5111-15241-1-pb

17
http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 – Volume: 6 – Número: 2 LEITURA RELIGIOSA E NOVAS TECNOLOGIAS: UM ESTUDO SOBRE O USO DE VERSÕES DIGITAIS DA BÍBLIA, DO ALCORÃO, DO LIVRO DE MÓRMON E DA TORÁ Pollyanna de Mattos Moura Vecchio/CEFET-MG RESUMO: O objetivo de pesquisa neste estudo é investigar o que acontece com os protocolos de leitura e com a reverência ao suporte material (hábitos comuns na leitura religiosa) diante de versões digitais de obras consideradas sagradas. Para tanto, pesquisou-se a utilização de versões digitais das seguintes obras: a Bíblia Sagrada (versão protestante), o Alcorão, o Livro de Mórmon e a Torá. Foram realizadas entrevistas com quatro leitores/usuários de versões digitais dessas escrituras, sendo um representante para cada um dos livros pesquisados. As entrevistas demonstram que, para o leitor da Bíblia e para o leitor do Livro de Mórmon, não há um caráter sagrado relacionado ao suporte que contém a obra. Entretanto, o primeiro argumenta que há práticas que são mais eficientes se forem feitas no papel, e ambos demonstram preocupações ligadas ao futuro do livro, especialmente sobre a relação que as novas gerações terão com as tecnologias impressas. O leitor do Alcorão enfatiza que a versão considerada sagrada é apenas a impressa e em árabe, mas ele manifesta grande aceitação pelas versões digitais, argumentando que possibilitam, entre outras coisas, maior disseminação da religião. O leitor da Torá aceita e usa versões digitais, no entanto estabelece uma hierarquia, afirmando que o livro impresso será sempre superior à versão digital, a qual servirá tão somente como uma ferramenta adicional à leitura do texto impresso, não como um substituto. PALAVRAS-CHAVE: Novas Tecnologias. Protocolos de Leitura. Bíblia. Alcorão. Livro de Mórmon. Torá. ABSTRACT: The main objective in this paper is to investigate what happens to the protocols of reading and with the reverence to the material support (ordinary habits in religious reading) when one uses a digital versions of books considered sacred. For this purpose, we investigated the use of digital version of the following books: The Holy Bible (Protestant version), the Qur'an, The Book of Mormon and the Torah. Interviews were conducted with four readers/users of digital versions of these scriptures, i.e., one representative for each of the books studied. The interviews show that, for the Bible reader and the reader of The Book of Mormon, there is no sacredness related to the media containing the book. However, the first respondent argues that there are practices more effective if they are done on paper and both the respondents express concerns related to the future of the book, especially about the relationship the younger generations will have with print technologies. The reader of the Qur’an emphasizes that the version considered sacred is only the printed version in Arabic, but he supports the digital versions, arguing that they enable greater dissemination of the religion, among other advantages. The reader of the Torah accepts and uses digital versions, but he establishes a hierarchy stating that the printed version will always be superior to the digital one, which will serve only as an additional tool to the printed text, not as a substitute. KEYWORDS: Books, New Technologies, Protocols of Reading, Bible, Qur'an, Book of Mormon, 1

Upload: yugihayato

Post on 28-Sep-2015

212 views

Category:

Documents


0 download

DESCRIPTION

Bite my shine metal ass.

TRANSCRIPT

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    LEITURA RELIGIOSA E NOVAS TECNOLOGIAS: UM ESTUDO SOBRE O USO DEVERSES DIGITAIS DA BBLIA, DO ALCORO, DO LIVRO DE MRMON E DA TOR

    Pollyanna de Mattos Moura Vecchio/CEFET-MG

    RESUMO: O objetivo de pesquisa neste estudo investigar o que acontece com os protocolos deleitura e com a reverncia ao suporte material (hbitos comuns na leitura religiosa) diante deverses digitais de obras consideradas sagradas. Para tanto, pesquisou-se a utilizao de versesdigitais das seguintes obras: a Bblia Sagrada (verso protestante), o Alcoro, o Livro de Mrmon ea Tor. Foram realizadas entrevistas com quatro leitores/usurios de verses digitais dessasescrituras, sendo um representante para cada um dos livros pesquisados. As entrevistas demonstramque, para o leitor da Bblia e para o leitor do Livro de Mrmon, no h um carter sagradorelacionado ao suporte que contm a obra. Entretanto, o primeiro argumenta que h prticas que somais eficientes se forem feitas no papel, e ambos demonstram preocupaes ligadas ao futuro dolivro, especialmente sobre a relao que as novas geraes tero com as tecnologias impressas. Oleitor do Alcoro enfatiza que a verso considerada sagrada apenas a impressa e em rabe, mas elemanifesta grande aceitao pelas verses digitais, argumentando que possibilitam, entre outrascoisas, maior disseminao da religio. O leitor da Tor aceita e usa verses digitais, no entantoestabelece uma hierarquia, afirmando que o livro impresso ser sempre superior verso digital, aqual servir to somente como uma ferramenta adicional leitura do texto impresso, no como umsubstituto.

    PALAVRAS-CHAVE: Novas Tecnologias. Protocolos de Leitura. Bblia. Alcoro. Livro deMrmon. Tor.

    ABSTRACT: The main objective in this paper is to investigate what happens to the protocols ofreading and with the reverence to the material support (ordinary habits in religious reading) whenone uses a digital versions of books considered sacred. For this purpose, we investigated the use ofdigital version of the following books: The Holy Bible (Protestant version), the Qur'an, The Book ofMormon and the Torah. Interviews were conducted with four readers/users of digital versions ofthese scriptures, i.e., one representative for each of the books studied. The interviews show that, forthe Bible reader and the reader of The Book of Mormon, there is no sacredness related to the mediacontaining the book. However, the first respondent argues that there are practices more effective ifthey are done on paper and both the respondents express concerns related to the future of the book,especially about the relationship the younger generations will have with print technologies. Thereader of the Quran emphasizes that the version considered sacred is only the printed version inArabic, but he supports the digital versions, arguing that they enable greater dissemination of thereligion, among other advantages. The reader of the Torah accepts and uses digital versions, but heestablishes a hierarchy stating that the printed version will always be superior to the digital one,which will serve only as an additional tool to the printed text, not as a substitute.

    KEYWORDS: Books, New Technologies, Protocols of Reading, Bible, Qur'an, Book of Mormon,

    1

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    Torah.

