esboço de uma dogmatica

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Esboço de uma dogmática- Karl Barth

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E sbo ç o de U m a

DOGMÁTICA

KARL BARTH

2006

Capa: Tradução:Eduardo de Proença Paulo Zacarias

Revisão: Diagramação:Alceu Lourenço Z -P M teh ®

ISBN: 85-86671-69-X

Título Original: Esquisse d ' Une Dogmatique - 1946

Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, de qualquer forma ou meio eletrônico e mecânico, inclusive

através de processos xerográficos, sem permissão expressa da editora.

(Lei n° 9.610 de 19.02.1998)

Todos os direitos reservados àFo n t e Ed it o r ia l L t d a .Rua Barão de Itapetininga, 140 loja 4 01042-000 São P au lo -S P Tel.: 11 3214-0819 /3214-3806 www.fonteeditorial.com.br e-mail: [email protected]

Sumário

I. In trod ução : A Tarefa da D o gm ática ................................................ 7

II. Crer É Ter C o n fian ça ............................................................................ 15

III. Crer S ignifica C onhecer...................................................................... 25

IV. Crer É Confessar a Sua Fé................................................................... 33

V. Deus Nos Lugares A ltíss im o s............................................................ 43

VI. Deus, O Pai.............................................................................................. 53

VII. O Deus T odo-P oderoso ...................................................................... 59

VIII. O Deus C ria do r...................................................................................... 65

IX. O Céu e a T erra ...................................................................................... 79

X. Jesus C ris to ............................................................................................. 89

XI. O Salvador e o Servo de Deus.......................................................... 101

XII. O Filho Ú nico de Deus........................................................................ 115

XIII. Nosso S e n h o r........................................................................................ 123

XIV. O M is té rio e o M ilagre do Natal....................................................... 133

XV. S ofreu........................................................................................................ 143

XVI. Sob Pôncio Pilatos................................................................................ 153

XVII. Foi C rucificado, M o rto e Sepultado,

Desceu ao In fe rn o ................................................................................. 161

XVIII. Ao Terce iro Dia Ressurgiu dos M ortos ........................................... 171

XIX. Ascendeu aos Céus, e Está Assentado

A D ire ita de Deus Pai Todo-P oderoso............................................. 177

XX A V inda de Jesus Cristo, O Ju iz ......................................................... 185

XXI. C re io no E sp írito Santo......................................................................... 197

XXII. A Igreja, Sua U n idade , S an tidade e U n ive rsa lid ade .................... 203

XXIII. O Perdão dos Pecados.......................................................................... 215

XXIV. A Ressurreição d o C o rpo e a Vida Eterna..................................... 221

Introdução: A Tarefa da Dogmática

A dogmática é a ciência pela qual a Igreja, no nível dos co­nhecimentos que possui, justifica para si m esma o conteúdo

de sua pregação.

Trata-se de u m a disciplina crítica, quer dizer, in s­taurada segundo a n o rm a da Sagrada Escritura e segundo os fundam entos das Confissões de Fé.

A dogm ática é um a ciência. Em todas as épocas, tem se refletido, falado e escrito in term inavelm ente sobre aquilo que se deve en tender po r ciência e não podem os abordar esse problem a con ten tando-nos com u m a s im ­ples alusão. Darei um a definição de ciência que ce r ta ­m ente é discutível, mas que pode servir de po n to de par tida para nossa exposição. E n tendem os po r ciência um ensaio de com preensão e de representação, um a busca e um ensinam ento relacionados a u m objeto e a u m a atividade determ inados. N en h u m esforço desse gê­nero pode ter a pretensão de ser algo mais do que um a tentativa e, ao dizermos isso acerca da p rópria ciência, não fazemos nada mais que sublinhar sua dupla natureza: ela é provisória e limitada. Nos centros onde a ciência é, de m aneira precisa, encarada com a m aio r seriedade, não se cria n en h u m a ilusão acerca do que o h o m e m pode fa­zer: ele não está envolvido em um projeto em que se com-

8 - Esboço de uma Dogm ática

b inam a mais alta sabedoria e a mais refinada arte, pois a ciência caída do céu, a ciência absoluta, não existe.

A dogm ática cristã é, tam bém ela, u m ensaio, u m a tentativa de com preensão e de representação; u m a te n ta ­tiva de ver, en tender e fixar de te rm inados fatos para reuni-los e organizá-los sob a form a de ensinam ento .

Em cada ciência encon tram -se associados o estudo do objeto e sua aplicação a um cam po de atividade, pois, n e n h u m a ciência se reduz à teoria pu ra ou som ente à p r á ­tica; a teoria está sem pre acom panhada da prática que dela se origina. Tam bém a dogm ática se oferece a nós em seu duplo m ovim ento : ela é pesquisa e ensinam ento , liga­dos a u m objeto e a u m a atividade.

O sujeito da dogm ática é a Igreja cristã. O sujeito de um a ciência não pode ser ou tro senão aquele que m a n ­tém, com o objeto e a atividade considerados, relações de presença e de familiaridade. N ão é, portan to , u m a re d u ­ção lam entavelm ente limitativa que im pom os à d o g m á ­tica enquan to ciência quando afirm am os: o sujeito de tal ciência é a Igreja. A Igreja é o lugar, a co m u n id ad e à qual são confiados o objeto e a atividade p róprios da d o g m á ­tica, isto é, a pregação do Evangelho. Q u an d o dizem os que a Igreja é o sujeito da dogm ática, en ten d em o s que desde o instante em que alguém se ocupe de dogm ática , seja para aprendê-la , seja para ensiná-la, esse alguém se encon tra den tro do am biente da Igreja. Aquele que queira fazer dogm ática , colocando-se conscien tem ente fora da Igreja, deve esperar que o objeto da dogm ática lhe p e rm a ­neça estranho, e de m aneira n e n h u m a se su rp reen d e r ao ficar perd ido logo nos prim eiros passos, ou ao parecer um destruidor.

Em dogm ática , com o em outros assuntos, deve exis­tir fam iliaridade entre o sujeito da ciência e o objeto que ele estuda, e esse conhecim ento ín tim o tem aqui p o r o b ­jeto a vida da Igreja. Isso não significa que a dogm ática

A Tarefa da Dogm ática - 9

possa se con ten tar em re tom ar e relacionar elem entos d e ­finidos pela autoridade eclesiástica em tem pos antigos ou recentes, de sorte que não teríam os que fazer nada mais que repetir suas prescrições. A própria dogm ática católica considera sua tarefa diferentemente.

Ao dizer que a Igreja é o sujeito da dogm ática , insis­tim os em apenas u m a exigência: aquele que se ocupe dessa ciência, seja como mestre, seja com o discípulo, deve aceitar a responsabilidade de se situar no p lano da Igreja cristã e da obra que ela desenvolve; é u m a condição sine qua non. Mas que não haja m al-entendidos: tra ta-se de u m a livre participação na obra da Igreja, de u m a res­ponsabilidade, assum ida pelo cristão nesse d om ín io p a r ­ticular.

A ciência dogm ática é um meio pelo qual a Igreja justifica para si m esm a o conteúdo de sua pregação, no nível dos conhecimentos que ela possui.

Depois do que acabamos de dizer acerca da ciência, poder-se-ia objetar que ela vai po r si m esm a. Mas algu­mas concepções relativas à dogm ática me obrigam a rep e ­tir que, de form a alguma, ela é um a ciência caída do céu sobre a terra. Seria com pletam ente m aravilhoso, dir-se-á, se existisse semelhante dogmática, caída do céu, absoluta. A isso não se pode responder outra coisa senão: sim, se fôssemos anjos!

Mas, po r vontade de Deus, nós não som os anjos e assim é bo m que d isponham os de u m a dogm ática h u ­m ana e terrestre. A Igreja cristã não está no céu, mas na terra e no tempo; ainda que seja um dom de Deus, ela é um dom inserido nas realidades hum anas e terrestres e o que se passa dentro da Igreja corresponde a essas rea lida­des.

A Igreja cristã vive na terra e na história, guard iã do b o m depósito (2Tm 1.14), que Deus lhe confiou. G erenci- adora desse b em precioso, ela segue seu cam inho através

10 - Esboço cie uma Dogm ática

da história, na força e na fraqueza, na fidelidade e in f ide­lidade, na inteligência ou incom preensão do que lhe é re ­velado.

A h istória desse m u n d o se estabelece e se desenro la em histórias relativas à natureza e à cultura, aos hábitos e às religiões, às artes e às ciências, às sociedades e aos E s ta­dos. D en tro dessa rede, a Igreja tem ta m b ém sua história, u m a h is tória h u m a n a e terrestre, e essa é a razão pela qual não se po d e contestar in te iram ente o que G oethe disse a seu respeito: ela foi de época em época u m a confusão de erros e de violências. Se form os sinceros, nós cristãos, d e ­vem os conco rda r que a h istória da Igreja não tem cam i­nhado d iferen tem ente da h istória do m undo . E dessa m ane ira nos é dada a opo rtun idade de falar m o d esta e hum ild em en te da Igreja e da obra eclesiástica que d e se n ­volvem os aqui sob a fo rm a de dogmática.

A dogm ática não pode cu m p rir seu papel se não p e rm an ece r ligada às atuais circunstâncias da Igreja. A Igreja está consciente de seus limites, já que ela se sabe responsável pelo depósito que deve ad m in is tra r e co n se r­var, e que é devedora em relação ao único b o m D eus que lhe confiou esse bem. Ela nunca será capaz de realizá-la perfeitam ente; ao contrário , a dogm ática cristã p e rm a n e ­cerá sem pre com o um conjunto de reflexões, de pesquisas e de descrições relativas, passíveis de erros. Ela ten d erá a um saber m elhor; outros virão depois de nós, e aquele que é fiel no seu traba lho espera que esses pensem e d i ­gam m elho r aquilo que nós ten tam os pen sa r e dizer. Hoje, devem os fazer nosso trabalho com m odést ia e t r a n ­qüilidade, p o n d o em jogo os conhec im entos de que d is ­pom os. N ão será exigido de nós mais do que recebem os. Semelhantes ao servo fiel no pouco (Mt 25.23), não nos lam en tam os a respeito deste pouco. N ão nos é exigido nada além da nossa fidelidade.

A Tarefa da Dogm ática - 11

A dogm ática como ciência é cham ada para justificar o con teúdo da pregação da Igreja cristã. N ão haveria n e ­n h u m a dogmática, se a tarefa p rim ordia l da Igreja não fosse a de anunciar o Evangelho, de dar te s tem unho da Palavra p ronunciada por Deus. Esse dever sem pre u r ­gente, esse problem a colocado para a Igreja desde as o r i­gens - o problem a do ensinam ento, da dou tr ina , do testem unho, da pregação - perm anece com o a questão, não para o teólogo ou para o pastor apenas, mas para a Igreja toda: o que realmente tem os a dizer nós, os cr is­tãos?

Pois a Igreja, sem dúvida nenhum a, deve ser u m lu ­gar onde ressoa u m a palavra que se dirige ao m undo . A s­sim, u m a vez que a missão da Igreja é anunciar a Palavra revelada por D eus , missão que é, ao m esm o tem po, um a obra hum ana, desde o começo surge a necessidade de constitu ir-se um a teologia, ou isso que denom inam os, desde o século XVII, de dogmática.

Existe em teologia um problem a de fontes (de onde vem a palavra?) e é a disciplina cham ada exegese que está encarregada de fornecer a resposta. Por ou tro lado, é p re ­ciso satisfazer-se à questão como: estudar a fo rm a e a co n ­dução da pregação confiada à Igreja; estam os agora no te rreno da teologia prática. Entre as duas, existe a dogm á­tica ou teologia sistemática. A dogm ática não perg u n ta a respeito de onde vem a m ensagem cristã, nem com o se concretiza, mas apresenta um a questão: o que tem os para m ed ita r e para pensar?

Essa questão surgiu, fique bem entendido , tão logo as Escrituras nos ensinaram onde está a fonte, e ela vem acom panhada pela preocupação perm anen te de não ficar nas declarações teóricas, mas de fazer ressoar concreta- m ente essa m ensagem no m undo. Falando p recisam ente a partir da dogmática, deve ficar claro que a teologia não é, po r u m lado, u m m ero historicismo, mas u m a H istória

12 - Esboço de uma Dogmática

válida, que pene tra a realidade presente, aqui e agora. Por ou tro lado, a pregação não se deve degenerar em m era técnica.

De fato, em nossos dias, a questão de qual deve ser o con teúdo da m ensagem cristã é mais p rem en te do que nunca antes. Todavia, deve-se sub linhar b em que esse p rob lem a não pode ser resolvido p o r u m recurso exclu­sivo da exegese ou da teologia prática. É necessário que haja u m a dogm ática. Q uan to à história da Igreja, que se poderia com eter o erro de desprezar, eu devo acrescentar que sua função é enciclopédica: ela tem a h o n ra de ser constan tem en te requisitada e ocupa u m posto legítim o den tro do ens inam en to cristão.

A dogm ática é um a disciplina crítica. N ão se trata, pois, com o se acreditou n u m a ou n o u tra época, de se p ren d er a quaisquer fórm ulas teológicas, antigas ou n o ­vas, e de se crer que tudo está feito. Pois, se existe um a disciplina crítica que se deva rem eter sem cessar ao p r o ­pósito de sua obra, essa é jus tam ente a dogm ática , ex teri­o rm en te d e te rm in ad a pelo fato de que a pregação da Igreja está sem pre am eaçada po r erros. A dogm ática é a verificação da d o u tr in a e da pregação da Igreja; longe de consti tu ir u m exam e arbitrário, fundado sobre u m cr ité ­rio escolhido livremente, é à Igreja que ela vai p e rg u n ta r sob qual pon to de vista norm ativo ela deverá se colocar. Praticam ente, é pela escala da Sagrada Escritura, A ntigo e Novo Testamentos, que a dogm ática avalia a pregação da Igreja. A Sagrada Escritura é o d o cu m en to de base que tange ao mais ín tim o da vida da Igreja, o d o cu m en to da Epifania da Palavra de Deus na pessoa de Jesus Cristo. Fora desse docum ento , nós não tem os nada e, onde a Igreja está viva, ela deve sem pre de novo se deixar ju lgar a si p rópria segundo esse critério. N ão se p o d e tra ta r de dogm ática sem que esse critério perm an eça p resen te e deve-se, sem cessar, voltar à questão do testem unho . Não

A Tarefa da Dogm ática - 13

aquele do m eu espírito e do m eu coração, mas aquele dos apóstolos e dos profetas enquanto tes tem unho do p róprio Deus. U m a dogm ática que abandonasse esse critério não seria u m a dogm ática objetiva.

Nós indicam os na tese que abre o capítulo: segundo os fundam en tos de suas Confissões de Fé. A Sagrada E scri­tura e as Confissões de fé não estão em u m plano id ê n ­tico. Reservamos à Bíblia um a estima e um am o r que não temos, no m esm o grau, pela tradição, nem m esm o pelos mais valiosos de seus elementos. N en h u m a Confissão de Fé da tando da Reforma ou da época atual pode, da m esm a m aneira que as Escrituras, elevar-se à pretensão de solicitar o respeito da Igreja.

Mas isso não retira nada do fato de que a Igreja es­cuta e aprecia o testem unho de seus Pais. Então, m esm o que nós não encontrem os nele a Palavra de D eus com o em Jeremias ou em Paulo, ele tem para nós u m signifi­cado elevado. O bedecendo ao m andam en to “h o n ra teu pai e tua m ãe”, nós não nos recusarem os a respeitar, seja na pregação, seja na elaboração científica da dogm ática, as afirm ações de nossos Pais. D iferentem ente das Escritu ­ras, as Confissões não têm autoridade que obrigue, mas devemos, todavia, levá-las seriam ente em consideração e lhes a tribu ir u m a autoridade relativa.

M unida desse critério, a dogm ática se lança de m a ­neira crítica à sua tarefa que é justificar o con teúdo da pregação cristã e da ligação subsistente entre a m ensagem que a Igreja deveria publicar e aquela que ela transm ite de fato. O dogm a é para nós a reprodução, a restituição, pela Igreja, da Palavra de Deus que lhe foi anunciada.

A Igreja deve se interrogar incessantem ente acerca do grau de correlação, de correspondência, entre o dogm a e a m ensagem que ela proclama. O objetivo é, pois, m uito simples: trata-se de sempre e laborar m e lho r a pregação da Igreja. O aperfeiçoamento, a precisão, o

14 - Esboço de uma Dogmática

apro fundam ento do que é ensinado na nossa Igreja, são obras próprias de Deus, mas que requerem u m esforço do hom em . U m a parte desse esforço é represen tada pela dogmática.

Falaremos de dogm ática de um a form a elementar, obrigados que somos, no curso deste breve sem estre de verão, a nos contentar com u m esboço. Desse m odo, to ­m arem os com o fio condutor um texto clássico, o Símbolo dos Apóstolos .'

Não existe m étodo obrigatório que seja im posto de an tem ão à dogm ática cristã. Cada um é livre, no m o ­m ento em que vai abordar esses assuntos, para escolher segundo seu saber e sua consciência o encam inham en to que lhe parecer bom . É verdade que no decorrer dos sé­culos foi engendrado um procedim ento que se tornaria , de algum m odo, usual; ele consiste em re tom ar em g ra n ­des linhas o plano do pensam ento cristão: Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Isso deu lugar a desenvolvim entos ex tre­m am ente variados que não cessam de se entrecruzar.

Aqui, ainda, nós temos a escolha. Indo pelo mais simples, nos deterem os na Confissão de fé que todos v o ­cês conhecem , que é repetida no culto todo dom ingo. D eixarem os de lado os problem as históricos. Vocês sa­bem que o te rm o apostólico deve ser posto entre aspas: esse texto não foi redigido pelos apóstolos; no seu teor atual, ele rem onta ao século III e tem sua origem em u m a fórm ula conhecida e reconhecida pela com un idade de Roma. Em seguida, foi divulgado den tro da Igreja, que o tom ou po r um a declaração fundam ental. Portanto, não é sem razão que nós o consideram os u m clássico.

1. N. Do Ed.: As confissões e credos históricos do cristianismo são comu- mente denom inados Símbolos de fé; o autor constan tem ente fará refe­rência ao Credo Apostólico apenas com o o símbolo.

■ I1 Crer E Ter Confiançaf

A Confissão com eça por essas duas palavras ca rre ­gadas de significação: “eu creio”. Tudo o que nós te ríam os a dizer para justificar a tarefa que nos aguarda é c o m a n ­dado p o r esse preâm bulo. C om eçarem os po r três teses, que se aplicam à essência da fé.

A fé cristã é o dom do encontro que torna os hom ens livres para escutar a Palavra da graça, p ro n u n ­

ciada por Deus em Jesus Cristo, de maneira tal que eles se atêm às promessas e aos

m andam entos dessa Palavra, apesar de tudo, de um a vez por todas, exclusiva e totalmente.

Vimos que a fé cristã, a m ensagem da Igreja, cons ti­tui o fun d am en to e o objeto da dogm ática. Mas de que se trata? D aquilo em que crêem os cristãos e da m ane ira com o eles crêem. Na prática, não se pode separar a form a subjetiva da fé, f ides qua creditur, da pregação, pois essa pregação implica necessariam ente na p resença de h o ­m ens que escutaram e receberam o Evangelho; hom ens que, juntos, foram evangelizados. Mas o fato de ac red ita r­m os pode ser desde logo considerado com o secundário

16 - Esboço tíc uma Dogmática

em relação ao que existe de m aior e de autêntico na p re ­gação, ao que crê o cristão, isto é, o con teúdo de sua fé; e ao que devem os anunciar, isto é, o objeto da Confissão de Fé: creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

A linguagem popular denom ina a Confissão de Fé de “C redo” e essa expressão deve ao m enos nos fazer com preender o que nós acreditamos. D entro da fé cristã trata-se, de u m a m aneira decisiva, de u m encontro.

Creio “em .. .” diz a Confissão. Tudo depende desse “em .. .” desse objeto de fé onde vive nossa fé subjetiva. É notável que, à parte desta in trodução “creio ...”, o C redo não diz nada do aspecto subjetivo da fé. N ão foi bom quando os cristãos inverteram esta relação, falando m uito sobre suas ações e sobre a em oção de experim en tar aquilo que ocorre no in terior do hom em , enquan to p e rm a n e ­ciam m udos sobre o que devemos crer.

Ao silenciar sobre o lado subjetivo da fé para falar de seu aspecto objetivo, o Credo se concentra naquilo que para nós é essencial, no que devemos ser, fazer e viver. Aqui igualm ente é válida a palavra: “aquele que quiser salvar sua vida, perdê-la-á, mas aquele que tiver perd ido a sua vida po r m inha causa, salva-la-á” (Mt 16.25). Aquele que quiser salvar e conservar a subjetividade perdê-la-á, mas aquele que a abandonar pela preocupação com a o b ­jetividade, reencontra-la-á . Eu creio: efetivamente é m i ­nha experiência, um a experiência h u m a n a e u m fato, um a form a de nossa existência de hom ens.

Mas esse “creio” se realiza em um encontro com al­guém que não é um ser hum ano, mas Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E no instante em que creio eu me sinto com pletam ente preenchido e tom ado pelo objeto de m i­nha fé; o que me interessa não é mais “eu com m in h a fé”, mas aquele em que eu creio. Q uando eu penso nele e olho

C rer É T er Confiança - 1 7

para ele, então sinto que tudo vai m e lho r para mim. “Creio em .. .”, credo in..., significa: não estou mais só. Nós, os hom ens, em nosso esplendor e nossa miséria, não estam os mais sós. Deus vem ao nosso encontro e ele vem a nós com o nosso Senhor e nosso Mestre. Nos bons e nos m aus dias, em nosso desregram ento ou nossa hon es ti­dade, vivemos, agimos e sofremos nessa posição de re e n ­contro. Eu não estou só. Deus vem ao m eu encontro. Em todas as circunstâncias, eu estou com ele. Eis o que signi­fica creio em Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo.

Esse encontro com Deus é o encontro com a palavra da graça que Deus p ronunciou em Jesus Cristo. A fé fala de Deus Pai, Filho e Espírito Santo com o daquele que vem ao nosso encontro, como objeto de nossa fé. Ela afirm a esse D eus que é Uno em si, que foi para nós o Deus único e que foi de novo para a e tern idade nos te m ­pos em que se realizou sua vontade de amor, seu am or gratuito e incondicional pelo hom em , p o r todos os h o ­mens, conform e a sua graça.

Confessar o Pai, o Filho e o Espírito Santo, é dizer que Deus é o Deus da graça. Isso implica em que nós não podem os provocar a com unhão com ele: nós não a c r ia ­m os e não criaremos jamais. Assim com o nós não fize­m os po r m erecer que ele seja nosso Deus, não tem os n en h u m a pretensão de fazer valer n en h u m direito sobre ele. É ele, em sua bondade to talm ente gratuita, em sua li­berdade soberana, que desejou ser o Deus do hom em , nosso Deus. E isso ele nos diz. Q uando D eus diz: m in h a graça está sobre vós, eis a Palavra de Deus, o conceito central de todo o pensam ento cristão. A Palavra de Deus

é a Palavra de sua graça.

18 - Ksboço cíc um a Dogmática

E se vocês pergun tarem : onde escutam os essa Pala­vra de Deus? Eu não posso fazer ou tra coisa senão m andá-los de volta ao p róprio Deus que nos deu a ouvir a sua Palavra. Refiro-m e ao coração da Confissão de Fé, ao

segundo artigo do Símbolo2: a Palavra da graça, na qual D eus nos encontra , é Jesus Cristo, verdadeiro D eus e v e r ­dadeiro hom em , Em anuel, D eus conosco.

A fé cristã é o encon tro com esse “E m anuel”, com Je­sus Cristo e, nele, com a Palavra viva de Deus. Q u an d o cham am os a Sagrada Escritura de Palavra de D eus (nós a n om eam os assim por que é bem o que ela é), pensam os na Escritura com o te s tem unho dado pelos profetas e p e ­los apóstolos à ún ica Palavra de Deus, pensam os no judeuJesus, que é o Cristo de D eus3, nosso Senhor e nosso Rei para sempre.

Q u an d o confessamos isso, ao ousarm os ch am ar a pregação da Igreja de Palavra de Deus, isso deve ser e n ­tend ido com o o anúncio de Jesus Cristo, daquele que é verdadeiro D eus e verdadeiro h o m e m para nossa salva­ção. É nele que Deus vem ao nosso encontro. Q u an d o d i­zemos: creio em Deus, significa concretam ente: creio no Senhor Jesus Cristo.

Eu falei desse encontro com o de u m dom. É o e n ­con tro pelo qual os hom ens se tornam livres para escutar a Palavra de Deus. O dom e a libertação são u m a só e a m esm a coisa. O dom é o dom de vima liberdade, da g rande liberdade na qual estão com preend idas todas as outras liberdades. Partindo desse ponto, desejo chegar, no d ecorrer deste curso, a fazer com que vocês e x p e r im e n ­tem de novo essa palavra de liberdade, que tem sido

2. Vide nota n XXX.3. N. do T.: Cristo cm grego significa “ungido", logo: o Ungido de Deus.

C rer É Ter Confiança - 19

usada de m aneira tão abusiva e que perm anece, contudo, com o a mais nobre das palavras.

A liberdade é o grande dom de Deus, o do m do e n ­contro com ele. Por quê um dom? E po r quê, p recisa­mente, o dom da liberdade? É que o encontro de que fala o Credo não se p roduz por coisa alguma. Ele não repousa em um a possibilidade ou um a iniciativa hum ana , em um a capacidade que nós, os hom ens, teríam os de encon tra r Deus, de ouvir sua Palavra. Caso quiséssemos exam inar do que é que somos capazes, nós nos esforçaríamos em vão po r encon trar qualquer coisa que pudesse ser n o m e ­ada com o um a disposição para ouvir a Palavra de Deus. É o im enso po d er de Deus que entra em jogo, sem que nós o buscássemos por coisa alguma, e que to rn a possível o que para nós é impossível. É um dom de Deus, livrem ente concedido e sem qualquer preparação de nossa parte, se encontram os a Deus e em nosso encontro com ele ouvi­m os sua Palavra.

A Confissão do Pai, do Filho e do Espírito Santo fala

em seus três artigos4 de um a realidade e de u m a obra a b ­so lu tam ente novas, inacessíveis e incompreensíveis a nós outros, hom ens. E com o essa realidade e essa obra de Deus Pai, Filho e Espírito Santo são para nós u m a graça de Deus, é ainda um a nova graça que nossos olhos e ouvi­dos estejam abertos para ele. Aqui a Confissão está fa­lando do mistério de Deus e nós ficamos exatam ente den tro desse mistério no m om ento em que ele se ilum ina para nós, no m om ento em que nos to rnam os livres para reconhecê-lo e para viver nele. “Eu creio”, disse Lutero, “que não é nem por m inha razão nem por m inhas forças que eu posso crer em Jesus Cristo e chegar a ele”. Eu creio, é a expressão de um conhecim ento pela fé, p o r meio da

4. Vide nota n XXX.

20 - Esboço de uma Dogmática

qual eu sei que D eus não se deixa conhecer a não ser po r ele mesm o.

E se posso repetir isto com fé, isso significa que eu louvo e agradeço pelo fato de que D eus o Pai, o Filho e o Espírito Santo é o que é e faz que ele faz, e revelou-se para m im , destinou-se para m im e me destinou para ele. Eu dou graças po r ter sido cham ado e escolhido, p o r ter u m Senhor que m e libertou para ele. É daí que par te a m in h a fé. O que quer que eu faça, no m om en to em que eu creio, não tem a m e n o r im portância . Mas, o essencial é saber para o que eu fui convidado, e em vista do que fui l ibe r­tado po r aquele que pode realizar isso que eu não posso n em iniciar e nem term inar. Estou fazendo uso do dom através do qual o p róprio Deus se deu a m im . Respiro; e doravante respiro feliz e livre den tro da liberdade que eu nem conquistei, nem procurei, nem encontre i den tro de m im , mas que m e foi dada po r Deus q uando ele veio a m im . Trata-se da liberdade de escutar a Palavra da graça de m ane ira tal que o h o m e m possa se ater a essa Palavra e que a considere com o d igna de fé.

