... colorida, digamos assim. A maior parte de

seus convidados à noite, para o jogo de cartas, é, obviamente, masculina. Quanto às

mulheres que se podem encontrar por lá... Bem, seria melhor você sempre dizer que

jamais pousou seus olhos em ninguém que esteja naquela casa. Portanto, minha cara,

tente ser... indiferente, passar despercebida. — Ela olhou mais uma vez para Marina, de

cima a baixo, e completou: — É, com esse vestido, não seria mesmo tão difícil que não a

percebessem.

A porta se abriu e Tibbs apareceu. Não havia dúvidas de que ele ouvira tudo o que

fora dito ali dentro. Na manhã seguinte, toda a criadagem já saberia o que lady Luce

dissera a respeito do vestido de Marina. Mas não havia o que fazer, avaliou ela,

seguindo lady Luce naquela estranha saída noturna até a casa de jogos acerca da qual

fora avisada não ser tão bem-afamada assim.

Na carruagem, ao lado de sua patroa, Marina pensava no nome da dona da casa

para onde seguiam. Sabia que, em francês, tal nome significava "má", "maliciosa" ou algo

do gênero. E, se o passado de tal dama era, como dissera a condessa, tão colorido assim,

ela devia merecer seu nome.

Tensa, Marina pensava no primeiro teste a que estava sendo submetida. Tão cedo...

Meditava no que fazer ou dizer para evitar que a condessa fosse jogar, mas nada lhe

ocorria. Se dissesse estar passando mal, lady Luce simplesmente a mandaria de volta

para casa; se interviesse no jogo, poderia ser demitida. E, se traísse as instruções do

conde, lady Luce seria capaz de gastar tudo o que possuía e um pouco mais, pois deixara

claro que desprezava o filho e tudo faria para aborrecê-lo.

— Tenha calma, menina — ouviu a condessa aconselhá-la. — Méchante não vai

comê-la viva. Talvez você até se divirta e se livre dessa cara de segunda-feira. Você

sabe jogar, não sabe?

— Sim, sei, senhora. — O pai de Marina se deleitara muitas vezes em ensiná-la a

jogar, mas ela jamais tivera oportunidade para saber se herdara dele a sorte, além da

habilidade com as cartas. E ele perdera muito dinheiro, o que causara a pobreza da

família, por isso Marina apressou-se em dizer: — Sabe, não gosto muito de jogar

porque...

— Isso não vem ao caso agora — cortou a condessa. — Logo vai descobrir que todo

mundo joga, tendo ou não condições para tanto. Imagino que não tenha dinheiro algum...

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— Acho que jogar é errado, senhora, tenha-se ou não dinheiro. Porque o jogo pode

arruinar muitas vidas.

Lady Luce apenas a olhou por instantes, em silêncio, e nada mais disse até

chegarem a seu destino. Lá, antes de descerem, aconselhou:

— Não dê sua opinião puritana sobre o jogo a nenhuma pessoa da casa onde vamos

entrar. Não faria bem a ninguém; ao contrário, faria mal apenas a você mesma.

Calada e obediente, Marina seguiu a condessa pela entrada muito iluminada da casa

extravagante de lady Méchante.

— Mas se não é lady Luce! — alguém exclamou, fazendo a condessa parar de

repente e Marina quase colidir com suas costas.

Quando ergueu os olhos, Marina viu que sua patroa estava olhando com frieza para

o mais belo homem que já aparecera diante de seus olhos. Ele se colocara entre lady

Luce e a escadaria do hall, e sua presença parecia encher o ambiente. Bem alto e

moreno, com feições perfeitas, muito bem vestido, ele parecia à vontade naquele lugar.

— É um grande prazer encontrá-la novamente, senhora — continuou o cavalheiro

em questão, com um tom desagradável na voz que Marina logo percebeu. Um sorriso

maldoso curvou-lhe os lábios conforme ele olhava para a dama cujo caminho bloqueava.

— Já faz... cinco anos, não? Eu não via a hora de reencontrá-la. Ainda joga, pelo que

sei...

— Sim, ainda jogo, sr. Stratton, pode ter certeza disso — lady Luce respondeu,

fria. — Mas não imaginei que Méchante estivesse assim tão carente de convidados para

aceitar a presença de qualquer um em seus salões. Imagino que eu deva ter mais

cuidado ao aceitar certos convites... — Com isso, a velha senhora avançou, obrigando o

rapaz a se afastar, o que ele fez com elegância, enquanto olhava para a senhora que

começava a subir os degraus até o andar superior, onde ficavam as salas de jogos. E ele

não lançou um olhar sequer a Marina; praticamente, não a viu.

Ao chegar ao alto da escadaria, lady Luce estava pálida de raiva. Seus lábios

estavam-apertados, como para evitar que dissesse impropérios.

— Senhora... — Marina adiantou-se, mas ela logo a interrompeu:

— Fique longe de Kit Stratton, menina. Ele é perigoso. Mais do que pode imaginar.

Naquele momento, uma loira voluptuosa apareceu, sorrindo, e lady Luce voltou-se

para saudá-la.

— Como está, Méchante?

Marina jamais vira uma mulher vestida de maneira tão sensual. E teve de desviar o

olhar para não parecer tola. Notara, porém, o sorriso aberto e bonito da loira, cujos

olhos muito verdes pareciam faiscar. Havia algo de felino naquele olhar, Marina avaliou.

Muitas perguntas começavam a aparecer em sua mente. Quem seria o belo homem

do hall? Seu nome lhe parecia familiar, mas não conseguia identificá-lo. O que haveria

entre ele e lady Luce? Animosidade, com certeza, mas... por quê?

Olhou para a sua patroa e viu que ela já seguia, com sua anfitriã, por entre os

convidados da casa. Marina forçou-se a pensar em assuntos mais práticos. Tinha de

parar de imaginar onde estaria o elegante sr. Stratton. Precisava misturar-se aos

convidados, como a condessa lhe dissera. Olhou para as enormes cortinas de veludo e

imaginou que, se ficasse bem junto delas, a luz dos candelabros a fariam parecer não

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mais do que uma sombra.

Sozinha e segura naquela espécie de esconderijo, ela apenas observava. Quase

todos os convidados eram homens. Soldados em uniformes escarlates, alguns bem

idosos, outros tão jovens que mal tinham barba. Marina lembrou-se de seu irmão, Harry,

e de quanto ele se orgulhara ao fazer sua primeira barba. Dentre os civis, poucos

estavam vestidos dentro da moda; a maioria a fazia lembrar-se de lady Luce, pareciam

todos bem nutridos e ricos, porém, na maioria, a caminho do túmulo. Quanto às

mulheres, bem poucas, três, na verdade, além de lady Luce e lady Méchante, já não

eram tão jovens. Usavam vestidos elegantes, mas já fora de moda, e duas delas tinham

o rosto bem pintado. Lady Luce tinha razão: aquela não era uma casa que se pudesse

recomendar a uma moça... Mas, então... por que insistira para que ela a acompanhasse?

O barulho naquele ambiente era quase ensurdecedor. Parecia que todos os

cavalheiros tinham bebido muito e falavam mais alto do que o normal para serem

ouvidos. Marina encolhia-se por entre as dobras da cortina, desejando jamais ter vindo

àquele lugar.

Passou os olhos ao redor e notou que sua patroa e lady Méchante haviam

desaparecido. Talvez estivessem numa sala ao lado e ela não sabia se deveria seguir os

passos de lady Luce. Hesitou, mas apenas por um instante. Era seu dever proteger a

condessa do vício de jogar e ela bem podia já estar sentada a uma mesa de carteado em

outro aposento...

Endireitando os ombros, Marina encheu-se de coragem e deixou a proteção da

cortina.

— Muito bem — disse uma voz masculina logo a seu lado, provocando-lhe um

sobressalto.

Ela sentiu o cheiro da bebida e do suor antes mesmo de se voltar para ver de quem

se tratava. De onde aquele homem aparecera? E ele estava praticamente sobre ela! Um

velho de aparência nojenta, embriagado, que a olhava com volúpia.

Na intenção de afastar-se quanto antes, Marina deu um passo à frente, porém o

sujeito a agarrou por um braço.

— Calma, mocinha! — disse ele, com um bafo horrível. — Quem é você?

— Meu nome não lhe interessa, senhor. — Ela tentava soltar-se, em vão. — Queira,

por favor, deixar-me ir.

Os olhos do homem a fitavam com interesse renovado.

— Mas quanta arrogância, mocinha! Não sei por quê... Com a sua aparência, deveria

dar graças a Deus que um homem a olhe! Não deve valer nem algumas moedas velhas.

Marina prendeu a respiração, percebendo o que ele imaginava que ela fosse. Com

um puxão, ela se soltou e seguiu por entre as pessoas até o outro lado do salão, passou

por uma porta, na esperança de encontrar a condessa no cômodo contíguo.

Decepcionada, viu que a sala tinha apenas algumas mesas de carteado, nas quais se

reuniam pequenos grupos de cavalheiros. Na mais próxima, um dos homens, claramente

perturbado por sua chegada abrupta, fez-lhe um sinal para que se mantivesse em

silêncio.

Marina assentiu e caminhou devagar, tentando manter a calma; seguiu para o outro

lado da sala, onde havia uma outra porta. Passou por ela, para mais uma sala de jogos,

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onde havia uma mesa de dados com convidados barulhentos ao seu redor; no lado

esquerdo do lugar, havia uma roleta, junto à qual se espremiam outros convidados, entre

os quais mais duas mulheres.

De repente, Marina sentiu-se num pesadelo e desejou poder escapar dele. Mas não

sabia para onde lady Luce havia seguido...

Kit observou com atenção lady Luce subir a escadaria. Nos cinco últimos anos, ela

não mudara tanto assim, notou. Continuava uma mulher rude. Talvez tivesse desconfiado

de suas intenções; devia saber da mudança em sua vida. Damas de sociedade como ela

sabiam de tudo que acontecia.

Para onde ela estaria indo?, Kit se perguntava. Ousaria jogar sabendo que ele

estava ali, que podia arriscar a sorte com ela novamente?

É claro que ela iria jogar! Lady Luce podia ser terrível, mas não era covarde. Podia

até tentar evitar Kit, porém diante de um desafio, não recuaria. Tudo o que ele

precisava fazer era esperar o momento certo. Um dia, ele apareceria. Talvez, quem

sabe, nessa mesma noite...

Com um leve sorriso de satisfação, Kit subiu também a escada. Mas não tomou o

mesmo caminho que sua arquiinimiga. Aprendera, havia muito, todos os caminhos da casa

de Méchante. Sabia onde estavam ocorrendo os jogos mais altos e, como um caçador

bem treinado, sabia que a melhor tática era esconder-se e esperar por sua presa.

Marina estava pasma. Passara de cômodo em cômodo, encontrando jogadores

bêbados que mais pareciam polvos, cheios de mãos ousadas. Desviara-se de todos e

custara chegar de volta ao andar inferior. Mas ainda não vira sinal de sua patroa.

Do outro lado do saguão, uma porta se abriu e uma voz anunciou:

— Ah, então você está aqui! Não pensa que me engana fingindo que vai fugir.

Aprendi os truques do seu negócio antes mesmo de você nascer! E sei exatamente o que

tem em mente!

Marina voltou-se, viu o homem que avançava em sua direção e encolheu-se. Sentiu a

maçaneta de uma porta bater contra seu quadril e entrou depressa no cômodo que

aparecia as suas costas, e em seguida se apoiou na porta, aliviada.

Mais uma sala de jogos, percebeu, olhando ao redor. Menor do que as outras, mas

bem mais elegante. Duas mesas ovais estavam lado a lado e, a cada uma delas, um grupo

de senhores jogava em silêncio absoluto. Marina notou as pilhas e moedas, fichas e

notas sobre o tecido das mesas. Os jogadores, ali, faziam apostas muito altas.

Marina ainda não conseguia ver lady Luce. Talvez ela não estivesse jogando,

animou-se. À mesa bem à sua frente, lady Méchante fazia as vezes da banca.

Marina deu um passo à frente, mas um ligeiro sinal da dona da casa a fez deter-se;

não era bem-vinda ali. O que devia fazer?, indagou-se.

Logo atrás de si, alguém tentava abrir a porta. E, segundos depois, ela foi

empurrada contra suas costas, fazendo-a curvar-se para frente.

Lady Méchante franziu a testa, aborrecida pela distração, e fez um sinal para que

Marina deixasse a sala de imediato. E ela iria obedecer, mas parou de pronto quando

viu, à porta, o bêbado que a segurara antes. E ele a olhava, sorrindo maldosamente.

A voz de lady Luce, então, chegou aos ouvidos de Marina, num grito de alegria e

triunfo. Então, ela estava jogando na sala ao lado!, concluiu. E voltou-se tão de repente

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que colidiu com um homem que acabava de se levantar da mesa de jogo.

Ao perder o equilíbrio, Marina quase caiu, porém dois braços fortes a ampararam e

ela percebeu-se diante de um peito largo, no meio do qual um alfinete de gravata em

forma de águia brilhava seu esplendor em ouro. Sentiu o calor que vinha do corpo

daquele estranho e ergueu os olhos para seu rosto. Era Kit Stratton, e ele a olhava com

a expressão mais severa que ela já vira.

CAPÍTULO IV

Kit fez com que a moça recuperasse seu equilíbrio, sem poder deixar de pensar

que aquele não era lugar para uma garota como ela. Calada, simplória, devia estar no

lugar errado sem nem ao mesmo saber, avaliou.

E seu olhar se desviou para o homem bêbado que ainda se encontrava recostado na

porta. Seus olhos avermelhados tinham toda a característica de um predador.

Kit baixou os olhos para a moça que ele ainda segurava e imaginou o que o bêbado

teria visto nela. Nada atraente, nem valia a pena ser perseguida, ponderou, a não ser, é

claro, para quebrar aquele estranho ar de "não-me-toque" que parecia haver ao redor

dela. É, devia ser isso, pensou. Devia ser divertido ver como aquela garota simplória iria

lidar com seu provável conquistador.

O bêbado deu um passo em direção a ambos.

— Obrigado por segurar minha mulher — resmungou ele. — Mas eu a vi primeiro.

Kit meneou a cabeça diante daquela afronta. Mesmo bêbado, o sujeito era

impertinente. Rodeou Marina e se pôs entre ela e o sujeito, baixando a cabeça para

colocá-la na mesma altura do outro. E, forçando-se a ignorar o terrível odor que havia

na respiração dele, disse:

— Deve estar fora do seu ambiente, meu amigo. E acho sua presença ofensiva. Vá

refrescar essa cabeça lá fora.

O homem encarou-o. Parecia que palavras firmes não eram suficientes para ele.

Então, Kit segurou-o com habilidade, fazendo-o dar meia-volta, e arremessou-o para

fora com um empurrão violento. Depois sorriu ao ouvir o ruído do corpo pesado cair

sobre a madeira do chão. E fechou a porta, sabendo que o sujeito não voltaria.

Quando se virou, Kit percebeu que Marina o olhava. E, dessa vez, notou que não

havia nada de simplório nela.

— Meus bons modos fazem com que eu lhe agradeça, senhor — disse Marina,

distante. — Mas devo dizer que pretendo fingir não ter visto uma demonstração tão

rude. — E, assim dizendo, ela se voltou e afastou-se em direção à outra sala.

Kit olhou-a, notando que ela caminhava com dignidade, como uma nobre. E achou

isso muito estranho. Sentiu uma vontade repentina de rir. Pela primeira vez, salvara

uma donzela em perigo, em vez de avançar sobre ela. E sua recompensa fora apenas um

olhar de desprezo... Devia saber, pensou. As mulheres eram todas iguais. Da próxima

vez, se houvesse uma próxima vez, ela se arrependeria de ter cruzado o caminho de Kit

Stratton.

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Aliviada por estar longe dele, Marina ponderava sobre o relacionamento daquele

homem com sua patroa. Eram inimigos. E ele era perigoso, ela fora avisada. Por baixo

dos bons modos, ele devia ser um selvagem. Mas estava satisfeita com a forma que se

comportara diante dele: como uma dama.

Lady Luce jogava à mesa seguinte. Marina sentiu seu coração se apertar quando viu

que sua patroa estava com a banca. E aquele era um jogo sério. Jogavam faraó. Um jogo

que Marina detestava acima de todos os outros, porque fora o que arruinara seu pai. Um

jogo que podia ter apostas e perdas terrivelmente altas. Os homens continuavam

jogando, na esperança de reaver o que haviam perdido, e acabavam sem mais nada para

apostar. O faraó tinha levado muita gente à ruína. Teria acabado com seu pai se ele

tivesse sobrevivido à guerra, Marina sabia muito bem.

Ninguém ali parecia ter percebido que ela entrara no aposento. Recostou-se numa

parede próxima à mesa, recuperando o fôlego que ainda estava instável. Tentava

controlar-se, pensar que sua patroa não jogaria além de suas posses. Além do mais, com

a banca, ela teria mais chances a seu favor. Podia, até, deixar a mesa como ganhadora.

Tal pensamento acalmou um pouco Marina.

Havia mais cinco jogadores além de lady Luce àquela mesa. Todos eram homens.

Com as costas voltadas para Marina, lady Luce recolhia algumas fichas da mesa; seu

grito de triunfo parecia ter fundamento a julgar pela quantidade de fichas que possuía

agora. E embaralhava as cartas mais uma vez.

Os jogadores davam a impressão de estarem congelados em suas cadeiras, atentos

a tudo. Então, uma voz profunda quebrou o silêncio, vinda da porta:

— Deve estar com muita sorte, senhora! Ousa elevar as apostas para a próxima

mão? Talvez... vinte guinéus? Ou prefere passar a banca?

Marina não precisou se voltar para reconhecer quem falava. Era Kit Stratton. E o

tom dele era leve, mas trocista. Quase um insulto...

Um brilho indignado apareceu no olhar de lady Luce.

— De forma alguma, senhor — respondeu ela. — Não pretendo deixar a banca

ainda. Mas concordo que as apostas estão baixas. Sugeriu vinte? Acho melhor

cinquenta.

O cavalheiro sentado diante da condessa levantou-se de imediato.

— Alto demais para mim — disse e saiu da sala. Kit Stratton aproximou-se e tocou

o espaldar da cadeira deixada vaga. Marina sabia que ele estava desafiando a condessa

a continuar. E sabia também que lady Luce não cederia diante daquele homem.

O que devia fazer?, ela se perguntava. Tentava, mas, por algum motivo, não

conseguia raciocinar direito. Era seu primeiro dia de serviço e não conseguia fazer o

que lhe fora ordenado. O que estava lhe acontecendo, afinal?

— Cinquenta? — repetiu Kit. — Para mim, está bem, a não ser que queria apostar

mais alto ainda.

Marina rezava para que sua patroa ignorasse aquele desafio. Porém lady Luce

sorriu, primeiro para o sr. Stratton, depois para os outros jogadores.

— Senhores — disse —, como dona da banca, aceitarei qualquer valor proposto pelo

sr. Stratton. — E tornou a encarar Kit com um brilho de vitória no olhar.

Por alguns segundos, ele nada disse. Depois, com voz calma e suave, aceitou:

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— Senhora, dá-me uma grande honra, mas não seria cavalheiresco desapontá-la. As

vontades de uma senhora devem sempre ser satisfeitas. Digamos... duzentas libras?

Dessa vez, um murmúrio de espanto passou por todos os presentes. Mais dois

jogadores se retiraram, murmurando desculpas para não continuarem no jogo. Mas Kit

Stratton mantinha-se firme em sua posição. Ele ria, porém Marina percebia que não

havia humor algum em sua atitude.

— Parece que vai ser um jogo bem íntimo, senhora — Kit comentou, olhando

fixamente para lady Luce.

Marina sentiu-se tonta de repente. Apoiou-se na parede, para manter o equilíbrio.

Aquilo não podia estar acontecendo! Duzentas libras era muito dinheiro! Deu dois passos

à frente, na esperança de chamar a atenção da condessa. Tinha que fazê-la parar de

alguma forma!

— Ah, então você está aí! — Lady Luce a viu. E apontou para uma cadeira vazia a

um canto. — Sente-se e não faça nada. Isto é importante demais para que me distraia.

Marina obedeceu, com o coração apertado. O olhar firme da condessa mostrava-

lhe que não devia argumentar. Marina queria poder fazer alguma coisa, mas sua única

esperança era de que sua patroa ganhasse.

Porque aquele cavalheiro sem coração poderia arruiná-la. E, por conseguinte, a ela

própria...

Kit observava as mãos gorduchas de lady Luce embaralhando as cartas. Manter o

olhar fixo ajudava em sua concentração. Também o ajudava a perceber qualquer sinal de

trapaça, embora soubesse que nada precisava temer quanto a isso. Lady Luce era

orgulhosa demais para trapacear, mesmo que soubesse como fazê-lo. Aquele seria um

teste de nervos e de habilidade. A mente bem treinada de Kit nas cartas provavelmente

acabaria com qualquer vantagem que lady Luce pudesse ter.

E, depois disso, era deixar que a sorte falasse mais alto.

Com as cartas todas juntas, lady Luce empurrou o baralho para Kit.

— Quer embaralhá-las também, senhor? — ofereceu. — Ou gostaria que algum dos

senhores que nos observam o fizesse?

— Tenho certeza de que elas estão muito bem embaralhadas, senhora. Mas

gostaria de cortar, se me permite.

E ele assim o fez, sem encarar sua oponente.

Marina percebeu que sua patroa se irritava com o sarcasmo dele. Era óbvio que os

dois se detestavam, embora Marina não pudesse compreender por quê.

— Apostas, por favor — lady Luce chamou.

Kit retirou duas notas graúdas do bolso e colocou-as sobre a mesa, junto ao 9. O

homem calvo que se encontrava ao lado de Marina pareceu vacilar, mas o rapaz perto

dele foi mais decidido e ficou com a rainha. Por fim, o indeciso deixou suas notas sobre

o 6.

Marina prendeu a respiração, esperando pela primeira carta a ser virada. Seu pai

sempre dizia que a primeira carta era um presságio para o resto do jogo. As jogadas do

faraó normal consistiam de duas cartas; a banca vencendo com a primeira e os

jogadores com a outra, mas a primeira e a última chamadas eram sempre com cartas da

banca. O pai de Marina se convencera de que se a banca ganhasse a primeira carta, os

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jogadores acabariam perdendo durante o jogo. Porém Marina nunca acreditara muito

nisso, pois não evitara que seu pai perdesse tudo que possuía. E agora ela rezava para

que lady Luce ganhasse.

Precisava ser um 6, um 9 ou uma rainha. Melhor ainda se fosse o 9 apostado pelo

sr. Stratton. Porque queria vê-lo perder.

Lady Luce se preparava. Sorriu para os três homens antes de tocar no baralho.

Parecia muito confiante. Tirou a primeira carta, olhou-a e colocou-a ao lado do baralho:

um 9!

Sorrindo, a velha senhora recolheu a aposta feita por Kit. Ele nem mesmo piscou. E

Marina achou-o parecido com uma estátua de mármore: belo, frio, sem coração. Os

deuses do Olimpo costumavam divertir-se brincando com os homens, imaginou,

lembrando-se do que aprendera sobre mitologia. E Kit Stratton parecia agir da mesma

forma em relação a seus oponentes.

Retirou mais duas notas do bolso e colocou-as novamente junto ao 9, sem olhar

para qualquer um dos que se encontravam a seu redor. Parecia totalmente concentrado

nas cartas.

Marina reconhecia aquele olhar. Vira-o em seu pai. O sr. Stratton devia ser um

grande jogador, com habilidade para memorizar todas as cartas jogadas. Ela mesma

fora ensinada a fazê-lo por seu pai. Isso ajudava a aumentar as chances, sobretudo no

final do jogo, quando havia poucas cartas sobrando. Kit Stratton estava jogando para

ganhar.

A condessa olhou as cartas para a próxima mão: um rei para a banca, seguido de

um 2. Assim, não houve ganhadores. Com tão poucos jogadores, haveria muitas rodadas

iguais a essa. Se a banca fosse rápida, seria ainda mais difícil memorizar as cartas.

Marina começou a prestar atenção para fazê-lo. Assim ficaria calma, ainda mais se o sr.

Stratton viesse a ganhar.

Houve mais três mãos sem vencedores e Marina sabia exatamente quais cartas

tinham já sido jogadas. Talvez o sr. Stratton também soubesse, mas não havia como

adivinhar pela expressão dele.

Lady Luce virou um 6. O homem calvo gemeu baixinho e começou a retirar mais

dinheiro do bolso antes mesmo que a jogada estivesse terminada. A carta seguinte foi

outro 9, e lady Luce pegou as duas notas de Stratton entre os dedos, como se

estivessem contaminadas, e as colocou a seu lado.

Kit sorriu de leve, depois voltou a ser impassível. Suas mãos estavam sobre a mesa

e Marina notou que eram bem tratadas, momentaneamente distraída do jogo. Percebeu

também que eram mãos fortes; não deviam ser gentis. Talvez ele desejasse colocar

aquelas mãos em torno do pescoço de lady Luce e apertar até tirar-lhe a vida...

Surpresa com o próprio pensamento, Marina voltou à realidade do jogo. Afinal, Kit

Stratton era apenas um jogador e um cavalheiro, com certeza.

Com calma, ele deslizou suas notas do 9 para o 10. E lady Luce virou outra carta:

outro 9!

O homem calvo riu, mas se calou diante do olhar severo de lady Luce. Ela não

queria distrações ali. Dessa vez, a carta da mesa era uma rainha e o rapaz ganhou.

Sorrindo, ele colocou sua aposta junto à de Kit, no 10. Também ele devia estar

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percebendo que aquele era um jogo de vida ou morte. E escolheu ficar com os homens,

Marina avaliou; contra uma senhora idosa...

Treze cartas tinham sido jogadas. Marina lembrava-se de todas elas. Kit Stratton

apostara quatrocentas libras no 10. Havia ainda 39 cartas a serem viradas. E entre elas,

os quatro 10.

Marina já tinha dificuldade em lembrar-se de todas as cartas. Isso nunca lhe

acontecera antes. Sempre se orgulhara de sua habilidade de memória, mas agora que

era tão importante, esse dom a abandonava. Talvez fosse por causa daquelas longas e

belas mãos... Não conseguia desviar os olhos delas. Tão calmas... Kit Stratton era como

um falcão: um caçador tranqüilo e fatal, disposto a lançar-se com eficiência contra

qualquer presa que aparecesse.

Havia apenas dezenove cartas sobrando. E nenhum 10 aparecera. Muitas pessoas

tinham se juntado para apreciar o jogo agora. O duelo entre Kit Stratton e lady Luce

atraía a atenção geral.

O homem calvo parecia manter-se calmo ou fingia estar. O rapaz estava animado.

Não falava, mas seus movimentos mostravam seu estado de espírito. Havia gotas de

suor em sua testa; seu destino dependia, como o de Kit, daqueles fatídicos 10.

Lady Luce continuava a virar cartas. A do homem calvo ganhou. Impassível, a

condessa empurrou o dinheiro que ele ganhara e esperou por sua próxima aposta. A

quantidade de dinheiro que havia agora diante dela era pequena; precisava

desesperadamente de uma carta vencedora.

A tensão crescia. Os lábios da condessa ficavam mais e mais finos. Seu sorriso

desaparecera, mas suas mãos mantinham-se firmes nas cartas que virava. Um 9 para a

banca. Inútil. E depois uma carta para os jogadores: um 10.

As pessoas na sala prenderam a respiração. O rapaz ria de orelha a orelha, mas Kit

Stratton mantinha-se imóvel. Olhava apenas para as cartas.

A condessa empurrou suas últimas notas em direção ao rapaz. Este recolheu-as e

as colocou sobre a rainha, olhando com certo ar de desculpa para Kit. Lady Luce não

possuía mais nota alguma. Então pegou uma pena e um bloco de papel que havia logo ao

lado e escreveu sua aposta. Olhou para Kit, que, impassível, ergueu o dedo indicador

para a mesa, mostrando que continuava no jogo.

Marina sabia que ele estava administrando sua sorte. Se ganhasse mais uma vez, a

condessa teria de pagar-lhe sete vezes a aposta. E isso significava aproximadamente

três mil libras!

Lady Luce fez menção de virar mais uma carta, e Marina fechou os olhos, incapaz

de continuar observando aquela tortura. Havia ainda três 10 no maço que a condessa

segurava.

Um gemido do homem calvo fez Marina tornar a abrir os olhos. Ele perdera, e Kit

Stratton ganhara com outro 10.

Dessa vez, Marina sabia exatamente o que ele iria fazer. Suas mãos elegantes

moveram-se de novo. Ele apostava tudo que ganhara contra o prêmio de quinze vezes

sua aposta!

Mais três rodadas e nenhum 10 apareceu. O rapaz perdeu com sua rainha e o

homem calvo ganhou com seu rei.

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Kit Stratton mantinha-se firme como uma rocha fria. Havia ainda sete cartas

sobrando. Marina queria concentrar-se nas cartas. Quais eram? Precisava saber!

Esforçou-se ao máximo, até que, de repente, sua mente projetou-lhe a idéia exata

do que restava ser virado no maço de cartas: dois azes, um 2, um 3, um valete e dois 10.

O homem calvo tinha duzentas libras no ás. O rapaz colocou sua aposta no 6; era

óbvio que não tinha boa memória para cartas. E o sr. Stratton, com classe, escorregou o

dedo e sua aposta sobre o 10. Parecia que ninguém ousava respirar enquanto esperavam

que lady Luce virasse as próximas cartas. Um ás para a banca e um 3 para os jogadores.

Lady Luce retirou seu ganho de sobre o ás. Marina respirou aliviada. Agora, pedia a

Deus que o mesmo acontecesse com o 10.

O homem calvo apostou no 10. Parecia ter decidido que era Kit Stratton quem

estava com sorte. Com calma, a condessa virou mais uma carta. Um 2 inútil. E, em

seguida, a outra carta: um 10!

O homem calvo riu, satisfeito. Havia um silêncio mórbido na sala, enquanto todos

aguardavam pelo próximo movimento de Kit. Ele podia recolher seu dinheiro agora, seis

mil libras, ou prosseguir, se pretendesse dobrar seu ganho para trinta vezes a aposta

original.

E lá estava ele, parado como uma estátua, pensando. No quê? Havia apenas três

cartas sobrando. Um jogador experiente devia saber agora que a banca tinha duas

chances de vencer, e ele, apenas uma. O homem calvo recolheu seu dinheiro sabiamente.

Era improvável que Kit Stratton ganhasse outra vez.

Mas ele era um jogador até o âmago de seu ser. Sem deixar de olhar para as

cartas, apostou novamente. E, por alguns segundos, um sorriso irônico apareceu em seus

lábios.

Marina sentia o coração acelerado. Aquele sorriso muito leve dissera-lhe tudo. Kit

tinha certeza de que as probabilidades eram contra ele, mas estava preparado para

tentar a sorte a fim de derrotar a mulher a quem detestava. E, se não tivesse sucesso

agora, faria com que houvesse outras ocasiões. Era o grande inimigo da condessa.

Marina olhou para a velha senhora. Ela estava pálida e havia raiva em seu olhar.

Aceitou o último desafio do sr. Stratton. Parecia-lhe melhor arriscar uma perda

improvável de doze mil libras do que pagar uma perda certa de 6 mil.

Reunindo coragem, Marina forçava-se a olhar. Havia três cartas sobrando: um ás,

um valete e um 10. E as mãos de lady Luce mexiam nelas quase com carinho. De repente,

virou a de cima: o ás.

Duas cartas sobrando, chances iguais agora para ambos. Lady Luce sorriu

tranqüila, mas o sr. Stratton continuava a fixar as cartas. Não olhou para ver a

expressão no rosto da condessa quando ela virou a carta que poderia ser sua ruína: o 10.

Kit Stratton tinha ganhado doze mil libras. Com um gesto de aborrecimento, lady

Luce olhou para a última e inútil carta. Tudo estava acabado. Aceitara o desafio e

perdera. Endireitou as costas e esperou as palavras de seu adversário.

Mas ele nada disse. Estava apenas olhando para a carta com a qual ganhara. Então,

muito lentamente, seus olhos se cerraram um pouco e seus lábios formaram um sorriso.

E esse sorriso fez os cabelos da nuca de Marina se arrepiarem, pois havia algo de

demoníaco nele.

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Erguendo o rosto alguns centímetros, ele olhou para a condessa; ainda sorria. E

Marina pensou numa víbora, com a cabeça erguida diante da vítima antes do ataque

fatal. Como pudera achá-lo bonito?, indagou-se, repugnada. Havia ódio e vingança

naquela expressão terrível. Queria deixar de olhar para Kit, mas não conseguia. E,

diante dele, a condessa parecia miúda agora, frágil, mais envelhecida.

Era como se Kit esperasse que lady Luce dissesse algo, atestando sua derrota. E

gostaria disso. Queria humilhá-la. Mas lady Luce apenas assentiu, como se nada de mais

tivesse acontecido; então reuniu as cartas de sobre a mesa com mãos firmes.

Muito devagar, Kit Stratton levantou-se; estava apreciando cada momento da sua

vitória. Alto, ele olhava para lady Luce ainda sorrindo daquela forma terrível... E então

falou, com uma voz extremamente suave:

— Pelo que vejo, desta vez o sucesso foi meu.

Mas lady Luce não se deixou abater. Seu autocontrole era admirável. Pegou uma

folha do bloco, escreveu nela sua dívida e assinou embaixo.

— Mas eu não tenho pressa em receber o que me pertence — prosseguiu Stratton,

baixando sua voz ainda mais. — Imagino que deva dar-lhe um prazo para que possa

levantar tal soma... Digamos... sete dias? Bem, então, boa noite, condessa.

Lady Luce continuou em silêncio. Não havia necessidade de dizer coisa alguma. A

expressão em seu rosto era bem eloquente. E Marina percebeu que podia detectar até

um certo medo nela.

Kit Stratton pegou a folha de papel, dobrou-a e a colocou no bolso do paletó. Havia

triunfado. E Marina sentia-se ainda mais derrotada do que a condessa, porque o conde a

demitiria por ter falhado em sua missão. Sua única chance de ter um emprego e uma

vida decente fora destruída por aquele belo, mas odioso homem. Alguém precisava

fazer algo para detê-lo!, considerou.

Sem pensar, Marina levantou-se e colocou-se diante dele. E, tocando-lhe o braço,

começou:

— Senhor... — observou-lhe os olhos mais frios que ela jamais vira. — Por favor,

não poderia... não poderia...

Mas não conseguiu terminar seu pedido.

— Não, senhora — ele respondeu, sério. E afastou o braço dos dedos de Marina

como se eles trouxessem em si alguma doença. — Seja o que for que pretenda me pedir,

a resposta é "não". — Com calma, Kit retirou um lenço de cambraia do bolso e passou-o

pelo local onde ela o tocara.

Ultrajada, Marina encarou-o. Não encontrava palavras à altura para descrever um

ser tão mesquinho quanto aquele homem. Estava enojada. Mas ele simplesmente se

afastou e foi embora. E levou consigo todas as esperanças que Marina poderia ter.

CAPÍTULO V

Kit passou pelos que haviam observado .o jogo e que agora se afastavam devagar

para abrir-lhe caminho. Muitos daqueles rostos demonstravam fascínio. Provavelmente,

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nenhuma daquelas pessoas teria arriscado perder tanto.

No andar inferior, o bêbado que Kit arremessara para fora da sala já havia ido

embora havia muito tempo. O hall parecia deserto. Kit desceu devagar a enorme

escadaria, sua mente parecia vazia. Mal podia se lembrar do que fizera, exceto que, por

fim, havia conseguido sua tão esperada vingança. Deveria estar se sentindo aliviado,

triunfante, feliz, mas nada disso acontecia. Na verdade, não sentia absolutamente nada.

Voltou-se para ver Méchante descendo as escadas, logo atrás, com passos

ondulantes, lascivos. A seda do vestido que ela usava era quase transparente, deixando

bem pouco à imaginação. Nos últimos anos, Kit havia preferido mulheres um tanto mais

resguardadas. Diferente de Méchante, sua atual amante não se oferecia a qualquer um.

A baronesa Katharina Von Thalberg oferecia-se apenas a ele... e ao marido, é claro. E

Kit não poderia fazer objeção a isso.

Esperou até que Méchante o alcançasse, comparando-a mentalmente com a bela

Katharina e achando-a um tanto sedutora. Sim, nessa noite poderia procurar por

Katharina, pensou. Perdendo-se no corpo dela, teria de volta um pouco da sanidade que

fora desencadeada nessa noite de loucura.

— Já vai, Kit? — Méchante perguntou em um sussurro. — Não quer beber comigo

uma taça de champanhe por sua vitória? E pelos velhos tempos, também? Tenho uma

garrafa excelente esperando, no gelo, em meus aposentos. — Ela o olhou

significativamente, depois recostou-se a seu corpo para segredar-lhe no ouvido: —

Meus convidados podem ficar sem mim por uma ou duas horas...

O corpo de Kit não reagiu àquele convite. Levar uma mulher para a cama era para

ele um prazer tão natural quanto vencer numa rodada de cartas. Porém Méchante o

deixava frio. Fora sua amante havia cinco anos, e o traíra.

Levou a mão da mulher aos lábios, mas evitava encará-la para que ela não

percebesse o que sentia.

— Não, minha cara — murmurou. — Eu nunca volto atrás. E nunca divido nada.

— Cuidado, então, meu querido. — Méchante já não sussurrava. Havia certa malícia

em sua voz agora e seus intensos olhos verdes estavam semicerrados. — A sua

Katharina arrisca-se demais. Seu marido pode não ser tão compreensivo agora que já

não estão mais em Viena; lá, ele era apenas um aristocrata sem importância, mas aqui é

um representante diplomático do Império Habsburgo... Um escândalo poderia arruiná-

lo... E isso poderia acontecer tão facilmente, não acha?

Ela era inteligente e ainda muito perigosa. Seu nome fazia-lhe jus. Kit, então,

fitou-a nos olhos. Sim, entendiam-se muito bem.

— Obrigado pelo convite para esta noite, Méchante. E por suas sábias palavras

também. — Ele se inclinou de leve e voltou-se para pegar a cartola e a bengala que um

criado lhe trazia. — Agora devo dizer-lhe boa noite. Foi, de fato, muito boa para mim.

Sinto-me em dívida com você.

A risada suave dela o acompanhou até que Kit deixou a casa.

Era muito tarde. Katharina, com certeza, já se cansara de esperar por ele. Devia

estar com o marido, extremamente irritada por haver esperado tanto tempo. Kit

fechou a porta atrás de si e subiu a escada da elegante casa que alugava na cidade.

Dormiria ali por algumas horas e, no dia seguinte, melhor dizendo, naquele mesmo dia,

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mas depois do raiar do sol, daria um jeito de encontrar-se com Katharina e desculpar-

se. Talvez ela o perdoasse... E, se lhe impusesse uma penalidade... bem, isso seria

divertido também.

Sentiu-lhe o perfume antes mesmo de entrar no quarto. Aspirou profundamente,

tentando recuperar lembranças de momentos em que estivera na cama com ela. Pena ela

já ter ido embora...

Mas, para sua surpresa, lá estava Katharina, deitada no enorme leito, folheando

uma revista.

— Ah, Kàtchen!

Ao ouvi-lo pronunciar o nome carinhoso como era conhecida, voltou-se e, por

breves instantes, franziu a testa. Seus grandes olhos negros o fitavam com rancor e

acusação.

— Sinto muito, querida — Kit começou, sem jeito. Katharina podia ter todo o

direito de sentir-se aborrecida, mas não estava disposto a ouvir um de seus sermões.

Aliás, ela nem precisava ter esperado.

Olhou-a, notando-a ainda irritada. Mesmo assim, sua bela austríaca era

extremamente provocante. Ouviu-a dizer algo em alemão, e corrigiu-a:

— Em inglês, minha cara.

Com um muxoxo, ela apenas o encarou. E Kit explicou, tirando o paletó e a gravata

e deitando-se a seu lado:

— Palavras são sempre perigosas, sabia? Em qualquer idioma. — E, sem cerimônia,

passou a acariciar-lhe os seios, fazendo-a cerrar os olhos. — Além do mais, não

precisamos de palavras, não é?

Seus lábios estavam tão próximos da pele dela que cada palavra era uma carícia

que a arrepiava mais e mais. Kit observou-a com atenção, notando sua beleza. E seu

corpo se aquecia a cada instante diante da paixão que notava brotar de Katharina.

A mão de lady Luce tremia quando ela levou o cálice de licor aos lábios.

— Eu devia ter deixado aquela casa no momento em que o vi — repreendeu-se

amargamente, deixando-se cair em sua poltrona favorita junto à janela. — Esse homem

é o próprio Lúcifer disfarçado! E tem a sorte dele também!

Marina assentiu de leve. Era-lhe estranho ver a condessa tão fragilizada. Ouviu-a

gemer com raiva e continuar:

— Quanto a William... — E meneou a cabeça, irritada ao pensar no filho. — Ah, vai

adorar me passar um bom sermão! Claro que não lhe darei essa chance! Sabe, achei que

ele poderia querer me enganar. E mandou você para me vigiar! Bem, quem é o tolo agora?

Então, ela sempre soubera, analisou Marina, em silêncio. Não devia surpreender-se.

A velha senhora era muito esperta, e seu filho não lhe era páreo. Fosse como fosse,

mesmo sem ser tão inteligente, o conde ainda podia demitir Marina.

A condessa ergueu o cálice para que Marina o enchesse novamente. E ela obedeceu

sem uma palavra.

— Por que não toma um pouco também? — ofereceu lady Luce.

— Não, senhora, obrigada. Não bebo nada alcoólico. Eu...

— Vamos, pegue outro cálice, menina! Vai precisar de um pouco disto. Terá um dia

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difícil a sua frente. William vai cuidar disso. Adora esse tipo de coisa...

A condessa tinha razão. Marina devia ser demitida nas próximas vinte e quatro

horas. E ela sentia o estômago se revirar só em pensar que teria de falar com o conde.

Bebericou o licor que serviu a si mesma, mas acabou tossindo.

— Meu Deus! — exclamou, por fim. — As pessoas bebem isto por prazer?!

Lady Luce riu. Estendeu o braço e tocou a mão de Marina.

— Tenha coragem, menina. Vou ajudá-la. E não permitirei que aquele idiota do meu

filho a trate mal ou a mande embora.

Marina encarou-a, surpresa.

— Por que acha que eu a levei à casa de Méchante esta noite? — Lady Luce

prosseguiu. — Não tenho a menor intenção de permitir que William mande em minha

vida. De forma alguma! Levei você até aquele antro para mostrar a ele e a você também

que vou continuar jogando quando e onde bem entender. Ele não pode me deter. E

manter uma dama de companhia para evitar que eu faça o que quero não vai funcionar

também.

— Mas, senhora, eu não... não...

— Eu sei que não. Eu mesma cuidaria de demiti-la se achasse que era uma

ferramenta de William. Mas, como ele me prometeu uma dama de companhia, com todas

as despesas pagas, vou mantê-lo preso a sua promessa.

Marina respirou fundo. A vida começaria a ser muito desagradável se a velha

condessa e seu filho passassem a usá-la como peão em seu jogo de poder. Ainda mais

com o peso de duzentas libras para tornar a briga ainda mais intensa...

Lady Luce estendeu o cálice para mais um trago. Depois ficou um longo tempo em

silêncio, com a bebida entre as mãos e os olhos perdidos no nada. Devia estar pensando

no dinheiro, Marina imaginou. Não devia ter uma soma tão alta assim. Muito menos em

uma semana.

— Ele estava determinado a vingar-se — lady Luce murmurou pouco depois, ainda

imersa em seus pensamentos. — Acho que não posso culpá-lo por isso. E foi fiel ao que

disse. Eu devia estar preparada.

— Perdoe-me, senhora, mas não estou compreendendo...

— E nem deveria, menina. Nem eu estava falando com você. Mas como vai acabar

sabendo de tudo, é melhor que seja eu mesma a lhe contar. Não quero que fique ouvindo

comentários dos criados. Fofocas sempre mudam os fatos, como deve saber.

Lady Luce riu de leve ao sabor de suas lembranças. Depois começou seu relato:

— Na verdade, não existe tanta coisa assim para contar. Há alguns anos, quando

Kit Stratton ainda era um rapazola, ele perdeu cinco mil libras para mim. Eu mesma

estava numa situação financeira muito difícil naquela época e não pude dar-lhe tempo

para me pagar, muito menos para poder recuperar suas perdas. Exigi que me pagasse

dentro de sete dias. Usei aquelas mesmas palavras, e ele esperou durante todos esses

anos para se vingar.

Marina sabia que muitos cavalheiros perdiam fortunas no jogo. Por que, então, Kit

Stratton teria se vingado daquela forma? E ainda mais contra uma senhora idosa?

Seus pensamentos deviam tê-la traído, pois lady Luce olhou-a, parecendo um tanto

envergonhada.

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— Ele me pagou — disse. — E mais tarde descobri que seu irmão Hugo lhe havia

dado o dinheiro; um dinheiro tirado do dote da esposa. Os dois estavam casados havia

menos de uma semana. Kit foi enviado ao exterior pouco depois.

Marina começava a entender. Não era de admirar que Kit Stratton tivesse ficado

tão envergonhado e humilhado. O que seu irmão poderia ter pensado sobre tudo aquilo?

Teria Hugo Stratton realmente enviado o irmão ao exílio? Hugo Stratton! Agora

percebia por que o nome lhe tinha soado familiar!

A condessa começava a soltar a língua, talvez por efeito da bebida, Marina notou.

— E, não posso dizer que a culpa tenha sido do rapaz. Foi minha, na verdade.

Deixei-o pensar que estava agindo por maldade quando, de fato, foi William quem agia

assim. Ele insistiu que não poderia me ajudar com dinheiro algum, e eu não poderia

jamais admitir uma coisa dessas ao jovem Stratton, não é mesmo? Mas hoje ele usou as

mesmas palavras que eu disse... — Ela terminou a bebida de um só gole.

— Conhece Hugo Stratton, senhora? O irmão dele?

— Como? Ah, sim. Bem... certa vez fomos apresentados, mas todo mundo o

conhece. É imensamente rico, desde que seu irmão mais velho faleceu; isso para não

mencionar o dinheiro que a esposa tem e que passou às suas mãos com o casamento. Mas

ele não vem muito a Londres. Passou a não vir especialmente depois da guerra, dizem,

porque detesta que fiquem olhando para o seu rosto.

Marina encarou-a.

— Como assim?

— Ah, ele foi muito ferido! Mas... por que esse súbito interesse por Hugo

Stratton? De onde acha conhecê-lo?

Marina engoliu em seco.

— Acho que ele serviu com meu pai no Exército, senhora. Na Espanha. Creio que

lutou na batalha em que meu pai e meu tio morreram.

Lady Luce nada disse. Simplesmente alcançou a garrafa de licor e serviu-se,

enchendo o cálice até a boca. Depois fez o mesmo com o cálice de Marina.

Era difícil para Marina encontrar uma posição confortável em sua cama. Já devia

ser madrugada e ela sentia a cabeça latejando, sem conseguir dormir. Não deveria ter

bebido aquele licor, recriminava-se. Fechou os olhos uma vez mais, numa nova tentativa

de adormecer.

Kit Stratton era o irmão mais novo de Hugo Stratton, seu cérebro insistia em

repetir-lhe. E um certo capitão Hugo Stratton tinha sido o melhor amigo de seu tio.

Haviam servido juntos no Exército durante anos. De acordo com tio George, Hugo

Stratton era um excelente amigo e companheiro. Fora em parte por influência dele que

o pai de Marina havia conseguido uma vaga no 95º Regimento.

Kit Stratton, portanto, não podia ser assim tão mau quanto falavam. Não era

possível. Não, se Hugo Stratton fosse seu irmão. Talvez Kit tivesse outros motivos para

detestar a condessa, Marina ponderava. Talvez seu insulto em relação a ela mesma,

Marina, fosse apenas uma continuação inconsciente da tensão do jogo... Talvez.

Não havia outro modo de saber, a não ser averiguar. Faria isso: procuraria Kit

Stratton e pediria a ele que perdoasse a dívida de lady Luce. Se necessário fosse,

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pediria que o fizesse em memória a seu pai e seu tio mortos, e também pela amizade

que seu irmão Hugo tivera por eles. Nenhum cavalheiro poderia negar-se a tal pedido.

Mas, ao pensar em falar com ele, sentia seu estômago revirar. Teria de deixar

todo o orgulho de lado e, se ele a tratasse com o mesmo desprezo dessa noite...

Estremeceu. Não sabia se poderia suportar tanto.

Seria Kit Stratton um cavalheiro, afinal? Lady Luce falara por muito tempo sobre

o estilo de vida que ele levava, suas amantes, suas roupas caras, suas carruagens, seus

cavalos... Possuía todos os atributos de um cavalheiro de muitas posses. Mas teria ele

um senso de honra que lhe permitisse agir com benevolência?

Soubera, pela condessa, que Kit exercitava seus animais no parque pela manhã,

chovesse ou fizesse sol. E ele estaria lá dentro de poucas horas. Ela precisaria apenas

ir até lá e enfrentá-lo. Como cavalheiro que era, ele não se recusaria a ouvir seu pedido.

Poderia, sim, Marina argumentou consigo mesma, revirando-se entre os lençóis.

Poderia dispensá-la sem hesitar. Já o fizera antes... e poderia repetir seu gesto. A não

ser que ela encontrasse um meio de romper aquela espécie de armadura que ele parecia

vestir.

Seu orgulho próprio não interessava. Era seu dever de proteger sua família que

falava mais alto agora. E, para tanto, ela precisava manter-se no emprego e salvar a

condessa. O caminho para isso era desafiar Kit Stratton.

