4.º esboço esquemático sobre a responsabilidade civil
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Esboço esquemático sobre a responsabilidade civil de acordo com as regras
do Código Civil
Sumário
I. Considerações introdutórias
1. A atitude tendencial de recusa da responsabilidade
2. A exigência de um agir com responsabilidade
3. O risco geral de vida e a regra “casum sentit dominus”
4. A necessidade de deslocar o dano ocorrido de quem o sofreu para
aquele que o causou: a razão de ser da responsabilidade civil
5. As responsabilidades contratual e extracontratual; responsabilidade
civil em sentido amplo e em sentido restrito
II. A responsabilidade individual por actos próprios
1. A responsabilidade contratual; a culpa presumida do devedor
2. A responsabilidade extracontratual
a) A responsabilidade por factos ilícitos, baseada na culpa do lesante
aa) A regra geral; o ónus da prova
bb) Os casos de culpa presumida; a inversão do ónus da prova
cc) Os inimputáveis e a sua responsabilidade
dd) A responsabilidade em casos de culpa leve
b) A responsabilidade pelo risco
c) A responsabilidade por factos lícitos
d) Breve referência a casos de responsabilidade não regulados pelo
Código Civil, p.ex., a responsabilidade do produtor ou do poluidor
3. A responsabilidade solidária
III. A responsabilidade por actos de outrem
1. A responsabilidade contratual
2. A responsabilidade extracontratual
IV. As limitações da responsabilidade
1. O património do devedor como garantia geral da responsabilidade
2. Limitações por via negocial
a) Limitações contratuais
b) Limitações unilaterais
3. Limitações por via legal
a) A culpa do lesado
b) Considerações de equidade
c) Limites máximos da responsabilidade
d) A separação dos patrimónios
4.A deslocação da responsabilidade para o seguro
V. Considerações finais
Trabalho concebido com fins essencialmente didácticos.
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I. 1. “Nunca ninguém tem culpa, nunca ninguém é responsável, nem pelas
praias desfiguradas, nem pelos rios poluídos, nem pelos fogos que
destroem a floresta.”1 Parece que podemos concordar com esta observação.
Sempre que ocorre um facto causador de um dano não há ninguém que se
sinta responsável por ele e, de modo igual, também não há ninguém que
aceite arcar com o prejuízo sofrido. “Não fui eu” ou “não tive culpa” ou
“não pude fazer nada”; estas ou outras reacções parecidas ouvem-se
sempre, e todas elas destinam-se, invariavelmente, para afastar quaisquer
responsabilidades. Por outro lado, por parte de quem sofreu o prejuízo, tais
reacções, espontâneas, encontram a sua correspondência: a procura, quase
instintiva, de alguém que paga. Portanto, o que é que importa é sacudir a
responsabilidade ou o prejuízo, fazendo ombrear outros com eles.
Mas acontece, por mais estranho que possa parecer às mentalidades de
hoje, que estas reacções não correspondem à realidade legal. Sofrer um
dano significa ter sido violado, em princípio, num direito subjectivo. Um
direito subjectivo é a expressão do facto de a ordem jurídica,
designadamente o direito privado, ter reconhecido a uma pessoa um
“domínio” sobre um bem. Todavia, na medida em que a pessoa tem o
“domínio” sobre o bem é precisamente ela quem assume os riscos que lhe
são inerentes, inclusive o de se verificar um dano ou um prejuízo. Apenas
nos precisos casos em que a ordem jurídica prevê que a violação de um
direito subjectivo acarreta o dever de indemnizar, o prejuízo acaba por ser
afastado de quem o sofreu.
2. O direito privado considera a pessoa humana um ser responsável, melhor
dizendo: auto-responsável, e, por conseguinte, o Código Civil (CCiv) diz
no seu artigo 130º: “Aquele que perfizer dezoito anos de idade adquire
plena capacidade de exercício de direitos, ficando habilitado a reger a sua
pessoa e a dispor dos seus bens.” Com esta disposição a lei civil reconhece
autonomia à pessoa humana. Isto significa que uma pessoa pode, de acordo
com a sua vontade, tratar em princípio de si própria e dos seus bens com
todo o cuidado mas também com o descuido que achar por bem, podendo
ser diligente ou negligente, como lhe convém ou como corresponde à sua
maneira de ser.
De facto, o homem possui capacidade para, conforme a sua vontade
autónoma, determinar as suas condutas, estabelecer metas, criar ou
conformar relações sociais ou jurídicas, escolher e estabelecer o seu modo
1 Manuel Alegre, Expresso, 23 de Agosto de 2003, p. 12.
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de vida, aceitar desafios ou assumir responsabilidades. A possibilidade de
agir neste sentido significa ter liberdade.
Contudo, antes de agir, o homem deve ponderar os efeitos e os riscos da
sua acção (para ele próprio, para familiares, para terceiros ou até para a
comunidade), reflectir sobre as consequências e procurar antever os
resultados de acordo com a experiência, os conhecimentos, as informações
e os aconselhamentos de que dispõe e dentro do humanamente previsível.