O m u n d o de hoje está repleto de palavras e sabem os o que significa u m a inflação de palavras, qu an d o elas p e r ­dem o seu valor e cessam de ser reconhecidas. Mas quando se crê no Evangelho, a Palavra reen co n tra seu crédito e se faz ouvir de tal m aneira que aquele que a es­cu tar não mais lhe possa escapar. Pelo Evangelho, a Pala­vra recebe seu sentido e se im põe com o Palavra. Essa Palavra m aravilhosa, na qual crê a fé, é a Palavra de Deus, Jesus Cristo, em quem Deus anunciou aos h om ens a sua Palavra, de um a vez po r todas.

É assim que crer significa ter confiança. A confiança é o. ato pelo qual u m h o m e m se abandona à fidelidade de um outro, de quem conhece a aquiescência e do qual aceita as exigências. “Eu creio” significa “tenho confi-

Crer É Ter Confiança - 21

ança”. Não é mais em m im m esm o que devo ter confiança; não necessito mais de m e justificar, de m e desculpar, de me salvar, de preservar a m im mesmo. Esse esforço te r r í ­vel do hom em para se m an ter a si m esm o e para se a tr i­buir u m a razão a si mesmo, esse esforço se to rna um esforço sem sentido. Eu creio, não em m im , mas em Deus Pai, Filho e Espírito Santo. Torna-se supérflua e caduca a confiança que se atribuía às instituições que se acreditava serem dignas, àquelas pretensas âncoras às quais era n e ­cessário se agarrar. Supérflua e caduca igualm ente se to rna a confiança atribuída a certas d ivindades erguidas, honradas e invocadas pelos hom ens em todos os tempos.

Q ualquer que seja o nom e que se lhes dê, Idéias ou Potências do Destino, elas con tinuam sendo as instâncias às quais nos entregamos. A fé nos libera da confiança que atribu ím os a tais divindades e do tem or que elas nos ins­p iram , e elimina as decepções das quais elas são a fonte. Devem os ser livres para ter confiança naquele que merece nossa confiança; ser livres para perm anecerm os ligados àquele que é fiel e que assim perm anece, con tra r iam en te a todas as outras instâncias. De nossa parte, nós não sere­m os jamais fiéis. Nossa rota está sem eada por nossas infi­delidades ao próxim o e ocorre o m esm o com as divindades deste m undo. Elas não m an têm as suas p ro ­messas; assim, nunca há nelas a verdadeira paz e luz.

Não existe fidelidade a não ser em Deus. A fé é a confiança que perm ite que nos m an ten h am o s nele, nas suas prom essas e nos seus m andam entos. M anter-se em Deus é abandonar-se a essa certeza e vivê-la: Deus está aqui para m im . Tal é a promessa que Deus nos faz: eu es­tou aqui, para ti.

M as essa promessa está acom panhada p o r u m m a n ­dam ento. Eu não mais me deixarei conduzir p o r m eus próprios pensam entos ou segundo m eu bel-prazer; eu re ­cebi de Deus um a ordem pela qual devo m e conduzir du-

22 - Ksboço dc um a Dogmática

rante toda m in h a existência terrestre. O C redo é sem pre Evangelho, é a Boa Nova de Deus para os hom ens, desse Em anuel, Deus conosco, Deus v indo à nós; s im u ltan ea ­m ente e necessariam ente, é u m a lei. O Evangelho e a Lei não devem ser separados, constituem u m a ún ica en tidade no in terio r da qual o Evangelho é a coisa p r im ord ia l e a Lei p e rm anece contida na Boa Nova. Visto que D eus é para nós, nos é perm itido ser para ele. Visto que ele se oferece a nós, nós devemos, po r reconhecim ento , dar a ele o pouco que tem os para dar.

A garrar-se a Deus, portan to , sem pre significa: rece­ber tudo de D eus e pô r tudo a seu serviço. E isso, a des­peito de tudo, de um a vez por todas, exclusivamente e totalmente.

É em relação a essas de term inações que a fé com o confiança deve ser a inda caracterizada. E deve-se es tabe­lecer que na fé isso se tra ta de u m a possibilidade, não de u m a obrigação, pois desde o instante em que se idealiza a fé, subestim a-se a sua grandeza. Essa g randeza não reside no fato de que sejamos cham ados a cu m p rir algo de ex­trao rd inário , que ultrapassaria as nossas forças. A fé é, so ­bretudo, u m a liberdade, u m a permissão. Aquele que crê na Palavra de D eus deve po d er nela se agarrar apesar de tudo aquilo que se opõe a essa Palavra. N ão se crê “por causa de” ou “baseado em”, mas se é desper tado para a fé a despeito de tudo.

Pensem nos hom ens da Bíblia. Eles não se to rn a ra m crentes po r causa de u m a dem onstração qualquer, de u m a prova; mas u m belo dia eles se v iram colocados em um a situação que lhes perm itia crer e que lhes obrigava a crer, a despeito de tudo. Fora de sua Palavra, D eus nos está oculto, mas ele se revela em Jesus Cristo. Se nós passam os em frente a ele sem o ver, não devem os nos ad m ira r de não encon tra r a Deus, de ir dos erros às decepções, de ver o m u n d o repleto de trevas. Se acreditam os, devem os crer,

Crer É Ter Confiança - 23

apesar de tudo, no Deus oculto e, no fato de que ele está oculto, está o apelo necessário para nos lem brar de nossa limitação hum ana. Nós não acreditam os apoiados em nossa razão ou em nossos próprios recursos. Todo crente autêntico sabe disso bem.

O m aior obstáculo à fé é s im plesm ente essa eterna presunção e tam bém essa angústia que subsistem no nosso coração. Nós não am am os viver pela graça; há se m ­pre em nós algum a coisa que se insurge v io len tam ente con tra a graça. Nós não am am os receber a graça, nós am aríam os, no máximo, atribuí-la a nós mesm os. A vida h u m a n a é feita desse vai-e-vem entre o orgulho e o deses­pero, que apenas a fé pode eliminar. Se contar consigo mesmo, o h o m e m não pode chegar a ela, u m a vez que não podem os, nós mesmos, nos libertar do orgulho e da a n ­gústia. Se formos libertos é graças a um a ação que não d e ­pende de nós.

Q uando se tenta condensar tudo o que representa essa força de oposição e de contradição, tem -se u m a vaga idéia do que a Bíblia quer dizer quando fala do Diabo. “Deus o disse verdadeiram ente?” (Gn 3.1). A Palavra de Deus é verdadeira? Q uando se crê, despreza-se esse D i­abo. Mas crer não é um ato de heroismo. G uardem o-nos de fazer de Lutero um herói. Lutero jamais se considerou com o tal, mas ele sabia de um a coisa: se devem os co m b a­ter, a frontar o inimigo, é jus tam ente a título de u m a p o s ­sibilidade atribuída, de um a permissão, de um a liberdade recebida na mais p rofunda hum ildade.

Estar na fé: trata-se de um a decisão tom ada de um a vez por todas. A fé não é um a opinião que se p oderia t r o ­car po r u m a outra. Aquele que crê apenas duran te um tem po não sabe o que é a fé, pois crer supõe u m a relação definitivam ente estável. Estar na fé: trata-se de D eus e do que ele fez po r nós de um a vez por todas. Isso não evita, p o r certo, que ocorram enfraquecim entos da fé. Mas,

24 - Esboço de um a Dogmática

considerada em relação ao seu objeto, a fé é u m a coisa d e ­finitiva. Aquele que acreditou um a vez, crê para sempre. N ão se assustem com o que digo aqui, mas o considerem com o u m convite. Por certo, podem -se com eter enganos ou duvidar, mas quem acreditou u m a vez, de a lgum a m a ­neira, p o r ta u m character indelebilis: pode assegurar-se em p ensam en to que está salvo. É preciso aconselhar aos que devem com bater a incredulidade que não levem m uito a sério essa m esm a incredulidade. N ada além da fé deve ser levado a sério e se tem os u m a fé sem elhan te a um grão de m osta rda (Mt 13.31) é o suficiente para que o D iabo te n h a perd ido a partida.

Em terceiro lugar5, fé está re lacionada a nós nos agarrarm os exclusivamente a Deus. Exclusivamente p o r ­que D eus é Aquele que é fiel. Existe ta m b ém u m a fideli­dade h u m a n a que tem sua origem em Deus e que deve incessantem ente nos alegrar e nos fortalecer. Mas o fu n ­dam en to dessa fidelidade é sempre a fidelidade de Deus. A fé é a liberdade de se confiar to ta lm ente apenas nele, sola gratia et sola fide. Isso não implica, de m ane ira n e ­nhum a , u m em pobrec im en to da vida hum ana; ao c o n t rá ­rio, todas as riquezas de Deus assim nos são atribuídas.

Para term inar, devem os nos agarrar totalmente à Pa­lavra de Deus. A fé não concerne a u m setor par ticu la r da vida d e n o m in ad o religioso, ela se aplica à existência em sua to talidade, à exterior com o à interior, à corporal com o à espiritual, às zonas som brias com o às claras. D e ­vem os nos confiar a Deus, seja em relação a nós m esm os, seja em nosso com p o rtam en to no interesse do outro , da h u m a n id ad e inteira; em relação ao todo da vida e da m orte. Ser livre para u m a confiança assim defin ida é ter fé.

.5. N. do Ed.: A primeira e a segunda considerações, (1) a despeito de tudo, e (2) de um a vez p or todas, foram expostas nos parágrafos anteriores.

Crer Significa Conhecer

A fé cristã é a iluminação da razão que perm ite aos ho­mens a liberdade de viver na verdade de

Jesus Cristo e, por esse mesmo caminho, de conhecer, sem risco de errar,

o sentido de sua vida, bem como a causa e o f im de tudo o que existe.

Pode ser que vocês fiquem surpresos em ver a razão in tervir aqui. É de m aneira intencional que faço uso desse conceito. Vale a pena lem brar que o fam oso conselho: “despreza a razão e a ciência, essa suprem a alavanca do h o m e m ”, não vem de um profeta, mas do Mefisto de Goe- the. Cristãos e teólogos têm sido sem pre m uito m al insp i­rados quando, po r entusiasmo ou em nom e de suas concepções particulares, acreditaram que deviam se ali­nhar den tro do cam po dos adversários da razão. Acima da Igreja cristã, resum indo a revelação e a obra de Deus,

encontra-se a Palavra.6 “A Palavra se fez carne”. O logos (quer dizer o verbo, a razão, a palavra) se fez hom em . A pregação da Igreja é um discurso que, m uito longe de ser

6. Em grego, o logos, que significa tam bém a razao. (N.do T.da ed.francesa).

26 - Esboço de uma Dogmática

acidental, arbitrário , caótico ou ininteligível, p re tende ser verdadeiro e p rocu ra se im por com o tal con tra a falsi­dade. N ão aceitemos abandonar essa posição perfe i ta ­m ente clara! A palavra que a Igreja tem a vocação para pregar não é a verdade em u m sentido provisório, se c u n ­dário, mas no sentido p rim eiro e forte do te rm o; tra ta-se do logos que se m anifesta e se revela na razão do hom em , no seu en tend im en to , com toda a sua significação e em toda a sua verdade. A pregação cristã está ligada ao logos, à ratio, à razão, fonte da revelação na qual o h o m e m com suas faculdades racionais pode, em seguida, se reen c o n ­trar. Pregação e teologia nada têm a ver com a v e rb o r ra ­gia, o falar em línguas ou a p ropaganda , incapaz de susten tar suas asseverações. Nós conhecem os b em esse gênero de discursos edificantes, proferidos com m uita eloquência e ênfase, mas que - é m uito claro! - não resis­tem à simples questão no tocante à verdade do que afir­m am . O C redo cristão assenta-se em u m conhecim ento . Por toda a parte onde ele é p ronunc iado e confessado, ele não faz mais que criar esse conhecim ento . A fé cristã não é, de m ane ira n enhum a , irracional, anti-racional ou su- pra-racional. Bem entendida, ela é, ao contrário , racional. A Igreja que recita o C redo e que se apresenta com a p re ­tensão inaud ita de pregar, de anunciar a boa nova, pode

fazê-lo porque ela entendeu, com preendeu a lgum a coisa7 e po rque ela deseja sim plesm ente que isso seja co m p re e n ­dido, percebido po r outros. Não se pode considera r com o felizes as épocas em que, na h istória da Igreja, a teologia e a dogm ática pensaram po d er separar a gnosis da pistis, o conhec im en to da fé. A fé bem com preend ida é co n h ec i­

7. Em a lem ão Vermmft (razão) vem de uernehm en (com preender ,entender, p e rc e b e r ) , assim com o entendimento , em francês, vem de entender. (N. do T. da ed. francesa).

Crer Significa Conhecer - 27

m ento, o ato pelo qual se crê é tam bém um ato de c o n h e ­cimento. C rer significa conhecer.

Ditas essas coisas, podem os estabelecer que a fé cristã com porta um a iluminação da razão. A fé cristã tem u m objeto preciso do qual fala o Credo: é Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A particu laridade desse objeto, a particu laridade de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo é, seguram ente, a de perm anecer imperceptível ao h o ­m em entregue a seus próprios meios de conhecim ento . Para perm itir que o ho m em o perceba, é necessário nada m enos que a intervenção do próprio Deus ag indo com plena liberdade e decidindo soberanam ente. Entregue às suas próprias forças, o hom em poderá, no m áxim o, se­gundo o grau de suas faculdades naturais, de seu e n ten d i­m ento e de sua intuição, reconhecer a existência de um ser supremo, absoluto, de um a potência superior, de um a entidade que dom ina toda a realidade. Mas tal descoberta não tem n en h u m a relação com o p róprio Deus. Ela é fru to das intuições e das possibilidades - limites do p e n ­sam ento e do esforço do hom em , que pode, com certeza, im aginar u m ser suprem o sem que, apesar disso, tenha encon trado Deus. Descobre-se e conhece-se Deus quando ele se dá a conhecer a si mesmo, den tro da sua in ­teira liberdade. Chegaremos mais tarde a falar de Deus, de seu ser e de sua natureza, mas desde já devem os espe­cificar bem que ele perm anece sendo sem pre aquele que se dá a conhecer em sua livre revelação e não u m ser im a ­ginado pelo ho m em e ao qual este ú ltim o cola u m a e ti­queta “D eus”. A linha divisória entre o verdadeiro D eus e os falsos deuses se estabelece já claramente a p a r t i r do problem a do conhecim ento. C onhecer Deus não se inclui no quadro das possibilidades discutíveis. Deus é o co n ­teúdo e a som a de toda a realidade tal com o esta se revela para nós. O conhecim ento de Deus ocorre desde que efe-

28 - Esboço de um a Dogmática

tivam ente ele fale, desde que ele se apresente ao h o m e m de tal fo rm a que o h o m e m não possa deixar de vê-lo e ouvi-lo, desde que, n u m a situação em que não possui mais o controle e na qual ele se to rn a u m en igm a para si m esm o, o h o m e m se vê colocado diante do fato que vive com D eus e D eus com ele, porque D eus se ag radou disto. Para que ele tenha conhec im ento de Deus, é necessário que tenha revelação divina, sendo o h o m e m ensinado, es­clarecido e persuad ido pela in tervenção do p róprio Deus. C om eçam os po r dizer que a fé cristã nasceu de u m e n ­contro. Podem os precisar a coisa d izendo que a fé cristã e o conhec im en to que se possa ter existem desde que a R a­zão divina, o Logos de Deus, dirige sua lei ao seio da ra ­zão hum ana , sendo esta, segundo sua natureza, obrigada a se con fo rm ar a essa lei.

É den tro desse evento que o h o m e m chega ao v e rd a ­deiro conhecim ento , pois, a pa r ti r do fato de que D eus ocupa seu pensam ento , seus sen tim entos e seus sentidos, o h o m e m e sua razão são revelados a si m esm os. A revela­ção de D eus ao h o m e m é, pois, ao m esm o tem po u m a re ­velação da verdadeira natureza do ho m em , que perm anece incapaz de provocar o evento que o ilum ina e do qual apenas D eus é o autor. Pode D eus ser conhecido? Sim, D eus pode ser conhecido porque ele se dá a c o n h e ­cer e não pode ser conhecido senão p o r ele m esm o. Esse evento confere ao h o m e m a liberdade, a capacidade, o p o ­der de conhecer Deus - a coisa p e rm an ecen d o em si um mistério. O conhec im en to de D eus é u m conhec im en to abso lu tam ente de te rm inado e criado pelo seu objeto, isto é, pelo p róprio Deus. Mas isso é precisam ente o que é um conhec im en to autêntico e, no sentido mais p ro fu n d o da palavra, u m conhec im ento livre. C ertam en te ele p e rm a ­nece u m conhec im en to relativo, encerrado nos limites da criatura. E é para seu sujeito que ele se satisfaz m uito p a r ­

Crer Significa Conhecer - 29

t icu larm ente de falar do tesouro que carregam os den tro dos vasos de barro (2Co 4.7). Nossos conceitos são im ­próprios para conter esse tesouro. É impossível não ver que nesse clima toda form a de orgulho está excluída desde logo. O hom em perm anece sendo o que é, im p o ­tente, sua razão estando submissa aos limites do estado da criatura. Mas é nesse quadro que convém a D eus se reve­lar. E acontece que aqui, igualmente, é estando louco que o h o m e m se to rna sábio, é sendo pequeno que se to rna grande, e que Deus se revela eficaz onde o h o m e m se re ­vela im potente ( IC o 1.25; 3.18). “M inha graça te basta! Pois a m in h a potência se realiza na tua fraqueza” (2Co. 12.9). Esta palavra se aplica tam bém ao prob lem a do c o ­nhecim ento .

Segundo a tese form ulada no com eço deste capítulo, a fé cristã é a iluminação da razão que nos dá a liberdade de viver den tro da verdade de Jesus Cristo. É essencial para a inteligência da fé cristã com preender que a verdade de Jesus Cristo e o conhecim ento dessa verdade referem- se à vida. Assim, isso não significa que, po r essa razão, deva-se abandona r a idéia de que a fé é u m conhec im ento para considerá-la com o um conhecim ento obscuro, um a experiência ou um a intuição irracional. A fé é v e rdade ira ­m ente u m conhecim ento, ela está ligada ao logos de Deus e, po r conseguinte, constitui algo in te iram ente lógico. A verdade de Jesus Cristo é, no sentido mais rigoroso da p a ­lavra, u m a verdade objetiva. Seu pon to de partida , a res­surreição de Jesus é, segundo os dados do Novo Testamento, u m fato que se p roduziu no tem po e no es­paço. Os apóstolos não se con ten taram em descrever e defender um a experiência puram ente interior. Eles fala­ram do que viram com seus olhos, do que ouv iram com seus ouvidos e do que tocaram com suas mãos. Assim a verdade de Jesus Cristo entra no quadro de um a reflexão

30 - Esboço de uma Dogmática

h u m a n a abso lu tam ente clara, lógica e livre, precisam ente po rque ligada a seu objeto. Mas - não separem os as duas coisas - essa verdade diz respeito à vida. A quilo que se cham a ciência, o saber, não saberia o suficiente em si para descrever essa verdade. Para po d er com preender ao que isso remete, é necessário voltar p rinc ipa lm en te ã noção de sabedoria p rópria do A ntigo Testamento, à sophia dos gregos, à sapientia dos latinos. Sapientia se d is tingue de scientia, sabedoria de ciência, no que ela im plica em um saber em inen tem en te prático que engloba a to ta lidade da existência hum ana . A sabedoria é o saber que nos perm ite viver de fato em u m a situação que é a nossa; ela une a prática e a teoria. O segredo da sua eficácia é que ela é aplicável de im ediato e governa nossa existência com o um a luz sobre o nosso cam inho (SI 119.105). N ão um a luz qualquer, oferecida para nossa estupefação ou para nossas reflexões, não u m a luz que ofereça a ocasião para fazer fogos de artifício - m esm o quando se trate das mais sábias reflexões filosóficas! - , mas a luz que, m uito s im ­plesm ente, i lum ina nosso cam inho, nossas palavras e nossos atos, que b rilha sobre nossos dias de saúde e sobre nossos dias de doença, sobre nossa pobreza e sobre nossa riqueza; que nos acom panha q uando acreditam os ver com clareza, b em com o quando nos desencam inham os. Essa luz que não cessa de estar aqui q uando tudo se ex t in ­gue e a m o rte nos sobrevêm.

C o n h ec im en to cristão significa viver na verdade de Jesus Cristo. É nele que tem os a vida, o m ov im en to e o ser (At 17.28), a fim de que possam os ser nele, p o r ele e para ele (Rm 11.36). Esse conhec im ento coincide, pois, ab so ­lu tam ente com o que d enom inam os a confiança em Deus e em sua Palavra. Não nos deixemos im obilizar q u an d o nos é p ropos to distinguir, separar, nessa m atéria . Não existe confiança real, sólida, autêntica, v itoriosa em Deus

Crer Significa Conhecer - 31

e em sua Palavra que não seja baseada na verdade de Deus e de sua Palavra, com o não existe conhec im ento cristão, de teologia, de confissão de fé e m esm o de ve r­dade bíblica que não porte ao m esm o tem po o cará ter de verdade viva e real. É preciso que u m a e outra, confiança e conhecim ento , vida e fé, sejam incessantem ente verifi­cadas, controladas e confirm adas um a pela outra.

E é precisamente porque nos é dado viver com o cristãos na verdade de Jesus Cristo, à luz do conhec i­m ento de Deus que ilum ina nossa razão, que podem os conhecer com convicção o verdadeiro sentido de nossa vida, assim com o a razão de ser e o objetivo de tudo o que existe. Daí o alargamento prodigioso de nosso horizonte: com preender dentro de sua verdade o objeto da fé é, nem mais nem m enos, tornar-se capaz de conhecer todas as coisas, quer dizer, a si mesmo, o hom em , o m u n d o e a to ­talidade do cosmos. A verdade de Jesus Cristo não é um a verdade entre outras, pois ela é a verdade de Deus, a prim a veritas, e é ao m esm o tem po a ultima veritas. Não criou Deus todas as coisas em Jesus Cristo (Cl 1.16), nós m esm os aí com preendidos? Não existimos senão nele, quer o saibamos ou não, e o universo inteiro não existe senão nele, sustentado pela sua Palavra potente. O c o n h e ­cer é conhecer todas as coisas. Ser tocado e tom ado pelo seu Espírito é ser conduzido para den tro de toda a ver­dade (Jo 16.13). Crer em Deus e conhecê-lo to rna , pois, impossível a questão do sentido da vida. Ao crer eu vejo o sentido da m inha vida, o sentido do m eu estado de cria ­tura, da m inha individualidade com seus limites e seu ca­ráter falível, tribu tário a cada instante do pecado, mas tam bém do auxílio que Deus me concede ao in terv ir sem cessar em m eu favor, apesar de m im e sem n en h u m m é ­rito de m in h a parte. Em tudo isso eu conheço e identifico a tarefa que m e é atribuída, a esperança que a acom panha

32 - Ksboço de um a Dogmática

em razão da graça na qual vivo, a realidade da glória que me está p rom etida e na qual eu já estou secre tam ente e n ­volvido aqui e agora, com toda a fraqueza da m in h a c o n ­dição presente. C rer é reconhecer que tal é p recisam ente o sentido de m in h a vida.

O C redo afirm a que Deus é a razão de ser e o ob je­tivo de tudo que existe. A razão de ser e o objetivo do u n i ­verso é Jesus Cristo. Eis o inaudito em todo esse assunto: a fé cristã, que im plica essa confiança total em D eus e em sua Palavra, esse conhec im en to ín tim o e p ro fu n d o da r a ­zão de ser e do objetivo de todas as coisas; assim o h o ­m em vive, a despeito de tudo que possa ser dito ao contrário , nessa paz que supera todo en tend im en to (Fp4.7) e que, nisso m esm o, é a luz que ilum ina nosso e n te n ­dim ento.

Crer É Confessar a Sua Fé

A fé cristã é a decisão que dá aos homens a liberdade de de­clarar publicamente sua confiança na Palavra de Deus e seu conhecimento

de Jesus Cristo, tanto na linguagem da Igreja, como na linguagem do mundo, e sobretudo pelas ações

e atitudes subseqüentes.

A fé cristã é um a decisão, esse é o nosso pon to de par tida neste quarto capítulo. C ertam ente a fé é u m aco n ­tecim ento den tro do mistério da relação entre D eus e o hom em , acontecim ento que manifesta a liberdade da qual Deus faz uso em direção ao hom em , ao m esm o tem po em que lhe oferece essa m esm a liberdade. Mas isso não ex­clui, bem ao contrário, que a fé se traduza po r u m a h is tó ­ria, quer dizer, que o hom em que crê seja levado a agir através do tempo.

A fé é o mistério de Deus que irrom pe em nosso m undo: ela manifesta a liberdade de Deus e a liberdade do ho m em em ação. Se ela não se traduz ir p o r n en h u m fato - visível e audível - não é fé. Ao falar de Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo, o Credo quer significar que o p róprio Deus em sua essência, em sua vida p ro funda , não é um Deus passivo, inativo, um Deus m orto , mas que ele

34 - Esboço de um a Dogmática

existe em u m a relação in terna, em u m m ov im en to que se pode, com fundam ento , descrever com o u m a história, um devir.

D eus não está acim a da história. Ele p róprio é a h is ­tória. Por toda a e ternidade, concebeu em si m esm o u m propósito do qual a Confissão de Fé exprim e linhas gerais e que nossos pais8 d en o m in aram decreto da criação, da aliança e da salvação. Esse propósito D eus executou, de u m a vez p o r todas, sobre o p lano da h is tória na obra e na m ensagem de Jesus Cristo, as quais te s tem unha concreta-

m ente o quar to artigo do Símbolo9: “padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, m orto e sepu ltado .. .”.

A fé é o que corresponde, po r parte do ho m em , a essa existência e a essa ação de Deus. Seu objeto é esse Deus h istórico em sua essência e seu propósito visa, põe em m ovim en to e realiza a história. U m a fé que não seja ela m esm a h istória não é mais a fé cristã, pe rdeu o seu o b ­jeto.

A autêntica fé cristã de te rm ina sem pre u m fen ô ­m eno histórico: a aparição, entre os h om ens de um a m esm a época e de todas as épocas, de u m a com unidade , de u m a reunião, de u m a com unhão . M as ao m esm o tem po ela suscita no p róprio seio dessa com un idade u m a pregação, u m a m ensagem dirigida ao exterior, em direção ao m u n d o de fora. U m a luz se acende e “ela i lum ina a to ­dos os que estão den tro da casa” (Mt 5.15). Em suma: a fé dá nasc im en to e v ida a um a com un idade cuja vocação é a de estar no e para o m undo ; e é Israel que surge no meio dos povos, e é a Igreja que se reúne, a c o m u n h ão dos sa n ­tos, todos os que constituem o corpo de Cristo. N ão que

8. N. do Ed.: As primeiras gerações dos Reformadores, que sistematizaram estas doutrinas.

9. Vide nota n 1.

C rer É Confessar a Sua Fé - 35

Israel e a Igreja sejam um fim em si m esm os, pois estão aqui un icam ente para significar a v inda do serv idor que Deus suscitou para todos.

Há a história, portanto , e aqui é o lugar de falar dessa correspondência entre a ação do h o m e m e a obra que D eus realizou na livre decisão da sua graça. Essa h is ­tória é possível desde que o hom em responda, quer dizer, obedeça.

A fé é obediência e não adesão passiva. O bedecer é escolher. Escolher a fé e não a incredulidade, decidir-se pela confiança contra a dúvida, pelo conhec im ento c o n ­tra a ignorância. Crer é fazer um a escolha entre a fé e o que não é ela, o erro e a superstição. A fé é o ato de o bed i­ência e de decisão pelo qual o hom em se apresenta a Deus com o Deus o exige. Esse ato implica que se deixe de ser neu tro face a face com Deus, que se abandone essa atitude de indiferença e de irresponsabilidade que im pede toda decisão verdadeira; que se deixe, enfim, seu p róprio u n i ­verso para ousar escolher e se ligar abertam ente , pub lica­mente. U m a fé que perm aneça algo privado, que não se manifeste para o exterior, não será mais do que u m a in ­credulidade escondida, um a falsa fé, um a superstição. Pois a fé que tem por objeto Deus, o Pai, o Filho e o Espí­rito Santo não pode não se manifestar publicamente.