Mas por que ele tinha de estar cavalgando um animal tão grande?, perguntou-se ao

ver Kit naquele cavalo enorme. Sentia-se uma anã. Viu-o puxar as rédeas com suavidade,

fazendo o cavalo parar. Havia um estranho brilho em seus olhos ao fixá-la.

— Parece que acordou muito cedo hoje, senhora — disse. — E deve ter se perdido

de sua criada...

— Uma dama de companhia não possui criada, senhor, como deve saber — Marina

devolveu no mesmo tom altivo que ele usara.

Kit ergueu as sobrancelhas. Depois assentiu muito de leve.

— Não, de fato — comentou. — Mas pode possuir uma língua bem afiada.

Marina sabia que estava corando e irritou-se consigo mesma por isso. Engoliu em

seco, não querendo parecer hostil. Afinal, não fora para isso que viera até ali.

— Sr. Stratton — recomeçou —, eu gostaria de poder lhe falar em particular. É

sobre... ontem à noite. Eu...

Ele franziu a testa.

— Veio a pedido de lady Luce? — interrompeu-a. — Acredite, senhora, eu não...

— Não, não! — Marina apressou-se em esclarecer. — Ela nada sabe sobre minha

atitude, eu juro! Tenho meus próprios motivos para ter vindo... consultá-lo.

O estado de espírito dele mudava conforme Marina falava. Estava quase sorrindo,

mas sua expressão, mesmo assim, não era agradável. E ela sentiu uma vontade enorme

de sair correndo dali e nunca mais voltar a vê-lo. Tornou a engolir em seco, sabendo que

Kit Stratton fazia todo o possível para tornar sua posição impossível. Nem mesmo

desmontara, como qualquer cavalheiro teria feito. E isso chegou a irritar Marina.

Percebia que ele tentava, de propósito, humilhá-la. Devia desprezá-la por não passar de

uma dama de companhia e aproximar-se assim dele.

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— Está me interpretando mal, senhor — disse, rígida. — Não vim a pedido de lady

Luce, mas por minha própria conta para pedir-lhe um... favor. — Ela notava que a

expressão dele ficava ainda pior, mais fechada. — Não é por ela, senhor, pois sei que

isso seria impossível, mas... por...

— Um favor? Um favor para quem? — Kit rebateu. — Para a senhora? Acredite,

não faço favores a mulheres. Não, até que elas façam por merecê-los.

Marina não conseguia mover-se, muito menos falar. Aquilo não podia estar

acontecendo, dizia a si mesma. Ele estaria dizendo o que seus ouvidos tinham escutado?!

— Parece que entendeu o que eu quis dizer — Kit continuou. — Ótimo. — E curvou-

se em direção a ela. Seu perfume a atingiu, parecendo combinar muito bem com seu

caráter pouco recomendável. — Se deseja... discutir o assunto de ontem à noite,

senhora, estarei disposto a ouvi-la. Estarei livre às onze horas ainda esta manhã. Poderá

fazer-me seu pedido, então. Em particular, como prefere.

Ele lhe entregou um endereço em Chelsea. Para Marina, uma estranha em Londres,

aquilo nada significava. Viu-o sentar-se novamente na sela e dizer, antes de partir:

— Espero-a às onze. Não se atrase.

CAPÍTULO VI

Kit ergueu os olhos do jornal quando o grande relógio do hall bateu as horas. Tinha

feito a ela a cortesia de estar ali porque ela era uma dama. Mas soubera que ela não

viria. Baixou novamente os olhos para as notícias impressas; iria apenas terminar a

leitura daquele artigo e depois sairia para ir até o clube. Não havia dúvida de que as

notícias sobre sua vitória no jogo da noite anterior já deviam estar circulando por toda

parte, inclusive por lá. Com certeza, nada mais ouviria em uma semana. Acomodou-se

melhor na poltrona de couro da sala de estar de sua casa em Chelsea. Cinco minutos

depois, uma batida suave na porta chamou-lhe a atenção. A mulher miúda que cuidava da

limpeza apareceu então, dizendo, humilde:

— Há uma pessoa querendo lhe falar, senhor. Mas não quis dizer seu nome. Ela...

— A senhora veio tratar de negócios — Kit apressou-se em esclarecer, para evitar

especulações. E levantou-se, ordenando: — Peça a ela para entrar, sra. Budge.

Quando Marina entrou, com o vestido cinza salpicado de respingos de lama, Kit

olhou de soslaio para a janela. Entretido em sua leitura, não percebera a chuva. Ela

teria caminhado até ali? Não fazia sentido! Já era uma mulher tão sem atrativos, e

agora ainda havia aqueles respingos todos para piorar sua aparência!

Como podia achar que ele se interessaria? Kit ergueu as sobrancelhas e afastou o

pensamento. Mas aquela mulher parecia muito mal preparada para a tarefa que teria

pela frente...

— Bom dia, senhora — saudou-a com educação. Notava que ela estava ainda mais

rígida do que antes. Estaria se sentindo insultada? Porque, afinal, viera encontrar-se

com um homem em sua casa...

Esperou que ela dissesse algo, não a ajudaria.

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— Bom dia, senhor — ela respondeu, por fim. E fez uma leve inclinação com a

cabeça.

Kit percebia muito bem seu nervosismo e apenas aguardava.

— Foi... muito gentil de sua parte me receber — murmurou Marina, como se aquele

encontro fosse a coisa mais natural do mundo, e não algo que pudesse ultrajar as

normas da sociedade. — Disse que eu poderia... A verdade é que queria... pedir-lhe que

perdoasse a dívida que lady Luce tem para com o senhor. Sei muito bem que se trata de

uma fortuna, mas é um homem muito rico e ela é velha e...

— Pobre? — Kit indagou, cheio de ironia. — Se a sua patroa é pobre, senhora, é

porque andou jogando tudo que possuía. É a única culpada por sua situação. Não

concorda?

Marina parecia culpada, mas nada respondeu. E seu silêncio começou a irritar Kit.

Percebeu, então, que não sabia o nome dela.

— Não concorda, senhora? — insistiu. — Perdoe-me, mas não tive ainda a honra de

ser-lhe apresentado. Deve ter um nome, pois não? — Ele se divertia em perturbá-la.

Havia algo naquela mulher que o deixava contrariado.

Ela ergueu o rosto, altiva.

— Sim, tenho um nome, sr. Stratton. Sou a srta. Beaumont.

Kit assentiu. Ela possuía a altivez de uma duquesa, avaliou, mas o garbo de uma

criada... Teria de ter cuidado para não deixar que ela acabasse por levar a melhor

naquela conversa. Não permitiria que isso acontecesse. Na verdade, não permitia que

isso acontecesse quando estava diante de qualquer mulher.

— Muito bem, srta. Beaumont. — Ele apontou a cadeira logo ao lado, para que ela

se acomodasse. — E o que tem a me oferecer que valha doze mil libras?

Marina ia sentar-se, porém parou. Estava intensamente pálida.

— Como disse? — indagou, com voz carregada de ultraje.

Kit sorriu. Percebia que ela se fechava, mas que ainda sustentava seu olhar. Era

uma mulher de coragem.

— Como a senhorita mesma disse, doze mil libras é uma fortuna. Mesmo assim,

quer que eu perdoe a dívida... — Kit caminhou até ela. Estavam tão próximos agora que a

barra suja de lama da saia de Marina roçava-lhe as botas. — Parece-me que está

colocando um preço muito alto no que tem a me oferecer. — Sua voz era baixa,

acariciante.

Marina ergueu o rosto para ele, e também a mão, na intenção de dar-lhe um tapa.

— Não faça isso, srta. Beaumont — Kit avisou, segurando-lhe o pulso no ar e

torcendo-lhe o braço até as costas. — Eu não permito que nenhuma dama me atinja. —

Olhava-a diretamente, notando que ela possuía intensos olhos cor de avelã, muito

abertos, devido ao medo. Seria ela tão ingênua a ponto de não saber o que arriscava

vindo até ali?

Continuando a lhe torcer o pulso, aproximou-a ainda mais de si, e os lábios dela se

abriram num leve gemido de dor.

Kit afrouxou a mão de imediato, mas não conseguiu deixar de olhar para aqueles

lábios entreabertos. Aquela mulher precisava aprender uma lição, concluiu. Assim,

segurou-lhe a nuca com a mão livre e beijou-a. Mas encontrou uma resistência ferrenha.

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A mão livre de Marina empurrava-o, porém Kit, com habilidade, segurou-a junto da

outra. Agora, ela estava completamente segura.

Devagar, gentilmente, sem ameaçá-la, Kit começou a soltar as tiras que prendiam a

touca aos cabelos dela. Sentiu que os lábios, sob os seus, se abriam um pouco mais,

talvez na surpresa que ela sentia por seu gesto. Não... devia haver algo mais, percebeu.

Ela aceitava o beijo. Como esperava. As mulheres sempre reagiam assim, mais cedo ou

mais tarde. Tentou aprofundar o beijo e, de repente, sentiu um violento pontapé na

canela.

Kit afastou-se com um gemido abafado, porém não a soltou. Olhou-a. Com a touca

torta, o vestido sujo... mas seu peito arfava e seus olhos brilhavam de raiva. Kit notou a

perfeição de sua pele. Notou também a perfeição dos seios cobertos, que subiam e

desciam na respiração acelerada. Pena ser raiva, e não desejo que os movia.

— Agradeceria se me soltasse — disse Marina, firme, séria.

Mas ele não a soltou. Ao contrário, segurou-a de forma a não mais poder ser

agredido.

— Minha cara srta. Beaumont, acha que sou um completo idiota? — perguntou. —

Só a soltarei quando me der sua palavra de que vai se comportar como uma dama.

A raiva que ela sentia parecia estar se transformando em embaraço.

— Tem minha palavra — murmurou. — Mas quero a sua para garantir que vai se

comportar como um cavalheiro.

Kit teve de rir diante de tamanha ousadia. Aquela era, de fato, uma mulher

surpreendente. Meneou a cabeça, porém não a soltou.

— Seja quem for que lhe disse que sou um cavalheiro, senhorita, deve tê-la

enganado.

Marina ergueu os olhos para os dele.

— Não acredito nisso, senhor. — E desviou o olhar para a mão que ainda a agarrava.

— Por favor, sr. Stratton — pediu, calma, à espera.

Ele afrouxou os dedos. Afinal, de que adiantava segurá-la daquela forma?, indagou-

se. Não queria beijar uma mulher que mais se parecia com uma gata selvagem. Precisava,

isso sim, pôr um ponto final naquela entrevista.

Afastou-se e pegou a sineta com que chamava a criada e a tocou vigorosamente. A

porta se abriu segundos depois.

— Mande o garoto chamar um coche, sra. Budge — Kit pediu à criada. — Minha

visitante já está de saída.

A porta se fechou novamente, depois da saída, da empregada, e Marina começou a

protestar:

— Sr. Stratton, não preciso de um coche. Vou a pé, como vim. Além do mais, ainda

não terminamos nosso assunto e...

— Srta. Beaumont, não há mais nada a dizermos. — Ele deu um passo à frente,

fazendo-a recuar até uma cadeira. — Sugiro que se sente. Ótimo. Agora, quanto ao

coche, não há o que discutir. Não costumo permitir que damas caminhem pelas ruas de

Londres sozinhas. Nisso, pelo menos, ainda sou um cavalheiro. O garoto irá pagar a

corrida para aonde quiser ir.

Marina ia protestar novamente, mas Kit a impediu com um gesto da mão. E

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prosseguiu:

— Quanto ao nosso assunto: quer que eu perdoe a dívida de lady Luce. Doze mil

libras, pagáveis em sete dias. Muito bem, srta. Beaumont, eu o farei.

Marina arregalou os olhos, absolutamente surpresa, mas nada disse. Não tinha

palavras. E ouviu-o continuar:

— Porém há um preço para isso, é claro. A senhorita já sabia quando aceitou meu

convite para vir à minha casa, não? — Kit parou, esperando por uma reação. Não houve

nenhuma, então completou: — O preço é a senhorita. Em minha cama. Mas... de boa

vontade.

Ela estava horrorizada agora. Aprendera sua lição, afinal. E não o perturbaria

novamente. Não depois de uma barganha assim tão suja.

— O senhor... — A voz de Marina falhou. Pigarreou e prosseguiu: — O senhor é

muito direto. Posso perguntar-lhe como esse... arranjo deverá acontecer?

Por essa resposta Kit não esperava. Era surpreendente ver que ela não o encarava

agora. No entanto, como já começara com aquela charada, era melhor levá-la até o fim

para afugentá-la de vez.

— Pode escolher o dia e a hora — disse, escondendo um sorriso. — E deve marcar

nosso encontro antes do vencimento da dívida, é claro. No dia que escolher, deverá

estar caminhando pelo parque, bem cedo, como fez hoje. Uma carruagem simples,

fechada, irá apanhá-la. Haverá um cachecol branco amarrado à maçaneta da porta.

Deverá entrar nela.

— E... como deverei explicar minha ausência a lady Luce? Ela quererá saber onde

passei o dia... e a noite. E vai querer me demitir.

Kit sentia vontade de rir, porém se manteve firme, dando o golpe final:

— Ah, não pretendo retê-la por muito tempo. Nosso... assunto será prontamente

resolvido. Não é necessário esperar pela noite, como sabe. Vai estar em casa muito

antes que notem sua ausência.

Marina o ouvira de cabeça baixa. Quando a ergueu, estava calma, mas ainda havia

uma sombra de temor em seus olhos. E havia algo mais, também, que Kit não soube

identificar. Naquele momento a porta se abriu.

— O coche já está à porta, senhor — avisou a sra. Budge.

— Obrigado. Diga ao cocheiro que espere um instante. A senhora sairá em alguns

minutos.

A criada se foi e Marina levantou-se, encarando Kit com orgulho.

— Vou agora, senhor, mas tomo a liberdade de lhe dizer que não merece ser

chamado de irmão de Hugo Stratton, porque ele é um homem honrado, enquanto o

senhor...

Marina voltou-se e saiu praticamente correndo. Kit chegou a segui-la, mas quando

chegou à porta, o coche já havia partido.

Marina recostou-se no banco de couro e respirou fundo. Não queria desmaiar. Não

agora. Mantivera o controle durante toda aquela terrível entrevista e não havia por que

perdê-lo agora quando tudo já terminara.

Kit Stratton era um demônio, com certeza. Um canalha. Lady Luce a avisara, mas

ela não ouvira... Quebrara todas as regras indo visitá-lo em sua casa. Aliás, nenhum

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homem de bem viveria ali. Mesmo uma estranha na cidade poderia saber disso. Ele devia

usar aquela casa modesta para receber e entreter suas amantes. Se aceitasse a

proposta dele, também ela seria levada ali para... para... Não queria nem pensar.

Mas era fato: Kit Stratton oferecera-lhe perdoar a dívida de lady Luce em troca

de sua honra.

Ele devia saber que ela não o faria! Que não poderia! Então, por que, mesmo assim,

lhe fizera aquela proposta indecente?! Não fazia sentido... Kit não gostava dela e muito

menos a admirava.

Fora uma grande tola, levada pelo desespero de encontrar um modo de manter seu

emprego. Vira a arrogância nos olhos dele, mas imaginara poder encontrar uma forma de

comovê-lo, apelando para seu lado bom. Loucura! Kit Stratton não tinha um lado bom.

Ele não possuía sentimentos!

Cerrou os olhos, querendo esquecer tudo aquilo. Porém havia pensamentos demais

em sua mente. Estivera nos braços dele, lutara contra sua força, mas não o suficiente...

Em toda sua vida, nunca fora beijada com paixão. Não sabia o que era sentir tal

coisa. Jamais imaginara que pudesse gostar, corresponder até, indo contra tudo que lhe

havia sido ensinado. Kit Stratton forçara aquele beijo, e ela deveria tê-lo repudiado de

pronto, com convicção, mas houvera um momento em que cedera... Ele a tratara como

uma vadia porque se comportara como uma! E aquela proposta final provava isso. Ele

tomaria sua inocência sem arrependimento algum, como se sua virtude não valesse mais

do que uma carta virada numa partida de faraó. Ficaria menos de uma hora em sua

cama, e depois ele a enviaria de volta a lady Luce, usada, em troca de doze mil libras...

Lady Luce ficaria grata? Marina duvidava. Se algum dia descobrisse, a velha

senhora iria rir dela. Não, não podia aceitar aquela proposta humilhante. Jamais!

O coche parou diante da casa de lady Luce e a porta da frente se abriu assim que

Marina desceu do veículo. O conde apareceu na soleira, carrancudo.

— Ah, por fim chegou, srta. Beaumont! — exclamou ele, sem preâmbulos. — Nem

vou perguntar aonde esteve! Temos um assunto muito mais importante a tratar! — Ele a

olhou de cima a baixo. — E nem precisa trocar de roupa para falarmos. Serei breve.

Kit serviu-se de um segundo copo de Madeira e bebeu-o de uma só vez. Olhou pela

janela da sala e negou de leve com a cabeça, observando o céu cinzento. Aquela jovem

fora tola e ingênua em seu pedido, e ele fora longe demais... Afinal, ela era uma dama, e

a tratara de forma vergonhosa. Ainda mais quando falara sobre o tempo em que

ficariam juntos. Como havia sido cruel! Imperdoável! Devia estar ficando louco. Estava

perdendo o controle, sim, e jamais o fizera com as mulheres. Jamais. Pelo menos, não

por mais de cinco anos...

Desde aquele momento louco em que se comprometera com Emma Fitzwilliam,

nunca mais se permitira falar ou fazer algo que pudesse fazer uma dama recuar diante

de seus avanços. E achara que sabia como interpretar todas as mulheres.

No entanto, a srta. Beaumont parecia não ser previsível. Não sucumbira a seu beijo

bem treinado. Rebatera suas palavras e, até mesmo, o comparara a... Hugo!

Como a dama de companhia podia conhecer Hugo?! Teriam se encontrado alguma

vez? Ela devia ser apenas uma criança quando Hugo voltara da guerra... E ele logo se

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casara com Emma.

Se havia algo entre a srta. Beaumont e seu irmão, isso teria de ter acontecido

depois do casamento dele. Fosse como fosse, esse não era o comportamento de seu

irmão. Não fazia sentido... o que Hugo poderia querer com uma mulher assim quando

tinha Emma?

Emma era loira, linda, cheia de vida, adorável! Uma esposa perfeita! E a srta.

Beaumont era simplória, sem graça... nem parecia saber como sorrir. Era altiva,

orgulhosa. O que Hugo teria visto nela?

O inesperado.

Ela não era como as outras... Era diferente das mulheres que Kit já levara para a

cama. Lutara contra ele. E lhe falara de honra e do valor de um cavalheiro. Não, não

podia ser amante de Hugo. Devia haver outra coisa entre os dois. Era um mistério. E Kit

não sossegaria até descobrir tudo.

Levantou-se e foi até a porta, de nada adiantava permanecer em casa. Katharina

estava longe e não poderiam se encontrar por diversos dias. Às vezes, infelizmente, o

marido tinha prioridade... Kit podia ir até o clube, ouvir os comentários.

Pensou no tempo ruim e no fato de não dispor de uma carruagem em Chelsea. E

decidiu pedir outro coche.

Imaginava se a srta. Beaumont teria voltado diretamente para a casa de lady Luce.

Talvez jamais se aventurasse sozinha pelas ruas de Londres, muito menos no parque,

logo cedo. Fugira dele como uma corça assustada.

Lembrou-se da entrevista tensa que tiveram. Não chegara a pensar com clareza

nos motivos que a haviam levado a lhe pedir com tanta intensidade para que perdoasse a

dívida de sua patroa. Nem dera chance a ela para que se explicasse... Simplesmente,

fora direto e grosseiro com ela.

Seria uma grande loucura para ela encontrá-lo novamente, ainda mais sabendo o

que iria acontecer entre ambos se fosse ao encontro. Mas como poderia estar certo de

que ela não apareceria?

Devia deixar ordens específicas para que qualquer carta que chegasse a sua casa

lhe fosse entregue de imediato. E precisava estar preparado para alugar uma

carruagem simples e fechada...

CAPÍTULO VII

Marina conseguiu apenas chegar até seu quarto, mas não teve forças para ir até a

cama, sucumbindo ao peso do próprio corpo. Deixou-se ficar ali, no chão, rosto coberto

com as mãos, pensando no que acabara de lhe acontecer. Fora demitida!

A proteção que a condessa lhe prometera de nada adiantara. Lorde Luce exigira

que ela deixasse a casa de sua mãe antes mesmo do anoitecer. Jamais escreveria um

bilhete para Kit Stratton marcando um encontro fatídico. Teria de deixar Londres.

Como poderia explicar tal situação à sua mãe?! Mal sabia se ainda havia dinheiro

suficiente em sua bolsa para poder comprar a passagem de volta a Yorkshire... E tudo

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por culpa de Kit Stratton!

— Doze mil?! — William quase gritou, assustado. — Está me dizendo que aquela

mosca-morta ficou ali, parada, enquanto a senhora perdia doze mil libras?!

— Ela não ficou "ali, parada"! Estava sentada. — A calma de lady Luce era

exasperante para seu filho. — E não tente bancar o mártir agora, William. A dívida é

minha, não sua.

— Ah, claro! E a senhora dispõe de todo esse dinheiro de imediato, devo supor.

A condessa nada disse, pensativa.

— Muito bem, pois eu também não tenho tanto assim! — William prosseguiu,

furioso. — Vou ter de pedir dinheiro a agiotas até poder vender algumas terras e

levantar essa fortuna! E saiba que nós dois vamos ter de economizar muito de agora em

diante! — Ele pareceu pensar um pouco, depois acrescentou: — Sua inútil dama de

companhia voltará a Yorkshire hoje mesmo e...

— O quê?! Não tem o direito de demiti-la! — lady Luce protestou. — Como ousou?

— Sou eu quem a paga, esqueceu-se, mãe? E ela tornou-se uma despesa que não

posso mais bancar. — E sua mãe tornara-se outra, William pensou, amargo. Seria

adorável poder dizer-lhe isso, mas se conteve.

— Bela vingança a sua, William — comentou lady Luce. — Procura humilhar sua

própria mãe. Não pensei que pudesse descer tanto.

Lorde Luce encarou-a por alguns segundos; poderia jurar que havia ódio nos olhos

de sua mãe.

— Mãe, eu não posso, realmente, pagar a srta. Beaumont. Mas, se acha que ela

deve permanecer aqui por mais alguns dias, que assim seja. Reconheço que seria

desumano mandá-la de volta com um tempo ruim como o que estamos tendo.

A condessa olhou-o, parecendo surpresa diante de tanta generosidade. Depois

assentiu.

— Diga a ela o que decidimos, então — William acrescentou. — E... se eu conseguir

arranjar o dinheiro a tempo, tudo se resolverá. — Ele deu alguns passos até a porta,

mas pareceu lembrar-se de algo e voltou-se: — Mãe, por favor, pare com isso. Sei que

tem o direito de levar sua vida como quiser, mas... Olhe, sinto muito se interferi de

alguma forma. No entanto, se continuar a jogar desse jeito, vai arrumar a nós dois.

Peço-lhe que pense bem no assunto e veja que está agindo mal. Pense em seus netos,

pelo menos.

O rosto de lady Luce continuava implacável. Dessa vez, a tática de William não

funcionou.

— Eu... acho que nos encontraremos na igreja amanhã —William finalizou,

compreendendo que ela não mudaria de idéia. — Tenha um bom dia, mãe.

Lady Luce sentou-se em sua poltrona preferida assim que o filho se foi. Por

intermináveis minutos ficou ali, olhando para a rua, que ficava mais e mais movimentada,

lá embaixo. Porém sua visão era dificultada pela chuva que caía pesada. Com lentidão, a

condessa tocou a sineta que se encontrava no aparador a seu lado. E o mordomo

apareceu quase de imediato.

— Viu a srta. Beaumont esta manhã, Tibbs? — lady Luce perguntou, sem olhar para

o criado.

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— Sim, senhora. Ela conversou com lorde Luce, e logo em seguida...

— Isso não me interessa. Quero saber onde ela estava antes disso. Eu enviei a

minha camareira até seu quarto e ele estava vazio.

— Bem, ela... saiu bem cedo, senhora. A pé.

— E quando voltou?

— Pouco depois da chegada de lorde Luce. Conversaram na biblioteca.

— Entendo... Bem, o que está esperando, homem? Vá chamá-la! De que adianta ter

uma dama de companhia que nunca está comigo? Vá buscá-la agora mesmo!

Marina parou ao pé da escada para ajeitar as saias. Não estava mais suja de lama

como naquela terrível entrevista com lorde Luce. Mas estaria ainda pior se Kit Stratton

não lhe tivesse providenciado o coche. Talvez devesse ser grata por isso. Afinal, não se

molhara e não se perdera como quando seguira para Chelsea. Porém, se tivesse voltado a

pé, lorde Luce não a teria esperado e não a teria demitido. Mais uma vez, tudo por culpa

de Kit Stratton!

Ao entrar no quarto de lady Luce, a repreensão veio de imediato:

—Ah, então você está aí! O que acha de me explicar por onde andou esta manhã?

Marina mordeu o lábio inferior. Não esperava que sua patroa desse por sua falta.

Mas fora uma tola por pensar assim.

— Imaginei que a senhora fosse dormir até mais tarde, senhora — murmurou,

aproximando-se. — E saí para dar um passeio.

— Um passeio? Com um tempo desses? Faça-me um favor...

— Estou acostumada com a chuva, senhora. Em Yorkshire, chove muito. Se as

pessoas de lá saíssem apenas quando não está chovendo, não exercitariam as pernas.

— Muito bem — comentou a velha senhora, parecendo ainda contrariada. — Mas, no

futuro, espero que esteja sempre aqui quando eu precisar de você.

— No futuro? — Marina apertou as dobras da saia com as mãos, subitamente

trêmulas.

— Sente-se, menina. Você está pálida demais! E detesto quando alguém desmaia

diante de mim; portanto, se não está se sentindo bem, sente-se logo.

— Não, eu não vou desmaiar, senhora — afirmou Marina, tentando mostrar pleno

controle de si mesma. — Mas é que seu filho disse que eu deveria deixar esta casa ainda

hoje...

— Ele estava irritado com o seu comportamento, menina. Pelo que não o culpo. —

Lady Luce tentava parecer solidária para com o filho, porém não conseguia. — Mas ele

sabe muito bem que sou eu quem decide se você fica ou não. E, no momento, quero que

fique. Compreendeu?

— Sim, senhora.

— Muito bem, então. Há alguns assuntos dos quais preciso tratar esta tarde. E o

primeiro deles será encontrar roupas decentes para você. Esteja pronta para me

acompanhar em dez minutos. Não se atrase.

Marina levantou-se, fez uma breve cortesia para sua patroa e apressou-se a pegar

seu chapéu e sua bolsa.

— Muito bem, então: sim ou não? — lady Luce quis saber.

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Atônita, Marina voltou-se para ela.

— Vamos, menina, decida-se: gosta ou não desse vestido? — a condessa insistiu.

Marina olhava-se no espelho. O vestido verde, embora de linhas simples, caía-lhe

bem. Nunca tivera vestidos que não fossem cinza ou marrom, cores que facilitavam a

vida para uma mulher acostumada a trabalhar. E estava encantada com o que vestia

agora.

— É adorável, senhora! Mas eu não posso gastar o meu dinheiro com roupas agora.

E, como lorde Luce disse que eu devia partir...

— Bobagem! Você só vai partir quando, e se, eu quiser. E recuso-me a ter uma

dama de companhia mal vestida. O que sua prima, lady Blaine, diria, se a visse agora?

— Ela nunca me viu, senhora.

— Sei, sei. Bem, mas esse vestido está ótimo. Fique com ele. Ah, e com aquele

outro, para a noite, também. São um presente. Não vai precisar pagar por eles.

Marina sorriu, maravilhada. Não teria mais que usar seus vestidos velhos para

encontrar-se com Kit Stratton. Ele não iria...

Mas, o que estava pensando?!, recriminou-se. Não iria encontrá-lo de forma

alguma! Nunca mais! Já se decidira sobre o assunto. Não colocaria sua reputação em

risco, mesmo que fosse para salvar lady Luce e, consequentemente, seu emprego. Não

faria tal sacrifício nem para salvar sua mãe da penúria; e ela mesma não aprovaria tal

ato. Não, ela jamais saberia...

— Marina, estou esperando! — protestou a condessa. Estava cansada de esperar

que Marina se decidisse e tornasse a vestir suas roupas velhas para saírem da loja.

— Oh.desculpe me, senhora.Ficarei pronta num minuto!

No resto daquela tarde, Marina apenas acompanhou lady Luce e ouviu-a criticando

as pessoas, os hábitos, a vida da Londres naqueles dias. Como sua dama de companhia,

aceitava suas idéias, fazia breves comentários, sorria, mas não compartilhava as

opiniões de sua patroa. Na verdade, não conseguia prestar atenção a muitas coisas, pois

um rosto de homem insistia em habitar seus pensamentos. E era como se a pele de seus

braços e ombros reagisse à lembrança do toque dele. Também seus lábios pareciam

diferentes ao recordar-se daquele beijo...

— O que há, menina? Não se sente bem? — lady Luce indagou, notando-a estranha.

— Não vá me dizer que está enjoada do balanço da carruagem...

Marina forçou um sorriso.

— Olhe lá, hein! Não vá desmaiar em cima de mim, ou mando-a de volta a Yorkshire!

— protestou a velha senhora.

— Pode ficar tranqüila, senhora. Nunca desmaiei em minha vida e não pretendo

começar agora.

Por fim, ela estava de volta ao silêncio reconfortante de seu quarto! Podia pensar

em sua vida, sem ter de ficar prestando atenção ao que a condessa falava. E ela fizera

comentários severos contra muitas coisas, inclusive contra ela mesma, Marina. Sabia

que merecia as críticas, embora mal as tivesse ouvido por ter estado tão distraída o

tempo todo. Estranhava-se.

Sempre fora prática, sempre tivera bom senso, nunca ficara sonhando acordada. E

agora estava assim por culpa única e exclusiva de Kit Stratton! Fora ele quem acabara

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com sua paz de espírito fazendo-lhe aquela proposta escandalosa. Tentava afastá-lo de

sua mente, mas não conseguia. Se fechasse os olhos, poderia revê-lo, com seu belo

rosto, seu sorriso irônico e seu olhar duro...

Marina abriu bem os olhos, porém ele parecia grudado em seus pensamentos. Tinha

até receio de dormir e de sonhar com ele. Tinha medo de que, no sonho, Kit tornasse a

abraçá-la e a beijá-la daquela forma...

Levantou-se da cama e deu alguns passos pelo quarto. Estava cansada e com sono,

mas precisava pensar. Não podia ceder à proposta que Kit Stratton lhe fizera. Seria

imoral, indecente! Uma mulher tinha de permanecer pura até se casar. E Marina jurara

a si mesma que só se entregaria a seu marido, a fim de dar-lhe filhos. Vira, muitas

vezes, o tratamento que se dava a mulheres de reputação duvidosa, mesmo em

Yorkshire. Elas tinham um destino terrível...

Não podia enveredar por esse caminho, entregando-se a Kit Stratton. Ele a usaria

e depois a descartaria. Não sofreria; sairia livre de seus pecados, enquanto ela

carregaria o fardo pelos dois. E ele ainda a condenaria por ter sido uma mulher fácil.

Tocou os lábios ao recordar-se do beijo dele mais uma vez. Era como se uma chama

tivesse sido acesa dentro de seu corpo e estivesse ainda se alastrando...

Não, não podia deixar-se envolver. Kit Stratton era um sedutor contumaz, um

canalha. Soubera muito bem o que estava fazendo com ela, pretendera fazê-la derreter

entre seus braços e aceitar seus avanços. Não, ele nada sentira de fato. Ela era apenas

mais uma a ser conquistada e depois esquecida.

Agora, Marina andava mais depressa pelo quarto. Parou de repente e se apoiou no

encosto de uma cadeira. Não permitiria que ele a controlasse daquela forma. Não

pensaria mais em Kit Stratton.

Precisava encontrar uma maneira de resolver o problema antes que o dinheiro

devido pela condessa tivesse de ser entregue a ele. Muito bem, Kit tentara levá-la para

a cama por meio de um ardil; ela também poderia pensar em alguma coisa para enganá-

lo.

Pensou durante mais algum tempo, até que uma provável solução lhe ocorreu.

Seu pai lhe ensinara um truque com as cartas. Nunca o usara, mas adorara tê-lo

aprendido. E tanto seu pai quanto seu tio se divertiam quando ela os enganava, sem que

percebessem. Tinham sido bons tempos aqueles em que todos sorriam... Podia ainda

rever o corpo alto e magro do pai, vestido com o elegante uniforme de soldado. No

último dia em que se haviam visto, antes da partida para a guerra, seu pai e seu tio

tinham-na elogiado muito; e ela não passava de uma garota de catorze anos que não se

julgava bonita... Mas, depois das palavras deles, havia se sentido especial. E no inverno

seguinte, a notícia terrível chegou. Sua mãe nunca mais sorriu. Num só dia, ela perdera

seu único irmão e o marido que tanto amava. Porém Marina nunca a viu chorar ou

lamentar-se; nem mesmo quando descobriram que o jogo tinha deixado muitas dívidas

em nome de seu pai. Sua mãe tornara-se uma mulher silenciosa e séria, que devotava

todos os seus esforços a encontrar um meio de sustentar os dois filhos. Passara a

lecionar muito, e eles tinham conseguido sobreviver.

Marina girou o anel em seu dedo e olhou-o, entristecida. Era tudo que lhe ficara de

seu pai, além das lembranças que possuía dele e de sua habilidade com as cartas. E ela

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agora usaria essa mesma habilidade contra Kit Stratton. Seu pai ficaria orgulhoso se a

visse jogando.

Foi sentar-se a mesa que ficava abaixo da janela e pegou uma folha de papel.

Molhou a pena no tinteiro e começou sua carta:

Prezado sr. Christopher Stratton...

Parou, hesitando. O que escreveria? Ele estava esperando uma carta marcando um

encontro, não um convite para um jogo de cartas. E onde poderia marcar esse jogo?

Seria loucura ir sozinha à casa dele em Chelsea, se queria sair de lá com sua virtude

intacta.

Talvez pudesse desafiá-lo para jogarem na casa de lady Méchante. Teria de

persuadir a condessa a levá-la até lá novamente e esconder as apostas que faria, mesmo

sem dinheiro algum.

Largou a pena, pensativa. Onde estava seu bom senso?, indagava-se. Devia estar

ficando louca... Não havia como tirar doze mil libras de Kit Stratton dentro de cinco

dias. Não, a não ser que fosse sozinha até sua casa. Lá, poderia... Não. Tinha de haver

outra solução!

Pegou a pena mais uma vez e ficou pensando. Encontrou uma outra saída, não tão

segura, mas, ainda assim, considerável. Começou a escrever, parando de vez em quando

para avaliar melhor as palavras a serem usadas. Quando terminou, recostou-se na

cadeira e leu:

Senhor, em referência ao assunto que discutimos recentemente, acredito que

considere o que tenho a oferecer valioso o suficiente, embora, com certeza, não possa

fazer o pagamento de antemão. Assim, peço-lhe que me envie o papel de garantia que

está em seu poder; enquanto isso, providenciarei tudo que for necessário para que

possamos concluir nosso acordo. E estarei pronta para isso assim que o documento que

lhe peço chegue as minhas mãos.

Satisfeita, Marina assinou a carta. Kit Stratton enviaria a garantia escrita pela

condessa, sabendo que, como mulher de palavra, ela, Marina, se entregaria a ele sem

contestar. Mas ela não o faria! De alguma forma, assim que recebesse a garantia,

encontraria um meio de não cumprir sua parte no acordo. E a recompensa pela infâmia

que ele lhe propusera seria manter sua virtude intacta! E começaria a praticar de

imediato com as cartas para que, se fosse necessário, pudesse usar sua habilidade com

elas. Poderia, assim, rir diante de Kit Stratton quando triunfasse.

CAPÍTULO VIII

Kit ergueu a cabeça, irritado, quando a porta do escritório foi aberta. Tinha dado

ordens específicas para não ser incomodado. No entanto, ao ver o irmão, seu semblante

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se suavizou.

— Hugo! O que o traz de volta à cidade? Quanto tempo vai ficar agora? —

perguntou e encaminhou-se para apertar-lhe a mão.

— Pouco tempo. Uma ou duas semanas — respondeu Hugo, um tanto

enigmaticamente. — Negócios, Kit.

Mas Kit conhecia bem demais o irmão para deixar de notar aquele estranho

sorriso.

— Ah, aposto que ouviu falar dos meus... ganhos e quis saber de tudo

pessoalmente, com detalhes. Deveria parar de se preocupar comigo, meu irmão. Já sou

bem crescidinho.

Hugo riu, satisfeito.

— É exatamente isso que me preocupa, Kit. Mas... por que não me conta o que anda

acontecendo desde que nos falamos pela última vez?

— Claro. Mas dê-me um instante para terminar esta carta, sim? — Kit voltou para

trás da escrivaninha, assinou a carta, dobrou-a e, em seguida, a colocou no envelope. —

Por favor, toque a sineta, sim, Hugo? Preciso mandar isto agora mesmo.

Assim que o garoto de recados apareceu, Kit entregou-lhe a carta, avisando:

— Isto deve ser entregue ainda esta tarde. E certifique-se de que o mensageiro

que entregar esta carta permaneça anônimo.

O rapaz se foi e Hugo comentou, sorrindo:

— Não pode deixar que o marido dela descubra a origem das cartas que recebe,

não é? É, acho que eu faria o mesmo, se estivesse em seu lugar.

Kit apenas sorriu. Voltou a aproximar-se do irmão e sentou-se junto dele.

— É claro que você já ouviu falar do meu romance com Katharina. Como é que fica

sabendo das coisas, enfiado lá no campo?

— Segredo de família, meu caro. Como chefe do clã, tenho que obter certas

vantagens, você sabe.

— Acho que aquela tia de Emma andou fofocando novamente. Posso perguntar que

tipo de histórias ela andou contando desta vez?

— Tem razão. Tia Warenne nos mantém bem informados. E ela diz que a sua

baronesa é um diamante de primeira grandeza. E que tem um marido excessivamente

possessivo.

— Mas não precisa se preocupar comigo, Hugo. Ele é possessivo, de fato, mas atira

muito mal.

Hugo tornou a sorrir e avisou:

— Tome cuidado, Kit. Não quero ser o único Stratton vivo.

— Pode ficar tranqüilo. Vou viver muito mais do que você.

— Mesmo assim, cuide-se. Até esse barão pode acabar acertando um tiro. Entendo

que você tenha gostado de ter a esposa dele por amante em Viena, mas sabe que, aqui,

tudo é diferente, mais perigoso. Como diplomata, o barão tem muito a perder.

— É verdade.

— Pelo que ouvi dizer, você levou quase um ano para seduzir essa mulher. A

baronesa lhe é tão cara assim, que quis continuar seu relacionamento quando ela veio

com o marido para a Inglaterra?

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Kit nada disse. Levantou-se, serviu dois copos de Madeira, entregou um ao irmão e

bebericou o seu.

— Talvez a baronesa tenha sido o motivo pelo qual você não quis voltar para cá

depois da morte de John — Hugo insinuou.

— Eu ainda demorei a seduzi-la depois que retornei dos funerais — Kit explicou. —

Mas, agora, é ela quem praticamente me persegue.

— Kit... Não lhe ocorre que seduzir mulheres casadas pode ser algo... errado?

— Acho essa uma maneira muito melodramática de ver as coisas, Hugo.

— Talvez, mas quero lhe dizer uma coisa: se um homem, qualquer um, tentasse

seduzir Emma, eu não hesitaria em meter uma bala na cabeça do infeliz.

Kit encarou-o, já não sorria.

— Mas Emma jamais se deixaria seduzir — rebateu. — Essa é a grande diferença.

Levei muito tempo para seduzir Katharina porque ela estava gostando de cada minuto da

conquista. Não se iluda, ela decidiu desde o princípio que se deixaria seduzir. Porém fui

esperto o suficiente para perceber isso. Cheguei a apostar com vários colegas da

embaixada sobre quando a seduziria e devo dizer que ela me rendeu uma soma

considerável.

— Calculista! Bem, mas, se a baronesa nada significa para você, por que ainda está

com ela aqui em Londres?

— Porque isso se adequou perfeitamente aos meus outros planos. Se a sociedade

se convencesse de que estou profundamente apaixonado pela baronesa, ninguém ficaria

especulando sobre o que mais eu tinha em mente, ou quais outras mulheres pretendia

seduzir. Sabe, gosto de agarrar minhas presas quando estão... distraídas.

Hugo negou de leve com a cabeça.

— Como estava a pobre lady Luce, eu suponho. Doze mil libras! Não acha que foi

longe demais, Kit? Afinal, ela levou apenas cinco mil de você...

— É verdade, mas cinco anos de exílio aumentam em muito a soma, como se fossem

juros. Acho que doze mil é mais do que justo. Se ela pagar.

— Por quê? Há alguma chance de ela não o fazer?

— Não sei se vai querer ou poder. Mas não importa. Tenho certeza de que não vai

poder me pagar sem a ajuda do filho e ele está farto de sustentar-lhe o vício. Toda a

cidade sabe disso. Por outro lado, como seria se ele...

— Se ele a deixasse completamente desamparada? Todos sabemos a resposta para

essa pergunta. Nenhum dos dois seria recebido em lugar algum. Nunca mais. E o filho de

Luce não vai permitir que isso aconteça, não com a esposa que tem e que adora a vida

social. Ela tornaria a vida do infeliz um verdadeiro inferno. Nunca vi mulher mais

artificial, mais fútil.

— Esse é um dos grandes perigos do casamento, meu irmão.

Hugo negou com a cabeça.

— Não, quando a gente se casa com uma mulher apaixonada. Não acha que...

Kit levantou-se e foi até a porta, sabendo que a conversa começava a tomar um

rumo do qual não gostava. Não devia ter tocado no assunto "casamento".

— Alguns amigos meus estão a minha espera no clube — mentiu. — Acompanha-me

até lá? Se não sairmos agora, chegaremos atrasados.

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Hugo percebeu a fuga, mas não insistiu. E sabia que Kit estava aliviado com isso.

Respeitando muito o irmão mais velho, Kit sempre evitava discutir com ele, ainda mais

um assunto que detestava abordar. Achava que as mulheres apenas criavam problemas,

nada mais.

Um pensamento lhe ocorreu de repente, e abriu a porta, apressado, chamando pelo

mordomo. Quando ele apareceu no hall, indagou:

— A carta que dei ao garoto há pouco. Já a enviou?

— Bem, senhor, eu ia tratar disso agora...

— Não quero ouvir suas desculpas. Onde está ela?

O mordomo retirou a missiva do bolso, um tanto atrapalhado pela pressa. Kit

pegou-a e jogou-a sobre sua escrivaninha, reclamando:

— Culpa sua, Hugo! Fez-me lembrar de uma coisa: não devo responder tão

depressa. Acho que a dama deve esperar um pouco mais. Nunca se sabe, pode ser bom

para ela... Bem, podemos ir?

Hugo meneou a cabeça e pegou sua cartola.

— Cuidado, meu irmão — aconselhou. — Um dia, pode ser você quem terá de

esperar para receber uma carta muito aguardada... e ser vítima de um tratamento

indiferente como o que está dando agora a essa senhora.

— Não, Hugo. Nenhuma mulher faria isso comigo. Nenhuma.

Marina acompanhava a condessa, seguindo-a dois passos atrás. O vestido cor de

âmbar que usava e que lhe parecera deslumbrante ao experimentá-lo, agora era

ofuscado pela elegância e riqueza dos outros, usados pelas convidadas da festa. Teria

de manter-se em sua posição de sombra, como sempre.

Depois das apresentações necessárias, lady Luce entrou no salão e parou por

alguns segundos para poder dar uma olhada ao redor. Chamou Marina para mais perto e

comentou:

— Vê aquelas damas junto à janela? — E indicou, com o leque, duas senhoras

ricamente vestidas. — Aquela com o vestido amarelo é Charlotte, esposa de meu filho.

Nunca teve gosto para nada a infeliz! E nunca foi bonita, tampouco. Era passável quando

mais jovem, admito, mas acabou ficando isso aí por ter tido tantos filhos. Dez,

acredita?! Um herdeiro e uma filha seriam mais do que suficientes para qualquer

cavalheiro.

Marina mal conseguia abafar o riso diante daquela observação, mas as palavras

seguintes da condessa não tinham nada de engraçadas:

— Então, o que acha de sua prima exaltada? — Como Marina a olhasse, sem

entender, ela explicou: — A mulher ao lado de Charlotte. É a atual viscondessa Blaine.

Marina olhou para a mulher muito magra, com nariz longo, deselegante e o vestido

moderno, porém sem graça. Usava jóias demais, e isso fez Marina começar a comentar:

— Ela parece tão...

— Exatamente—concordou lady Luce, mesmo sem ter ouvido a comparação. — Mas,

venha. Vamos às apresentações. — E cruzou o salão, sendo seguida de perto por Marina,

que não se achava muito à vontade por conhecer uma das pessoas que haviam tratado

sua família com tanto desprezo durante anos.

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— Boa noite, Charlotte — a condessa cumprimentou. — E boa noite para a senhora

também, lady Blaine.

As duas mulheres retornaram as saudações, sem parecerem cordiais. E ignoraram

Marina por completo.

— Eu gostaria de apresentar minha dama de companhia — insistiu lady Luce —,

Srta. Beaumont.

As duas damas olharam para Marina por segundos e não pareceram gostar do que

viram. Nem sequer lhe ofereceram a mão.

— É surpreendente vocês ainda não se conhecerem — comentou lady Luce, cheia

de ironia. — Considerando-se que a mãe da Srta. Beaumont é prima direta de seu

marido, lady Blaine. Mas, e ele? Parece-me que está fora do país há alguns meses...

Charlotte Luce olhava para Marina com interesse crescente, deixando-a pouco à

vontade.

— Então, esta é a garota que lhe recomendei... — lady Blaine observou com ar

altivo. Sua voz, muito aguda, chegava a ser irritante. — Espero que esteja satisfeita

com ela, lady Luce. Mas deve entender que a recomendei apenas porque seu filho disse

que havia urgência em arranjar-lhe uma companhia. E não consegui pensar em ninguém

mais que pudesse servir, já que não tinha tempo para escolher. Com mais tempo

disponível, eu, com certeza, teria encontrado alguém que lhe interessasse bem mais.

— Ah, mas você foi muito útil, querida! — lady Luce exclamou, extremamente

irônica agora. — Pode ficar tranqüila e satisfeita. Deixe as boas ações para aqueles que

estão acostumados a praticá-las. Venha, Marina. — E a condessa afastou-se, levando

Marina consigo antes que lady Blaine pudesse dar uma boa resposta. — Ignore-a —

aconselhou, conforme caminhavam pelo salão. — É uma mulher sem berço. Blaine a

desposou pelo dinheiro que ela possuía. Os homens dessa família sempre se casam por

dinheiro e o gastam todo com as suas amantes.

Marina arregalou os olhos diante da franqueza da condessa. Como dama de

companhia, ela sabia que devia conter a língua, mas viver junto a lady Luce era, sem

sombra de dúvida, nada aborrecido...

Lady Luce continuou apontando para outros convidados e contando a Marina

histórias mirabolantes sobre eles. Era uma distração e tanto ouvir os fatos

apimentados que ela sabia.

— Está vendo aquela empertigada ali adiante? — dizia ela. — É a filha mais velha

de lady Blaine. Milly, ou Tilly, não me lembro bem de seu nome. Veja como ela tem o

mesmo rosto eqüino da mãe.

Marina conteve-se para não rir. A impressão que lady Blaine lhe causara era, de

fato, a mesma externada por lady Luce:

— Pobre bichinho feio. E a mãe insiste em vesti-la de branco! Pálida como é, parece

sempre estar doente, a pobrezinha. Puxa, essa mulher tem menos gosto do que minha

nora!

Marina olhou para a pista de danças, onde um casal valsava, e perguntou:

— Quem é aquela moça loira, tão linda?

— Ah! É lady Stratton. Seu nome era Emma Fitzwilliam, antes de se casar. Está

dançando com o marido, sir Hugo Stratton.

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Interessada, Marina continuou olhando, até que, na dança, o casal se voltou e ela

pôde ver o rosto de sir Hugo. Mesmo sendo mais velho e tendo aquela cicatriz que lhe

cruzava a face, a semelhança entre ele e Kit Stratton era grande.

Lady Luce notava o interesse de Marina e aproximou-se mais para explicar:

— Emma era a garota mais linda da cidade quando se casaram. O dinheiro dela

ajudou a compensar o escândalo.

— Escândalo?! Que escândalo?

— Acredito que você seja jovem demais para entender. Mas é um motivo a mais

para tomar cuidado com Kit Stratton, ouviu? Ele comprometeu Emma, mas se recusou a

desposá-la. E o irmão o fez. Foi por isso que Kit teve de passar os últimos cinco anos no

exterior.

Marina olhou mais uma vez para o casal. Eles sorriam um para o outro com um amor

tão visível que fez o seu coração se apertar. Fossem quais fossem os motivos daquele

casamento, era evidente que se amavam, e muito, agora.

— Mas que coisa! — exclamou a condessa, de repente. — Será que não consigo

evitar esse homem?! Continua aparecendo em todos os lugares!

Kit Stratton acabara de entrar no salão e misturava-se aos convidados. Marina

sentiu o estômago se apertar ao vê-lo. Suas mãos suavam dentro das luvas. Respirou

fundo, na esperança de que ele não a visse.

Viu-o aproximar-se de uma senhora e inclinar-se para fazer-lhe uma elegante

saudação. Mas não ficou mais do que alguns segundos com ela; dirigiu-se à pista de

dança, bateu de leve no ombro do irmão e, sem constrangimento, "roubou-lhe" a dama.