De facto, a consciência de incluir na sua decisão de agir (ou a consciência
de assumir ou de se identificar com) os efeitos e as consequências dos actos
que vierem a ser praticados modera e limita a liberdade de decisão do
agente no sentido de evitar voluntarismos, arbitrariedades ou abusos ou de
correr riscos de modo irreflectido. Esta constatação vale para todo e
qualquer tipo de actividade. Agir livremente significa por isso assumir os
riscos e as consequências dos actos praticados, ou seja, ser responsável. É
precisamente este modo de agir que representa uma prerrogativa e um ónus
do homem. Por outro lado, é também precisamente este modo de agir que
muitas vezes não é seguido.
3. Acresce que o homem há-de assumir também riscos independentemente
da sua vontade. Porque viver significa arcar com os riscos próprios da vida.
Estes riscos são vários, mudando com a evolução dos tempos, e podem
afectar tanto a pessoa como os seus bens. Em parte são evitáveis (homem
prevenido vale por dois), em parte não o são. Há riscos cuja concretização
pode mesmo arruinar a existência privada da pessoa. Pertencem aqui a
doença, a invalidez, a morte, a dissolução do casamento (ou, também, da
união de facto) e a responsabilidade civil. Estes riscos da sua vida uma
pessoa não os pode eliminar, embora possa procurar evitá-los ou, em parte,
atenuá-los ou adiá-los. P.ex., uma pessoa vai regularmente ao seu médico,
não pratica desportos perigosos, não aceita o transporte gratuito (“boleia”)
de alguém manifestamente embriagado, não casa (ou não se divorcia; ou o
divórcio revela-se como um remédio de uma situação insustentável) ou não
se envolve em negócios demasiadamente arriscados.
Todavia, casos há – e são muitos – em que a concretização do risco e, com
ele, a ocorrência do dano, não se conseguem prevenir ou são até o preciso
resultado da conduta negligente da pessoa prejudicada. Nestes casos a
verdade é a de que a pessoa prejudicada assume todos os efeitos danosos.
Ela arca com os prejuízos sofridos na sua pessoa ou nos seus bens. “Casum
sentit dominus” diziam os velhos romanos. De facto, uma pessoa não se
pode subtrair de todo aos riscos que a ameaçam na sua vida ou nos seus
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bens. Esta é a realidade. E é desta realidade que parte a lei civil: o prejuízo
é suportado por quem o sofrer – como já constatámos.
4. Contudo, a justeza do princípio de que o prejuízo é de suportar por parte
de quem o tiver sofrido gere logo dúvidas quando olharmos para as
circunstâncias concretas em que ele pode ter surgido. Vejamos os seguintes
exemplos: a) um comprador não paga o preço da coisa comprada por ter
perdido no jogo; assim, o vendedor fica (para já) sem o dinheiro devido; b)
na “época de fogos”2 um proprietário vê arder um pinhal seu porque
durante uma trovoada seca caiu um relâmpago que o incendiou; c) o
proprietário vê arder o seu pinhal porque houve fogo posto por um vizinho
rancoroso; d) o proprietário vê arder o seu pinhal que foi incendiado por
crianças ou por um débil mental; e) uma pessoa, ao dar um passeio à noite,
é atropelada por um carro cujo condutor perdeu o controlo de direcção
sobre o veículo porque furou um pneu das rodas de frente quando passou
por cima de um buraco na estrada; f) para se defender do ataque de um cão,
uma pessoa arranca a bengala a um cego e, ao bater no cão, parte a bengala;
além disso, o cego perde o equilíbrio, cai e fica com um ligeiro hematoma;
g) uma senhora, querendo fazer um telefonema com o seu telemóvel, sofre
graves queimaduras na cara porque, inexplicavelmente, o telemóvel
explodiu. Na verdade, pretender aplicar em todas estas situações,
indiscriminadamente, o princípio “casum sentit dominus” não parece nem
adequado nem justo.
É neste contexto que surge a responsabilidade civil. A sua razão de ser e
função fundam-se na necessidade de deslocar um dano ocorrido de quem o
sofreu, o lesado, para aquele que o causou, o lesante, e isto de acordo com
determinados critérios legais, iguais para todos. A responsabilidade civil
pressupõe assim a ocorrência de um dano e o dever de indemnizar este
dano, precisamente por parte do lesante, na medida em que o dano vai para
além do risco geral de vida que o lesado deve assumir (em sintonia com as
concepções reinantes e o estado de evolução social). Nestes termos, deve
indemnizar aquele a quem o facto causador do dano é imputado por lei.
Segundo o art. 562.º CCiv “quem estiver obrigado a reparar um dano deve
reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento
que obriga à reparação.” Vale o princípio da reconstituição natural. Neste
contexto “o dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado,
como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da
lesão” (art. 564.º, n.º1), ou seja, a indemnização abrange ainda os chamados
lucros cessantes. Todavia, “a indemnização é fixada em dinheiro, sempre
2 Circunstâncias semelhantes são as épocas de nevoeiro ou as alturas da chuva em que se sucedem, com
frequência, acidentes de viação devidos, evidentemente, ao nevoeiro e à chuva …
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que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os
danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor” (art. 566.º, n.º 1).
5. Como mostram os exemplos referidos, os danos e a correspondente
responsabilidade civil poderão encontrar o seu fundamento num contrato,
um negócio jurídico, ou fora dele. Daí que se distingue a responsabilidade
contratual da responsabilidade extracontratual, ambos compreendidos pelo
conceito da “responsabilidade civil em sentido amplo”. Contudo, as
responsabilidades contratual e extracontratual têm origens bem distintas.