Dissemos que “a fé cristã é a decisão que dá aos h o ­mens a liberdade de declarar publicam ente sua confiança na Palavra de D eus”. A responsabilidade pública que o cristão assum e implica que ele recebeu o direito, a p e r ­missão; quer dizer que ele conhece u m a evidente liber­dade. À liberdade de crer e de conhecer, som a-se aquela de se engajar. Impossível separar u m a da outra. U m a c o n ­fiança em Deus que p re tenda viver sem conhecim ento , não seria verdadeira. E o hom em transbordan te de confi­ança e de conhecim ento que não se sinta livre para de-

36 - Rsboço de uma Dogmática

clará-los publicam ente, merece que dele se diga “sua confiança e seu conhec im en to não valem nada!” O p ró ­prio Deus, tal com o o confessa a Igreja, não é aquele que, longe de pe rm anecer oculto e de querer existir para si m esm o, saiu do seu m istério e da sua m ajestade divina para descer e se m anifestar den tro da sua criação? N ão é aquele que se desvela, que se mostra?

Q u an d o se crê nele, não se pode ter escondidos a graça, o amor, a consolação e a luz que vêm dele, nem guardar para si a confiança que se põe na sua Palavra e o conhec im en to que se tem dele.

É impossível que as palavras e os atos do crente p e r ­m aneçam palavras neutras, atos que não se c o m p ro m e ­tam. D esde que exista a fé, a glória de Deus (doxa , gloria) deve necessariam ente brilhar sobre a terra. Se a glória de Deus não se m anifesta de um a m aneira ou de outra , se ela pode ser obscurecida ou deform ada po r nossa p ró p ria sa­bedoria ou po r nossa fraqueza, deve-se concluir que a fé está ausente e que a consolação e a luz que D eus concede não foram recebidas de fato. A glória de D eus en tra no cosm os e seu nom e é santificado sobre a te rra toda vez que aos seres h u m an o s é dado crer, toda vez que se reúne e se põe em m archa o povo, a com unidade de Deus.

A fé dá ao hom em , tal com o ele é, com todos os seus limites e sua im potência, em toda a sua perd ição e toda a sua loucura , a liberdade real para fazer resp landecer a glória e a h o n ra de Deus, de refletir sua luz incom parável sobre a terra. Não nos é exigido mais do que isso, m as isso nos é exigido. Essa liberdade de te s tem u n h ar pub lica­m en te sobre a nossa confiança na Palavra de D eus e sobre nosso conhec im en to da verdade que está em Jesus Cristo, isso é o que nos te rm os da Igreja se cham a confessar sua fé.

Crer É Confessar a Sua Fe - 37

Confessar sua fé é declarar publicam ente na l ingua­gem da Igreja, mas é tam bém tes tem unhar através de d e ­cisões profanas e, sobretudo, pelas ações e atitudes conseqüentes. Temos aqui, parece-me, as três form as ab ­solutam ente inseparáveis - impossíveis de se opor um as às outras e que devem ser vistas sempre ao m esm o tem po - do tes tem unho cristão, que é em si m esm o u m a das m a ­nifestações essenciais da fé. As explicações que se seguem form am , portan to , um todo indivisível.

1»A fé nos dá a liberdade de afirm ar publicam ente nossa confiança e nosso conhecim ento, na linguagem pró­pria da Igreja. O que querem os dizer com isso? A igreja teve e tem sua linguagem para ela em todas as épocas. É assim. No desenvolvimento histórico, ela possui sua h is ­tória particular, sua própria via. Ao confessar sua fé, não pode abstrair essa história. Ela vive em u m contexto h is ­tórico absolutam ente preciso que não cessará de lhe im ­por u m a de term inada linguagem. Assim, a fé cristã - e o te s tem unho público dessa fé -necessa r iam en te extrairá seu m odo de expressão da Bíblia, das línguas da Bíblia, o grego e o hebraico, e das traduções que têm sido feitas, as­sim com o da tradição da Igreja, das formas de p en sa ­m ento, conceitos e idéias que a Igreja utilizou no decorrer dos séculos para formular, adquirir, defender e desenvol­ver seus conhecimentos. Existe u m a linguagem própria da Igreja. É normal. O usem os cham á-la po r seu nom e: o “dialeto de Canaã”. N enhum cristão, cham ado a confessar a fé, quer dizer, cham ado para fazer brilhar ex ternam ente a luz que está acesa nele, poderá fazê-lo sem utilizar essa linguagem, que é a sua. Vejamos as coisas com o elas são: desde que se to rne necessário exprim ir com precisão as coisas da fé, desde que se deva falar de nossa confiança em Deus, em sua Palavra no que ela tem, po r assim dizer,

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de específico - e nós devem os bem reconhecer que isso é terrivelmente necessário para que os problem as se to rn em claros - devem os de saída falar o dialeto de Canaã! Te­nham os essa coragem! Pois certas direções, certos co n se ­lhos e certas exortações não podem ser com un icados aos outros senão nesse “dialeto”. Não é necessário ser delicado dem ais nesse assunto, nem m ed ir excessivamente as p a la ­vras. “Eu creio”, dizem os freqüentem ente, “mas m in h a fé é algo tão ín tim o e pessoal que estipulei para m im m esm o um a regra de evitar citar a m ín im a palavra bíblica, e que sinto u m forte em baraço ao p ronunc ia r até m esm o o nom e de Deus, isso sem falar de Jesus Cristo, de seu sa n ­gue ou do Espírito Santo...” Eu respondo: “C aro amigo, adm ito que possa ter um a fé profunda, cuide som en te de to rnar-se capaz de declará-la publicamente! Caso c o n trá ­rio, esse p u d o r de sen tim entos que reclam a p oderia muito bem não ser mais do que o m edo d iss im ulado de ter de sair de seu estado de neu tra lidade interior. Pense!” Sem dúvida, u m a vez que a Igreja não ousa confessar sua fé na linguagem que é a sua, ela adquire o hábito de não confessar coisa nenhum a! Torna-se, então, u m a c o m u n i­dade silenciosa, senão muda. A fé, desde que existe, le­vanta im ed ia tam en te a questão: não se deve, a legrem ente e sem temor, falar a linguagem da Bíblia, exprim ir-se com o fez a Igreja no passado e com o deve fazer hoje? Forte pela liberdade e segurança que são suas, a fé não deixa de suscitar, po r toda a parte e sempre, sem elhan te linguagem para o louvor e a glória de Deus.

2»Mas isso ainda não pode constitu ir todo o teste ­m u n h o da Igreja. Confessar significa a inda mais. G u a r­d em o-nos de pensar que a confissão de fé não é m ais do que um a coisa espiritual, reservada exclusivam ente ao dom ín io da Igreja e consistindo sim plesm ente em dar

Crer K Confessar a Sua Fé - 39

u m a certa extensão à sua mensagem. A verdadeira m o l­dura da Igreja é o m undo, como se pode no ta r já à p r i ­m eira vista a partir do fato que, den tro de u m a aldeia ou den tro de u m a cidade, o templo ocupa seu lugar ao lado da escola, do cinem a e da estação. A linguagem falada pela Igreja não poderia ter um propósito em si m esm a. É necessário perceber que a Igreja está verdade iram ente aqui para o m undo; é preciso que a luz brilhe nas trevas (Jo 1.5). Assim com o Cristo não veio para ser servido, mas para servir, não é conveniente que os cristãos exis­tam sim plesm ente para eles mesmos. Q uer dizer que a fé, que se manifesta exteriorm ente com o u m a confiança e com o u m conhecim ento, determ ina certas decisões no século e que, po r constitu ir um testem unho claro e au tên ­tico, ela deva poder se traduzir perfeitam ente na l ingua­gem do Senhor Todo-M undo, do h o m e m da rua, enfim, na língua daqueles que não têm nem o hábito de ler a Bí­blia nem o de cantar os cânticos, e de quem os meios de expressão e os centros de interesse são abso lu tam ente d i ­ferentes. É para o m undo que Cristo enviou seus d isc ípu­los e é no m u n d o que nós vivemos. N en h u m de nós é apenas cristão; todos somos ao m esm o tem po cidadãos desse m undo . O m esm o vale para nossas decisões cristãs, para a tradução de nosso testem unho na língua de qua l­quer um. A confissão de fé, com efeito, p re tende se apli­car à vida tal qual ela é, às circunstâncias de nossa existência quotid iana com todas as questões teóricas ou práticas que ela nos propõe. Se nossa fé é real, ela deve necessariam ente entrar na nossa vida. Em sua form a p u ­ram ente eclesiástica, o testem unho cristão corre sem pre o risco de fazer crer que o crente considere seu credo com o algo pessoal e privado e que, no m u n d o tal com o é, são outras as verdades que têm valor. O m u n d o vive sobre esse m al-en tend ido e considera o cristianism o com o um a

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agradável “m agia” pertencen te ao “dom ín io religioso”, certam ente respeitável, mas que não convém m exer e tudo está dito! Mas esse m al-en tend ido p o d e m uito bem existir en tre os p róprios cristãos dispostos de b o m grado a fazer da fé seu objetivo, com a condição de não m exer com ela jamais. N ão é de on tem que se ten ta apresen tar o p rob lem a das relações entre a Igreja e o m u n d o com o um prob lem a de boa vizinhança, cada um p erm a n ecen d o p ru d en te m en te nas posições cu idadosam ente preparadas, a despeito de algum as escaram uças que possam acontecer nos postos avançados. A Igreja não pode considera r esse “acordo de cavalheiros” com o definitivo. De seu po n to de vista u m a só coisa conta: que seu te s tem unho possa res­soar igualm ente no seio da sociedade que a cerca, dessa vez não no dialeto de Canaã, mas na linguagem mais só ­bria e m enos eclesiástica que o m u n d o cos tum a falar. Trata-se, para a Igreja, de traduz ir sua m ensagem no es­tilo dos jornais, p o r exemplo. Trata-se de repetir, de um a m ane ira profana, o que dizem os com as palavras e a l in ­guagem da Igreja. O cristão não deverá temer, portan to , usar de u m a fala pouco “edificante”. Se ele se sen tir in ca ­paz, que se pergun te se o que se diz den tro da Igreja é sem pre edificante! Nós conhecem os bem esse jargão p a s ­toral e clerical que para as pessoas de fora, p ro d u z o efeito do chinês! Tom em os cu idado de não nos iso larm os e de não recearm os falar claro ao m undo . U m exemplo: em 1933, num erosos foram aqueles que na A lem anha so u b e ­ram confessar e viver sua fé de um a m aneira p ro fu n d a e autêntica, e nós louvam os a Deus po r isso; infelizmente, esses te s tem unhos foram de algum a m aneira b loqueados pela linguagem que servia para formulá-los. N ão se soube traduzir, então, em decisões políticas, o que estava exce­len tem ente expresso na língua da Igreja; caso contrário , a Igreja evangélica desse país veria claram ente que ela deve-

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ria dizer não ao nacional-socialismo e isso desde o co ­meço. E foi assim, então, que não houve, sob a form a in te iram ente profana, a verdadeira confissão de fé. Im ag i­nem os o que teria acontecido se a Igreja tivesse sabido form ular em term os políticos suas convicções espirituais! Ela não foi capaz e as conseqüências estão diante de n o s ­sos olhos. Um segundo exemplo: hoje, igualmente, exis­tem manifestações de fé cristã séria, autêntica. Estou persuad ido de que os acontecim entos atuais elevaram tan to a fome e a sede da Palavra de Deus, que a Igreja está a pon to de viver um m om ento im portan te . Mas não é su ­ficiente que ela se limite a se corrigir, a se consolidar a si p rópria e que os cristãos perm aneçam u m a vez mais entre eles. Em verdade, hoje é indispensável fazer teologia com um a consagração m uito maior. Mas, oxalá possam os ver e com preender m elhor do que há pouco tem po a necessi­dade de se traduzir em decisões e em tom adas de po s i­ções políticas o que se passa no seio da Igreja! U m a Igreja evangélica que pre tenda hoje perm anecer m u d a sobre a questão da culpabilidade que os acontecim entos que aca­bam os de viver levantam, ou que sim plesm ente acred i­tasse po d er negligenciá-la, quando esta exige um a resposta em razão m esm o do futuro, se condenaria , desde o princípio, à esterilidade. Da m esm a forma, u m a Igreja que não com preenda sua vocação em relação às pessoas em aflição, e para a qual o ensinam ento e a pregação não co rrespondam aos problem as levantados pela situação atual, um a Igreja que não se ponha in te iram ente no t r a ­balho de responder à urgência dessa tarefa esm agadora, celebrará o seu próprio funeral. Oxalá cada cristão indiv i­dualm ente possa ver claramente o que sua fé implica: e n ­quanto ela não passa de um a espécie de agradável to rre de m arfim que o dispensa de pensar em outrem , enquanto ela lhe oferece u m tipo de álibi fácil e faz dele u m ser du-

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pio, ela não é autêntica. Por outro lado, não se p o d e de m aneira n e n h u m a viver dentro de um a torre de marfim! O h o m e m é u m todo e não pode verdade iram en te existir senão com o um todo.

3»Recordemos enfim a ú ltim a frase de nossa tese inicial: pelas ações e atitudes subseqüentes. É in ten c io n a l­m ente que falo n u m terceiro ponto, d is tin to do p rece ­dente. De que serviria a um h o m e m falar e confessar sua fé na linguagem mais forte que pudesse existir, se não houvesse a caridade? Confessar sua fé, te stem unhar, é um ato es tre itam ente ligado à vida. C rer é ser cham ado para arriscar-se. Tudo depende disso.

Deus Nos Lugares Altíssimos

Segundo a Sagrada Escritura, Deus é aquele que está presente, vive, age e se dá a conhecer para nós

pela obra que ele determinou e realizou em Jesus Cristo na liberdade de seu amor, ele o Único.

O Símbolo dos Apóstolos, que nos serve de ponto de partida, abre-se com as seguintes palavras: creio em Deus. Nós p ronunciam os assim o conceito maior, o te rm o decisivo do qual o Credo cristão não é mais do que a ex­plicação e o desenvolvimento. Deus é o objeto da fé de que falamos nas nossas últimas aulas. É, sum ariam en te fa­lando, o conteúdo da pregação da Igreja. C ontudo, ocorre que Deus parece ser, de um a m aneira ou de outra , u m a realidade familiar a todas as religiões e a todas as filoso­fias.

Antes de prosseguir, é necessário, pois, de te rm o-nos um instante para pergunta r a nós mesmos: que relação existe entre a palavra “Deus”, no sentido em que a e m ­prega a fé cristã, e naquele que esse nom e encobre em to ­das as religiões e filosofias de todos os povos e de todas as épocas?

Vamos esclarecer a significação habitual desse vocá­bulo fora da fé cristã. Q uando o h o m e m fala de Deus, da

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natureza ou da essência divina, p re tende trad u z ir o s en ti­m en to de nostalgia e de desorientação que ele experi­m en ta com todos os seus sem elhantes e que o em p u rra para p ro cu ra r u m a un idade entre os seres, u m a razão de ser para sua existência e u m sentido para o universo. Ele pensa na existência e na natureza de u m ser em u m a rela­ção mais ou m enos coerente com a es tonteante d iversi­dade de fenôm enos e que deveria considera r com o a essência suprem a que regula e d om ina toda a realidade. E, se lançam os agora u m olhar sobre esse vasto cam po de pesquisas, onde se dá livre curso à nostalgia e às h ipóteses hum anas, nossa p rim eira im pressão é a de u m a faculdade de invenção in fin itam ente diversa, que se conjuga com todas as arbitrariedades e todas as fantasias.

De fato, encon tram o-nos diante de u m a m o n ta n h a de incertezas e de contradições. Q uando, pois, falamos de Deus na m o ld u ra da fé cristã, devem os ter em m en te que nós não estam os acrescentando mais u m a noção a todas aquelas que já existem no inventário religioso da h u m a n i­dade. Deus, segundo a fé cristã, não é mais um D eus entre os outros. Ele não pertence ao panteão da p iedade h u ­m ana e da engenhosidade religiosa.

Portanto , não é um a questão de se pos tu la r no seio da na tureza h u m a n a a existência de u m a tendênc ia u n i ­versal e ina ta ao divino, de um conceito geral de D eus que englobaria, n u m dado m om ento , o que crem os e confes­samos q uando falamos de Deus enquan to cristãos, de tal sorte que nossa fé seria um a fé entre outras, u m caso p a r ­ticu lar den tro de u m a regra geral. U m Pai da Igreja disse com razão: Deus non est in genere - Deus não per tence a n e n h u m gênero!

Q u an d o falamos de “D eus”, nós, cristãos, p o d em o s e devem os claram ente nos dar conta que esse te rm o s ign i­fica de im ediato o “to ta lm ente O u tro” e que estam os ver-

Deus Nos Lugares Altíssimos - 45

dadeiram ente libertos da pesada m o ldu ra das buscas, das hipóteses, das imaginações, das ilusões e das especulações hum anas. Não é questão, não mais, de se pensar que o h o ­m em em busca do divino poderia, enfim, depois de m uito sofrim ento, alcançar um degrau de conhec im ento tal que coincidisse praticam ente com o conteúdo da fé cristã.

O Deus que a fé cristã confessa não é, à m ane ira dos deuses deste m undo, um ser que se encon tra ou se in ­venta, u m a divindade que se oferece ao h o m e m ao té r ­m ino de seus esforços; ele não é o coroamento , seja ele o mais perfeito, de um a procura que pudéssem os iniciar sem mais nada e alcançar po r nós mesmos.

É o Deus que, ao contrário, ocupa já e sem re to rno o lugar de tudo aquilo que os hom ens costum avam cham ar “D eus” e, que, excluindo de im ediato todas as dem ais p re ­senças, exceto a sua, reivindica o privilégio de ser dele so ­m ente a verdade. Se não se com preende isso, perm anece- se incapaz de en tender aquilo que a Igreja quer dizer quando confessa: creio em Deus. Trata-se aqui de u m e n ­contro do ho m em com a realidade a qual ele perm anece para sempre incapaz de buscar e encon trar po r si mesmo. “O que o olho não viu, o que o ouvido não escutou e o que não subiu ao coração do hom em , Deus o revelou aos que o am am ” ( lC o 2.9). Assim se exprim e o apóstolo Paulo a respeito dessa realidade. E não se pode falar d ife­rentemente.

Deus, no sentido da fé cristã, tem u m a existência absolutam ente diferente daquilo que hab itualm ente se cham a o divino. Sua natureza é, portan to , to ta lm ente d is­tin ta daquela dos seres que se cham avam “deuses”. Nós re ­sum im os tudo o que se pode dizer a respeito de Deus, segundo a fé cristã, na expressão: Deus nos lugares altíssi-

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mos. Ela se encontra , com o vocês sabem, nas narrativas do Natal (Lc 2.14). É esta pequena frase “nos lugares altís­s im os”, in excelsis, que eu quero ten tar explicar agora.

“Nos lugares altíssimos” significa sim plesm ente , d e ­pois do que acabam os de dizer: Deus está acima de nós, acim a de todas as nossas intuições, de todos os nossos es­forços, de todos os nossos sentim entos, sejam eles os mais sublimes, acim a de todos os p rodu tos de nosso espírito, sejam eles os mais admiráveis. E isso significa, em se­guida, com o já vimos, que D eus não deposita coisa al­gum a de sua razão de ser em nós m esm os e que ele não co rresponde a n e n h u m a disposição ou possibilidade de nossa natureza, mas que ele não existe e n em tem reali­dade, senão em si mesmo. C om o tal, ele não se revela a nós através de nossa p rocura , nossas descobertas, nossos sen tim entos e nossos pensam entos, mas exclusivamente p o r ele mesm o.

É precisam ente esse Deus que está sen tado nos luga­res altíssimos que se to rn o u tal pa ra o hom em , se deu, se fez conhecer a si. D eus nos lugares altíssimos não s ign i­fica, portan to , que ele não tem nada a ver conosco, que ele não nos concerne, que ele perm anece e te rnam en te es tra ­nho, mas, segundo a fé cristã, isso quer dizer, ao c o n t rá ­rio, que ele veio, desceu até nós, que ele se to rn o u nosso Deus. É o D eus que afirm a e prova sua au tentic idade, aquele que nossa m ão não pode conter e que, p rec isa­m en te p o r essa razão, tom ou-nos pela m ão; aquele que, n u m a palavra, é o único que merece o nom e de Deus, à diferença de toda as divindades inventadas e que, rad ica l­m en te d is tin to de tudo o que existe, está con tu d o ligado a nós. Q u an d o dizem os com o Símbolo dos Apóstolos: Creio em Deus, é esse Deus que nós estam os confessando.

Tentarem os agora form ular de u m a m an e ira mais precisa o que acaba de ser dito. Segundo a Sagrada Escri-

Deus Nos Lugares Altíssimos - 47

tura, Deus é u m ser presente, vivo, atuante e que se faz co ­nhecer. Por essa definição, as coisas se to rn am m uito diferentes do que seriam se eu tentasse sim plesm ente apresentar a vocês alguns conceitos relativos a u m ser su ­p rem o e infinito. Nesse caso eu estaria fazendo especula­ção. Mais eu não convido vocês a fazer especulação, pois é um m étodo vicioso, u m a vez que, longe de conduzir a Deus, esse m étodo não pode senão nos levar a designar sob esse nom e um a realidade que não é ele. Deus está presente no Antigo e no Novo Testamento que falam dele. E a definição cristã de Deus consiste sim plesm ente em d i­zer: esses livros falam dele, portan to escutem os o que eles estão nos dizendo. Aquilo que se pode ver e en tender nas Escrituras é Deus.

O bservem os bem: a Bíblia, Antigo e Novo Testa­m entos, não contém jamais a m enor tentativa de provar Deus. Semelhantes tentativas não existem senão fora da Bíblia e po r toda parte onde se esquece com quem se está lidando quando se fala de Deus. Elas são familiares para vocês: consistem em postular a existência de u m ser p e r ­feito a par ti r do próprio fato de que tudo o que existe é imperfeito; afirm ar que a ordem geral do m u n d o p ressu ­põe um a potência ordenadora; partir de nossa consc iên­cia m oral para afirm ar a existência de u m ser supremo, etc. Não tenho a intenção de sair em guerra con tra essas diversas “provas” da existência de Deus. N ão sei se vocês se dão conta de imediato do que elas têm, ao m esm o tempo, de frágil e de trágico. Aplicando-se aos deuses fa­miliares a esse m undo , elas são perfeitam ente aceitáveis e, se eu tivesse de entretê-los com essas divindades, não de i­xaria de recorrer às cinco famosas provas da existência de Deus. A Bíblia não conhece esse gênero de dem onstração:

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para ela, D eus não tem necessidade de ser provado. Ele é quem , de u m a ex trem idade a outra, prova-se por si mesmo: eis-me, diz ele, e a par tir do fato que eu existo, vivo e ajo, to rna-se inútil p rovar a m in h a existência. É com relação a essa dem onstração que D eus dá de si m esm o que falam os profetas e os apóstolos. Impossível falar de D eus de m ane ira diferente den tro da Igreja. Deus não tem n e n h u m a necessidade de nossas provas. Aquele que se cham a Deus, na Sagrada Escritura é insondável, o que quer dizer que ele não pode ser descoberto po r n in ­guém. Q u an d o se trata dele na Bíblia e ele é referido com um a grande familiaridade, mais p róxim o de nós do que nós m esm os jam ais seremos e mais real que to d a ou tra realidade, isso não ocorre po r ser dado a certos hom ens pa r t icu la rm en te religiosos a possibilidade de alcançá-lo, mas porque ele se revelou, ele, o Deus oculto.

Disso resulta que não apenas nós não p o d em o s d es­cobrir e provar Deus, mas ainda que ele nos p erm anece incompreensível. A Bíblia nunca busca defin ir Deus, vale dizer, fazer com que ele se encaixe em nossos conceitos; mas, qu an d o ela p ronunc ia seu nome, afirm a sem cessar um sujeito que vive, que age, que se faz conhecer p o r si m esm o, ao con trá rio da entidade defin ida pelos filósofos com o u m ser suprem o, infinito, longínquo e p a irando so ­bre o universo. A Bíblia conta Deus, relata o que ele fez, a h is tória m uito precisa realizada neste m u n d o entre os h o ­m ens po r aquele que se assenta nos lugares altíssimos. Ela assinala a significação e o alcance dessa ação, dessa h is tó ­ria e é assim que prova a existência de Deus e descreve sua natureza. C onhec im en to de Deus, segundo a Bíblia e segundo a confissão de fé da Igreja é, pois, conhec im en to da sua presença, de sua vida, de sua ação, de sua revelação

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na obra que ele realizou. Assim, a Bíblia não é u m livro de filosofia, mas um livro de história, o livro dos poderosos atos de Deus, no qual Deus se faz conhecido de nós.

1»A Escritura descreve um a obra: a obra da criação. Deus faz surgir ao seu lado um a realidade outra , distin ta dele, “a criatura”, sem necessidade, na liberdade de seu pod er absoluto e na superabundância de seu amor.

2«Uma aliança se estabeleceu entre ele e u m a de suas criaturas, entre Deus e o hom em . Existe aqui, ainda, um a coisa incompreensível: po r que essa aliança entre Deus e o hom em , esse hom em de quem a Bíblia afirm a de um a pon ta a ou tra que é um ingrato, u m rebelde, u m p e ­cador? Apesar disso, sem querer levar isso em conta e se abstendo de endireitar a situação, Deus se dá a si m esm o à sua criatura. E o faz, to rnando-se o Deus de u m p e ­queno povo desprezado do O riente Médio, Israel. Faz isso, to rnando -se um m em bro desse povo, u m a criança e, finalmente, m orrendo.

3»Enfim - mas tudo isso não é mais que u m a única e mesma obra - , existe a redenção, a revelação da intenção de Deus que am a na liberdade, no que concerne ao h o ­m em e ao m undo , o aniquilam ento de tudo aquilo que se opõe a essa intenção, a manifestação de novos céus e da nova terra. Tudo isso, um nom e o significa e exprime, Je­sus Cristo, o hom em em quem o p róprio Deus se fez visí­vel e to rnou-se ação sobre a terra; Jesus Cristo, o objetivo da h is tória de Israel, em quem a Igreja com eça e te rm ina, chave da revelação, da redenção e da nova criação. Toda a obra de Deus está contida nessa única e m esm a pessoa. Falar de Deus, segundo a Sagrada Escritura, é necessaria­m ente falar de Jesus Cristo.

É den tro dessa obra da criação, da aliança e da re ­denção que Deus está presente, vive, age e se faz c o n h e ­

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cer. N ão é perm itido fazer-se abstração dessa obra q uando se quer saber algo da existência e da essência de Deus. D eus em pessoa está presente nessa obra e é p rec i­sam ente o sujeito dela. Ele age na liberdade de seu amor. C ertam en te a palavra liberdade e a palavra am or são c o n ­venientes qu an d o se tra ta de caracterizar o que ele faz e o que ele é. Mas deve-se to m ar cu idado para não se cair de novo do concre to no abstrato, da h istória nas idéias. Eu teria m edo de dizer: Deus é liberdade ou D eus é amor, se bem que esta segunda fórm ula seja bíblica ( l j o 4.8). Nós ignoram os o que seja o amor, nós ignoram os o que seja a liberdade, mas Deus é amor, Deus é liberdade. É dele que tem os que ap render sobre u m a e sobre outro. Ele é aquele que am a na liberdade. É com o tal que se m anifesta na obra da criação, da aliança e da redenção. E aqui é que ve­m os em que consiste o amor: essa necessidade do ou tro com o tal, o D eus único deixando de ser só para se u n ir to ta lm ente à pessoa do outro. Tal é o amor, o livre am or de Deus.

M esm o sem a criação, Deus não está só. Ele não n e ­cessita dela e con tudo ele a ama. Esse am or não p o d e ser concebido senão den tro do absoluto da liberdade divina. O am or de D eus consiste nisso: que D eus o Pai am a o Fi­lho que é, ele m esm o, Deus. Sua obra não é mais do que a m anifestação do m istério do seu ser ín tim o onde tudo é am or e liberdade.