Sir Hugo apenas sorriu, se afastou e foi parando aqui e ali para trocar algumas palavras

com conhecidos. Não olhou para trás nem mesmo uma vez. Ao passar os olhos pelo salão,

viu Marina e a condessa. Pareceu vacilar alguns segundos, depois voltou a andar por

entre os presentes.

— Não me parece haver ressentimentos entre eles — Marina comentou, sem

conseguir conter seus pensamentos.

— Só aparências, aposto — lady Luce observou. — Marina, vamos. Não quero ficar

aqui nem mais um minuto. Não esperava que o ar desta festa ficasse tão poluído de

repente.

Marina olhou mais uma vez para os convivas, em especial para a alta e elegante

figura de Kit Stratton, depois seguiu sua patroa até a saída, sem perceber que não era

a única interessada no jovem aristocrata. A srta. Tilly Blaine, um tanto oculta atrás de

um pilar, olhava-o intensamente, como se nunca tivesse visto um homem tão bonito.

Marina não dormiu bem naquela noite e seu dia também não foi muito bom. Mesmo

assim, tentou dar toda sua atenção a lady Luce e aos visitantes que ela recebeu tarde.

Quando todos já tinham saído, a velha senhora sentou-se pesadamente numa poltrona e

ajeitou a peruca.

— Oh, graças a Deus! — exclamou. — Pensei que aquelas duas harpias nunca fossem

embora!

Marina apenas sorriu, sabendo que ela gostara de receber as visitas. O problema

era que as duas últimas senhoras que a haviam visitado não tinham sido capazes de

rebater as coisas que a língua ferina da condessa dizia.

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— Posso saber por que está rindo? — lady Luce perguntou, notando a expressão de

Marina.

— Bem, eu estava pensando na definição da palavra "harpia", senhora. Sempre

soube que elas eram seres mitológicos assustadores, com garras mortíferas. Mas não

me pareceu que a sra. Varity e sua filha fossem assim tão terríveis...

Lady Luce não conseguiu conter o riso. A sra. Varity nada tinha de assustadora, na

verdade, a não ser seus inúmeros quilos a mais.

— E elas nem mostraram garras... — Marina prosseguiu. — E nem sei por que, pois

nem sempre suas visitas são recebidas com extrema bondade, senhora.

Lady Luce bateu muito de leve com o leque fechado no pulso de Marina, numa

repreensão que nada tinha de severa. Estava, de fato, gostando das palavras de sua

dama de companhia.

— Já chega, mocinha. Parece que estou criando uma cobrinha aqui comigo.

— Acho que sim, senhora — Marina concordou, sorrindo.

— Ah, mas não vou suportar que você defenda essa sra. Varity, sabia? Ela só veio

até aqui para saber em detalhes o que aconteceu na casa de Méchante, na outra noite.

Aposto que queria rir da minha perda. Mas acho que consegui tirar tal idéia de sua

mente.

— Ah, com certeza, senhora! — Marina sabia que aquele era um bom momento para

tocar no assunto que lady Luce praticamente já abordara: — Está esperando a visita do

sr. Stratton nos próximos dias, senhora?

Ela estava ansiosa. Por que demorava tanto para responder à carta que lhe

enviara?!

— Mas isso é do seu interesse? Aposto que já se deixou levar pelo rosto bonito

que ele tem!

— Não, não! Eu só queria... bem, estava imaginando apenas se... como um cavalheiro,

ele não poderia vir para perdoar-lhe a dívida.

Lady Luce riu com deboche.

— Ele? Kit Stratton não tem um único osso cavalheiro em seu corpo! Preferiria

morrer antes de vir...

— Lady Luce interrompeu-se com a chegada do mordomo. — Sim, Tibbs?

O criado inclinou-se de leve e lhe entregou uma carta.

— Acabou de chegar, senhora. Em mãos. E o mensageiro não esperou para levar

uma resposta.

Lady Luce estendeu a mão para pegar a carta, mas Tibbs explicou:

— É para a srta. Beaumont, senhora.

Marina teve um sobressalto. Agradeceu ao mordomo, sentindo os olhos

perspicazes de lady Luce em si. Damas de companhia recém-chegadas do interior não

costumavam receber cartas, já que não tinham conhecidos na cidade. Precisava pensar

no que explicar a sua patroa, caso ela lhe fizesse perguntas a respeito.

Marina sentiu que a carta era mais pesada do que o normal. E devia ser de Kit

Stratton. A caligrafia no envelope era refinada e masculina. Sentindo que a condessa a

olhava ainda com maior curiosidade, enfiou a carta no bolso enorme de sua saia e voltou-

se para ela.

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— Pode abrir, se quiser, menina — disse lady Luce. — Deve estar curiosa para

saber quem lhe escreveu.

— Bem, eu já sei quem foi, senhora... Só há uma possibilidade, já que... não tenho

amigos em Londres. Mas há um... padre aqui que conhece meu irmão... — Ela esperava

estar sendo convincente. — Lembra-se de que eu lhe disse que Harry vai ser padre?

Esse sacerdote vive em Londres com a irmã, na paróquia, e ela deve ter-me escrito...

Gentil de sua parte, não acha? — Marina tentava sorrir.

Lady Luce olhou-a por alguns segundos, muito séria. Depois disse:

— Está em Londres para ser minha dama de companhia, menina. Não para manter

contato com um padre e sua irmã. Já chega termos de ouvi-los nos sermões de domingo.

Nos dias de semana seria insuportável, não acha?

Marina teve de rir. Lady Luce não fazia segredo do que pensava da igreja. No

domingo anterior, mostrara-se entediada na missa, chegando a bocejar alto e chamar a

atenção de todos, o que encheu seu filho e nora de vergonha.

— Pode visitar esse padre quando não estiver a meu serviço, entendido? — insistiu.

— Sim, senhora.

— Muito bem, vá ler a sua carta, então. Parece-me que está ansiosa por isso. Não

vou precisar de você até o jantar.

— Obrigada, senhora. É muito gentil. — Marina deixou a sala devagar, controlando-

se para não sair correndo escada acima, em sua ansiedade.

Quando chegou ao seu quarto, fechou a porta, sentou-se na cama e abriu o

envelope, apressada. Kit Stratton devia ter mordido a isca, analisou.

Em sua pressa, deixou cair um papel dobrado de dentro do envelope, e decidiu lê-lo

depois. No momento, queria apenas ter certeza de que estava com o papel assinado por

lady Luce em mãos.

Mas decepcionou-se ao ver a mesma caligrafia do envelope. Por que Kit Stratton

lhe escrevera duas cartas?, indagou-se, sem entender.

E a resposta veio logo. Uma das cartas não estava endereçada a Marina, mas à

própria condessa. E era óbvio que ele quisera que Marina a lesse. Só podia ser esse o

motivo pelo qual Kit Stratton não a selara.

Leu, apressada, sentindo-se mais e mais animada a cada linha. Aquela carta poderia

valer por um perdão da dívida! Ele dizia que perdoaria a dívida no fim da semana, quando

visitaria a condessa!

Marina cerrou os olhos e apertou a carta contra o peito. Era bom demais para ser

verdade. Armara uma ratoeira e ele caíra! E seu futuro estava assegurado agora.

Chegou a imaginar sua mãe, confortavelmente instalada, com um olhar agradecido

por sua ajuda. Dentro de algumas semanas, poderia enviar-lhe sua primeira contribuição

para que a situação financeira da família melhorasse. Seria maravilhoso! Desde que Kit

Stratton pudesse ser convencido a desistir da segunda parte do acordo...

Marina abriu os olhos, assustada. Ainda precisava enfrentar esse aspecto. Mas,

pelo menos, a dívida da condessa já não seria um problema. Abaixou-se para pegar a

outra carta. O que ele teria a lhe dizer?

A carta era curta. Tinha apenas duas linhas. Não havia uma saudação nem uma

assinatura. Apenas palavras frias:

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Cachecol branco. Amanhã. A carta foi pós-datada e pode ser publicamente

revogada.

Não fazia sentido! Marina pegou a outra carta novamente, lendo cada linha com

extremo cuidado. O que não entendera?!

De repente, tudo ficou claro. A carta estava datada para dali a dois dias e

endereçada à condessa. Seu tom era simples e formal.

Dizia:

Senhora, sua intermediária pediu-me para não exigir o pagamento de seu débito.

Far-lhe-ei uma visita amanhã, como combinado. Sua garantia de pagamento lhe será

devolvida então.

Christopher Stratton.

Na pressa, ela deixara de ler a palavra "amanhã" e a data... Aquela carta de nada

valia. Fora enganada! Fora arrogante e tola por achar que conseguiria enganar alguém

tão esperto quanto Kit Stratton. Ele se aproveitara de seu estratagema e o voltara

contra ela própria. Não poderia agora exigir que ele fizesse sua parte no acordo antes

que cumprisse a sua! Nem podia mais voltar atrás. Se não o encontrasse, ele tornaria o

caso público, usando a carta de Marina como prova de suas alegações contra ela. E

Marina seria chamada de mentirosa, de vadia, de falsa! E lady Luce a demitiria no ato!

Teria de voltar a Yorkshire sem um centavo, além de carregar o nome enlameado! Sua

mãe ficaria envergonhada, perderia seus alunos, teriam de contar com Harry para

sustentá-las!

E quanto a Harry?! Também sofreria! Poderiam pedir-lhe que deixasse Oxford, já

que ele tinha uma irmã tão sem caráter!

Marina sentiu as lágrimas descerem por seu rosto. Mas as secou, irritada consigo

mesma por saber que fora a causadora de toda aquela situação. Havia sido idiota,

escrevera uma carta que a incriminava!

Kit Stratton vencera. Podia detestá-lo, amaldiçoá-lo, xingá-lo. Ele vencera. E a

esperaria, no dia seguinte, em sua carruagem. E ela agora não tinha outra saída a não

ser ir ao seu encontro...

CAPÍTULO IX

Marina não dormiu. E assim que ouviu os primeiros ruídos que denunciavam o

amanhecer na casa, levantou-se e começou a preparar-se para seu fatídico encontro

com Kit Stratton. Sentia-se como um condenado que caminha para o patíbulo. Lavou-se

na água que ficara da noite anterior, na vasilha sobre a penteadeira, e sentiu-a fria,

mas não a ponto de fazê-la estremecer. Parecia estar anestesiada para tudo. Depois

procurou, nas poucas roupas de baixo que havia na cômoda, aquelas que menos

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apresentavam sinais de remendos. Só então um tremor percorreu seu corpo. Kit as

veria... Veria suas roupas de baixo! Mas seu orgulho não permitiria que ele descobrisse a

total extensão de sua pobreza. Kit Stratton devia lembrar-se de que ela era uma dama

e, assim, uma igual.

Olhou para o belo vestido pendurado no cabide. Aquele que lady Luce lhe comprara.

Não, não poderia usá-lo. E procurou o mais sóbrio dos que havia trazido de Yorkshire.

Abotoou o colarinho alto, que lhe cobria até o pescoço, e só então se olhou no espelho.

Estava muito pálida. Seus cabelos, de um castanho profundo, contrastavam com a

brancura de sua tez, como se fossem uma peruca para um cadáver... Com dedos

trêmulos, fez-lhes uma trança e prendeu-a no penteado costumeiro. Queria que eles

estivessem praticamente invisíveis sob o chapéu.

Mas Kit Stratton lhe pediria para tirar cada peça de roupa que estava usando!

Marina engoliu em seco, passando os olhos pelo interior da carruagem. O veículo

estava longe de ser elegante. E tinha um cheiro de mofo, como se não tivesse sido usado

havia muito tempo.

— Peço-lhe desculpas pela carruagem — disse Kit Stratton, como se pudesse ler

seus pensamentos. No banco, diante dela, ele se sentava à vontade, olhando-a com

atenção. — Não é minha, deve entender. Porque pensei em sua reputação...

Marina encarou-o, desconfiada.

— Sim, devido a sua reputação — ele insistiu. — Aluguei este veículo anônimo, em

vez de utilizar o meu. Não gostei muito da qualidade, mas, como não permaneceremos

dentro dele por muito tempo... — Com calma, ele estendeu a mão magra para fora da

carruagem e trouxe o cachecol branco que ainda estava pendurado na maçaneta. Passou

a dobrá-lo com cuidado e continuou: — Não quero chamar a atenção de ninguém para a

sua presença aqui.

Ainda calada, Marina baixou os olhos para o fundo pouco limpo do veículo.

— Tire seu chapéu e suas luvas, por favor — ouviu Kit pedir.

Tensa, ela obedeceu, lutando um pouco com as tiras de seda do chapéu.

— Agora, dê-me sua mão — ele prosseguiu. E seus dedos longos envolveram os dela.

Depois, com um puxão brusco, retirou-a de seu banco, trouxe-a para o seu colo e a

beijou.

Sem raciocinar, Marina o empurrou. Kit fitou-a nos olhos. Sua expressão era

indecifrável. E observou, com voz baixa e, ainda assim, ameaçadora:

— De boa vontade, lembra-se, srta. Beaumont?

— "Em sua cama" de boa vontade — ela corrigiu. — Não numa carruagem suja e

malcheirosa!

Kit teve de rir.

— Touché, srta. Beaumont — aquiesceu. E, sem dificuldade, pegou-a pela cintura e

a recolocou em seu lugar. Depois, ainda rindo, recostou-se em seu banco.

Era a primeira vez que ela via um sorriso sincero no rosto dele. Seus olhos

pareciam ter se suavizado e sua expressão era leve. Parecia até mais jovem e

devastadoramente bonito. Se aquela era a expressão que costumava mostrar às suas

conquistas, não era de admirar que todas sucumbissem... Marina também se sentia

atraída. Mas desviou o olhar antes que enfraquecesse sua determinação e voltou a

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amarrar o chapéu sob o queixo. Mesmo sem as luvas, sentia dificuldade em fazê-lo.

Kit inclinou-se para ela, sorrindo maliciosamente.

— Quer que eu a ajude com isso? — ofereceu. — Dizem que sou exímio em lidar

com peças femininas...

Marina, porém, afastou-se ainda mais, sem responder. Percebia que Kit queria

deixá-la totalmente embaraçada. Como se a sua presença já não fosse suficiente para

isso.

Com o chapéu e as luvas recolocados, perguntou, evitando olhar para Kit:

— Para onde estamos seguindo?

— Eu a estou levando para a minha casa em Chelsea — ele respondeu, sem se

alterar. — É um local bem afastado, como já sabe, perfeito para o tipo de negócios de

que vamos tratar. Não faz objeção, faz?

— Não acho que tenha alternativa, não é?

— De fato, não tem, mas sempre é bom manter a etiqueta. Uma conversa educada

ajuda a passar o tempo, não acha?

Ele estava se divertindo a sua custa, Marina constatou, irritada. Pôde perceber

isso ao olhá-lo de repente, embora a expressão em seus olhos mudasse logo em seguida.

Sentia vontade de esbofeteá-lo. Mas sabia que isso de nada adiantaria. Na outra vez em

que tentara, ele a beijara...

A carruagem diminuiu o ritmo e Kit ergueu de leve as cortinas escuras para saber

onde se encontravam. Então enfiou a mão no bolso do colete e dele tirou um pequeno

véu escuro.

— Sugiro que use isto — disse. — Nunca se sabe se haverá alguém passando pela

rua. Não quero que a sua reputação seja manchada porque se esqueceu de colocar um

chapéu com véu.

Ele a culpava pelo que estava prestes a acontecer?, Marina imaginou. Mas que

grande canalha era! Porém, como não estava em posição de reagir, colocou o véu que Kit

lhe oferecia, em silêncio.

A carruagem parou por completo, Kit desceu e estendeu a mão para Marina. Ela

hesitou. Havia algo naquelas mãos magras... Tinha receio de tocar-lhe os dedos, do que

sentiria se os tocasse...

— Venha, senhorita! — ele chamou, impaciente. — Vamos tratar logo do nosso

assunto. A não ser que queira negar-se a fazê-lo.

Marina aceitou-lhe a mão e caminhou com ele até a porta da frente da casa. Não o

olhava, mas ouviu-o murmurar:

— Eu imaginei que não era covarde.

Ela estremeceu. Podia sentir-lhe o calor da respiração em sua nuca. A governanta

veio abrir e olhou-os, parecendo pouco amistosa. Fitava Marina quase com raiva.

— Obrigado, sra. Budge — Kit agradeceu com autoridade na voz. Então tocou a

cintura de Marina muito de leve e a conduziu até a sala de estar, na qual tinham se

encontrado no outro dia.

Ela tentava manter-se calma, ignorar o tremor que lhe tomava o corpo. Mas não

conseguia deixar de pensar que, em breve, estaria no quarto dele. E estava apavorada.

Kit fechou a porta, dando, antes, instruções à governanta para que não fossem

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perturbados. E Marina arregalou os olhos, imaginando se Kit exigiria seu pagamento ali

mesmo.

— Não, srta. Beaumont — disse ele, aproximando-se. — Não vou seduzi-la aqui,

nestes tapetes. — De fato, Kit conseguia ler-lhe os pensamentos. — Com certeza,

podemos ser mais elegantes do que isso. Sente-se, por favor. Gostaria de beber alguma

coisa?

Marina negou com a cabeça. Kit sentou-se diante dela e estendeu as longas pernas

em direção ao fogo da lareira. E ela teve a impressão de que ele era grande demais para

aquela sala.

— Devo admitir que fiquei surpreso com a sua vinda — Kit comentou. — Posso

supor que pretende, de fato, manter sua parte em nosso acordo?

Muito devagar, ela ergueu o véu que lhe cobria o rosto e encarou-o.

— É claro. Eu lhe dei minha palavra. E não faltaria, com ela, mesmo para com o

senhor.

Ele a observava, atento. Não se sentia atraído, a não ser por aqueles belos olhos.

Notava-a pálida demais, mal vestida, tensa. Como deixara aquela situação chegar a tal

ponto?, indagou-se. Tivera certeza de que ela não cumpriria sua palavra. As mulheres

costumavam agir assim. Mas não aquela... Devia deixá-la ir embora. Então... o que estava

fazendo?!

Talvez... exigindo seu pagamento numa aposta... Tinha concordado em perdoar uma

dívida de doze mil libras, além de sua vingança contra lady Luce. Devia haver uma

recompensa para tanto. E havia alguma coisa naquela mulher que o intrigava.

Ficou ali, sentado, apenas olhando-a. Permitiria que uma jovem de classe

entregasse sua virtude a ele por doze mil libras? Em seus vinte e sete anos de vida,

jamais pagara a uma mulher para vir a sua cama. Jamais! Perseguia-as, sim, às vezes até

durante meses. Levara quase um ano para persuadir a bela baronesa a trair o marido.

Seus amigos em Viena diziam que ela era inacessível. Tinham apostado que não

conseguiria seduzi-la. E ela sucumbira, por fim. Mas o faria de qualquer forma. Se não

com ele, com algum outro. Seu jeito reservado era apenas uma fachada para um interior

ardente e voluptuoso, pronto para a traição. Tinha sido um bom acerto entre ambos. E,

quando ela seguira com o marido para Londres, achara conveniente segui-la. Precisava

mesmo voltar, e era bom tê-la como amante quando bem entendesse.

E agora estava ali, diante da srta. Beaumont. Ela havia se preparado para ceder ao

seu prazer. Devia achar que fizera um acordo com o demônio, mas manteria sua palavra.

Uma mulher impressionante! Se, ao menos, tivesse uma aparência que combinasse com

seu caráter!

Podia deixá-la ir embora. Mas, assim, aquela velha sem princípios teria ganho a

batalha! Como fizera havia cinco anos...

Nem pensar numa segunda derrota! A srta. Beaumont teria de manter sua parte no

acordo. Ele não devia ter proposto aquele acordo, para começo de conversa, já que o

maior pagamento cairia sobre as costas da srta. Beaumont, e não de lady Luce. Apenas

um homem absolutamente infame a levaria para a cama. Seria ele assim infame?

Notou que ela girava um anel no dedo, por baixo da luva. Kit levantou-se e deu

alguns passos pela sala. Havia mobília demais ali, analisou. Desistiu de andar, então, e

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parou junto à janela, olhando para a rua. Recomeçara a chover.

— Srta. Beaumont—chamou, quebrando o silêncio profundo.

Marina teve um sobressalto.

Kit tornou a olhá-la e se aproximou dela.

— Manteve sua palavra — disse. — Eu não esperava que o fizesse. Admiro-a por

sua coragem. Mas devo confessar-lhe que, agora, não tenho o menor desejo de levar a

cabo nosso... acordo. Tenho por princípio não ter mais de uma amante por vez. Portanto,

como estive com uma ontem... bem, se me permite, eu a levarei de volta ao parque, para

que retorne à sua casa.

Marina olhou-o, abismada.

— Mas... não entendo... A dívida... Concordamos que...

— A dívida está paga. Pode entregar minha carta a lady Luce amanhã. Na sexta-

feira, eu a visitarei para entregar-lhe a garantia que ela assinou, como prometi.

Marina levantou-se.

— Mas... — Seu corpo todo tremia, e Kit podia notá-lo muito bem.

— Nada tema, senhorita. Sei manter minha palavra também.

A cor começava a voltar ao rosto de Marina, enchendo-o de vida. Com calma, Kit

ergueu as mãos e colocou-lhe de novo o véu sobre o rosto.

— Venha. A carruagem está esperando.

Marina nada mais disse durante todo o trajeto que fizeram de volta ao parque.

Não entendia. Ele havia desistido... Por quê?!

Essa pergunta estava na mente de Kit também. Talvez tivesse desistido porque

encontrara uma mulher de fibra. Olhou-a e sorriu de leve. Garantiria que sua honra

fosse protegida, pois ela o merecia. Quanto a lady Luce, não haveria proteção alguma.

Perdoaria a dívida, sim, mas todos saberiam que o fizera. Ele, Kit Stratton, seria visto e

reconhecido como magnânimo. E ela, a condessa Luce, teria de ser publicamente

agradecida a ele por haver recebido doze mil libras como caridade. E aquela velhota

ficaria humilhada para sempre! Não era essa a vingança que ele tanto planejara, mas

poderia ser tão doce quanto.

Marina sentia muito frio. Kit a estava levando de volta ao parque. Estivera a sua

mercê, em sua casa, e ele a devolvia intacta. Marina sentia que não valia sequer uma

hora de diversão na cama daquele homem. Olhou para ele, por trás do véu que lhe dava

certa proteção. Notava que Kit parecia estar muito distante dali, pensativo, distraído.

A chuva tinha parado agora. Mas as ruas estavam cheias de poças. Seria um longo

e sujo caminho de volta à casa de lady Luce.

Percebeu que um sorriso muito leve aparecia nos lábios de Kit. Devia estar se

regozijando de mais alguma vitória, imaginou. E ele devia vencer sempre, em especial no

que se referia às mulheres. Era um verdadeiro demônio...

Com a mão elegante, ele afastou a cortina como fizera antes.

— Vamos chegar em alguns instantes — anunciou. — Consegue encontrar seu

caminho de volta, imagino. Deve entender que não posso levá-la até a porta de sua casa.

Por que ele estava sendo subitamente tão gentil?, Marina se perguntou. Uma hora

antes, praticamente a seduzira ali mesmo, naquela carruagem...

— Obrigada, sr. Stratton. Sou perfeitamente capaz de me arranjar sem... a sua

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ajuda — respondeu, fria.

Ele a olhou e, de repente, veio sentar-se a seu lado, ergueu-lhe o véu e beijou de

forma avassaladora. Foi um beijo possessivo, como se estivesse mostrando a ela que a

possuía, que poderia ter conseguido muito mais do que seus lábios, que ela não

conseguiria resistir ao seu poder de sedução. E, para vergonha de Marina, ela

reconhecia que era assim de fato. Sabia que devia afastá-lo, mas seus braços pareciam

tão pesados! E o beijo, agora mais profundo, era uma alegria, não um castigo, que a fazia

experimentar sensações com as quais jamais sonhara. Seu corpo a traía! E foi com

paixão que passou a mão pela nuca de Kit e entregou-se completamente ao beijo.

Quando ele se afastou, por fim, a carruagem já tinha parado. E Marina não fazia

idéia de quanto tempo ela estava assim. Todo o seu ser tinha sido levado a um mundo

encantado de sensações deliciosas. Fora seu primeiro abraço apaixonado, seu primeiro

beijo voluntário. E agora respirava fundo e sentia seu coração bater descompassado.

Tinha vergonha do que acabara de fazer.

Olhou para Kit, mas a expressão dele era um enigma. E sua respiração estava quase

normal. O beijo que a arrebatara não parecia ter tido o mesmo efeito nele. Marina

sentia-se mais envergonhada do que nunca. Sentiu um calor intenso, repentino, subir-lhe

ao rosto.

Apressada, abaixou o véu e estendeu a mão para abrir a porta, porém Kit a

segurou.

— A calçada fica do outro lado — explicou-lhe calmamente. — Não quero que desça

na lama.

Marina engoliu em seco e, encarando-o, levantou-se e se dirigiu na direção que ele

indicara.

— Deve entender que não posso sair para ajudá-la a descer — Kit ainda disse. —

Perdoe-me por isso.

Marina desceu para a abençoada liberdade de Hyde Park. Voltou-se e respondeu:

— Por isso, certamente, eu o perdôo, senhor, mas não pelo resto. — E bateu a

porta do veículo com toda sua força.

Quando começou a correr, chegou a ouvir a risada dele lá dentro. Era impossível

lidar com um homem assim, avaliou. Seguiu seu caminho, cabisbaixa, chegando, por fim,

ao portão do parque. Ia atravessá-lo quando viu um cavaleiro exercitando seu animal

pela rua. Ele ia passar por uma poça próxima a ela, e desviou o cavalo educadamente.

Marina ergueu os olhos, na intenção de agradecer, e teve de arregalá-los. O homem ia

tocar a aba de sua cartola, numa saudação, e a encarou por segundos, seguindo depois

seu caminho.

Marina ficou parada ali, olhando-o, imaginando se ele a reconhecera. Não, tentou

convencer-se. Nunca tinham sido formalmente apresentados... e ela estava usando um

véu.

Levou a mão até ele e sentiu-se estremecer. Parte do véu permanecera erguida

quando descera apressada da carruagem e seu rosto ficara parcialmente à mostra. O

cavaleiro a tinha visto descer do veículo.

E devia ter se aproximado um pouco para ver quem era a mulher que tão

obviamente desafiava as convenções. Por sua expressão, Marina percebera que ele a

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reconhecera, mesmo sem saber seu nome.

O que poderia fazer com a informação de que dispunha agora? Iria dizer que uma

mulher alta, esguia, vestida de cinza, saíra sozinha de uma carruagem fechada nas

primeiras horas da manhã? Muitos dos conhecidos de lady Luce poderiam reconhecer

sua descrição, então...

Marina estremeceu. Mais uma vez, sentia um frio intenso. Pensou de novo em Kit

Stratton. Diante do que acabara de acontecer, somente ele poderia salvá-la de uma

desgraça pública. Porque o cavaleiro que a vira sair daquela carruagem era sir Hugo

Stratton.

CAPÍTULO X

Aquilo tudo não fazia sentido, Marina pensou, largando as luvas e o chapéu sobre a

mesa de seu quarto e sentando-se na cadeira. Tudo mais lhe parecia uma sequência de

charadas que não conseguia entender. Primeiro, Kit a atacara em sua carruagem. Depois

dissera-lhe aquela baboseira toda sobre não ficar com mais de uma amante a cada vez.

Depois, dera-lhe aquele beijo faminto no caminho de volta ao parque. Por algum

motivo que desconhecia, sentia que ele estava brincando ela. Os homens poderiam ser

tão instáveis quanto as mulheres?, indagava-se. Porque em sua casa mantivera-se

distante, mas na carruagem...

Devia ser isso, concluiu. Era porque, na carruagem, ele mal a podia ver. Devia ter

imaginado que estava beijando outra, sua amante atual talvez.

E Marina sentiu-se ultrajada, usada. Teria sido pior se ele, de fato, a tivesse

levado para a cama? Porque fora corajosa, ele simplesmente a dispensara. Humilhante!

Mais ainda porque, quando ele a beijara, correspondera com intensidade. E agora

sentia-se extremamente envergonhada. Pecara, analisava. E sabia que, se tivesse

oportunidade novamente, pecaria outra vez...

Não podia permitir que houvesse mais uma oportunidade, então. Rodava o anel no

dedo, pensando no que fazer. Pior ainda era saber que precisava falar com Kit Stratton

ainda uma vez para pedir-lhe que falasse com seu irmão a fim de que este não contasse

ao mundo sua vergonha. Poderia escrever-lhe uma carta, pedindo que o fizesse. Seria

bem melhor do que vê-lo em pessoa. Mais uma vez sentia que seu futuro dependia de

uma resposta dele. Assim pegou uma folha de papel e preparou-se para escrever a carta

mais difícil de sua vida.

Com um olhar malicioso para o marido, Emma Stratton tocou o ombro de Kit para

que este se inclinasse até sua altura a fim de dar-lhe um beijo barulhento na bochecha.

— Que delícia revê-lo, Kit — disse, sorrindo. Kit devolveu o sorriso a sua linda

cunhada.

— Se as más línguas a vissem agora, cunhadinha... — comentou.

— Ora, o que quer dizer com isso? — ela indagou, com ar de inocência.

De seu lugar, junto à janela, foi Hugo quem respondeu:

— Sabe muito bem o que ele quer dizer, meu amor. Nunca irão parar de procurar

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um escândalo entre você e Kit.

— Imaginem! — Emma protestou, voltando a sentar-se na poltrona que antes

ocupava. — Eu? Mãe de três crianças lindas? Que vergonha falar assim de mim, Hugo!

Kit tomou-lhe a mão e beijou-a de leve, sempre sorrindo.

— E quem pode garantir que essas três lindas crianças são todas suas, meu irmão?

— brincou. — Afinal, somos tão semelhantes... — Ele não precisava lembrar nem à

cunhada nem a seu irmão que Emma tinha sido comprometida, tantos anos antes, como

resultado de uma confusão que ela fizera entre os dois, num jardim, à meia-noite.

— Você é um monstro! — acusou ela, também brincando, batendo de leve na mão de

Kit com a ponta do leque.

— Agora, falando a sério — disse Hugo, aproximando-se dos dois —, seria melhor

nem mencionar nossa semelhança. Porque as más línguas podem começar a pensar

demais. Sabe muito bem como os rumores são...

— Não se preocupe, meu irmão. Afinal, estive em Viena praticamente desde o dia

em que vocês se casaram. Posso ter certa reputação com as damas, mas há coisas que

nem eu... — ele se interrompeu, vendo a expressão de descrença no rosto do irmão e da

cunhada.

— Vocês dois são iguais, isto sim — Emma comentou, então. — Nenhum dos dois

vale nada! Que assunto mais impróprio!

— É verdade — Hugo concordou. — Kit, vamos falar de coisas mais apropriadas

para a presença de uma dama. Não quer se sentar? Diga-me uma coisa: viu a dama que

acompanhava lady Luce no baile na outra noite?

— Por que pergunta? — Kit indagou, com cuidado.

— Talvez porque eu ache que você conhece todas as damas de Londres... e deve tê-

la visto. É mais alta do que a média. Não pode ter deixado de notá-la.

— Na verdade, Hugo, não a vi no baile, mas sei de quem se trata. É a dama de

companhia de lady Luce. Seu nome é srta. Beaumont.

— Ah, mas é claro! — Hugo pareceu lembrar-se de algo. — Como não pensei nisso

antes? A semelhança é tão grande!

Emma encarou o marido, franzindo a testa.

— Mas do que estão falando? — quis saber. — Quem é essa srta. Beaumont?

— Não tenho bem certeza, Emma, mas acho que o meu amigo George Langley era

tio da moça. Você sabe que George foi morto em Ciudad Rodrigo, mas acho que eu nunca

mencionei que o marido da irmã dele, Tom Beaumont, morreu lá também.

— Oh, que triste! Perder o marido e o irmão!

Kit levantou-se de repente e foi até a janela. Por alguns segundos permaneceu ali,

pensativo, ainda tendo nos ouvidos o comentário solidário da cunhada para com a outra

mulher.

— O que o faz pensar que essa srta. Beaumont seja, de fato, parente deles, meu

amor? — Emma perguntou ao marido.

— Porque não deve haver dúvidas a respeito. Não para quem tenha conhecido Tom

Beaumont. Ela se parece muito com ele. É alta, esguia, morena. Mas não entendo por que

está trabalhando como dama de companhia de uma velhota como lady Luce.

— Imagino que a família tenha se tornado muito pobre, Hugo — Kit falou de onde

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se encontrava. — Será que o Exército nada fez pela viúva?

— Não sei. Deve lembrar-se de que, depois daquela batalha, eu... passei por

dificuldades.

Kit assentiu depressa, sem querer que o irmão tivesse de ficar lembrando das

terríveis acusações de covardia que suportou, vindas de seu comandante-em-chefe.

Tudo fora esclarecido, mais tarde, mas as lembranças ainda doíam.

— Não pude fazer nada pela sra. Beaumont naquela época — Hugo explicou. — Nem

me permitiram escrever para ela. E, quando voltei para casa, já se tinham passado

alguns anos. Nem sabia onde estavam morando.

Kit continuou olhando pela janela, pensativo. Quase fizera algo de terrível contra

uma dama cuja família devia ter ficado sob a proteção da sua. Não era de admirar que a

srta. Beaumont tivesse mostrado tanta coragem ante suas investidas. Vinha de uma

família de gente corajosa. Engoliu em seco, reconhecendo que aquela moça precisava de

ajuda, não de coação. Mas agora seria praticamente impossível que ela aceitasse

qualquer coisa vinda dele. Dissera até que ele não estava à altura de Hugo, seu irmão.

Deixara de ouvir o que Hugo e Emma estavam falando, mas entendeu as últimas palavras

da cunhada:

— E eu vou cuidar dela. Não me interessa o que lady Luce possa dizer.

— Ah, mas aquela bruxa vai ter o que dizer! — Hugo observou. — Não acha, Kit?

— Como?

— Eu e Emma estávamos falando sobre a srta. Beaumont. Emma quer ajudá-la,

mas... devo admitir que tenho minhas... dúvidas.

Emma olhou-o, incrédula.

— Dúvidas?! Mas por quê?

— Acredite, minha querida, sinto se ela e a família estão passando por um estado

de penúria, mas não deve se envolver. A moça é apenas uma dama de companhia, afinal.

— Hugo, mas que comentário terrível! — Emma continuava olhando-o sem entender

sua reação. — Não devia dizer algo tão rude! Está tentando esconder alguma coisa de

mim?

Um silêncio estranho caiu na sala e Kit voltou-se para encarar o irmão. Também ele

queria saber o que Hugo poderia ter contra a srta. Beaumont.

— Eu só estou lhe pedindo que não tome a srta. Beaumont sob a sua proteção por

enquanto — Hugo explicou. — Acredite, tenho motivos para ser cauteloso. Eu... a vi esta

manhã, digamos, num local onde uma dama não deveria estar.

— Mas não deve supor nada sem... — Emma começou, porém o marido a

interrompeu com suavidade:

— Paciência, meu amor. Dê-me algum tempo para descobrir um pouco mais sobre

essa moça e... se nada houver que a desabone, então ficarei feliz que você a ajude.

— Está bem, então — Emma concordou. — Mas aja depressa, porque estou curiosa

para conhecer a srta. Beaumont.

Kit apenas olhava atento. Emma sabia como conseguir o que queria do marido. E

Hugo estava rindo.

— E prometeu-me obediência quando nos casamos... — ele comentou, brincando.

Ela se levantou e, após dar-lhe um beijo na testa, disse:

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— Fique tranqüilo, meu querido. Jamais faltarei com os meus votos matrimoniais.

Agora, como tenho um compromisso com lady Dunsmore, deixo-os para que possam

conversar à vontade. Adeus, Kit.

Depois que Emma se foi, a sala pareceu ficar sem graça. Hugo ainda sorria quando

o irmão se aproximou, junto à lareira.

— Enorme coincidência que essa moça seja filha do seu amigo, não, Hugo? —

observou.

— É. Eu e o tio dela servimos juntos durante anos. Seu pai, porém, era mais velho e

depois foi transferido para o 95º Regimento, e eu não o conheci tão bem assim. Mas,

pensando agora a respeito, não me surpreende que a família tenha ficado sem nada.

Beaumont estava sempre jogando e poucas vezes ganhava.

Kit começava a entender por que a srta. Beaumont queria tanto proteger sua

patroa dos estragos de uma partida mal jogada. Mais uma razão para condenar seu

próprio comportamento, também.

— Parece-me que sabe mais sobre a srta. Beaumont do que está preparado a

revelar, Kit — Hugo declarou, encarando-o. — Devo estar certo ao dizer que ela não é

uma pessoa que se possa recomendar aos cuidados de Emma...

— Não, você não está certo — Kit rebateu de imediato. — A srta. Beaumont é uma

dama sim. Por que pensa o contrário?

Hugo olhou-o por instantes, como se quisesse captar algo de revelador em sua

expressão. Não conseguindo, respondeu:

— Muito bem, então: eu a vi no parque esta manhã. Estava sozinha. Desceu de uma

carruagem com cortinas negras e, por sua expressão, me pareceu que estava um tanto

agitada. Não consigo imaginar um bom motivo para uma dama se encontrar ali, tão cedo.

E, a meu ver, ela me pareceu ainda mais culpada.

— Falou com ela?

— Não. Nem fomos apresentados. Mas eu a reconheci do baile.

— Reconheceu-a através do véu?!

Hugo recostou-se em sua poltrona e olhou para o irmão.

— Não vou lhe perguntar como sabe que ela usava véu — murmurou. — Mas agora

estou ainda mais certo de que devo descobrir mais coisas sobre essa moça antes de

permitir que Emma a conheça.

Kit respirou fundo, arrependendo-se de sua estupidez. O que poderia fazer para

salvar a situação?, indagava-se. Se Hugo começasse a especular sobre a srta. Beaumont,

haveria comentários... E tudo seria por sua culpa. Por isso disse:

— Hugo, entendo o seu interesse em proteger a reputação de Emma, mas não

precisa se preocupar quanto à srta. Beaumont. Ela é uma dama, e muito virtuosa. Eu...

lhe dou minha palavra de que não a seduzi.

— Mas se encontrou com ela. E estavam a sós, suponho.

— Ela... ela me procurou para pedir-me que perdoasse a dívida de lady Luce — Kit

acabou por confessar, sabendo que de nada adiantaria esconder o fato de seu irmão.

— Entendo... Bem, isso não é tão surpreendente assim, considerando-se os

antecedentes na vida dessa moça. E posso imaginar por que ela bateu a porta da

carruagem na sua cara, Kit. Deve ter ficado furiosa com a sua negativa.

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— É, ficou, sim. — Kit sorriu, lembrando-se da forma apaixonada com que ela

correspondera ao seu beijo e da raiva que devia ter sentido de si mesma por haver sido

tão fraca. — No entanto — continuou —, devido às revelações que fez sobre ela, imagino

que eu deva atender ao seu pedido.

— O quê? Vai deixar de ganhar doze mil libras?! Isso seria excepcionalmente

generoso, meu irmão! Ainda mais considerando-se sua raiva pela condessa.

— Minha raiva não mudou. Ela vai se sentir furiosa em ter de admitir que fui

magnânimo por perdoar-lhe a dívida. Na verdade, até vai valer a pena não ganhar esse

dinheiro, se eu puder ver aquela velhota humilhada publicamente.

Hugo meneou a cabeça, demonstrando que não se conformava com a maneira de

pensar de Kit.

— Espero que esteja satisfeito agora com o que lhe contei sobre a srta. Beaumont

— insistiu ele.

— Claro. Aceito sua palavra, Kit. E, como ninguém mais a viu, exceto eu... É claro

que não vou manchar a reputação de uma dama por tão pouco. Nada direi.

— Nem mesmo a Emma?

— Vou sugerir que ela faça uma visita a lady Luce.

— Ah, mas ela não ousaria!

Hugo sorriu.

— ÉE claro que ousaria — afirmou. — Emma vai achar a situação toda um grande

desafio. Tentará reconciliar as duas famílias e ajudar a srta. Beaumont, como já

pretende. E aposto que vai descobrir mais sobre essa misteriosa dama de companhia do

que eu faria em uma semana de indagações. E acredito que você estará mais tempo em

companhia da srta. Beaumont do que imaginou. A não ser que deixe de nos visitar...

— Mas é claro que não. Se a srta. Beaumont estiver aqui quando eu vier, tentarei

me acostumar à situação.

Marina colocou a carta no bolso e entrou na sala, sabendo exatamente o que dizer,

depois de mais uma noite de sono perturbado. Caminhou até junto da poltrona próxima à

janela, onde se encontrava a condessa. E viu-a de olhos fechados.

— Não fique aí parada, menina! — disse lady Luce, sem abrir os olhos. — Não há

nada de errado com os meus ouvidos, mesmo quando meus olhos estão fechados.

Marina sorriu, tensa. Tinha de parecer normal. E, estendendo a carta para sua

patroa, disse:

— Chegou uma carta para a senhora.

A condessa entreabriu os olhos. Em seguida, endireitou-se, pegou a carta e leu o

que estava escrito no envelope.

— Não reconheço a caligrafia — disse. — Isto chegou esta manhã?

— Não tenho certeza, senhora. Mas não deve haver resposta, pois o mensageiro

não esperou por uma.

Lady Luce abriu a carta, colocou os óculos e leu, enquanto Marina prendia a

respiração.

— Oh! Como ele ousa?! — gritou a condessa, segundos depois. — Ele me concede

doze mil libras porque alguém que enviei lhe pediu! Eu jamais enviaria ninguém até

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aquele miserável! Que grande mentira! E diz que está satisfeito em me informar que

virá até aqui amanhã para devolver-me a garantia que assinei! Virá para rir na minha

cara, isto sim!

— Posso... posso ler a carta, senhora? — Marina tentava manter-se calma.

Lady Luce entregou-lhe a carta sem dar-lhe grande atenção. Marina a leu como se

fosse pela primeira vez e concluiu:

— Talvez um de seus amigos tenha falado com o sr. Stratton sem a sua permissão.

Se assim foi, essa pessoa salvou-a de muitos problemas...

— Ora! Se eu descobrir quem ousou fazer isso! — Lady Luce estava furiosa. — E

por que você está defendendo esse intermediário, afinal?

— Conheço poucos dos seus amigos, senhora, e não estou em condição de defender

ninguém. Mas estava pensando que, já que a dívida lhe causaria tantos problemas... ainda

mais entre a senhora e seu filho... bem, é uma bênção que não tenha mais de pagá-la.

— Uma bênção?! Acredite, menina, não é bênção alguma estar nas mãos de Kit

Stratton!

Marina concordava plenamente com isso.

— E se o preço a pagar for o de que aquele infeliz possa rir de mim, jamais

aceitarei...

A porta abriu-se, interrompendo-a.

— O conde Luce, senhora — anunciou o mordomo. Lady Luce praguejou baixinho,

enquanto o filho entrava, sorrindo, parecendo satisfeito. A condessa olhou-o com

desdém, ouvindo-o cumprimentá-la:

— Bom dia, minha mãe. Vejo que está muito bem. — Depois, voltando-se para

Marina, deixou de sorrir para acrescentar: — Não esperava vê-la mais aqui.

— Saiba que a srta. Beaumont não vai a lugar algum sem a minha expressa

permissão, William! — avisou lady Luce, contrariada. — Ela vale mais do que vinte das

garotas com quem você anda por aí. E vai ficar em minha companhia.

Marina arregalou os olhos diante da revelação.

— Falaremos disso mais tarde, mãe — o conde rebateu entre os dentes. — Temos

assuntos mais importantes a tratar agora. Sua dívida, por exemplo. Sei que duvidou de

que eu pudesse levantar tanto dinheiro em tão pouco tempo, mas estava enganada.

Tenho aqui comigo um cheque nesse valor. — E bateu no bolso do paletó. — Nem me

custou muito consegui-lo, devo acrescentar. Tratei do empréstimo pessoalmente,

porém, como não tinha alternativa... Não importa o rombo que isso irá causar na minha

fortuna, eu não podia deixar que dissessem que minha mãe deixaria de pagar uma dívida

de honra.

Marina percebia que a condessa rangia os dentes de raiva. Até que lady Luce disse,

fria:

— Parece que se deu a um grande trabalho, William. E, na verdade, nem era

necessário. Não preciso que me fale sobre honra, devo dizer. Sugiro que pegue esse seu

cheque e faça bom uso dele. Compre vestidos novos para Charlotte; qualquer coisa

menos monstruosa do que ela usava no baile da outra noite.

— Mas a sua dívida...

— Não tenho mais nenhuma dívida, William! Posso tratar de minhas finanças

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perfeitamente bem sem sua interferência. E agora, se nos dá licença, eu e a srta.

Beaumont temos uma hora marcada esta manhã.

— Mas eu fui até o banco...

— Tenha um bom dia, William! Como já sabe o caminho para a porta... Venha,

Marina!

Marina não se atreveu a olhar para o conde. Ele dava a impressão de estar a ponto

de ter um ataque do coração. Ao que parecia, a condessa faria qualquer coisa para

irritar, enfurecer até, seu filho. Mesmo que isso significasse aceitar um favor de um

homem que ela detestava tanto: Kit Stratton.

CAPÍTULO XI

Não havia nenhuma hora marcada, claro, embora lady Luce tivesse mandado

preparar sua carruagem para dar umas voltas pelo parque e, assim, mostrar a seu filho

que tinha mesmo para onde ir. E durante o tempo todo em que esteve com Marina no

veículo, ocupou-se em falar contra o filho e contra Kit Stratton. Era difícil saber qual

dos dois ela detestava mais. Marina percebia que isso dependia da situação. A condessa

usara a oferta de Kit para irritar o filho, sem pensar nas consequências. Essas viriam na

manhã seguinte, quando Kit lhe faria uma visita para devolver-lhe a garantia assinada.

Marina duvidava que a velha senhora fosse capaz de manter-se calma diante de tal

provocação, mesmo não tendo condições de pagar a dívida. Quanto a Marina, o problema

persistia em relação a sir Hugo. Não recebera ainda uma resposta da carta que enviara

a Kit Stratton. Talvez ele simplesmente a ignorasse... Afinal, por que se interessaria em

ajudá-la? Sua despedida tinha sido um tanto quanto intempestiva.

E podia lembrar-se ainda daquela risada que ouvira ao bater a porta da carruagem.

Uma risada que não podia ser a reação de um homem vingativo.

Precisava ser paciente e aguardar a resposta dele. De certa forma, tinha

esperanças de que ela viesse. Kit não era o tipo de homem que desse as costas a um

pedido de socorro, ainda mais vindo de uma dama...

Mas... como podia saber ao certo?, indagava-se, sem entender. Nada sabia sobre

Kit Stratton, a não ser que era um canalha contumaz e que nenhuma mãe zelosa

confiaria a filha a ele, mesmo sendo um homem que, recentemente, havia se tornado

muito rico.

A condessa era de opinião de que Kit seria um canalha até o dia de sua morte; e,

como sir Hugo já era casado e tinha filhos, Kit não teria a menor necessidade de deixar

herdeiros que poderiam seguir seus instintos. Na verdade, de acordo com lady Luce,

seria bem melhor assim; o mundo ficaria livre dele e de qualquer semente que pudesse

deixar.

Lembrando-se de como seu tio falava de sir Hugo, Marina sabia perfeitamente

bem que ele jamais deixaria o irmão mais novo sem posses. Isso porque seu tio George

sempre dissera que seu amigo era o homem mais honrado e honesto que já conhecera e

que amava demais sua família, preocupando-se sempre com os menos afortunados que

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passavam por seu caminho.

Ela achava estranho que Kit pudesse ser tão diferente do irmão.

Seus pensamentos foram interrompidos por batidas firmes na porta e pela voz de

Tibbs, que lhe dizia estar lady Luce exigindo sua presença em sua sala particular. Havia

visitas.

Não podia ser Kit Stratton, avaliou Marina. Ele só viria no dia seguinte e, como

havia toda aquela animosidade entre ele e a condessa, era quase certo que Kit não

colocaria os pés em sua casa a não ser no exato momento necessário.

— Ah, aí está você, menina! — exclamou a condessa quando Marina entrou. A voz

da velha senhora parecia bastante calma agora.

Lady Luce voltou-se para o visitante que, sentado na poltrona à sua frente, estava

ainda oculto para Marina.

— Venha, Marina! — continuou a condessa. — Quero apresentar-lhe lady Stratton.

Marina sentiu um aperto no peito. A esposa de sir Hugo estava ali! Aproximou-se e

deparou com a elegante e bela lady Stratton, uma dama de verdade.

— Quero apresentar-lhe a srta. Marina Beaumont, que recentemente se tornou

minha dama de companhia — disse lady Luce, cheia de formalidade. — Ela é parente dos

Blaine, mas a sua família é de Yorkshire. E devo dizer que, para ela, Londres está sendo

um tanto aflitiva, já que viveu toda a sua vida nos campos.

Lady Stratton sorriu para Marina e estendeu-lhe a mão direita.

— Oh, duvido que a srta. Beaumont deixe que um pouco de poluição e barulho a

afete tanto assim — comentou. — Na verdade, senhorita, estou encantada em conhecê-

la. — E apertou a mão de Marina de uma forma que a esta pareceu significativa.

Marina estava fascinada pela beleza daqueles intensos olhos azuis. Se ela viera

como mensageira de seu cunhado, porque não devia haver outro motivo para a sua visita,

não parecia disposta a revelar seus propósitos, pelo menos por enquanto.

— Sente-se, menina — indicou a condessa. — Não gosto de vê-la, tão alta, em pé,

quando estamos conversando.