Na primeira, a razão última para a responsabilidade resulta sempre de
vínculos criados por uma vontade autónomo-privada, sendo de ajuizar, por
isso, o resultado danoso em função desta vontade privada. Na segunda,
bem pelo contrário, não se trata de ajuizar vontades autónomo-privadas e
os resultados dela decorrentes mas são de avaliar, isso sim, condutas
ilícitas, ou seja, condutas desconformes com a lei, às quais esta reage
normalmente com efeitos sancionatórios.
A sistematização do CCiv, ao regular a matéria da responsabilidade civil,
diferencia entre as duas modalidades referidas, atendendo às suas origens
distintas, e trata-as em contextos diferentes. A responsabilidade contratual
aparece, deste modo, inserida na matéria do não cumprimento do contrato
(arts. 790.º e ss.). A responsabilidade extracontratual, por seu lado, ocupa o
seu lugar entre as fontes das obrigações, sendo precisamente a última
destas (arts. 483.º e ss.).
O CCiv equipara na sua terminologia a responsabilidade extracontratual à
responsabilidade civil, utilizando assim um conceito de “responsabilidade
civil em sentido restrito”. Esta diferenciação corresponde, de resto, também
ao facto de a responsabilidade contratual atender à violação de direitos
relativos, que obrigam apenas as partes entre si (art. 406.º, n.º 1, 1.ª parte:
“pacta sunt servanda), enquanto a responsabilidade extracontratual respeita
à violação de direitos absolutos,3 cuja observância se impõe a todos.
II. Por via de regra, a responsabilidade do lesante é individual e respeita a
actos próprios. O princípio-base em que assenta é o facto de o lesante ter
agido com culpa o que exprime, por isso mesmo, uma censura ao seu
comportamento. É na culpa, e não tanto na necessidade de reparar os danos
causados ao lesado, que reside a justificação originária da responsabilidade.
Visto nestes termos, a responsabilidade tem um fundamento ético,
decorrente da concepção do homem como um ser auto-responsável.
3 Bem como à violação de interesses legalmente protegidos.
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1. Quanto à responsabilidade contratual, o art. 798.º determina: "O devedor
que falta culposamente ao cumprimento da obrigação torna-se responsável
pelo prejuízo que causa ao credor." Em ordem a fortalecer a posição do
credor, e ainda tendo em conta a origem autónomo-privada do vínculo
obrigacional, o art. 799.º, nº 1, acrescenta: "Incumbe ao devedor provar que
a falta de cumprimento ou o cumprimento defeituoso da obrigação não
procede de culpa sua." Quer dizer, a lei presume a culpa do devedor,
cabendo a este o ónus de provar que não a teve. A intenção da lei é a de não
permitir ao devedor uma "saída" fácil e de contribuir para que obrigações
assumidas sejam também cumpridas. A culpa é apreciada nos termos
aplicáveis à responsabilidade civil (art. 799.º, nº 2).
2. a) No que toca à responsabilidade civil, encontramos a regra
fundamental no art. 483.º, n.º 1. Aqui lê-se: "Aquele que, com dolo ou mera
culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal
destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado
pelos danos resultantes da violação." A responsabilidade aqui consagrada é
uma responsabilidade por factos ilícitos, baseada na culpa e, por isso
mesmo, subjectiva.
aa) O art. 483.º, n.º 1, estabelece uma sanção: O lesante que culposamente,
i.é., de maneira propositada ou negligente, violar de modo ilícito, ou seja,
em desrespeito à lei, um direito, mais precisamente um direito absoluto, de
outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos, quer dizer, todos
os danos sofridos. Estes podem ser danos patrimoniais ou morais, i.é., não
patrimoniais (art. 496.º).4 Todavia, o lesado, querendo ver os seus danos
reparados, não se encontra numa situação muito cómoda. Ao contrário do
que sucede ao credor na responsabilidade contratual, é a ele que incumbe
provar a culpa do autor da lesão (art. 487.º, n.º 1., 1ª parte). O lesado arca,
portanto, com o ónus (pesado) da prova.
A culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das
circunstâncias de cada caso (art. 487.º, n.º 2), de acordo com os cuidados
necessários no tráfico jurídico. Além de provar a culpa do lesante, que há-
de individualizar para o efeito, o lesado deve provar ainda que existe, entre
o dano que sofreu e o facto danoso, um nexo de causalidade adequada, quer
dizer, o facto danoso era, dentro do razoável e humanamente previsível,
susceptível de provocar o dano sofrido. A ocorrência do dano nestes termos
indicia regularmente a ilicitude do facto.5
4 Nestes casos a indemnização tem o carácter de uma compensação.
5 Todavia, nos casos em que o direito violado é disponível, o titular do direito pode eliminar a ilicitude
através do seu consentimento (art. 340.º, n.º 1). Por ex., uma pessoa pode consentir na violação do seu
direito de propriedade, mas já não pode consentir na violação do seu direito à integridade física ao
permitir que seja mutilada ou torturada.
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bb) Obviamente, a atribuição do ónus da prova pode dificultar ou mesmo
obstar à obtenção de uma indemnização, em princípio devida, se o lesado
não consegue provar os pressupostos enunciados no art. 483.º, n.º 1,
designadamente o da culpa. Por isso, em determinadas situações, a própria
lei procedeu a uma redistribuição, melhor dizendo, a uma inversão do ónus
da prova ao presumir a culpa do lesante, sendo certo que isto não significa
o abandono do princípio da culpa.