Q u em sabe agora possam os com preender m e lh o r o sentido do nosso título: Deus nos lugares altíssimos. É porque D eus é o Pai, o Filho e o Espírito Santo na obra que ele realizou em Jesus Cristo, que ele está p recisa­m ente nos lugares altíssimos. Ele, cuja na tu reza consiste

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em se abaixar; ele, cuja existência se m anifesta no ato de descer ao fundo do abismo; ele, o m isericordioso que se dá à sua cria tura a pon to de parti lhar a sua decadência mais profunda, é ele o Deus altíssimo. Ele o é, não apesar disso, em virtude de um paradoxo surpreenden te , mas devido ao fato m esm o de que ele se abaixe assim. É nesse livre am or que ele está acima de tudo. Ver em D eus um a ou tra grandeza é não ter com preendido que ele é “to ta l­m ente O u tro”, é, como os pagãos, buscar D eus na in fin i­dade. Mas ele difere to talm ente da idéia que fazemos de nossos “deuses” hum anos. Ele cham a Abraão, conduz um povo miserável através do deserto, recusa, p o r séculos in ­teiros, deixar-se desconcertar pela infidelidade e desobe­diência desse povo, aceita se to rnar um hum ilde recém- nascido no estábulo de Belém e m orre r no Gólgota. Ele é o Senhor teu Deus. Vocês com preendem o que significa o m onote ísm o para a fé cristã? Deus não quer saber nada dessa m an ia de unidade! Deixemos de lado essa m an ia do núm ero u m e com preendam os que D eus é o sujeito ao m esm o tem po único e absolutamente distin to de tudo o que existe, radicalm ente diferente das divindades r id ícu ­las im aginadas pelos homens. Q uando se com preende isso, não se pode deixar de rir deles, com o o faz a Bíblia. Aqui onde o verdadeiro Deus é reconhecido, os ídolos se desm ancham na poeira e só ele perm anece. “Eu sou o Se­nh o r teu D eus .. . tu não terás outros deuses d iante da m i­nha face” (Ex 20.2-3). Isso quer dizer: tu não podes ter outros deuses. Tudo o que se cham a “deus” ao lado dele não é mais que o reflexo da nostalgia doen tia que está in ­cubada no coração do hom em com desastrosas conseqü ­ências. Nessa perspectiva, o segundo m an d am en to se

52 - Esboço de urna Dogm ática

to rna m uito claro tam bém : “tu não farás im agem e n ta ­lhada, n em n e n h u m a representação ... tu não te p ro s tra ­rás d iante deles e tu não os servirás!”. T am bém é com ple tam ente falso postu lar aqui u m conceito filosófico sobre a invisibilidade de Deus, assim com o ver aí u m a ex­pressão típica da m entalidade israelita. O p róp rio D eus já fez tudo para se apresentar ele m esm o a nós. C o m o o h o ­m em po d er ia querer representá-lo? D izem os a propósito disso que a arte cristã é certam ente m ovida pelas m e lh o ­res in tenções do m undo , mas im potente, p o rque D eus já nos deu a sua im agem. Q u an d o se com preende v e rd ad e i­ram ente que D eus está nos lugares altíssimos, não se pode mais querer representá-lo quer seja po r pensam entos , quer seja po r imagens.

Deus O Pai

O único Deus verdadeiro é por natureza e pela eternidade o Pai, origem de seu Filho e, unido a ele, origem do

Espírito Santo. Em virtude dessa maneira de ser, ele é, pela graça, o Pai

de todos os homens, que ele chama em seu Filho e pelo Espírito Santo para serem seus filhos.

O Deus único, o Altíssimo, é um Pai. D esde que p ronunc iam os essa palavra, desde que, com o p rim eiro artigo do Símbolo, nós dizemos Deus, o Pai, devem os logo nos lem brar do segundo artigo: Deus é o Filho, e do terceiro: ele é o Espírito Santo. Os três artigos do Símbolo nos falam a cada vez do mesmo Deus. N ão existem aqui três divindades, não há em Deus divisão, rup tura . Longe de afirm ar três tipos de “Deus”, a Trindade fala, pelo c o n ­trário, estritam ente de um único e m esm o Deus. É assim que a Igreja tem in terpretado sem pre e a p rópria Escri­tu ra não nos diz nada de diferente. A T rindade cessa de ser um a construção teórica desde que se queira não sepa­rar os três artigos do Credo e reconhecer que o tem a n es­ses três artigos trata do m esm o Deus criando o m undo , in terv indo com Jesus Cristo e agindo pelo Espírito Santo, e não de três departam entos divinos que têm cada u m seu

54 - Esboço de um a Dogmática

“d ire to r”! Nós tra tam os com um a só e m esm a obra do único e m esm o Deus, mas esta obra é, ela m esm a, u m m o ­vimento. Pois o D eus em quem acreditam os não é um Deus m orto , n em um Deus solitário, mas, sendo in te ira ­m ente o Único, ele não fica, contudo, só em si m esm o, re ­colhido em sua m ajestade divina: a obra que ele realiza, na qual ele nos encon tra e que nos perm ite conhecê-lo , é um a ação d inâm ica e viva, po r natureza e para a e te rn i­dade; e para nós que vivemos no tem po da sua graça, ele é o Deus único em suas três maneiras de ser. A Igreja antiga afirma: D eus é u m só em três pessoas. Se tem -se em conta a significação que esse ú lt im o conceito recobria para ela, a Igreja antiga forneceu aqui u m a definição inatacável. Com efeito, em latim e em grego, “pessoa” quer d izer exa­tam en te aquilo que tentei ind icar pela expressão “m aneira de ser”. Hoje, o te rm o pessoa evoca para nós, quase que irresistivelmente, a idéia de um a individualidade. E, nessa acepção, ela não é m uito conveniente para exprim ir o ser de D eus Pai, o Filho e o Espírito Santo. Calvino disse em algum lugar, não sem ironia, que não era p e rm itid o re ­presen ta r o D eus tr in itá rio à m aneira da m aio ria dos p in ­tores que se con ten tam em m ostra r sobre a tela três “figuras es tranhas”. Isso não tem nada a ver com a T r in ­dade. Q u an d o a Igreja cristã fala do Deus trin itá rio , p re ­tende dizer que ele é ao m esm o tem po e ta m b ém o Pai que é o Filho e o Espírito Santo. Trata-se, po r tan to , po r três vezes do único e m esm o Deus, de suas três m aneiras de ser, de sua T rindade de Pai, de Filho e de Espírito Santo; tal ele é nos lugares altíssimos e tal ele é em sua re ­velação.

É necessário, pois, desde o com eço precisar que, a f irm ando que Deus, o Pai, é “nosso Pai”, estam os d i ­zendo u m a coisa válida e justa, co rre spondendo à sua n a ­tureza mais p rofunda , e te rnam ente verdadeira. D eus é o

Deus O Pai - 55

Pai. Do m esm o m odo com o quando falamos do Filho e do Espírito Santo. Esse nom e de Pai, dado a Deus, não é acidental, u m título provisório que nós a tribu ím os a ele pensando: “porque nós sabemos po r experiência o que é vim pai hum ano , é bem natural que nós tenham os apli­cado a Deus essa idéia; mas fica bem en tend ido que ela não tem n en h u m a ligação com a real natureza de Deus, que é in teiram ente outra. Dizer que Deus é u m Pai, não tem po rtan to valor exceto pela ligação com sua revelação, pela ligação conosco. O que Deus é po r si m esm o, na e te r­nidade, ignoram os. Todavia, agrada-lhe deixar seu m isté­rio e é assim que, para nós, ele é o Pai”. Falar desse m o d o é não ver finalm ente o que esse nom e nos traz de verdade. Q u an d o as Escrituras e a Confissão de Fé cham am de Pai a Deus, elas querem dizer que é assim antes de tudo, desde o princípio. É o Pai em si mesm o, po r natureza e pela etern idade e, em seguida, a partir daí, ele é o nosso Pai, o Pai de suas criaturas. Não há, pois, que com eçar um a pa tern idade hu m an a e, em seguida, po r analogia, um a pretensa patern idade divina. O con trá rio é que é correto: a verdadeira paternidade, a pa tern idade autêntica e prim eira, está em Deus e é ela que funda todas as nossas patern idades hum anas. A patern idade divina é aquela da qual p rocedem todas as outras. A epístola aos Efésios diz: “é dele que tira seu nom e toda família - em grego patriá - no céu e sobre a terra” (Ef 3.14-15). Estamos b em den tro da verdade, a verdade prim eira e fundam enta l quando, nessa perspectiva radical, reconhecem os Deus com o nosso Pai e nos cham am os de seus filhos. Falando de Deus, o Pai, nós exprim im os u m a prim eira m ane ira de ser de Deus, que condiciona u m a segunda, diferente, mas que lhe é contudo aplicável, já que lhe pertence p ro p r ia ­mente. Deus é Deus sendo u m Pai, o Pai de seu Filho, em quem ele estabelece e define de novo, po r si m esm o, sua

56 - Esboço de uma Dogm ática

qualidade de Deus. D izem os bem que ele estabelece e d e ­fine, não que a criou - o Filho foi engendrado e não c r i­ado! Todavia, essa relação entre o Pai e o Filho não esgota ainda o m istério de Deus, sua natureza p ro funda , além de, p o r ou tro lado, não am eaçar a un idade divina. A c o n ­tece que o conjunto Pai e Filho afirm a u m a terceira vez essa un idade na presença do Espírito Santo. De D eus o Pai e de D eus o Filho, procede o Espírito Santo. Spiritus que proced.it a Patre Filioque. É isso que jam ais co m p re e n ­deram com ple tam ente os infelizes representantes da Igreja do Oriente: o Pai e o Filho selando sua u n id a d e no Espírito Santo que a realiza. O Espírito Santo foi c h a ­m ado, às vezes, de v ínculo da caridade, vinculum carita- tis. N ão é apesar de, mas por causa da presença em Deus do Pai e do Filho que existe unidade. D eus é D eus ao se estabelecer em si m esm o e po r si m esm o com o Deus, ao m esm o tem po diferente e idêntico a si m esm o em sua d i ­vindade. E é assim que ele não está só em si m esm o. Em si, porque é o D eus trinitário , existindo a v ida em to d a a sua riqueza, a ação e a com unhão em toda a sua p len i­tude. Ele é o m ovim en to e o repouso. Nós po d em o s c o m ­preender assim tudo o que ele é po r nós: o C r iad o r que se dá a nós em Jesus Cristo e nos une a ele pelo Espírito Santo; é a obra de sua livre graça, a superabundância de sua plenitude. Superabundância m isericord iosa e g ra ­tuita! D eus não quer perm anecer o que ele é em si m esm o e p o r si m esm o; aquele cuja presença preenche a e te rn i­dade quer ser para nós. Q ue Deus, na p len itude de sua p a ­te rn idade eternal, po r pura graça, - não p o r que é seu “ofício” - queira tam bém ser nosso Pai, é u m a verdade so ­bre a qual não tem os n e n h u m a influência. Porque ele é o Pai eterno, toda sua obra não pode deixar de levar sua marca. Se ele cria, se ele faz nascer seres que, ao con trá rio de seu Filho, são distintos dele, se ele aceita existir para

Deus O Pai - 57

eles, isso não pode significar outra coisa que: ele quer nos fazer partic ipar de sua vida, “a fim de que nos to rnem os participantes da natureza divina” (2Pe 1.4). Ao c h a m a r­m os D eus de nosso Pai, nós não dizemos o u tra coisa. A nós é perm itido dar-lhe o nom e que ele se dá a si m esm o em seu Filho. Em si mesmo, o hom em não é u m filho, mas um a cria tura de Deus, factus et non genitus! Essa c r i­atura, o hom em , está sob todos os aspectos em revolta aberta contra ele, um sem -Deus e, contudo, Deus o cham a de seu filho. Se podem os, nós m esm os, nos ch a ­m ar de seus filhos, é unicam ente po r causa do ato de sua livre graça, po r causa de seu aviltamento e de sua m ise r i­córdia, apesar de nós , por que ele é o Pai e nos dá o po d er de partic ipar de sua vida. Nós somos seus filhos em seu Filho e pelo Espírito Santo e, portanto , não po rque haja u m a relação direta entre Deus e nós, mas p o rque D eus nos faz participar, a partir de seu próprio m ovim ento , de sua natureza, de sua vida e de seu ser. É assim que o bom grado e a vontade de Deus, o próprio m istério da sua es­sência divina, o mistério da sua relação com seu Filho, contêm , de fato, a chave da sua relação conosco; e que nele, seu Filho, podem os nos cham ar seus filhos pelo Es­pírito Santo, quer dizer, pelo m esm o vínculo de caridade que une o Pai e o Filho. É nessa terceira m aneira de ser de Deus, o Espírito Santo, que se acha contida nossa vocação segundo a m esm a e eternal decisão do Pai. O que Deus é e faz em seu Filho, concerne d iretam ente a você, vale para você e lhe beneficia. O que é verdadeiro na etern idade, no próprio Deus, torna-se verdadeiro aqui e agora no tempo. De que se trata? Nem mais nem m enos que de u m a repeti­ção da vida divina, repetição que nós não podem os nem provocar, nem suprimir, que o próprio D eus suscita no m u n d o que ele criou, vale dizer, fora dele. Glória a Deus nos lugares altíssimos! É isso que estam os dizendo

58 - Iisboço de um a Dogmática

q uando cham am os D eus de nosso Pai. Mas p o rque ele não é o Pai somente, mas tam bém o Filho - vale dizer, D eus conosco - , devem os acrescentar tam bém : “paz so ­bre a te rra entre os hom ens que ele quer bem ”.

O Deus Todo-Poderoso

O que distingue a potência de Deus da fraqueza, o que a eleva acima de todos os outros poderes e o que

a opõe vitoriosamente à “força em si”, é que ela é a potência do direito

decorrente do amor que ele f e z brilhar em Jesus Cristo. Em conseqüência, a potência

de Deus contém, qualifica e delimita todo o dom ínio do possível e domina absolutamente o conjunto do real.

Pelo adjetivo “Todo-poderoso”, o S ím bolo10 enuncia u m a qualidade de Deus, um a perfeição daquele que ele denom ina Deus, o Pai. É a única que ele m enciona. Mais tarde, quando se tentou falar de Deus de u m a m aneira sistemática e descrever o seu ser houve m enos concisão. Falou-se de sua asseidade (isto é, de seu ser enquan to d e ­penden te de nada além de si m esm o), de sua infin itude no tem po e no espaço, de sua eternidade. A crescentou-se, em seguida, sua santidade e sua justiça, sua m isericórd ia e sua paciência. É preciso prestar m uita atenção quando se aplicam assim a Deus os conceitos hum anos: eles não podem ser justificáveis, exceto a título indicativo, sem a

10. Vide nota n°. 1.

60 - Esboço de um a Dogm ática

pretensão de com preender o ser do p róprio Deus. Porque Deus é incom preensível. Não se trata, po r conseguinte , de definir, po r exemplo, sua san tidade ou sua b o n d ad e a p a r ­tir das idéias que tem os de santidade ou de bondade; es­ses dois atribu tos não p odem ser defin idos a não ser a par tir do p róprio Deus, daquilo que ele é. Ele é o Senhor, ele é a verdade. É ind ire ta e secundariam en te que sua p a ­lavra pode ser re tom ada por lábios hum anos. No lugar e na posição de todas as qualificações que p o d e m ser u ti li­zadas para descrever a natureza de Deus, o Símbolo dos A póstolos não usa mais que u m a única palavra: o adjetivo Todo-poderoso , servindo com o qualificativo para o subs­tantivo “Pai”. Essas duas palavras devem ser in te rpre tadas um a pela outra: o Pai é o Todo-Poderoso, o Todo-Pode- roso é o Pai.

D eus é Todo-poderoso . Isso significa, a princípio: ele é potência. Potência quer dizer poder, recurso, v i r tu a ­lidade em relação a um a dada realidade. Toda realidade dada, d e te rm in a d a e subsistente pressupõe um po d er fundador. A respeito de Deus nos é dito que ele tem esse poder de criar, de determ inar, de m anter; mais, que ele tem onipotência , isto é, que ele tem tudo em sua m ão e constitui a m ed ida do conjunto do real e do possível. Não existe realidade da qual ele não seja ao m esm o tem po a possibilidade. N ada de possibilidade, nada de p o d e r sus­cetível de lim itar ou de im pedir sua ação. Ele pode tudo o que quer. Poder-se-ia, então, tam bém descrever a p o tê n ­cia de D eus com o a expressão de sua liberdade. D eus é abso lu tam ente livre. Isso implica a etern idade, a u b iq ü i­dade e a infinitude. Ele tem a potência sobre toda a cadeia de possíveis conteúdos no tem po e no espaço e dos quais ele é o fund am en to e a medida. Ele é sem limites. Tudo isso a filosofia pressente corretam ente, mas nós estam os a inda m uito longe da realidade que implica esse conceito

O Deus Todo-Podcroso - 61

de onipotência divina. Existem m uitos fenôm enos aos quais facilmente se prestam os atributos da po tência ou da onipotência divina e que não têm n e n h u m a ligação com a onipotência de Deus. C onservarem os, então, as d e ­finições gerais.

Nossa tese inicial indica três graus: a po tência de Deus se distingue da fraqueza, ela ultrapassa todos os o u ­tros poderes e ela se opõe, v itoriosamente, à “força em si”.

A potência de Deus se distingue de todas as fo rm as de fraqueza. A fraqueza pode, com efeito, d ispor de u m a certa potência e o impossível de u m a certa m argem de possibilidade. Mas Deus não é de n e n h u m a m aneira fraco nesse sentido, sua potência é real, efetiva. Ele não pode ser aquele que nada poderia nem aquele que não poderia tudo, mas ele se distingue de todas as outras potências porque ele pode tudo o que ele quer. Falar de im potência de Deus é m uito simplesmente ter esquecido que se fala dele. Representar-se Deus como um personagem long ín ­quo, fora do m undo, é com certeza ter m u d ad o de objeto, é im aginar um ser qualquer, fraco e im potente. D eus não tem nada de u m a sombra, de um fantasm a inofensivo; ele é o contrário da impotência.

Essa potência de Deus ultrapassa todos os outros p o ­deres. Esses outros poderes ou potências exercem sobre nós u m a pressão aparentem ente m uito mais forte do que o p róprio Deus. Eles parecem ser as únicas coisas reais. Contudo, Deus não faz parte das potências deste m undo , ele nem m esm o é a mais alta, mas ele as u ltrapassa in fin i­tam ente, ele é o Rei dos reis, o Senhor dos senhores, cujo p o d er nada limita nem condiciona. De sorte que todas es­sas outras potências, que como tais existem certam ente, encon tram -se por definição sob seus pés. Elas não sabe­riam lhe fazer concorrência.

62 - Esboço de um a Dogmática

E eis o ú lt im o ponto, que é o mais im p o rtan te p o r ­que o mais suscetível de dar lugar a toda sorte de c o n fu ­sões: Deus não é a “força em si”. É m uito sedu tor im ag inar D eus com o a som a de todas as potências reunidas, de fazê-lo, no sentido neu tro e abstrato, u m s inôn im o do ser, da liberdade, do poder, da força em si. Seria Deus, den tro dessa perspectiva, a “condensação” daquilo que os latinos cham avam p o ten tia? C onsta tam os que se tem falado dessa m ane ira com m uita freqüência e que é ex tre m a­m ente ten tad o r para o espírito considerar a po tência em si com o um dom ín io sagrado, com o a verdade ú ltim a e a chave do m istério do ser. Q uem não se lem bra de H itler falando de D eus e cham ando-o de “T odo-Poderoso”? Ora, o “Todo-Poderoso” não é Deus e não é o caso de se par tir da idéia de onipotência para se defin ir Deus. Falar de “T odo-Poderoso” é expor-se ao terrível perigo de p as­sar ao largo de Deus. Invocar ao “Todo-Poderoso” ou “a potência em si” é abrir o abismo, liberar o caos, ch am ar o diabo. N ão há precisam ente m elhor definição do diabo do que a que consiste em im aginar um p o d e r em si, n e u ­tro, independen te , soberano. É isso que a Bíblia cham a de

caos, o tohuw abohu11 que Deus ab an d o n o u e rejeitou q uando criou os céus e a terra. A antítese de Deus, o p e ­rigo que não cessa de am eaçar sua criação, é p recisam ente esse ataque, essa ofensiva impossível do livre-arbítrio, da potência em si, buscando se im por e d o m in a r com o tal. Desde que a potência em si re ivindique a h o n ra e o res­peito, desde que ela en tenda ser au toridade e d ita r o d i ­reito, estam os em face da “revolução do niilism o”. A

11. N. do T.: Em hebraico no original. Tohuw abohu é a expressão q u e se e n ­contra no segundo versículo do Gênesis e refere-se à si tuação da terra no princípio da sua criação, p o d e n d o ser t raduzida por vazia e vaga, conform e a Bíblia de Jerusalém, ou m esmo por o deserto e o vazio num a tradução mais literal.

O Deus Todo-Poderoso - 63

potência em si não é outra coisa senão o nada e quando ela se desencadeia e busca se im por é a revolução e não a o rdem que ela traz. A potência em si é o mal, o fim de tudo. Ela tem contra si a potência de Deus, a ún ica que é verdadeira. A potência de Deus não som ente a ultrapassa, mas ainda é contra ela. Deus diz não à revolução do n ii­lismo. Mas é um não vitorioso, ou seja, a in tervenção de Deus provoca o m esm o fenôm eno que o sol d issipando a b rum a: a potência em si perde todo o seu p o d e r e toda sua realidade. Desde o instante em que ela é desm asca­rada em todo o seu horror, ela é privada do respeito que se lhe manifestou. Os dem ônios fogem. Deus e a potência em si se excluem m utuam ente. Deus significa o possível, a po tência em si, o impossível.

Mas em que m edida Deus se opõe à força em si, em que m ed ida ultrapassa todos os outros poderes e em que m edida se distingue de todas as formas da im potência? A Sagrada Escritura nunca fala da potência de Deus, de suas manifestações e de suas vitórias, separando-a do direito. A potência de Deus é, de um ponto a outro, u m a potência de direito. Ela é, não potentia, mas potestas, vale dizer, p o ­tência legítima, fundada no direito.

Mas o que é o direito? R etom ando o que já foi dito, podem os afirm ar que a potência de Deus é a do direito porque ela é a onipotência de Deus, o Pai. Vamos lem brar aqui com o falamos do vínculo que une o Pai e o Filho, dessa vida de Deus que, longe de ser solidão é, ao c o n trá ­rio, m ovim ento , m udança, com unhão íntima. Portanto, a on ipotência de Deus é, conform e o direito, a po tência d a ­quele que, em si mesmo, é o amor. Tudo o que am eaça o am or - a solidão e a afirmação de si m esm o - constitui u m a injustiça e perm anece sem po d er real. D eus o re ­nega. O que ele aprova é a ordem conform e a que reina nele m esm o entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo. A p o ­

64 - Esboço de uma Dogmática

tência de D eus é um a potência de ordem. A po tência de Deus é boa, santa, justa, m isericordiosa, paciente. Por fim, o que d is tingue a potência de Deus da im po tência é que aquela é a do D eus trinitário.

Essa po tência é a do am or que foi ilum inado e reve­lado livremente em Jesus Cristo. É, pois, a inda a obra de Deus que nos vai servir de critério do possível e do real. O con teúdo de todo poder, de toda virtualidade, de toda li­berdade, coincide exatam ente com o que D eus é e faz. A po tência de D eus não é u m a potência neutra , anônim a; pedir a ele, po r exemplo, que faça com que dois e dois se­jam cinco é infantil e sem propósito , p o rque atrás de questões desse gênero se esconde precisam ente u m a idéia abstrata do “p o d e r”. E um a potência suscetível de m en tir cessaria de ser real. Ela não seria mais que im potência , po tência de negação, p re tendendo d ispor de tudo se ­gundo a sua vontade. Ela não tem nada a ver com Deus, vale dizer, com a potência real. A po tência de D eus é um a potência autêntica ; com o tal, ela está acim a de tudo. “Eu sou o D eus Todo-poderoso , anda em m in h a presença e sê íntegro” (Gn 17.1). É esse “Eu” que define o D eus Todo- poderoso e, portan to , a p rópria onipotência . “Todo p o d e r me foi dado no céu e sobre a terra” (Mt 28.18). É a ele, Je­sus Cristo, que todo o pod er foi dado. É p o r tan to na obra de seu Filho que a on ipo tência de D eus se to rn a visível e viva, enquan to po tência salutar e boa. E é desse m odo que D eus é o conteúdo, a definição e a lim itação de todos os possíveis; t ranscenden te no sentido em que ele d o m in a abso lu tam ente o conjunto do real; im anen te no sentido em que ele habita toda form a do real - ele, o Sujeito e te rno que p ronunc ia sua Palavra e realiza a sua obra se­gundo seu desejo de am or e para o nosso bem .

O Deus Criador

Em se fa zendo homem, Deus manifestou e atestou que ele não quer existir unicamente para si nem ficar

solitário. Para o mundo distinto dele, ele concede propriamente a realidade, a

liberdade e uma maneira de ser.Sua Palavra é a força que anim a todo

ente criado. Deus suscita, m antém e dirige toda criatura para que ela manifeste sua glória,

da qual o hom em é chamado a ser a testemunha ativa pela sua posição no centro da criação.

Creio em Deus, o Pai Todo-poderoso, criador do céu e da terra. Q uando nós abordam os esse pon to de Credo cristão, nós não saberíamos suficientem ente nos dar conta de que nos encontram os aqui, igualmente, face ao mistério da fé, que implica na in tervenção da revelação divina com o única garantia de nossos conhecim entos. O prim eiro artigo do Símbolo, não é u m a espécie de átrio dos gentios, um tipo de área de en tend im ento preliminar, onde cristãos, judeus e pagãos, crentes e não-crentes, p u ­dessem se encontrar e reconhecer com u m a certa u n a n i ­m idade a existência de um Deus criador. A significação dessa ú ltim a expressão, como, p o r outro lado, aquela da

66 - Esboço de uma Dogmática

própria criação, perm anece tão m isteriosa para nós, h o ­mens, quan to todas as outras afirm ações do Credo. Não nos é m uito mais fácil crer no Deus c riador do que crer na concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo e no nasc im en to virginal. É falso p re tender que a declaração relativa a D eus criador nos seria p o r assim dizer, d ire ta ­m ente acessível e que apenas o con teúdo do segundo a r ­tigo necessitaria de um a revelação especial. E ncon tram o- nos, ao contrário , nos dois casos, colocados d ian te do mistério de D eus e sua obra, e há apenas u m a única e m esm a abordagem .

C om efeito, o Símbolo não fala do m u n d o ou, em todo o caso, ele não o cita senão de passagem q u an d o m enc iona o céu e a terra. Não está dito: “Eu creio no m u n d o criado”, nem mesm o: “Eu creio na obra da c r ia ­ção”. Está dito: “Eu creio em Deus, o criador”. E tudo o que está a f irm ado a respeito da criação, depende desse único e m esm o sujeito divino. É sem pre a m esm a regra: D eus é o sujeito agente, todo o resto é predicado. Aqui, com o alhures, toda a ênfase se apóia no conhec im en to de D eus cuja obra não pode ser com preend ida senão a posterior, a pa r t i r do sujeito criador.

O C redo fala do Deus criador e, em conseqüência , fala de sua obra, a criação do céu e da terra. Por pouco que nós sejamos sérios, vem os claram ente que não se tra ta aqui de u m dom ínio , de algum a m aneira , acessível à reflexão ou à intuição hum ana. As ciências natura is p o ­dem excitar nossa im aginação e nossa sede de saber ao nos p ro p o r diversas teorias para a evolução, ao fazer d a n ­çar d ian te dos nossos olhos os m ilhões de anos no d e c o r­rer dos quais o universo se teria fo rm ado pouco a pouco; mas q u an d o elas te riam conseguido chegar à o rigem do m u n d o tal com o é? C on tinu idade é bastan te diferente deste com eço absoluto, com o qual os conceitos de Cria-

O Deus C riador - 67

dor e de criação se relacionam. C ertam ente é u m erro ca­pital falar de u m mito da criação. O mito pode, no m áxim o, constitu ir um paralelo à ciência exata, pois a sua função tam bém consiste em pensar no que é e será se m ­pre.