Lady Stratton sorriu, observando:

— Eu sempre quis ser mais alta porque meu marido zomba da minha estatura tão

baixa. E o irmão dele é ainda pior! Mas o que se pode esperar de alguém como Kit, não é

mesmo?

A condessa franziu o cenho. Marina já aprendera a interpretar as expressões de

sua patroa e agora percebia que ela concordava com sua visitante, porém de maneira

cínica.

— Nossas famílias não têm o hábito de se visitarem — continuou lady Stratton,

amável, para sua anfitriã. — E isso, em parte, é porque eu e meu marido passamos

bastante tempo no interior. Hugo não gosta muito da vida social de Londres, como deve

saber. Mas estamos aqui por algum tempo agora e eu vim para tentar persuadi-la,

senhora, a estar presente a uma pequena reunião que daremos no sábado. — Como a

condessa hesitasse diante do convite, Emma prosseguiu: — Oh, por favor, diga que irá!

E a srta. Beaumont também, é claro!

Lady Luce ainda vacilava, porém Marina percebia que ela não era de todo imune ao

charme encantador de lady Stratton. E, de repente, perguntou:

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— Seu cunhado estará lá também?

Emma riu, simpática.

— Duvido, senhora. Kit não costuma freqüentar os salões de damas respeitáveis,

mesmo daquelas de quem é parente. Além do mais, a sua presença poderia afugentar a

maior parte dos meus convidados!

Até mesmo lady Luce não pôde conter sua satisfação ao ouvir tal comentário. E

tanto ela quanto Marina riram dele.

— Sei que eu não deveria dizer tais coisas de meu cunhado — Emma acrescentou.

— Mas... já conhece Kit, srta. Beaumont?

— Ah, ela o conhece, sim — respondeu a condessa por sua dama de companhia.

Marina estremeceu, temendo que lady Stratton prosseguisse no assunto e

acabasse por descobrir que ela estivera na casa de jogos de lady Méchante, o que

poderia fazê-la retirar o pedido de visita que acabara de fazer.

— Diga-me — indagou lady Stratton, sempre sorridente —, o que você achou de

meu cunhado, srta. Beaumont?

— Oh, bem, ele... ele... é impressionante. E... muito alto. — Ela não sabia o que lhe

estava acontecendo. Gaguejava como uma tola.

Emma sorriu novamente e tocou-lhe a mão.

— É muito cautelosa e gentil, e lhe agradeço por isso — disse. — Mas não há

necessidade de sê-lo. Conheço muito bem a reputação que Kit ganhou. Ele é, com

certeza, alto e impressionante. Já conheci damas que se apaixonaram só em olhá-lo.

Mas isso foi antes de ele viajar para o exterior, claro. Hoje em dia, donzelas inocentes

estão proibidas de olhar para ele, já que um olhar bastaria para corromper seus

pensamentos...

Marina mal podia acreditar no que acabara de ouvir. Lady Luce riu, cínica.

— Verdade — comentou. — Kit é, de fato, muito bonito. E tem um jeito bastante

persuasivo com as moças. No entanto, para mim, ele sempre será um rapaz arrogante e

presunçoso. Mas joga muito bem, devo admitir.

As palavras de sua patroa trouxeram Marina de volta à realidade. Viu que lady

Stratton se levantava, começando a calçar as luvas delicadas.

— Preciso ir agora. Foi um grande prazer conversar com a senhora, lady Luce. Kit

bem me disse que a senhora era uma mulher muito franca e direta. E eu gostaria que

houvesse mais pessoas assim aqui em Londres. Afinal, a sociedade pode ser terrível, não

acha? — Lady Luce assentia e Emma estendeu-lhe a mão. — Espero-a no sábado, então.

As duas, aliás.

— Conte conosco — afirmou a condessa. — E devo dizer-lhe que, se aquele seu

cunhado aparecer por lá... bem, talvez consigamos reformá-lo. O que acha?

Sorrindo, Emma meneou a cabeça.

— Oh, acho que isso seria impossível, lady Luce. Toda Londres sabe que Kit

Stratton está muito longe da redenção.

A governanta de Kit jamais colocara os pés numa das mansões do lado oeste da

cidade. E ainda não tinha certeza de se encontrar ali, mas a baronesa fora muito

específica quanto às recompensas que ela poderia receber...

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A criada francesa que trouxera a sra. Budge pela escada dos fundos parecia

achar-se o centro do mundo, avaliou ela. Mas sabia que uma criada era uma criada em

qualquer parte. Um membro da nobreza, como a baronesa Von Thalberg, sempre teria o

poder de determinar as vidas de seus criados e livrar-se deles quando bem entendesse.

Não era de admirar, então, que os pobres criados tivessem de arranjar uns centavos

aqui, outros ali, de qualquer maneira possível. Como sobreviveriam em tempos difíceis se

não fosse assim?

Calada, a sra. Budge fez uma mesura às costas da baronesa que, voltada para a sua

penteadeira, arrumava uma onda dos cabelos sedosos. Mas seus olhos estavam

observando sua visitante com extremo cuidado pelo espelho. Por fim, virou-se

lentamente para olhá-la de frente.

— Muito bem, Budge — disse em tom imperioso —, o que a traz aqui a esta hora da

manhã? Espero que a sua presença valha a inconveniência que está me causando. Já

estou atrasada para um compromisso muito importante.

A criada, mesmo não gostando do tom de ameaça, fez outra mesura e disse:

— Senhora, pediu-me para informá-la sobre qualquer mulher que aparecesse lá em

casa. Houve uma... uma dama, que foi visitar meu patrão sábado anterior.

— E hoje é sexta-feira! Levou muito tempo para trazer-me essa notícia.

— Sinto muito, senhora, mas na hora não achei que fosse importante. A dama não é

uma beldade. Meu patrão disse que ela estava lá a negócios, e eu acreditei. Não vi

nenhum outro motivo para ele se encontrar com uma mulher tão simples e sem graça.

— Ele a levou para o andar superior?

— Não, senhora. Ficaram apenas na sala.

— E sobre o que falaram?

— Não sei, senhora. A porta estava fechada e é grossa, e eu...

— Oh, poupe-me de suas desculpas! O que mais sabe?

— Ela deixou a casa sozinha, num coche. Mas uma carta chegou depois disso, e

acho que deve ter sido enviada por ela. Meu patrão deu instruções precisas sobre a

correspondência depois que a dama saiu. E não recebemos mais sua correspondência.

A baronesa pensou por instantes, parecendo aborrecida. A governanta prosseguiu:

— Na quarta-feira, bem cedo, ele a trouxe de volta.

— E foram para o andar superior? — insistiu a baronesa.

— Não, senhora. Ficaram na sala, porém por pouco tempo, e depois saíram outra

vez.

— Juntos?!

— Sim, senhora.

— E qual é o nome dessa mulher?

— Não sei, senhora. Mas ela escreveu outra carta. Foi por isso que eu vim até aqui

hoje. A senhora disse que seria... bem, que seria generosa se eu ajudasse. Eu lhe trouxe

a carta.

A baronesa estendeu a mão elegante para receber a carta.

— Achei que, assim que a lesse, poderia recolocar o selo para que eu a leve de volta

ao meu patrão. Ele vai achar que foi o correio que demorou a entregá-la.

Mas Katharina não a estava ouvindo. Abriu o selo, sem pensar em não danificar o

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papel. Desdobrou a carta e leu, apressada, antes de voltar a olhar para a sra. Budge.

— Infelizmente, não há uma assinatura inteira — reclamou. — Apenas as iniciais

M.B.

Frustrada, a governanta se adiantou para retomar a carta.

— Sinto muito se não há um nome, senhora — murmurou. — Mas eu lhe trouxe

todas as informações de que dispunha. Se puder devolver-me a carta, eu...

A baronesa pegou a folha de papel e rasgou-a em pedacinhos, com extrema calma.

Depois os juntou numa pequena bola e arremessou-os à lareira.

A sra. Budge arregalou os olhos para as chamas reavivadas por segundos.

— Senhora!

— A carta não ficou presa no correio — esclareceu Katharina. — Perdeu-se de vez.

E a nossa misteriosa M.B. vai esperar em vão pela ajuda de que necessita. Bem feito

para ela.

A governanta não entendeu aquelas palavras. O que poderia haver naquela carta?,

indagava-se. Mas agora era tarde demais para saber. Devia tê-la aberto antes de trazê-

la para a baronesa.

— O que digo ao meu patrão?—indagou, sem saber o que fazer.

— Nada. Não diga nada. A carta nunca chegou. Alguém mais na casa sabia da

existência dela?

— Não, senhora.

— Então, não vai haver problema algum. — Katharina abriu a gaveta de cima de sua

penteadeira e vasculhou lá dentro, enquanto a governanta a olhava, cheia de esperança.

— Tome — disse ela, colocando uma única moeda na palma da mão da criada.

Decepcionada, Budge olhou para o dinheiro; achava que merecia mais por estar

arriscando seu emprego em troca daquela informação tão valiosa.

— Eu poderia ser bem mais generosa se você tivesse me trazido um nome, Budge —

Katharina comentou, arrogante. — Sugiro que seja mais esperta da próxima vez. Agora,

vá. E tome cuidado para que ninguém a veja sair daqui. Se achar um nome para essa

M.B., venha me dizer imediatamente. Só então será bem recompensada.

Budge fez outra mesura, enfiou a moeda no bolso e saiu do quarto. Mas, antes de

fechar a porta atrás de si, ouviu:

— Espere!

Voltou-se de pronto. A baronesa estava a sua escrivaninha e escrevia numa folha

de papel. Budge imaginou que se tratava de uma carta endereçada a seu patrão, para

ser entregue assim que ele chegasse. Esperou, paciente. Mais um serviço podia

significar outro pagamento, talvez.

Katharina escrevia depressa, sem parar para pensar. Depois dobrou a carta e

colocou-a num envelope, que selou com cera.

— Entregue isto imediatamente, Budge, sim?

A governanta olhou para o papel, que não era o elegante, desenhado, que ela

costumava usar sempre. E não reconheceu o endereço escrito no envelope.

— Não conheço esse lugar, senhora — protestou.

— Como vou encontrar esse sr. Johnson?

— Isso não me interessa, Budge. Vai levar a carta a esse endereço e entregá-la

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pessoalmente ao sr. Johnson. E a ninguém mais!

Budge assentiu, mesmo contrariada. Talvez essa nova tarefa que recebia fosse

bem mais lucrativa do que esperara até que seu patrão soltasse alguma informação

sobre a misteriosa M.B.

— Não espere pela resposta — a baronesa instruiu.

— E nada diga ao sr. Johnson. Nada, ouviu bem?! A respeito da identidade de quem

a está enviando. Também não diga nada sobre você mesma. Entendeu?

Budge anuiu. Faria o que lhe estava sendo ordenado, porém faria de tudo também

para descobrir quem era esse tal sr. Johnson. Poderia vender a informação mais tarde,

talvez, até para seu próprio patrão...

A baronesa entregou-lhe outra moeda e explicou:

— Vai receber mais assim que a carta for entregue em segurança.

— Mas, se não vou esperar por uma resposta, senhora, como vai saber que...

Katharina apenas sorriu. Depois observou:

— Não se preocupe com isso. Eu vou saber. Em breve. E, imagino, também a

misteriosa M.B.

— O sr. Stratton, senhora — Tibbs anunciou.

A condessa, muito bem-arrumada, endireitou-se na poltrona e ordenou:

— Faça-o entrar.

Marina levantou-se automaticamente e percebeu que suas pernas tremiam.

Sustentou-se se apoiando no espaldar de uma cadeira próxima, não queria que Kit

Stratton percebesse como sua presença a afetava.

O mordomo trouxe Kit até a sala particular da condessa e depois se retirou,

discreto.

Com sua altura impressionante, Kit adentrou o quarto e inclinou-se de leve diante

da condessa. Voltou-se para Marina, então, e fez o mesmo, mas de maneira que, a ela,

pareceu irônica.

Lady Luce nada disse. Não lhe ofereceu uma bebida, não tentou quebrar o silêncio

estranho que invadia a sala. Kit olhou para ela com um vago sorriso nos lábios.

— Vim para tratarmos da sua dívida, senhora — anunciou —, como foi avisado. Doze

mil libras, certo?

A condessa tornou-se mais corada, porém continuou impassível e calada. Kit

retirou uma folha de papel dobrada que estava no bolso de seu colete, abriu-a, olhou-a e

depositou-a na pequena mesa aparadora perto de lady Luce.

— Sua garantia, senhora — disse simplesmente. A condessa olhava-o com irritação.

Sabia que ele esperava por sua resposta. Kit Stratton podia ter decidido perdoar a

dívida, mas estava saboreando cada minuto que a tinha humilhada diante de si. Marina

via que o sorriso dele se pronunciava mais, enquanto sua patroa ficava a cada instante

mais e mais embaraçada.

A condessa pegou a folha de papel e amassou-a com os dedos trêmulos.

— Agradeço-lhe — disse, séria.

Marina queria que ela dissesse qualquer coisa que o fizesse sair dali depressa. Mas

lady Luce mantinha-se calada novamente. E Kit Stratton quase riu.

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— Doze mil libras — lady Luce murmurou, com raiva.

— Exatamente — Kit concordou.

— Não disponho desse dinheiro para pagar-lhe — declarou a condessa, com grande

esforço.

— Sei muito bem disso, senhora. E estou satisfeito por reconhecê-lo. Não vou

exigir o pagamento, e isso significa que a dívida não mais existe.

Marina sentia que a condessa estava a ponto de levantar-se e agredir Kit, mas se

continha a custo. Ele, por sua vez, muito calmo, voltou-se de novo para encarar Marina.

— Espero que esteja bem desde que nos vimos pela última vez — murmurou, vendo

que ela prendia a respiração. E então completou: — Na casa de Méchante.

— Sim, ela está muito bem — disse lady Luce. E, levantando-se devagar, continuou:

— O que quero saber, rapaz, é a identidade do intermediário que mencionou em sua

carta. Não dei permissão a ninguém para que interferisse em minha dívida para com o

senhor e quero saber de quem se trata para repreendê-lo quando nos encontrarmos.

— Vai mesmo repreender essa pessoa? — Kit perguntou, irônico. —Acho que será

difícil, senhora. Porque não tenho a menor intenção de revelar-lhe o nome. Afinal... devo

ter algum tipo de compensação por haver deixado de receber doze mil libras...

A condessa estava tão chocada que entreabriu os lábios, incapaz de articular um

só som.

— Bem, agora preciso deixá-la, senhora — Kit prosseguiu. — Mas acredito que nos

encontremos novamente em casa de Méchante, não?

A condessa continuava muda. Kit voltou-se uma terceira vez para Marina e lhe

disse:

— Poderia acompanhar-me até a porta, senhorita?

Parecendo recuperada, lady Luce respondeu mais uma vez por Marina:

— Vá, menina, acompanhe o sr. Stratton. Esta entrevista ridícula já durou tempo

demais. — E afastou-se até sua poltrona preferida, não mais olhando para Kit.

Ele sorriu, sem se importar, e caminhou adiante de Marina, para abrir-lhe a porta.

— Obrigada — ela sussurrou, sabendo que dispunha de apenas alguns segundos

para agradecer-lhe por ter falado com seu irmão. — Sr. Stratton, obrigada por haver

respondido tão prontamente a minha carta. Estou em débito para com o senhor.

Kit franziu as sobrancelhas, estranhando. Olhou-a, muito serio, percebendo seu ar

de inocência, e irritou-se com isso. Ela não devia estar falando da carta agora, como se

tivesse sido algo muito fácil conseguir que ele não cobrasse a dívida. Estaria exultando

sobre o que conseguira?

— Não costumo deixar que damas fiquem em débito comigo — observou, frio. Mas,

logo em seguida, percebeu que suas palavras poderiam ser mal interpretadas e

arrependeu-se de tê-las dito.

Parecia estar agindo errado em tudo que se relacionava a srta. Beaumont. Talvez

ela pensasse que estava se referindo ao preço absurdo que cobrara para perdoar a

dívida... Não importava ter-lhe dito que não exigiria o pagamento de levá-la para a cama.

Por isso acrescentou:

— Não se preocupe. Não há débito algum entre nós. Já devia saber disso.

Muito próximo, Kit notou mais uma vez a perfeição da pele de Marina. Ergueu a

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mão, quase sem sentir, na intenção de tocar-lhe o rosto, porém ela se afastou.

— É muito direto, senhor — disse, engolindo em seco. — E... em certos aspectos,

acredito que não concordemos. Como cavalheiro, deveria deixar que uma dama chegasse

as suas próprias conclusões quanto ao que deve ou não.

Kit franziu as sobrancelhas, mais uma vez sem entender. Mas o mordomo apareceu,

tornando a conversa impossível. Kit tomou a mão de Marina, como se fosse beijá-la,

porém parou, subitamente rude.

— É por demais gentil, senhorita — murmurou. — Tenha um bom dia. — E,

acompanhado pelo mordomo, deixou aquela casa sem nem sequer olhar para trás uma

única vez.

CAPÍTULO XII

— Quero meu casaco preto, Tibbs — ordenou lady Luce. — E mande preparar a

carruagem imediatamente.

O mordomo inclinou-se e saiu para obedecer à ordem, e Marina estranhou:

— Vai sair, senhora? Quer que eu vá buscar meu casaco também para acompanhá-

la?

A condessa olhou-a de soslaio, depois disse:

— Sente-se. Não será necessário. Não vou precisar de você esta noite.

Marina apenas assentiu, sabendo que seria impróprio indagar aonde sua patroa iria.

— Dou-lhe os parabéns por sua discrição — continuou a velha senhora, agora

fitando Marina nos olhos. — Infelizmente, porém, seu rosto é muito expressivo. Sim,

estou indo para a casa de Méchante. E não vou permitir que me acompanhe desta vez.

Não é um bom lugar para uma jovem dama como você.

— Mas esteve lá há uma semana...

— Há uma semana, certas pessoas precisavam de uma lição. Não costumo repetir

uma dose, seja do que for, ainda mais com William.

A criada de quarto chegou, trazendo as luvas e o casaco de lady Luce e começou a

colocá-lo sobre seus ombros, ao mesmo tempo que a condessa prosseguia para Marina:

— Enquanto eu estiver fora, quero que vocês duas continuem a fazer o vestido que

começaram esta tarde. Se ele tem que ficar pronto para amanhã, é bom que se

empenhem.

— Sim, senhora — murmurou a sra. Gibson, ajeitando o casaco sobre as pregas do

vestido da condessa.

— E, Gibson, não se esqueça do que eu lhe disse, ouviu? Espero ver uma melhora

considerável.

Marina não estava entendendo a conversa. Mas, como a sra. Gibson já tivesse se

retirado e Tibbs chegasse, anunciando a carruagem, era tarde demais para perguntar

qualquer coisa.

Instantes depois, a criada de quarto retornava, trazendo sua caixa de costura e

também a de Marina.

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— Tomei a liberdade de trazer-lhe isto, senhorita — avisou, sorrindo. — Para

poupar-lhe o trabalho.

— Obrigada, Gibson. Foi muita gentileza sua. — E olhou para o vestido que ela

trazia pendendo sobre o braço e que era de corte elegante, de uma cor adamascada

muito fina.

Gibson sentou-se, parecendo confortavelmente instalada.

— Podemos trabalhar aqui por enquanto — comentou. — Depois poderemos ir para

seu quarto, para que possa experimentá-lo.

Marina arregalou os olhos.

— Este vestido é para mim?!

— Mas é claro que sim, senhorita. Lady Luce não lhe disse? — Vendo Marina negar

com a cabeça, a criada prosseguiu: — A condessa gosta mesmo de uma brincadeira.

Vamos terminá-lo logo. Só temos de colocar as mangas e fazer o acabamento delas.

Sabe, se fosse um vestido à moda antiga, ficaríamos trabalhando durante dias. Esses

vestidos modernos podem ser, digamos, muito mais reveladores, mas são, com certeza,

bem mais fáceis de costurar.

Marina assentiu, sentando-se também. A criada colocava a linha na agulha e

continuava falando:

— E, com as suas linhas, este corte será ideal. Espere e verá. Vai ficar espantada

com a beleza deste modelo em seu corpo.

— Boa noite, Kit.

Ele não se surpreendeu ao ser cumprimentado por Méchante praticamente à porta

da casa. A mulher sabia a quem devia tratar bem. Depois de sua rejeição aos avanços

dela, Kit esperava mais uma tentativa de sedução assim que entrasse em sua casa

novamente. Méchante não sabia perder.

Sorriu forçadamente para ela.

— Minha querida, é maravilhoso ser recebido pela anfitriã em pessoa! E à porta! A

que se deve esta honra tão especial?

O sorriso dela estava carregado de sensualidade a fim de provocar-lhe uma

reação. Mas Kit nada sentia, e Méchante devia saber disso, pois ele percebeu quando a

expressão dela deixou de ser sedutora para se tornar calculista.

— Vai jogar faraó esta noite, Kit? Porque a sua oponente favorita se encontra aqui.

Ele ergueu as sobrancelhas.

— É mesmo? Devo dizer que estou um tanto surpreso, considerando-se que...

Méchante riu alto.

— Considerando-se que ela acabou de se livrar da dívida da semana anterior —

completou por ele. — É isso o que ia dizer?

— Não. Não ia dizer nada disso. Se quer informações sobre meus negócios com a

condessa, deve perguntar diretamente a ela, não a mim.

— Ora, vamos, Kit. Pode me contar! Afinal, foi na minha casa que a dívida se

estabeleceu.

— Não. Se ela quiser que você saiba, irá, sem dúvida, contar-lhe.

— Muito bem, então. Mas, se quiser entrar na lista de adversários dela no futuro,

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vou insistir em saber de tudo. De agora em diante, esta será uma condição para que

entre na minha casa.

Ele assentiu muito de leve, concordando.

— Vou considerar seu aviso — comentou —, embora eu não possa prometer que vá

continuar a freqüentar a sua casa nesses termos. Bem, mas não tenho intenção de jogar

faraó esta noite, uma simples rodada de pôquer estará bem. Junta-se a mim?

— Obrigada, mas eu não jogo pôquer muito bem. Porém desejo-lhe boa sorte. —

Com uma breve mesura, ela se afastou e subiu a escadaria que dava para o salão

principal.

Kit subiu devagar, olhando ao seu redor. O salão se encontrava praticamente vazio

e ele avançou para a sala de pôquer. Lançou um olhar para a esquerda, onde ficavam as

salas de faraó, mas elas estavam fechadas. Podia ir até lá e observar o jogo. Se lady

Luce se encontrava, de fato, ali, resistiria à tentação de jogar uma partida contra ela.

A condessa devia estar desesperada para vingar-se e para ganhar, mas ele não lhe daria

esse prazer.

Kit seguiu até as salas de faraó, porém na primeira delas não havia ninguém. Passou

para a segunda, onde todas as cadeiras ao redor da mesa estavam ocupadas. Lady Luce

sentava-se diante do homem que possuía a banca e que Kit não conhecia. A julgar pela

pilha de fichas que havia diante dela, devia estar ganhando.

Kit encostou-se num pilar, apenas observando, com ar casual. O jogo logo iria

terminar. E, quando a última carta foi dada, um jogador, visivelmente bêbado, acenou

para Kit, chamando-o.

— Kit, meu amigo, não quer se juntar a nós? — convidou. — Você é o tipo de homem

contra quem gosto de jogar, sabia? Porque é muito generoso!

A expressão no rosto de lady Luce tornou-se visivelmente tensa, mas ela não se

voltou. Parecia estar ocupada observando as próprias unhas.

Kit foi até a mesa e colocou uma mão espalmada sobre o tecido verde, bem ao lado

do braço da condessa.

— Esta noite, não, obrigado — disse, com voz tranqüila. Olhou para lady Luce,

percebendo que ela estava determinada a ignorá-lo, e ele não permitiria isso. — Boa

noite, senhora. Parece que está com bem mais sorte hoje do que... em outras ocasiões.

— Boa noite, sr. Stratton — ela respondeu, olhando-o de esguelha. — Então, está

noite não está preparado para arriscar sua reputação no faraó?

— Não vejo necessidade disso. Nada tenho a provar aqui. Minha reputação está

segura.

— Verdade? Mas ouvi dizer... — ela se interrompeu por uma fração de segundo,

para que todos prestassem atenção nas suas palavras. Então completou: — Ouvi dizer

que, pelo menos no que se refere à... fidelidade, as reputações estão se tornando,

digamos, uma tanto maculadas.

Kit não se alterou, mas não entendeu uma só palavra. O que ela poderia ter ouvido?

E os comentários que foram feitos, a meia-voz, em torno da mesa demonstravam que os

rumores a que lady Luce se referia não tinham chegado apenas aos seus ouvidos.

— Não tenho dúvidas, senhora — ele disse, mesmo assim —, que uma boa

quantidade em ouro possa garantir o brilho ao que quer que tenha sido maculado. Agora,

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se me permite, boa noite.

Sem mais, Kit deixou a sala. Do outro lado do cômodo, Méchante estava

observando tudo, bebendo uma taça de champanhe e sorrindo com satisfação.

Kit a viu, fez-lhe um breve sinal e continuou seu caminho. Não pretendia que

nenhuma daquelas duas mulheres percebesse qualquer sinal de fraqueza nele. Mas sua

raiva estava a ponto de explodir. Agora entendia que lady Luce sugerira estar ele sendo

infiel a Katharina. Como ousava?! Ao que parecia, ela não conhecia limites quando se

tratava de irritá-lo. Não fora infiel a Katharina... por causa da srta. Beaumont... devia

ser isso! A condessa devia ter sabido de seus encontros clandestinos com ela e

interpretado tudo a seu modo. Não poderia haver outra explicação. Precisava arranjar

um jeito de abafar os rumores antes que Katharina viesse a tomar conhecimento deles.

Lady Luce tinha de ser persuadida a...

Não. Lady Luce não era a maior culpada no caso. Hugo jurara segredo sobre o que

vira. Além dele, ninguém sabia a respeito dos seus dois encontros com a srta. Beaumont.

A única fonte de conhecimento acerca do que acontecera devia ser a própria srta.

Beaumont!

Se ela fora ingênua o suficiente para confiar na condessa, logo saberia que iria se

arrepender amargamente por havê-lo feito. E Kit teria prazer em dizer-lhe exatamente

quanto fora tola.

— Ela vai tocar e cantar mais tarde. E acredito que tenha uma linda voz. Parece-

me muito bem esta noite, também. Não concorda, Hugo?

Sir Hugo seguiu o olhar da esposa e comentou:

— É. Há algo de diferente nela. Não sei exatamente o quê, mas... Ela me parece...

mais jovem.

— Ora, os homens! — Emma troçou. — É claro que ela parece diferente! Está

usando um novo penteado. Muito mais bonito do que aquele coque sem graça que usava

antes.

— Deve ter razão, minha querida. E ela me parece ter berço, sabe? Tem... postura

elegante, sóbria. E aposto que muitos homens vão se interessar pela sua beleza clássica.

Embora seja um tanto alta.

— Sei. Para você, eu sou baixa demais, e ela é "um tanto alta". Vocês, homens,

nunca estão satisfeitos. Mas acho que tem razão. Há muitos cavalheiros aqui, bem altos,

que poderiam olhá-la diretamente nos olhos...

Hugo sorriu.

— Você está me saindo uma casamenteira, isso sim. Qualquer dia vai querer casar

Kit também.

— Não, não. Na verdade, se ele aparecesse aqui hoje, a maioria das damas

desmaiaria de choque e a minha reputação ficaria muito abalada!

— Tem certeza? — Hugo, era evidente, se referia ao mal-entendido do passado.

Ela cerrou os olhos e assentiu, certa do que dizia.

— Bem, minha cara, então sugiro que se prepare para ter a sua reputação abalada,

pois seu querido cunhado acaba de chegar.

Emma entreabriu os lábios e olhou para a porta, ouvindo o murmúrio geral de seus

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convidados devido à chegada de Kit. Ele passava os olhos ao redor, absolutamente

tranqüilo, como se sua presença ali fosse a coisa mais natural do mundo. Usava um terno

preto, com um alfinete de ouro prendendo-lhe a gravata também preta. Não sorria e

não o fez nem quando seus olhos encontraram seu irmão e Emma. Seguiu até eles, altivo,

por entre os convidados que se afastavam a sua passagem. As damas mais velhas

afastaram-se ostensivamente, mas ele nem pareceu notar.

Kit inclinou-se diante da cunhada e tomou-lhe a mão, que levou aos lábios para um

beijo suave.

— Querida Emma — disse —, minhas desculpas por ter chegado atrasado. Mas

acho que não interrompi seu entretenimento...

Ela olhou-o, repreensiva, porém Kit não estava disposto a receber admoestações.

— Estou surpresa que tenha vindo a uma festa tão aborrecida para você —

comentou lady Stratton, soltando sua mão da dele com delicadeza.

— Ainda mais porque não foi convidado — Hugo acrescentou, em voz baixa e em

tom de brincadeira.

— Você se importaria em me apresentar a alguns de seus convidados, cunhada? —

Kit indagou, ignorando os comentários.

Emma respirou fundo e, tomando-lhe o braço, aquiesceu:

— Mas é claro. Venha.

Hugo apenas observava, certo de que aquela noite seria mais divertida do que

parecia.

Emma levou Kit até lady Luce, cuja figura miúda tinha sido escondida pelos que

estavam ao seu redor. Kit teve poucos segundos para se armar contra ela. Depois do

breve encontro da noite anterior, era óbvio que a condessa não fosse recebê-lo com

bons modos.

A dama de companhia parecia não a estar acompanhando naquela noite, o que era

uma pena, ele pensou. Esperara que a reunião em casa de sua cunhada fornecesse uma

excelente oportunidade para confrontar a srta. Beaumont. Queria mostrar a ela quanto

ficara furioso por suas revelações fora de hora, embora tais revelações acabassem

sendo piores para ela mesma do que para ele.

— Senhora acredito que já conheça meu cunhado — disse Emma, sorrindo.

Lady Luce ergueu os olhos para Kit com ar aborrecido e comentou:

— Então, rapaz, decidiu criar outro escândalo, é?

Ele inclinou-se de leve, sem uma palavra.

— Devia envergonhar-se — continuou a condessa.

— Os convidados de sua cunhada vão arranjar desculpas para começar a sair daqui

a pouco tempo. Vai estragar a recepção que ela está dando. — E, voltando-se para lady

Blaine, que se encontrava a seu lado, indagou: — Não concorda?

Lady Blaine olhou para Kit com ar de superioridade. E ouviu a apresentação de lady

Luce com certo embaraço:

— Este é o sr. Kit Stratton.

Sem vacilar, Kit deu um passo à frente e, num gesto ousado, tomou a mão direita

da dama e a ergueu como se tivesse a intenção de dar-lhe um beijo. Mas se deteve,

dizendo apenas:

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— Encantado, senhora.

— Sr. Stratton — lady Blaine respondeu ao cumprimento extremamente fria. E,

voltando-se para lady Luce, disse: — Na verdade, tenho mesmo um outro compromisso,

condessa.

— Bobagem! — a velha senhora rebateu de pronto.

— Esta reunião está muito agradável e mal começou. Não pode sair só porque este

jovem... senhor apareceu de repente.

Kit estava com dificuldade para manter-se impassível. Evitava o olhar da cunhada.

Lady Blaine comportava-se como se estivesse diante de uma desgraça.

— Além do mais — continuou lady Luce —, a senhora mesma disse que sua filha

Tilly iria cantar para nós. E espero que ela tenha uma boa voz, porque não suporto

jovens com vozes esganiçadas que nunca sabem quando devem parar e poupar os ouvidos

alheios. — Ela passou os olhos ao redor, em busca da moça em questão, seguida por

todos que estavam ali perto.

A srta. Blaine encontrava-se ao lado do piano, usando um vestido branco que em

nada combinava com sua tez extremamente alva nem com sua magreza considerável.

Estava ali, imóvel, com os olhos muito abertos, como se acabasse de ter uma visão. Seu

olhar pousava, encantado, em Kit. Era um olhar que ele já vira inúmeras vezes em muitas

jovens.

— Não me parece que ela consiga cantar — comentou lady Luce, com certa malícia.

—Acho até que está a ponto de desmaiar ou de sair voando...

Lady Blaine levantou-se e seguiu até a filha, mas era tarde demais. Muitos

convidados tinham ouvido o comentário da condessa e já observavam a moça. Um

murmurinho baixo começou a circular na boca de todos. Em poucas horas, a paixão da

srta. Blaine por Kit estaria circulando por toda Londres. Apenas a própria garota

parecia alheia a tudo que se passava. Continuava a olhar para Kit com expressão de

adoração e seus lábios, agora abertos, davam-lhe um aspecto absolutamente tolo.

A mãe tomou-a pelos ombros, sacudindo-a de leve e dizendo-lhe algo a meia voz. E

o efeito foi imediato: a moça corou muito e baixou a cabeça.

— Oh, não suporto mocinhas tolas com mães mais tolas ainda! — disse lady Luce,

sem conseguir controlar sua língua. — Ainda mais quando não perdem num jogo de

cartas!

Emma desviou o olhar, tentando abafar o riso. E desculpou-se:

— Perdão, lady Luce, mas acho que terei de encontrar outra pessoa para cantar no

lugar da srta. Blaine.

— Oh, Marina pode fazê-lo! — exclamou a condessa. — E aposto que não vai me

decepcionar. Mas... onde ela se enfiou?

Marina... Um nome incomum. Kit imaginava se lady Luce estaria se referindo a sua

dama de companhia. Nunca soubera qual era o primeiro nome da srta. Beaumont. Porém

sua inicial era, de fato, M.

Emma passava os olhos pelo salão. Até que apontou com seu leque, anunciando:

— Ali, senhora! Se me der licença, vou perguntar a ela se concorda em cantar para

nós.

Kit ficou observando a cunhada, vendo-a passar por vários convidados, sorrindo,

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trocando palavras, sendo amável como sempre. Hugo era um homem de sorte, avaliou.

Emma parou ao lado de uma jovem dama que estava atrás de um pilar. Instantes

depois, ela se revelou, andando com uma graça incrível, seguindo em direção ao piano.

Kit não conseguia deixar de olhá-la, de notar sua elegância. Mas foi apenas quando ela

se aproximou e se sentou ao instrumento, com a luz do grande lustre incidindo sobre si,

que ele a reconheceu.

A dama de companhia de lady Luce tinha algo de especial. Via alguma coisa nela

que, com toda sua experiência, não notara antes. E então ela começou a tocar.

CAPÍTULO XIII

A srta. Beaumont tocava maravilhosamente. Sob seus dedos, o piano parecia

cantar. Kit achou a música que ela tocava muito comovente, mas procurava manter a

expressão como se estivesse muito entediado com aquele desempenho. Não seria bom

para a srta. Beaumont que a sociedade percebesse que ele tinha o menor interesse por

ela.

No entanto foi mais difícil manter a expressão de enfado quando ela começou a

cantar, já que sua voz era muito mais tocante do que a música. E Kit tentava lembrar se,

ao falar, ela era também tão suave. Não conseguia. Fosse como fosse, não conhecia nem

a música nem a letra. Marina Beaumont cantava falando dos espaços abertos, dos

campos, das maravilhas da natureza, da primavera, da simplicidade da vida rural. E era

como se todos ali pudessem ver as paisagens bucólicas a que se referia, quase sentir o

perfume das flores espalhadas pelas campinas.

Kit notava que ela se transformava ao cantar. E deixava-se levar pelo enlevo que a

música e a cantora provocavam em seu ser.

Emma tocou-lhe de leve o braço, repreendendo-o:

— Como pode, Kit?! Está ouvindo uma peça tão suave, tão linda, e nada faz para

disfarçar seu enfado?! Não tem bons ouvidos? Ou é um mero bárbaro?

Kit encarou a cunhada, não admitiria a verdade nem mesmo a ela. Havia gente

demais ao redor, curiosos que poderiam ouvi-lo. Também não estava preparado para

mentir sobre a beleza do canto da srta. Beaumont. Seria desleal.

— Sinto muito, minha cara — desculpou-se. — Eu pensava em outra coisa. Nem

estava ouvindo, na verdade. Mas, se me diz que o desempenho dessa moça é

maravilhoso, devo concordar, sem dúvida. Seria pouco cavalheiresco não fazê-lo.

— Pouco cavalheiresco! Veja quem fala! — Emma brincou. — E essa moça, como

você disse, chama-se Marina Beaumont, como parece ter esquecido. Você não deveria

comparecer a reuniões deste tipo se não está preparado para tentar, ao menos,

apreciar a boa música.

Kit sorriu, mas nada disse. E Emma aproveitou para continuar:

— Saiba que, por penitência, meu cunhado querido, vai ficar aqui, a meu lado,

quando a srta. Beaumont cantar a próxima canção. E, quando ela terminar, vou querer

uma opinião concreta sobre o que você ouviu.

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Kit fingiu um gemido, porém não tentou escapar. Recostou-se a um pilar, fingindo

falta de interesse.

A segunda canção foi bem diferente da primeira. Era uma balada italiana muito

conhecida em Viena, embora a srta. Beaumont, Marina, ele se lembrava, estivesse

cantando num ritmo bem mais rápido do que se costumava fazer na Áustria. E ela

parecia mais alegre, mais solta. Kit imaginava se aquela garota, antes tão severa,

fechada, teria consciência de quanto expunha sua alma ao cantar daquela forma. Por

baixo da dama de companhia recatada e séria, havia uma alma alegre, cheia de

entusiasmo.

E, ouvindo-a, Kit concluiu que aquela mulher, aquela que via agora, precisava ser

trazida à luz do dia, aparecer, viver. A outra srta. Beaumont parecia não saber sorrir.

Já era tempo de aprender...

Marina inclinou-se numa mesura delicada ao receber os aplausos. Sabia que havia

cantado e tocado bem, apesar da relativa falta de prática desde que chegara a Londres.

A primeira canção que cantara fizera-a lembrar-se de sua terra, de sua avó, que

adorava aquela música. Uma música que ela mesma compusera havia algum tempo.

Emma Stratton aproximou-se quando Marina já se afastava do piano.

— Srta. Beaumont, foi maravilhoso! — elogiou ela. — Emocionante, na verdade! Até

mesmo Kit ficou emocionado com o seu desempenho!

Marina sentiu o sangue parar em suas veias. Seguiu o olhar de sua anfitriã e viu

que Kit estava ainda recostado ao pilar. Não parecera nada entusiasmado, ela notara

enquanto cantava. Na verdade, dava até a impressão de estar entediado. E sua

expressão de dúvida quanto a isso devia ser óbvia, pois lady Stratton insistiu:

— Não acredita em mim? Venha, então! Vai ouvir por si mesma. — Emma passou o

braço pelo de Marina e a levou até Kit.

Marina engoliu em seco e tentou manter a calma. Ele se endireitou quando as duas

se aproximaram, desencostando-se do pilar.

— Kit, acabei de dizer a srta. Beaumont quanto você apreciou sua apresentação! —

Emma anunciou. — Mas acho que ela não acreditou.

Ele olhou para a cunhada, calado por alguns segundos, e Marina podia jurar que sua

chegada não era bem vista por Kit.

— Senhorita — disse ele, com um leve inclinar de cabeça —, dou-lhe meus

parabéns. Jamais ouvi essa música italiana cantada dessa forma antes. Foi muito...

interessante.

Marina não esperava muito dele, mas agora achava que, se Kit nada tivesse dito,

teria sido bem melhor. Ele usava um tom condescendente que não era nada convincente.

Podia agradecer a ele por haver falado com o irmão sobre guardar silêncio quanto ao

que vira no parque, mas não permitiria que a tratasse com desdém. Kit agia assim com

todas as mulheres, imaginou, lembrando-se do que lady Luce lhe dissera; porém Marina

não pretendia ser mais uma em sua lista.

— Oh, minha tia Warenne está me fazendo sinais! — Emma interferiu, antes que

Marina pudesse pensar numa boa resposta. — Imagino que ela tenha visto algo de

errado quanto aos arranjos para a recepção. Se me derem licença... tenho certeza de

que Kit poderá entretê-la na minha ausência, srta. Beaumont.

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Um silêncio pesado caiu entre ambos, enquanto Marina pensava numa boa desculpa

para se afastar. Seria rude demais se simplesmente o deixasse ali.

— Posso lhe perguntar sobre a primeira canção que nos apresentou? — Kit indagou,

acabando com a tensão que estava no ar. — Não me lembro de tê-la ouvido antes.

Marina não sabia o que dizer. Se lhe dissesse que ela mesma a tinha composto, Kit,

por educação, a cumprimentaria por seu talento, mesmo que estivesse mentindo. E ele

se comportaria daquele seu jeito superior, como se fosse uma grande coisa a atenção

que lhe estava dando, decidindo, talvez, se ela ainda valeria a pena como amante...

Marina sentiu-se corar. Por que havia pensado uma coisa assim?! Talvez por causa

do jeito que Kit a estava olhando. De forma intensa, com aqueles olhos muito mais azuis

do que ela conseguia se lembrar. Na semi-escuridão da carruagem, mal pudera prestar

atenção a ele; mas ali, sob a luz de um lustre enorme, era diferente. E Kit não poderia

atacá-la diante de tanta gente...

Ela se deu conta de que levara a mão aos lábios, como se pudesse lembrar-se da

sua reação aos beijos dele. Como pudera?, lamentava-se. Com sua vasta experiência, Kit

Stratton devia entender cada movimento seu. E começou a se sentir embaraçada.

Precisava pensar rapidamente em uma resposta para dar a ele.

E Kit continuava extremamente educado:

— Está se sentindo bem, senhorita? Faz bastante calor neste salão. Talvez queira

sair um pouco...

Ele estava se oferecendo para acompanhá-la até o jardim?, Marina ponderou.

Não... ela não poderia aceitar, em público, ficar a sós com um sedutor como ele.

— Não, não... Estou bem, obrigada. Não será necessário sair do salão.

— Não? — Kit franziu a testa. — Talvez não seja o ar que lhe é indiferente, mas a

companhia.

Marina encarou-o. Um cafajeste como ele não deveria sentir-se ferido pela recusa

de uma dama em acompanhá-lo. No entanto Kit parecia estar. E, sem pensar no que

fazia, Marina estendeu a mão e tocou-lhe de leve o braço. E foi como se seus dedos

tivessem tocado uma brasa. Afastou-os de imediato, percebendo que sob aquela

aparência fria e distante, havia músculos tensos e um intenso calor.

Sentiu que corava e seu corpo todo parecia estar queimando. Sua respiração

também se acelerou. Mas Kit, é claro, mantinha o controle. Depois de alguns segundos,

inclinou-se de leve para comentar:

— Gostaria que eu pegasse alguma coisa para beber?

— Eu... estou com um pouco de sede, sim, depois de cantar.

— Champanhe?

Marina recusou. Seus dedos giravam o anel, como de costume.

— Não? Então, vou lhe trazer uma limonada. Com sua licença.

Marina ficou sozinha com seus pensamentos enquanto ele se afastava. Ficar a sós

com Kit Stratton significava perigo. Ele era a tentação em pessoa! Marina não conseguia

deixar de pensar nos beijos que Kit já lhe tinha dado, no calor de seu corpo; e, apesar

de si mesma, queria que tudo acontecesse novamente. O que estava lhe acontecendo era

pura loucura! Kit era um homem que possuía amantes às dúzias, e entre elas havia as

mulheres mais belas da Europa! O único motivo pelo qual a beijara fora para provar que

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podia fazê-lo e que ela não conseguiria resistir-lhe.

Sir Hugo, notando que se encontrava sozinha, aproximou-se. E, para surpresa de

Marina, foi ele quem lhe trouxe um copo de limonada.

— Srta. Beaumont, perdoe-me por tomar o lugar de meu irmão. Mas o fato é que eu

queria ficar alguns momentos a sós com a senhorita para dizer-lhe quanto a amizade de

seu tio me era cara. E a de seu pai também, embora eu não o tenha conhecido muito

bem. Esperava escrever para sua mãe depois daquela batalha, mas... não foi possível.

Espero que acredite que senti muito por isso. Como está sua mãe agora? E seu irmão?

Eu soube que tem um...

— Uma noite muito agradável, embora sem a presença da baronesa—disse lady

Luce, satisfeita, quando voltavam, na carruagem, para casa. — E devo dizer que você

cantou muito bem, Marina. Todos gostaram e a elogiaram.

Porém, Marina não estava prestando atenção. Ouviu as palavras da condessa e elas

provocaram-lhe uma lembrança que a incomodava: todos tinham gostado, menos Kit

Stratton. E foi quase sem perceber que ela acabou revelando o que pensava:

— Acho que o sr. Stratton não deveria comparecer a recitais e festas desse tipo

se não aprecia música. Ele estava obviamente aborrecido e nem teve a delicadeza de

fingir o contrário.

Lady Luce olhou de esguelha para Marina, depois mudou de assunto:

— Notei que conversou bastante com sir Hugo. Ele gostou muito da sua atuação. Eu

mesma o ouvi dizer isso.

— Sir Hugo é muito gentil. Falou-me de meu pai e de meu tio, que foi seu grande

amigo. Disse que sentia muito por ter perdido contanto com a nossa família e que

pretende escrever para minha mãe. Disse até que está disposto a oferecer um lugar

para Harry morar assim que ele se ordenar. Isso seria de muita valia para nós.

—Achei que seu irmão já tivesse recebido essa oferta do seu amigo de Londres,

como você mesma disse. A irmã dele escreveu para você, não?

Marina calou-se por instantes. Por que contara aquela mentira estúpida?,

repreendeu-se. E teve de contar outra:

— Ah, mas a família dele se mudou de Londres temporariamente. Esqueci de lhe

dizer, senhora. E, na verdade, o amigo de Harry não lhe prometeu uma casa de fato,

apenas uma leve ajuda... Quanto a sir Hugo, bem, a oferta foi clara. Ele até me disse

para escrever para minha mãe contando a novidade. Vou fazê-lo assim que chegarmos.

Emma sentou-se com prazer em sua poltrona favorita e cerrou os olhos por

momentos. Hugo olhou-a e sorriu, encantado.

— Sua recepção foi um sucesso — elogiou ele. — Tenho certeza de que poderia

facilmente tornar-se uma das damas mais conhecidas da sociedade londrina.

— Isso não é o que tia Augusta pensa, meu amor. Culpou-me pelo comportamento

tolo de Tilly Blaine, sabia? Insistiu para que eu faça algo a respeito. Mas não sei o que

ela quer, exatamente.

— Sua tia Warenne ficou visivelmente irritada com a chegada de Kit. — E,

voltando-se para o irmão, Hugo completou: — É de admirar que ela não tenha se

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oferecido para colocá-lo pessoalmente para fora daqui.

Kit virou-se, deixando de olhar para o movimento das carruagens na rua. E sorriu,

indulgente.

— Essa senhora aterroriza a maioria dos homens, devo admitir, mas sei que acaba

se derretendo quando conhece melhor as pessoas.

— É, até mesmo tia Warenne não pode ser colocada contra seu irmão, Hugo —

Emma suspirou. — Ele deveria ser trancafiado, sabia? É um grande perigo para as

mulheres em geral.

— Vou aceitar suas palavras como um elogio, querida cunhada.

— Pode brincar, Kit, mas o que acha que eu deva fazer quando garotas bobocas

como Tilly Blaine quase desmaiam ao vê-lo?

— Ignore-as. Faça como eu. Depois de alguns instantes de absoluta frieza, elas

tendem a voltar ao normal.

— Oh, você não tem coração! — Emma repreendeu-o. — Um dia, também vai

descobrir como é doloroso gostar de alguém que não corresponderá a sua afeição. E

será bem feito!

— Se não tenho coração, como você mesma sugere, acho que jamais poderei

experimentar tal sensação, minha querida.

Emma encarou-o com uma careta.

— Detesto cavalheiros cheios de lógica — observou. Hugo sorriu e interferiu na

conversa:

— Sugiro que sirva um copo de vinho a minha esposa, Kit. Talvez, se o entregar a

ela de joelhos, Emma seja persuadida a perdoar-lhe a impertinência.

Kit riu alto. Depois serviu três copos de vinho, entregando um deles à cunhada.

Não se ajoelhou, porém. Mas lhe fez uma mesura exagerada.

— Hugo já deveria saber que você nunca segue seus conselhos, mesmo que sejam

excelentes — disse ela, aceitando o vinho.

— Bobagem. Ele me aconselhou a estar presente à sua recepção hoje, e eu vim.

Emma olhou para o marido, parecendo surpresa. Mas sua atenção foi tomada pela

continuação das palavras de Kit:

— E eu gostei de ter vindo. Foi uma noite muito agradável. Gostei da música,

apesar de os meus ouvidos não serem talhados para ela... Mas, querida cunhada, não se

zangue. Hugo queria apenas que a sociedade se reconciliasse com o meu comportamento

ultrajante. Ele acredita, não sei bem por que, que essa gente pode acabar preparada

para me aceitar se eu for um bom moço em reuniões como a de hoje.

— A sociedade jamais vai aceitar um homem solteiro com boa linhagem e muito

dinheiro — Hugo observou, um tanto cínico. — Agora que você se tornou mais rico, seus

casos amorosos serão simplesmente vistos como indiscrições da juventude.

Kit nada disse, porém sabia que era verdade. A riqueza que recebera

recentemente fizera grande diferença.

— E você espera preencher os requisitos da sociedade, Kit? — Emma quis saber.

— Isso significa tomar uma esposa? — Emma assentiu, bebendo seu vinho.

— Eu costumava dizer que não me casaria nunca e figuras como essa tal Tilly Blaine

não melhoram meu ânimo. Como um homem normal poderia querer ligar sua vida a alguém

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tão idiota?

— Talvez a achasse mais interessante se ela fosse bonita. E não é culpa de Tilly

ser magra e comum.

— É verdade. Mas ela usa aquelas roupas que só acentuam sua palidez, sua

magreza! Uma mulher pode ser magra, mas elegante, charmosa. Não é o caso dela.