Temos aqui os casos da responsabilidade das pessoas obrigadas à vigilância
de outrem (art. 491.º), dos danos causados por edifícios ou outras obras
(art. 492.º) e dos danos causados por coisas, animais ou actividades
perigosas (art. 493.º). Se nas situações referidas tiver ocorrido um facto
danoso, as pessoas respondem pelos danos causados, salvo se provarem
que cumpriram os seus deveres e que nenhuma culpa houve da sua parte.
Também não respondem se os danos eram inevitáveis de todo, visto a
culpa, eventualmente existente, não ter sido decisiva, de modo que não há
razão para uma censura.
Em certas constelações danosas típicas, os tribunais, ao apreciar os factos
de acordo com a experiência da vida, procedem à uma prova "prima facie"
e, presumem, deste modo, a culpa do lesante. Também estas presunções
judiciais acabam por facilitar o ónus da prova que incumbe ao lesado.
cc) Atendendo ao princípio da culpa, não responde pelas consequências do
facto danoso quem, no momento em que o facto ocorreu, estava, por
qualquer causa, incapacitado de entender ou querer (art. 488.º, n.º 1, 1ª
parte). Nestas circunstâncias, uma pessoa não pode agir culposamente e é,
por isso mesmo, inimputável. A falta de imputabilidade é presumida nos
menores de sete anos e nos interditos por anomalia psíquica (art. 488.º, n.º
2). Esta presunção é ilidível mediante prova em contrário (art. 350, n.º 2).
Todavia, a lei não ignora que a incapacidade de querer e entender pode
resultar, ela mesma, de um agir culposo do lesante. Se este se colocou
culposamente nesse estado, sendo este transitório,6 responde (art. 488.º, n.º
1, parte final).
Do ponto de vista do lesado, que vê preenchidos todos os pressupostos da
responsabilidade por factos ilícitos menos o da culpa, devido à falta da
imputabilidade do autor da lesão, a situação não é confortante. É difícil
argumentar que tal situação faz parte do risco geral de vida do lesado, tanto
mais que ele, p.ex., pode não possuir grandes bens, mas o lesante sim. A lei
6 Como sucede, nomeadamente, nos casos de embriaguez.
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sentiu o problema e dispõe, quanto à indemnização por pessoa não
imputável, "se o acto causador dos danos tiver sido praticado por pessoa
não imputável, pode esta, por motivo de equidade, ser condenada a repará-
los, total ou parcialmente" (art. 489.º, n.º 1, 1ª parte). Todavia, esta solução
da lei é subsidiária: apenas se aplica desde que não seja possível obter a
devida reparação das pessoas a quem incumbe a vigilância do não
imputável (art. 489.º, n.º 1, 2ª parte), de acordo com o previsto no art. 491.º.
Mas sempre que estas pessoas não respondem será o não imputável a
reparar os danos nos termos definidos pelo artigo 489.º, n.º 1, 1ª parte, e n.º
2).
dd) Por outro lado, também o lesante pode sentir que a aplicação rigorosa
do princípio da culpa o atinge de uma maneira não merecida. Na verdade, o
lesante pode ter agido apenas com culpa leve, houve da parte dele simples
negligência, como tantas vezes acontece na vida, mas o prejuízo causado é
muito elevado. Todavia, segundo a regra-base do art. 483.º, em caso de
culpa, o dever de indemnizar abrange todos os danos causados ao lesado.
Neste contexto, em situações de culpa leve, o art. 484.º permite uma
limitação da indemnização. Diz ele: "Quando a responsabilidade se fundar
na mera culpa, poderá a indemnização ser fixada, equitativamente, em
montante inferior ao que corresponderia aos danos causados, desde que o
grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e
as demais circunstâncias do caso o justifiquem." Aqui, a lei atenua os
efeitos sancionatórios da responsabilidade por factos ilícitos a favor do
lesante e à custa do lesado. Mas este deve aceitar o resultado, uma vez que
não pode contar, em todas as situações, com a diligência dos outros.7
b) A responsabilidade por factos ilícitos, baseada no princípio da culpa, não
tem resposta para os casos em que surgem danos independentemente de
culpa mas em que não é de aceitar como justo que sejam suportados pelo
lesado que os sofreu. Para estes casos há um tipo de responsabilidade civil
independentemente de culpa, ou seja, a responsabilidade pelo risco, como
responsabilidade objectiva. Contudo, de acordo com o art. 483.º, n.º 2, "só
existe obrigação de indemnizar independentemente de culpa nos casos
especificados na lei", o que significa que há, a seu respeito, uma tipicidade
ou "numerus clausus".
A responsabilidade pelo risco constitui, ao lado da responsabilidade por
factos ilícitos, uma modalidade autónoma com fundamentos próprios para a
7 Cf., neste contexto, o art. 486.º que esclarece que "as simples omissões (apenas) dão lugar à obrigação
de reparar os danos, quando, independentemente dos outros requisitos legais, havia, por força da lei ou de
negócio jurídico, o dever de praticar o acto."