O mito tra ta dos problem as inevitáveis e e ternos c o ­locados para o hom em de todas as épocas pela existência da vida e da m orte , do sonhar e do acordar, do nasci­m en to e da m orte, do dia e da noite, do am anhecer e do entardecer, etc. Tais são os temas do mito. O m ito consi­dera o m undo , po r assim dizer, a partir de seus limites, mas trata-se do m u n d o já existente. Não existe m ito da criação pela simples razão de que a criação com o tal, p e r ­m anece inacessível ao mito. É assim, p o r exemplo, com o m ito babilónico da criação, onde estam os claram ente t r a ­tando com um m ito sobre crescimento e decadência , que não tem conexão algum a com Gênesis 1 e 2. Pode-se, no m áxim o, afirm ar que o texto de Gênesis conservou a l­guns traços mitológicos. Mas a m aneira pela qual a Bíblia os utiliza é sem paralelo na mitologia. Se tiverm os de dar u m nom e ao relato bíblico ou classificá-lo den tro de um gênero literário, pode-se falar de saga.

Em Gênesis 1 e 2, a Bíblia fala de acontecim entos que escapam ao nosso conhecim ento histórico. Mas ela está falando com base em um conhecimento e se rem e­tendo a um a história. A característica dos relatos bíblicos da criação é que eles estão estreitam ente ligados à história de Israel, vale dizer, à história da ação de Deus desencade­ada pela sua aliança com o hom em . Segundo o A ntigo Testamento, essa história começa já com a criação do céu e da terra. Os dois relatos da criação são, u m e outro, ex­pressam ente ligados ao tem a de todo o A ntigo Testa­mento: o prim eiro m ostra a aliança na instituição do

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Shabat; o segundo a m ostra com o continuação da obra de criação.

É impossível separar o conhec im ento do C riado r e de sua obra da ação de que o hom em é o objeto da parte de Deus. É som ente quando nos é apresentada a in te rv en ­ção operada em nosso favor po r D eus em Jesus Cristo, que p o d em o s conhecer a pessoa do C riado r e o sentido de sua obra. A criação é a analogia tem poral, d is tin ta de Deus, do que se passa no p róprio Deus, vale dizer, do m istério em v ir tude do qual ele é o Pai de seu Filho. O m u n d o não é Filho de Deus, ele não é “en gend rado”, mais criado. C on tudo , a ação de Deus com o criador som ente pode ser com preendida, do pon to de vista da fé cristã, com o u m eco, u m reflexo, u m a im agem prov inda da re la­ção in terna e p ro funda que existe entre Deus, o Pai e Deus, o Filho. E é a razão pela qual o Símbolo dos A pós­tolos atribui a obra da criação ao Pai. Isso não significa que apenas o Pai seja o criador, mas não deixa de sub li­n h a r essa analogia entre a criação e a relação viva que une o pai e o Filho. O conhec im ento da criação é o conhec i­m en to de Deus e, p o r conseqüência, conhecimento de fé, no sentido mais rigoroso e mais exclusivo. Ela não é um a espécie de an tecâm ara onde a teologia natu ra l pudesse ter livre curso. C om o pre tenderíam os reconhecer a ex istên­cia do Pai se ele não nos tivesse sido revelado de an tem ão em seu Filho? Nós não saberíam os extra ir a idéia de um Deus criador a par ti r da existência do m u n d o com o tal, em toda a sua diversidade. O m u n d o tal com o é, com to ­dos os seus pesares e alegrias, jamais p o d erá ser para nós mais do que um espelho obscuro, mais que u m a ocasião de exprim ir nosso o tim ism o ou nosso pessim ism o; ele perm anece incapaz de nos fornecer o m ín im o co n h ec i­m en to do D eus criador. Ao contrário, cada vez que o h o ­m em quis pa r t i r das coisas criadas - o céu estrelado

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acima dele, sua p rópria im agem no fundo de si m esm o - para atingir a verdade, ele não conseguiu mais do que in ­ventar um ídolo. Se Deus pode ser conhecido para, em se­guida, ser reconhecido dentro da criação que se to rna assim u m canto de louvor ã sua glória, é po rque ele não pode ser buscado e encontrado em ou tro lugar que não naquele onde ele está realmente: em Jesus Cristo. Pela e n ­carnação, Deus to rnou manifesto e d igno de fé o fato de que ele é o C riador do m undo. Não há dois tipos de reve­lação.

O artigo do Credo que fala do C riador e de sua obra quer afirm ar que Deus não existe para ele m esm o, mas que ele fez surgir um a realidade distin ta e diferente de si, o mundo. De onde o sabemos? Não tem os já todos nos pergun tado se todo esse universo que nos rodeia não se­ria mais do que, finalmente, um a aparência, um sonho? Não aconteceu a vocês de, po r vezes, experim en tarem um a dúvida absolutam ente radical - não a propósito de Deus, o que seria um a bobagem! - mas a propósito da re ­alidade da existência de vocês? De se pergun ta r se a vossa vida inteira não seria um a ilusão e se o que nós ch am a­mos de real não seria nada mais do que “o Véu de

1 9Maya”, isto é, irreal? E pensar que a única coisa que nos resta a fazer é deixar de sonhar o mais rápido possível a fim de en tra r no “nirvana” de onde saímos? A afirm ação da criação é o oposto dessa atitude de desespero. De onde podem os saber, com toda a verdade, que um a tal atitude é absurda, que a vida não é um sonho, mas u m a realidade, que eu sou eu m esm o e que o m u n d o existe? A fé cristã não conhece senão um a resposta: ela afirm a com o se­gundo artigo do Símbolo, que foi do agrado de D eus tor-

12. N. tio Ecl.: Na filosofia indiana, Véu de Maya designa a própria realidade, considerada ilusória.

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nar-se u m hom em , que em Jesus Cristo nós l idam os com o p róp rio Deus, o C riador feito criatura, com D eus que viveu com o todos nós na m o ldu ra de nosso tem po e de nosso espaço, entre nós, em tal lugar, em u m a tal época. Se isso é justo, se é bem verdade que D eus estava em Cristo e se esse axiom a do qual tudo depende não é um logro, então existe um lugar onde p odem os e n co n tra r e conhecer a criatura. C om efeito, se é exato que o C riador se to rn o u ele m esm o criatura, se Deus se fez h o m e m - e o conhec im en to cristão com eça com essa afirm ação - Jesus Cristo nos entrega o segredo do C riador e de sua obra, o segredo da natureza, e esse é o con teúdo do p r im eiro a r ­tigo. A p a r t i r do fato de que Deus se fez h o m e m , não é mais possível colocar em dúvida a existência da criatura. Q u an d o o lham os para Jesus Cristo e co m preendem os que ele viveu nossa vida, aqui, essa existência nos é anunciada com o Palavra de Deus; essa Palavra concerne ao Criador, ela concerne à sua obra e à parte mais su rp reenden te dessa obra: o hom em .

Segundo a fé cristã, o m istério da criação não reside, em p rim eiro lugar, com o o pensam aqueles que os salmos cham am os “insensatos” (SI 14.1), na questão relativa à existência de u m a causa p rim eira que se cham aria Deus, pois, na in terpretação cristã, não poderíam os p ressupor a existência do m u n d o para se pergun ta r em seguida se p o ­deria existir tam bém u m Deus. Mas nosso ún ico po n to de par tida é Deus, o Pai, o Filho e o Espírito Santo. E é daqui que surge, em seguida, o grande prob lem a cristão! Seria verdade que Deus não deseja ser um D eus para si, mas que cham a o m u n d o para um a existência independen te , de tal sorte que nós existimos com o seres d istin tos ao lado e fora dele? A qu i está o enigma. Aquele que busca, m esm o que u m pouco, conhecer Deus, com preendê-lo e c o n te m ­plá-lo tal com o ele se revela a nós “nos lugares altíssim os”,

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no seu mistério, na sua onipotência, na sua tr indade , não pode deixar de se su rpreender ao constatar que nós exis­timos e que o m undo existe fora e ao lado dele. D eus não tem n en h u m a necessidade de nós, ele não tem n e n h u m a necessidade do universo, do céu e da terra. Ele m esm o é sua p rópria riqueza. Ele possui a p lenitude da vida, ele detém toda a glória, toda beleza, toda bondade , toda san ­tidade. Ele é auto-suficiente. Ele vive da sua p róp ria bea t i­tude. Por que, então, o m undo? Tudo é p lenam ente nele, o Deus vivo. C om o pode ele ter alguma coisa ao lado dele, algum a coisa da qual não necessita? Tal é o en igm a da c r i­ação. E eis a resposta da dou tr ina da criação: Deus, que não tem n en h u m a necessidade de nós, criou o céu e a terra, me criou a m im mesmo, “sem que eu fosse digno, pela sua pu ra bondade e misericórdia paternal. Eu devo, p o r todos esses benefícios, bendizê-lo e render-lhe g ra ­ças, servi-lo e obedecê-lo. É isso que eu creio f irm e­m ente”. Vocês com preendem , através dessas palavras de Lutero, o a tu rd im en to do crente em face da criação, este m aravilham ento diante da bondade de Deus, que não quer ficar solitário, mas deseja que ao lado dele, u m a o u ­tra realidade exista?

A criação é um a graça: d iante de u m a tal afirm ação se quereria poder ficar imóvel no medo, no trem o r e no conhecim ento . Deus confere a esse que não é ele o priv i­légio de existir e lhe concede um a realidade própria , u m a m aneira de ser e um a liberdade. A existência da criatura, ao lado de Deus, tal é o grande enigma, tal é o milagre in ­compreensível, a questão fundam ental à qual nos é p e ­dido e perm itido responder, tal é o verdadeiro p roblem a existencial, radicalm ente distinto do enganoso e seguro problema: existe um Deus? Q ue exista u m universo, eis o inaudito, eis o milagre da graça de Deus. N ão é para nós u m perpé tuo motivo de aturd im ento o ser e o ver os se­

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res? Eu posso existir, o m u n d o pode existir, a inda que seja­mos, u m e outro, distintos de Deus, a inda que nos não sejamos Deus, n em um, nem o outro. O D eus altíssimo, o Deus tr iúno , o D eus Todo-poderoso, o Pai, não é u m t i ­rano, ele concede o ser ao que não é ele, ele o deixa ser; mais, ele lhe dá o ser. Nós existimos, o céu e a te rra exis­tem na sua pre tensa infinitude, po rque D eus concede existência. Tal é a grande afirm ação desse p r im eiro artigo.

Mas dizer que Deus concede o ser ao m u n d o , lhe dá a sua realidade, sua m aneira de ser e sua liberdade, s ign i­fica precisam ente, con tra as afirm ações reiteradas do panteísm o, que o m u n d o não é Deus. As coisas são tais que nós não som os Deus, mas que estam os p e rp e tu a ­m en te expostos à tentação pernic iosa de “querer ser com o D eus”. D o m esm o m odo, não é o caso de seguir as espe­culações da gnose antiga ou nova, a f irm ando que o que a Bíblia d e n o m in a o Filho de Deus, nada mais é, em def in i­tivo, do que o m u n d o criado, ou que o universo é, por es­sência, gerado por Deus. Não se tra ta ainda de considera r o m u n d o com o u m a emanação de Deus, com parável a um rio que teria sua fonte nele. Nesse caso, não se p oderia mais falar de criação, mas som ente de u m m ov im en to v i­tal, saído de D eus e exprim indo seu ser. C riação significa ou tra coisa, um a realidade diferente de Deus. Enfim , o m u n d o não deve ser com preendido com o u m a simples manifestação de Deus, o qual não seria, finalm ente, mais do que u m a idéia. Deus, que é o único real, o ún ico essen­cial e o único livre, é um a coisa, o céu e a terra , o h o m e m e o universo sendo outra, que não deve ser con fund ida com Deus, mas que não existe senão por Deus. Essa reali­dade diferente não é, pois, autônom a: não existe de um lado, o m u n d o e de outro, Deus, com o duas realidades in ­dependentes, D eus não sendo para nós mais do que um a d iv indade distante e ausente, de sorte que haveria dois

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reinos, dois m undos separados: de u m lado, o m undo , com sua própria es tru tu ra e leis e, de outro, em algum lu ­gar mais longe, Deus, seu reino e seu universo próprios, se prestando às nossas mais ricas descrições, nos ofere­cendo m esm o um a via de acesso na qual o h o m e m p o d e ­ria ser considerado “em m archa” em direção aos cumes. O m u n d o assim com preendido não seria a criação de Deus, não lhe pertenceria in teiram ente nem estaria fu n ­dam en tado nele.

Não; o que Deus confere ao m u n d o é a realidade de criatura, a natureza da criatura, e a liberdade de criatura, u m a existência apropriada à criação, o m undo. O m u n d o não é u m a aparência, o m undo existe, mas existe e n ­quanto criatura. É-lhe perm itido existir ao lado de Deus. A realidade que Deus lhe confere, repousa sobre u m a cre- atio ex-nihilo, sobre u m a criação a partir do nada. Deus faz surgir um a realidade diferente dele aqui onde não h a ­via nada, n en h u m a m atéria prim eira. Se existe u m u n i ­verso, se nós m esm os existimos pela única operação da graça divina, não podem os nos esquecer u m só instante que na origem de nossa existência e da existência do u n i ­verso, há não som ente um a ação, mas u m a criação de Deus. Tudo o que existe fora de Deus perm anece co n s tan ­tem ente subtraído por ele ao nada. A m aneira de ser que Deus concede à criatura significa ser den tro do tem po e den tro do espaço; o fato de possuir um com eço e u m fim, de vir a ser para cessar de ser. Para toda criatura, há um tem po em que ela não era ainda e um tem po em que ela não será mais. Há, portanto , u m a pluralidade de seres. Há o passado e o presente, o imediato e o distante. D en tro da passagem de vim para outro, o m un d o encon tra suas duas dimensões: o tem po e o espaço. Deus é eterno. Isso não quer dizer que não há nele o tempo, mas que trata-se de um tem po diferente do nosso que, finalmente, não é

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nunca u m verdadeiro presente e para o qual o espaço sig­nifica sem pre separação. Para Deus, o tem po e o espaço são livres de limites sem os quais para nós eles p e rm a n e ­cem impensáveis. Deus é o Senhor do tem po e do espaço. A p a r t i r do fato que ele é a origem dessas duas form as da realidade, ele escapa à lim itação e à im perfeição in sep a rá ­veis do estado de criatura.

Enfim , a liberdade que Deus dá à cr ia tu ra significa: existe u m a contingência, u m a possibilidade de ação da criatura, vale dizer, u m a liberdade de decisão, u m certo p o d e r de ser. Mas essa liberdade não p o d e ser mais do que aquela p róp ria ao estado de cria tura que quer que nós não te n h am o s nossa realidade em nós m esm os e que nós sejamos ligados fo rm alm ente às categorias do tem po e do espaço. Visto que essa liberdade é real, ela é lim itada, de u m a par te pelas leis que regem o universo e, de ou tra parte, pela soberania de Deus. Pois nós não som os v e rd a ­deiram ente livres a não ser po rque Deus, o Criador, é, ele m esm o, in fin itam ente livre. Toda liberdade h u m a n a não é mais que u m reflexo imperfeito da liberdade divina.

A c ria tu ra está am eaçada pela possib ilidade - exclu­ída para D eus e para ele som ente - do nada e da ruína. Ela não pode p re tender subsistir em sua m aneira de ser a m enos que D eus o queira. Caso con trá rio haverá po r to ­dos os lados a irrupção do caos. Por si m esm a, a c ria tu ra não saberia nem subsistir nem escapar ao caos. E a l ibe r­dade de decisão tal qual Deus a confere ao h o m e m , não é a de escolher entre o bem e o mal. O h o m e m não é, no pensam en to de Deus, o asno de Buridan. C o m efeito, o mal não en tra no quadro das possibilidades p róprias às cria turas de Deus. A liberdade de decisão dada ao h o ­m em , consiste em liberdade para escolher o único Ser a quem a cria tu ra de D eus pode escolher, em louvar Aquele que a criou, em cu m p rir a sua vontade - isso significa: li-

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berdade de obedecer. Mas trata-se de decisão em liber­dade. E é aqui que aparece o perigo. Se acontece de a cria tura fazer u m outro uso de sua liberdade que não o único uso possível, se ela pre tender sair de seu papel e de sua realidade, vale dizer “pecar”, se separar de D eus e de si mesm a, ela não poderia mais do que cair, na seqüência de sua desobediência - sua queda sendo coincidente com a im possibilidade m esm a dessa desobediência, com essa eventualidade para sempre excluída da p rópria criação! A partir de então, ela não pode mais estar den tro do espaço e do tem po a não ser para sua desgraça, sua existência no quadro do passado, do presente e do futuro significando a infelicidade. É a queda dentro do nada. Poderia ser dife­rente? Se abordo esse tema, é un icam ente para m ostra r que esse vasto dom ínio que nós cham am os o mal, a m orte, o pecado, o diabo e o inferno, não é criação de Deus, mas, ao contrário, é o que está excluído pela p ró ­pria criação, aquilo para o que Deus diz não. E se existe um a realidade do mal, não pode ser senão esta realidade ao m esm o tem po excluída e negada, à qual D eus voltou as costas e que transpôs ao criar o m u n d o e ao criá-lo bom . “E Deus viu tudo o que havia criado, e eis que isso era m uito b o m ”. O mal não foi criado por Deus e não possui a qualidade de criatura; se se desejar a qualquer preço d e ­fini-lo evitando um a fórmula puram ente negativa, deverá ser dito que ele nada mais é que a potência do ser que surge sob o efeito do “não” pelo qual Deus b a rra a ro ta ao nada!

Não nos é perm itido buscar trevas onde tudo é luz. Deus é o Pai da luz. Um a vez que nos pom os a falar de um Deus absconditus caímos na idolatria. É Deus, o Criador, que concede à cria tura seu ser. E tudo o que é, tudo o que tem realidade, não existe fora da graça de Deus.

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A Palavra de D eus é a força que perm ite a todas as criaturas serem o que elas são. Deus as criou, as governa e as m a n têm para servir de teatro à sua glória. A esse res­peito, eu gostaria a inda de precisar alguns pon tos co n ce r­nentes ao fu n d a m e n to e o f i m da criação, os quais são, em definitivo, u m a só e a m esm a coisa.

O fu n d a m e n to da criação é a graça de Deus. Q ue exista um a graça de Deus é o que se im põe a nós de u m a m aneira viva e efetiva em sua Palavra. N o m o m en to em que D eus fala e falou den tro da h istória de Israel, em Je­sus Cristo e den tro da sua Igreja, no m o m en to em que diz sua Palavra hoje e que a dirá am anhã, a criação foi, é, e será. O que existe não existe po r si m esm o, mas pela Pala­vra de Deus, po r causa dessa Palavra, den tro do sentido e em confo rm idade à in tenção dessa Palavra. D eus suporta todas as coisas, ta panta, pela sua Palavra (H b 1.2; cf. Jo 1.1 ss e Cl 1). Tudo foi criado po r ele, p o r causa dele. A Palavra de Deus, tal com o está atestada na Sagrada E scri­tura, a h istória de Israel, de Jesus Cristo e de sua Igreja, eis o que está p rim eiro na o rdem das realidades; o m u n d o com todas suas luzes e sombras, seus abism os e seus cumes, vem em segundo. É pela Palavra que o m u n d o é. Q ue reviravolta de todos os nossos hábitos de pensar! Não nos deixem os p e r tu rb a r pela d ificu ldade que possa surgir para nós po r causa de nossa concepção habitual do tempo! O m u n d o veio a existir, foi criado e é carregado pela criança nascida na m an jedoura de Belém; pelo h o ­m em que m o rreu na cruz do Gólgota e ressuscitou no te r ­ceiro dia. Tal é a Palavra criadora da origem de tudo o que existe. É aqui que se encontra o sentido, o fu n d am e n to da criação, e é p o r isso que a Bíblia se abre com as palavras: “No princípio, Deus criou os céus e a terra. E Deus disse: “Q ue haja .. .” D esde as prim eiras palavras desse es tranho prim eiro capítulo da Escritura, D eus fala essa linguagem

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atordoante! Q ue não se veja aí um a palavra mágica, o p e ­rando um a espécie de encantam ento universal, mas, a n ­tes, que se siga palavra a palavra o texto bíblico que nos m ostra com o tudo surgiu dessa Palavra que estava no princípio: a luz, o céu e a terra, as plantas e os anim ais e, p o r fim, o hom em .

Se nos pergun ta rm os agora qual é o objetivo da c r i­ação, a quais fins correspondem o universo, o céu, a terra e todas as outras criaturas, eu não conheço senão um a resposta: tudo isso deve servir de teatro à glória de Deus. Q ue Deus seja glorificado, tal é o sentido de toda a reali­dade. Doxa, gloria, vem de um verbo que significa s im ­plesmente: ser desvelado, manifesto. Deus quis se to rn a r visível den tro do universo e, nessa perspectiva, a criação é u m ato p lenam ente significativo: “Eis que tudo era m uito bo m ”. A despeito de todas as objeções que possam ser le ­vantadas contra a realidade do m undo, sua excelência consiste indiscutivelmente no fato que ele é cham ado para ser o teatro da glória de Deus, e o hom em , a ser a te s tem unha dessa m esm a glória. Não nos é perm itido procurar, antes de tudo, conhecer o que é o b o m em si para em seguida protestar quando consta tam os que o m u n d o não corresponde a essa definição. O universo é bom po r causa do objetivo pelo qual Deus o criou. “Tea­tro da glória de Deus, theatrum gloriae D e í\ diz Calvino. De sua parte, o hom em adm itido no seio desse concerto de louvores é um a testem unha, um a te s tem unha ativa e não passiva, no sentido de que ele deve contar o que viu. Tal é a natureza do hom em , tal é sua faculdade essencial: ser te s tem unha das obras de Deus. E tal p ropósito de Deus o “justifica” por ter criado o m undo.

O Céu e a Terra

O céu é ap a r te da criação incompreensível para o hom em , a terra é a que ele pode compreender.O próprio hom em é a criatura posta

no limite do céu e da terra.A aliança entre Deus e o hom em

dá o seu sentido e seu objetivo, seu fu n d a m en to e seu valor ao céu e à terra bem como a toda criatura.

O Símbolo fala do “C riador do céu e da terra”. Essas duas grandezas tom adas isoladamente e no seu conjunto, p o d em ser consideradas com o objeto daquilo que se c o n ­vém cham ar dou tr ina cristã da criação. C ontudo , elas não saberiam coincidir com um a imagem do universo q u a l­quer que seja, saída da reflexão h u m a n a m esm o que se deva reconhecer que nelas se refletem alguns elem entos de u m a antiga cosmologia. Não é o papel da Sagrada Es­critura, nem o da fé cristã que nos ocupa neste m om ento , elaborar ou defender u m a ou ou tra representação precisa do m undo . A fé não é, de m aneira nenhum a, ligada a um a certa im agem do universo, antiga ou m oderna . N u m e ro ­sas são as teorias cosmológicas que se encon tram no seu cam inho, no curso dos séculos. E os cristãos estiveram sem pre m uito mal aconselhados quando acreditaram de-

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ver considera r um ou outro sistema com o a expressão adequada do pensam en to da Igreja a p ropósito da criação encarada sem referência à Palavra de Deus. A fé cristã é abso lu tam ente livre em relação a todas as cosm ologias que possam existir, o que significa: livre em relação a t o ­das as tentativas de explicação do real conduzidas se­gundo o critério e com os recursos das correntes científicas que p red o m in em em um ou ou tro m o m en to da história. E nquan to cristãos, nós não saberíam os acei­tar deixar-nos alienar p o r um a teoria desse gênero, não im porta qual, seja antiga ou, ao contrário , que tenha to ­dos os atrativos da novidade. Sobretudo, não tem os o d i ­reito de ligar a causa da Igreja a u m a ou ou tra concepção do mundo. U m a concepção do m u n d o im plica algo mais do que u m a simples im agem do m undo , no sentido em que ela suben tenda um a certa in terpretação filosófica e metafísica do hom em . Oxalá a Igreja e os cristãos não queiram se deixar levar po r esse te rreno tão per igosa­m ente v iz inho da “esfera religiosa”! A Bíblia, no que ela tem de decisivo, o Evangelho de Jesus Cristo, não nos diz, em n e n h u m lugar que tem os de ado ta r essa ou aquela concepção de m undo . Toda tentativa de co m p reen d er o real a p a r t i r de nós m esm os, de buscar chegar ao fundo da realidade para chegar a um sistema de m u n d o com ou sem Deus, é u m em preend im en to do qual estam os def in i­tivam ente d ispensados enquanto cristãos. Se acontecer de vocês encon tra rem tal tentativa, m esm o cristã, eu os aconselho a colocarem -na, sem hesitar, entre parênteses. No atual clima intelectual da A lem anha, essa advertência m erece ser dada duas vezes em lugar de uma! C om efeito, o te rm o “concepção de m u n d o ” (W eltanschauung) não existe em n e n h u m outro id iom a além do alemão, com o tam b ém o te rm o “Blitzkrieg”, e quando os anglo-saxões, p o r exemplo, desejam empregá-lo, eles se dep aram com a

O Céu c a Terra - 81

im possibilidade de encontrar um equivalente exato em sua própria língua e devem se lim itar a transcrevê-lo!

É im pressionante que o conteúdo da criação seja d e ­signado pela expressão “o céu e a terra”. “No princípio, Deus criou os céus e a te rra .. .” O Credo não faz, portan to , nada mais do que re tom ar essa afirm ação com a qual se abre a Bíblia. É-nos permitido, contudo, p e rg u n ta r se os dois conceitos “o céu e a terra” são com ple tam ente ade­quados ao seu objeto, isto é, à descrição da criação. Em seu Pequeno Catecismo, Lutero ten tou resolver a d ificu l­dade, dizendo: “Eu creio que Deus m e criou assim com o a todas as outras cria turas.. .” Ele substituiu, assim, o céu e a te rra pelo hom em e muito particu larm ente , pelo “eu”. Essa alteração ou, se quisermos, essa ligeira correção do C redo é certam ente legítima. Pois ela tam bém nos rem ete 'a cria tura da qual fala essencialmente o Símbolo, a saber: o hom em . Mas então porque a confissão de fé p rocede d i­ferentemente, porque ela fala do céu e da te rra e não do hom em ? Deve-se seguir Lutero ou deve-se, talvez, ver nessa omissão do Credo a prova de que ele considera o ho m em em um a altura tal que não vê n e n h u m a necessi­dade de m encioná-lo? Não deveríam os sim plesm ente com preender que, ao falar, com o faz, do céu e da terra, o Símbolo está designando de um a m aneira p ro fundam en te original o quadro natural que acontece de ser o do h o ­mem? A omissão do hom em não constitu iria aqui um a m aneira m uito significativa de falar indiretamente dele? O céu e a terra definem um cenário destinado a u m a ação m uito precisa e da qual, em nosso pon to de vista, o h o ­m em ocupa o centro. Não teríamos nós aqui, u m a descri­ção da criação precisamente em função do hom em ? Em todos os casos, fica en tendido que o céu e a te rra não constituem realidades independentes que se poderiam com preender e explicar po r si mesm as, mas que, com a

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presença significativa do h o m e m no seu centro, o cosm os p rovém de Deus, pertence a D eus e deve ser considerado den tro da perspectiva do Símbolo com o a som a de to d a a realidade criada em relação com a vontade e a ação divi­nas. É aqui que aparece a diferença fu ndam en ta l que se ­para qualquer ou tra concepção de m u n d o do p o n to de vista da Sagrada Escritura e da fé cristã. Toda concepção de m u n d o im plica que se tom e seu pon to de p ar tida do existente com o sendo ele m esm o a sua p róp ria razão de ser, para alcançar g radualm ente a idéia da d ivindade; a Escritura, ao contrário , fala do céu e da terra , p o r tan to do hom em , u n icam en te no quadro de u m a relação: “Eu creio em Deus, criador do céu e da terra”. O genitivo m ostra claram ente que acreditam os, não na criação, m as em Deus, o Criador.