    INTRODUO

    Textos religiosos so peas bastante significativas para se entender a histria da leitura.Segundo Fischer (2006, p. 38), na Europa Ocidental, a leitura religiosa chegou a dominar a leituradurante mais de mil anos. Os livros sagrados foram capazes de transformar sociedades,estabelecendo e mantendo doutrinas e tradies que fazem com que povos to antigos aindaexistam, embora dispersos geograficamente.

    Atravessando os sculos, textos religiosos continuam sendo a principal fonte de leiturade muitos povos e seguem exercendo influncia sobre o comportamento humano. Tradicionalmente,h vrios rituais ligados prtica de leitura desses textos e tambm h certa reverncia ao suportematerial que os contm.

    Ao mesmo tempo, com o advento das novas tecnologias, cresce a diversidade de mdiase de suportes para leitura. O leitor contemporneo no depende mais do papel e do cdice para teracesso a contedos de seu interesse. Entre as tecnologias disponveis, h websites quedisponibilizam obras completas em formato HTML ou em PDF. H dispositivos para leitura deebooks, audiolivros e aplicativos para leitura compatveis com a tecnologia dos tablets e dossmartphones, entre outros.

    Diante desse contexto, a pergunta a que este artigo quer responder : como osprotocolos de leitura e a habitual reverncia ao suporte material de obras consideradas sagradas sealteram (ou se mantm) diante de verses digitais dessas obras? Para tanto, considerando o contextobrasileiro e alguns dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatstica (IBGE) que serorelatados mais adiante, escolhemos estudar o impacto das novas tecnologias na leitura de quatroobras religiosas: A Bblia Sagrada, o Alcoro, o Livro de Mrmon e a Tor.

    Ressaltamos que, embora seja um estudo sobre obras consideradas sagradas, este artigono exatamente sobre religies, mas sobre leitura e novas tecnologias. Nossa posio serimparcial em relao ao contedo dos livros e sua procedncia supostamente milagrosa. Naverdade, embora relatados guisa de contextualizao, esses temas no sero nosso alvo de debate.As sees que descrevem as religies, seus respectivos livros e prticas de leitura foramprimeiramente baseadas nas entrevistas e posteriormente conferidas em consulta a dicionrios dereligies.

    O que nos interessa investigar : 1) a disponibilidade das obras em tecnologia digital; 2)suas prticas de leitura tradicionais; e, por fim, 3) o impacto das novas tecnologias sobre a leiturareligiosa, tendo como ponto de partida a opinio de leitores/usurios das obras em verses digitais.

    O artigo se divide em quatro sees. A primeira contextualiza o papel de obrasreligiosas na histria geral da leitura e expe a opinio de alguns estudiosos sobre a relao entreleitura e novas tecnologias. A segunda seo descreve a metodologia adotada no estudo. A terceiraapresenta cada uma das obras sagradas e os dados e opinies relevantes obtidos em cada entrevista.Na sequncia, a quarta seo apresenta uma discusso sobre as opinies dos leitores entrevistados,tendo como referncia estudos sobre leitura, cognio e letramento.

    2

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    1 REFERENCIAL TERICO: LEITURA RELIGIOSA E NOVAS TECNOLOGIAS

    A leitura religiosa bastante peculiar, principalmente porque perpetua prticas bastanteantigas, que remontam Idade Mdia e a pocas ainda mais longnquas, em que a transferncia doconhecimento se dava mais pela oralidade do que pela escrita. Uma dessas prticas a conservaoda leitura intensiva no lugar da leitura extensiva. Segundo Chartier:

    na segunda metade do sculo XVIII, leitura intensiva haveria de suceder outra,qualificada de extensiva. O leitor intensivo confrontado com um corpus limitado efechado de textos lidos e relidos, memorizados e recitados, ouvidos e sabidos de cor,transmitidos de gerao a gerao. Os textos religiosos, e em primeiro lugar a Bblia nospases protestantes, so os alimentos privilegiados desta leitura, fortemente marcada pelasacralidade e autoridade. O leitor extensivo, o da Lesewut, da nsia da leitura que tomaconta da Alemanha no tempo de Goethe, um leitor totalmente outro: ele consome muitos evariados impressos; l-los com rapidez e avidez, exerce em relao a eles uma atividadecrtica que, agora, submete todas as esferas, sem exceo, dvida metdica (CHARTIER,1994, p. 189).

    Na contramo da leitura extensiva, leitores de textos religiosos costumam lerintensivamente o cnone de sua religio. Muitos mantm horrios regulares de leitura diria(individualmente, em famlia ou em grupos); alguns j leram a obra inteira diversas vezes ao longoda vida; outros estudam os textos minuciosamente, buscando interpretaes de cada mnimodetalhe; j outros recitam os textos repetidamente a fim de memoriz-los, retomando uma prticacomum em pocas em que a oralidade prevalecia sobre a leitura.

    H tambm vrios protocolos relacionados forma como um texto religioso deve serlido, manuseado e guardado. Segundo um dos entrevistados em nossa pesquisa, a leitura da Tor,por exemplo, o mais importante ato pblico do ritual judaico, e a prpria filiao ao judasmo semanifesta na primeira vez em que a pessoa chamada Tor, ou seja, quando l trechos da obrapela primeira vez dentro do ritual litrgico semanal, analogamente ao batismo protestante(ENTREVISTADO 4, 2013). Ainda hoje, dentro das sinagogas, h edies da obra manuscrita empergaminho.

    Segundo Fischer (2006), no caso da leitura do Alcoro, em virtude de uma forte heranada tradio oral, alguns muulmanos ainda o leem usando ritmos especficos que acompanham cadalinha do texto escrito e so seguidos pelo movimento de balanar o tronco para frente e para trs(p. 141).

    Concomitantemente permanncia dessas prticas, a tecnologia digital avana em todoo mundo. Segundo Fischer (2006, p. 281), a popularizao do computador pessoal, a partir dos anos1990 e mais intensamente nos anos 2000, revolucionou as prticas de leitura em todo o mundo, umavez que todos que utilizam um PC podem acessar o mundo de casa ou da escola, quase semprefazendo algum tipo de uso da leitura e da escrita. Atualmente, com o advento e a expanso dastecnologias mveis (como os celulares, notebooks e tablets) e com a maior disponibilidade deinternet banda larga, ler na tela tem se tornado uma atividade cada vez mais frequente.