9
deslocação do dano de quem o sofreu para quem o causou, imputando-o
desta maneira ao lesante.8 O seu fundamento reside no raciocínio que os
danos resultantes de actividades lícitas, úteis e socialmente aceites por
serem indispensáveis, mas com riscos inerentes e nem sempre de evitar,
devem ser assumidos, caso o risco se concretize, por quem exercer esta
actividade, tirando dela os seus proveitos, mas não por quem ficar
prejudicado por elas. Aplica-se ao agente a velha máxima "ubi commoda,
ibi incommoda".
O CCiv regula a responsabilidade pelo risco nos arts. 499.º e seguintes,
sendo de realçar aqui os arts. 502.º (danos causados por animais que
resultem do perigo especial da sua utilização), 503.º (danos provenientes
dos riscos próprios de veículos de circulação terrestre) e 509.º (danos
causados por instalações de energia eléctrica ou gás), sendo certo que este
último caso se distingue um pouco dos dois primeiros, dado que a
responsabilidade não resulta de uma actividade mas é inerente à instalação.
Há, além do CCiv, muitas leis especiais que vieram a contemplar novos
casos da responsabilidade pelo risco.
c) Além da responsabilidade por factos ilícitos e da responsabilidade pelo
risco, o CCiv conhece ainda uma outra modalidade de responsabilidade
civil que é a responsabilidade por factos lícitos. Esta última não encontra,
porém, no CCiv um regime geral. Os casos, todos excepcionais, estão
regulados de maneira dispersa na lei (ver os arts. 339.º, n.º2; 1322.º, n.º 1;
1347.º, n.º 3; 1348.º, n.º 2; 1349.º, n.º 3, e 1367.º). Nestes casos, o titular de
um direito é obrigado a tolerar determinadas intervenções mas obtém, em
contrapartida, um direito de ser indemnizado pelos danos sofridos. Pode ser
referido como paradigmático o caso do estado de necessidade previsto no
art. 339.º.
Segundo o art. 339.º, n.º 1, "é lícita a acção daquele que destruir ou
danificar coisa alheia com o fim de remover o perigo actual de um dano
manifestamente superior, quer do agente, quer de terceiro." Trata-se de uma
situação de emergência. É esta que justifica e torna lícita a acção danosa,
destrutiva ou danificadora de uma coisa, da parte do lesante. Todavia, "o
autor da destruição ou do dano é obrigado a indemnizar o lesado pelo
prejuízo sofrido, se o perigo for provocado por sua culpa exclusiva; em
qualquer outro caso, o tribunal pode fixar uma indemnização equitativa e
condenar nela não só o agente, como aqueles que tiraram proveito do acto
ou contribuíram para o estado de necessidade."
8 Inicialmente, quando começou a surgir, a responsabilidade pelo risco foi entendida como uma excepção
ao princípio da culpa, mas com o alargamento contínuo desse tipo de responsabilidade a cada vez mais
actividades, este entendimento deixou de ser adequado.
10
d) Acontece que todas as modalidades de responsabilidade civil que foram
mencionadas e que têm o seu regime no CCiv se mostram insuficientes
quando a responsabilidade individual não pode ser apurada. De facto, o
funcionamento de instalações técnicas sofisticadas, a informatização de
muitos processos, o fabrico robotizado em grandes séries, a automatização
da produção acompanhada por uma cadeia anónima de actos isolados e
especializados, os meios de transporte e de distribuição modernos, etc.
impossibilitam praticamente sempre a individualização de um lesante e,
além disso, impedem de todo o apuramento de culpas pessoais que possam
existir.
Nas condições referidas aparece indicado que os danos causados sejam
imputados a quem utilizar estes modos de produção e tirar deles os seus
lucros. Para este efeito, foi introduzido pelo DL n.º 383/89, de 6 de
Novembro, um regime especial que regula a responsabilidade do produtor
como mais uma forma de responsabilidade objectiva que não pressupõe
nem culpa nem ilicitude.9 "O produtor é responsável, independentemente
de culpa, pelos danos causados por defeitos dos produtos que põe em
circulação" lê-se no art. 1.º do DL n.º 383/89. Em princípio, o produto deve
ter sido correctamente utilizado.
São apenas economias com padrões de evolução muito avançadas que
podem admitir este tipo de responsabilidade objectiva cuja extensão, de
resto, não pode ser exagerada sob pena de tornar incalculáveis os riscos de
certas actividades económicas. Pode dizer-se, contudo, que quanto mais
desenvolvida for uma sociedade, mais abrangente será o seu sistema legal
de responsabilidade civil.
3. Em muitas circunstâncias sucede que a causação de um dano resulta de
actos praticados por vários autores. Se assim for, todos eles respondem
civilmente por actos próprios pelos danos que hajam causado (art. 490.º).
De acordo com o disposto no art.497.º, n.º 1, a sua responsabilidade perante
o lesado é solidária.10
Como explica o art. 512.º, n.º 1, 1ª parte, "a
obrigação é solidária, quando cada um dos devedores responde pela
prestação integral e esta a todos libera." Por isso, "o credor tem o direito de
9 Um outro tipo de responsabilidade objectiva, a mencionar neste contexto, é a responsabilidade do
poluidor do ambiente, embora aqui o lesante ainda possa ser individualizado. O art. 41.º da Lei de Bases
do Ambiente, a L n.º 11/87, de 7 de Abril, proclama que "existe obrigação de indemnizar,
independentemente de culpa, sempre que o agente tenha causado danos significativos no ambiente, em
virtude de uma acção especialmente perigosa, muito embora com respeito do normativo aplicável." 10
O art. 513.º determina que a solidariedade de devedores ou credores só existe quando resulte da lei ou
da vontade das partes.