O céu é a parte da criação incompreensível p a ra o hom em , a te rra é a parte que é compreensível p a ra ele. I n ­cluo aqui o que o C redo Niceno fala com o invisibilia e vi- sibilia. Tentei traduz ir essas duas expressões “coisas visíveis” e “coisas invisíveis” pelos te rm os “com preens í­vel” e “incom preensíve l”. Q uando a Escritura - da qual re ­tom am os aqui a te rm inolog ia - fala do céu, ela não quer dizer s im plesm ente aquilo que tem os o costum e de n o ­m ear assim, o céu atmosférico e m esm o estratosférico, mas u m a realidade criada, que d om ina abso lu tam ente o nosso “céu” p u ram en te físico. O h o m e m da an tigü idade e, particu la rm en te , o habitante do O rien te Próx im o rep re ­sentava o m u n d o visível com o in te iram ente recoberto po r um a en o rm e abóbada cham ada f irm am ento . Essa a b ó ­bada constituía , em relação ao hom em , o com eço do d o ­m ín io celeste, invisível. Acim a do f irm am en to se encontrava u m im enso oceano, separado da te rra pelo f ir ­m am ento . A lém desse oceano, enfim , haveria o p róprio céu, o verdadeiro céu, fo rm ando o trono de Deus. Se estou

O C é u e a T e r r a - 8 3

dando esses detalhes, é unicam ente para m o s tra r a rep re ­sentação em algum tipo “cosmológico” que se encon tra po r detrás do conceito bíblico de “céu”. Trata-se de um a realidade que se opõe ao hom em e o d o m in a abso lu ta­m ente, mas que, ela tam bém , está na o rdem das coisas cri­adas. Tudo o que está além do que escapa ao h o m e m e se opõe a ele, assustando-o e exaltando-o alternadam ente , não deve ser confundido com Deus. A presença do in in ­teligível acim a de nós não é, de m aneira n en h u m a , a p re ­sença do p róprio Deus: é a presença do céu,simplesmente. Cham á-lo Deus é divinizar a criatura, da m esm a m aneira que o assim cham ado “h o m e m p r im i­tivo”, que adora o sol. São m uito num erosos os filósofos que, nesse sentido, renderam culto à criatura. O limite im posto à nossa inteligência não passa entre D eus e nós, ele passa entre o que o Símbolo cham a de céu e de terra. Existe, no seio do m undo criado, essa realidade que cons ti­tui para nós um puro mistério: o céu. Se ela não é o p ró ­prio Deus, ela faz parte de sua criação. O bservem os, de passagem, que o fato m esm o de ser um a cria tu ra c o m ­p orta em si um profundo mistério, o m istério do ser, fonte incessante de te rro r e de alegria. É de m ane ira h o ­nesta que os filósofos e os poetas de todos os tem pos p ro ­cu raram exprim ir esse mistério. É-nos perm itido , enquanto cristãos, igualmente, saber essas coisas, c o n h e ­cer os altos e baixos da existência hum ana; sim, a vida tal com o é com porta já toda sorte de mistérios e feliz o h o ­m em que sabe “que há mais coisas entre o céu e a te rra do que pode sonhar nossa vã filosofia!” A criação possui, pois, u m a estru tu ra celeste, m isteriosa para o hom em , mas que não representa, contudo, nada a tem er n em a ve ­nerar com o algo de divino. Nós estamos postos em u m m u n d o que com porta essa realidade; essa d im ensão do céu nos lembra, sem cessar, sob a form a de parábola, um a

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presença com pletam ente diferente, a de Deus, o C riador do céu e da terra, de tal m aneira , contudo, que não c o n ­fundam os jam ais o signo com a coisa significada.

No lado oposto do céu, a parte superio r da criação, se encon tra a terra, o m u n d o de baixo, cujo con teúdo nos é com preensível. É a parte da criação situada no in terio r do limite que circunscreve o dom ín io onde nós po d em o s ver, ouvir, sentir, pensar, contemplar, no sentido mais a m ­plo. É toda essa esfera, subm etida ao pod er do ho m em , aí com preend ido o m u n d o da inteligência e da intuição, que o Símbolo cham a de terra. No in terior dessa m o ld u ra te r ­restre, po r ou tro lado, está com preend ido aquilo que o fi­lósofo d en o m in a o dom ín io da razão e das idéias. N esta parte inferior se pode d iscern ir igualm ente as diferenças de valor, po r exemplo, entre os objetos sensíveis e os ob je­tos inteligíveis, mas eles p erm anecem lim itados a esse m undo . É dessa m esm a esfera terrestre que o h o m e m tira sua origem: D eus form a o h o m e m da poeira da te rra (Gn2.7). O m u n d o do hom em , o teatro de sua existência e de sua h is tória ao m esm o tem po que o de seu fim natura l (“re to rnarás ao pó”), tal é a terra. Se o h o m e m possui, contudo, u m a ou tra origem e um ou tro fim que não esse, é u n icam en te p o r causa da aliança, insti tu ída po r Deus entre ele e sua criatura. É, pois, falar da graça, q u an d o ve­mos no h o m e m mais do que um ser terreno, de q u em a te rra é o lugar natura l e o céu é o limite. N ão existe m u n d o h u m a n o in abstracto. O h o m e m estaria en g a ­n an d o a si m esm o, recusando-se a reconhecer que esse m u n d o que ele com preende, se acha lim itado p o r u m o u ­tro m u n d o que ele não com preende. Nós devem os estar agradecidos porque sem pre existiram poetas, crianças e tam b ém filósofos para fazer sensível a existência deste li­mite superior. Esse m u n d o terrestre não é realm ente mais que u m aspecto da criação. Contudo, não mais que o céu,

O Céu e a Terra - 85

a terra não saberia nos dar posse sobre o dom ín io de Deus; é isso o que nos ensinam os dois p rim eiros m a n d a ­mentos: “Tu não farás im agem entalhada, n em n e n h u m a ou tra representação das coisas que existem no alto dos céus e em baixo sobre a te rra .. .” Não há n e n h u m a p o tê n ­cia sobre a te rra ou acima no céu que m ereça nosso tem or ou nosso amor.

O p róprio hom em é u m a criatura situada no limite do céu e da terra , ele está sobre a te rra e sob o céu. Ele é o ser capaz de com preender seu meio natural, o m u n d o aqui em baixo; é-lhe perm itido ter a posse sobre ele pelos seus sentidos e pela sua inteligência, n u m a palavra, d o ­miná-lo: “Eis que tu tens tudo posto sob seus pés!” (SI8.6). É, den tro do quadro que lhe é próprio , o ser livre po r excelência. Mas ele perm anece colocado sob o céu: face à face com os invisibilia, as coisas invisíveis, incom preens í­veis e inacessíveis à sua razão, ele perm anece abso lu ta­m ente im potente e dependente. O h o m e m tom a verdadeiram ente consciência de sua condição de cria tura terrestre na m esm a m edida em que ele reconhece sua ig­norância no que concerne ao m u n d o celeste. Parece que, no limite que é o seu, ele tenha p o r função ind icar o m u n d o do alto e o de baixo, de ser um signo de seu p ró ­prio destino, em função de u m a relação que u ltrapassa in ­fin itam ente essa que é figurada pelo com plexo céu-terra. O h o m e m é, no quadro da criação, o lugar onde a cria tura se realiza com pletam ente na superação de si m esm a. O hom em é o ser capaz de dar livremente a D eus o louvor que lhe é devido.

Nós não teríamos, contudo, dito nada ainda, se não acrescentássemos logo que é a aliança entre D eus e o h o ­m em que dá seu sentido e sua finalidade, seu fundam en to e seu valor ao céu, à terra, assim com o a toda criatura. D i­zendo isso, parecem os forçar um pouco o con teúdo obje­

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tivo do p rim eiro artigo do Símbolo. Mas isso não é mais do que u m a aparência. Pois m enc ionar a aliança de Deus e do hom em , é falar de Jesus Cristo. Essa aliança não é u m elem ento secundário , sobreposto de algum a m aneira , ela coincide, de fato, com a p rópria criação. D esde que o criou, D eus com eçou a se ocupar do hom em . Pois tu d o o que existe está a tal pon to subord inado à existência do h o m e m que nisso já se pode ler a in tenção de Deus, tal com o ela se m anifestará efetivamente no m istério da ali­ança em Jesus Cristo. Por conseqüência, não som en te essa aliança coincide com a criação, mas, ainda, ela a precede no tem po. Antes da criação do m undo , antes da ex istên­cia do céu e da terra, há a decisão, o decreto de D eus af ir ­m ando sua vontade de com unhão com o ho m em , tal com o ela se realizou de u m a m aneira incom preensíve l e perfeita em Jesus Cristo. Tam bém , q uando p ro cu ram o s a razão de ser e o objetivo de tudo o que existe é, de im ed i­ato, dessa aliança entre Deus e o h o m e m que devem os nos lembrar.

Se voltam os agora à criação tal com o ten tam os des­crevê-la ao falarm os do céu e da terra, com a p resença do h o m e m no limite desses dois grandes dom ín ios , ce r ta ­m en te nos será lícito afirmar, sem parecer m uito te m e rá ­rio e sem que nos acusem de ceder à especulação, que existe a m esm a relação entre o céu e a te rra e entre D eus e o h o m e m no seio da aliança, de tal sorte que o simples ato da criação constitui em si um signo ún ico e decisivo, o signo do desejo e terno de Deus. Coexistência e encon tro do alto e do baixo, do inteligível e do ininteligível, do fi­nito e do infinito, eis a criação. Isso tudo é o m undo . Ou, a pa r t i r do fato m esm o de que esse m u n d o co m p o rta efe­tivam ente u m alto e u m baixo que não cessam de se opor; do fato de que, den tro de cada u m de nossos suspiros, den tro de cada um de nossos pensam entos , den tro de

O Ccu e a Terra - 87

cada u m a de nossas experiências de viventes, o céu e a terra estão sempre presentes, se confrontam , se a traem e se repelem sem cessar de form ar um todo, nós cons ti tu í­mos, pela nossa simples existência de criaturas, u m signo, um a dem onstração e um a promessa da destinação final de toda a criação: esse encontro, essa in tim idade, essa co ­m u n h ão e, em Jesus Cristo, essa unidade perfeita do C r ia ­dor e da criatura.

X Jesus Cristo

O objeto e o centro da f é cristã é a Palavra idêntica à ação pela qual Deus, por toda a eternidade,

decidiu para nosso bem se tornar hom em em Jesus Cristo, tornou-se e fetivam ente

no tempo e o ficará pelos séculos dos séculos.A obra do Filho pressupõe, assim,

a do Pai e implica a do Espírito Santo.

C om este capítulo, abordarem os o centro m esm o da Confissão de fé, como se pode julgar já ao p rim eiro golpe de olhos pelo lugar considerável que ocupa o segundo a r ­tigo. Existe, aqui, mais que um a questão de redação. Já na in trodução, quando se tra tou da fé e em nossa p rim eira parte, quando falamos de Deus, o Pai Todo-poderoso , C riador do céu e da terra, não fizemos mais que rem eter constan tem ente a esse centro. Nossa explicação do p r i ­meiro artigo teria carecido to talm ente de pertinência se não o tivéssemos incessantemente apoiado, p o r an tec ipa­ção, no segundo. Este ultimo, não é s im plesm ente a se­qüência do prim eiro e o prefácio do terceiro, m as sim a fonte lum inosa que esclarece u m e outro. H istoricam ente, aliás, provou-se que o Credo cristão provém de u m texto prim itivo mais curto e m esm o de um a form ula efetiva­

90 - Esboço de um a Dogmática

m ente breve, que coincide, quanto ao essencial, com o con teúdo do atual segundo artigo. Supõe-se m esm o que a confissão de fé da Igreja prim itiva era constitu ída p o r es­tas simples palavras: “Jesus Cristo (é) o S en h o r”. O p r i ­m eiro e o segundo artigos não teriam sido acrescentados senão mais ta rde a esse núcleo central. O processo h is tó ­rico não se deveu ao simples acaso. M esm o de u m pon to de vista p u ram en te objetivo, não é sem significação o fato de saber que o segundo artigo é h is to ricam ente a fonte dos outros. É cristão aquele que confessa o Cristo. E um a confissão de fé cristã tem por objeto Jesus Cristo, o Se­nhor.

É a p a r t i r desse cen tro decisivo, e com o u m a ex ­plicação com plem en tar , que se deve c o m p re e n d e r as a f irm ações do S ím bolo relativas a D eus, o Pai, e a Deus, o E sp ír ito Santo. Os teólogos cris tãos f ize ram u m a m á escolha cada vez que p ro c u ra ra m ed ificar d i re ta m e n te e no ab s tra to u m a teo logia do D eus criador, apesar de to d o o respe ito e seriedade com que eles se e m p e n h a ­ram nisso.

O m esm o deve ser dito sobre aqueles que t e n ta ­ram p a r t i r de u m a teo logia do te rceiro artigo, de u m a teo logia do Espírito , da experiênc ia esp iri tual, p o r o p o ­sição à do D eus criador. P oder-se - ia talvez e n c o n t ra r um a explicação da teologia m o d e rn a , tal co m o a e n ­tende Sch le ierm acher, no fato de que a p a r t i r de certas p rem issas p ró p r ia s dos séculos XVII e XVIII, ela te ria se to rn a d o u n ic am en te u m a teo logia do te rce iro artigo; ao dec la ra r-se do E sp ír ito Santo, ela se ac red itava a u to ­rizada, sem se da r con ta de que o te rce iro artigo não é mais que um a explicação do segundo, u m a m a n e ira de p rec isa r o que Jesus C ris to significa para nós. É a p a r t i r de Jesus C ris to som ente que nós p o d e m o s te n ta r ver e c o m p re e n d e r do que se trata , d en tro da ó tica cristã,

Jesus Cristo - 91

q u an d o ab o rdam os o g rande p rob lem a - que não deixa de nos a tu rd ir e que só p odem os fo rm u la r co r re n d o os mais graves riscos de e rra r - da relação en tre D eus e o hom em . Temos apenas u m a resposta p a ra esse p r o ­blema: Jesus Cristo.

Dessa m aneira , não podem os co m p re e n d e r a re la ­ção en tre a criação, a cria tura, a existência , de u m a parte , e a Igreja, a redenção, Deus, de ou tra , p a r t in d o de u m a verdade geral ou dos dados da H is tó r ia das re li­giões, m as un icam en te a p a r t i r da relação que exprim e a pessoa de Jesus Cristo. É nele que nos d isce rn im o s oque significa: D eus acima do h o m e m (T ° artigo) e D eus

com o h o m e m (3o artigo). É p o rque o seg u n d o artigo, a cristo logia , é a p ed ra de toque de todo c o n h ec im e n to de Deus, no sen tido cris tão da palavra, o cr ité r io de toda teologia. “D ize-m e qual é a tua cris to log ia que eu te d i ­rei quem tu és”. E aqui que os cam in h o s se separam , é aqui que se p recisam as relações en tre a teo logia e a fi­losofia, en tre o conhec im en to de D eus e o c o n h e c i­m e n to do hom em , en tre a revelação e a razão, en tre o Evangelho e a Lei, en tre a verdade d iv ina e a verdade h u m a n a , en tre o dom ín io da alm a e o do corpo , en tre a fé cristã e a política.

É aqui que tudo se to rn a b r i lhan te ou obscuro , claro ou confuso. Nós estam os no centro. E, p o r m ais fora de alcance, m isterioso , difícil que possa nos p a re ­cer esse centro , p o d em o s afirm ar sem m edo: do ravan te tu d o se to rn a ex trem am en te simples, e lem entar, in fa n ­til. Sim, no m o m en to m esm o em que, com o professor de teo log ia sistem ática, m eu dever é g r ita r a vocês: “Atenção! Isso é sério: ou bem fazem os c iência ou b em caím os nas piores bobagens!” acontece que m e vejo e n ­tre vocês com o um m o n i to r de escola d o m in ica l d ian te

92 - Esboço cic um a D ogm ática

de seus p e q u e n o s alunos, com u m a m en sag e m que um garo to de q u a tro anos p o d e r ia já co m p re en d er : “Em u m m u n d o pe rd ido , C ris to desceu - C ris tãos, re jubila i- vos!”

O cen tro de que falam os é a Palavra que a tua ou, se p re fe r irm o s , a ação da Palavra de Deus. D esde logo, te n h o de ch a m a r a atenção de vocês p a ra o fato de que nesse cen tro vivo da fé cristã, a opos ição tão freqüen te en tre pa lav ra e ação, d o u tr in a e vida, não tem n e n h u m sentido . Pois a Palavra, logos, aqui se iden tif ica com a obra, ergon, Verbum co inc ide com opus. Por t ra ta r -se de D eus e do p ró p r io coração da nossa fé, essas d iferenças que nos p a recem tão in teressan tes e essenciais são, não apenas supérfluas , m as a inda p e rfe i tam en te absurdas . D eus fala, D eus age, D eus ocupa o cen tro de tudo : a verd ad e se t ra d u z em ato, o ato se m an ifes ta com a força da verdade . A Palavra é ação, u m a ação tal que é, ela m esm a Palavra, revelação.

Q u a n d o p ro n u n c ia m o s o nom e C ris to não é o sim ples su p o r te verbal de u m a rea lidade su p e r io r (o p la to n ism o não in te rv ém aqui!). Trata-se, sob esse n o m e e sob esse título, da sua pessoa m esm o. N ão de u m a pessoa fo r tu i ta , de um “fato h is tó r ico ac id e n ta l” com o en ten d e Lessing, p o r exemplo. As verdades e te r ­nas da razão, eis o t ipo de fato h is tó r ico “ac id e n ta l”! A s­sim, o n o m e de Jesus C ris to não serve para d es ig n ar u m produto da história hum ana . Os h o m e n s sem pre a c re d i­ta ra m te r feito u m a g rande d escoberta q u a n d o c o n s e ­g u iram d e m o n s t ra r que Jesus C ris to não p o d ia deixar de ser o p o n to cu lm in an te de toda h is tó ria . A chado m e ­díocre , na verdade! M esm o a h is tó r ia do povo de Israel não saberia se p re s ta r a u m a tal d em o n s tração . C e r ta ­m ente , a posteriori, é lícito e m esm o necessário a firm ar: nesse h o m e m , nesse povo, a h is tó r ia se realizou...; mas

Jesus Cristo - 93

ela o fez segu indo u m a linha ab so lu tam en te nova e es­canda lo sa do pon to de vista dos fatos h istóricos! L o u ­cura para os gregos, escândalo para os judeus! ( lC o 1.23) Enfim , o nom e de Jesus C ris to não esconde um postu lado do hom em , não designa o p ro d u to de seus desejos m ais nobres n em o tipo de red en to r c r iado pela sua inqu ie tude . O h o m e m n em é capaz de reco n h ece r p o r si m esm o sua inqu ie tude e seu pecado. É-lhe n e c e s ­sário p r im e iro conhecer Jesus Cristo: é em sua luz que nós vem os a luz que nos revela nossas p ró p r ia s trevas. Todo co n h ec im e n to que m ereça esse nom e, seg u n d o a fé cristã, p rovém do co nhec im en to de Jesus Cristo.

M esm o o p r im eiro artigo adqu ire u m sen tido in ­te iram en te novo q u an d o o lem os sob a p erspec t iva da fé em Jesus Cristo. Ele confessa o D eus c r iado r do céu e da terra , o D eus eterno, inacessível, oculto , in c o m p re e n s í­vel, cujo m isté r io d o m in a abso lu tam en te m esm o aquele do m u n d o celeste. E eis que o segundo artigo confessa um a verdade ap aren tem en te con trad itó r ia , em to d o s os casos com ple tam en te insólita, da qual som en te o c o n ­teúdo do p r im e iro é que nos dá a d im en são do cará ter paradoxa l e enigm ático: D eus to m a u m a form a, um n om e ressoa, u m ser h u m a n o tom a o lugar do A ltíssim o d ian te de nós! D eus T o do-poderoso parece te r p e rd id o sua on ipo tência .

Nós falam os de sua e te rn idade , de sua ub iqü idade . E eis-nos m erg u lh ad o s no tem po, em face de u m evento te m p o ra l e localizado, de u m acon tec im en to p a r t ic u la r na t ra m a da h is tó ria hum ana , de u m fato cujo contexto é o com eço de nossa era em u m lugar bas tan te def in ido no globo te rrestre . D epois de Deus, o Pai, tal com o o confessa o p r im e iro artigo, o m esm o D eus p ro v in d o da m isteriosa u n idade de seu ser, se apresen ta sob a figura do Filho. D oravante , Deus é esse Outro nele mesmo, ao

94 - Esboço de um a Dogmática

m e sm o te m p o idên tico e d is tin to . Ao passo que o p r i ­m eiro artigo do S ím bolo descreve o C r ia d o r co m o o a b ­s o lu ta m en te d is t in to de tudo o que existe, e a c r ia tu ra com o som a de todos os seres d is tin tos do ser de D eus, o seg u n d o significa: o C r ia d o r se to rn o u ele m e sm o c r ia ­tu ra . Ele, o D eus e terno , to rn o u -se não a som a de todas as c r ia tu ras , m as sim um a c ria tura.

Ele que, p o r toda a e te rn idade , dec id iu p a ra nosso bem to rn a r -se h o m e m em Jesus Cristo , to rn o u -se h o ­m e m efe tivam en te no te m p o e p e rm a n e c e rá sen d o p e ­los séculos dos séculos. Eis Jesus Cristo . Já m e o co rreu de c ita r o n o m e da ro m an c is ta inglesa D o ro th y L. Sayers que, com o se diz, vo ltou-se para a teo log ia com u m in teresse notável. Em um p eq u en o escrito , ela m o s ­tra o ca rá te r insólito , “in te ressan te”, in a u d i to dessa n o ­vidade: D eus se fez ho m em . Im agine-se , u m belo dia, na p r im e ira pág ina de um jornal! Sim, t ra ta -se de u m a nov idade v e rd ad e iram e n te sensac iona l que relega todas as o u tras à ú lt im a página! É esse fato, ab so lu tam en te p e r tu rb a d o r , incom paráve l e ún ico em seu gênero , que cons ti tu i o cen tro do cris tian ism o.

O com plexo D eu s -h o m em cedeu lugar a toda sorte de com binações , em todas as épocas da h is tó ria . Por exem plo , a m ito log ia conhece a idé ia da e n c a rn a ­ção. O que d is tingue a m ensagem cris tã da m ito log ia , q u a lq u e r que seja é que, para esta ú lt im a , a e n ca rn ação é, no fundo , a expressão de u m a idéia geral, de u m a v e r ­dade universal. O m ito co n tin u a d o m in a d o pelo r i tm o dos fenôm enos , a sucessão do dia e da noite, da p r im a ­vera e do inve rno , da v ida e da m o rte ; para o m ito , a r e ­a l idade tem u m cará ter in tem p o ra l , in fin ito . O Evangelho de Jesus C ris to não tem n ad a em c o m u m com o m ito . Ele se d is tingue, já de u m p o n to de vista form al, pelo fato de que se inscreveu p le n a m e n te den-

Jesus Cristo - 95

tro da história : ele af irm a que na ex istência de tal h o ­m em particu la r , D eus se en ca rn o u de tal m a n e ira que a existência desse h o m e m e a de D eus são u m a só e m esm a coisa. A m ensagem cristã está, nesse p o n to de vista, p len am en te inserida na tram a da h is tó ria . É p r e ­ciso cons idera r-se em conjunto , no m esm o m o m e n to , a e te rn id ad e e o tem po, D eus e o h o m e m , p a ra c o m p re ­en d e r o que rea lm en te significa o n o m e de Jesus Cristo! Jesus C ris to é a realidade da aliança en tre D eus e o h o ­m em . É apenas referindo-se a ele que p o d e m o s falar, com o p r im e iro artigo, de Deus nos lugares altíssim os, p o rq u e en tão nós conhecem os o h o m e m pela aliança que o liga a Deus: em sua pessoa concre ta , en q u a n to ele é esse m esm o hom em . Da m esm a m aneira , q u a n d o o te rceiro artigo nos fala de D eus no h o m e m , de D eus t r a b a lh a n d o p o r nós e em nós, p o d e r ia se t r a ta r aqui de u m a ideologia, de u m a lição de en tusiasm o , de u m a descrição da v ida in te r io r do hom em , de suas e x p e r iê n ­cias e de suas aspirações, da pro jeção do que se passa em nós q u an to a um a d iv indade im ag in á r ia que se cham a Espírito Santo. Mas q u an d o o b servam os a a li­ança que D eus rea lm ente conclu iu conosco, hom ens, sabem os que não se tra ta disso. Nos é lícito falar com segurança da realidade do Espírito Santo, em razão m esm o dessa aliança que proc lam a que Deus, p a ra t o ­dos os hom ens, se fez h o m e m em Jesus Cristo.

“Ó h o m e m , é para teu b em que D eus se en c a rn o u e é teu sangue que corre nas veias do Filho de D eus”. Tal é a m ensagem do Natal. Nós ten tam os m a rc a r os três aspectos. P r im e iram en te o acon tec im en to h is tó rico : o te m p o que é o nosso, possui um centro que se cons ti tu i na chave; com todas as suas con trad ições , seus cum es e seus abism os, nossa h is tó ria se vê co locada d en tro de um a d e te rm in a d a relação com Deus. N o cen tro de

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nosso te m p o está esse aco n tec im en to decisivo: D eus se fez h o m e m p ara nosso bem . Mas o ca rá ter ú n ic o desse acon tec im en to , nos obriga a reconhece r que ele não p o ­d er ia ser u m sim ples acidente , u m fato h is tó r ico en tre ou tros . Som os levados a vê-lo com o o acontecim ento p o r excelência desejado p o r D eus p o r to d a a e t e rn i ­dade. Sob esse seg u n d o aspecto , a m en sag em do N atal nos rem ete ao p r im e iro artigo do Sím bolo; ela a f irm a o v íncu lo en tre a criação e a redenção . N os é possível, desde logo, p en sa r no D eus c r iad o r cuja ex istência p r e ­cede ab so lu tam en te a das suas c ria tu ras , fazendo a b s ­tração da sua v on tade tal com o ela se cu m p re e se m an ifes ta no cu rso da h is tó ria . A v on tade e te rn a de D eus é inseparável dessa fo rm a tem pora l. M esm o do p o n to de v ista da e te rn idade , não há o u tro D eus além desse cuja v o n ta d e se e n ca rn o u d en tro do a c o n te c i­m e n to h is tó r ico de sua ação e de sua Palavra. T udo isso não tem n ad a a ver com a especulação. A p regação de Jesus C ris to não é u m a verdade en tre ou tras . É a ver­dade. N osso p en sam e n to , u m a vez o r ien tad o p a ra Deus, não p o d e fazer abs tração do n o m e de Jesus Cristo . E n ­fim, há o te rce iro aspecto da m en sag em do N atal, “D eus que em to d a a e te rn id ad e decidiu , pa ra o nosso bem , to rn a r -se h o m e m em Jesus Cristo , o p e rm a n e c e rá pelos séculos dos sécu los”. O fato cie seu ca rá ter h is tó rico , o fato que ela se m an ifes tou no q u ad ro do espaço e do tem po , a aliança ou se p re fe r irm os , a u n id a d e de D eus e do h o m e m , não é u m a verdade passageira . Jesus C ris to é o rei cujo re ino não te rá fim. “Jesus C ris to é o m esm o hoje, on tem , e te rn a m e n te ” (H b 13.8). Tal é nossa s i tu a ­ção d ian te de Deus. Ele nos rodeia v e rd a d e ira m e n te po r todos os lados, em Jesus Cristo. Im possível escapar-se- lhe. Im possível ta m b é m su cu m b ir d en tro do nada . I n ­vocar Jesus C ris to é se co m p ro m e te r sobre u m cam in h o

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seguro. “Eu sou o cam inho, a verdade e a v ida” (Jo14.6). Trata-se de um cam inho que atravessa os tem pos e cujo cen tro é o p róp r io Jesus Cristo; a o r igem desse cam in h o não se perde na noite da h is tó ria , ela c o r re s ­p o n d e exatam en te ao que é. Enfim , esse ca m in h o não co n d u z à escuridão , pois que todo o fu tu ro d ian te de nós p o r ta esse m esm o nom e: Jesus Cristo . Jesus C ris to é o que foi, o que é e o que vem, com o o exp rim e o fim do segundo artigo: ““De onde virá para ju lgar os vivos e os m o r to s ”. Ele é o Alfa e o Ô m ega (Ap. 1.8), o p r in c íp io e o fim. Q u an d o podem os, com o Símbolo, confessar o n o m e de Jesus Cristo, isso significa que nós e n c o n t ra ­m os Aquele que, m esm o se o igno rarm os, nos tem in ­te iram en te d en tro de sua mão.