— Tem razão. Notou a srta. Beaumont? Ela também é magra, mas é... é...

— Impressionante — Kit completou.

— Exatamente! Ainda mais quando cantou! — Emma concordou.

— Eu acho que há maravilhas ocultas na srta. Beaumont — Hugo opinou, tranqüilo.

— Sei que a sua família passou por maus bocados desde o falecimento do pai, e isso

acaba moldando a personalidade, o caráter, o comportamento das pessoas. A mãe dela

se viu forçada a lecionar, e seu irmão, que está em Oxford, estuda muito e pretende

ser padre. É uma grande despesa para elas. Não é de admirar que a moça esteja

trabalhando como dama de companhia. Devem precisar de cada centavo que ela ganha.

— E você pretende ajudá-los, meu amor?

— Já prometi fazê-lo. Disse que daria um lugar para seu irmão morar assim que ele

se ordenar. Se visse a alegria nos olhos da srta. Beaumont!

— E que lugar ofereceu a ele?

— Stratton Magna, é claro! É a única propriedade vaga em nossa família.

— Espere, espere, Hugo — Kit interferiu. — Stratton Magna é minha. Você pode

ser o chefe da família, mas aquela propriedade me pertence.

Hugo parou e pensou por instantes.

— De fato — concordou, por fim. Mas sabe que temos uma dívida de gratidão para

com a família Beaumont. E eu permiti que vivessem na penúria por duros anos. Dez

longos anos. A família do irmão de meu melhor amigo! Dando a Harry uma moradia em

Stratton Magna, a família sairia da pobreza, sem que isso parecesse caridade. Quer que

eu retire a oferta, meu irmão?

Kit encarava-o. Depois olhou para Emma, que esperava ansiosa. Então sorriu.

— Não, Hugo. Mas já pensou em como a srta. Beaumont reagirá quando souber que

está, dessa forma, ligada a mim?

CAPÍTULO XIV

A caminho da casa de lady Emma Stratton mais uma vez, Marina recostou-se

dentro da carruagem que a elegante dama mandara para buscá-la e passou os olhos ao

redor do veículo requintado. Tanto luxo para uma mera dama de companhia, avaliou.

Cerrou os olhos, desfrutando o momento. Sir Hugo e sua esposa estavam sendo por

demais generosos para com uma pobre moça do interior. Lady Stratton não apenas

persuadira lady Luce a permitir que Marina visitasse sua casa pela manhã, como também

a convidara para duas recepções em sua casa, à noite. A condessa não ficara muito

satisfeita a princípio, mas acabara cedendo, já que não teria tanta necessidade assim

de sua companhia, pois, à noite, continuava frequentando as casas de jogo mais

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afamadas de Londres.

Marina não sabia ao certo como lady Stratton conseguira, porém o efeito era que

sua vida na cidade estava se tornando mais parecida com a de uma verdadeira dama do

que com a de uma simples dama de companhia. E Marina agora possuía um bom guarda-

roupa, pois lady Luce levara a cabo suas ameaças de gastar o dinheiro do filho na

costureira para melhorar a aparência de sua protegida. E tudo que havia escolhido para

Marina era de um extremo bom gosto, mesmo estando sempre ela a dizer que a moda

atual era indecente, sem recato, horrível.

Agora, ali, na carruagem, Marina olhava para seu vestido azul-escuro e sorria. Era

maravilhoso poder vestir-se com bons tecidos e modelos que valorizavam seu corpo,

muito embora a costureira que os fazia não fosse a mais elegante de Londres. Isso, na

verdade, não importava. Para Marina, ela ainda vivia um conto de fadas. Lady Luce a

proibira de usar roupas nas cores cinza e marrom e seus antigos vestidos estavam agora

guardados no fundo de um baú. Lembrava-se de quanto sua mãe havia trabalhado para

poder comprar aqueles vestidos; e era sempre bom guardá-los, já que a condessa

poderia, a qualquer momento, mudar de humor e de idéia... Principalmente se

descobrisse algum envolvimento seu com Kit Stratton.

Marina engoliu em seco ao lembrar-se dele. Podia ver-lhe o rosto, o sorriso, quando

ele conversava com sua cunhada, amável, simpático, igual a qualquer outro cavalheiro, e

não como o maldoso canalha que era. Devia desprezá-lo, mas não conseguia. Queria

poder condená-lo por levar uma vida depravada e por haver tentado levá-la a isso

também.

Mas, ainda uma vez, não conseguia... Tudo o que acontecera entre ambos fora

porque ela permitira, pelo menos em parte. Fora ao seu encontro sozinha, estivera em

sua casa, sentira-se derreter em seus braços...

Era tão culpada quanto ele. E, quando o via sorrindo para os membros de sua

família, sentia inveja. Olhou pela janela e mordeu o lábio. Não entendia o que lhe estava

acontecendo. Fora beijada por Kit Stratton e estava irremediavelmente perdida, essa

era a grande verdade.

— Srta. Beaumont! — surpreendeu-se Kit ao adentrar a sala de sua cunhada. —

Mas que agradável surpresa!

Marina levantou-se muito devagar da cadeira, sentindo-se subitamente trêmula.

Por que ele tinha de aparecer agora, como se tivesse sido trazido pela força de seus

pensamentos?, imaginava. E por que lady Stratton, sempre tão pontual, ainda não

chegara?

Era óbvio que Kit esperava que ela dissesse alguma coisa. Olhava-a, parecendo

divertir-se com seu embaraço.

Marina endireitou-se mais e disse:

— Tenho permissão para visitar lady Stratton pela manhã, quando lady Luce não

precisa de meus serviços. Na verdade, lady Stratton tem sido muito gentil.

— Imagino que sim. Ela acredita que os Stratton negligenciaram sua família depois

da morte de seu pai.

— Oh, não...

— Srta. Beaumont — disse Kit, naquela voz profunda que parecia arrebatá-la a

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cada palavra —, permita-me avisá-la de que em nada adianta discordar de minha

cunhada quando ela decide algo. E, se Emma decidiu que a nossa família deve alguma

coisa a sua, é melhor aceitar o fato.

Marina sabia que ele era arrogante, mas aquelas palavras estavam além do que

podia esperar.

— Verdade? — indagou, sem conseguir pronunciar mais nada.

— Verdade. — Kit a observou de cima a baixo por instantes. Parecia ter notado

somente agora a mudança em seu modo de se vestir, pois seus olhos abriram-se um

pouco mais, talvez mostrando certa admiração.

Marina ergueu mais o rosto, não permitiria que a presença dele a constrangesse.

— Estou esperando por sua cunhada, senhor — afirmou, muito séria. — Ela sugeriu

que tocássemos juntas e não mencionou estar esperando visitas.

— Imagino que não. E, na verdade, srta. Beaumont, cunhados nunca contam como

visitas. Com certeza, Emma não estava a minha espera. Vim para levar Hugo à academia

de boxe de Jackson. — Ele esperou alguns segundos, como para analisar sua reação,

depois observou: — Vejo que não franze o nariz à idéia. Emma, com certeza, o faria.

— Tenho um irmão também, senhor, e me acostumei a encarar com naturalidade

certas coisas tipicamente masculinas.

— Claro, claro...

Marina se sentia como se estivesse diante de um perito que apenas a considerava

uma tola sem muito saber. E, de repente, sentiu uma compulsão absurda de agredi-lo,

como fizera na casa dele, em Chelsea, depois daquele beijo... Detestava lembrar-se

porque ficava sem controle sobre suas sensações. E isso estava acontecendo mais uma

vez.

— Oh, sinto tanto por havê-la deixado esperando, querida! — Lady Stratton surgia

na sala como um pequeno e agradável furacão. — Oh, Kit! O que faz aqui a esta hora?!

— Nada de grande importância. Pensava ir até a academia de Jackson. Prometi

apresentar um amigo a ele esta manhã e achei que Hugo poderia gostar de ir comigo. Já

faz algum tempo que nós dois não nos engalfinhamos numa luta...

Lady Stratton fez uma careta teatral. Depois comentou:

— É um dos tristes fatos da vida, srta. Beaumont, que as damas tenham de

suportar certas... características e hábitos de seus parentes do sexo masculino. Não

consigo entender, nunca consegui, que prazer insólito eles sentem em tornarem-se

mutuamente sacos de pancada. — E, olhando para Kit, acrescentou: — E não sei por que

está rindo, Kit! Vamos, pode ir! Vá! Vá chamar seu irmão para acompanhá-lo naquela

aventura absurda!

Ele se inclinou com cuidado exagerado.

— Seu desejo é uma ordem para mim, querida cunhada! — E, voltando-se para

Marina, completou: — Permita-me, srta. Beaumont, dizer-lhe que me agrada muito ver

que a condessa permitiu que tivesse algum tempo para si mesma. Agora, se gosta de

aproveitar essa liberdade em companhia da minha querida cunhada... — Ele olhou para

Emma, que se enfurecia. — Bem, isso é decisão unicamente sua. Tenham um bom dia!

Kit fechou a porta atrás de si no exato momento em que um livro, lançado por

Emma, atingia o local exato em que ele estivera.

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— Mas que homem terrível! — murmurou ela por entre os dentes. Mas estava

praticamente rindo enquanto falava.

Marina tentou forçar um sorriso. Sabia que não devia tecer comentário algum a

respeito do que acabara de presenciar. Lady Stratton podia rir à vontade do que o

cunhado fazia, porém Marina também sabia que, por trás das brincadeiras dele, havia

um homem frio, sem coração. Vira-o quanto era perigoso quando levara a condessa

praticamente à ruína e quando quase levara a ela, Marina, ao pecado!

Hugo meneou a cabeça.

— Acho que não, Kit. Tenho um compromisso esta manhã ao qual não posso faltar,

mas vou querer acompanhá-lo, sim, em outra oportunidade. Sei que Jackson vai dizer

que estou terrivelmente fora de forma, e ele terá razão, com certeza. Não subo no

ringue há semanas.

— Nesse caso, é melhor que não vá mesmo. De que me adianta um irmão que não

será um oponente à altura?

Hugo riu.

— Vamos combinar uma ida à academia dentro de uma semana, o que acha? Então

vou lhe mostrar se sou ou não um oponente à altura.

Kit estendeu a mão para que o irmão a apertasse.

— Combinado, então! — concordou. — Cinco libras para quem vencer?

E os dois se apertaram as mãos, num acordo. Depois, Hugo comentou:

— Kit, quero lhe dizer uma coisa. — Ele hesitava. — Eu... bem... ouviu alguns

rumores recentemente?

— Pode ser mais específico? Porque ouço rumores o tempo todo. A que tipo de

rumores está se referindo?

— Sobre... sua... amante austríaca.

Kit estava pensando em Marina. Pelo visto, enganara-se. Tratava-se de Katharina.

O que Hugo teria ouvido? Respirou fundo e então respondeu:

— Entendo... Bem, não ouvi nada. Mas vai me dizer do que se trata?

— Costumeiramente eu não o faria, porém... Olhe, Kit, você merece algo melhor do

que ser feito de tolo por aquela mulher.

Kit podia adivinhar o que estava por vir. Sentiu um ímpeto de raiva, primeiro

contra Hugo, porque ele era quem estava lhe dando a notícia, e depois contra Katharina,

por ser a causa de tudo. Mas se recusava a deixar que seu orgulho ferido falasse mais

alto.

— Pode me contar tudo — pediu. — E não tente poupar meus sentimentos, pois,

nesse caso, não tenho nenhum, acredite.

Hugo olhou-o por um longo momento antes de prosseguir:

— Estão dizendo que a baronesa tem um novo amante. Não sei de quem se trata,

mas muitas pessoas já estão comentando o fato. Sei que podem estar todos enganados,

porém...

— Mas acha que não estão.

— Acho. Ainda mais porque... Olhe, tem que ficar atento, Kit, pois um desses

jornalecos de quinta categoria já está publicando coisas a respeito de seus casos

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amorosos, além do fato de que a baronesa... bem..., desapareceu.

— Você viu essa matéria de jornal?

— Não, mas muitas pessoas viram. Quer que eu tente...

— Não, obrigado, Hugo. Agradeço pela informação e... não há mais nada que possa

fazer por enquanto. Vou lidar com a situação a meu modo. Emma sabe alguma coisa

sobre isso?

— Não. Mas sua tia Warenne, como você bem sabe, é sempre uma das primeiras a

saber de tudo que se passa na sociedade londrina. Acredito que seja apenas uma

questão de tempo para que...

— Nesse caso — Kit interrompeu-o, colocando a mão em seu ombro —, acho melhor

eu ir. Ao que parece, vou ter de encarar mais de um... oponente hoje. Deseje-me sorte,

meu irmão.

— Com toda a sua experiência, vai mesmo precisar?

A baronesa estava furiosa, mas não ergueu a voz:

— Então, tem a impertinência de vir até mim para que eu lhe pague, Budge? — Seu

sotaque estrangeiro ficava mais e mais forte a cada palavra. E mostrou um jornal à

governanta. — Depois "disto"?!

A sra. Budge estremeceu, porém se manteve firme.

— Fiz exatamente como ordenou, senhora — disse. — Juro. E já faz quase uma

semana, por isso...

— Eu lhe dei instruções muito claras para que não dissesse uma única palavra a

ninguém sobre a carta que escrevi! Vai negar que me desobedeceu?!

— Não, senhora. Quero dizer... sim... Eu... — Ela meneava a cabeça, tentando

colocar os pensamentos em ordem. — Senhora, eu nada disse sobre a senhora ao sr.

Johnson nem a qualquer outra pessoa. Simplesmente entreguei a carta que me deu.

A baronesa abriu o jornal sobre a mesa e olhou-o com raiva.

— Está me dizendo que não conversou com o sr. Johnson? — perguntou em tom

imperioso.

— Não... não, senhora. Não, exatamente. Apenas comentamos sobre o tempo, sabe?

— Sei, sei... Eu devia ter me prevenido e não confiado em uma criada inglesa! Em

especial uma que ousa me falar em pagamento depois de me trair!

— Mas, senhora, eu juro que...

Katharina jogou o jornal contra o rosto de Budge.

— Mesmo?! Então leia isso! E me diga que não é responsável! Se ousar, é claro!

A governanta passou os olhos pelas letras minúsculas do jornaleco. Suas mãos

ainda tremiam como reflexo da violência com que a baronesa a tratava.

E então ergueu o queixo e encarou sua acusadora.

— Senhora, nada tenho a ver com isso — declarou, enfática. — Eu não disse ao sr.

Johnson que a senhora e meu patrão são... Bem, e, com certeza absoluta, não disse nada

a respeito da sua pessoa em particular. Como poderia, se nada sei sobre seus outros

casos?

Katharina arregalou os olhos.

— Mas como ousa?! Sua impertinente! Saia da minha casa imediatamente, antes

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que eu mande jogá-la no meio da rua! Vamos, saia daqui!

A sra. Budge praticamente saiu correndo, antes que a baronesa cumprisse sua

ameaça. Era óbvio que nunca mais receberia nem sequer um centavo dela.

Não sabia o que aconteceria dali em diante. Katharina inventaria uma história e

Budge seria sumariamente demitida. Não podia permitir que isso acontecesse. Não

podia perder seu emprego e o dinheiro que recebia nele. No entanto deveria haver

outra forma de ganhar dinheiro, pelo menos no momento. A baronesa a acusara de

traição e a estava tratando como se fosse, de fato, culpada. Assim, poderia conseguir

alguma coisa...

Faria outra visita ao sempre bem informado sr. Johnson e, dessa vez, não seria tão

reservada quanto ao que dissesse a ele. E a próxima edição daquele jornaleco de quinta

categoria publicado por ele acabaria por dar uma lição àquela baronesa sem escrúpulos!

Isso, além de torná-la a mulher mais mal falada de toda Londres...

Budge assentiu de leve, aprovando os próprios pensamentos. E, caso o que fizesse

não fosse suficiente para causar todo o dano que planejava, ela mesma se encarregaria

de que uma cópia do tal jornal, com sua história interessante, chegasse à embaixada

austríaca, aos cuidados pessoais do nobre barão Von Thalberg.

Por instinto, Kit manteve-se nas sombras. Não queria ser visto nas vizinhanças da

casa de Katharina. Já havia rumores demais pairando por toda a cidade. E foi então que

reconheceu a mulher vestida de negro que deixou a residência. Era sua própria

governanta!

O caso estava se tornando ainda mais interessante, analisou. Que motivos a sra.

Budge teria para visitar a baronesa em sua casa? Ele mesmo não dera recado algum para

que ela levasse a sua amante... Na verdade, não se comunicava com Katharina havia mais

de uma semana, o que não era tão surpreendente assim, se fosse verdade que sua

querida austríaca o estava enganado, como Hugo sugerira. Já era hora de se separarem,

ponderou. Deixara já bem claro, durante seu envolvimento, que era um homem fiel a

suas amantes enquanto o caso durasse e que esperava a mesma cortesia delas. E, como

Katharina, aparentemente, ignorara seu aviso, um rompimento era, agora, mais do que

necessário.

Por um momento, pensou em entrar e acabar com tudo de uma vez. Seria um

grande escândalo! A esposa de um diplomata recebendo em casa um dos maiores

cafajestes de Londres. Seria ousado...

Mas não podia permitir que um escândalo caísse também sobre ele próprio, Emma e

Hugo, por serem seus parentes mais próximos. Não seria justo para com eles. Teria de

encontrar um outro meio de lidar com a baronesa. Um homem vil poderia romper seu

relacionamento por meio de uma carta pura e simples, mas Kit não queria adotar uma

tática tão covarde. Iria enfrentá-la com desdém e dizer-lhe com todas as letras por

que a estava banindo de sua cama.

Viu que sua governanta erguia a mão, ela andara apenas alguns metros desde o

portão da casa de Katharina e estava tentando pegar um coche. E isso era ainda mais

interessante! Aonde ela estaria indo que justificasse tomar um transporte tão caro?

Katharina devia ter-lhe dado dinheiro, mas... qual seria a tarefa que estava cumprindo?

Não fazia sentido Katharina empregar Budge para levar recados ao seu novo amante.

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Havia tantas outras criadas que poderiam fazê-lo em troca de algumas moedas. Por que

a sua governanta estaria sendo usada naquela tarefa?

Kit olhou em volta, tentando pegar outro coche, mas não havia nenhum passando

por ali. Seria impossível segui-la agora. Podia, então, prosseguir com o que estava

fazendo antes de vê-la, seguindo para a casa de seu amigo, que ficava a duas quadras de

distância da de Katharina. Seu amigo o esperava para que Kit o levasse e o apresentasse

na academia de Jackson. Uns bons golpes de direita seriam tudo de que precisava para

acalmar-se um pouco agora. Poderia extravasar toda sua raiva.

Mas a sra. Budge não escaparia impune. Quando julgasse conveniente, Kit faria

com que a governanta enfrentasse uma conversa que não consideraria nada agradável...

CAPÍTULO XV

— Não vim aqui para ser insultada! — exclamou a baronesa por entre os dentes,

levantando-se da poltrona que ocupava na sala de estar.

— Não, Katharina, veio aqui para ver se conseguia me ludibriar e fazer-me

acreditar que todos esses boatos não passam de mentiras. — Kit fixava-a, impassível. —

Não é isso?

Ela não respondeu. Tentou encará-lo, mas não conseguiu. E, para encobrir seu

embaraço, passou a dar passos pela sala.

— Poupe-me desses movimentos teatrais, minha cara — ele prosseguiu. — Devia

saber que de nada vão adiantar. Chamei-a aqui para poder dizer-lhe frente a frente que

nosso... arranjo está terminado. E você sabe muito bem por quê.

A baronesa fuzilou-o com o olhar e depois deu-lhe as costas.

— Seu marido sabe que você o está enganando de novo? — Kit quis saber.

Essas palavras a fizeram voltar-se.

— Como ousa dizer tal coisa?! Você! Como se não tivesse culpa nenhuma!

— Minha querida Katharina, fiz apenas uma pergunta simples. E a fiz porque tenho

um aviso a lhe dar. Você costumava ser discreta, mas, agora, parece que não é mais. Se

os rumores que andam sendo sussurrados por aí chegarem aos ouvidos do barão e ele

decidir por um duelo para defender sua honra, o que não é impossível, pois seu marido

não é nem tão velho nem tão cego assim, bem... terei de dizer-lhe quem é seu novo

amante, porque não quero levar uma bala no lugar de outro.

Kit sorriu com ironia, depois foi até a lareira, de cima da qual tirou a sineta para

chamar a governanta.

— A sra. Budge a acompanhará até a porta—disse, frio. Depois cruzou os braços e

esperou, calmo, até que a porta se abriu.

— Leve minha visitante até a porta — ordenou, severo.

A criada fez uma breve mesura e, de cabeça baixa, colocou-se ao lado da porta da

sala, esperando pela baronesa.

— Adeus, minha cara — Kit despediu-se. — E agradeça por eu ter-lhe dado o

benefício de um encontro aqui, porque isso é bem mais do que merece. Uma mulher que

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usa criados para espionar seus próprios patrões não merece consideração de espécie

alguma.

A baronesa olhou-o com raiva e se encaminhou para a porta. Mas, antes que

Katharina passasse por ela, Kit ainda disse, diante do espanto que se estampou no rosto

da sra. Budge:

— Espero que, pelo menos, a tenha pago bem, já que, afinal, ela vai perder o

emprego.

A condessa sorriu de leve.

— Esplêndido! — exclamou. — Absolutamente esplêndido! Vai ser muito bom ver

aquela mulher receber o que merece!

Marina não fazia idéia do que sua patroa estava falando, mas imaginava que devia

ter algo a ver com o jornaleco escandaloso que lady Luce tinha sobre os joelhos.

Porém... a que mulher ela estava se referindo?, gostaria de saber.

— Kit Stratton excedeu a si próprio dessa vez — continuou lady Luce. — Nunca

pensei que fosse capaz. E a sua... amante austríaca vai ficar completamente

enlouquecida. Imagino... — E seu sorriso aumentou. — Imagino se alguém vai fazer com

que isto chegue aos olhos de seu marido. Poderemos ter até mesmo um incidente

diplomático. Que beleza! — E, vendo a estranheza estampada no rosto de Marina,

entregou-lhe o jornal. — Pode ler, se quiser, minha cara. Mas não quero vê-la

embaraçada. Afinal, são fatos da vida. E, quando todos começarem a pensar a respeito,

acredito que poderão concluir com facilidade a identidade da misteriosa... M.B.

M.B.! Marina sentiu como se, de repente, o sangue parasse de correr em suas

veias. Mal tinha força nos dedos para abrir o jornal. Fora traída! Agora que suas iniciais

estavam publicadas num jornal de quinta categoria, não levaria muito tempo para que

sua identidade fosse revelada. Fora uma idiota ao pedir ajuda a Kit Stratton. E pensar

que chegara a querer agradecer-lhe por ter falado o irmão dele! Sir Hugo devia ter

comentado sobre o que vira... Ou, talvez, o grande culpado tivesse sido o próprio Kit.

Como pudera imaginar que ele tivesse um comportamento de cavalheiro?!

Sentia como se uma nuvem negra a estivesse envolvendo. Era agora apenas uma

questão de tempo até estar perdida por completo.

Marina olhou furtivamente para a condessa, que ainda sorria com satisfação. Por

quê?, indagou-se. Tinha praticamente dito que sabia quem era M.B., mas isso era

impossível. Se soubesse, não estaria falando com ela daquela forma, no mínimo,

estranha. Tê-la-ia mandado fazer as malas e ir embora para Yorkshire na primeira

carruagem!

Havia algo de muito estranho em tudo aquilo, ponderou. E baixou os olhos para ler

o artigo, que era curto, porém devastador. Um certo sr. S. tinha sido visto

encontrando-se secretamente com uma dama de estatura mais alta do que o comum. E o

autor da matéria dizia não estar nada surpreso com isso, uma vez que um amigo próximo

do cavalheiro em questão afirmara que a tal dama fora vista andando sozinha em um

horário pouco apropriado... O autor do artigo dizia também que conhecia essa dama, mas

que não revelaria seu nome abertamente. Suas iniciais, porém, eram M.B.

Marina engoliu em seco. Olhou para a sua patroa e, por um segundo, teve a leve

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impressão de que iria desmaiar; mas logo sua visão tornou-se clara novamente. Não

ousava dizer nada. Não confiava em sua própria voz.

Lady Luce, porém, parecia nada ter percebido.

Estava completamente absorvida na diversão do escândalo.

— Não vou dizer nada por um ou dois dias — afirmou, em tom misterioso. — Quero

ver quem será astuto o suficiente para descobrir. E quero ver também como Kit

Stratton vai reagir. Se tiver um pingo de bom senso, partirá para Viena sem demora,

antes que o machado caia sobre a sua cabeça. Mas, como sempre foi teimoso,

arrogante... Aposto que vai querer sair limpo dessa situação.

A condessa levantou-se e caminhou devagar até a porta. De lá comentou ainda:

— Será melhor do que uma peça de teatro, aposto! Marina respirou fundo depois

da saída da patroa.

Precisava pensar em como agir, e rápido. Poderia avisar Kit sobre o que a condessa

estava planejando fazer. Mas, como? Nem ela mesma entendia o que estava se

passando... Além do mais, ele não aceitaria conselhos de uma mulher, sobretudo dela, a

quem claramente desprezava.

O machado a que a condessa se referia parecia estar posicionado para cair sobre

Kit, de fato. E se ela, Marina, também tivesse um pouco de bom senso, apenas ficaria

calada e observando.

O cavalo vacilou e Kit segurou as rédeas com mais firmeza. Não estava prestando a

devida atenção a sua montaria, concluiu. E a última coisa que queria era que seu animal

preferido se ferisse por sua falta de cuidado.

— Desculpe-me, César, meu amigo — disse ao cavalo. — Seu dono não está a sua

altura hoje. — E fez com que o animal voltasse a um passo mais lento. Assim, poderia

deixá-lo mais à vontade e ele, Kit, pensar.

Já se tinham passado dois dias desde que rompera com Katharina. E não se

arrependia. Na verdade, estava surpreso pela falta de impacto que a separação lhe

provocara. Gostara de usufruir seu belo corpo; afinal, que homem não gostaria? Mas não

precisava dela. Nunca precisara. Não costumava ficar sem uma amante, porém não

estava com pressa para substituí-la. Nenhuma das mulheres da sociedade londrina o

atraía. Não eram belas o suficiente, não eram inteligentes como gostaria, não tinham

vivacidade...

Meneou a cabeça, sem entender o que estava lhe acontecendo. As damas em

Londres eram como as damas em Viena. Por que, então, sentia-se assim, com tanta

dificuldade de interessar-se por qualquer uma delas? Poderia encontrar uma amante

num piscar de olhos. Havia mulheres casadas que não apresentavam nenhuma ameaça a

sua independência, que gostariam muito de partilhar sua cama e vangloriar-se

secretamente de terem conseguido conquistar o homem mais desejado da cidade.

Kit fez uma careta ao pensar nisso. Sabia muito bem o que diziam a seu respeito. E

às vezes sua aparência era como uma maldição.

Começou a pensar em prováveis candidatas. Méchante, por exemplo, não hesitaria,

apesar de como a tratara na última vez em que se falaram. Ela fora uma excelente

amante no passado e não havia como negar que possuía uma beleza selvagem, agressiva.

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Mas era egoísta demais, não tinha qualidades de caráter. Não havia, na verdade,

nada a se admirar nela, a não ser por fora.

E isso se aplicava a todas as outras, ponderou ele, aborrecido. Todas, exceto...

Kit engoliu em seco ao pensar na srta. Beaumont. Ela era a única mulher que

possuía algo admirável a ser notado. Tinha coragem. Era uma pena que tivesse certa

duplicidade também... Devia tê-la examinado mais de perto, por exemplo, na festa de

Emma, mas deixara a oportunidade passar. E isso porque ficara como enfeitiçado pelo

canto da jovem, deixara-se encantar... Havia algo nela, algo que ia muito além da

aparência física, que o intrigava, o atraía. Queria saber mais coisas a respeito da srta.

Beaumont. Muitas coisas.

Tentava lembrar-se exatamente do que ela lhe dissera em casa de lady Luce, mas

não conseguia. A srta. Beaumont falara sobre uma carta? Não, não se lembrava direito.

Tivera certeza, naquele momento, que ela estava tentando insultá-lo de alguma forma,

mas não podia afirmar nada. As mulheres eram, às vezes, tão difíceis de serem

entendidas...

Exceto na cama, é claro, ele avaliou com um sorriso malicioso, lembrando-se das

mulheres negligenciadas, deixadas de lado, que sempre gemiam de prazer em suas mãos.

Nesse aspecto, Kit nunca tivera a menor dificuldade em agradá-las e entendê-las.

— Mãe, preciso lhe falar.

Lady Luce ergueu as sobrancelhas e olhou para o filho com o mesmo desprezo de

sempre.

— É mesmo, William? E posso saber que assunto é assim tão urgente?

— Tenho notícias sobre Kit Stratton.

— Muito bem, estou ouvindo.

— Acho que seria melhor se conversássemos a sós.

Ao ouvir isso, Marina levantou-se de imediato.

— Bobagem! — rebateu a condessa, erguendo a mão enrugada. — A srta. Beaumont

é minha dama de companhia e sabe bem mais do que você poderia supor. Sente-se,

Marina. Seja o que for que meu filho deseje me dizer, poderá dizê-lo na sua presença.

O conde pareceu ficar embaraçado e zangado.

— Muito bem — concordou, visivelmente a contragosto —, se é assim que deseja,

mãe, mas devo avisar que o que tenho a dizer não é apropriado para os ouvidos de uma

donzela.

A condessa lançou um olhar significativo ao filho. Um olhar que parecia sugerir

que, em sua opinião, o que ele achava que donzelas deviam ou não ouvir deixava muito a

desejar.

Assim, William pigarreou e começou com certa pompa:

— Deve saber, minha mãe, que o sr. Stratton tem, digamos, inúmeras ligações... e

dizem que voltou à Inglaterra apenas para seguir sua aman... sua namorada austríaca,

quando o marido dela foi enviado para trabalhar aqui. E, pelo que sei, deve ser verdade.

No entanto imagino que goste de saber que essa tal... namorada, se cansou de Kit e que

ele, um homem que sempre se orgulhou de ser quem termina todos os seus

relacionamentos, acabou sendo desprezado por ela e recebeu um pedido de rompimento

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irrevogável. Deve ter sido a primeira vez... — William sorriu para a mãe, então

completou: — Tenho certeza de que apreciará as novidades.

— De fato. Apreciei, sim, quando fiquei sabendo delas, alguns dias atrás. Posso

perguntar-lhe por onde seu cérebro tem andado esse tempo todo? Ou você espera que

Charlotte lhe conte todas as novidades? Porque sua esposa é sempre a última a saber

de tudo.

O conde tornou-se pálido de raiva.

— Se não se interessa pelo que tenho a lhe dizer, minha mãe, vou-me embora!

— Bobagem! Fique onde está! Agora, sou eu quem vai lhe falar a respeito de Kit

Stratton.

Marina prendeu a respiração. O que mais a condessa poderia estar sabendo?,

indagou-se, aflita. A velha senhora andava com um sorriso nos lábios desde que lera

aquele jornaleco, no outro dia! Era como se acreditasse em cada palavra escrita nele. E

parecia estar convencida de que era a única pessoa que conhecia a identidade da mais

recente amante de Kit, a tal M.B. mencionada no artigo. Estava enganada, claro, mas...

conheceria outra mulher com as iniciais M.B.? Até o momento, ela não partilhara seu

segredo com Marina. Iria revelá-lo agora? Ao filho?!

— Pode até estar servindo muito bem à dama em questão que pareça a todos que

foi ela quem rompeu o relacionamento — continuou lady Luce, cheia de orgulho de si

mesma —, mas isso, certamente, não é verdade.

— Não?! Como assim, mãe? — William perguntou, surpreso.

— Deixe-me terminar! Como eu disse, não é verdade. O sr. Stratton terminou o

relacionamento assim que descobriu a perfídia dessa mulher. E isso foi há vários dias,

William. Nem posso culpá-lo pelo que fez... Mas... há algo mais que queira me dizer?

Como lorde Luce nada dissesse, estando ainda digerindo o que a mãe lhe contara,

ela prosseguiu:

— Então, como me parece que não viu luz alguma nos fatos, vou deixar que leia

algo. — Ela pegou o jornal, um tanto amassado, de dentro de uma gaveta próxima e

entregou-o ao filho. — Sugiro que o leia com a sua querida esposa. Então poderão ficar

pensando juntos sobre a provável identidade dessa misteriosa M.B.

Lorde Luce passou os olhos rapidamente pelo artigo, então seus lábios se

entreabriram e uma expressão de surpresa surgiu em seu rosto.

— Interessante, não? — comentou a condessa. — Mas vou lhe dar um pequeno

aviso, William: não procure demais para saber quem é a dama misteriosa.

— Como, mãe? Não entendo o que está dizendo.

— É porque se recusa a usar o pouco de bom senso que tem. — Ela esperou por

alguns instantes, como se quisesse que o filho chegasse a uma conclusão. Isso não

aconteceu e, respirando fundo, a condessa exclamou: — Muito bem, muito bem! Não

pretendo ficar esperando aqui a vida inteira! Aposto que vou estar enterrada há um

bom tempo quando alguém, por fim, tiver chegado a uma vaga idéia de quem M.B. é!

Marina mordeu o lábio e baixou os olhos para os próprios sapatos, na expectativa.

— M.B. — disse a condessa com satisfação. — Não devia ser tão difícil assim, em

especial para você, William. Pense! Pense bem! Imagine o número de damas que conhece

e que têm o sobrenome começando pela letra B. Pense com muito cuidado sobre uma

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família que é... digamos... aliada a sua. É nela que se encontra a misteriosa M.B. Na

verdade, você mesmo já esteve tão próximo da dama em questão quanto se diz que Kit

Stratton esteve.

O conde tornou-se vermelho como um pimentão.

— O quê?! Mamãe, está sugerindo...

A condessa se levantou depressa demais para os seus anos.

— Nunca ouve uma só palavra do que digo, não é, William?! Eu lhe disse para

pensar, não para falar! Agora, saia daqui antes que eu perca a paciência com você!

Paciência era a última virtude que Marina consideraria possível em lady Luce, mas

estava ansiosa demais para pensar nisso agora. A descrição que a condessa fizera

poderia encaixar-se na sua pessoa, mas tinha certeza de que a velha senhora não

pensava assim. Mesmo porque lorde Luce nunca estivera próximo dela de forma alguma.

O conde praticamente se esquecera de sua presença quando a sugestão de sua mãe

o irritara por demais. E agora, mais irritado ainda, ele quase gritava:

— Vou sair, sim! Mas acho que não consigo entender suas charadas! Não consigo

imaginar nenhuma família conhecida que permitiria, em seu seio, um comportamento tão

vergonhoso! Uma mulher sozinha com Kit Stratton?! Seria ultrajante, escandaloso!

A condessa sorriu, cheia de malícia. E William prosseguiu, eloquente:

— Uma mulher assim, tenho certeza, não seria tolerada por minha família. E,

quanto as suas insinuações, minha mãe, há apenas uma família que se encaixa no que me

disse: os Blaine. E eles estão acima de qualquer suspeita!

Lady Luce deu de ombros.

— Estão mesmo? — duvidou. — Você, obviamente, não pára para pensar por que

lady Blaine sempre ganha quando se senta a uma mesa de faraó. Sabe, as más línguas e

as boas também estão começando a falar de seus preciosos amigos, os Blaine, meu caro.

Marina engoliu em seco mais uma vez. Os Blaine! Então, era a isso que a condessa

se referia! Olhou para o conde, que respirava profundamente, como se estivesse se

sentindo ultrajado com tudo aquilo. Talvez até tivesse um ataque do coração, Marina

ponderou, assustada.

Mas a condessa não parecia se importar com as condições do filho. Seguiu até a

porta e chamou:

—Venha, Marina. Temos coisas a fazer. — E, olhando para o filho, completou: —

Lembre-se do que eu disse, William! M.B. Uma dama que você também teve em seus

braços. Intrigante, não?

Na pressa em que estava, Marina acabou colidindo com uma moça e estendeu os

braços de pronto para ajudá-la a ganhar equilíbrio.

— Que desastrada eu sou!

A moça sorriu de leve, alegrando suas feições pálidas. Era a filha mais velha dos

Blaine.

— Não foi nada — murmurou, educada. — Oh, mas você é a srta. Beaumont, não?

Sinto muito, porém... como é a única moça que tem quase a minha altura, eu não podia

deixar de reconhecê-la, mesmo que não nos tenham apresentado formalmente.

Estávamos as duas na recepção em casa de lady Emma Stratton, lembra-se? Mas eu e

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minha mãe tivemos de sair por que... — Ela parou, envergonhada.

— Porque você não se sentiu bem — Marina completou, tentando aliviá-la. — Não é

de admirar... Estava tão quente naquela noite! — Ela ergueu os olhos para as escadas

que levavam à sala particular de Emma. — Veio visitar lady Stratton?

— Ah, sim. Ela está sempre em casa às segundas-feiras, para receber visitas.

Viemos na segunda passada porque minha mãe disse que eu devia me desculpar pela cena

que fiz na recepção... Mas lady Stratton nem quis ouvir falar. Insistiu que viéssemos

novamente. Ela é encantadora, generosa, um amor de pessoa! E tão elegante...

— É verdade — Marina concordou, percebendo o leve tom de inveja na voz da

outra. — E ela tem sido maravilhosa comigo também. E olhe que sou apenas uma dama de

companhia.

— Mas... imaginei que você fosse, de alguma maneira, aparentada com meu pai. —

Havia algo de diferente no tom dela agora. E sugeria que, se Marina fosse apenas uma

mera dama de companhia, não deveria estar falando com ela de forma alguma.

— Sim... — Marina murmurou, hesitante.

— Bem, nesse caso, vou chamá-la de Marina. E você pode me chamar de Tilly.

Detesto meu nome, sabe? Mas, como ele inteiro, Mathilda, é ainda pior, prefiro ficar

com o apelido. Sempre quis que minha mãe tivesse me dado um nome mais poético.

— Tilly! — A voz de lady Blaine cortou o ar como uma navalha sem fio. — Por que

está aí parada?! Dei-lhe ordens para chamar a carruagem! Faça-o imediatamente!

— Eu estava prestes a fazê-lo, mamãe, mas encontrei Marina aqui na escada e...

— Srta. Beaumont — disse lady Blaine com ênfase, olhando para Marina com

profundo aborrecimento. — Não é de admirar que ela esteja aqui para cumprir alguma

determinação de sua patroa. Por favor, não queremos atrasá-la ainda mais em sua

tarefa, srta. Beaumont. Vá encontrar lady Stratton em sua sala particular.

Marina olhou para Tilly, porém a moça já se apressava em sair para chamar a

carruagem. Era provável que nunca mais falasse com Marina, pelo menos não na frente

da mãe. Aquela mulher parecia apreciar a aflição que infligia ao humilhar os outros, até

mesmo a própria filha.

Marina arrebanhou as saias e subiu a escada, chegando ao patamar onde se

encontrava lady Blaine. E, ali, encarou-a de frente. Fez uma breve mesura e, sem

conseguir se controlar, disse:

— Quanta gentileza sua, prima. Mas eu conheço o caminho. — E seguiu pelo

corredor antes que a viscondessa tivesse tempo para responder.

— Srta. Beaumont! — admirou-se Emma. — Oh, que pena! Lady Blaine e sua filha

acabaram de sair e vocês nem se encontraram... Mas, sente-se. Você me parece um

tanto ofegante... Algo errado?

— Não, senhora. Estou bem. Porém, como estava um pouco atrasada, vim correndo.

— Mas não precisava, querida! Vamos, tire esse chapéu. Vou pedir chá para nós.

Marina estava quase sem ar, sim, mas por causa do que acabara de descobrir.

Depois de dias em que só pensara no assunto, acabava de saber quem era a M.B. a que

lady Luce se referia. Na verdade, a resposta havia instantes surgira em sua mente!

Fechou os olhos por alguns momentos, pensando. Não podia haver dúvidas. A

condessa se referira à família Blaine, embora não tivesse dito um nome... Marina

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imaginara que ela se referisse à amizade entre as duas famílias porque a esposa do

conde era muito amiga de lady Blaine. Ela dissera que seu filho tivera alguém daquela

família nos braços! O conde poderia ter segurado a pequena Mathilda nos braços quando

bebê. Mas a condessa devia estar brincando, como sempre fazia, maldosamente. E

agora... seria verdade?, ela se indagava, incrédula.

Pelo menos, aos olhos da condessa, sim. Ela parecia detestar os Blaine tanto quanto

detestava o filho... e fora ela quem chamara a atenção de todos para a expressão de

encantamento de Tilly Blaine na recepção de lady Stratton!

Talvez, em breve, toda a sociedade já tivesse decifrado que a misteriosa M.B. era

Tilly Blaine! A mulher que seria a nova amante de Kit Stratton! E a pobre moça estaria

arruinada! Marina não podia deixar que isso acontecesse.

Seria uma monstruosidade, uma enorme injustiça para com uma moça cuja única

culpa fora trair seus sentimentos pelo mais famoso canalha de Londres! E, de repente,

Marina sentiu-se imensamente culpada. Teria de fazer algo para salvar Tilly Blaine,

mesmo que isso...

A porta se abriu e seus pensamentos foram interrompidos. Nem mesmo ouvira as

batidas. Marina ergueu os olhos, esperando ver o mordomo com a bandeja e o chá.

— Boa tarde, Emma — disse uma voz que conhecia muito bem. — Cheguei tarde

demais para cumprimentar suas visitas? Mas que imperdoável de minha parte!

CAPÍTULO XVI

Marina sentia seu coração atormentado pelo acúmulo de emoções que o assolavam.

Estava arrepiada pela simples visão de Kit. E sua boca tornou-se repentinamente seca,

como se nunca mais fosse capaz de pronunciar uma só palavra. Mas sabia ter motivos

para estar furiosa com ele. Afinal, Kit a traíra, pois suas iniciais, agora, estavam na

boca de todos na cidade. E, por consequência, ele era responsável também pela

desgraça iminente que ameaçava atingir a inocente Tilly Blaine.

Marina precisava falar com Kit, mas em particular. Precisava mostrar-lhe o

absurdo de toda aquela situação, chamá-lo à razão! Talvez nunca ninguém o tivesse

feito, muito menos uma mulher, porém ela o faria. E não permitiria que nada a impedisse

de fazer o que achava certo. Recusava-se a ceder às deliciosas recordações que

povoavam sua mente em relação a Kit. Por isso forçou-se a olhar com frieza para ele.

— Perdoe-me, srta. Beaumont — disse Kit, numa leve inclinação de cabeça. — Por

um momento, achei que Emma estivesse sozinha. Não me ocorreu que pudesse se

encontrar aqui a esta hora do dia.

E como ele poderia ter prestado atenção à sua presença?, imaginou ela, ressentida.

Afinal, não passava de uma dama de companhia...

Lady Stratton havia cruzado a sala para tomar o braço do cunhado e trazê-lo mais

para perto.

— Você não me engana, Kit querido — disse ela, sempre suave. — Sei muito bem

por que veio até aqui a esta hora. Está deliberadamente evitando minhas outras visitas

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e fingindo inocência.

Ele sorriu.

— Nem vou tentar negar — confessou. — Ainda mais porque reconheci quem estava

na carruagem que saiu da frente da sua casa. E devo admitir que a presença de lady

Blaine realmente não me agrada.

— Mas achei que o visconde, marido dela, fosse um membro do seu clube.

— E é, mas muitos outros cavalheiros também são. Isso não significa que eu

aprecie a sua companhia. Além do mais, ele está há muito tempo no exterior e, depois

que eu voltei para cá, mal o vi. Pelo que me disseram, ele está verificando propriedades

e fazendas de escravos que tem em outros países.

Marina remexeu-se na cadeira, sem conseguir se conter. O que Kit revelava

deixava-a inquieta. Ele, por sua vez, notando sua atitude estranha, olhou-a sem

entender.

— Está surpreso, senhor, por ver que alguém não aprova a escravidão? — indagou

ela, em tom desafiador. — A religião nos ensina que somos todos irmãos e que não é

correto escravizar nossos semelhantes.

Kit a olhava com curiosidade. Por fim, comentou:

— É louvável de sua parte que defenda dessa forma aqueles que são escravizados.

Mas, pelo que sei, o comércio negreiro já foi banido dos mares. Assim, sua batalha está

ganha, não?

— Na verdade, não. Podemos não tirá-los mais de seus países, na África, mas, nas

fazendas, eles ainda estão agrilhoados e...

O mordomo apareceu naquele momento, impedindo-a de continuar.

— Ah, nosso chá! — Emma saudou, apontando a mesa de centro, para que a bandeja

fosse ali colocada. — Aceita uma xícara, Kit?

— Perdoe-me, senhora — disse o mordomo —, sir Hugo está na biblioteca e pede-

lhe que lhe conceda alguns minutos.

— Mas que estranho! — Emma comentou, porém seguiu até a porta sem vacilar. —

Srta. Beaumont, poderia me desculpar por alguns minutos? Por favor, sinta-se à vontade

em minha ausência.

— Obrigada.

—E Kit vai se comportar, eu lhe prometo. — Emma lançou um olhar significativo a

ele, que pareceu não ter efeito algum. — Voltarei logo. Com licença.

O coração de Marina agora se agitava dentro de seu peito. Procurou ignorá-lo, mas

foi inútil. E, assim que o mordomo se retirou, serviu uma xícara a Kit, perguntando, no

tom mais frio que conseguiu:

— Creme e açúcar, senhor?

— Sim, obrigado.

Ele se sentou no sofá a sua frente. E, quando Marina entregou-lhe a xícara, pegou-

a com educação, agradecendo novamente e fazendo com que ela notasse, mais uma vez,

seus longos, elegantes dedos.

Tensa, Marina mal sabia como não derrubara a xícara. Repreendia-se, achando que

devia estar ficando louca por comportar-se assim. Estava ali, servindo chá a um homem

que poderia ser o veículo de sua desgraça. E a de Tilly Blaine também.

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Respirou fundo, tomou um gole de seu próprio chá e começou:

— Sr. Stratton, preciso perguntar-lhe se está a par dos rumores que estão

circulando sobre sua pessoa e... nossos encontros.

— Imagino que esteja a ponto de me colocar a par deles, srta. Beaumont.

— Não, não preciso fazê-lo, já que o senhor é a causa deles!

Kit ergueu as sobrancelhas. E ela interpretou sua reação como desdém.

— Já basta! — irritou-se. — O senhor me fez acreditar que fizera o que lhe pedi,

e eu fui tola o suficiente para acreditar que fosse um cavalheiro, que pedisse a seu

irmão para não revelar o que ele havia visto! Eu devia saber que não poderia confiar no

senhor! Diga-me, foi o senhor quem traiu minha indiscrição, revelando-a aos jornais mais

baixos de Londres? Ou simplesmente a revelou a seus amigos mais íntimos? Porque

imagino que eles devam ter se divertido muito ao saberem.

Kit recolocou a xícara na bandeja com extremo cuidado e calma. Depois voltou a

sentar-se e observou Marina com atenção. Ela podia perceber seu desprezo, mas não

estava disposta a aceitá-lo. Por isso sustentou-lhe o olhar com altivez.

— Muito bem, srta. Beaumont — disse ele com suavidade. — Poderia me explicar

essas suas acusações? Porque devo dizer-lhe que não costumo trair confidências de

forma alguma.

— Então, por que me traiu?

— Eu não a traí.

Marina estava agora tão exasperada que mal o ouvia.

— O senhor e sir Hugo eram as únicas pessoas que sabiam que eu saí da sua

carruagem naquela manhã. Ninguém mais me viu no parque. E seu irmão me reconheceu!

Por que outro motivo, então, eu escreveria ao senhor pedindo sua ajuda? E me fez

acreditar que tudo estava bem, que...

— Espere, espere! Escreveu para mim?! Quando? — Ele se inclinou para frente,

subitamente alerta.

— Sabe muito bem quando.

— Srta. Beaumont, não recebi nenhuma carta sua.

— Mas...

— Não recebi nada, acredite. É verdade que meu irmão a reconheceu no parque

naquela manhã e posso garantir-lhe que Hugo nada falou sobre o fato a ninguém. Nem

mesmo a sua esposa. Achou que devia isso a seu pai e seu tio para preservar seu nome

de um possível escândalo.

— Mas, então...

— Eu mesmo não falei sobre o assunto com mais ninguém, a não ser com meu irmão.

Se o seu nome está circulando em jornais de quinta categoria, senhorita, não é por

minha culpa, eu lhe juro.

Marina baixou a cabeça e cobriu o rosto com as mãos. Momentos antes, poderia

ter voado sobre Kit e o agredido. Mas, agora, sua força parecia ter se evaporado por

completo.

— Não entendo — murmurou. — Se nem o senhor nem seu irmão disseram nada...

como, então... — Marina não terminou a frase. Não importava agora quem era o culpado.

A vergonha cairia sobre ela da mesma forma. E não conseguia mais encará-lo. Mal podia

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se mover, na verdade.

Kit aproximou-se e, muito gentilmente, afastou-lhe as mãos do rosto, segurando-

as, confortador.

— Srta. Beaumont, olhe para mim — pediu.

Pareceu passar uma eternidade antes de ela obedecer. Seus olhos tinham uma

expressão assustada, como se pudesse ver o destino que a aguardava.

— Acredita que os Stratton a traíram — Kit prosseguiu, tranqüilo. — Juro que não

o fizemos. Mas, pelo que diz, parece que foi traída por alguém. Por que não me fala mais

a respeito dessa carta que mencionou? Quando a enviou? Quem a entregou?

— Escrevi para o senhor assim que cheguei em casa, naquela manhã. E eu mesma a

levei à agencia dos correios.