    Diante disso, hbitos tradicionais de leitura tm sido alterados em funo dos novossuportes. A esse respeito, Ribeiro (2012) afirma que:

    3

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    atualmente possvel ler sentado, com as pernas encolhidas sob um teclado e os olhosvidrados na luz do monitor, ou ler mil livros mostrados na tela de um tablet.(...) Cada objetode ler, associado arquitetura dos textos e imagens que suporta, apropriado pelo leitor,que aprende uma espcie de roteiro. As sequncias mais ou menos rgidas de leitura detextos (em objetos) so aprendidas na experincia (RIBEIRO, 2012, p. 21).

    Essas sequncias mencionadas por Ribeiro envolvem mudanas nas aes de manuseiodo novo suporte, as quais substituiro atos j incorporados leitura do impresso, como a forma desegurar o livro, passar-lhe as pginas, encontrar palavras, fazer anotaes laterais, marcar trechos,etc. Wolton (2003) afirma que o desafio para se entender as mudanas advindas das novastecnologias, em especial a Internet, saber se existe uma relao entre esse sistema tcnico e umaruptura no modelo de comunicao construdo social e culturalmente ao longo de muitos sculos.

    Chartier (2007) entende que o avano das tcnicas sempre mais rpido que a evoluodas prticas de leitura. J Pierre Lvy (1993) afirma que as maneiras de pensar e de comunicar dosseres humanos so condicionadas por processos materiais. Aponta que se algumas formas de ver eagir parecem ser compartilhadas por grandes populaes durante muito tempo, isto se deve estabilidade de instituies, de dispositivos de comunicao, de formas de fazer [...], de tcnicas emgeral [...] (LVY, 1993, p. 16). Assim, conforme afirmou Ribeiro (2012) na citao anterior,quando uma nova tecnologia se estabelece, aprendemos a lidar com ela por analogia com oscritrios e os procedimentos mentais ligados s tecnologias intelectuais que a precederam.

    Muitas vezes, o ambiente digital potencializa atividades analgicas j existentes notexto impresso. Por exemplo, os softwares ou aplicativos de leitura com verses disponveis paracomputadores, smartphones e tablets oferecem ao leitor as comodidades tecnolgicas prprias dohipertexto e da hipermdia. Por intermdio desses softwares, o leitor passa a contar com interfacesmais adequadas ao modo de assimilao da informao em um ambiente que se caracterizaessencialmente pela facilidade de utilizao de recursos multimdia. Muitas vezes, o leitor contatambm com o acesso aos contedos em telas com a praticidade e a rapidez da tecnologiatouchscreen.

    Alm das mudanas em relao ao formato, h tambm alteraes cognitivas namaneira como se l um texto digital. Soares (2002) afirma que:

    a tela como espao de escrita e de leitura traz no apenas novas formas de acesso informao, mas tambm novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento,novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento, isto , um novo estado oucondio para aqueles que exercem prticas de escrita e de leitura na tela (SOARES, 2002,p. 152).

    Somadas a todas essas modificaes que a leitura digital acarreta, h que se ressaltartambm a acessibilidade e a portabilidade. A acessibilidade colabora para que a distribuio docontedo seja mais rpida e barata. O leitor pode baixar um livro pela internet (gratuito ou pago) el-lo logo em seguida, sem pagar pelo frete ou esperar pela entrega, que muitas vezes no oferecida nos casos de importao, por exemplo.

    Evidentemente, o sentimento de posse diante do objeto digital bastante diferente secomparado ao objeto fsico. Ao adquirir um livro impresso, o leitor pode manuse-lo, sentir suatextura, escrever nele o seu nome, guard-lo em uma estante e saber que ele sempre estar l. Mas oque dizer do texto digital? A esse respeito, Chartier argumenta que:

    4

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    a representao eletrnica dos textos modifica totalmente a sua condio: ela substitui amaterialidade do livro pela imaterialidade de textos sem lugar especfico; s relaes decontiguidade estabelecidas no objeto impresso ela ope a livre composio de fragmentosindefinidamente manipulveis; captura imediata da totalidade da obra, tornada visvelpelo objeto que a contm, ela faz suceder a navegao de longo curso entre arquiplagostextuais sem margens nem limites. Essas mutaes comandam, inevitavelmente,imperativamente, novas maneiras de ler, novas relaes com a escrita, novas tcnicasintelectuais (CHARTIER, 1994, p. 100-101).

    Em relao leitura religiosa, todos esses novos suportes, prticas e atividadescognitivas poderiam trazer vantagens ou desvantagens para o leitor. Por exemplo, a portabilidadedos suportes poderia ser vantajosa, uma vez que o leitor teria seu cnone sempre disponvel paral-lo onde quer que estivesse. Alm disso, a praticidade do e-book e dos aplicativos para leitura,com a possibilidade de se manter um bloco de anotaes e marcaes salvo em nuvem, poderiacentralizar os estudos do leitor, o qual teria acesso a suas anotaes na tela do celular, do tablet e docomputador pessoal. Por outro lado, a imaterialidade dos textos digitais mencionada por Chartierfaria com que muitos rituais de leitura se tornassem impossveis. Segundo informaes colhidas emnossas entrevistas, muulmanos e judeus, por exemplo, tm o hbito de no jogar no lixo seus livrossagrados, mesmo quando esto velhos ou gastos. Mas o que fazer com as verses digitais? Apergunta parece inocente, mas coloca em xeque o contraste impresso versus digital, tradioversus contemporaneidade e materialidade versus imaterialidade. So esses contrastes quetentamos discutir nas entrevistas com leitores de obras sagradas que sero apresentadas na seo 3deste artigo.

    2 METODOLOGIA

    Esta pesquisa tem carter exploratrio e insere-se no mtodo qualitativo. A escolha dasobras foi feita com base no Censo Demogrfico 2010, conduzido pelo IBGE. Segundo esselevantamento, o cristianismo a religio predominante no Brasil, com 169.329.176 adeptos,englobando 89% da populaoi. No entanto, outras religies do livro, conforme as denominaFischer (2006, p.132), tambm esto presentes no Pas. Segundo dados do mesmo censo, oislamismo (ou seja, a religio cujo livro sagrado o Alcoro) tem 35.167 membros no Brasil; ojudasmo (religio cuja principal obra sagrada a Tor) tem 107.329 membros no Pas; e a Igreja deJesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias (nica denominao crist que considera sagrada outraobra alm da Bblia, no caso o Livro de Mrmon) tem 226.509 membros no Brasil.