Tudo isso, nós o d issem os, é “para nosso b e m ”. É preciso sublinhar. A aliança de Deus, sua revelação em Jesus Cristo , não é s im plesm ente um m ilagre, u m m is ­té rio in teressante , d igno de nossa m ais séria atenção. C laro que é isso tam bém , mas com certeza não te rem os co m p re en d id o nada se nós im ag inam os p o d e r fazer disso u m objeto de pu ra con tem plação in telectual. M esm o que p re ten d a se apoiar no Novo T estam en to i n ­teiro e da r lugar aos mais belos d iscursos , o c o n h e c i­m en to puro , a gnose, seria apenas u m b ro n ze que ressoa, um cím balo que retine. A palavra de M elan- ch ton é com ple tam en te justa (Loci com m unes, 1521), a despeito do uso abusivo que se tem feito na teo logia m o d e rn a : Hoc est Christum cognoscere, beneficia Christi cognoscere. Em particu lar, o erro de Ritschl e de sua es­cola consis tiu em repud ia r com ple tam en te o m isté r io da en ca rnação para apresen tar o C risto u n ic a m e n te sob o aspecto de um ser excepcional, de q u em o h o m e m p o d e ob te r certos benefícios no sen tido em que eles r e ­p re sen ta m para ele u m certo “va lo r”. O ra, não se p o d e

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falar ab s tra tam e n te dos benefíc ios de Cristo . É p reciso conhecê- lo s co n c re tam e n te para p o d e r reconhecê- los .

Se existe benefício , ele está ú n ic a e exc lusivam en te d en tro desse fato da revelação: D eus se fez h o m e m , ele se fez h o m e m p ara o nosso bem . Assim som os au x il ia ­dos. A p a r t i r do fato de que esse ato de D eus foi feito para nós, seu re ino já está aqui. P ro n u n c ia r o n o m e de Jesus C ris to é reco n h ece r que a lguém se o cu p a de nós e que nós não es tam os perd idos . Jesus C ris to é a salvação do h o m e m apesar de tu d o o que possa e n s o m b ra r sua vida, inclusive o m al que p rovém dele m esm o. N ão existe n e n h u m m al que já não esteja m u d a d o em bem pelo evento da en ca rn ação de Deus. F ina lm en te , nada mais resta a fazer do que red esco b r ir sem cessar que isto é assim. N ossa vida não é m ais u m so m b rio enigm a. N ós v ivem os para Aquele que, desde antes do nosso nasc im en to , foi m ise r ico rd io so para conosco . Se é verd ad e que nós v ivem os longe de D eus, se é verd ad e que nós som os in im igos e rebeldes, a inda é v e rd ad e que D eus nos p re p a ro u o cam in h o da reconc iliação m u ito antes que en trá ssem o s em luta co n tra ele. E se é v erdade que, a respeito de seu d is ta n c iam en to de Deus, o h o ­m em não p o d e ser cons id e rad o mais que u m ser de se s ­p e ra d a m e n te pe rd ido , é a inda in f in i ta m en te m ais verd ad e iro que D eus agiu, age e agirá p o r nós de tal so rte que ele terá , pa ra to d a perd ição , u m a salvação p rep a rad a . Tal é a fé para a qual som os c h am ad o s na Igreja, pelo E sp ír ito Santo.

A contece que todos os nossos m otivos de queixa, m as ta m b é m tu d o aquilo de que possam os ser acusados com razão, to d o s os suspiros dos ho m en s , to d as as suas lam en tações e seus desesperos - dos quais não c o n te s ­tam o s a leg it im idade - se d is t in g u em rad ic a lm en te de todas as fo rm as de am arg u ra no seguinte: é que, reduzi-

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dos ao nosso papel de acusados ou de acusadores , nossa força para p ro tes ta r reside no fato de que nos r e c o n h e ­cem os com o objetos da misericórdia divina. É u n ic a ­m en te q u an d o nos é dado m ed ir a p ro fu n d id a d e do que D eus fez p o r nós que p odem os to m ar consc iência da nossa m iséria . Pois quem conhece a real m isé r ia do h o ­m e m senão aquele que conhece a au tên tica m ise r ic ó r ­dia de Deus?

A obra do Filho p ressupõe a do Pai e im plica a do E spírito Santo com o conseqüência . O p r im e iro artigo ind ica a origem , o terceiro a fina lidade de nossa m archa. O segundo é o caminho onde nos é d ad o an d a r pela fé e que es tende dian te de nós a obra de D eus em to d a a sua p len itude.

O Salvador e o Servo de Deus

O nom e de Jesus e seu título, o Cristo, designam a pessoa e a obra do homem, objeto de escolha divina,

em quem se encontra manifesta e cumprida, a missão pro ­fética, sacerdotal e real do povo de Israel.

O segundo artigo do Símbolo se abre p o r dois te r ­m os de origem estrangeira e que com andam todo o seu conteúdo: Jesus Cristo. O prim eiro é u m n o m e próprio que designa u m indivíduo em particular, o segundo é um título que caracteriza a sua função. Ao p ronunc ia rm os esse nom e e esse título, “Jesus, o Cristo”, som os colocados de im ediato no contexto da história e da linguagem do povo de Israel. Eis, pois, bem delim itado o assunto que vai nos ocupar agora: Jesus, nascido em Israel, esse h o ­m em particu lar cuja função precisa consiste em m anifes­tar e cum prir o ser e a missão desse povo. D esde o início, as coisas assum em u m a fisionomia m uito particular, a partir do fato de que o nom e “Jesus” pertence à te rm in o ­logia hebraica: Jesus é, com efeito, o equivalente de Josué, vim nom e que se encontra com m uita freqüência no A n ­tigo Testamento, e, no tadam ente nvim caso, com vim certo relevo. Em troca, o título “Cristo” é de origem grega ou, mais exatamente, a tradução do te rm o hebraico “Messias”

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que quer dizer: o ungido. Acontece, pois, que o com plexo “Jesus Cristo” já é, po r si mesm o, o indício de um certo m ovim ento histórico. Q ue um judeu, que u m israelita, que um hebreu de nom e Jesus seja o Cristo, eis o que já constitu i um certo corte da história, de u m a h is tória que passa através de u m pequeno povo, Israel, pa ra em erg ir entre os gregos, vale dizer, no m undo. N ão se pode d isso ­ciar o nom e de Jesus Cristo para reter som en te u m de seus com ponentes . Jesus Cristo não seria mais ele m esm o se não estivesse, em sua pessoa, o Cristo, o r iu n d o de Is­rael, idêntico ao judeu Jesus. Inversam ente, o judeu Jesus não seria ele m esm o se não existisse, na sua função, o Cristo de Deus, atestando no seio dos povos e no coração da hum an idade , o m istério e o alcance da vocação de Is­rael. Para p o d e r com preender toda a significação do nom e de Jesus Cristo, é preciso considerá-lo sem pre com essa dupla significação particu lar e universal. U m a vez que se esqueça de u m em favor de outro, acontece que se estará falando, na realidade, de algum outro.

O n o m e próprio de Jesus significa literalmente: “Yahvé (o Deus de Israel) ajuda!” O título de Cristo, de Messias, servia para designar, entre os judeus do tem po de Jesus, o h o m e m dos últim os tem pos, esperado p o r Is­rael e designado para fazer brilhar aos olhos de todos a glória de Deus, ao m esm o tem po oculta e p rom etida a seu povo. D esignava o ho m em cham ado para liberta r os j u ­deus da m iséria e da opressão e que, ele m esm o o r iu n d o de Israel, devia reinar sobre os povos. E q u an d o Jesus de Nazaré aparece e prega, quando, saído de um h u m ild e vi­larejo da Galiléia, ele em erge em plena h is tória de Israel - essa h istória de que, desde sempre, Jerusalém parece ter o dever de anunc ia r a realização - nós ap rendem os que, sob essa m isteriosa figura, na pessoa do filho de José, é o es­perado Messias, o hom em dos últim os tem pos que está

O Salvador e o Servo de Deus - 103

aqui; é com o tal que Jesus se apresenta e é com o tal que é reconhecido. Acontece que, entre todos os que po rtavam o nom e de Jesus (Deus ajuda, Salvador), m uito com um na época, só um concretiza em sua pessoa, po rque tal é do agrado de Deus, a realização da prom essa divina. E, ao m esm o tem po, essa realização concerne ao destino de Is­rael, e m arca a realização e a revelação de sua vocação es­pecífica no seio da história universal para todos os povos, para o conjunto da hum anidade. É significativo que a Igreja prim itiva não tenha falado de Jesus, o Messias, mas sim de Jesus Cristo: é a po rta aberta para o m undo . C o n ­tudo, o nom e judeu de Jesus perm anece, a testando que é de Israel que a salvação se estende para o m u n d o inteiro.

Talvez vocês achem estranho que eu insista dessa m aneira no nom e de Jesus e no seu título. É que, no povo de Israel, com o de resto em toda antigüidade, os nom es e os títulos não tinham , com o é o caso hoje, um caráter p u ­ram ente exterior e fortuito. Assim, o nom e e o título de Jesus Cristo exprim em realmente algo, eles constituem , no sentido mais concreto, um a revelação. N ão é, pois, questão de ver aí um simples signo exterior, u m ch am a­m ento, u m ornam en to arbitrário. Lem brem o-nos, é o anjo que declara a Maria: “Tu lhe darás o nom e de Jesus” (Deus ajuda, Salvador, Soter em grego!) (Mt 1.21), Da m esm a m aneira , o título “Cristo”, longe de ser u m a a d ju n ­ção acidental, pertence ao hom em que ele designa em v ir ­tude de u m a necessidade interna. É impossível dissociá-lo do nom e que o qualifica; ao contrário, deve-se d izer que o ho m em que p o rta esse nom e é feito para p o r ta r esse t í ­tulo. Não se tra ta de um a dualidade entre o n o m e de um personagem e sua vocação. É desde o nascim ento que Je­sus foi coroado com o título de Cristo, de sorte que sua pessoa não existe sem seu título, nem seu título existe sem a sua pessoa. Ele é o Josué por excelência, o Deus

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“que ajuda” po rque foi escolhido para realizar a obra e a função do Cristo o servo de Deus, o r iundo de Israel, no seu ofício profético, sacerdotal e real.

É preciso que nos de tenham os aqui para sub linha r a im portânc ia do fato de que é den tro da pessoa concre ta do h o m e m Jesus Cristo que se realiza e se m anifesta a m issão específica desse povo único que é o povo de Israel, o povo judeu. Cristo, o servo de D eus para todas as n a ­ções, e Israel, o povo do qual é oriundo, não p o d e m ser separados; são duas grandezas ligadas ind issoluvelm ente pelo tem po e pela eternidade. Israel não é nada sem Jesus Cristo e, inversam ente , Jesus Cristo não seria Jesus Cristo sem Israel. Portanto , é preciso que com ecem os p o r o lhar Israel para p o d e rm o s ter um a visão corre ta de Jesus Cristo.

Israel, o povo do Antigo Testamento, é o povo da aliança. Sua h istória é a da aliança que D eus conclui com ele sob form as sem pre renovadas. É no contexto de Israel que esse conceito insólito de um a aliança entre D eus e o h o m e m nasce e se encon tra em seu verdadeiro lugar. E é po rque essa aliança é a de Deus com o povo de Israel que não se po d e confundi-la com um a idéia filosófica, u m a idéia geral. Longe de serm os solicitados po r u m a idéia, com efeito, encon tram o-nos postos diante do fato de que D eus cham ou A braão no meio dos povos para se ligar a ele e à sua “poste r idade” (Gn 17.7). Toda a h is tória do A ntigo Testam ento e, po r conseguinte, toda a h is tória do povo de Israel, coincide exatam ente com a da aliança de Deus com o seu povo, desse povo com esse D eus que se cham a Yahvé. Tendo reconhecido que a fé cristã se dirige a todos os povos e que o Deus que ela prega é o D eus do m u n d o inteiro, nós não devem os nos esquecer que o pon to de p ar tida dessa m ensagem universal, eng lobando todos os hom ens, é um a ação particu la r de Deus, ação in-

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sólita e que nos parece terrivelm ente arb itrária pela qual ele se to rna o Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. De sorte que a pedra de toque de toda ação de D eus entre os h o ­mens deve ser sempre de novo esta ação particu la r do Deus de Abraão, de Isaac e de Jacó. O povo de Israel, tal com o aparece no Antigo Testamento, o cham ado povo eleito, posto à parte, com todos os seus enganos e todas as suas fraquezas, objeto incessante do am or e da m ise r icó r­dia de Deus, mas tam bém dos seus ju lgam entos mais ra ­dicais, é a figura histórica da livre graça de D eus para todos nós. Mas não se trata som ente de u m fato histórico: a livre graça de Deus b rilhando sobre Israel, sobre os j u ­deus, não é u m a coisa que os cristãos de hoje, o riundos do paganism o, possam considerar com u m certo desliga­m ento sob o pretexto de que ela não lhes diz respeito. De fato, nós não estamos “livres” da história de Israel! U m cristão que dissociasse com pletam ente a Igreja da S ina­goga m ostraria com isso que ele não com preendeu nem um a, nem outra. Por toda parte onde se p re tendeu erguer u m m uro entre a Igreja e o povo judeu, a com unidade cristã se viu d ire tam ente ameaçada. Pois essa é toda a rea ­lidade da revelação divina que assim se renega im plic ita­mente; desde então, po r pouco que tal filosofia ou tal ideologia venha a se impor, assiste-se ao advento de u m cristianism o do tipo helénico, germ ânico ou outro. (Re­conhecem os, a esse respeito, que existe desde há m uito tem po um “cristianism o helvético” que não vale nada mais que seu equivalente germânico!).

Vocês conhecem o episódio que exprim e mais p e r ­feitamente o significado do povo judeu? Frederico II um dia pediu a seu m edico pessoal, o suíço Z im m e rm an n , originário de Brugg, na Argóvia: “Diga-m e, Z im m e r­m ann , você pode me dar um a só prova a favor da ex istên­cia de D eus?” E o outro responde: “Senhor, os Judeus!”

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Ele quis d izer com isso: caso se queira u m a prova abso lu ­tam ente visível, evidente para todos e irrefutável da exis­tência de Deus, é para os judeus que se deve olhar. Pois, é u m fato, os Judeus existem ainda hoje. Às centenas, as p e ­quenas nações do O rien te P róxim o desapareceram da cena histórica, todas as antigas tribos de o rigem semítica se d ispersaram ou desapareceram na m assa dos outros povos; só, den tre todos, esse pequeno povo subsistiu. E q uando se fala de sem itism o ou de an ti-sem itism o, é nesse p equeno povo que se pensa, m iracu losam en te p re ­servado, com as particu laridades físicas e in telectuais que o fazem reconhecido e nas quais se baseia para a f irm ar de qua lquer um: “É um não-ariano , um meio, u m quarto de não -a r iano”! Sim, caso se deseje abso lu tam ente u m a prova da existência de Deus, não se deve buscar mais longe! Pois, na pessoa de um judeu é u m testemunho que nós encon tram os, o te s tem unho da aliança de D eus com Abraão, Isaac e Jacó e, pois, com nós todos! M esm o quem não com preenda a Bíblia pode aqui li teralm ente ver u m a lem brança.

E não vêem vocês no que reside todo o verdadeiro alcance teológico, toda a significação intelectual e esp ir i­tual disso que foi o m ovim ento do N acional-socialism o? Não é no fato de que ele foi, desde o começo, v io len ta­m en te an ti-sem ita , não é precisam ente den tro da nitidez dem oníaca com a qual a firm ou sem cessar: o Judeu, eis o inimigo? Sim, sem n en h u m a dúvida, o in im igo de u m a tal em presa não p oderia ser ou tro que não o judeu . Pois é no seio do povo judeu que se conservou, viva e real, até este dia, a revelação de D eus no que ele tem de ún ico e escan ­daloso para a razão.

Foi Jesus, o Cristo, o Salvador e o Servo de Deus, quem cu m p riu e to rn o u manifesta a missão do povo de Israel, foi ele quem realizou a aliança selada en tre D eus e

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Abraão. Assim, quando a Igreja declara sua fé nele, reco ­nhece-o com o o Salvador e o Servo de D eus para nós e para todos os hom ens, incluída a im ensa m ultidão dos que não têm n en h u m vínculo direto com o povo de Israel, ela o faz não apesar do fato de que Jesus foi u m judeu (com o se existisse nisso algum a coisa de infamante!). N em se poderia tam bém dizer que, depois de tudo, se Je­sus Cristo é judeu, é po r um simples acaso h istórico e que ele poderia m uito bem ter nascido de u m ou tro povo. Isso seria u m erro grave. A rigor devemos ao con trá rio afir­m ar que esse Jesus Cristo que nós, cristãos, o riundos do paganism o, cham am os nosso Salvador e em q u em sau d a­m os a realização da obra de Deus para nós, foi necessaria­mente um Judeu. É impossível passar ao largo desse fato, inseparável da manifestação concreta de Deus, de sua re ­velação. Jesus Cristo é, com efeito, ao m esm o tem po a re ­alização da aliança de Deus com Abraão, Isaac e Jacó e a realidade desta aliança - e não o inventor de u m a idéia a respeito desta ou daquela form a de aliança - cuja realiza­ção e realidade é a razão de ser e o objetivo de to d a a c r ia ­ção, vale dizer, de tudo o que existe em distinção a Deus. O problem a de Israel é, sendo inseparável do p rob lem a de Cristo, o problema da existência. O h o m e m que tem ve r­gonha de Israel tem vergonha de Jesus Cristo e, po r isto m esm o, de sua p rópria existência.

Eu m e perm iti sublinhar a existência dessa questão em razão m esm o do caráter fundam enta lm en te an ti-se­m ita do Nacional-socialismo. Não é p o r acaso, com efeito, que aqui m esm o na Alem anha, nós pudem os escu ­tar o famoso slogan: Judá, eis o inimigo. É possível, b em entendido, lançar semelhante slogan, certas c ircu n s tân ­cias p o d em m esm o to rnar a coisa necessária, mas que se preste atenção então ao que se faz! Atacar Judá é atacar em sua base a p rópria obra de Deus e sua revelação sem

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as quais m uito s im plesm ente não existe nada. Sim, é a p róp ria obra de D eus e toda sua revelação que foram p o s ­tas em questão pelo que se passou na A lem anha sob o reino do N acional-socialism o e de seu an ti-sem itism o r a ­dical; e isso não som ente no plano das idéias e das teorias, mas den tro da p ró p ria vida, no plano dos acon tecim entos quotid ianos. C ertam en te pode-se a f irm ar que u m tal conflito fosse inevitável, mas então que não se fique a tu r ­dido pela m ane ira com o ele te rm inou . U m povo - e esse era o ou tro aspecto do N acional-socialism o - que se d e ­clara eleito e se apresenta pelo critério absoluto de toda verdade, acaba p o r se chocar, cedo ou tarde, com o v e rd a ­deiro povo eleito. Já essa simples pretensão constitu iu , a n ­tes m esm o que fosse questão de an ti-sem itism o, u m a negação radical de Israel, vale dizer, de Jesus Cristo e, fi­nalm ente , do p róprio Deus. O an ti-sem itism o é u m a form a de ateísm o ao lado do qual o ateísm o corren te tal com o se encon tra , po r exemplo, na Rússia, é u m a coisa bem anódina. Pois o ateísmo na base do an ti-sem itism o toca em realidades, quer seus iniciadores e seus rep resen ­tantes estejam conscientes disto ou não. Logo ele se vê em conflito com o p róprio Cristo. Teologicamente falando - não faço política aqui - sem elhante em presa devia neces­sariam ente ecoar e se desm oronar. H á aqui u m a rocha con tra a qual vêm se quebrar todos os assaltos do hom em , p o r mais poten tes que eles sejam. Pois a m issão do povo de Israel, sua vocação profética, sacerdotal e real é id ê n ­tica à von tade de D eus e à sua obra de salvação tais com o se acham cum pridas e manifestadas em Jesus Cristo.

M as qual é, então, jus tam ente essa missão de Israel que p ressupõe toda a Bíblia quando ela fala da escolha desse povo, de seu caráter único, de sua existência à parte? Ela consiste em representar D eus no seio da h u m a ­nidade. Israel só existe na m edida em que com pleta essa

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missão temível: ser um a com unidade, u m povo, u m a h u ­m an idade a serviço de Deus no m undo. Não é, pois, para sua p rópria glória nem para satisfazer seu orgulho n ac io ­nal que esse povo foi posto à parte, mas sim para os o u ­tros povos, para ser seu servo. Ele é o m anda tá r io de Deus sobre a terra. Está encarregado de anunciar a sua palavra: essa é a sua missão profética. Ao m esm o tem po ele deve te s tem unhar por toda a sua existência que Deus não se li­m ita a falar, mas que intervém ele m esm o e se sacrifica: essa é a sua missão sacerdotal. Enfim, através de sua im ­potência política, precisamente, ele deve atestar entre os povos a soberania de Deus sobre todos os hom ens: essa é sua missão real. A hum anidade necessita desse triplo tes­tem unho. É essa missão particular de Israel, sob seus três aspectos, que o Antigo Testamento quer colocar sob n o s ­sos olhos quando celebra a fidelidade de Deus a esse p e ­queno povo cuja existência está constan tem ente salvaguardada. Sua missão profética aparece mais p a r t i ­cu larm ente através de certos personagens cujo protótipo, depois de Abraão, é Moisés, o fundado r da un idade israe­lita, ao qual sucedem essas figuras tão espan tosam ente d i ­versas que são os profetas. Mas, ao m esm o tem po, através da existência do Tabernáculo, do Templo e dos sacrifí­cios, pode-se ver se definindo o segundo aspecto desse testem unho: o aspecto sacerdotal. É duran te o reinado de Davi que aparece de um a m aneira exem plar a missão de Israel: ser o representante da soberania de Deus sobre a terra. C on tudo - e isto nos concerne d ire tam ente - é fi­nalm ente no hom em , Jesus de Nazaré, o r iundo de Israel, indissoluvelmente ligado a Israel, que se cum pre em todo o seu rigor a missão confiada a esse povo.

A missão de Israel deve ser considerada com o p le ­nam ente revelada e cum prida em Jesus Cristo. É porque, ao longo de toda história desse povo, ela perm aneceu , de

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início, oculta e sem efeito. Q uando se deseja ler a ten ta ­m ente o Antigo Testamento, se percebe de im ediato e quase a cada página, que esse livro não se p reocupa nem um pouco em exaltar Israel com o “raça” ou nação. Ao contrário , a im agem que ele dá do h o m e m israelita é ex­trao rd in a r iam en te pouco edificante: é a de u m ser que se opõe cons tan tem en te à escolha e à vocação da qual é o b ­jeto, que se m ostra ind igno de sua m issão e que, p recisa­m ente po rque recusa a graça que lhe é feita, se vê sem pre sob os golpes do ju lgam ento de Deus. H istória m edíocre, essa do povo de Israel, que cam inha de catástrofe em ca ­tástrofe, po r causa de suas repetidas infidelidades. A in f i­delidade só pode significar a infelicidade e a ru ína , conform e o anuncia ou confirm a a pregação dos profetas. E qual é o resultado dessa história lamentável7. A profecia cessa e não resta a esse povo mais que u m a lei escrita, m arcada pela esterilidade. O tem plo de Salomão, que simbolizava a esperança de Israel e sua missão sacerdotal, não é mais que ru ín a e cinzas. E o que oco rreu com a reino de Davi? Q uan to pesar para todos os israelitas p e n ­sar em tudo o que eles p e rderam sob os golpes do ju lg a ­m en to de Deus, cujo am or foi sem pre tão mal- recom pensado. E quando enfim aparece o Messias que eles esperaram duran te tão longo tem po, eles o cruc if i­cam, co n firm ando po r esse ato suprem o o que tin h a sido sua a titude no curso de toda a sua história. Eles vêem nele um blasfem ador, eles o en tregam aos pagãos e a Pilatos, para que ele seja p en d u rad o no madeiro. Eis Israel, eis o povo eleito, eis o que ele faz da sua escolha, da sua m is ­são: ele se julga e se condena a si próprio . O an t i-sem i­tism o vem tarde demais! A sentença sobre Israel já está p ro n u n c iad a e com parados a essa sentença, todos os o u ­tros ju lgam entos conduzidos sobre esse povo são in s ign i­ficantes. Daí se segue que a missão desse povo tenha se

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to rnado caduca? Não, pois o Antigo Testam ento não se cansa de afirmar: a escolha de Deus é coisa séria, ela p e r ­m anece e ternam ente válida. O hom em , tal com o Israel no-lo m ostra , é e perm anece, a despeito de tudo, o eleito de Senhor, seu m andatário no m undo . A fidelidade de Deus tr iunfa sobre a infidelidade. E é assim que em tudo sendo u m a dem onstração viva da ind ign idade do h o ­m em , Israel to rna-se ao m esm o tem po o sinal da livre graça de Deus, a qual, sem querer levar em consideração nossa atitude nos dá o benefício de u m prodig ioso “ap e­sar de tudo”. O hom em não é mais que objeto da m ise r i­córdia divina e desde que ele queira ser mais do que isso, deve necessariamente protestar con tra a existência do povo de Israel. Israel depende to talm ente e exclusiva­m ente de Deus. Está para sempre reduzido a recorrer a ele somente. Leiam os Salmos: “Tu sozinho ...” O h o m e m não pode mais que escutar Deus que lhe fala e cuja sobe­rania dom ina-o constantemente, quaisquer que sejam suas tentativas para lhe escapar. E é q uando a m issão de Israel se cum pre com todo o seu rigor, isto é, po r ocasião da crucificação de Jesus de Nazaré, que se pode co m p re ­ender, enfim, o mistério desse povo. Pois quem é, então, esse Jesus crucificado senão, ainda um a vez, esse m esm o Israel pecador e ímpio, Israel, o blasfemador? Mas, d o ra ­vante, ele se cham a Jesus de Nazaré. Se considerarm os agora a h istória desses dois milênios onde o judeu apa­rece sem cessar com o um milagre e u m absurdo, com o um obstáculo que desencadeia o ódio dos povos - e cada um poderia colocar aqui seu pequeno refrão anti-semita! - , o que pode ser essa história es tranha senão a co n f irm a­ção da rejeição de Israel, tal como Deus a m anifesta no Gólgota, mas também da escolha desse povo ao qual Deus perm anece fiel, através de todas as vicissitudes? Podem os afirm ar isso porque essa fidelidade de D eus tr iun fou so ­

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bre o Calvário. O n d e Deus esteve mais per to de seu povo senão no Gólgota? O nde esteve ele, através desse povo, mais fo rtem ente do lado de todos os hom ens, de todos os povos? Vocês pensam que estaria em nosso p o d e r excluir os judeus da fidelidade de Deus? Vocês acreditam v e rd a ­de iram ente que poderíam os privá-los dela? A fidelidade de D eus com relação a Israel é precisam ente a garan tia de sua fidelidade com relação a nós, com relação a todos os hom ens.

Mas é preciso virar a página. Jesus Cristo é o coroa- m en to e a realização de Israel. Se voltarm os ao A ntigo Testamento, não deixam os de encon tra r nele igualm ente, po r to d a a sua extensão, hom ens que, apesar de sua re ­volta e de sua perdição, sabem, às vezes - coisa im pressio ­nante - , reconhecer sua escolha. Mas essa espécie de eco fiel, de resposta da piedade, longe de provir do p róprio Is­rael, é u m fru to renovado da graça de Deus. C om efeito, a graça, desde que está aqui, obriga os h om ens a louvar a Deus con tra sua vontade e a fazê-los en tender a resposta que não pode deixar de suscitar neles, com o u m simples reflexo, a luz que os visitou. H á u m a graça den tro do ju l­gam ento. O A ntigo Testamento a te s tem unha não com o um a qualidade do ho m em israelita, mas com o u m m ila ­gre de Deus. É apesar das virtudes e dos pecados desse povo que sua h istória contém sem pre os te s tem unhos que se abrem p o r estas palavras: “Assim fala o E te rn o .. .” (Is 43.1). N ão são mais que respostas, ecos do m ilagre da fi­delidade de Deus. O Antigo Testamento fala de u m “re ­m anescen te”. O que distingue esse rem anescen te não é a v ir tude ou a piedade, mas o fato de ter sido cham ado. Ele con tém os pecadores m antidos no freio pela graça, pecca- tores justi.