— E tem certeza de que escreveu meu endereço corretamente?

— Sim, é claro. Não poderia me enganar. Afinal, eu tinha acabado de vir da sua

casa...

— Endereçou-a a mim em Chelsea? — Como ela assentisse, com certa impaciência

Kit comentou: — Entendo. Deve ter havido algum engano, parece. — Ele começava a ter

suas suspeitas, mas de nada adiantaria revelá-las a Marina. Afinal, ela já estava tensa

demais. Devia tratá-la com cuidado e carinho, porém não dispunha de muito tempo.

Emma poderia voltar a qualquer momento.

Tentou sorrir para que Marina se sentisse mais tranqüila. Ainda segurava-lhe as

mãos, mas não sabia se ela não as retirara por algum motivo específico. Talvez, nem

mesmo tivesse se dado conta de que ele as segurava.

— Não recebi a sua carta — repetiu. — Mas por que não me diz o que escreveu

nela?

— Não me lembro exatamente das palavras, porém eu disse que achava que seu

irmão tinha me reconhecido. Creio que lhe pedi para que intercedesse junto a ele, para

que sir Hugo nada revelasse.

— Foi apenas isso?

— Posso ter mencionado algo sobre a sua carruagem, não sei... para explicar como

seu irmão tinha me visto. Mas não me lembro mais dos detalhes da carta.

Kit preocupava-se. A situação tornava-se ainda pior.

— E assinou a carta, srta. Beaumont?

— Não, não! — ela se apressou a negar.

Kit respirou fundo, aliviado, porém ela completou:

— Mas coloquei as minhas iniciais.

Kit baixou os olhos para o chão, pensativo. A carta estava perdida e continha todas

as informações necessárias para arruiná-la. Ela, inocente e sem experiência como era,

pensara estar segura desde que não a assinasse.

— Sr. Stratton, peço-lhe desculpas pelas palavras duras que lhe disse há pouco —

Marina murmurou, evitando fitá-lo nos olhos. E, num movimento rápido, retirou suas

mãos das dele, como se só agora percebesse que se encontravam ali, e as enfiou nas

dobras de suas saias. Estava corada, embaraçada.

Kit, muito próximo, observava mais uma vez sua pele perfeita; e surpreendeu-se

desejando que ela o olhasse novamente. Achava seus olhos lindos, mesmo estando

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assustados, revelando medo.

Marina continuou a falar, porém tão baixo que ele mal a ouvia:

— Sr. Stratton, acho que a situação é ainda pior do que imagina. Um jornal desses

bem baixos anda circulando pela cidade, dizendo que o senhor tem uma nova... amante,

uma dama alta, com as iniciais... M.B. E tem havido especulações a respeito da

identidade dessa mulher.

Kit assentiu.

— Tem motivos para acreditar que tenha sido identificada como tal? — perguntou.

— Não, não.

Era estranho, mas ela parecia tensa demais. Afinal, Marina devia saber que estaria

salva enquanto M.B. continuasse sem identificação.

— Lady Luce tem certeza de que a dama em questão é Tilly Blaine — revelou ela,

quase sem voz.

Kit encarou-a, absolutamente surpreso. Tilly Blaine?, repetia em sua mente.

— O nome verdadeiro dela é Mathilda — Marina explicou. — Mas o seu apelido é

Tilly, por isso a conexão é óbvia e...

De repente, Kit começou a rir. Não conseguia evitar. Tudo aquilo era absurdo

demais para deixar de ser engraçado como uma comédia de erros de Shakespeare. Tilly

Blaine!

Uma mulher que ele achava sem graça, sem inteligência, sem atrativo algum!

Marina levantou-se de imediato, aborrecida.

— Como ousa rir, senhor?! — repreendeu-o. — Não pensa no que a pobre srta.

Blaine pode vir a sofrer por causa disso tudo?!

Ele se levantou também, mas calmo.

— Minha cara srta. Beaumont, tenho certeza de que nada de mau acontecerá.

Porque quem poderia acreditar que eu...

— O senhor é muito convencido! Não pensa em mais ninguém a não ser em si

mesmo! Acha que não acreditariam que o grande Kit Stratton poderia ter encontros

secretos com uma garota sem muitos atrativos como Tilly Blaine! Mas devo lembrá-lo,

senhor, que teve dois encontros comigo!

Ele respirou fundo. Não quisera parecer arrogante, porém reconhecia que o fora.

Marina tinha razão, mas não o ouviria agora. Tentou tomar-lhe as mãos novamente,

porém ela as afastou, irritada. Naquele momento, a porta da sala se abriu e Emma

retornou, sorridente.

— Pretende jogar faraó esta noite, senhora?

— Talvez — respondeu lady Luce a Méchante. — Está preocupada com a minha

sorte? — E deixou que a criada da casa de jogo a ajudasse a retirar o pesado casaco. —

Devia estar agradecida por eu não ser lady Blaine. Afinal, às vezes perco. E acho que eu

poderia verificar se a sorte continua a meu lado esta noite.

— Como quiser, senhora. Minhas salas estão sempre abertas para a sua presença.

A condessa mal lhe deu atenção e dirigiu-se às escadas.

— O que acha dos rumores mais recentes? — Méchante perguntou, colocando-se a

seu lado.

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— Rumores? Quais rumores? — lady Luce fingiu não saber.

— Sobre a amante atual de Kit Stratton, uma misteriosa dama com as iniciais M.B.

A condessa parou de subir e encarou sua anfitriã.

— Não sabe quem ela é — afirmou com certo ar de triunfo. — Frustrante para

você, não?

— E devo imaginar que a senhora saiba de quem se trata? — Méchante destilava

veneno.

— Naturalmente que sim. Mas ainda não quero partilhar minhas informações. Sei

muito bem que não há amor perdido entre você e Kit Stratton, por isso, pensando

melhor, creio que vou lhe dar uma pista. Afinal, somos aliadas nessa pequena charada.

Dessa vez, Kit Stratton foi longe demais e pode acabar caindo em sua própria

armadilha. E duvido que goste da experiência. — A velha senhora ria com satisfação,

depois completou: — Mas eu, com certeza, vou me divertir muito com a situação. Sabe,

teria até pago a ele aquelas doze mil libras por isso. Pena que ele nunca venha a saber...

Méchante olhou-a, cheia de malícia.

— M.B. é uma dama? — indagou. — Uma dama solteira?!

Lady Luce assentiu.

— Talvez nós duas venhamos a dançar no casamento dele — observou, cínica.

— Ah, duvido. Isso jamais acontecerá! Será mais fácil dançarmos em seu túmulo.

Mas a condessa apenas ergueu as sobrancelhas, duvidando, ao que Méchante

acrescentou:

— Minha querida senhora, posso ainda não ter conseguido identificar essa tal M.B.;

admito que as minhas fontes não são das melhores... Mas posso garantir-lhe que tenho

pensado muito a respeito. Já ouviu os rumores crescentes sobre Kit e a baronesa?

Imagino que o marido dela esteja achando cada vez mais difícil fazer vistas grossas às

aventuras dela. E mais: tenho cuidado pessoalmente para que a maior parte dos

diplomatas, em especial o embaixador francês, esteja rindo dele, de sua falta de

habilidade para manter a esposa em sua própria cama. O orgulho empertigado que o

barão sempre mostrou não vai suportar a situação por muito tempo, ainda mais se ouvir

alguma insinuação de um francês. Assim, creio que Kit Stratton está correndo um risco

ainda maior de levar um tiro antes mesmo de subir ao altar.

— Bobagem! Kit Stratton atira muito bem!

— Mas eu não mencionei um duelo, minha cara condessa! Deve saber que há outras

formas de...

— É claro que há — lady Luce interrompeu-a. — Bem, agradeço pela informação,

Méchante. E vou ficar observando o desenrolar dos acontecimentos com grande

interesse. Darei uma festa na quarta-feira à noite. E todos estarão presentes: os

diplomatas, os Stratton, a nata da nossa sociedade. Acho que vai ser muito

interessante! Pena eu não poder estender meu convite a você, minha querida, mas tenho

certeza de que entende os meus motivos.

Marina estava revendo as anotações que fizera para a recepção que lady Luce

ofereceria, quando o mordomo apareceu. E, aproximando-se da condessa, disse:

— Senhora, um mensageiro de lady Méchante trouxe isto. E se foi sem esperar

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resposta.

Lady Luce pegou a carta que o mordomo lhe oferecia numa bandeja e fez-lhe um

sinal para que saísse. Depois rompeu o lacre de cera e abriu o papel. Marina apenas a

observava, ansiosa. Tinha certeza de que lady Méchante estava tramando algo de ruim;

afinal, a condessa já insinuara mais de uma vez que a dona da casa de jogos tornara-se

inimiga de Kit. E que melhor maneira de atacá-lo agora senão atacando M.B.?

A carta vinha acompanhada de um jornal dobrado, e Marina sentiu o coração se

apertar quando viu a condessa deixá-lo de lado para ler primeiro a missiva.

— Bem, eu não esperava que a minha aliança com Méchante produzisse resultados

tão rapidamente — comentou lady Luce com um breve sorriso.

E, depois de ler o conteúdo da carta, pegou o jornal e o abriu. Após alguns

segundos de leitura, ergueu os olhos para Marina e observou:

— A baronesa vai ficar furiosa! E, quanto às Blaine... Bem, vai gostar disto, Marina.

Afinal, essa família desprezou a sua por tantos anos! Ouça: "Até hoje fomos reticentes

quanto à identidade de M.B., atendendo à necessidade de preservarmos a reputação

dessa dama. No entanto, agora pudemos perceber que sua conduta não merece tal

cuidado de nossa parte. Vimos, horrorizados, que M.B. foi visitar o sr. S. em sua casa,

em Chelsea, em pelo menos duas ocasiões, permanecendo a sós com ele lá. Podemos

apenas lamentar tanta falta de pudor e de moral nas jovens damas de hoje em dia. Seus

pais deveriam culpar a si mesmos por isso".

Depois de ler, lady Luce pareceu pensar a respeito, e depois comentou:

— É, eles deveriam mesmo. É muita vergonha para uma viscondessa, devo dizer.

Deveria sofrer uma reprimenda severa!

Marina sentia sua mente tomada por um frenesi de pensamentos. Alguém vira suas

visitas à casa de Kit e as revelara! Poderia ter sido ele mesmo?, indagava-se. Não, Kit já

o negara e lhe parecera tão sincero! Sir Hugo não seria capaz de fazer tal coisa. Além

do mais, dissera a Kit que nada comentaria. Mas alguém falara... Alguém... Se pudesse

descobrir quem, talvez fosse possível...

Não, nada havia a fazer, concluiu. Ademais, era muito tarde para agir. Sua conduta

estava aberta a todos. Bastaria apenas que sua identidade fosse conhecida para que

estivesse completamente arruinada. E isso poderia não demorar a acontecer.

— O conde Luce, senhora! — anunciou o mordomo, aparecendo mais uma vez.

William entrou logo em seguida, trazendo outra cópia do infame jornal. E Marina

sentiu-se ainda mais abalada com sua chegada. Não havia esperanças agora. O conde a

detestava e, quando descobrisse o que ela fizera, não hesitaria em contar tudo a toda a

sociedade londrina.

— Mãe, eu lhe trouxe as últimas notícias sobre o escândalo! — ele declarou,

entusiasmado. — E acredito que ficará chocada! É infame, escan...

Com calma, a condessa pegou sua própria cópia do jornaleco e a ergueu na direção

do filho.

— Poupe o seu fôlego — disse. — Eu já sei de tudo.

O conde olhou-a, profundamente exasperado. E Marina baixou os olhos, sentindo o

coração bater mais depressa do que nunca, tamborilando em seus ouvidos, deixando-a

ainda mais angustiada e tensa.

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— Vamos, sente-se — a condessa ordenou ao filho. — Diga-me, como Charlotte

recebeu a notícia?

— Não contei a ela. Ela está... deve entender, mãe, que Charlotte está... em estado

interessante...

— O quê?! De novo?! Pelo amor de Deus, William, mal consegue sustentar dez

filhos, quanto mais onze! O que se passa nessa sua cabeça?!

— Devo lembrá-la, minha mãe, de que o casamento foi criado por Deus com o

propósito de que nos multiplicássemos.

— Ah, bobagem! Vai querer povoar a Terra sozinho?! É um grande tolo, isso sim! Às

vezes fico imaginando se...

— Mãe! — ele a interrompeu, olhando para Marina, que se tornara testemunha

inocente de sua humilhação. — Vim para pedir-lhe conselhos sobre esse assunto — Ele

ergueu o jornal para mostrar a que se referia. — Diz saber quem é M.B. Assim, deve

saber também que cabe a mim agir nessa situação.

Lady Luce ergueu as sobrancelhas.

— Alguém deve fazê-lo — ele confirmou. — O pai dela só voltará daqui a algum

tempo e o irmão não passa de um colegial. Não posso ignorar minha responsabilidade.

Lembre-se de que sou seu padrinho.

Então, William era padrinho de Tilly!, Marina ponderou em silêncio absoluto. Baixou

a cabeça, pensando em tudo que estava acontecendo, sentindo-se mais culpada do que

nunca. Seus dedos giravam mecanicamente o anel no dedo anular.

— Então, descobriu que eu estava me referindo a Tilly Blaine... — comentou a

condessa.

— E não estava?

— Não estou dizendo nada. Você é quem deve tirar suas próprias conclusões. Mas

devo dizer que nada que aquela família fizesse de errado me surpreenderia.

O conde a encarou, sério, porém lady Luce nada acrescentou, esperando que ele

dissesse alguma coisa agora. Marina percebia que sua patroa agia como um gato astuto

que acabava de pegar um rato e que esperava apenas o momento em que ele tentasse

escapar para poder agarrá-lo novamente. Por que uma mulher idosa teria tanto prazer

em atormentar seu único filho?, imaginava.

— Muito bem, não me deixa alternativa — disse William, contrariado. — Vou ter de

falar imediatamente com lady Blaine. Ela ficará horrorizada, é claro, mas preciso do seu

consentimento antes de... tomar as providencias necessárias.

Marina estava intrigada. A que ele estaria se referindo? O que pretendia fazer?

A condessa estava calma e sorria, maliciosa. E mantinha-se em silêncio. Seu filho

esperou por alguns instantes, depois disse:

— Como quiser, então, minha mãe. Tenha um bom dia.

Ele se inclinou e saiu em seguida, parecendo apressado. E, assim que a porta se

fechou as suas costas, lady Luce começou a rir. Era uma risada feia, terrível, repleta de

malícia.

— Mas que idiota cheio de pompa! — comentou a condessa, com desprezo. E,

olhando para Marina, indagou: — Mas... qual é o problema com você, menina? Está tão

pálida! Vai me dizer que não se diverte com essa pequena tragédia? Eu lhe disse que

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seria melhor do que uma peça de Shakespeare, não disse? Pena William ter se oferecido

para fazer o papel principal, já que suas habilidades teatrais deixam muito a desejar.

Duvido que o público vá aplaudir de pé...

— Senhora — Marina começou em voz baixa —, posso... posso perguntar o que seu

filho quis dizer quando falou em providencias necessárias? Eu não entendi.

— Oh, mas você é mesmo uma garota do interior! Eu não imaginava que Yorkshire

estivesse assim tão afastada da civilização! William vai insistir para que Kit Stratton se

case com a garota! O que achou que ele poderia fazer?

Marina sentiu um arrepio de frio percorrer-lhe o corpo. Não conseguia falar, muito

menos mover-se. Kit seria forçado a enfrentar um casamento absolutamente sem amor!

Não importava que Tilly Blaine o adorasse, pois logo descobriria que seu marido a

detestava. E logo aprenderia a odiá-lo. Que destino terrível para os dois! E tudo por sua

culpa, ela se acusava. Cerrou os olhos, sentindo que toda a raiva que chegara a sentir de

Kit pelo comportamento libertino dele havia desaparecido como por encanto.

Agora podia ver o belo rosto dele voltado em sua direção, com uma expressão de

simpatia. Podia sentir o calor de suas mãos confortando-a, quando poderia estar

acusando-a de traição...

Nada que Kit fizera no passado poderia justificar o destino angustiante de estar

ligado a uma mulher que ele não amava.

Uma mulher que realmente o amasse iria se sacrificar por ele.

E Marina não podia mais negar que o amava. Sentia-se inclinada a revelar toda a

verdade, não importava o que isso lhe custasse.

Estava desesperada. Como aquela situação podia ter chegado a tal ponto?! Estava

apaixonada pelo maior canalha de Londres e, se alguém descobrisse o seu amor, estaria

perdida.

Sentiu que seu coração se endurecia. Era necessário. E ficou ali, sentada, sentindo

o gelo que se formava em seu peito.

Amava Kit Stratton, apesar de não querer. E, se ele desconfiasse disso, poderia

usá-lo contra ela.

Marina não suportaria tamanho sofrimento. Precisava trancafiar os sentimentos

em seu coração, onde ninguém poderia penetrar para conhecê-los. Se não o fizesse, não

teria saída.

Totalmente absorvida por sua própria linha de pensamentos, a condessa não estava

prestando atenção a ela.

— Ele não vai conseguir — murmurou então, trazendo Marina de volta à realidade.

— Kit Stratton nunca irá concordar em uma aliança forçada. Fugiu da Inglaterra há

cinco anos para evitar casar-se com Emma Fitzwilliam, e ela é linda, rica! Agora, ele

certamente vai se recusar a casar com uma garota sem atrativos, de cabeça oca como

Tilly Blaine. Ainda mais se William exigir essa atitude de sua parte. Kit vai rir na cara

dele.

— Mas a srta. Blaine...

— Bobagem! — a condessa nem deixou Marina continuar. — Pense, menina! Todos

sabem que as amantes de Kit Stratton são mulheres maravilhosas, elegantes,

belíssimas! Diamantes de primeira! E, se Tilly Blaine estivesse na companhia dele,

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mesmo que por pouco tempo, seria por insistência dela, não de Kit. Não posso dizer que

esteja surpresa, depois do espetáculo que Tilly deu na casa de sir Hugo. Vai ser

responsável pela sua própria ruína. E por fazer com que William passe por tolo, o que,

de fato, ele é. Aposto que toda a família Blaine será obrigada a mudar-se para o

exterior! — ela declarou, satisfeita com a idéia. — Você e eu teremos nossa vingança,

menina, e a sociedade londrina terá se livrado dessa gente mesquinha!

CAPÍTULO XVII

— Tinha de vê-la, Hugo! — Kit informava ao irmão, inflamado. — Parecia uma leoa

querendo avançar contra mim, com aqueles belos olhos flamejantes, enfurecidos! Foi

uma pena eu ter de acalmar tanta beleza.

Hugo olhou para o irmão com certa estranheza, mas nada disse. Continuou ouvindo-

o, calado, paciente.

— Ela deve ter achado que não tenho um só sentimento em meu peito, mas, afinal,

a idéia de ter alguma coisa com Tilly Blaine pareceu-me tão absurda, tão bizarra! Porém

reconheço que eu não devia ter rido. Foi cruel. Admito que errei, mas...

— Está bem, está bem, Kit. Mas chegou a admitir seu erro à srta. Beaumont?

— Bem... não. Não pude! Emma entrou naquele momento e tornou-se impossível

continuarmos a conversa. E...

— E Emma teve certeza de que alguma coisa, digamos, fora do normal, tinha

acontecido durante a ausência dela — Hugo o interrompeu. — Ela me disse que a srta.

Beaumont parecia estar bastante abalada. E é exatamente por isso que estou aqui, meu

irmão. Sabe muito bem que me sinto responsável pelo que aconteça a essa jovem. Assim,

vim para perguntar-lhe francamente: aproveitou-se dela?

Kit olhou-o em silêncio por instantes. Sua expressão parecia estar levemente

indignada. Por fim, defendeu-se:

— Mas é claro que não! Eu não faria uma coisa dessas! Não à srta. Beaumont!

Segurei as mãos dela, nada mais! E o fiz com o único objetivo de acalmá-la. Ela estava

abalada, sim, mas por causa da srta. Blaine, não por si mesma.

Hugo encarou-o muito sério, assentiu e comentou:

— Ela é uma mulher admirável, Kit.

— E eu não sei disso? — Kit parecia estar abalado agora. Pensava, sabendo que

chegaria à mesma conclusão a que já havia chegado antes. Marina estava em perigo de

ter sua reputação manchada seriamente, mas, ainda assim, parecia mais preocupada com

a outra do que consigo mesma. Nunca encontrara uma mulher assim. E decidiu fazer o

que pudesse para ajudá-la. Seria o mínimo que ela merecia. Teria de descobrir com

precisão onde sua governanta havia estado e o que fizera, mas tinha ficado tão

aborrecido com a traição dela que acabara por demiti-la logo depois da conversa que

tivera com a baronesa. E agora era possível que nunca mais a visse.

O mordomo bateu discretamente na porta e entrou em seguida, trazendo uma

carta sobre uma bandeja de prata.

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— Sinto incomodá-lo, senhor — disse ele —, mas esta carta acaba de ser entregue.

E o mensageiro diz ser urgente. Está no hall, esperando por sua resposta.

Kit levantou-se e pegou o envelope selado e o abriu.

— Muito bem — murmurou, enquanto o fazia. — Leve-o para a cozinha. Tocarei a

sineta quando tiver a resposta.

— Pois não, senhor.

Assim que o mordomo se retirou, sir Hugo caminhou até uma das poltronas que

ficavam diante da lareira e sentou-se. Olhava ainda pela porta, por onde o mordomo

saíra em absoluto silêncio, e comentou:

— Seus criados são muito bem treinados.

Kit ergueu os olhos para ele e observou:

—Aqui, talvez. Mas não em todas as minhas casas. — E, voltando a atenção

novamente para a carta, acabou de ler e exclamou: — Meu Deus!

— O que houve?—Hugo se alarmou, levantando-se de imediato.

— Esta carta... É de Katharina, a baronesa. Está me informando que seu marido

descobriu sobre seus casos e que a está ameaçando!

— E o que ela quer com você? Não a avisou para que indicasse ao marido quem é

seu atual amante? Estranho, não?

— Aparentemente, sou a única pessoa que está em condições de ajudá-la. Pede-me

que a encontre, mas...

— Ele olhou mais uma vez para o papel em suas mãos para ter certeza de que não

havia engano no que entendera. — Ela não especifica nem onde nem quando devemos nos

ver. Diz apenas que não ousa ir até a minha casa em Chelsea.

— Mais estranho ainda, me parece.

— A mim também. Nunca me deixei levar por pedidos movidos pela paixão. Mas ela

pede que eu não a decepcione. O que acha que eu deva fazer?

— Por que não tenta apenas ignorar essa carta?

— Não posso. — Kit foi até sua escrivaninha, sentou-se e pegou uma pena, que

molhou na tinta. — Pelo menos por enquanto, vou atendê-la. E, quando ela estipular seus

termos...

— Quando ela estipular seus termos, você não irá ao seu encontro sozinho — sir

Hugo praticamente impôs.

Kit olhou para o irmão e sorriu.

— Ainda está me protegendo, meu irmão? — indagou, em tom de brincadeira.

Hugo devolveu-lhe o sorriso.

— Você costumava dizer que essa era a grande serventia dos irmãos, se bem me

recordo.

Kit não respondeu. Apenas meneou a cabeça e terminou sua carta. Hugo,

conhecendo bem as atitudes do irmão, voltou a acomodar-se na poltrona.

O mordomo voltou quando Kit fechava o envelope. Estranho, ele não tocara a

sineta, avaliou, olhando para seu criado e comentando:

— Está começando a ler pensamentos? Eu ia chamá-lo agora mesmo...

— Não, senhor. Desculpe-me. Lorde Luce encontra-se no hall e pede para que o

receba imediatamente.

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— Ah, aí está a explicação! — Kit exclamou, terminando de selar a carta com calma.

Entregou-a, então, ao mordomo e orientou: — Cuide para que esta carta chegue ao seu

destino. E agora... imagino que deva conduzir meu visitante até aqui.

Lorde Luce entrou na sala parecendo estar pronto a entrar numa batalha com seu

pior inimigo. Todos os seus canhões vinham apontados contra Kit, mas vacilou quando viu

que ele não se encontrava sozinho.

— Imagino que conheça meu irmão, sir Hugo Stratton — Kit apresentou, educado.

— Sim, conheço — respondeu o conde, entre os dentes. — No entanto, senhor, meu

assunto não é com ele. Gostaria de lhe falar a sós, se possível.

Hugo, que se levantara para fazer uma mesura ao conde, tornou a sentar-se com

calma deliberação. E Kit, vendo-o reagir assim, disfarçou um sorriso. Sabia que seu

irmão poderia ser tremendamente teimoso quando queria, e, naquele caso, parecia ter

decidido que a visita de lorde Luce necessitava de uma testemunha.

— Tenho plena confiança em meu irmão, senhor — Kit explicou. — Podemos tratar

de qualquer assunto em sua presença. Mas, por favor, queira se sentar. Gostaria de

beber alguma coisa?

O conde não se sentou, sua expressão demonstrava que estava a ponto de explodir.

— Não, mas pode ser educado o suficiente se fizer, agora mesmo, um pedido

formal de casamento para minha afilhada, srta. Mathilda Blaine. E não vou perder meu

tempo dando-lhe motivos para que o faça! Deve conhecer muito bem quais são as razões

desta minha exigência.

Então, era assim que ele queria, Kit avaliou. E, na ausência do pai da garota, o

padrinho vinha exigir-lhe satisfações. Pena Luce não ter dignidade suficiente para

fazer o papel de parente ofendido.

— Acho que está redondamente enganado, senhor — Kit rebateu.—Não dei motivo

algum a srta. Blaine para que ela espere um pedido desse tipo de minha parte.

— Seu demônio mentiroso! — lorde Luce sibilou. — Dois encontros a sós em sua

casa em Chelsea não são motivo suficiente, então!

Sem perder o controle, Kit continuou a conversa:

— Ela lhe disse, pessoalmente, e nesses termos, que esteve lá? — E, vendo que seu

interlocutor vacilava, acrescentou: — Pelo que vejo, não.

— Ela nem precisava fazê-lo! — insistiu o conde. — A própria mãe a acusou! E ela

não negou! Como poderia, não é mesmo?! Foram vistos juntos, droga!

— Posso perguntar quem nos viu juntos?

— Isso não interessa! Toda Londres já está sabendo do caso! E a garota estará

arruinada se o senhor não fizer o que é correto para com ela! E pode ter certeza de que

vou cuidar para que o faça!

Kit levou as mãos às costas e começou a dar passos lentos diante da lareira.

— Que infelicidade — comentou, irônico. — É mesmo uma grande infelicidade não

podermos concordar nesse aspecto.

— O quê?! Ora, seu... seu...

— Cuidado com o que diz, lorde Luce! Não tenho a menor obrigação para com a

srta. Blaine. Pode levar este meu recado a sra. viscondessa, com todo o meu respeito.

Meus respeitos também à sua esposa, é claro. Tenha um bom dia!

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Kit caminhou até a porta para abri-la, enquanto Hugo se levantava, educado. E o

conde, por fim, explodiu com cólera:

— Eu juro, em nome de Deus, que o senhor vai pagar por isso! Todas as boas portas

de Londres estarão fechadas à sua presença! — E deixou a sala, resmungando coisas

incompreensíveis.

Kit fechou a porta assim que ele se foi e sacudiu os ombros, como se tivesse se

livrado de um fardo muito pesado.

— Que cena terrível — comentou. — Sinto por você ter sido forçado a presenciá-

la, meu irmão.

Calado, Hugo apenas pensava. Até que avisou:

— Esse sujeito é capaz de fazer-lhe muito mal, Kit. Tenha muito cuidado e se

acautele. O que fará agora? Não acredito que vá permitir que esse palhaço manche seu

nome pela cidade.

— "Nosso" nome, Hugo — Kit o corrigiu. —As ameaças dele foram direcionadas a

nós dois, pode ter certeza. E a Emma também, receio.

— Vou falar com ela, é claro, mas não costumo aceitar ameaças com paciência,

muito menos com passividade.

— Nem eu. E, neste caso, a honra de uma dama está em jogo.

— Fala da srta. Beaumont? — Kit assentiu.

— Não posso desmentir as acusações de Luce sem comprometê-la — analisou,

circunspecto. — E isso eu não farei.

— Tem outra saída?

— Claro que sim. Não vou fazer nada. Não tenho a menor intenção de ser

manipulado, Hugo. Mesmo que tivesse, a srta. Blaine é a última mulher na face da Terra

que eu escolheria para desposar. Que Luce faça o que bem entender, se ousar, é claro.

Ninguém em seu juízo perfeito acreditaria que eu tivesse marcado um encontro, dois,

na verdade, com Tilly Blaine. Todos vão rir dele.

— Essa tática, eu diria, é muito arriscada, meu irmão. E a srta. Blaine poderia ficar

mal falada. Não tem consideração nenhuma para com ela?

— Foi ela mesma quem causou essa confusão toda, Hugo. Ouviu bem o que Luce

disse: ela teve uma chance para negar tudo e não o fez. Acho que deve querer que sua

reputação fique arruinada.

Hugo meneou a cabeça com certa tristeza.

— Parece que quer arriscar sua última chance de arranjar um casamento com

você... — comentou.

— Se é assim, é uma garota extremamente tola. Porque eu seria um demônio de

marido para ela, pode ter certeza.

— Bem, acho que essa afirmação é a primeira sensata que você faz em toda esta

manhã. — Hugo riu. — Bem, já vou indo. Avise-me se Luce mostrar as garras novamente.

Quero saber também no que deu a história da carta que enviou a baronesa. Ah, e não se

esqueça de que Emma o está esperando esta tarde. Sabe que ela não aceita desculpas

quando alguém falta com um compromisso.

Kit assentiu, vendo o irmão sair. Quando a porta se fechou atrás dele, voltou à

cadeira de sua escrivaninha e sentou-se, enfiando os dedos pelos cabelos. Hugo havia

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sido notavelmente controlado, concluiu, em especial porque o nome dos Stratton estava

a ponto de ser enxovalhado devido à decisão que Kit acabara de tomar quanto a não se

envolver na tempestade que estava se preparando para cair sobre suas cabeças.

Que situação!, avaliou, respirando fundo. Primeiro Katharina, e depois essa tal

srta. Blaine... Devia estar ficando louco. Nenhuma mulher podia acreditar que pudesse

chantagear um homem e forçá-lo a casar baseando-se em rumores falsos! Que tipo de

casamento uma mulher assim poderia esperar?!

Ela, provavelmente, não pensara em nada. Afinal, muitas mulheres não conseguiam

pensar em nada além de uma cerimônia de casamento e um vestido de noiva... Tilly Blaine

devia ter criado suas próprias fantasias enlouquecidas por estar apaixonada por ele. E

isso apenas por tê-lo visto, pois Kit nunca lhe falara! De fato, sua boa aparência estava

se tornando uma maldição!

Sacudiu a cabeça, tentando colocar os pensamentos em ordem. Hugo dissera, e

com razão, que não reagir, não fazer nada, era uma tática perigosa de encarar as coisas.

Luce não era inteligente o suficiente para manter a boca fechada. E sempre haveria

aqueles que citariam o velho provérbio "Não há fumaça sem fogo". Mesmo admitindo que

Kit jamais se envolveria com uma mulher solteira, muito menos com uma sem atrativos,

haveria sempre uma dúvida pairando no ar. E comentários também. Muitos. Por fim, Kit

acabaria sendo forçado a propor casamento à srta. Blaine.

E teria de se exilar mais uma vez. Isso poderia ser visto pela sociedade como uma

admissão de culpa. E, pior do que isso, teria de deixar Hugo e Emma naquela situação

constrangedora; afinal, sua desgraça acabaria caindo sobre eles também. Se deixasse a

Inglaterra, porém, o escândalo seria esquecido.

Tinha poucas alternativas, e todas elas eram difíceis. Podia ir embora novamente.

Podia também trair a srta. Beaumont... mas jamais o faria.

Marina estremecia a cada passo que dava. Tinha receio de entrar na casa de lady

Stratton depois da conversa que tivera com Kit no dia anterior. Ficara muito

embaraçada quando Emma havia entrado na sala e os vira tão próximos. Tentara

disfarçar seu embaraço, mas lady Stratton não era tola. Devia ter percebido que havia

algo de diferente entre seus visitantes. E fora um grande alívio deixar a casa, por fim.

Marina agora imaginava como Kit poderia ter explicado sua pequena discussão.

Talvez apenas tivesse fingido que nada acontecera. Talvez sua cunhada tivesse sido

discreta e educada demais para perguntar-lhe qualquer coisa.

Não havia como saber. Como não houvera um meio de responder "não" ao convite

de lady Stratton para que fosse até sua casa com urgência. Ela até mesmo mandara sua

carruagem para buscar Marina...

E agora Marina sabia por que estava sendo convidada. O convite chegara em nome

de lady Stratton, mas devia ter sido seu cunhado quem o fizera de fato. Kit Stratton

sabia, tanto quanto seu irmão, que as alegações de lorde Luce sobre Kit e a srta. Blaine

eram totalmente sem fundamento. O conde não tinha base alguma para exigir que Kit se

casasse com sua afilhada, porém Marina era a única pessoa que poderia prová-lo.

Ela respirou fundo ao subir as escadas. E a porta se abriu assim que ergueu a mão

para tocar a campainha. Estava sendo esperada! O mordomo a cumprimentou e Marina

respondeu mecanicamente, seguindo-o depois até a sala particular de lady Stratton.

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Estava em absoluto silêncio, mas sua mente era um torvelinho de indagações. O que

poderia dizer a sua anfitriã, que estava sendo tão gentil? E quanto a sir Hugo, que sabia

de toda a verdade, mas se mantinha absolutamente em silêncio? Lady Luce poderia ter

certeza de que Kit não seria forçado a se casar com Tilly Blaine, mas... e se estivesse

enganada?!

Marina ergueu o rosto ao entrar na sala. Tinha sido ensinada a ser honesta sempre

e a ter consideração para com os outros. Na situação em que se encontrava, porém,

essas simples regras de conduta não seriam suficientes, pois não conseguiria salvar uma

parte sem prejudicar a outra. Sentia muito por Tilly Blaine, mas a única maneira de

salvar a reputação da garota seria sacrificar a de Kit. E Marina não se sentia preparada

para fazer tal coisa. Não era uma questão de amor, absolutamente não, pois já fizera o

impossível para enterrar seu amor para sempre em seu coração. Era, sim, uma questão

de honra.

— A srta. Beaumont, senhora — o mordomo anunciou, fechando as portas assim que

saiu.

Lady Stratton levantou-se de sua poltrona e acorreu para dar as mãos a Marina,

numa acolhida carinhosa. Parecia menos tranqüila do que o normal, mas estava sozinha.

Marina pensara, angustiada, que um dos irmãos Stratton estivesse presente.

— Obrigada por ter vindo tão prontamente, minha querida — disse Emma. — A

condessa não colocou nenhum empecilho a sua vinda?

— Não. Ela está... muito ocupada com assuntos domésticos ultimamente. E

prometeu comparecer a um jogo de cartas esta noite. Assim, disse que não vai precisar

de mim por hoje.

— Ótimo. Eu não gostaria de importuná-la de forma alguma. Venha, sente-se. Tire

seu chapéu e fique à vontade. Vou pedir que nos tragam um pouco de chá.

Marina fez como lhe era dito, imaginando o que a aguardava. E não teve de esperar

por muito tempo para saber. A bandeja com o chá veio quase imediatamente e o

mordomo se retirou, impassível como chegara. Mas logo Kit Stratton adentrou a sala,

elegante e jovial como sempre.

— Srta. Beaumont — saudou ele, com uma leve inclinação do corpo.

A garganta de Marina estava tão seca que mal conseguia engolir. Fez apenas uma

breve saudação com a cabeça e manteve-se quieta.

— Srta. Beaumont, por favor, queira me perdoar — interferiu lady Stratton,

corando visivelmente — mas acho que vou ter de deixá-los mais uma vez a sós para ir

falar com meu marido. Parece que ele sempre está precisando de mim em momentos...

inconvenientes... porém, por favor, fiquem à vontade, como se casa fosse sua.

Marina mal teve tempo para responder e Emma já se fora. Estava, assim, mais uma

vez a sós com Kit Stratton. E ele parecia olhá-la com uma expressão acusadora que a

deixava muito embaraçada.

— Creme e açúcar, sr. Stratton? — ela ofereceu, como da outra vez.

— Sim, por favor. Não mudei meus hábitos de ontem para hoje.

Kit não estava disposto a tornar aquela entrevista fácil, Marina avaliou, engolindo

em seco. E não podia reclamar. Ele, provavelmente, queria estrangulá-la pelo que fizera.

Sendo um cavalheiro, porém, iria se restringir a feri-la com palavras.

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Entregou-lhe sua xícara com mãos trêmulas, sem sorrir ou falar. O silêncio, denso,

pesado, foi quebrado quando Kit recomeçou a falar:

— Imagino que esteja a par, senhorita, de que lorde Luce veio fazer-me uma visita

hoje. — Kit esperou que ela assentisse para prosseguir: — E sabe dos detalhes do

assunto que ele veio tratar?

Mais uma vez, Marina assentiu. Não podia negar.

— Ótimo. Isso torna nossa conversa bem mais fácil. — Ele bebeu seu chá com

calma, depois depositou a xícara de volta à bandeja e ajeitou-se melhor na cadeira para

que pudesse ficar de frente para Marina. — Preciso ter certeza, srta. Beaumont: não

pretende intervir, de forma alguma, no assunto?

Aquela pergunta mais lhe parecia uma acusação, e Marina baixou a cabeça. Como

Kit poderia pensar que ela permaneceria em silêncio quando ele estava sendo forçado a

se casar sem amor?! Era isso o que pensava a seu respeito? Como ela podia estar

apaixonada por um homem que a considerava tão pouco?! Tornou a erguer a cabeça e

enfrentou o olhar dele, profundo, sério, recusando-se a desviar o seu. Queria provar

que não era covarde, e o faria.

— Sr. Stratton — disse em voz baixa, porém determinada —, posso ser pobre, mas

sou honrada. Não foi possível para mim revelar a verdade a lorde Luce esta manhã. —

Ela pareceu ver um brilho diferente nos olhos ele, porém prosseguiu sem se deixar

abater: — Mas tenho intenção de contar a ele toda a verdade na primeira oportunidade

que aparecer. A condessa, não tenho dúvidas, fará com que esse escândalo acabe

vazando para toda a cidade.

Os olhos de Kit se estreitaram. Sua expressão mudara, parecia irritada agora. E

Marina sentiu vontade de se afastar, temendo-o.

Kit estendeu o braço e agarrou-a pelo pulso com tanta força que chegou a assustá-

la.

— Srta. Beaumont, preciso lhe dizer que é uma grande tola. Vai deixar vazar para

todo o mundo que manteve encontros secretos com o pior cafajeste de Londres? O que

espera alcançar com isso?! Hein? Porque será a sua ruína!

Marina sentia aquelas palavras como adagas perfurando seu corpo inocente e sem

defesa. Mas o ataque não tinha terminado ainda. Kit apertou ainda mais os dedos no

pulso dela, falando por entre os dentes:

— Acha que vai salvar a srta. Blaine da desgraça admitindo o que fez?! Pois saiba

que está chegando tarde, minha menina. Porque ela já anunciou ao mundo que é M.B.

— Não! Ela não poderia tê-lo feito!

— Mas fez. E ouvi isso da boca de seu padrinho esta manhã. Se não acredita, está

praticamente dizendo que chamei o conde de mentiroso.

— Não, eu... eu...

— Pelo menos, me poupará disso. Agora — ele a puxou mais para si —, vai me ouvir,

srta. Beaumont. Já dei minha resposta a lorde Luce. O assunto está decidido, e a

senhorita não vai dizer uma só palavra sobre a sua participação nessa história, nem para

a condessa nem para ninguém mais. Sua versão não mudaria nada, apenas faria com que

pensassem que não passa de mais uma das amantes de Kit Stratton.

— Mas... — Marina tentou soltar-se, porém não conseguiu.

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Com a mão livre, ele tocou-lhe os lábios, pedindo-lhe silêncio.

— Fique quieta, Marina. E me ouça. Afinal, nunca faz o que lhe pedem?

Aquele breve, leve toque, mudou tudo. Marina não conseguia mais pronunciar uma

palavra sequer. Embora ele ainda a segurasse com força com uma das mãos, seu dedo

estava sobre seus lábios com uma delicadeza inacreditável.

E assim, próximos, olhando-se, o tempo pareceu parar. Kit afrouxou os dedos que a

seguravam. E os desviou de seus lábios para afastar alguns fios de cabelos que estavam

invadindo-lhe o rosto. Marina cerrou os olhos, saboreando a delícia daquele toque tão

suave.

— Vai retornar a Yorkshire em breve — disse ele. — Dentro de uma semana, mais

ou menos. Vão dizer que não precisa mais ficar empregada como dama de companhia da

condessa, já que seu irmão receberá um bom lugar para morar. E isso será verdade,

embora, no momento, não possa ser Stratton Magna ainda. Eu não permitiria. Quero

dizer... isso poderia provocar comentários piores, já que a senhorita estaria vivendo em

uma das minhas propriedades.

— "Sua" propriedade?! Então, é sua a casa em que meu irmão poderá viver?!

— Vou cuidar para que seja outra de minhas casas.

Marina estava confusa, mas, ao mesmo tempo, irritada. Afinal, Kit estava

calmamente arranjando sua vida e a de sua família sem permitir que ela dissesse uma

única palavra! E era óbvio que ele estava determinado a permitir ser chantageado,

forçado naquele casamento absurdo com Tilly Blaine! Estúpido, arrogante!

— Entendo — disse ela por fim, irritada. — Será que posso falar agora? Vai

permitir? Oh, quanta gentileza sua, sr. Stratton! — Marina levantou-se, puxando com

toda a força a mão que ele segurava, chegando a dar um gemido de dor. — Então, vai me

permitir também dizer-lhe que não tenho a menor intenção de acatar ordens suas! Tilly

Blaine é uma tola, e desonesta também, se pensa que poderá agarrar um marido

contando mentiras. Mas eu vou dizer toda a verdade para quem quiser ouvir. E se essa

verdade manchar minha reputação, bem... sou eu a única culpada por isso. Afinal, tudo

que aconteceu foi provocado por mim mesma. E estou mais do que preparada para

suportar as consequências dos meus atos. Além disso...

Kit não deu chance a ela para que continuasse. Levantou-se rapidamente e,

pegando-a pelos ombros, sacudiu-a. Marina arregalou os olhos, surpresa, chocada. De

repente, encontrava-se nos braços dele, e os olhos de Kit estavam mergulhados

profundamente nos seus.

— Marina, você é, sem dúvida, a mulher mais corajosa e mais irritante que já

conheci — ele sussurrou antes de beijá-la apaixonadamente.

Foi um beijo poderoso, forte, cuja intenção era mostrar a ela quanto era frágil,

quanto não podia opor-se a Kit Stratton.

Marina sabia, entendia. Mesmo assim, ainda sentia vontade de avançar contra ele.

Mas o toque de seus lábios parecia renovar tudo de bom que povoara seus sonhos desde

a primeira vez que o vira. E seu corpo pedia pelo dele, a despeito de tudo. Sentia-se uma

grande tola e por isso lutou por afastar-se.

— Não! — exclamou. E, vendo que Kit erguia a mão para tocar-lhe os cabelos,

repetiu com mais ênfase: — Não! Não serei uma simples peça em seus jogos! Mesmo uma

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simples dama de companhia tem consciência, senhor, e pretendo seguir o que a minha

me orienta a fazer. Tenha um bom dia!

Marina agarrou seu chapéu e saiu depressa da sala, sem dar a Kit uma

oportunidade para dizer qualquer outra coisa.

E, talvez pela primeira vez em toda sua vida, ele ficou completamente perdido. A

princípio, não conseguiu pensar em mais nada a não ser na atitude altiva, orgulhosa, de

Marina ao enfrentá-lo. Era como se tivesse se aproveitado dela... outra vez. Era

estranho, mas, no que se referia a Marina Beaumont, o imenso poder que Kit sempre

tivera sobre as mulheres parecia desaparecer. Fora rígido, tentara restringir-lhe os

atos, ditar-lhe o que deveria fazer, sacudira-a para tentar fazê-la parar com aquela

teimosia toda, e depois a beijara como se quisesse puni-la. Mas, puni-la pelo quê? Por

ter ousado enfrentá-lo? Por estar se oferecendo ao sacrifício para salvá-lo de um

casamento sem amor com aquela odiosa srta. Blaine?

Precisava fazer alguma coisa, agir rápido! Caso contrário, Marina estaria

arruinada! Ela era uma em um milhão, reconhecia. E seria lançada às chamas da vergonha

por tentar defendê-lo. Precisava encontrar um modo de detê-la. Mas apenas o próprio

silêncio de Marina poderia salvá-la. E ela não continuaria em silêncio enquanto

acreditasse que poderia impedi-lo de casar-se com Tilly Blaine.

Kit deixou-se cair numa poltrona, pensativo. Precisava ser frio, pensar com lógica,

analisava. E levou algum tempo até que uma boa alternativa aparecesse em sua mente.

Era uma alternativa terrível, quase fora de questão, porém a única que poderia tentar:

casamento.

A sociedade exigia que ele, como cavalheiro, propusesse casamento a Tilly Blaine.

E, assim que seu provável casamento se tornasse público, nada mais poderia impedi-lo.

Nada. Marina teria de entender que sua confissão, então, não teria utilidade alguma.

E ela teria de aceitar o fato de que seria obrigada a ficar calada. Isso, se seu

casamento fosse anunciado. Meneou a cabeça, desesperado. Uma semana antes, não

acreditaria ser possível estar envolvido numa situação assim. Ele, Kit Stratton, o

canalha que jurara jamais ligar-se definitivamente a mulher alguma, não mais se

importava se fosse forçado a se casar ou não.

Olhou para a escrivaninha de Emma, num dos cantos da sala, e seguiu até lá. Iria

engolir seu orgulho e exigir... não, pedir... uma entrevista urgente com lorde Luce. E,

nessa entrevista, ofereceria casamento a srta. Tilly Blaine.

CAPÍTULO XVIII

Marina apressou-se, escada abaixo, para atender ao chamado urgente de lady

Luce. Lorde Luce viera fazer outra visita à sua mãe, provavelmente para falar-lhe sobre

a visita que fizera a Kit Stratton. E ainda podia haver tempo suficiente para evitar o

anúncio do noivado.

O conde olhou para Marina com desagrado quando ela entrou na sala de estar, mas,

pela primeira vez, nada disse contra sua presença. Talvez tivesse entendido, por fim,

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que qualquer protesto seu serviria apenas para inflamar ainda mais o temperamento de

sua mãe.

— Então, eu estava certa — dizia a condessa, com satisfação, sem prestar atenção

à chegada de Marina.

— Não exatamente, minha mãe — esclareceu William. — É verdade que Kit

Stratton agiu como a senhora disse que faria quando o visitei ontem; simplesmente se

recusou a reconhecer suas obrigações para com a minha afilhada. Chegou a me desafiar,

imagine! Aquele presunçoso! Mas acabou mudando de idéia.

A condessa estava a cada instante mais contente.

E Marina mal podia acreditar no que ouvia. Ao que parecia, Kit voltara atrás... Como

pudera fazer tal coisa?! Iria se casar com Tilly Blaine! Devia haver algum mal-entendido

em tudo aquilo, analisava, começando a se desesperar.

— Depois de ter conversado sobre o assunto com lady Blaine — continuou o conde

—, decidi dar ao rapaz um certo tempo para refletir, antes que eu tomasse alguma

atitude mais séria.

— Sei... O que deve ter acontecido é que lady Blaine lhe disse para aguardar e não

fazer nada impensado, isso sim! — comentou a condessa, irônica. — Ela deve saber que

de nada vai adiantar ficar alardeando a ruína da reputação da filha. Sabe muito bem que

os rumores vão ficar mais e mais intensos com o passar do tempo.

— Mas eu estava certo, minha mãe! — William insistiu. — Porque recebi uma carta

de Kit Stratton pedindo o favor de uma entrevista quando for mais conveniente para

mim. — Ele fazia sua revelação cheio de orgulho. — E vai me visitar esta manhã ainda.

Não tenho dúvida alguma de que irá propor casamento a Tilly. E lady Blaine ficou

encantada, como deve imaginar. Quando a deixei, antes de vir para cá, estava

escrevendo para o marido a fim de lhe contar a novidade a respeito do casamento e

falar-lhe de como se sente bem por ter um intermediário como eu. Ela mesma me disse

que nenhum padrinho poderia ter feito melhor por sua afilhada. É claro que eu sempre

confiei em minhas habilidades diplomáticas, mas...

— Oh, poupe-me dessas baboseiras! Sua única grande habilidade é falar bem de si

mesmo! Acha que os Blaine vão aplaudir sua atitude? Pois eu lhe digo que está

redondamente enganado!

— Com licença, senhora — Marina interferiu, sem conseguir suportar mais a espera

para poder falar o que lhe afligia o coração. Aquela charada estúpida tinha de parar ali.

— Agora, não, Marina — a condessa recusou-se a ouvir.

— Mas, senhora, é muito importante que me ouça! O sr. Stratton foi vítima de um

mal-entendido. A srta. Blaine jamais esteve a sós com ele.

Houve um silêncio tenso, surpreso, durante o qual os olhos de lorde Luce voltaram-

se, atônitos, para Marina. A condessa, por sua vez, apenas esperava que ela continuasse

com o que pretendia dizer. Quando, por fim, o silêncio começou a se estender por mais

tempo do que achou suficiente, lady Luce indagou;

— Como foi que disse, menina?

— A srta. Blaine não é M.B. Eu sou.

— Impossível...