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exigir de qualquer dos devedores toda a prestação" (art. 519.º, n.º 1, 1ª
parte).
Este regime de responsabilidade solidária coloca o lesado numa posição
muito vantajosa: ele pode, de entre os vários autores do facto danoso,
escolher aquele onde lhe é mais fácil obter a indemnização pelo prejuízo
sofrido. Obviamente, o lesado pode receber a sua indemnização apenas
uma vez. Na verdade, a satisfação do seu direito por um dos lesantes
responsáveis (art. 490.º) produz a extinção, em relação ao lesado, das
obrigações dos restantes devedores da indemnização (art. 523.º). Estes hão-
de acertar, agora, as contas entre si, o que sucede com o recurso ao direito
de regresso regulado no art. 524.º. "O devedor que satisfizer o direito do
credor além da parte que lhe competir tem direito de regresso contra cada
um dos condevedores, na parte que a estes compete."
III. Em todos os casos de responsabilidade regulados pelo CCiv, descritos
até agora, o lesante, ao qual incumbe ressarcir o lesado dos danos sofridos,
responde por actos próprios. Contudo, casos há – e na vida prática são
muito frequentes e importantes – em que alguém tem de responder por
actos de outrem. Esta responsabilidade por actos de outrem verifica-se
tanto na responsabilidade contratual com na extracontratual.
1. Na responsabilidade contratual compete ao devedor o cumprimento da
sua obrigação para com o credor. "O devedor cumpre a obrigação quando
realiza a prestação a que está vinculado" (art. 762.º, n.º 1) ao credor certo
(art. 769.º), no lugar certo (art. 772.º, n.º 1) e dentro do prazo certo (art.
777.º, n.º 1). Mas com frequência o devedor não pode ou não precisa de
cumprir em pessoa. Nestes casos serve-se de um auxiliar no cumprimento
e, consequentemente, há-de assumir a responsabilidade pelos actos deste.
Para o efeito, o CCiv prevê no art. 800.º, n.º 1: "O devedor é responsável
perante o credor pelos actos ... das pessoas que utilize para o cumprimento
da obrigação, como se tais actos fossem praticados pelo próprio devedor."
Estamos aqui em face de uma responsabilidade muito severa destinada a
assegurar que obrigações uma vez assumidas por efeito de uma vinculação
autónomo-privada são também cumpridas. Vale, de novo, o princípio
"pacta sunt servanda", consagrado no art. 406.º, n.1, 1ª parte.
2. Mas também na responsabilidade extracontratual, na responsabilidade
civil em sentido restrito, encontramos um exemplo, aliás importante, em
que alguém responde por actos praticados por outrem. É o caso da
responsabilidade do comitente pelos actos do seu comissário, regulado no
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art. 500.º. "Aquele que encarrega outrem de qualquer comissão responde,
independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde
que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar" (art. 500.º, n.º 1).
O art. 500.º é um caso da responsabilidade pelo risco no que respeita ao
comitente. Este assume, independentemente de culpa sua, o risco de o seu
comissário causar danos ao incorrer em responsabilidade civil – ou por
factos ilícitos, ou pelo risco, ou por factos lícitos – e ao ficar obrigado de
indemnizar, por causa disso, o lesado. Apenas quando a obrigação de
indemnizar, por efeito da responsabilidade civil, se tiver concretizado,
primeiro, na pessoa do comissário, esta obrigação é assumida, a seguir,
pelo comitente em relação ao lesado.
Para o lesado esta solução da lei significa uma melhoria considerável
quanto às suas possibilidades de vir a ser indemnizado. Comitente e
comissário respondem-lhe solidariamente (art. 497.º, n.º 1) de modo que o
lesado pode pedir a indemnização a quem lhe parece mais oportuno.
Normalmente, será o comitente que se vê obrigado a indemnizar o lesado,
mas pode não ser assim.
O comitente que indemnizar o lesado tem o direito de exigir do comissário
o reembolso de tudo quanto haja pago, excepto se houver também culpa da
sua parte (art. 500.º, n.º 3, 1ª parte). Quer dizer, o direito de reembolso
apenas existe se só o comissário tiver agido com culpa. Esta solução da lei
está perfeitamente correcta, uma vez que não corresponderia às suas
decisões valorativas se o autor de uma lesão, causada culposamente, ficasse
isento da sua responsabilidade unicamente em virtude do facto de ter
havido um terceiro que se viu obrigado, por lei, a indemnizar o lesado.
Porém, se houver culpa igualmente do lado do comitente, aplicam-se as
regras do art. 497.º, n.º 2, que determina que "o direito de regresso entre
vários responsáveis existe na medida das respectivas culpas e das
consequências que delas advieram, presumindo-se iguais as culpas das
pessoas responsáveis." Acrescenta-se que do disposto nos arts. 500.º, n.º 3,
e 497.º, n.º 2, resulta ainda que não há direito de reembolso ou de regresso
contra o comissário quando este tiver incorrido em responsabilidade civil
por facto não culposo.11
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A mesma conclusão decorre também do art. 503.º, n.º3, 1ª parte, que reza o seguinte: "Aquele que
conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve
culpa a sua parte." Se, porém, conduzir o veículo fora do exercício das suas funções de comissário,
responde, nos termos do art. 503.º, n.º 1, pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, ou seja,
responde pelo risco.