    Foram considerados como verses digitais os ebooks, os audiolivros, os aplicativos parasmartphones e tablets, as verses on-line em formato HTML ou PDF e os softwares para leitura natela do computador. Foram realizadas entrevistas com leitores/usurios de verses digitais dessasescrituras. Nossos critrios para seleo dos entrevistados foram: 1) ser membro ativo de algumacongregao religiosa que adota a obra sagrada; 2) ser leitor assduo da obra sagrada (o que, parans, significou ler ou estudar a obra numa frequncia entre diria e semanal) e 3) utilizar algumaverso digital da obra. Por meio de pesquisas pela internet e indicaes pessoais, conseguimoschegar a quatro pessoas dentro do perfil, um representante para cada uma das obras estudadas.

    As entrevistas tiveram carter semiestruturado e foram gravadas em udio, em janeirode 2013. Foi feito um roteiro com perguntas que comeavam com uma identificao do perfil do

    5

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    entrevistado, depois seguiam para sua atuao dentro da congregao religiosa. Em seguida,perguntava-se sobre os protocolos tradicionais de leitura da obra e, por fim, abordava-se o uso dasverses digitais. Pediu-se ao entrevistado que relatasse (e demonstrasse) suas prticas de leitura eestudo com a verso digital e a sua opinio a respeito da relao entre impresso e digital na leiturade obras sagradas.

    3 APRESENTAO DOS DADOS

    Nesta seo, apresentaremos os dados obtidos nas entrevistas, assim como uma brevedescrio das obras selecionadas para estudo. As descries das obras e das religies que as adotamforam feitas mediante o confronto entre as informaes colhidas nas entrevistas e a consulta aosverbetes correspondentes em cinco dicionrios sobre religies, quais sejam: Dicionrio dasreligies (1989), de John R. Hinnells; Dicionrio das religies (1995), de Mircea Eliade e Ioan P.Couliano; Dicionrio bsico das religies (1996), de Pedro Santidrin; Lxico das religies (1998),organizado por Franz Knig e Hans Waldenfels, e Dicionrio histrico de religies (2002), deAntnio Carlos do Amaral Azevedo e Paulo Geiger. Alm disso, a fim de evitar problemas de minterpretao das entrevistas, aps a redao do artigo, enviamos uma cpia indita para cada umdos entrevistados, solicitando-lhes que o lessem e interferissem em pontos que pudessem ter sidomal interpretados. Apenas dois dos entrevistados nos responderam aps a leitura, e nenhum delessolicitou alterao no artigo.

    3.1 A Bblia Sagrada

    A Bblia, aqui entendida como a unio do Antigo e do Novo Testamento, a obraconsiderada sagrada para o cristianismo. O texto dividido em livros, captulos e versculos. Naverso protestante (ou seja, sem os livros chamados apcrifos, considerados sagrados somente pelaIgreja Catlica), a Bblia tem 66 livros que, entre narrativa, genealogia e doutrina, englobameventos desde a verso crist para a criao do mundo at o sculo I d.C.

    3.1.1 Entrevista com leitor/usurio

    O entrevistado que falou sobre a leitura da Bblia brasileiro, tem 29 anos, possuips-graduao lato sensu em Administrao e empresrio no ramo de tecnologia etelecomunicaes. membro ativo de uma denominao crist/evanglica filiada ConvenoBatista Brasileira, atua voluntariamente como lder dos membros jovens e coordena um encontrosemanal de estudos bblicos para um pequeno grupo em sua casa. casado e no tem filhos. Deagora em diante, ele ser chamado de Entrevistado 1.

    Em relao s suas prticas de leitura, o Entrevistado 1 relata que l a Bblia todos osdias (individualmente e com a esposa), prepara um estudo semanal para ser discutido em grupo eusa a obra para acompanhar as cerimnias de sua congregao. Tambm relata que, embora tratecom respeito o suporte que contm o texto bblico, no existe nenhum ritual especfico de manuseioou de reverncia ao livro impresso.

    6

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    Em relao bblia digital, relata que atualmente utiliza as seguintes verses: o websitebibliaonline, um aplicativo para Android e softwares com o texto off-line em seu computadorpessoal. Em relao ao website, relata que sua grande vantagem a facilidade de navegao entre osvrios livros e captulos da Bblia (uma vez que esto dispostos em hiperlinks), a possibilidade debusca rpida por palavras ou trechos e a disponibilidade de diferentes verses em vrias lnguas.Segundo o Entrevistado 1, antes das verses digitais, ele j gostava de comparar tradues elinguagens da Bblia em portugus, mas precisava abrir os livros se quisesse compar-los. Com averso digital, bastam alguns cliques e o prprio site abre uma pgina com duas colunas que exibemverses diferentes da Bblia para que o usurio as compare, como pode ser visto na Figura 1, aseguir, em que se comparam duas verses do captulo 1 do livro de Gnesis.

    Figura 1: Printscreen do website bibliaonline.

    Sobre as vantagens do aplicativo para Android, o Entrevistado 1 ressalta a portabilidade,a eficincia das ferramentas de busca e a possibilidade de compartilhamento em redes sociais.

    Embora seja usurio de verses digitais, relata que ainda no descartou a versoimpressa e que a utiliza frequentemente em seu estudo individual dirio e para o estudo semanal emgrupo. Sobre a relao entre impresso e digital na leitura de obras sagradas, o Entrevistado 1 relataque:

    De fato, a gente ganha uma afinidade muito maior com o livro fsico, na minha viso.Quando voc marca o trecho, voc memoriza onde ele est. At a ordem dos livros fica

    7

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    muito mais simples de se decorar do que em uma bblia digital. A bblia digital, a meu ver, para procuras rpidas, para leituras rpidas. Para uma leitura longa, para um estudo, porexemplo, muito mais simples, prtico e eficiente o uso de uma bblia convencional. [...]Eu crio uma relao com a minha Bblia, assim como com outro livro que eu goste de ler.Eu risco, rabisco, volto a pgina... Dos jovens que esto chegando hoje para a minha f,poucos tm o hbito de ler a bblia impressa. E os que usam aplicativo sabem us-lo muitobem, mas tm dificuldade de achar um livro ou trecho na verso impressa diante de tantoslivros bblicos. Essa uma grande desvantagem que eu particularmente converso com ospastores e digo que a gente tem que tomar cuidado e continuar incentivando a leitura dabblia impressa. [...] Na verdade, eu vejo os aplicativos e os meios eletrnicos comoferramentas para leitura e estudos. E no por conservadorismo no, porque eu realmenteacho que o aprendizado com o livro impresso melhor e o manuseio tambm melhor(Entrevistado 1).