— Cale a boca, William! — exclamou a condessa impedindo que o filho continuasse a

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expressar sua surpresa. — Prossiga, Marina. Explique o que quer dizer.

— É a verdade, senhora. Fui eu quem visitou o sr. Stratton em sua casa, em

Chelsea. E... por duas vezes.

— Eu a avisei para mandar essa garota detestável de volta a Yorkshire, minha mãe!

— William interferiu, furioso. — Deveria ter...

— Eu já lhe disse para ficar calado, William! Não tenho a menor dúvida de que

Marina teve muito bons motivos para fazer o que fez!

Marina percebia que teria de explicar exatamente o que fizera e por quê. E sua

expressão de angústia devia ser bastante eloquente, pois a condessa apressou-se em

acrescentar:

— Falaremos sobre esse assunto mais tarde, menina. Por enquanto, vamos nos

concentrar no que meu filho acaba de dizer. — E, voltando-se para ele, ironizou: —

Estava satisfeito consigo mesmo, não? Bem, não pode mais esperar casar Tilly Blaine.

Marina percebia que sua patroa continuava satisfeita, porém não conseguia

entender o porquê.

— Bobagem — respondeu o conde. — Não acredito que essa moça esteja dizendo a

verdade. É impossível! Ademais, minha mãe, Tilly admitiu que esteve com Stratton.

Está, então, sugerindo que ela mentiu? A filha de uma viscondessa? Que mentiu para a

própria mãe?

— Diga-me uma coisa, William: o quê, exatamente, essa sua preciosa Tilly disse?

O conde pareceu pego de surpresa. Pensou por alguns instantes, depois respondeu:

— Eu não estava presente, é claro... mas lady Blaine disse que pressionou a menina

dizendo que ela era M.B., e que Tilly não negou. Portanto é verdade.

— Mas quanta bobagem! Tilly Blaine tem o cérebro menor do que o de uma pulga!

Além, é claro, de possuir o rosto de um cavalo. Aposto que ela não disse uma única

palavra. Provavelmente ficou parada, olhando para a mãe com sua constante cara de

idiota, parecendo culpada, já que devia estar de boca aberta diante da simples idéia de

ficar a sós com Kit Stratton. Não foi?

William respirou fundo e deu alguns passos pela sala enquanto a condessa lançava

um olhar cúmplice a Marina.

Quando ele parou e voltou-se, abrupto, disse, irritado:

— Agora não interessa mais se Tilly esteve ou não com Kit Stratton! O que importa

é que ele está pronto para propor-lhe casamento. A carta que me mandou não deixa

dúvidas quanto a isso. — Ele bateu no bolso em que guardava a carta. — E jamais

teremos uma oferta melhor para Tilly. Afinal, ela já passou da idade de casar. Quanto

ao resto... bem, não vou deixar passar uma oportunidade dessas. O pai dela ficará

satisfeito por eu lhe ter arranjado um genro rico.

Se não tivesse ouvido aquelas palavras com seus próprios ouvidos, Marina não

conseguiria acreditar que um cavalheiro pudesse ser tão maquiavélico. A condessa não

tentou mascarar seu ultraje.

— Você não vale nada mesmo, William! — acusou. — Seu único interesse no

momento é alardear a vitória que terá sobre Kit Stratton. Pois eu lhe aviso que não

permitirei que o faça. Kit Stratton pode ser um canalha, porém vale dez de você!

— Mas... a senhora detesta Kit Stratton, mãe!

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O conde acabara de colocar em palavras o que Marina estava pensando. Por que a

condessa estaria tomando o partido de Kit contra seu próprio filho?! Mesmo

desprezando-o tanto, ele ainda era seu sangue! E a resposta que deu a ele foi ainda pior:

— Não o detesto mais do que a você! E à família do homem que foi seu pai!

— O quê? Mas meu pai a deixou bem, com dinheiro, propriedades!

— Seu pai o rejeitou e a mim também. Será que nunca notou quanto "não" se

parece com as pessoas desta família?! — Ela meneou a cabeça. — Não, suponho que não.

Uma mente normal não é o forte dos Blaine.

O conde entreabriu os lábios, pasmo. E deixou-se cair na cadeira mais próxima.

— Não vou permitir que essa família amaldiçoada triunfe novamente sobre mim —

prosseguiu lady Luce, muito séria. — Mesmo se eu tiver de ficar ao lado de Kit

Stratton. E aviso a você, William: se persistir em tentar forçar esse casamento, vou

gritar aos quatro ventos que seu pai era o falecido visconde Blaine!

— A senhora... a senhora apenas trará desgraça sobre si mesma — William

conseguiu murmurar, apesar de estar muito chocado.

— E o que isso me importa? Sou uma mulher velha agora! Todos que importavam

para mim, meu marido, nosso filho, estão mortos há muito tempo. Por que eu me

importaria com o que possam dizer sobre mim?

— Mas ainda sou seu filho também — o conde rebateu com surpreendente

dignidade. — E meus filhos são seus netos. Vai arruinar a vida deles por causa da sua

vingancinha pessoal.

— Vingancinha? Seu pai, seu verdadeiro pai, me seduziu e depois me jogou na

sarjeta! Minha família estava a ponto de me deserdar e eu poderia ter morrido, não

fosse por lorde Luce. Ele se casou comigo e salvou minha reputação. E quando nosso

querido filho foi morto na índia, e meu marido faleceu pouco depois, lorde Blaine, seu

pai, veio ainda vangloriar-se diante do meu desespero. Disse que seu irmão era um

fraco, pois a família de onde viera era fraca. Disse que eu deveria ficar feliz por um

verdadeiro homem ter sido seu pai! — Ela o encarava com raiva. — Você não é meu filho.

Olhe bem para você, com seu jeito arrogante e infantil ao mesmo tempo! E seus

inúmeros filhos também! É um Blaine, com certeza!

— Não, minha mãe. Pela lei, sou o conde Luce por direito!

Ela quase rosnou.

— Esse título deveria ter sido dado a Roland. Ele era o único e verdadeiro Luce.

— Mas meu irmão está morto, mãe. E nenhuma vingança de sua parte o trará de

volta!

— Não, mas os Blaine vão sofrer como eu sofri! E olhe bem o que estou dizendo:

falo a sério, William! Se forçar Kit Stratton a esse casamento absurdo com aquela

idiota, sua verdadeira sobrinha, eu vou denunciar você no altar, se for necessário!

O conde se levantou e, encarando a mãe com olhos injetados, assentiu muito de

leve.

— Pense muito bem antes de fazer qualquer coisa de que venha a se arrepender,

minha mãe — murmurou em tom de ameaça. — Lembre-se de que todos a conhecem

como uma mulher que foge ao normal, às convenções. Poderão imaginar que está

começando a ficar louca.

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— Bobagem!

— E nada que diga poderá influenciar lady Blaine, seja como for. Por que acha que

ela vai se importar se a senhora teve um caso com seu sogro? Ele já morreu há tanto

tempo! Enquanto Tilly e a ameaça de uma desgraça iminente estão muito mais vivas em

sua mente. Não, minha mãe, sua pequena chantagem não vai adiantar nada. — Ele se

inclinou numa saudação fria. — Tenha um bom dia, "mãe". — E deixou a sala.

Marina, calada, pensava no que acabara de ouvir e ainda não conseguia acreditar.

Aquilo explicava muitas coisas, mas era como... o enredo de um romance gótico. Essas

coisas não aconteciam na vida real, aconteciam?, indagava-se.

A condessa olhou-a com certo arrependimento no olhar.

— Está chocada, menina? — perguntou com voz suave. Falava de maneira muito

diferente de seu jeito sempre exigente. — Imagino que sua avó tenha lhe contado

muitas histórias sobre sua família e as coisas terríveis que são capazes de fazer. Os

homens da família Blaine sempre foram cruéis com as mulheres. Não com suas esposas,

é claro. E as mulheres dessa família, tanto as esposas quanto as filhas, bem, não podem

ser culpadas de nada quanto a esse aspecto. Talvez seja por isso que sua avó foi

excluída... pois ela desafiou o pai e o irmão. Eles jamais poderiam tolerar tal

comportamento. Jamais.

— Desculpe-me por perguntar, senhora, mas é por isso que me deixou ficar em sua

companhia? Por causa do que os Blaine fizeram contra a minha família? — Lady Luce

sorriu de leve.

— Os Blaine já causaram muito mal, menina. Tanto para a sua quanto para a minha

família. Eu não podia permitir que William tomasse uma atitude semelhante à que o pai

tomou. Ele já é um grande tolo, mas quer ser um tirano tolo, o que é imperdoável. E

seria terrível com as mulheres também, se tivesse dinheiro e beleza para isso.

— Mas ele é seu filho, senhora...

— Eu sei, mas nunca vi nada de meu nele. Esse idiota é um grande covarde, jamais

enfrenta uma boa briga.

— Não me pareceu assim desta vez, senhora. Ele... me deu a impressão de estar

bastante determinado a prejudicá-la, se for preciso. — A condessa deu de ombros.

— Isso é porque ele acha que está seguro. E, desta vez, receio que ele possa estar,

sim. Os Blaine até podem vencer novamente. — As mãos dela, enrugadas e frágeis,

estavam fechadas em punhos.

— Senhora... — Marina murmurou, insegura. — Eu... acho que devo deixar Londres.

— Por quê? Eu preciso de você aqui!

— Mas lorde Luce poderá contar a lady Blaine sobre o que eu disse! Sobre o que

fiz! E ela despreza minha família! Vai encontrar um modo de rotular-me como amante de

Kit Stratton, tenho certeza! Mas eu lhe juro, senhora, não fiz nada de errado! Não sou

amante dele! Não iria querer uma dama de companhia falada por todos, iria, senhora?

Devo partir agora, antes que os rumores comecem. — E também antes que o casamento

de Kit fosse anunciado, Marina acrescentou apenas em seus pensamentos. Se ficasse

claro para todos que ela era, de fato, a mulher que estivera com ele, sentia que não

conseguiria esconder seus sentimentos por muito mais tempo.

— Não, não, não! — insistiu a condessa, firme. — Você vai ficar aqui! Lady Blaine

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não poderá acusá-la antes de desistir de suas esperanças quanto a forçar um casamento

de Stratton com sua filha.

Porém Marina sabia que lady Luce não estava com a razão agora. Lady Blaine não

precisava dizer que Marina era M.B., teria apenas de dizer que Marina permitira-se ser

seduzida por Kit. E os fofoqueiros ficariam satisfeitos em poder espalhar tal escândalo,

ainda mais vindo ele de uma fonte tão irrepreensível.

— Olhe aqui, menina — continuou lady Luce, depois de ter pensado mais um pouco

—, acho que a ameaça que fiz a William poderá segurar essa mulher por algum tempo.

William está muito seguro de si mesmo. Os Blaine não gostariam que se soubesse que o

visconde era dado a seduzir mocinhas inocentes e depois abandoná-las grávidas.

Acredite no que digo, Marina: não vou permitir que eles vençam outra vez. Estão todos

convidados para a minha festa esta noite, não estão? Pois bem. Acho que uma conversa

em particular será necessária e interessante... — E lady Luce sorriu com aquele seu

costumeiro ar de malícia que acabava de voltar-lhe ao rosto.—E agora — disse em tom

amistoso —, talvez queira me contar tudo sobre a verdadeira M.B. e sua ligação com

aquele jovem cafajeste.

Marina olhou-se no espelho de cima da cômoda. Ainda se sentia muito agitada. Não

fosse pela ajuda da sra. Gibson, não teria sequer conseguido abotoar seu vestido, muito

menos feito o penteado.

Estava pálida, reconhecia, apesar do tom alegre no rosa de seu vestido. E não

conseguia olhar para a sua imagem refletida sem se sentir aterrorizada. Estava prestes

a ser exposta à sociedade. E teria de permanecer quieta, apenas observando enquanto o

homem a quem amava iria se aventurar em um casamento hediondo com a herdeira de

uma família vil, inescrupulosa, cruel. E nada havia que pudesse fazer para evitar tudo

isso.

Saiu do quarto e encaminhou-se, pelo corredor, até o topo da escada, a qual desceu

com cuidado, erguendo a parte da frente do vestido. Tinha de lembrar-se de manter a

altivez, de ficar com a cabeça erguida e as costas eretas. A condessa lhe dissera que

deveria reunir-se a ela e a seus convidados no salão do piso térreo. Era ali que o conde

havia falado com ela no dia em que chegara e se apresentara para seu emprego.

Também fora ali que ele quisera demiti-la. Era estranho, mas tais acontecimentos

pareciam-lhe, agora, ter se passado havia muito, muito tempo. Numa época em que ela

ainda não aprendera a amar Kit Stratton.

Tentou não pensar nele. De nada adiantava, afinal.

Mas bastava ouvir-lhe o nome para que seu coração disparasse, sem controle, e sua

pele se arrepiasse na antecipação do toque daquelas magníficas mãos.

Talvez nunca mais o visse, pensava, entristecida. Apesar de tudo que a condessa

lhe dissera, Marina sentia que seria banida de volta a Yorkshire em breve. No entanto

queria muito ter a oportunidade de lançar mais um olhar, por mais furtivo e rápido que

fosse, a Kit. E, se possível, sentir o toque de seus dedos firmes.

Tola, dizia-se; como podia pensar em tal coisa?! Tentara salvá-lo e falhara. A

conversa que estava prestes a presenciar na sala iria prová-lo.

Tibbs encontrava-se parado ao lado das portas duplas, como se montasse guarda.

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Quando a viu, saudou-a com um assentimento e abriu a porta para que ela passasse.

— A srta. Beaumont — anunciou a condessa assim que a viu chegando. — Muito

bem, então. Podemos começar nossa conversa.

— Não vejo por que eu tenha de suportar a presença de uma mulher dessas —

protestou lady Blaine, olhando para lorde Luce, em busca de apoio. — Se me der

licença...

—Não, não lhe dou licença alguma! — rebateu lady Luce, fazendo com que lady

Blaine tornasse a se acomodar, à espera do que iria acontecer. — Quero lembrá-la,

senhora, de que é uma convidada em minha casa e aqui sou eu quem decide quem fica e

quem sai.

Marina estava extremamente tensa. Tentava esconder as mãos fechadas nas

dobras do vestido, esperando que aquela conversa terrível acabasse logo. Os convidados

de lady Luce estavam chegando e não poderiam ficar ali, na sala, sem dar-lhes a atenção

devida. Se pudesse fazer alguma coisa!

— Acredito, senhora — continuou a condessa com firmeza —, que William já lhe

tenha dito o motivo desta nossa reunião aqui.

Lady Blaine ergueu a cabeça, olhando com desdém para sua interlocutora. E fez um

breve assentimento, apenas para constar que sabia do que se tratava.

— Muito bem. Então, vamos à verdade — prosseguiu lady Luce, sempre muito

direta. — A senhora e sua família pretendem usar métodos inescrupulosos para

conseguir arranjar um marido rico para sua filha. E não precisa que eu lhe diga quanto

tal atitude é vergonhosa! Afinal, sua filha é um caso perdido. Tão culpada dessa

situação quanto a senhora mesma.

Lady Blaine arregalou os olhos diante de tais palavras.

— Como ousa dizer tal coisa?! Minha filha é inocente! Nada fez de errado! Ela e

eu...

— Sua filha permitiu que todos vissem seu comportamento de absoluta paixão por

Kit Stratton na recepção em casa de lady Stratton! Não achei aquilo nada inocente.

— Mas é claro que foi inocente! — A viscondessa começava a se irritar

profundamente. — Com aquela aparência incrível, ele se afigurou um herói para Tilly, o

tipo de homem que aparece nos poemas que ela mais adora ler! Minha filha estava

sonhando acordada, nada mais!

— Talvez devesse levá-la para fora do país, então, para mostrar-lhe esses lugares

maravilhosos e idílicos com os quais ela sonha, em vez de forçá-la a se casar.

— O futuro marido pode muito bem mostrar esses lugares a ela — replicou lady

Blaine. — Assim que se casarem.

A condessa assentiu para si mesma.

— Está determinada a levar isso até o fim, então, viscondessa — comentou. —

Muito bem. Também eu estou. E, se realmente insistir nesse casamento, anunciarei ao

mundo todo que seu querido amigo, meu filho William, é um filho ilegítimo do falecido

visconde. Assim sendo, ele é, de fato, irmão mais velho de seu marido.

— "Meio-irmão" — corrigiu a viscondessa, sem se abalar.

Houve alguns segundos de silêncio, nos quais lady Luce esperou que lady Blaine

acrescentasse alguma coisa ao que dissera. Como isso não aconteceu, indagou:

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— Não tem mais nada a dizer, então?

A viscondessa olhou mais uma vez para o conde, e acrescentou, meio a

contragosto:

— Todo mundo sabia que meu sogro tinha tido filhos fora do casamento. Se está

disposta a colocar-se na lista das amantes que ele teve, senhora, pode fazê-lo. Isso em

nada afetará minha família, muito menos nossas decisões. E agora, se me permite, eu

gostaria do me juntar aos outros convidados. Vim porque me disseram que haveria um

bom jogo de faraó esta noite em sua casa e estou muito inclinada a jogar para ganhar.

— Ela se levantou, inclinou a cabeça numa leve saudação e encaminhou-se para a porta.

Lorde Luce fez menção de imitá-la, mas sua mãe o impediu:

— Um momento, William. Parece que Kit Stratton fez seu pedido de casamento a

srta. Blaine...

— Sim. Esta tarde.

— E esse pedido foi aceito...

— Claro. Mas nada será anunciado até que o visconde retorne de sua viagem,

naturalmente. Esperamos que esteja em Londres muito em breve. Lady Blaine recebeu

uma carta dele esta tarde.

— Muita sorte dela, devo dizer.

William não entendeu direito o comentário. Limitou-se a fazer uma breve mesura

diante da mãe, olhar com ironia para Marina e sair em silêncio da sala.

— Senhora... — Marina começou, tocando o braço de sua patroa.

Lady Luce ergueu o rosto muito sério para ela, e sua expressão demonstrava que

se sentia derrotada.

— Senhora, tenho uma idéia — Marina prosseguiu. — No outro dia, a senhora disse

que... bem, a senhora me fez entender que lady Blaine rouba no jogo. Tem certeza

disso?

Os velhos olhos da condessa brilharam.

— Certeza absoluta, menina.

— Então... acho que ainda podemos derrotá-los, se... se for isso o que realmente

quer.

— Claro, é o que quero, mas... explique-se, sim?

— Bem, terei de pedir-lhe que confie em mim, senhora, e que siga minhas atitudes,

mesmo que elas lhe pareçam estranhas e fora de propósito. Não sei ainda exatamente o

que terei de fazer, mas vou precisar muito da sua ajuda. Poderei explicar-lhe melhor

mais tarde, lá em cima.

A condessa levantou-se e começou a encaminhar-se para a porta. Afinal, seus

convidados poderiam começar a indagar-se por que ela ainda não aparecera. Voltou-se

antes de tocar na maçaneta.

— Vai precisar da minha ajuda? — estranhou.

— Sim, senhora. Lady Blaine jogará faraó esta noite e, com a sua ajuda, eu também

vou.

— Boa noite, senhorita!

— Sr. Stratton!—Marina sentiu-se absolutamente surpresa. — Mas... o que está

fazendo na casa de lady Luce?!

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Ele tentou pegar-lhe a mão, porém Marina escondeu-a nas pregas do vestido; não

ousava deixá-lo tocá-la agora. Não ousava sequer pensar nele. Precisava apenas manter-

se atenta ao que estava prestes a fazer.

Kit olhava-a, parecendo não entender sua atitude.

— Por que me pergunta, srta. Beaumont? Está em absoluta segurança, como sabe.

E... fui convidado.

Ela assentiu, ainda tensa.

— Sinto muito, senhor.

— Meu irmão e sua esposa também estão aqui, parece que a condessa decidiu

oferecer um armistício aos Stratton... Embora em não tenha ainda entendido por quê.

Marina imaginava que ele entendia perfeitamente, sim. Mas, como gostava de jogar

suas iscas por toda parte, para divertir-se, em especial com ela, estava fingindo

inocência.

— Bem, se me der licença, senhor... Estão a minha espera na mesa de faraó. — E

ela se voltou para seguir até lá.

— Mas que interessante! — Kit comentou, fazendo-a parar. Alcançou-a, segurou-a

pelo braço e a fez tomar o seu. — Eu também estava a caminho dessa mesma mesa.

Podemos ir juntos, então.

— Não, eu...

Mas ele estava com a mão livre sobre a dela, na dobra de seu braço, parecendo não

ter intenção de soltá-la. E, com voz baixa, acariciante, disse:

— Marina, você é irritante, sabia? E muito, muito linda também.

Ela prendeu a respiração. Vinda de um cafajeste contumaz, aquela afirmação tinha

o sabor de uma mentira. Porém Kit não a deixou protestar, continuando, firme:

— E, desta vez, minha querida, vai fazer como eu disser. Agora, vamos.

Determinado, Kit se encaminhou para a sala de jogos, levando-a consigo. Marina

não sabia como reagir. Mesmo porque o calor do corpo dele parecia estar se espalhando

pelo seu por conta daquele breve contato entre suas mãos. E ela sentia esse calor

caminhar por suas veias, aquecê-la, chegar-lhe ao coração... Nem mesmo uma bebida

forte poderia ter um efeito tão intenso, imaginou. E não conseguiria livrar-se dessa

embriaguez. Nunca mais. Afinal, Kit lhe dissera que ela era linda...

Kit sabia perfeitamente bem que não devia ter feito aquilo. E estava dizendo isso a

si mesmo enquanto segurava entre os seus os frágeis dedos de Marina. Aquela poderia

ser sua última oportunidade de segurar aquela mão tão suave. Logo, ela estaria fora de

sua vida para sempre.

Cuidaria para que Marina estivesse bem, para que nada de mal lhe acontecesse, que

vivesse com conforto, mas... longe da sua presença. Porque não conseguiria manter uma

farsa por muito tempo se Marina ainda estivesse vivendo por perto.

Amava-a. Mais do que jamais pensara ser possível. Hugo estivera certo o tempo

todo. Aliás, sempre estava, em qualquer assunto. Era sensato e prudente, qualidades

que Kit parecia não ter. Mais uma vez seu irmão tinha razão. Afinal, o grande cafajeste

de Londres, que não se importava com mulher alguma, acabara apaixonando-se pela

garota mais corajosa e exasperante, mas também mais adorável que já passara por sua

vida. No entanto não podia casar-se com ela. Se, ao menos, tudo tivesse sido diferente!,

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lastimava-se. Se Marina fosse...

Não, não adiantava nada ter tais fantasias. Era loucura. Não poderia jamais casar

com ela. Ainda mais com aquele conde sem escrúpulos acusando-o abertamente de ter

seduzido sua afilhada. Se tentasse se casar com Marina, esse casamento faria dela uma

pessoa indesejável na sociedade. Seria rotulada de rameira ou coisa ainda pior. Um

homem podia aprender a conviver com o exílio, com a humilhação pública, mas uma

mulher, em especial uma dama, não.

Assim, ele estava comprometido com Tilly Blaine. Uma garota sem cérebro que

vivia num mundo de poesia e faz-de-conta. Nunca pensara nela, nem por um segundo!

Jamais! Mas, agora, ou quando o pai dela retornasse de sua viagem, seria obrigado a

freqüentar festas com ela, dançar com ela, acompanhá-la sempre e fazer as vezes do

noivo feliz e ansioso. Seria necessário aplicar todo o seu autocontrole para conseguir

desempenhar esse papel, mas o faria. E o faria desde que Marina Beaumont estivesse

longe de sua vida, protegida, segura.

Olhou para Marina por alguns instantes. E notou que ela evitava seu olhar. Mas

podia sentir-lhe o tremor dos dedos e a ligeira cor mais viva em suas faces. Sim, ela

sabia! Devia saber.

— Oh, boa noite, Kit! — Ao som da voz conhecida, ele se voltou, mas louco de

vontade de proferir todos os impropérios de que pudesse se lembrar no momento. Seus

músculos estavam tensos, rígidos, prontos para enfrentar o conflito que logo se daria.

— Suponho que esta deva ser... a dama de companhia da condessa... não? Poderia dar-

nos licença por alguns segundos, minha cara? — A baronesa Katharina colocou sua mão,

de forma possessiva, sobre o braço de Kit.

Ele gostaria de poder sacudi-lo, para livrar-se daquele toque que agora lhe era

repugnante, dizer-lhe uma série de verdades, colocá-la no seu lugar, repreendê-la por

ter sido rude com Marina, mas era tarde demais. Marina já se afastara entre os

convidados e desaparecera no salão, sem dizer uma só palavra. Procurou detectá-la

entre os convivas e percebeu-a junto à dona da casa. As duas conversavam em voz

baixa, como conspirando.

— Ela é o melhor que consegue arranjar agora, Kit? — perguntou a baronesa, cheia

de desprezo. — Imaginei que...

— Não me interessa o que imaginou — ele a interrompeu, grosseiro. — O que

deseja? Vim para jogar cartas, não para encontrá-la.

— Bem, não posso dizer-lhe agora o que desejo — ela murmurou, tentando agir

como se não estivessem falando nada sério. E, com um breve e discreto gesto, apontou

para o marido, que conversava com um cavalheiro ao pé da escadaria. — Mais tarde,

talvez. Vou pensar em uma forma de podermos ficar a sós. — E afastou-se com

elegância. Kit voltou-se para ver melhor a alta figura do barão. Ele estava em forma,

apesar dos cabelos já grisalhos. E o uniforme que usava, de gala, em referência ao seu

posto como diplomata, ressaltava seu porte. Passou por Kit com um breve olhar. Kit,

consciente do humor daquela situação, curvou-se muito de leve, numa saudação

elegante. Sempre achara que maridos enganados mereciam um mínimo de consideração,

mesmo que fosse apenas em eventos sociais como aquele.

E, como nem a baronesa nem seu marido se encontravam por perto para incomodá-

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lo, Kit seguiu para a sala em que se jogava faraó. Seria melhor jogar um pouco e

entreter-se. Afinal, já perdera o único tesouro que lhe importava no mundo. Talvez, se

perdesse toda sua fortuna nessa noite, os Blaine ficassem menos ansiosos para tê-lo

como genro...

Sentou-se, cumprimentou as pessoas ao redor e se entregou ao jogo num abandono

descuidado.

CAPÍTULO XIX

Kit estava jogando havia mais de uma hora e perdia muito. Mas não se importava;

na verdade, sentia-se até satisfeito; mas isso foi até que lady Blaine sentou-se à mesa.

Contra ela, Kit ficou com uma vontade alucinante de ganhar.

A condessa, sentada à direita dele, mantinha-se educada e até gentil, quase como

se nunca houvesse acontecido nada de desagradável entre ambos. Era uma velha

senhora imprevisível, mas jogava muito bem. E Kit podia jurar que ela conseguia contar

as cartas tão bem quanto ele mesmo.

O lugar à esquerda de Kit estava vago já havia algum tempo. Ele até gostaria que

Marina pudesse sentar-se ali, mas sabia que ela não o faria. Seria uma atitude muito

imprópria, por demais ousada. Ela se sentava à ponta da mesa e às vezes jogava uma

rodada com mãos trêmulas. Kit imaginava que fora a condessa quem fornecera dinheiro

a Marina para que pudesse jogar de vez em quando. Mas ela estava perdendo com muita

freqüência e logo ficaria sem ter o que apostar.

A primeira rodada terminou. Lady Blaine ganhou duas sequências seguidas. E

ganhara com facilidade. Isso começou a incomodar Kit. Não percebera alguma coisa?,

indagava-se. Ouvira dizer que ela costumava roubar... mas não havia notado nada de

incomum.

Lady Blaine sorria, satisfeita, em direção à condessa. Estava sentada exatamente

a sua frente e parecia sentir prazer em encará-la.

— Parece que a banca é quem está com sorte esta noite, senhora — comentou,

puxando as fichas para si. — Vai tentar recuperar o que perdeu?

Para surpresa enorme de Kit, lady Luce levantou-se, dizendo:

— Não adianta nada ficar correndo atrás da sorte quando ela teima em fugir de

nós, não é mesmo? Mas não se preocupe, lady Blaine. Não vou deixá-la sem um oponente.

Venha cá, Marina, fique no meu lugar. Sua sorte não deve ser pior do que a minha.

Marina levantou-se, obediente, e deu a volta à mesa. Parecia hesitante e

preocupada.

— Senhora, eu não... — começou a dizer para a sua patroa.

Mas a condessa colocou as mãos nos ombros dela e forçou-a a sentar-se.

— Jogue — disse apenas. E depois lançou um olhar de puro desafio para lady

Blaine. —A srta. Beaumont tomará meu lugar e jogará com o meu dinheiro — anunciou. —

Imagino que aceite isso, não?

Lady Blaine não pareceu satisfeita, porém assentiu. Não podia agir de outra forma,

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já que era convidada em casa de lady Luce. E Kit gostou das maquinações que percebia

por trás da atitude da condessa, embora não soubesse ao certo o que ela pretendia.

Talvez, avaliou, ela não fosse a raposa odiosa que sempre a considerara.

Marina não olhou para ele. Parecia não tê-lo visto, embora fosse óbvio que sim. Kit

sabia disso, mas sua ousadia não permitiria que ela simplesmente o ignorasse. Tinha de

fazer com que Marina falasse ou fizesse algum coisa, mesmo que fosse apenas para

ouvi-la dizer que cuidasse de sua própria vida. Seria adorável ver aquele fogo nos olhos

dela mais uma vez.

Lady Blaine tinha aberto um baralho novo e o estava embaralhando, distraída. Toda

sua atenção parecia estar focalizada nos jogadores ao redor da mesa. Não havia dúvidas

de que esperava que outras pessoas se sentassem para jogar. Quanto maior o número

de jogadores, maior seria seu lucro.

Kit olhou para Marina, notando que suas mãos estavam sobre a mesa, parecendo

calmas. E Marina olhava para elas, aparentemente distraída com os próprios

pensamentos.

— Joga faraó com freqüência? — ele quis saber. Assim que o jogo recomeçasse,

seria bem mais difícil conversarem. Precisava aproveitar aquela oportunidade. Afinal,

ela poderia não ficar a seu lado por muito tempo, se continuasse a perder.

Porém Marina não ergueu os olhos para olhá-lo. Por um momento, Kit imaginou que

ela não o tivesse ouvido, ou que, pelo menos, que não tivesse intenção de responder.

Talvez a tivesse magoado pelo fato de deixá-la afastar-se quando Katharina aparecera.

No entanto a resposta veio, por fim, em tom suave:

— Raramente estive em companhia de pessoas que têm dinheiro para apostar num

jogo assim, senhor.

Do outro lado da mesa, lady Blaine tentava ouvir a conversa.

— Imagino que saiba, pelo menos, embaralhar as cartas, srta. Beaumont —

comentou ela com desdém.

Marina ergueu a cabeça ao ouvi-la. Um tanto vacilante, estendeu a mão para pegar

o baralho.

— Posso tentar, senhora, se me permite — murmurou.

Mas, em vez de depositar as cartas na mão que Marina lhe oferecia, lady Blaine

deixou-as sobre a mesa. Depois sorriu para um dos cavalheiros que, em pé, observavam

o início do jogo.

Marina ignorou tal atitude esnobe, pegou o baralho e começou a misturar as

cartas. Era óbvio que não era uma jogadora contumaz. Em dado momento, quase

derramou todas as cartas sobre a mesa.

— Gostaria de cortar, assim que a srta. Beaumont conseguir embaralhar, sr.

Stratton? — lady Blaine indagou, sempre esnobe.

Ele assentiu em silêncio. Não confiava em si mesmo para dar uma resposta educada

àquela mulher.

— Podemos nos unir a vocês nesse jogo? — perguntou Hugo, que se aproximava da

mesa com a esposa. Kit levantou-se para cumprimentá-los e notou que Emma parecia

satisfeita. Talvez fosse resultado do que havia acontecido no dia anterior. Kit estava

quase certo de que Emma o deixara a sós com Marina de propósito, embora não tivesse

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idéia do que ela tramava de fato.

— Gostaria de sentar-se aqui? — perguntou a Emma, apontando o lugar vazio a seu

lado.

— Não, obrigada. Prefiro ficar a uma das pontas, junto a Hugo. Ele conta as cartas

melhor do que eu, e você jamais me diria como apostar, Kit. Adora me ver perder. —

Vindas de qualquer outra mulher, essas palavras teriam soado como um insulto, mas não

vindas de Emma. Havia sempre um brilho de beleza e graça nela.

— Como quiser — ele aceitou, sorrindo, voltando a se sentar.

Enquanto isso, Marina continuava tentando concentrar-se em embaralhar as

cartas. Kit esperou, paciente, observando-a.

Jamais imaginara que ela pudesse ser tão desajeitada. Aquela maneira de

embaralhar não combinava com a elegância que Marina ostentava em todas as suas

outras atitudes.

— Se é que já terminou, srta. Beaumont... — disse lady Blaine, impaciente.

Marina parou com as cartas de imediato e assentiu, sem graça.

— Posso? — Kit perguntou a ela, estendendo a mão.

Sem erguer os olhos, ela lhe entregou o baralho, evitando tocar-lhe a palma da

mão.

— Obrigado — ele agradeceu, suave. Cortou o maço e empurrou-o sobre a mesa em

direção a lady Blaine.

— Ah, por fim! — exclamou ela. — Eu estava começando a achar que jamais

jogaríamos esta partida! — E olhou para os outros jogadores. Havia sete deles agora. —

Façam suas apostas, por favor — pediu. — Quando estiverem preparados, senhoras e

senhores — lady Blaine chamou para mais uma rodada. Ela parecia uma professora

primária mal-humorada chamando os alunos para uma aula enfadonha.

Emma ainda vacilou, depois depositou sua próxima aposta no 6. Ao lado de Kit,

Katharina levantou-se. Todos os cavalheiros à mesa imitaram-na, numa gentileza. E lady

Blaine ficou furiosa por sua partida estar sendo interrompida.

O sorriso que a baronesa lançou aos homens encantou-os, mas ela simplesmente

ignorou as damas.

— Acho que eu não estou com vontade de jogar faraó esta noite, afinal. Queiram

dar-me licença, sim? — disse, e se afastou com elegância.

No breve intervalo do jogo, Kit apalpou o bolso no qual ela mexera; não, não se

enganara: Katharina deixara-lhe um bilhete. Fora esperta. Se o marido indagasse

alguma coisa, todos os ali presentes diriam que ela mal falara com Kit. Katharina estava

aprendendo a ser cuidadosa, afinal. Talvez, Kit ponderou, o barão a estivesse de fato

ameaçando. Ela sempre dissera que ele tinha um temperamento explosivo.

Lady Blaine acabara de virar a carta da mesa. Outra vez, nenhum dos jogadores

ganhou. Restou apenas uma carta ser jogada. Devia ser um 3, e a banca ganharia. Kit

sentiu certa compaixão por Marina. Ela não tinha apostado muito em todos os 3, mas

teria perdido três vezes e ganho apenas uma.

Lady Blaine virou a última carta. Era um 5! Kit não podia acreditar no que via! Tinha

certeza de que não havia contado errado, mesmo tendo se distraído alguns instantes

com a baronesa. A última carta deveria ter sido um 3!

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— Eu sabia que não devia ter confiado em você para contar as cartas para mim,

Hugo — Emma reclamou, com um muxoxo, batendo de leve com o leque fechado no braço

do marido. — Você disse que todos os 5 já tinham aparecido, seu malvado!

— Mas eu estava certo disso... — Hugo explicou-se. — Devo ter cometido um

engano, então. Seja como for, se você tivesse apostado no 5 novamente, teria perdido

na última carta da banca.

— É verdade — ela lastimou.

Lady Blaine começou a juntar as cartas usadas e as fichas e o dinheiro que agora

lhe pertenciam. Como dona da banca, tinha ganho muito. Marina, então, ergueu a cabeça

e encarou a viscondessa diretamente. Naquele mesmo instante, lady Luce reapareceu na

sala e todos os cavalheiros ali presentes levantaram-se respeitosamente.

— Eu achei... — Marina começou, suave, franzindo as sobrancelhas. Parecia meio

confusa. — Sinto muito, senhora, mas... não deveria haver mais um 3 no baralho?

Lady Blaine parou de respirar. Todos os outros jogadores olharam para ela. Lady

Luce aproximou-se de Marina e colocou a mão em seu ombro para que não se levantasse.

E indagou, muito séria:

— O que foi que disse, minha filha?

Marina ergueu os olhos para a sua patroa.

— Eu... acho que devo ter me enganado — respondeu. — Não pode ser... Porém me

pareceu que apenas três cartas 3 haviam sido jogadas...

— É claro que se enganou, Marina. E não é de admirar, eu reconheço, considerando-

se o pouco que você conhece das cartas. No entanto... — Lady Luce parou, encarou a

viscondessa e prosseguiu: — Tem havido muitas trapaças no jogo de faraó ultimamente,

sobretudo em salas de jogos particulares. Algumas anfitriãs, eu sei, não mais permitirão

que esse jogo seja feito em suas casas. E eu não permitirei que paire uma suspeita

sequer sobre o jogo que se faz em minha casa! — E, estendendo a mão, imperiosamente

exigiu: — As cartas, por favor, lady Blaine!

Mas a outra permanecia imóvel, muito pálida.

— Por favor, senhora! — lady Luce insistiu, em voz mais alta. — Não gostaria que

se dissesse que é uma das donas da banca que trapaceia nesse jogo, pois não?

Kit inclinou-se em sua cadeira e olhou para o chão, a fim de que ninguém visse seu

rosto. Tinha achado Marina esperta, mas aquilo era brilhante! Mas, infelizmente,

também muito perigoso. Era, na verdade, loucura!

Sem outra saída, lady Blaine entregou o baralho nas mãos de lady Luce. Sua

expressão era tensa e seus dedos tremiam.

— Obrigada — murmurou lady Luce. E começou a colocar as cartas em cima da

mesa, voltadas para cima, para que todos pudessem vê-las. Os presentes aproximaram-

se para observar melhor. Ninguém dizia uma só palavra.

As cartas falavam por si mesmas. Havia duas a mais no baralho: um 5 e um 10.

— Esse baralho deve ter sido alterado — começou lady Blaine. — Eu não...

Lady Luce pegou as cartas e comparou-as com o resto do maço.

— Acho que está enganada — rebateu. — Estas cartas não são de um maço novo, já

estão usadas. E imagino que... — Ela ergueu uma delas em direção ao candelabro. — É.

Acho que há furos de alfinete nesta.

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Todos se entreolharam. Todos, exceto Kit e Marina. Ela estava atrás dos outros

jogadores, tentando não ser notada, e recusava-se a encontrar os olhos dele.

A condessa parecia sentir-se ultrajada.

— Não posso acreditar que a senhora ousou fazer tal coisa sendo convidada em

minha casa! — acusou, olhando para a viscondessa, que permanecia calada e pálida ao

extremo. — E lhe agradeceria se saísse daqui imediatamente! Espero que entenda, daqui

para frente, se eu não mais a reconhecer, ou a qualquer membro da sua família! E tenho

certeza de que todos os membros respeitáveis da nossa sociedade farão o mesmo!

Lady Blaine levantou-se devagar, apoiando-se no encosto de sua cadeira.

A culpa estava estampada em seu rosto. Mesmo assim, ainda protestou:

— Deve ter havido algum engano! Não consigo pensar em outra explicação possível!

Pode acreditar em mim ou não, senhora, mas os meus amigos mais chegados certamente

me apoiarão. — E encaminhou-se para a porta, endireitando a espinha, altiva, deixando

para trás todo o dinheiro e as fichas que havia ganho por meio de seu engodo.

A condessa, então, olhou para seus outros convidados e desculpou-se:

— Nem posso lhes dizer quanto sinto pelo ocorrido... — Seu tom era uma estranha

mistura de arrependimento e triunfo.

Kit, pensativo, apenas analisava se seria possível que lady Luce soubesse o tempo

todo a respeito do mau hábito de lady Blaine trapacear no jogo. Talvez... E talvez

tivesse agido com a ajuda de... Marina! Tinha de ser! Um 3 havia sido retirado do

baralho! E Marina jogara apenas com o 3 desde o início das partidas!

Havia apenas duas alternativas possíveis: ou Marina havia preparado aquela

situação para expor lady Blaine, ou ela mesma retirara a carta que estava faltando para

poder acusá-la! Em ambas as opções, sua atitude fora bastante ousada. E era bem típico

da sua Marina ser assim, arrojada, corajosa! No entanto não se sentia feliz pelo que ela

fizera. Muito ao contrário. Lady Luce meneou a cabeça, mostrando-se entristecida.

— Eu já tinha ouvido rumores — comentou. — E, é claro, sabia que ela ganhava

freqüentemente, demais até, quando tinha a banca. Mas jamais pude imaginar que... — E

suspirou. — Bem, aconteceu. — Seguiu até o local onde estavam as fichas e o dinheiro e

indagou a todos: — O que devo fazer com isto? Imagino que queriam que o que lhes

pertence volte aos seus bolsos.

— Não, senhora — disse Hugo com firmeza. — Perdemos no jogo. E poderíamos ter

perdido de qualquer forma. Talvez tenha alguma instituição de caridade que a senhora

esteja acostumada a prestar ajuda. Um hospital ou um orfanato... Ficaríamos felizes se

esse dinheiro pudesse favorecer alguém que realmente precisa.

— Tenho uma idéia ainda melhor! — Kit levantou-se. Tentava esconder seus

sentimentos mostrando-se alegre. — Por que não doamos esse dinheiro à campanha anti-

escravagista? Afinal, o marido de lady Blaine retornará a Londres em breve e ele está

voltando exatamente de suas fazendas nas quais utiliza trabalho escravo. Imagino que

ele vá apreciar nossa atitude...

Todos riram da ironia de suas palavras. Marina olhou-o, por fim, mas não parecia

contente.

— Esplêndido! — apoiou a condessa, ainda rindo. — E vamos esperar para ver o que

esses jornais sensacionalistas vão dizer a respeito!

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Kit percebeu o olhar furtivo, mas cheio de significados que lady Luce lançou a

Marina. Havia triunfo naqueles olhos, e suas suspeitas confirmaram-se. Ali ficara

provado que a viscondessa era, na verdade, uma ladra em mesas de jogo. E Marina

arriscara tudo para que ela fosse publicamente exposta.

— Minha querida, você foi sensacional! — elogiou a condessa, em sussurros, assim

que se afastaram dos demais.

Marina negou de leve com cabeça. Tinha recolocado o 3 para garantir-se, mas não o

7. Também não colocara a carta marcada. Lady Blaine o fizera depois que o maço havia

sido embaralhado. E ela ainda não entendia por que a mulher se arriscara de forma tão

estúpida. Podia mexer nas cartas com tamanha habilidade que os outros jogadores nem

teriam chance de ganhar, a não ser quando ela permitisse. Sem as cartas que estavam

faltando, seu golpe jamais seria descoberto. Mas uma carta teria sido suficiente para

enganar a todos. Marina não precisava nem ter agido...

— Você deve ter um modo especial de lidar com as cartas, minha querida —

continuava a condessa, satisfeita. — Ninguém suspeitou de nada! E aquela mulher jamais

será capaz de andar com a cabeça erguida novamente!

— Kit Stratton sabe — Marina anunciou. O sorriso da condessa desapareceu.

— Sabe? Como assim? Como pode saber?! Ele nada disse quando você estava

embaralhando as cartas, não é?

— Não, senhora. Mas ele sabe. Pude ver em seus olhos que sabe. — Ela jamais

esqueceria aquele olhar, uma mistura de espanto e desagrado. Kit sabia que ela

trapaceara, e Marina não conseguiria encará-lo outra vez.

Lady Luce deu de ombros.

— Que seja — comentou. — O fato é que ele não vai dizer nada a ninguém sobre o

ocorrido, mesmo se suspeitar de você. Afinal, por que o faria, não é mesmo? A culpa de

lady Blaine estava óbvia a todos que se encontravam ali. E a desgraça em que ela caiu vai

desobrigá-lo de casar-se com aquela garota horrorosa. Kit pode ser um cafajeste, mas

ainda é um cavalheiro. E nenhum cavalheiro manteria seu pedido de casamento para com

a filha de uma ladra. Ele deveria abençoar a sua habilidade com as cartas, minha filha.

— Mas e o que acontecerá à srta. Blaine? Ela é inocente em tudo isso! Vai ficar

arruinada se ele a rejeitar publicamente!

— Não, minha cara, não vai, não. — A condessa batia amigavelmente no braço de

Marina. — O casamento nem chegou a ser anunciado, lembra-se? E, além disso, está se

esquecendo de que Tilly Blaine mentiu para poder enredar Kit? Ela sabe muito bem que

nunca esteve a sós com ele. E disse à mãe que esteve.

— Mas ela...

— Não, Marina. Não tente defender a moça. Mesmo se a primeira reação dela foi

mal entendida, e eu duvido disso, Tilly teve dois dias inteiros para dizer a verdade, e

não o fez. Assim, ela acabou provando que é, de fato, uma Blaine, e, dessa forma, sem

caráter.

Marina não tentou mais argumentar. A condessa tinha razão. Lady Blaine e lorde

Luce haviam conspirado juntos a fim de fazer Kit cair numa armadilha, e Tilly nada

fizera para detê-los. Seus motivos não interessavam. Fora um plano sórdido, muito pior

do que qualquer coisa que Marina tivesse feito naquela noite. Tilly tinha sorte pelo fato

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de o casamento não ter sido anunciado ainda. E sua desgraça viria apenas pelo que sua

mãe fizera.

— Acho que vou me recolher agora, senhora, se me permitir — Marina pediu.

— Mas é claro que não! — reagiu a condessa. — O que está pensando?! Deve ficar e

fazer com que a vejam aproveitando esta recepção! Vai até jogar cartas mais um pouco!

— Não, acho que não posso...

— Bobagem! É claro que pode! Não precisa jogar faraó, é claro, mas uma coisa mais

leve. Porém cuide para não parecer esperta demais, ouviu?

Isso não seria difícil, Marina avaliou consigo mesma; já que seu cérebro estava

cheio de pensamentos atravessados. A confusão que havia em sua cabeça provavelmente

a faria esquecer todos os truques que havia aprendido com as cartas.

—Venha, vamos encontrar um adversário para você — convidou lady Luce, tomando-

a pelo braço. E levou-a diretamente a sir Hugo e lady Stratton. — Estou tentando

persuadir esta garota a não se aborrecer por demais com o incidente de há pouco. A

pobrezinha não consegue tirar o ocorrido da cabeça! O que precisa é ocupar seus

pensamentos com um outro joguinho mais suave. O senhor joga alguma outra coisa, sir

Hugo?

— Sim, jogo.

— Ele joga, mas me prometeu levar-me para casa daqui a pouco, senhora —

interferiu lady Stratton, com doçura. — Entretanto meu cunhado ficará feliz em jogar

com a srta. Beaumont, tenho certeza! — Ela se voltou e acenou para Kit, que estava

conversando com dois senhores, a pouca distância.

O coração de Marina disparou. Não queria jogar com ele! Kit inclinou-se, em sua

costumeira elegância, diante do chamado de Emma e aproximou-se. Quando ela lhe

explicou o que lhe era pedido, sua expressão permaneceu indecifrável. Então voltou-se

para Marina e ofereceu-lhe o braço.

— Eu terei grande prazer em jogar com a senhorita.

Lady Luce sorriu, encantada. Por dentro, porém, Marina estava extremamente

tensa. Não acreditava que aquilo pudesse estar lhe acontecendo. Mas estava...

Dentro de instantes, encontravam-se os dois sentados a uma pequena mesa e Kit

estava abrindo um baralho novo.

— Deve entender, senhorita — disse ele, educado —, por que prefiro eu mesmo

embaralhar estas cartas.

Estavam jogando, em total silêncio, por quase meia hora. Marina tinha perdido

praticamente todas as rodadas. Seus descartes haviam sido fracos e sua mão, mais

ainda. Kit ainda estava aborrecido com o que ela fizera. E temia que, se Marina lhe

dirigisse a palavra, pudesse perder o controle e responder-lhe mal. Portanto tentava

manter-se frio, distante. Mais do que tudo, queria tomá-la nos braços e dar-lhe umas

boas sacudidelas. Afinal, ela armara uma situação, trapaceando para poder pegar uma

ladra! O que a levara a fazer algo tão arriscado e perigoso?!

Cerrou os dentes e descartou novamente. E ela não pegou a carta, embora lhe

servisse. Foi a gota d'água.

— Se quer jogar direito — Kit protestou —, deve aprender as regras! Tem que

pegar desta vez! Pois eu sei muito bem que precisa dessa carta!

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As mãos de Marina tremiam. E encarou-o com aqueles grandes olhos que o

desarmavam sem nem mesmo saber. Eles estavam cheios de culpa e arrependimento.

— Marina — disse Kit, sentindo sua irritação passar como por milagre —, minha

vontade é dar-lhe uma surra, sabia? Como pôde fazer aquilo? Você...

Ela deixou as cartas sobre a mesa.

— O que eu faço, senhor, é problema meu — respondeu. — E já que sou uma

adversária tão fraca para o seu gosto, não o incomodarei mais. Quanto lhe devo?

A culpa se fora e agora havia indignação em Marina. Era óbvio que pensava que Kit

a reprovava pelo que fizera. E ele, de fato, não gostara daquilo, porém só porque fora

arriscado demais. Queria apenas protegê-la, mas todas as vezes em que tentava

aproximar-se, ela se empertigava como um porco-espinho!

— Não me deve nada — respondeu, sério. Depois, como se tivesse pensado melhor,

acrescentou: — Não fizemos apostas com regras no começo do jogo, mas... já que

declara sua derrota, imagino que eu deva exigir algum tipo de pagamento. Vejamos...

permitiria que eu a levasse a um passeio amanhã pela manhã?

— Não — a palavra foi dita em tom baixo, porém firme o suficiente para fazê-lo

entender que era definitiva.