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De qualquer maneira, "a responsabilidade do comitente só existe se o facto
danoso for praticado pelo comissário no exercício das suas funções" (art.
500.º, n.º 2), mas não por ocasião das mesmas. Significa isto que o
comitente pode afastar a sua responsabilidade para com o lesado se provar
que o comissário agira fora das suas funções, uma possibilidade que um
devedor que no cumprimento da sua obrigação se servir de um auxiliar (art.
800.º) não tem nem pode ter. Trata-se de situações de interesse não
comparáveis, visto na responsabilidade contratual existir uma vinculação
prévia a acto lesivo, vinculação essa em relação à qual há uma estrita
obrigação do cumprimento.
IV. 1. O lesante que for chamado a cumprir a sua obrigação de indemnizar
o lesado, responde para o efeito com todos os seus bens susceptíveis de
penhora (art. 601.º, 1ª parte), ou seja, com os activos do seu património.
Ora, como referimos (ver I. 3.), a responsabilidade civil é susceptível de
destruir uma pessoa, na medida em que o seu património pode ficar
completamente arruinado sob o peso das indemnizações. Por isso mesmo
devem existir caminhos em ordem a limitar a responsabilidade. E, de facto,
estas limitações existem, quer por via negocial quer por via legal, mas
apresentam uma grande heterogeneidade que dificulta qualquer esforço de
sistematização.
2. a) É logo o art. 602.º que nos diz ser possível negociar uma limitação da
responsabilidade por convenção na medida em que permite, salvo quando
se trate de matéria subtraída à disponibilidade das partes, limitar a
responsabilidade do devedor a alguns dos seus bens no caso de a obrigação
não ser voluntariamente cumprida. E também o n.º 2 do art. 800.º, prevê,
face à responsabilidade severa estabelecida no seu n.º 1, que esta pode ser
convencionalmente excluída ou limitada, mediante acordo prévio dos
interessados, desde que a exclusão ou limitação não compreenda actos que
representem a violação de deveres impostos por normas de ordem pública.
As partes têm, portanto, um espaço negocial bastante amplo para compor
os seus interesses nesta matéria.
b) Cláusulas limitativas ou exclusivas da responsabilidade podem ser
estabelecidas também por via de declarações negociais unilaterais sempre
que a lei não as proíba. De qualquer maneira, a lei encara as cláusulas
limitativas com reserva ao determinar, no art. 809.º, que "é nula a cláusula
pela qual o credor renuncia antecipadamente a qualquer dos direitos que lhe
são facultados nos casos de não cumprimento ou mora do devedor, salvo o
disposto no n.º 2 do artigo 800.º." Há quem entenda que a norma do art.
809.º deve ser interpretada restritivamente.
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Um outro meio negocial, mas já fora do CCiv, com vista a circunscrever a
responsabilidade a apenas uma parte do património consiste na adopção de
uma forma jurídica, adequada para efeito desejado. A este respeito, a
ordem jurídica oferece aos interessados, p.ex., os modelos do e.i.r.l., do
estabelecimento mercantil individual de responsabilidade limitada (DL n.º
248/86, de 25 de Agosto), ou da sociedade unipessoal por quotas (DL n.º
257/96, de 31 de Dezembro). Nesses casos, a responsabilidade por dívidas
abrange apenas os bens afectos ao estabelecimento ou à sociedade.
3. Contudo, existem também limitações da responsabilidade por força da
lei, já previstas no próprio CCiv.
a) Temos neste contexto, em primeiro lugar, a culpa do lesado. "Quando
um facto culposo do lesado tiver concorrido para a produção ou
agravamento dos danos, cabe ao tribunal determinar, com base na
gravidade das culpas de ambas as partes e nas consequências que delas
resultaram, se a indemnização deve ser totalmente concedida, reduzida ou
mesmo excluída" (art. 570.º, n.º 1). Se a responsabilidade do lesante se
basear numa simples presunção de culpa, a culpa do lesado, na falta de
disposição legal em contrário, até exclui o dever de indemnizar da parte do
lesante (art. 570.º, n.º 2). Também no caso previsto no art. 505.º, a
responsabilidade do lesante com base no art. 503.º é excluída pela culpa do
lesado.
De resto, ao facto culposo do lesado é equiparado o facto culposo dos seus
representantes legais e das pessoas de quem ele se tenha utilizado (art.
571.º), uma disposição, aliás, em sintonia com o disposto no art. 800.º.
Além das duas situações já referidas, há mais casos de exclusão da
responsabilidade que encontramos nos arts. 505.º e 509.º, n.º 2,
nomeadamente quanto a danos devidos à força maior. Em todos os casos de
exclusão da responsabilidade o lesante fica isento da indemnização.
b) Noutras situações, o CCiv, como de resto já vimos várias vezes, recorre
a critérios, nem sempre infalíveis, de equidade para limitar o montante da
responsabilidade. São de lembrar os arts. 339.º, n.º 2; 489.º, n.º 1; 494.º;
496.º, n.º 3, ou 503.º, n.º 2. A lei procura aqui permitir que venha a ser
estabelecido um justo equilíbrio entre os interesses e expectativas em
causa.
c) Repetidas vezes, o CCiv recorre à fixação de limites máximos como
sucede, p.ex., nos casos previstos nos arts. 504.º, n.ºs 2 e 3; 508.º e 510.º.