    3.2 O Alcoro

    O Alcoro (tambm chamado de Coro ou Quran) o livro sagrado para o islamismo.Segundo a crena muulmana, o livro foi revelado por Deus ao profeta Maom (Muhammad) porintermdio do anjo Gabriel. Seu texto descreve as origens do universo, os homens e as suas relaesentre si e com o seu criador. Define leis que pretendem funcionar como uma constituio para o seupovo e englobam questes de moralidade, economia, sade e outros assuntos. A princpio, no eraescrito e sim memorizado em forma de recitao meldica por Maom e seus seguidores. S depoisse tornou escritura. Segundo o nosso entrevistado, a palavra alcoro deriva do verbo rabe quesignifica declamar ou recitar. O livro est organizado em 114 captulos, denominados suras,ordenadas de forma aleatria e divididas em versculos.

    3.2.1 Entrevista com leitor/usurio

    O entrevistado que falou sobre a leitura do Alcoro brasileiro, tem 55 anos, possuigraduao em Histria e mestrado em Meio Ambiente. bancrio aposentado e atualmente d aulasde Histria esporadicamente. muulmano e frequenta assiduamente uma mesquita. No possui umcargo oficial de liderana, mas costuma servir como voluntrio, concedendo palestras e entrevistassobre o Isl. divorciado e tem um filho. De agora em diante, ele ser chamado de Entrevistado 2.

    Em relao s suas prticas de leitura do Alcoro, o Entrevistado 2 relata que faz umaleitura intensa individual da obra diariamente na edio em portugus e que pratica a recitaomeldica do texto em rabe, segundo a tradio islmica. Na verdade, ele esclarece que, embora osmuulmanos possam estudar o texto do Alcoro em outras lnguas, a lngua litrgica do islamismo o rabe cornico, e a obra considerada realmente sagrada a verso impressa e em rabe. As outrasso ferramentas para melhor aprendizado do contedo do texto. Assim, qualquer muulmano,independentemente da nacionalidade ou da lngua materna, deve aprender e praticar a recitao dotexto em rabe, com o objetivo de memoriz-lo.

    Sobre os protocolos de leitura, manuseio e reverncia em relao obra impressa emrabe, o Entrevistado 2 lista vrios protocolos, a saber: proibido escrever no Alcoro, colocarnome, usar caneta marca-texto, etc; s um muulmano pode tocar o Alcoro, a no ser que algum ocompre em uma livraria, pois no possvel controlar isso; proibido arrancar pginas; o livro deveser guardado no alto, acima do nvel do umbigo, e no pode ser misturado com livros profanos;pode-se l-lo na cama ou no sof, sentado ou deitado, mas o livro no pode ser levado para o

    8

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    banheiro, sequer seu contedo deve ser discutido em banheiros; antes de pegar o livro, o leitor devefazer ablues, ou seja, assepsia das mos ou mesmo tomar banho, caso se sinta sujo. Alm disso, averso impressa em rabe vem sempre em capa dura, com o intuito de proteger seu contedoconsiderado sagrado. Tambm proibido reciclar ou jogar cpias velhas do Alcoro no lixo. Comosoluo alternativa, as cpias devem ser enterradas ou queimadas de uma maneira respeitosa.

    Em relao s verses digitais, o Entrevistado 2 relata que conhece e apoia versesdigitais do Alcoro e que sabe de muitos muulmanos que as utilizam. Atualmente, ele utilizaverses em udio de recitaes da obra em mp3 ou CD, alm de websites com o texto escrito evideoaulas sobre a recitao correta da obra.

    Sobre as vantagens da verso digital em udio, o Entrevistado 2 destaca a possibilidadede ouvir o Alcoro em seu aparelho de mp3 enquanto anda pelas ruas, ou de escutar CDs em suacasa a fim de aprimorar sua prtica de recitao meldica e melhorar sua pronncia do rabe, umavez que no falante nativo da lngua. Para esse fim, afirma que tambm lhe so muito teis asvideoaulas e as recitaes disponveis on-line.

    Quando perguntado sobre a relao entre impresso e digital na leitura de obras sagradas,o Entrevistado 2 afirma no reconhecer nenhuma concorrncia ou desvantagem, uma vez que,segundo ele, a tecnologia sempre ajudou no crescimento do islamismo, desde a poca em que osmegafones ajudavam a chamar os membros para a reza coletiva, nos primeiros sculos da religio,at hoje em dia, com a difuso da religio por meio da internet. Alm disso, ressalta a importnciadas verses digitais para se evitar distores no texto, como aconteceu no incio da religio. Nassuas palavras:

    Quem muulmano no pensa em velha ou nova gerao. A religio ortodoxa, tradicional. (...) Essas geraes jovens que esto dentro do Isl convivem com esse mundomoderno, tecnolgico, com joguinhos, etc., mas tambm convivem com o ortodoxo, com otradicional, com o comunitrio, ou seja, com a religio. (...) Se pegarmos uma verso digitaldo Alcoro e uma verso impressa ou mesmo manuscrita e antiga, vemos que a mesmacoisa, no tem um ponto fora do lugar. simplesmente uma questo de tecnologia ehistria. Antes no existia isso. Antes o Alcoro era passado verbalmente e at mesmo deforma errada. No h nenhuma contradio entre religio e cincia, entre religio e essatecnologia que favorece as pessoas a aprenderem sobre o Isl (Entrevistado 2).

    3.3 O Livro de Mrmon

    Juntamente com a Bblia e com duas outras obras, O Livro de Mrmon a obraconsiderada sagrada para os membros dA Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias,popularmente conhecidos como mrmons em razo do nome do livro. A obra conta a histria deduas civilizaes de origem judaica que viveram nas Amricas: uma que viveu entre os anos 600a.C. e 400 d.C., aproximadamente, e outra proveniente da poca da Torre de Babel. Apresentanarrativas e doutrina, e, segundo seus seguidores, o evento mais importante descrito no livro avisita de Jesus Cristo s Amricas logo aps sua crucificao. composto por 15 livros, os quaisso divididos em captulos e versculos, totalizando aproximadamente 630 pginas.

    Segundo a tradio, foi escrito em egpcio antigo, em placas de ouro, por diversosprofetas e traduzido por inspirao divina para o ingls, em 1830, por Joseph Smith Jr., consideradoo primeiro profeta dos ltimos Dias pelos membros da religio. Segundo informaes do websiteoficial da religio (www.lds.org), hoje em dia o livro publicado e lido em diversas lnguas.