— Posso saber por que não?

Marina apoiou as mãos na beirada da mesa e encarou-o. Respirou fundo e

respondeu, em tom claro:

— Parece esquecer-se de quem eu sou, senhor! Sou apenas uma dama de

companhia, uma criada. Sei muito bem qual é meu lugar e ele não é dentro da carruagem

de um cavalheiro!

Assim dizendo, Marina levantou-se e afastou-se em direção à porta. Mesmo em sua

derrota, ela ainda se comportava como nobre.

Não, seu lugar não é na minha carruagem, Kit pensou ao recolher as cartas. Seu

lugar é na minha cama. E é onde vai estar, minha doce Marina, mesmo que eu tenha de

arrastá-la para lá.

CAPÍTULO XX

— Achei ter ouvido uma carruagem há quase meia hora. Quem era? — lady Luce

perguntou a Marina.

— Era lady Stratton, senhora.

A condessa pareceu estranhar:

— E por que ela não entrou?

— Bem, ela... ela não estava na carruagem...

Lady Luce nada disse. Apenas encarou Marina e esperou pela explicação:

— É que ela... ela enviou um recado. Na verdade, foi um convite para que eu fosse

até a sua casa, mas... eu não aceitei.

— O quê?! Você não aceitou?! Mas, menina, o que...

— Desculpe-me, senhora, mas eu não posso tornar-me íntima de lady Stratton. Ela

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é uma dama tão elegante e nobre como a senhora e... eu não sou ninguém.

— Bobagem! Eu já devia ter imaginado que se tratava disso! Na verdade, depois de

ontem à noite, lady Stratton deve ter ficado muito grata a você por...

— Mas ela nem sabe sobre o que eu fiz no jogo.

— E você, certamente, não é uma ninguém, como disse há pouco! É uma Blaine. — A

condessa se interrompeu e, depois de alguns segundos, riu. — Bem, talvez não... Nem é

bom falarmos de possíveis ligações suas com aquela família. Afinal, os boatos já estão

se espalhando, você sabe. Lady Blaine pode ter mencionado os amigos dela ontem,

quando se defendia, mas aposto que todos eles vão abandoná-la agora. E uma outra

edição daquele periódico dos infernos já deve estar sendo preparada, é claro. Um

jornaleco como aquele não perderia um escândalo como esse.

— Acho que não, senhora. Nem houve tempo para que alguém de lá soubesse...

— Há sempre tempo, minha cara, se alguém quer usá-lo em seu próprio interesse.

Marina respirou fundo. O episódio logo estaria na boca de toda a sociedade

londrina e, ao que parecia, a condessa estava conspirando para que assim fosse. Marina

sentia que precisava escapar de tudo aquilo. Não conseguia mais suportar tanta intriga.

Kit fora salvo, mas à custa de sua paz de espírito. Queria muito vê-lo, porém sabia que

não deveria nunca mais se encontrar com ele. Kit, o maior cafajeste de Londres,

permaneceria ali e ela teria de partir quanto antes.

Depois de breves batidas na porta, Tibbs apareceu, sóbrio como sempre,

anunciando:

— Senhora, lady Stratton encontra-se em sua carruagem, diante da casa. Ela lhe

apresenta seus cumprimentos, e também à srta. Beaumont, e pede-lhe que permita que

a senhorita possa acompanhá-la em seu passeio desta tarde.

— Não — Marina sussurrou para a sua patroa.

— Mas é claro que sim! — exclamou lady Luce, ignorando-a. — Vá buscar suas luvas,

seu casaco e seu chapéu, minha cara. E não se demore, porque lady Stratton não vai

querer que seus cavalos fiquem aí parados por muito tempo...

— Parece pálida, minha querida — lady Stratton notou. — Não se sente bem?

— Acho que estou um pouco cansada, nada mais, senhora — Marina mentiu. — A

recepção de lady Luce terminou um tanto tarde.

— E você, é claro, ficou com ela até que todos os convidados fossem embora. O

papel de dama de companhia, realmente, não é fácil. E duvido que lady Luce seja uma

patroa pouco exigente.

— Está enganada, senhora. A condessa tem sido muito boa para mim! E... e...

Lady Stratton deu algumas batidinhas amigáveis nas mãos de Marina.

— Perdoe-me por ter falado assim — murmurou, sorrindo. — Foi indelicado de

minha parte. Ainda mais porque a condessa tem sido, de fato, muito generosa ao deixá-

la sair em minha companhia. O que a fez mudar de idéia esta tarde?

Marina não sabia o que dizer.

— Bem... não foi lady Luce quem se negou a me deixar sair antes, senhora — teve

de confessar. — Eu achei que ela fosse precisar de mim e acabei me precipitando e

alegando que não poderia ir visitá-la.

— Oh, foi muito louvável de sua parte, muito leal para com a sua patroa... Bem, mas

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agora se encontra aqui, e não acha que está um belo dia para um passeio no parque?

Marina sorriu e assentiu, olhando para fora, pela janela do veículo.

— Devo dizer-lhe — prosseguiu lady Stratton — que o escândalo de ontem à noite

acabou sendo lucrativo para nós. Kit havia proposto casamento à filha mais velha da

viscondessa, sem o consentimento da família, é claro, mas agora ele está livre do

compromisso. Ainda bem, porque aquela família... Ninguém vai querer receber nenhum

de seus membros de agora em diante, você sabe. Diga-me, lorde Luce não é padrinho da

srta. Blaine?

— Sim, senhora, ele é.

— Então... você deve saber sobre os métodos que lorde Luce empregou para...

digamos... montar essa armadilha para Kit. Tenho grande respeito pela condessa, srta.

Beaumont, porém acho muito difícil considerar o filho dela uma boa pessoa. Ele, afinal,

não se comportou como um cavalheiro.

Não havia nada que Marina pudesse dizer. Tudo o que lady Stratton falara era

verdade. E ela continuou:

— Hugo me disse que os Blaine irão viajar para o exterior em breve, assim que o

visconde voltar, provavelmente. Imagino que, ao saber de tudo que aconteceu em sua

ausência, ele vá ficar muito chocado.

Marina assentiu, sentindo-se culpada mais uma vez. Não se preocupara com o

visconde e com o que ele poderia pensar ou sofrer por tudo aquilo. Preocupara-se

apenas com Kit. E agora considerava-se má, muito má.

— Não posso dizer que ele se preocupe muito, porém — continuou lady Stratton. —

Lorde Blaine é um homem de reputação reprovável. Como seu pai era. Sua fortuna vem

de suas fazendas de cana-de-açúcar e parece que ele não se importa muito em ser

honesto para fazê-las crescer e obter mais e mais lucros com seus negócios. Ouvi dizer

coisas que... bem, que são, no mínimo, perturbadoras a seu respeito. Kit acha que... bem,

mas não deve estar interessada nesse assunto. Diga-me, gostou da festa de ontem?

Depois que o jogo de faraó acabou, quero dizer.

— Eu., nem me lembro direito, senhora. Foi tudo tão... intenso. Se eu não tivesse

mencionado a falta daquele 3...

— Se não tivesse mencionado a falta daquela carta, minha querida, lady Blaine não

teria sido desmascarada e não saberíamos quem de fato ela é. E eu ainda estaria

contemplando a possibilidade de ter Tilly Blaine como cunhada, o que seria, na verdade,

um pesadelo. Nunca vai saber quanto lhe sou grata! E, para Tilly Blaine, acho que o fato

não repercutiu tão mal assim, afinal. Ela é a única pessoa daquela família que parece não

se importar muito com o fato de a mãe ser uma trapaceira no jogo. Pelo que parece,

está até feliz por saber que vai viajar pela Europa e nem se preocupa com a desgraça de

lady Blaine. É uma garota muito estranha! Sua cabeça está tão cheia de poesia que não

há espaço para o bom senso.

Já era relativamente tarde quando Marina retornou à casa da condessa. Teria de

se apressar para trocar de roupa e ficar pronta para o jantar, imaginou. Lady Luce

detestava falta de pontualidade.

Marina subiu correndo para seu quarto, tirou o vestido e começou a lavar o rosto;

não havia tempo para muito mais. Olhou-se no espelho e viu que seus cabelos estavam

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quase caindo dos grampos. Teria de dar um jeito neles. Quando ia retirar os mais soltos,

ouviu:

— Posso ajudá-la? — A criada particular de lady Luce entrara sem ser percebida.

— Oh, Gibson — Marina murmurou, agradecida. A velha criada sempre sabia como

ajeitar bem um penteado. — Quanta gentileza! Estou atrasada, sabe? Acha que pode

dar um jeito nos meus cabelos?

— Não precisa se preocupar, senhorita. Foi lady Luce quem me mandou ajudá-la a

se arrumar, já que estava se atrasando em companhia de lady Stratton. Sente-se aqui.

Não vai levar mais do que alguns minutos.

Marina sentou-se na cadeira diante do espelho e ficou observando os movimentos

das mãos hábeis da sra. Gibson, que transformavam seus cabelos soltos em um novo e

elegante penteado. E, quando ela já terminava, comentou:

— Gibson, você opera maravilhas, sabia?

A criada sorriu, lisonjeada.

— Ora, deixe disso, senhorita. Vamos, venha escolher um vestido. O que acha

daquele de seda verde?

— Não sei... Diga-me, Gibson, está sabendo de algum plano diferente de lady Luce

para esta noite? Ela pretende sair e quer a minha companhia?

— Acredito que sim. Mas ela não me disse nada especificamente. No entanto está

usando um de seus melhores vestidos.

— Nesse caso, é melhor que eu use o meu vestido verde mesmo. E as sandálias que

combinam com ele também.

Quando o sinete que anunciava o jantar soou, Marina descia as escadas

calmamente, como se tivesse todo o tempo do mundo. A condessa, porém, não se

deixava enganar. Olhou para Marina de cima a baixo e assentiu, aprovando o que via.

— Devo dizer que esse vestido é de fato muito bonito — elogiou. — Talvez seja um

tanto decotado demais para o que o pudor exige, mas... não é simplório e fútil como os

vestidos que as moças andam usando atualmente. — Ela seguiu diante de Marina até a

sala de jantar, onde se sentou à mesa. — Pena você não poder mostrar esta noite quanto

está bem vestida.

Marina nada disse, entendendo que não deveria sair com sua patroa. Sentiu-se,

porém, um tanto decepcionada, embora sabendo que não deveria, em sua posição,

esperar ter programa para todas as noites.

— Vou a um jogo de cartas — anunciou a condessa. — Mas vou sozinha. Depois do

que aconteceu ontem à noite, você atrairia muita atenção sobre si.

Marina tinha de admitir que ela estava com a razão. A condessa, então, passou a

falar incessantemente durante todo o jantar, fato que Marina apreciou, já que ela

mesma não estava com vontade de conversar. Era bom simplesmente ouvir. E sua mente

insistia em projetar-lhe imagens de Kit Stratton, muito embora tentasse evitá-las a

todo custo. Ele não iria mais se casar com Tilly Blaine.

Mas isso não era da sua conta, repreendia-se. Não tinha nada a ver com a vida de

Kit Stratton. Não mais. Suas atitudes impensadas já haviam causado uma série de

problemas, porém, graças as suas habilidades com as cartas, que aprendera com o pai e

o tio, além de um pouco de sorte também, conseguira desfazer todo o mal que causara.

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Pelo menos, para Kit. Quanto à família Blaine... teria de aprender a conviver com o que

fizera. As palavras e as revelações de lady Stratton, na carruagem, sugeriam que toda a

desgraça que acabara caindo sobre os Blaine era bem merecida; e parecia até que Tilly

tinha se recuperado de sua paixão por Kit. Estranho... muito depressa, Marina avaliou.

Talvez em sua viagem pela Europa ela acabasse apaixonada loucamente por algum poeta

italiano, divagou.

— Se está pronta, Marina... — disse a condessa, tomando-a de surpresa e já se

levantando para deixar a mesa.

Marina levantou-se também, confusa.

— Desculpe-me, senhora, mas... como disse? Eu acho que estava distraída...

Mas a condessa apenas ergueu as sobrancelhas e se encaminhou para a sua sala

particular. Ao atingir o meio da escada, porém, Tibbs apareceu no hall e, fazendo uma

mesura, anunciou:

— Com licença, senhora, esta carta acaba de chegar para a senhora.

Lady Luce olhou para o mordomo.

— Ora, traga-a aqui em cima, homem! — ordenou. — Não vou poder ler nessa

distância, não é mesmo?

Marina abafou um sorriso, ao que parecia, lady Luce estava em forma novamente.

A carta era de lady Méchante e fez com que a condessa desse uma gargalhada.

— Oh, não me olhe desse jeito, Marina! — disse ela. — O que esta carta diz não

tem preço! Aposto que vai gostar! — E, sentando-se em sua poltrona costumeira, olhou

para a garrafa de bebida que ficava na mesinha próxima.

Marina já aprendera a reconhecer seus sinais. Assim, serviu um cálice e colocou-o

ao lado de sua patroa e depois sentou-se em sua cadeira, diante dela.

— Muito bem, minha querida — murmurou a condessa, bebericando seu licor.

Depois abriu mais uma vez a carta que acabara de receber e leu novamente,

comentando: — Excelente! Sim, excelente! Parece que Kit Stratton deixará de ser o

mais belo cafajeste de Londres por muito tempo.

— Ele... ele também vai viajar para fora do país, senhora? — Marina perguntou,

com o coração nas mãos. Não entendia, pois, afinal, lady Stratton nem tocara nesse

assunto.

—Não, não. Não se trata de algo assim tão simples, minha cara. — Lady Luce

bebericou um pouco mais de seu licor, parecendo sentir um prazer enorme tanto por ele

quanto pelo que lera na carta. — Sabe, posso tê-la perdoado por haver interferido em

minha dívida para com o jovem Stratton, mas, com certeza, não perdoei a ele pelo que

me fez quando me devolveu minha garantia de pagamento. Afinal, Kit é um grande

arrogante! E depois da forma como ele tratou você, imagino que vá gostar de vê-lo um

pouquinho... atrapalhado.

Marina engoliu em seco, temendo pelo que ouviria.

— O que... o que quer dizer com isso, senhora? — perguntou, já aflita.

— A doce vingança ainda me parece ser a mesma, querida Marina. Parece que o

marido da baronesa não gostou muito de ter sido feito de tolo... E deu um jeito, com a

ajuda de Méchante, não tenho dúvidas, para que aquele rostinho bonito de Kit seja,

digamos, um pouquinho alterado.

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Marina arregalou os olhos assustada e levantou-se.

— Oh, meu Deus! Precisa detê-lo, senhora! Precisa fazer alguma coisa!

A condessa olhou-a, calma.

— Por quê? Ninguém vai matar Kit Stratton, menina! Pelo menos, não em Green

Park. Acho que será apenas uma pequena surra, ou algo assim, alguns cortes, arranhões,

hematomas, nada demais. Kit vai se recuperar, eu lhe garanto.

— Mas, senhora, não pode permitir que...

— Pare de se preocupar com tão pouco, Marina! Você tem o coração mole demais,

sabia?

A condessa, parecendo aborrecida, levantou-se, chamou a criada e saiu em seguida.

Sozinha, Marina pensava no que fazer. Não havia tempo a perder, nem mesmo para

trocar de roupa. Não poderia mandar um recado, um aviso... demoraria demais! O ataque

que Kit sofreria poderia acontecer a qualquer momento! Além do mais, não fazia a

menor idéia de onde poderia encontrá-lo naquela noite. Talvez, como dissera lady Luce,

em Green Park.

— Você não vai até lá sozinho, Kit — Hugo avisou.

Kit ergueu as sobrancelhas, percebendo que o irmão estava deixando sua teimosia

falar mais alto outra vez.

— Aceita minha companhia, então? — insistiu Hugo.

— Bem, se não há outro jeito e se insiste tanto...

— Ótimo. Porque esse pode ser um encontro clandestino com a sua baronesa, como

ela mesma disse no bilhete, mas eu duvido. Insistiu para que você fosse sozinho, e não

gosto nada disso, portanto serei seu acompanhante. Vou como cocheiro.

Kit teve de rir. Sentiu a mão pesada do irmão sobre seu ombro, enquanto ele dizia:

— Saiba que sei dirigir uma carruagem tão bem quanto você, e melhor do que o meu

cocheiro também. Ninguém vai perceber que sou eu, ainda mais se me vestir com uma

capa escura.

Kit assentiu. Hugo, mais uma vez, tinha razão.

— Também vou me vestir de preto — disse. — De que adianta fazer de mim mesmo

um alvo fácil para a pistola do barão, certo? Se for isso que ele tem em mente. Acha

que vai tentar me matar, não acha, Hugo?

— É possível. Precisamos estar preparados para qualquer coisa. A não ser que você

desista de comparecer a esse encontro. Porque podemos ir para o clube, nos

divertirmos...

— Sabe muito bem que isso é impossível, Hugo. Precisamos descobrir o que está

acontecendo. Se eu não for hoje, vão arranjar uma outra oportunidade para que caia

numa emboscada. E, da próxima vez, eu poderei não estar de sobreaviso e não ter meu

valoroso cocheiro para me defender também!

Hugo meneou a cabeça, rindo.

— Seu cocheiro e a pistola que ele vai levar consigo — acrescentou às palavras do

irmão. — Venho pegá-lo dentro de uma hora. Coloque um casaco escuro, Kit. E... escolha

um bem elegante, está bem? Afinal, se eu tiver que trazer o corpo de meu irmão para

casa, que ao menos ele esteja bem vestido...

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Na escuridão, as sombras provocavam impressões de todo tipo. Green Park parecia

estar vivo, movimentado, mas poderia ser apenas uma ilusão criada pela brisa que

balançava árvores e arbustos.

Quando Hugo desceu da boleia, Kit já encontrara um garoto que prometera cuidar

dos cavalos em troca de algumas moedas. Pelo menos, um deles voltaria para pagá-lo...

— Não vejo nenhum movimento — Hugo comentou em voz baixa. — Mesmo de cima

da boleia, não consegui ver nada de diferente. Se há alguém por aqui, deve ter se

escondido muito bem. Está com a sua pistola?

Kit tocou o bolso do casaco.

— Minha pistola e minha bengala — respondeu. — No bilhete, Katharina pedia que

eu caminhasse pela alameda central. Ela viria encontrar-se comigo quando tivesse

certeza de que eu estava sozinho.

— Ela disse qual entrada você deveria tomar?

— Não. Por quê?

— Porque então temos uma vantagem. Você vai começar a caminhar daqui e eu vou

pelo outro lado. Assim, não saberão qual de nós dois é você.

— Não, Hugo. Esta briga é minha. Não quero que fique na linha de tiro do barão, se

for esse o caso. Vou sozinho, como me foi pedido. Pode vir em meu auxílio se eu

precisar. Saberá sem demora se estou correndo perigo, eu lhe garanto.

Hugo não parecia convencido.

— Estou falando sério — Kit insistiu. — Quero ter certeza de que vai voltar inteiro

para Emma.

— Está bem, mas, pelo menos, dê-me algum tempo para que eu chegue ao outro

lado. Se eu entrar pelos arbustos, vou ter mais chance de chegar até você a tempo, se

for necessário.

Kit reconhecia a razão nas palavras do irmão, mas ainda vacilava. Se alguma coisa

acontecesse a ele, haveria uma viúva e três crianças órfãs, enquanto ele, Kit, não tinha

ninguém à sua espera em casa... Afinal, Marina sempre o rejeitara.

— Kit, o que me diz? Não vai objetar a isso, vai? — Hugo insistia.

— Está bem, então. Vou lhe dar dois minutos e depois começo a caminhar por aqui.

Fique com Deus, meu irmão.

Hugo tomou-lhe a mão direita e, com a outra, segurou-lhe o ombro.

— Temos a vantagem da surpresa, Kit, não se esqueça disso. Fique você também

com Deus.

E desapareceu entre os arbustos do parque, seguindo para a outra extremidade.

Kit esperou, contando o tempo. Depois dos dois minutos combinados, colocou a mão no

bolso, segurou a pistola e começou a caminhar pela alameda principal, balançando a

bengala casualmente.

Hugo não tinha a menor intenção de se esconder entre os arbustos e esperar que

Kit fosse atacado, talvez até morto. Segurou o chapéu e correu até a outra

extremidade do parque, onde a alameda se encontrava com a rua. Lá, parou e respirou

fundo; depois recolocou o chapéu, quebrando-o um pouco do lado esquerdo, como Kit

costumava usar o seu. Naquela escuridão, ninguém conseguiria distingui-los.

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Tirou a pistola do bolso e armou-a. E, com a mão livre ao lado do corpo, a arma

acabava encoberta pela capa que ele vestia.

Era exatamente como o início de um duelo, avaliou. E já tinha andado um bom

pedaço quando ouviu um ruído entre os arbustos, a seu lado esquerdo. Olhou

rapidamente, tentando visualizar alguma coisa. Então voltou os olhos para a alameda,

por onde Kit deveria aparecer em segundos.

Continuou andando e, de repente, uma voz masculina gritou:

— Lá está Stratton!

A voz viera dos arbustos, e Hugo abaixou-se de imediato. Mas não houve disparo

algum. Três homens corpulentos saíram para a alameda e bloquearam-lhe o caminho. E

traziam bastões em suas mãos.

— Ah, então vai ser isso — Hugo murmurou. Não trazia uma bengala, como Kit...

Com o canto dos olhos, percebeu algo colorido entre as árvores. E deu-se conta de

que havia uma mulher ali.

— Atrás de você! — gritou uma voz feminina, que veio de outra direção.

Hugo voltou-se e teve tempo apenas para se abaixar novamente. O bastão de um

quarto homem passou rente a sua cabeça. Um grito de mulher ecoou na noite, e depois

outro, em outra voz.

Hugo não lhes deu atenção e nem podia. A força do golpe que deu para se defender

fez o sujeito que o atacara dobrar-se em dois com um gemido. Hugo, então, atingiu-o

com uma coronhada, mas, na força de seu movimento, a arma caiu-lhe da mão. E ele teve

de se voltar, rápido, para enfrentar os outros três, desarmado.

Kit acabara de aparecer e estava usando sua bengala como uma espada contra os

homens. Apenas um deles agora encarava Hugo.

Kit sorriu para o irmão e exclamou:

— Parece que estamos em pé de igualdade agora, cavalheiros! Três contra dois...

Um dos sujeitos olhou rapidamente para trás, talvez preocupado com alguma coisa.

Foi um grande erro de sua parte.

Usando a bengala, Kit golpeou-o com toda sua força, e, com um grito de dor, o

homem largou seu bastão, gemendo:

— Droga, você quebrou o meu braço!

— É provável — Kit respondeu, voltando-se para o outro atacante e indagando: —

Vamos ver do que você é feito, hein?

O sujeito hesitava, temeroso. Kit deu um passo atrás e olhou para o irmão. Então

se preparou para dar mais um golpe com a bengala.

Uma mulher gritou novamente, e ele olhou para tentar ver do que se tratava.

O homem que Hugo havia golpeado primeiro já estava em pé outra vez e tinha uma

faca contra a garganta de uma mulher. Era Marina!

Kit sentiu uma sensação horrível subir-lhe pelo corpo, uma mistura de raiva e dor

que o cegava. E, com um golpe terrível, enfiou parte de sua bengala no ventre do

sujeito.

— Cuidado, Kit — Hugo sussurrou.

A voz do irmão pareceu trazê-lo de volta à realidade. Dois homens se encontravam

fora de combate e Hugo estava a ponto de acabar com o terceiro. Mas o quarto ainda

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segurava Marina.

— Vamos! — gritou ele. — Ou eu acabo com o pescoço dela! Juro que acabo!

Kit sabia que não podia mais contar com a sorte nem com o desespero do sujeito.

Largou a bengala e deu dois passos, enfiando a mão no bolso. Então ameaçou:

— Solte-a ou eu mato você.

Mas o homem não se moveu. Sua mão, porém, fez um breve movimento, brilhando à

luz da lua. Kit gemeu por entre os dentes.

— Solte-a — repetiu, ameaçador, tirando a pistola do bolso. — Mesmo desta

distância, posso enfiar uma bala na sua cabeça antes que saiba o que o atingiu. Vamos,

solte-a!

Hugo tinha o outro sujeito sob a mira de sua arma também e avisou:

— Não seja tolo. Meu irmão atira como ninguém! Vai matá-lo se não obedecer.

O homem parecia indeciso. Então, o silêncio tenso que se formou foi quebrado por

outro grito.

CAPÍTULO XXI

Marina ouviu o grito e esforçava-se por voltar-se na direção de onde viera. Mas

estava muito bem segura nos braços fortes daquele estranho. Pelo canto dos olhos,

percebeu de relance a presença de uma mulher entre os arbustos, tentando livrar-se de

um homem. Ele parecia segurá-la brutalmente pelos cabelos.

— Ora, chega disso, mocinha! — rosnou o sujeito que segurava Marina, puxando a

ponta da faca mais para junto de seu pescoço. — Mais um movimento e furo a sua pele!

Ela imobilizou-se de pronto. Não sentia medo, mesmo sabendo que poderia morrer

ali. Era estranho, mas todos os seus sentidos pareciam estar alterados em virtude do

perigo. Podia sentir o cheiro ácido de suor que vinha do homem que a prendia, seu hálito

fétido, mistura de bebida, fumo e dentes apodrecidos. Podia também sentir o aroma

mais suave que vinha das árvores em que as folhas novas estavam surgindo. Podia

também ouvir a respiração acelerada de seu captor, quente, por trás de sua nuca. E a

faca que ele segurava contra seu pescoço tinha a fria promessa da morte em sua lâmina

de aço.

A poucos metros de distância, Marina podia ver Kit, alto, atlético, recortado

contra a escuridão, preparando-se para atirar. Ele avançou mais um passo, ameaçador.

— Já chega! — gritou o sujeito que a segurava. — Mais um passo e esta garota

estará morta!

Kit parou e, muito lentamente, ergueu a mão que empunhava a pistola.

Marina sentiu as mãos do homem apertarem-na mais. E, como seu corpo estivesse

na frente do dele, servindo-lhe de escudo, não havia como Kit mirar um alvo. Ela

prendeu a respiração. Sabia que Kit só atiraria se tivesse certeza do que fazia. Amava-

o. Amava-o profunda, imensamente! E confiava nele acima de tudo.

Recusava-se a fechar os olhos, embora a tensão daquela situação a fizesse sentir

vontade de assim agir. Mas, se aquele fosse seu último instante na Terra, queria morrer

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com os olhos no homem a quem amava.

— Acho que deve ser sensato e baixar essa arma — disse uma voz vinda das

sombras do bosque.

Marina não podia voltar-se para ver de quem se tratava. Era uma voz masculina,

com certeza, e tinha um sotaque estrangeiro.

Kit não tirava os olhos de Marina. Sua pistola também mantinha a mira, sem mover-

se nem um milímetro sequer.

— Não penso assim, barão — respondeu a quem lhe falara. — Conhece muito bem

minha reputação. Diga ao seu homem que posso cumprir minha ameaça. Diga-lhe que o

matarei se não a soltar.

— E eu matarei você — replicou o barão, aparecendo na alameda.

Marina conseguia vê-lo agora. Sua mão esquerda prendia o braço de sua esposa e,

ao puxá-la atrás de si, fez Katharina gemer de dor.

Na mão direita, ele trazia uma pequena pistola de prata, que estava apontada

contra Kit.

Marina engoliu com dificuldade, sentindo um grito abafar-se em sua garganta. Não

queria distrair Kit. Precisava agir, fazer algo, qualquer coisa! Mas o quê?, indagava-se,

aflita. Não tinha armas, nem mesmo podia espernear e tentar chutar seu captor, já que

calçava sandálias, e não botas. Saíra de casa correndo, sem pensar em mais nada. E

agora suas sandálias estavam em frangalhos. Praticamente, estava sem elas, que se

dependuravam de seus pés como se fossem apenas retalhos do que haviam sido.

A respiração acelerada do homem em seu pescoço pareceu se acalmar um pouco.

Ele começava a pensar que estava seguro pela presença do barão e de sua arma.

E a mão que segurava a faca contra o pescoço de Marina também relaxou um

pouco.

Tinha de ser naquele momento!, Marina decidiu. Era sua única oportunidade.

Respirou fundo e enfiou o cotovelo contra as costelas do sujeito com toda a sua força.

Ele se curvou, gemendo. A faca não mais se encontrava em seu pescoço. Marina

aproveitou e, sacudindo-se, conseguiu soltar-se e saiu correndo até chocar-se contra

sir Hugo, bem longe da linha de fogo de Kit.

Ele, por sua vez, não se moveu. Sua pistola ainda apontava para o atacante de

Marina, que agora gemia, de joelhos.

— Ele machucou você? — Kit perguntou a Marina, com voz rouca.

— Não, não... — Por que ele estaria preocupado com ela? Devia estar se

defendendo do barão... E isso a fez gritar: — Tome cuidado, Kit!

Ele sorriu. E, sem se voltar para o barão, disse, tranqüilo:

— Se tencionava me matar, senhor, já devia tê-lo feito.

O barão puxou a esposa mais contra si, fazendo-a gemer de novo.

— Não pense que vou mover um só dedo para proteger sua esposa — Kit avisou-o.

— Nosso caso já terminou há muito tempo. Sugiro que faça seus protestos contra o

novo protetor que ela arranjou.

Marina cerrou os olhos por instantes, dominada pelo terror. Ele parecia tão calmo,

desafiando a honra daquele homem... O barão jamais aceitaria tais insultos! Poderia

atirar em Kit a qualquer momento!

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Depois de longos e angustiantes segundos, o barão deu mais um passo à frente e

disse:

— Deixe esses homens irem embora, Stratton. Sua briga é comigo.

Kit lançou um olhar a Hugo, que assentiu de leve e soltou o sujeito que ele

mantinha seguro pelo pescoço. O homem cambaleou até a outra vítima, que ainda estava

curvada aos pés de Kit, com o ventre sangrando.

Os dois, apoiados um no outro, saíram dali praticamente se arrastando e

desapareceram na escuridão do parque.

O homem que segurara Marina e o outro, com o braço quebrado, simplesmente

levantaram-se e seguiram seus comparsas.

— Honra entre bandidos — disse Kit, voltando-se para encarar o barão, que

comentou:

— Parece que estamos empatados agora, Stratton.

Marina deu dois passos adiante. Se pudesse colocar-se entre eles... Mas Hugo

segurou-a antes que fizesse o que tencionava. Puxou-a para o abrigo de seus braços e

segurou-a contra seu peito.

— Não, Marina — sussurrou em seu ouvido. — Não interfira. Deixe Kit resolver

essa situação. — Mas, como ela ainda tentasse se soltar, ele riu e acrescentou: —

Confie nele, minha cara. Prometo que vai voltar vivo para você.

Marina, por fim, parou de se mexer.

— Então, vai ser aqui mesmo? — O barão indagou, em tom irônico. — Ou prefere

encontrar-me num campo de honra, como um cavalheiro? — Era óbvio que ele não via em

Kit nada de cavalheiresco.

— Como quiser, senhor. Não fará diferença alguma no resultado final.

O barão proferiu um palavrão qualquer em alemão, apertando ainda mais o braço da

esposa, que gemeu de novo.

— Na verdade, não sou amante de sua esposa agora — Kit continuou, desafiador. —

Mas já fui, é claro. Não há como negar. E tem todo o direito de tentar me matar.

— Está querendo me dizer que você não tem esse mesmo direito, Stratton?

Kit manteve-se em silêncio agora. E então Marina compreendeu. Se os dois se

encontrassem frente a frente num duelo com lugar e hora marcada, Kit não atiraria

contra o barão. Ficaria apenas parado, orgulhoso e desafiador, permitindo que o marido

ultrajado obtivesse sua vingança. Era esse o conceito de justiça de Kit.

O barão pareceu compreender também, pois baixou sua arma e rebateu:

— Não gosto de idéia de assassinato a sangue-frio — declarou.

Kit fez um leve sinal na direção em que seus atacantes haviam desaparecido.

— Não me pareceu — ironizou.

— Eles não iam matá-lo — o barão explicou —, mas digamos que... você ficaria um

tanto menos atraente para as damas. Apenas isso. — Ele ainda não soltara o braço da

esposa. — Katharina gostou de atraí-lo até aqui. Disse que queria testemunhar seu

espancamento e imaginei que isso seria uma lição muito salutar para vocês dois. — Ele

baixou os olhos cheios de desprezo para a baronesa. Havia lágrimas naquele rosto tão

lindo. — Mas acho que já foi suficiente. — E passou o braço sobre os ombros dela,

embora aquele não fosse um abraço terno. — Vamos embora agora. Dou-lhe meus

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parabéns, Stratton, e a seu irmão também. Não imaginei que alguém pudesse vencer

aquele quarteto de trogloditas.

O barão juntou os calcanhares, como numa saudação militar, e, sem soltar

Katharina, acrescentou:

— Tenho certeza de que entende que não deveremos mais nos falar, senhor.

Kit devolveu a mesura, mas o homem já se voltara para partir. E, em poucos

segundos, ele e a baronesa já haviam desaparecido na escuridão do parque.

Só então Hugo soltou Marina. Mas, antes de deixá-la ir completamente, apertou-

lhe de leve os ombros.

— Essa passou bem perto, Kit — comentou, com um ligeiro sorriso nos lábios.

— É, talvez sim.

Marina notou que Kit evitava encontrar os olhos do irmão. Voltou-se para ela e

observou, sério:

— Quanto a você, moça, o quê, em nome de Deus, estava fazendo aqui?! — Ele já

avançava contra Marina, ameaçador. Tomou-a pelos ombros, como já fizera antes, mas,

dessa vez, não a sacudiu. Ficou apenas segurando-a, olhando-a intensamente. E, por fim,

murmurou: — Você é, sem sombra de dúvida, a mulher mais irritante, mais tola, mais

indomável...

Hugo pigarreou, interrompendo-o.

— Por que não vai buscar a carruagem? — Kit disse-lhe, sem olhá-lo. — Na

verdade, você não me parece em nada com um cocheiro, sabia?

Hugo começou a rir.

— Como quiser, senhor — respondeu, brincando e inclinando-se como um criado.

Ao ficarem a sós, Kit baixou a voz para falar com Marina:

— Por quê? Por que precisa ser assim, Marina? Por quê? Será que um dia vou

conseguir conviver com você sem ter de repreendê-la pelas coisas impensadas que faz?

— E puxou-a para dentro de seus braços, passando a beijar-lhe o rosto, os olhos, os

lábios.

Marina entregou-se por completo àqueles carinhos. Até que ambos pararam de

repente.

— Meu Deus, o que estou fazendo? — Kit sussurrou. — Você está ferida! E gelada!

— E, tirando depressa seu casaco, colocou-o sobre os ombros dela, esfregando-lhe os

braços. — Seu pescoço. Deixe-me vê-lo.

Com uma gentileza surpreendente, aqueles dedos longos, que ela amava tanto,

ergueram-lhe o queixo para que ele pudesse ver se a faca havia feito algum estrago.

— Droga, não consigo ver nada nesta escuridão! Venha, Marina. Há uma lanterna na

carruagem.

Começaram a caminhar e ela pisou em algo afiado e deu um grito de dor.

— Meu Deus! — Kit exclamou. — Seus pés! — Ergueu-a nos braços, ignorando a

tentativa de protesto que ela tentou fazer, e a carregou para fora do parque até onde a

carruagem os aguardava. Hugo encontrava-se na boleia e pulou depressa para abrir a

porta.

—Vai raptar a moça esta noite, senhor? — brincou. Kit sorriu, tenso, em resposta.

— Siga rapidamente para a casa de sir Hugo, meu bom homem — brincou também.

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— Mas não corra demais.

Kit ignorara os protestos de Marina, que alegavam ter ela recebido apenas alguns

arranhões. Tomou-lhe o pescoço entre os dedos e, com muita gentileza, tocou a marca

que a faca deixara. Havia uma pequena mancha de sangue. Ele murmurou uma

imprecação ao vê-la, imaginando que devia ter matado o sujeito quando tivera

oportunidade.

— O que houve? — Marina indagou, sem poder ver o que ele via.

— Está sangrando. Ele cortou a sua pele...

— Foi por minha culpa — explicou Marina, colocando a mão sobre a dele. — Senti

uma leve picada da faca quando me libertei. Não é nada grave.

— Podia ter sido morta, sua tolinha linda.

Marina calou-se, porém sorriu. Parecia estar gostando das palavras dele, mesmo

sendo elas pouco agradáveis.

— E seus pés... — Kit murmurou, olhando-os.

— Culpa minha também, porque não parei para colocar as botas. Mas foi melhor

assim, porque poderia ter sido tarde demais.

— Tarde demais para quê? — Kit erguia-lhe os pés feridos sobre seu colo,

acariciando-os com cuidado.

—Para avisá-lo de que... — Marina interrompeu-se e encarou-o. — Bem, imagino que

vá dizer que o meu aviso não seria necessário e que a minha chegada serviu apenas para

me colocar em perigo.

— É. Algo assim — Kit concordou, retirando os farrapos de sandália de um dos pés.

Um arrepio passou pelo corpo de Marina ao sentir-lhe as mãos. E ele fingiu não

perceber, acariciando-lhe a pele com suavidade.

— O que... o que está fazendo? — ouviu-a murmurar.

— Tentando remediar o estrago que você fez.

Marina engoliu em seco. Aquele carinho era delicioso demais. Afundou-se no

assento acolchoado do veículo, tentando escapar das sensações que aquele toque lhe

provocava, mas algo dentro de seu peito parecia pedir por mais... Até que, por fim, não

conseguiu evitar um leve gemido.

— Acho que devemos remover estas meias rasgadas... — Kit acrescentou, tirando o

que restara das meias em um dos pés.

Marina sentia-se flutuar. Mal o ouvia. Sua pele parecia adquirir vida nova, mas sua

mente estava tomada pela magia daquele toque.

As mãos de Kit massageavam seus pés, tornozelos e pernas com extremo cuidado.

E a sensação que provocavam era inebriante. Marina deixou que ele lhe retirasse as

meias, sem resistir. E, quando Kit a tomou em seu colo e a beijou com paixão, a única

coisa que pôde fazer foi corresponder intensamente. Estava nos braços do homem que

ela amava e não queria que aquele momento maravilhoso terminasse jamais. Uma voz

muito fraca dentro de seu peito queria avisá-la de que Kit não passava de um sedutor,

um cafajeste que sabia muito bem como conduzir uma mulher ao pecado, porém Marina

ignorou-a por completo. O que sentia era forte demais.

E o beijo que a princípio foi um tanto hesitante, como se ele temesse não ser

aceito, tornou-se mais e mais profundo, ardente, faminto. Kit segurou-a com força, as

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mãos em sua nuca, soltando-lhe os cabelos em ondas revoltas, despenteadas pela

urgência de seu desejo.

Com um sorriso malicioso, Kit passou a beijá-la de outra forma, mais exigente,

dominadora, e Marina inclinou-se para dentro de seu peito, aceitando aquele ardor novo,

correspondendo da mesma maneira, querendo muito ir além. Mesmo inocente, sua

resposta aos carinhos de Kit era tudo que ele poderia esperar.

E, num gemido rouco, Kit murmurou seu nome, perdido em seus beijos. Se não

tivesse mais nenhum outro momento de paixão em sua vida, Marina chegou a pensar,

aquele instante em que ouviu seu nome dito, sussurrado daquela forma, bastaria para

fazê-la feliz e deixá-la satisfeita.

Os lábios dele estavam agora em seu pescoço, que Marina inclinava para trás,

oferecendo a pele àqueles carinhos. Aquilo era a paixão. Aquela vontade, aquele desejo

de entregar-se, de não se restringir...

Kit interrompeu-se, respirando fundo. Beijou-a mais uma vez, ardente, e depois

pediu:

— Desculpe-me. Não devia ter feito isso.

Ela o encarou, prendendo-o definitivamente na beleza de seus grandes olhos

inocentes e brilhantes pela febre do desejo. Kit engoliu em seco, sentindo-se fraco,

dominado. Olhou para ela, para a pele suave de seu rosto, de seu pescoço, dos seios que

palpitavam mais rapidamente agora.

— Não, aqui não — sussurrou. — Não numa carruagem, lembra-se? Mas na minha

cama... de boa vontade, na minha cama.

O silêncio de Marina o alertou, deixou-lhe o coração aos saltos. Teria dito algo de

errado? Teria assustado mais uma vez a mulher que ele amava mais do que tudo no

mundo? E, antes que Marina pudesse reagir de qualquer forma, ajoelhou-se diante dela

e passou a limpar seus pés com um lenço que tirou do bolso. Não a olhava mais.

— Precisa de um banho, minha querida — disse por fim. — Para remover esta

sujeira e este sangue... Emma vai ajudá-la. Deve ter algum medicamento, bandagens...

— Emma?

— Sim. Minha cunhada. Estamos seguindo para a casa de Hugo.

— Não, não! Não pode me levar para lá! Olhe como estou! — Marina tocou seus

cabelos, sabendo que eles se encontravam despenteados pelos minutos de paixão que

haviam acabado de viver. — Preciso voltar à casa de lady Luce! Oh, Deus, o que ela vai

pensar de mim? Como poderei explicar o que fiz?!

— Vai dizer-lhe a verdade — Kit respondeu, só agora olhando para ela, sabendo que

Marina não o recriminaria. — Se não o fizer, eu farei. Afinal, você saiu correndo para

salvar uma vida.

— Mas eu...

— Você conseguiu salvar-me! É uma mulher corajosa e destemida, Marina

Beaumont. — Ele a olhava. Encantado, apaixonado. Assim, despenteada, com aquele

rubor da paixão e do embaraço em seu rosto, ela era ainda mais linda.

Batidas fortes no teto da carruagem o trouxeram de volta à realidade. E levou

alguns segundos para perceber que não estavam mais em movimento. Foi até a janela,

afastou as cortinas e perguntou em voz alta:

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— Por que paramos?

— Porque chegamos, meu senhor — Hugo brincou ainda uma vez.

— Mesmo? Pois vire esta carruagem e leve a moça para a sua casa!

— O senhor é quem decide! Pelo que vejo, o rapto foi adiado...

Kit insistiu em carregá-la para dentro da casa da condessa. Seu casaco fora

enrolado ao redor de Marina para que os criados não ficassem especulando sobre o que

acontecera. Mas os cabelos dela estavam desalinhados e seus pés, descalços, e isso não

havia como ocultar. E Kit quase chegou a sentir a vergonha que inundava Marina

enquanto a transportava, nos braços, até a sala.

A condessa ainda não voltara do jogo.

— Posso levá-la até seu quarto — ele ofereceu.

— Não, não! — ela quase gritou. — Já foi suficiente ter me trazido até aqui. Por

favor, coloque-me no chão e depois... vá embora, sim?

— Marina, eu só vou sair daqui quando você parar de se comportar como uma tola

— Kit rebateu. E colocou-a com carinho sobre uma poltrona. — Afinal, qual é o problema

com você?!

— Bem... lady Stratton disse que não há mais um noivado entre o senhor e lady

Blaine... É... verdade?

— Mas é claro que sim! Pois foi você mesma quem garantiu a minha libertação

daquela garota estúpida! Na verdade, acho que ainda não lhe agradeci pelo que fez.

Porque uma mulher como Tilly Blaine poderia levar um homem a cometer suicídio, sabia?

Preciso de uma mulher que conheça o valor do silêncio e da coragem, Marina. Minha

esposa precisa ser...

A porta se abriu e a condessa entrou, parecendo esbaforida. E, ao notar a

presença de Kit, arregalou os olhos de imediato.

— Oh, Senhor! Mas o que é isso?! — assustou-se. — O que o senhor está fazendo

aqui? Achei que estivesse sendo... — Ela se voltou e fez um sinal para que o mordomo,

que a acompanhava, se fosse. Depois caminhou pela sala e afundou-se na poltrona mais

próxima.

Marina tentou levantar-se.

— Está tudo bem, senhora? — quis saber. Kit a fez sentar-se outra vez, dizendo:

— Fique onde está. Eu falo com lady Luce. — E, percebendo que a condessa estava

trêmula, serviu um cálice de conhaque a ela. — Beba isto, senhora. Vai se sentir melhor.

Ao que parecia, ela não se importava em ser servida por Kit. Bebeu de um só gole e

estendeu o cálice a ele para que o enchesse novamente. E bebeu mais devagar da

segunda vez. Depois ajeitou a peruca e olhou para Marina.

— Já estou melhor — disse.

Kit sorriu para Marina e ela percebeu, em sua expressão, que já não havia aquela

antiga máscara de cinismo; apenas um amor profundo que a fez derreter por dentro.

Em sua mente estavam as últimas palavras que ele lhe dissera a respeito de sua

esposa... mas não, não podia ser...

— Imagino que a sua presença aqui explique tudo — comentou lady Luce, olhando-o,

muito séria.

— Minha presença explica o quê, precisamente, senhora? — Kit quis saber.

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— Bem, se está aqui, não pode estar lá, certo? E isso explica tudo — teimou a

condessa em não explicar.

— Senhora, aconteceu alguma coisa? — Marina indagou. — Quero dizer... no seu

jogo de cartas?

A condessa assentiu.

— Acabei indo até a casa de Méchante, afinal — confessou ela. — E uns sujeitos

chegaram, exigindo que ela lhes pagasse. Aparentemente, queriam ser pagos por um

servicinho que haviam feito... — Lady Luce olhou para Kit com certo ar de escárnio. — E

agora entendo que eles falharam em sua missão... Méchante, é claro, recusou-se a pagar

e eles começaram a quebrar tudo na casa. Acho que ela vai gastar uma pequena fortuna

para consertar o estrago.

— A senhora não se feriu? — Kit perguntou, mostrando-se solícito.

E Marina percebia que ele estava, de fato, sendo sincero. Ainda mais porque Kit

sabia que qualquer um daqueles sujeitos poderia ter ferido a condessa gravemente com

um só golpe. Mas ela apenas riu e deu de ombros.

— Eu não, mas Méchante, sim. Os sujeitos não gostaram do modo como ela os

expulsou da casa. E acho que ela vai estar um pouco além de arranhada amanhã... Vai ter

um olho roxo, com certeza.

Marina mordeu o lábio, assustada com aquela violência. Mas, talvez, ponderou, lady

Méchante tivesse recebido apenas o que merecia.

Lady Luce agora olhava para Kit, pensativa. Até que disse:

— Sabe de uma cosia, rapaz? Cheguei a desejar que aqueles brutamontes

mudassem um pouco a sua aparência. Porém quando os vi em ação... percebi que estava

enganada. — E, levantando-se, anunciou: — Vou me recolher agora. E o senhor não

deveria estar aqui! Poderia sair agora, sim? Vamos, toque a sineta.

Kit assim o fez e depois, educado, ofereceu-lhe o braço.

— Eu achava, senhora, que mesmo sob suas severas normas de comportamento, um

casal compromissado pudesse ficar a sós...

Lady Luce parou de caminhar e olhou para os dois, pasma. E, talvez pela primeira

vez na vida, ela ficou sem saber o que dizer.

Marina também foi pega de surpresa. Kit levou a condessa até a porta da sala e

completou:

— Acho que deve saber que a srta. Beaumont acaba de dar-me a honra de aceitar

ser minha esposa. Mas sei que a senhora teve uma noite muito agitada e amanhã, depois

de haver descansado bastante, poderá nos dar os parabéns pelo noivado. Marina vai se

mudar para a casa de minha cunhada amanhã pela manhã. E a senhora será sempre muito

bem-vinda lá.

— Kit, como pode... — Marina começou, mas ele a fez calar-se dizendo:

— Depois, meu amor. Depois. Não vamos deixar lady Luce embaraçada com

demonstrações explícitas de afeto. Ela precisa descansar. — Ele sorriu por sobre o

ombro e afastou-se levando a condessa até seus aposentos, onde se despediu, educado:

— Boa noite, senhora—murmurou. — Durma bem.

Quando voltou para a sala, percebeu que os olhos de Marina estavam brilhando.

Conhecia aquele fogo. E agora ela parecia ter motivos para estar agitada.

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— Eu devia ter-lhe dado um tapa para tirar aquele seu sorriso arrogante do rosto,

sabia? — ela começou, irritada. — Como pôde dizer aquelas coisas a lady Luce?!

Kit tentou parecer arrependido, mas o resultado foi uma careta que acabou

fazendo Marina rir.

— Você não vale nada — ouviu-a sussurrar. — E não concordei em me casar com

você.

Ele se aproximou e tomou-a nos braços. Beijou-a em seguida com uma paixão tão

ardente que a fez perder o fôlego.

— Agora, meu amor, vou mandar a criada preparar-lhe água quente e toalhas para

os seus pés feridos. E você não vai protestar, ouviu? Na verdade, pode até cantar para

mim enquanto lavo seus ferimentos e depois passo algum medicamento sobre eles.

Depois, vou levá-la, no colo, até seus aposentos e...

— Não!

— Não iremos sozinhos, é claro. Uma das criadas poderá nos acompanhar para que

não haja comentários desagradáveis. E amanhã você seguirá para a casa de meu irmão, e

depois farei arranjos para que siga até Yorkshire e...

— Pare! Pare! Você é impossível, Kit Stratton! Não vou permitir que fique dando

ordens e regulando a minha vida. Ademais, eu ainda não lhe disse que o amo, não aceitei

seu pedido de casamento, que você, na verdade, não fez formalmente, e...

— Sei que me ama! Sei que quer se casar comigo! O que mais preciso ouvir? — Ele

passou a beijar-lhe o pescoço, sedutor, carinhoso, apaixonado. — E é assim que vai ser...

— Só se disser que me ama de verdade. — Marina derretia-se em seus braços.

— Se a amo? Meu Deus, Marina, como um louco! Um louco! — E encontrou seus

lábios mais uma vez, a fim de prendê-los para sempre.

Fim