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d) Por fim podem ser mencionados os casos em que a lei se serve da figura
da separação dos patrimónios, prevista no art. 601.º, 2ª parte. Surgem-nos
como exemplos a responsabilidade limitada do menor, nos termos dos arts.
127.º, n.º 1, al. c) e 1649.º, n.º 2, 2ª parte; a responsabilidade do herdeiro
limitada aos bens da herança (art. 2071.º); a responsabilidade dos cônjuges
pelas dívidas contraídas, limitada ou aos bens comuns ou aos bens próprios
de cada um deles (arts. 1695.º e 1696.º) ou a responsabilidade por dívidas
da associação sem personalidade jurídica, limitada em princípio ao
património que constitui o seu fundo comum (art. 198.º).
4. Porém, todas estas limitações da responsabilidade, nas suas várias
configurações e constelações, muitas vezes não satisfazem. Uma protecção
eficaz contra as consequências patrimoniais ruinosas que podem decorrer
da responsabilidade oferecem normalmente os seguros. Os seguros são
quase sempre indicados em casos de responsabilidade civil objectiva, onde
a concretização dos riscos danosos pode dar origem a prejuízos muito
avultados ou mesmo incalculáveis que ultrapassam as capacidades
económicas do lesante, de qualquer lesante. Por isso, é a lei que em muitas
situações deste tipo – e com o objectivo de proteger o lesante e também a
sociedade – impõe um seguro obrigatório (p.ex., o seguro automóvel ou o
seguro de actividades industriais que envolvam alto grau de risco).
Mas também para os riscos gerais de vida (doença, invalidez, desemprego,
etc.) e os casos da responsabilidade civil subjectiva ou da responsabilidade
contratual, um seguro, mesmo não obrigatório, pode ser vantajoso em
atenção às circunstâncias concretas, embora possa não abranger os danos
causados com dolo ou culpa grave.
O recurso ao seguro não significa, todavia, a eliminação dos riscos. Os
riscos subsistem, uma vez que não podem ser eliminados. Apenas as
consequências da sua concretização são deslocados para o seguro. A
protecção patrimonial por meio do seguro, por seu lado, leva a uma
colectivização dos danos bem como da responsabilidade, que deixa de ser
individual. Esta conclusão põe em causa o sistema valorativo em que
assenta a responsabilidade. Sendo porém indiscutível a necessidade social
do seguro, a colectivização daí resultante deve ser atenuada por meio de um
sistema de individualização dos prémios de seguro, que beneficia quem não
causar danos e onera quem os produzir. O sentimento da responsabilidade
individual deve ser preservado e, na medida em que a obrigação de
indemnizar constitui uma sanção, o efeito sancionatório não pode ser
iludido por completo.
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Em contrapartida, também deve ser mencionado que a existência do seguro
torna possível correr riscos económicos que, doutra maneira, talvez não
fossem assumidos. Sob este aspecto o seguro constitui um apoio a
actividades dinâmicas e empreendedoras.
V. Resta agora apenas dar resposta breve aos casos exemplificados (ver I.
4.): a) No que respeita ao comprador que não paga por ter perdido no jogo,
responde pelos prejuízos causados nos termos do art. 798.º; b) quanto ao
pinhal que ardeu devido à queda de um relâmpago, aplica-se ao seu
proprietário a regra "casum sentit dominus"; c) no caso do fogo posto ao
pinhal, o vizinho que causou o dano, é responsável de acordo com art.
483.º; d) tendo o pinhal sido incendiado por uma criança ou um débil
mental, a questão da indemnização resolve-se com o recurso ao art. 489.º;
e) no caso da lesão de um transeunte por um veículo automóvel
descomandado, o condutor há-de indemnizar o lesado com base no art.
503.º, n.º 1 (a não ser que o risco seja coberto pelo seguro);12
f) a destruição
da bengala na defesa contra o cão pode levar à uma indemnização segundo
o art. 339.º, n.º 2, mas quanto ao hematoma, não parece que seja o resultado
de um acto culposo que obriga a indemnizar o lesado ao abrigo do art.
483.º, uma conclusão que não parece muito satisfatória; g) as lesões
causadas pela explosão do telemóvel, por fim, devem ser indemnizadas de
acordo com as regras da responsabilidade do produtor.
Claro, muitas situações danosas não se verificariam se as pessoas tivessem
uma actuação consciente e se assumissem como auto-responsáveis. Mas
isso pressupõe uma cultura de responsabilidade. Esta falta.
Heinrich Ewald Hörster
Professor da Escola de Direito da Universidade do Minho
Correcções:
1º página 7, linha 20: Também estas presunções judiciais (art. 351.º)
acabam por facilitar (...)
2º página 11, linha 3, a contar de baixo: (...) encontramos, à parte o art.
491.º já referido, um exemplo, aliás importante, ...
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Ainda se põe a questão da responsabilidade do Estado por actos danosos da sua gestão pública, uma vez
que faltou à sua obrigação de manutenção das vias públicas.