    9

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    3.3.1 Entrevista com leitor/usurio

    O entrevistado que falou sobre a leitura do Livro de Mrmon brasileiro, tem 29 anos, graduado em Administrao e trabalha como analista de contratos em uma empresa nacional degrande porte. membro ativo dA Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos ltimos Dias. Atuavoluntariamente como secretrio executivo de uma estaca, ou seja, segundo ele, uma esferahierrquica responsvel por um territrio que, neste caso, envolve seis unidades da Igreja na regiometropolitana de uma capital brasileira. Alm disso, foi missionrio por tempo integral entre os 19 eos 21 anos de idade. casado e tem uma filha. De agora em diante, ele ser chamado deEntrevistado 3.

    Em relao s suas prticas de leitura, o Entrevistado 3 relata que l O Livro deMrmon todos os dias, individualmente e com a famlia. Afirma que trata com respeito o suportefsico que contm a obra, mas que no existe nenhum ritual especfico de manuseio ou dereverncia, a no ser o hbito de orar antes da leitura.

    Em relao s verses digitais, o Entrevistado 3 relata que j aderiu por completo a elasem seus estudos pessoais devido praticidade de manuseio, portabilidade dos suportes e possibilidade de manter seu cnone inteiro dentro de um s dispositivo. Esclarece que s usa o textoimpresso para ler para a filha uma verso especial para crianas.

    Relata que atualmente utiliza o website oficial da Igreja para ler O Livro de Mrmon emformato HTML e ressalta a praticidade de copiar e colar trechos dessa verso quando estpreparando uma aula ou um discurso a ser proferido na cerimnia litrgica semanal. Tambm utilizaum aplicativo para iOS que funciona como uma biblioteca e oferece ao usurio, alm dO Livro deMrmon, as outras obras-padro de sua religio e publicaes auxiliares, como biografias eensinamentos de lderes, dicionrios religiosos e revistas da Igreja.

    O Entrevistado 3 afirma que uma das vantagens da verso digital a possibilidade deconseguir conservar sua leitura diria das obras-padro de sua crena, apesar de ter uma vidabastante atarefada. Esclarece que usa o aplicativo durante aproximadamente trs horas por dia, que o tempo que passa no nibus especial da empresa para ir e voltar do trabalho. Relata que a prticaconstante fez com que ele aprendesse e passasse a utilizar frequentemente as vrias funes doaplicativo. Entre elas, ele descreve a possibilidade de marcar trechos, fazer anotaes earmazen-las em um caderno salvo em nuvem; atribuir etiquetas (tags) a trechos da obra; acessarcom um clique algumas referncias cruzadas, presentes ao longo de toda a obra; associar trechos ecriar sua prpria referncia cruzada e fazer buscas por palavras ou trechos que trazem resultadosno s do contedo dO Livro de Mrmon, mas de todo o material disponvel de sua religio,inclusive publicaes ainda no baixadas. A Figura 2, a seguir, traz uma das telas do aplicativo paraiOS do Livro de Mrmon em ingls.

    10

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    Figura 2: Tela para leitura do Livro de Mrmon em ingls no aplicativo para iOS.

    Quando perguntado sobre a relao entre impresso e digital na leitura de obras sagradas,o Entrevistado 3 afirma que, nos seus hbitos pessoais de leitura, no reconhece nenhumadesvantagem no uso dessas verses, somente vantagens. No entanto, apresenta algumaspreocupaes em relao ao futuro ao afirmar que:

    Logo no incio, quando comecei a usar o meu celular para tudo relacionado igreja, tiveuma preocupao porque, enquanto eu crescia, eu via meu pai lendo as escrituras. Eu sabiaque ele estava lendo as escrituras porque ele estava no sof com o livro em mos, lendo efazendo anotaes em um caderno ao lado. [...] Hoje em dia, eu no sei se minha filha vaientender isso. Por exemplo, se eu estou com o celular na mo, eu posso estar lendo O Livrode Mrmon, ou mandando email para algum, ou consultando alguma coisa na internet...podem ser vrias coisas. Ento eu no sei at que ponto ela vai entender o que eu estoufazendo no momento. Isso para mim uma grande desvantagem. Meu pai um grandeexemplo para mim e, quando eu o via lendo O Livro de Mrmon, isso sempre despertou emmim o desejo de ler O Livro de Mrmon (Entrevistado 3).

    3.4 A Tor

    A Tor constituda pelos cinco primeiros livros da Bblia Hebraica, ou seja, Gnesis,

    11

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    xodo, Levtico, Nmeros e Deuteronmio. considerada sagrada pelos judeus, assim como osoutros livros da Bblia Hebraica e o Talmude, que um conjunto de interpretaes bblicas ediscusses sobre o judasmo. Embora haja verses contemporneas com divises do texto emcaptulos e versculos, a Tor tradicional no tem divises em partes, nem marcas de pontuao.Acima da linha do texto, h marcaes musicais e abaixo h marcas de vocalizao. Nosprimrdios, foi transmitida oralmente, em forma de canto. S depois, paulatinamente, os livros setornaram escritura.

    Segundo nosso Entrevistado, nas cerimnias religiosas, o condutor usa a Tormanuscrita em pergaminho, que considerado o objeto mais sagrado dentro de uma sinagoga. Paraa leitura individual e para o estudo, em geral se usa a verso impressa em livro.

    3.4.1 Entrevista com leitor/usurio

    O entrevistado que falou sobre a leitura da Tor brasileiro, tem 50 anos e possuimestrado em Lngua Hebraica. Atua profissionalmente como rabino, o que implica trabalhar comoprofessor de ensino religioso e de hebraico, exercer liderana sobre a congregao e conduzircerimnias religiosas. Pertence linha do judasmo progressista, tambm conhecido como liberal oureformista. casado e tem filhos. De agora em diante, ele ser chamado de Entrevistado 4.

    Em relao s prticas de leitura, relata que, no judasmo, recomenda-se que osmembros leiam a Tor pelo menos trs vezes por semana, individualmente ou em comunidade, masno existe nenhuma orientao sobre a forma como deve ser lida. Esclarece que a edio maiscomum apresenta o texto em hebraico em uma pgina, a traduo na pgina ao lado e diversoscomentrios nas notas de rodap. Assim como os muulmanos, os judeus priorizam a leitura nalngua litrgica, e as cerimnias tambm so em hebraico.

    Em relao s verses digitais, o Entrevistado 4 relata que, durante vrios anos no ofciode professor, teve dificuldades em preparar material de aula utilizando somente fotocpias detrechos da Tor. Esclarece que, alm de no poder criar ou editar textos em hebraico, as marcaesmusicais acima da linha do texto da Tor e as marcas de vocalizao abaixo precisavam serapagadas com corretivo para no confundirem os alunos que estavam aprendendo hebraico ouensino religioso. Foi ento que ele descobriu o programa Davka Writer, um editor de textos paraWindows desenvolvido pela comunidade judaica.

    O Davka Writer traz textos completos e editveis do cnone judaico e possuiferramentas com as quais possvel: compor e editar textos em hebraico; escolher entre 55 fontesdiferentes de hebraico; copiar e colar trechos bblicos e limpar as marcaes de canto e/ou marcasde vocalizao; usar corretor automtico; traduzir textos do hebraico para o ingls e vice-versa;buscar palavras ou trechos, entre outros recursos. O entrevistado relata que o editor Word, daempresa Microsoft, tambm disponibiliza e reconhece fontes em hebraico, mas no com a mesmaeficcia e variedade do Davka Writer. A Figura 3, a seguir, traz uma das telas do software DavkaWriter na sua verso Platinum 6. Na figura, vemos o funcionamento de um corretor ortogrfico parapalavras em hebraico.

    12

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    Figura 3 - Software Davka Writer Platinum 6. Corretor ortogrfico.

    Embora seja um entusiasta do Davka Writer e conhea outras ferramentas digitais paraleitura religiosa, o Entrevistado 4 relata que faz sua leitura da Tor somente em livro e pergaminho.Quando perguntado sobre a relao entre impresso e digital na leitura de obras sagradas, relata que:

    A verso em pergaminho sagrada e isso j est incorporado na comunidade. Acomunidade beija o pergaminho quando passa por ele. Ento eu acho que no tem chancesde se perder essa santidade, mesmo com as verses digitais. O pergaminho fica para semprecomo o mais sagrado e com uma certa aura ao redor dele. Sobre a questo livro versusverso digital, se um vai ser mais sagrado que o outro, eu diria que sim. At hoje, o nomede Deus em hebraico escrito em um livro d uma certa santidade a esse livro. No se podejogar no lixo o livro da Tor. Se ele cair, eu tenho que beij-lo. Se ele no puder ser maisusado, se tiver traas, a gente junta e leva para o cemitrio e enterra para que ele volte natureza. E isso no acontece com as verses digitais. Nunca vi ningum comentando emapagar o nome de Deus na internet ou numa mdia digital. [...] Ento vai ter essa hierarquiasim: o pergaminho o mais sagrado, a verso impressa tambm sagrada, mas no tantoquanto o pergaminho, e as verses digitais no vo chegar a esse patamar de santidade,sero s mesmo uma questo de ferramenta (Entrevistado 4).

    4 DISCUSSO

    A predileo do Entrevistado 1 pela leitura da Bblia em suporte impressoprovavelmente reflete o posicionamento de uma parcela da sociedade que est num lugarintermedirio entre uma gerao marcadamente mais analgica e outra que j nasceu na era dastecnologias digitais, ou seja, a gerao dos nativos digitais. Observamos, por exemplo, que eleutiliza a Bblia digital, mas prefere a verso impressa. Embora admitamos que a classificao em

    13

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    geraes (em questo de tecnologia) apresente falhas, uma vez que nem sempre a idade reflete aafinidade que uma pessoa tem com determinada tecnologia, essa classificao parece se adequarbem a esse caso. Embora a opinio do Entrevistado 1 seja contrria ao que defende Soares (2002),ou seja, de que no se trata de uma prtica melhor ou pior que a outra em termos de eficincia noaprendizado, mas de um novo letramento, por outro lado, ele respaldado pela pesquisadora eprofessora da UFRJ Nizia Villaa, que, em seu livro Impresso ou eletrnico?, argumenta que aleitura de fruio s se completa com o contato corporal com o livro (2002, p. 62).

    Em relao ao Entrevistado 2, interessante notar que, embora tenha listado tantosprotocolos de leitura do Alcoro impresso, ele parece estabelecer uma diferena bastante ntidaentre o contedo da obra (considerado inviolvel e independente do suporte que o contm) e osprotocolos de leitura e manuseio do livro impresso. Embora tenha afirmado, no incio da entrevista,que o Alcoro considerado sagrado o impresso e em rabe, ele apresenta uma viso bastanteacolhedora para as verses digitais da obra como ferramentas para aprofundamento de estudos edisseminao da religio. Afirma que, por uma questo histrica e tradicional, as verses digitaisno substituiro a importncia da obra impressa em termos de sacralidade, mas, segundo o leitor,elas so muito bem-vindas. Suas palavras respondem questionamentos a respeito do futuro do livroe corroboram a posio de Umberto Eco e Jean-Claude Carrire (2010) de que o livro como oconhecemos hoje conviver com outros objetos de ler. Numa linha semelhante de pensamento,Santaella (2004) afirma que, na histria das publicaes, muitas vezes j aconteceu de mudanas nosuporte utilizado alterarem significativamente seu alcance e, por conseguinte, aumentarem onmero de leitores. No entanto, para a autora, nem sempre essas variaes significaram, em umprimeiro momento, mudanas na maneira de pensar, produzir, projetar a apresentao doscontedos, o que acontece bem mais devagar.

    A grande adeso do Entrevistado 3 s verses digitais e sua facilidade para a utilizaodas ferramentas parece indicar que ele j esteja experimentando o novo letramento mencionado porSoares (2002). Ou seja, ele provavelmente est se apropriando de prticas de leitura que soprprias do ambiente digital e que no necessariamente imitam ou substituem as prticas com oimpresso, conforme defendido por Ribeiro (2012). No entanto, sua preocupao com o exemplo quevai dar filha pode refletir a mesma relao intermediria entre geraes observada na prtica doEntrevistado 1, que falou sobre a Bblia. Sua preocupao de que a filha no entenda que ele estlendo a obra sagrada no celular provavelmente se relaciona com o fato de ele no poder antever arelao que as futuras geraes tero com o livro impresso e de se basear somente na experinciaque ele prprio teve ao seguir o exemplo do pai.

    A posio fortemente hierrquica estabelecida pelo Entrevistado 4 entrepergaminho/cdice/verso digital mais uma vez corrobora a posio de Eco e Carrire (2010)quando os autores defendem a imortalidade do livro impresso mesmo com o advento da internet edos dispositivos eletrnicos conhecidos como e-readers. O pergaminho foi o suporte para leitura eescrita predominante na Idade Mdia no Ocidente. Segundo Fischer (2006, p. 187), a partir de 1450,com a inveno dos tipos mveis e da imprensa, a Era do Pergaminho simbolicamente se dobravadiante da Era do papel. Se uma tecnologia to antiga como o pergaminho ainda mantida pelosjudeus, no difcil acreditar que a previso do Entrevistado 4 esteja correta, ou seja, de que ojudasmo provavelmente continuar estabelecendo uma hierarquia e uma reverncia relacionada aosuporte que contm o texto da Tor.

    14

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    CONSIDERAES FINAIS

    O objetivo deste estudo era investigar a disponibilidade de verses de obras sagradas emtecnologia digital e o seu impacto sobre as prticas de leitura tradicionais. Sobre a disponibilidade,pode-se perceber que as quatro obras investigadas esto disponveis em verses digitais. Em relaoao impacto das novas tecnologias, nossa pergunta de pesquisa foi: como os protocolos de leitura e ahabitual reverncia ao suporte material de obras consideradas sagradas se alteram (ou se mantm)diante de verses digitais dessas obras?

    Nas entrevistas, pode-se notar que cada entrevistado demonstrou uma viso bastantepessoal e especfica sobre a relao entre impresso e digital. No entanto, podemos perceber doispares de opinies mais ou menos semelhantes, quais sejam, a posio dos respondentes 1 e 3, de umlado, e a posio dos respondentes 2 e 4, de outro.

    As entrevistas mostraram que, nos dois casos em que a reverncia e os protocolos erammais rgidos (Alcoro e Tor), a distino clara que os dois respondentes fazem com relao sacralidade da obra em suporte impresso e a sua funo ferramental no suporte digital acaba porfomentar a permanncia de prticas especficas de leitura do texto impresso. Por outro lado, a maioradeso das verses digitais por parte dos respondentes 1 e 3 pode ser reflexo de uma menorincidncia de rituais e protocolos de leitura do texto sagrado em relao ao suporte.

    preciso admitir, no entanto, que os respondentes 2 e 4 esto na faixa etria de 50 a 55anos, fato que pode fazer com que, por uma questo de diferena de geraes, na sua relao com oimpresso, transpaream tendncias mais tradicionalistas do que na relao apresentada pelos outrosdois respondentes, ambos com 29 anos de idade. Cabe, portanto, para o futuro, uma pesquisa maisabrangente sobre o assunto aqui tratado, envolvendo um nmero maior de sujeitos investigados elevando em considerao a varivel faixa etria nos resultados de pesquisa e talvez at outrasvariveis, como sexo, escolaridade, perfil socioeconmico, dentre outras.

    REFERNCIAS

    AZEVEDO, Antonio Carlos do Amaral; GEIGER, Paulo. Dicionrio histrico das religies. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2002, p. 297-300.

    CHARTIER, Roger. Do cdice ao monitor: a trajetria do escrito. Estudos Avanados. [on-line].1994, vol. 8, n. 21, p. 185-199.

    CHARTIER, Roger. Comunicao pessoal. Curso de Altos Estudos Fronteiras do Pensamento.Porto Alegre, 22 de maio de 2007.

    ECO, Umberto; CARRIRE, Jean-Claude. No contem com o fim do livro. Traduo de AndrTelles. So Paulo: Record, 2010.

    ELIADE, Mircea e COULIANO, Ioan P. Dicionrio das religies. So Paulo, Martins Fontes, 1995.

    FISCHER, Steven R. A Histria da Leitura. Traduo de Cludia Freire. So Paulo: Editora

    15

  • http://periodicos.letras.ufmg.br/index.php/textolivre Ano: 2013 Volume: 6 Nmero: 2

    UNESP, 2006.

    HINNELLS, John R (Org.). Dicionrio das religies. So Paulo: Editora Cultrix, 1989.

    KNIG, Franz; WALDENFELS, Hans (orgs.). Lxico das religies. Petrpolis: Editora Vozes,1998.

    LVY, Pierre. As Tecnologias da Inteligncia. Traduo de Carlos Irineu da Costa. Rio de Janeiro:Ed. 34, 1993.

    RIBEIRO, Ana Elisa F. Novas tecnologias para ler e escrever. Belo Horizonte: RHJ, 2012.

    SANTAELLA, Lucia. Navegar no Ciberespao: o perfil cognitivo do leitor imersivo. So Paulo:Paulus, 2004.

    SANTIDRIN, Pedro R. Dicionrio bsico das religies. So Paulo: Santurio, 1996.

    SOARES, Magda. Novas prticas de leitura e escrita: letramento na cibercultura. Revista Educaoe Sociedade. Campinas, vol. 23, n. 81, p. 143-160, dez 2002.

    VILLAA, Nizia M. S. Impresso ou eletrnico? - um trajeto de leitura. Rio de Janeiro: Mauad,2002.

    WOLTON, Dominique. Internet, e depois? Uma teoria crtica das novas mdias. Porto Alegre:Sulina, 2003.

    16

  • i Dado calculado com base na Tabela 1.4.1 (Populao residente, por situao do domiclio e sexo, segundo osgrupos de religio) do Censo IBGE Brasil 2010. Disponvel em:.Acesso em: 06 fev. 2013.

    LEITURA RELIGIOSA E NOVAS TECNOLOGIAS: UM ESTUDO SOBRE O USO DE VERSES DIGITAIS DA BBLIA, DO ALCORO, DO LIVRO DE MRMON E DA TORIntroduo1 Referencial Terico: leitura religiosa e novas tecnologias2 Metodologia3 Apresentao dos dados3.1 A Bblia SagradaA Bblia, aqui entendida como a unio do Antigo e do Novo Testamento, a obra considerada sagrada para o cristianismo. O texto dividido em livros, captulos e versculos. Na verso protestante (ou seja, sem os livros chamados apcrifos, considerados sagrados somente pela Igreja Catlica), a Bblia tem 66 livros que, entre narrativa, genealogia e doutrina, englobam eventos desde a verso crist para a criao do mundo at o sculo I d.C.3.1.1 Entrevista com leitor/usurio

    3.2 O Alcoro3.2.1 Entrevista com leitor/usurio3.3 O Livro de Mrmon3.3.1 Entrevista com leitor/usurio

    3.4 A Tor3.4.1 Entrevista com leitor/usurio

    4 DiscussoConsideraes finaisREFERNCIAS