A revelação atinge seu ponto cu lm inan te na ex istên­cia de Jesus de Nazaré. Jesus é o riundo de Israel, nascido

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da Virgem M aria e, contudo, ele vem de ou tra parte, do alto; com o tal, ele revela e cum pre a aliança. Israel não um doente que se recupera, é aquele que ressuscita dos mortos. Desde que Jesus aparece, é o ju lgam ento de Deus que brilha; este julgam ento vai ao encontro de todos aqueles que o ho m em pronuncia con tra si m esm o, ele lhes retira sua últim a aparência de realidade. A fidelidade de Deus tr iunfa no oceano da miséria e pecado hum anos. Deus tem m isericórdia do hom em . Este se liga a ele no mais ín tim o de seu ser. Ele jamais deixa de a tra ir com cordas de am or povo infiel. E eis que este h o m e m de Is­rael, não p o r sua natureza, mas po r um milagre da graça, de novo se ergue em Israel, tr iunfa da m orte é elevado à direita de Deus!

Israel é, no fundo, a projeção da livre graça de Deus. Ele form a o quadro do acontecim ento decisivo onde, den tro da sua relação com o hom em , Deus se to rn a visí­vel: a ressurreição de Jesus Cristo. O h o m e m aparece d o ra ­vante den tro da luz da glória de Deus. Tal é a graça, o fru to da condescendência de Deus para com o hom em . E o lugar desse evento é o hom em Jesus, o r iundo de Israel. E a conseqüência desse evento que ilustra u m a vez mais o caráter positivo da graça, é essa extensão p rodig iosa da aliança de Abraão a todos os outros hom ens.

“Ide po r todo o m undo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16.15). Tal é a graça: sua natureza é se es­tender, ir do particu lar ao geral. Mas, po rque a salvação vem dos judeus, esse povo está não som ente sob o golpe do julgam ento, mas tam bém sob o benefício da graça. A graça que repousa sobre Israel, enquan to povo eleito e cham ado, é visível até os nossos dias na Igreja, que é es­sencia lm ente com posta po r judeus e pagãos. Na epístola aos Rom anos, capítulos 9-11, o apóstolo Paulo não se cansa de dizer que não há um a Igreja de judeus e um a

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Igreja de pagãos, mas que a Igreja é a com un idade única de hom ens o riundos de Israel e de pagãos. Essa dup la ca ­racterística é constitutiva da Igreja e longe de sen tir ve r­gonha, ela deve considerar com o u m título de glória o fato de con ta r em seu seio com descendentes autênticos de Abraão. A existência de cristãos de origem juda ica é a m arca visível da un idade do povo de D eus que, visto de um lado, se cham a Israel, e, de outro, Igreja. E se existe ainda, ao lado da Igreja u m a Sinagoga que tira sua exis­tência da rejeição de Jesus Cristo e da vã am bição de c o n ­tin u a r a h is tória de Israel, de fato, já há m uito te rm inada , não p o d em o s ver aí mais do que um tipo da Igreja, com o sua som bra através dos séculos; com o tal, ela con t inua a participar, q uer queira quer não, do te s tem unho dado a Deus e à sua revelação. A videira não está m orta . O que conta, é que D eus a plantou, é o que ele fez nela e o que ele lhe deu; e tudo isso to rnou-se m anifesto em Jesus Cristo, o h o m e m o r iundo de Israel.

XII O Filho Único de Deus

A revelação de Deus tio homem Jesus Cristo é compulsória e exclusiva e se traduz p o r um a ação p lenam ente

salutar, porque Jesus Cristo não é um ser diferente de Deus, mas o Filho

único do Pai, isto é, o próprio Deus vivo, sua graça,

sua verdade e sua onipotência em pessoa; como tal, é o único verdadeiro M ed iador entre D eus

e todos os homens.

Eis-nos chegados à questão relativa à verdadeira d i­v indade de Jesus Cristo. De fato, no pon to em que chega­mos, a resposta a essa questão não deixa mais dúvida. Tentemos apenas perceber em que te rm os essa reposta se im põe a nós.

Ao longo de nossa exposição, tem os constan tem ente topado com o conceito de revelação ou da Palavra de Deus. Trata-se do ato pelo qual Deus se faz conhecer, da m ensagem que ele m esm o nos dá. No m u n d o existem n u ­merosas revelações, oráculos e m ensagens se arrogando a qualidade de “Palavras de D eus”. Trata-se, pois, de saber - e nós irem os tom ar posição quanto a isso - em que m e ­dida isso que nós mesm os en tendem os aqui po r revelação

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de D eus se im põe e deve ser aceito com o tal. É certo que a h is tória da h u m a n id ad e no seu conjunto com o a dos in d i­víduos particulares é fértil em eventos de toda natureza, capazes de nos fazer sentir “u m a presença m isteriosa” que se im põe a nós de m aneira irresistível, nos subjuga e não nos deixa mais. Nós poderíam os facilmente ilustrar a coisa. A vida h u m a n a é com o que po n tu ad a de “revela­ções”, quer se trate de amor, quer de potência, quer de b e ­leza, etc. Porque seria necessário, então, que isso que aqui den o m in am o s revelação de Deus, ou seja, o evento c o in ­cidente com a v inda de Jesus Cristo, fosse u m a revelação exclusiva? A essa questão (sobre o “absolu tism o” do cris­tianism o, veja Troeltsch), deve-se responder: de fato, es ta ­m os cercados po r m uitas outras “revelações” mais ou m enos com pulsórias ou legítimas. Mas do pon to de vista da fé cristã nós tem os o direito de afirm ar que lhes falta u m a autoridade última, absoluta, indiscutível. Pode-se perco rre r a su rp reenden te diversidade, deixando-se vez po r o u tra iluminar, convencer ou subjugar; não é m enos verdade que n e n h u m a delas possui esse suprem o p o d e r de im ped ir que aquele que elas cap tu ra ram po r u m ins­tante, se desp renda em seguida, tal com o u m h o m e m que, depois de ter visto seu reflexo nu m espelho, con tinue seu cam inho e im ediatam ente esqueça o que viu. É evidente que u m elem ento capital falta a esse tipo de revelações: a força com pulsória . Não que elas sejam im potentes, ins ig ­nificantes, ineficazes, mas, e é aqui que a fé cristã nos força a reconhecer, elas são, enfim, apenas revelações da grandeza, da potência, da b o ndade e da beleza tal com o essas existem nesta terra criada p o r Deus. A te rra está plena de glória e magnificência. Ela não seria n em a cria­ção de Deus, n e m o quadro que ele fixou para nossa vida, se ela não estivesse repleta de revelações. Os filósofos, os poetas, os m úsicos e os profetas de todos os tem pos o sa-

O Filho Ü nico de Deus - 117

bem. Portanto, falta a essas revelações, p róprias da terra, a au toridade capaz de p render definitivamente o hom em . O hom em pode atravessar o m u n d o inteiro sem se sentir preso a nada. Mas, poderiam se tra ta r de revelações celes­tes, quer dizer, revelações do m u n d o invisível e in co m p re ­ensível que nos rodeia po r todos os lados e exerce sobre nós u m a pressão contínua. Q uantos motivos de espanto, de encantam ento , existem nesse im enso dom ín io e nos escapam! O que seria o hom em sem essa presença cons­tante do m u n d o celeste acima de sua cabeça? C ontudo , as revelações que se pode obter ali, pertencem tam b ém à o r ­dem da criação: elas não possuem a au toridade d e r ra ­deira. Falta-lhes algo. Todo o dom ínio celeste perm anece, com o o terrestre, submisso à contingência. Ele se ap re ­senta para nós com o em baixador ex traord inariam ente brilhante de um grande monarca; contudo, nós sabem os que ele não é esse monarca, mas som ente o seu m e n sa ­geiro. É assim com todas as potências do céu e da terra, com todas as suas “revelações”. Sabemos que existe ainda “algum a coisa” acima delas. Por mais formidáveis que elas pudessem ser, m esm o que elas alcançassem a enverga­dura cia bom ba atômica, elas não seriam capazes de nos prender em últim a instância, nem nos subjugar defin iti­vamente. Si fractus illabitur orbis, im pavidum ferien t rui- nae! (Horácio). A hum anidade não dem onstrou , mais de u m a vez, através desses últimos anos de guerra, que ela perm anece invulnerável aos piores acontecim entos? Na verdade, fora do próprio Senhor, não há senhor capaz de partir o coração do hom em . Impassível, a h u m an id ad e atravessa todas as ruínas e pode resistir a todas as p o tê n ­cias deste m undo.

Q uando, pois, a Igreja cristã fala de revelação, não é dessas manifestações terrestres ou celestes, po r mais altas que sejam elas, que ele quer falar e sim da po tência que se

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encon tra acim a de todas as potências, qua isquer que se­jam; n u m a palavra, trata-se da revelação do próprio Deus e não da revelação de u m divino cá de baixo ou lá de cima. Se, pois, a verdade que é o objeto desta conversação, a saber, a revelação de Deus em Jesus Cristo, tem u m ca ­ráter com pulsório e exclusivo, se ela é verdade ira e to ta l­m en te salutar, é po rque ela não destaca u m a realidade diferente e separada de Deus, celeste ou terrestre, m as sim o ser ín t im o de Deus, a p rópria pessoa de D eus Altíssimo, cr iador do céu e da te rra do qual nos fala o p r im eiro a r ­tigo do Símbolo. Nas inum eráveis passagens onde Jesus de Nazaré (que a Igreja prim itiva reconheceu e declarou com o sendo o Cristo) é cham ado o Senhor (Kyrios), o Novo Testam ento não faz ou tra coisa senão re tom ar o te rm o “Yahvé” pelo qual o A ntigo Testam ento designa o p róprio Deus. Esse Jesus de Nazaré que atravessa das ci­dades e vilas da Galiléia, e sobe a Jerusalém, onde foi a c u ­sado, condenado e crucificado, é o E terno (Yahvé) de quem fala o Antigo Testamento, é o Criador, é o p róprio Deus. U m h o m e m com o todos nós, pois, situado no tem po e no espaço, possui todos os atribu tos de Deus, sem deixar, contudo, de ser hom em , isto é, p lenam en te criatura. O p róprio C riador se torna , sem enfraquecer em nada sua d ivindade, não um semi-deus, não u m anjo, mas m uito s im plesm ente, m uito realmente, u m hom em . Eis o que quer dizer a Confissão de fé quando afirm a que Jesus Cristo é o Filho único de Deus. Ele é o Filho de Deus, isto é, Deus no ato soberano pelo qual ele dispõe de si mesmo. Esse D eus que dispõe assim de seu ser, esse Filho único de Deus, é esse hom em particular , Jesus de Nazaré. Porque Deus não é som ente o Pai, mas tam b ém o Filho, po rque seu ser ín t im o é o lugar desse m ovim ento con tinuo (ele é Deus, mas, den tro do p róprio ato de seu ser, ele é o Pai e o Filho), ele tem a faculdade de ser, ao m esm o tem po, o

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C riador e a criatura, como é, ao m esm o tem po, o Pai e o Filho. Porque essa ação, essa revelação de Deus é a obra do Filho e terno de Deus ela ocupa, em com pleta legitim i­dade, um lugar absolutamente único em relação ao c o n ­jun to da criação. Sim, porque aqui, o p róprio Deus intervém , porque esta criatura é seu Filho, o acon teci­m ento que se efetiva no hom em Jesus de Nazaré possui um caráter compulsório, exclusivo e p lenam ente salutar. Ele se distingue de todos os outros acontecim entos que se p roduzem ao nosso redor e que são tam bém , b em e n ten ­dido, u m efeito da vontade e do desejo de Deus. A revela­ção e a ação de Deus em Jesus Cristo não são u m efeito qualquer da sua vontade, mas o p róprio Deus in terv indo na criação.

No pon to em que chegamos, me parece bastante in ­dicado dar a palavra à Igreja do século IV que, no c o n ­texto da controvérsia relativa à d iv indade de Cristo, se exprim e assim: “Crem os nu m só Senhor, Jesus Cristo, Fi­lho único de Deus, nascido do Pai antes de todos os sécu­los, luz de luz, verdadeiro Deus de verdadeiro Deus, gerado e não criado, de u m a m esm a substância que o Pai e po r quem tudo foi feito, que, po r nós, hom ens, e po r nossa salvação, desceu dos céus...” (Credo Niceno, 381 d.C.). Não faltaram vitupérios contra essa fórm ula ao longo dos séculos e vocês encontrarão, certam ente, d u ­rante seus estudos, num erosos sábios e m esm o professo­res que não com preendem e deploram p ro fundam en te que a Igreja tenha pod ido chegar aqui. Eu gostaria que agora vocês se lem brassem um pouco dessas lições e to ­m assem um tem po para refletir um instante. Pois, todos esses ataques contra o que se cham a “ortodoxia” fazem re­

alm ente pensar nos “uivos dos lobos”,13 aos quais, m esm o

13. No texto a lem ão: Wolfsgeheul. (N. do T.).

120 - Esboço de um a Dogm ática

que se lhes a tribua u m m ín im o de cultura, devem os re c u ­sar jun ta r-nos . Sim, há algo de bárbaro nos insultos p r o ­feridos con tra os Pais da Igreja antiga. Parece-m e que, m esm o sem ser cristão, deve-se ter u m pouco de respeito para reconhecer a envergadura das tentativas teológicas deles, em particu la r no prob lem a que nos ocupa. H ouve a presunção de que as fórmulas do Símbolo de Nicéia não fossem bíblicas. M as há m uitas verdades, reco n h ec id a ­m en te necessárias e boas que não estão fo rm uladas com todas as letras na Bíblia. A Bíblia não é u m livro de recei­tas, é u m d o cu m en to único da revelação divina. É preciso que a revelação nos fale de m aneira que possam os c o m ­preendê-la . Em cada época, a Igreja viu-se na obrigação de responder ao que lhe era dito na Bíblia. Ela viu-se obrigada a fazê-lo, cada vez, com u m a ou tra língua e com outras palavras, diferentes daquelas da Escritura. O texto de Nicéia é u m a dessas respostas da Igreja que foram tes­tadas em combate. Nesse caso, em particular, era ab so lu ­tam en te necessário que fosse conduzido esse com bate po r

u m foto14: Jesus Cristo era o p róprio D eus ou u m simples herói celeste ou terrestre? Não se tratava de u m a questão qualquer, vê-se; mas nesse iota é o Evangelho com o u m todo que estava em jogo. O u b em seria com o p róprio D eus que nos relacionaríam os em Jesus Cristo, ou bem com u m a criatura. A h istória das religiões conhece à p ro ­fusão seres divinos ou semi-divinos. L utando até o sa n ­gue sobre o pon to que nos ocupa, a teologia antiga sabia, pois, o que fazia.

C ertam en te esse com bate não foi sem pre tão edifi­cante; ele se m is tu rou bastante com o “h u m a n o ”. Mas será

14. N. d o Ed.: É o n o m e d a m e n o r letra d o a lfabe to grego, u s a d a aqu i p a ra significar u m d e ta lh e q u e a lguns p o d e r ia m c o n s id e ra r s e m im­p o r tâ n c ia (cf. uso se m e lh a n te p o r Jesus em Mt 5.18).

O Filho Ú nico de Deus - 121

que esse lado desagradável merece tal interesse? Cada um sabe que os próprios cristãos não tiveram nunca a p re te n ­são de ser e não são anjos. Não é lícito, quando u m a ques­tão essencial está em jogo, invocar, com u m grande gesto abençoado, a paz, a paz a qualquer preço; deve-se, ao contrário, em penhar todas as forças em u m com bate que deve ser m esm o levado até o fim, sem se considerar n in ­guém. Graças a Deus, os Pais do século IV p o r mais a b ­surdos, mais hum anos, mais pedantes que possam nos parecer hoje, não tem eram conduzir um tal combate. To­das as suas fórmulas queriam dizer um a só e a m esm a coisa: é que o Filho único nascido do Pai antes de todos os séculos, luz de luz, verdadeiro D eus de verdadeiro Deus, não é um a criatura, mas o p róprio Deus, da m esma substância (e não de substância semelhante) que o Pai, Deus em pessoa. “Por quem tudo foi feito e quem p o r nós, os hom ens ( .. .) desceu dos céus”. Desceu a nós: eis Jesus Cristo. E eis com o a Igreja antiga o viu, eis com o ele se im pôs a ela e o testem unho que ela deu a ele na sua C o n ­fissão de fé, e que nos cham a tam bém a u m a confissão se­melhante. É ainda possível, quando se com preende isso, deixar de aderir ao grande consensus da Igreja? Q ue in ­fantilidade perm anecer em lam entações estéreis a p ro p ó ­sito da ortodoxia e da teologia gregas! Isso não tem n e n h u m a ligação com a questão em si. E se as c ircu n stân ­cias que cercaram a redação dos antigos símbolos cristãos não foram sempre “edificantes”, não será po rque tudo o que em preendem os nós, os hom ens, p e rm aneça forçosa­m ente sujeito à caução, repleto de confusão e de insufic i­ência? Mas é m uito im portan te passar po r isso para atingir um resultado m esm o que pouco claro e p e r t i ­nente. Dei providentia et hom inum confusione!

M uito simplesmente e muito praticam ente, o c o n ­teúdo dos antigos símbolos deve nos p e rm iti r ver com

122 - Lisboço de uma Dogmática

clareza; ao confessar a sua fé no Filho de D eus sob a form a que se conhece, os hom ens de Nicéia p use ram o dedo sobre o que distingue e d is tinguirá sem pre a fé cristã disso que se cham a religião. Nós tem os ligação com o p róprio D eus e não com quaisquer deuses. É p róp rio da fé cristã nos fazer “partic ipar da natureza divina” (2Pe 1.4). Do que se trata, de fato? Do acontecim ento pelo qual Deus se aprox im ou de nós a tal pon to que, pela fé, nós partic ipam os de seu ser. Jesus Cristo é, pois, o M ed iado r entre D eus e os hom ens. É den tro dessa perspectiva que tudo deve ser in terpretado: Deus se põe no nosso nível para nos elevar ao dele. Q ue u m tal milagre devesse se p roduz ir e se tenha efetivamente p roduzido , eis o que nos faz m ed ir nosso pecado e nossa m iséria em toda a sua verdadeira p rofundidade . É sobre esse m ilagre inaudito, esse acon tec im ento que nos u ltrapassa to ta lm ente , que a Igreja e toda a c r is tandade têm os olhos postos. D eus se deu ele m esm o a nós. E é po r isso que toda palavra, toda p roposição cristã tem algo de absoluto, o que não seria possível às outras palavras hum anas. A Igreja não tem “opin iões”, pon tos de vista, convicções, ela não se deixa levar po r u m a idéia. Ela crê e ela afirma sua fé, quer dizer, ela fala e age a par tir da m ensagem fundada em Cristo que ela recebe do p róprio Deus. Daí o cará ter exclusivo de seu ensinam ento , de suas consolações e de suas exo rta ­ções das quais toda a força procede não dela m esm a, mas do acon tec im ento prodig ioso pelo qual D eus quis ser para nós, em Jesus Cristo, seu Filho único.

Nosso Senhor

A existência do hom em Jesus Cristo é, em virtude da sua divindade, a decisão soberana sobre a existência de

todo homem. Ela está baseada no fa to de que, pela dispensação de Deus,

este Alguém representa tudo e, portanto, tudo está ligado e subjugado a este

Alguém. Sua comunidade sabe disso.E é isto que deve ser proclamado ao mundo.

Perguntei a m im m esm o se, ao invés destas sen ten ­ças, s im plesm ente não copio a explanação de M artinho Lutero sobre o segundo artigo: “Creio que Jesus Cristo, verdadeiro Deus nascido do Pai na eternidade, e tam bém verdadeiro hom em nascido da Virgem M aria, é m eu Se­nhor...”. Nestas palavras, Lutero expressou o con teúdo com pleto do artigo segundo. Se o lharm os para o texto, talvez pareça, exegeticamente, um ato arbitrário , porém , seguram ente, um ato arbitrário de u m gênio. Afinal, Lu­tero, na verdade, não fez mais do que rem o n ta r ao mais original e mais simples vocabulário do Credo, Kyrios Jesus Christos, Jesus Cristo é o Senhor. Ele com prim iu e re d u ­ziu a este d enom inado r tudo o que está declarado no se­gundo artigo. Na sua formulação a verdadeira D iv indade

124 - Esboço de um a Dogmática

e a verdade ira h u m an id ad e se to rn am o p red icado deste sujeito. A obra com pleta de Cristo é a obra com pleta do Senhor. A declaração integral que este Senhor nos p ropõe é de que sejam os sua possessão; “para que eu viva sob ele no seu reino e o sirva”, po rque ele é m eu Senhor, que “me red im iu qu an d o estava perd ido e condenado , adqu iriu - me, liv rou-m e de todos os pecados, da m orte e do p o d e r do m a l”. E a prom essa cristã, na sua integralidade, está d i ­recionada para “que eu o sirva em retidão eterna, in o c ê n ­cia e glória”, de acordo com sua glória. A in tegralidade se to rn a u m a analogia da exaltação de Cristo.

Não queria iniciar esta exposição desta parte do Credo sem cham ar sua atenção enfaticam ente para o texto de Lutero. Mas vam os ten tar trazê-la para b em perto da nossa p róp ria linha de pensam ento . O que se quer dizer quando d izem os que Jesus Cristo é nosso Senhor? C o s­tu m o parafrasear, d izendo que a existência de Jesus Cristo é a soberana decisão sobre a existência de todo h o ­mem . U m a soberana decisão foi tom ada sobre nós, h o ­mens. Se estam os conscientes dela e lhe fazemos justiça, isto é o u tra questão. Temos a declaração de que ela foi t o ­m ada. Esta decisão não tem nada que ver com u m des­tino, u m a de term inação neu tra e objetiva do ho m em , que poderia , de a lgum a forma, ser lida da na tu reza e h istória do hom em ; p o rém esta decisão soberana sobre a ex istên ­cia de todo h o m e m consiste na existência do h o m e m Je­sus Cristo. Porque ele é, foi e será, esta decisão soberana é im posta sobre todo hom em . Você se lem bra que, no in í­cio da nossa aula, enquan to era exposto o conceito de fé, decid im os que a fé cristã deve ser vista abso lu tam ente com o u m a decisão do hom em , que é to m ad a à vista de u m a decisão divina. Q u an d o dizem os que D eus é nosso Senhor e Mestre, com o cristãos não estam os pensando , à sem elhança de todo misticismo, com o algo divino e des-

Nosso Senhor - 125

conhecido e de certa form a indefinível e final, que paira sobre nós com o um poder e nos dom ina. Porém , estam os pensando da figura concreta, o hom em Jesus Cristo. Ele é nosso Senhor. U m a vez que ele existe, D eus é nosso Se­nhor. P recedendo toda existência hum ana , com o u m a priori, assim é a existência de Jesus Cristo. É isto que a Confissão de fé cristã nos diz. O que significa esta p rece­dência dele? Não deixe a idéia de um a precedência te m ­poral ser proem inente . Ela aconteceu, mas acabou, há este grande histórico perfeito, no qual o senhorio foi es ta­belecido sobre nós, nos anos 1-30 na Palestina - porém , não é este o caso. Q uando a precedência tem poral a d ­quire sua im portância , é devido à existência deste ho m em preceder nossa existência em virtude da sua in c o m p ará ­vel importância. Ele precede nossa existência em virtude da sua autoridade sobre nossa existência, no p o d e r da sua divindade. Voltemos ao que dizíamos na ú lt im a aula. Agora podem os ver o que se queria dizer q uando d iz ía­mos que a existência deste hom em é, em palavras simples, a existência do próprio Deus. É nisto que constitui o valor deste hom em , que é o conteúdo da sua vida, que é seu p o ­der sobre nós. U m a vez que Jesus Cristo é o único Filho gerado por Deus, “de um a substância com o Pai”, p o r ­tanto, tam bém de sua natureza, seu ser hum ano , é um acontecim ento no qual a decisão soberana está co n su ­mada. Sua hum anidade é, na verdade, hum anidade , a es­sência de toda humanitas. Não com o u m conceito ou idéia, mas com o um a decisão, como história. Jesus Cristo é o hom em , e a medida, a determ inação e limitação de todo ser hum ano. Ele é a decisão quanto ao propósito e objetivo de Deus, não som ente para ele, mas para todo hom em . É neste sentido que a Confissão cristã cham a Je­sus Cristo “nosso Senhor”.

126 - Esboço de um a Dogm ática

Esta soberania , decisão régia em Jesus Cristo, está fu n d am e n tad a sobre o fato de que pela disposição de D eus este único h o m e m representa todos. Está fu n d a ­m en tada , isto é, esta decisão soberana de D eus - ou seja, o senhorio de Jesus Cristo - não é u m ato cego de p o d e r em si m esm o voltado para nós, hom ens. Você se lem bra com o falamos da on ipo tência de D eus e com o sublinhei a declaração de que “o po d er em si m esm o é m aligno; que o p o d e r pelo p o d e r é o D iabo”. O senhorio de Jesus Cristo não é p o d e r pelo poder. Q u an d o a igreja cristã confessa que “Creio que Jesus Cristo é o Senhor”, po r tan to , não está p en san d o n u m a lei cega pa irando am eaçado ram en te sobre nós, não em u m p o d e r histórico, não em u m d es­tino ao qual o h o m e m está exposto indefeso, d ian te do qual sua percepção final consistiria apenas em reco- nhecê-lo com o tal; mas ela está pensando no p róp rio se­nho rio do seu Senhor. Seu senhorio não é apenas potentia-, ele é potestas. Ele se to rn a reconhecível para nós com o o rden an ça não apenas de u m a von tade insondável, mas com o ordenança de sabedoria. D eus é justo e sabe o que está fazendo, assim ele é nosso Senhor e q uer ser c o ­nhecido e reconhecido po r nós com o tal. Evidentem ente, esta base do senhorio de Cristo nos conduz ao mistério. Eis algo objetivo, u m a o rdem que está acim a de nós e se­parada de nós, u m a ordem à qual o h o m e m deve sujeitar- se, a qual deve reconhecer, a qual ele deve apenas ouvir e obedecer. C o m o p oderia ser de ou tra forma, u m a vez que o p róprio senhorio de Cristo já foi fu n d ad o e consiste no p o d e r da sua Divindade? O nde D eus é rei, o h o m e m só pode p rostrar-se e adorar. Mas ado rar na p resença da sa ­bedoria de Deus, da sua justiça e santidade, do m istério da sua m isericórdia . Esta é a reverência cristã d ian te de D eus e o louvor do cristão para Deus, do serviço cristão e

Nosso Senhor - 127

obediência. A obediência está no ouvir e o ouvir significa receber a palavra.

G ostaria de tentar e indicar esta base do senhorio de Cristo resum idam ente. A declaração de aber tu ra diz que esta decisão soberana está baseada no fato de que este U nigénito da dispensação de Deus representa todos. O mistério de Deus, e dessa forma, o de Jesus Cristo, é que ele, o Unigénito, este hom em , pelo seu ser Ú nico - não u m a idéia, mas Único que é to talm ente concre to neste tem po e lugar, um hom em que carregou u m n o m e e vem de u m lugar, e que, como todos nós, tem u m histórico de vida no tem po - não apenas existe po r si m esm o, mas é Único para todos. Você pode ten tar ler o Novo Testa­m ento do pon to de vista deste “para nós”. Pois a existência inteira deste hom em , que perm anece no centro, é de te r ­m inado pelo fato de que ela é um a existência hum ana , re ­alizada e cum prida não apenas den tro do seu p róprio referencial e com seu próprio significado em si mesm o, mas para todos os outros. Neste ho m em único D eus vê todo hom em , todos nós, com o se através de u m espelho. Através deste meio, através deste M ediador som os c o n h e ­cidos e vistos po r Deus. Desta forma, podem os e devería­mos en tender a nós mesm os como hom ens vistos p o r Deus nele, neste hom em , como hom ens feitos conhecidos para ele. Ante seus olhos na eternidade D eus m a n têm os hom ens, cada hom em , nele, neste Unigénito; e não ape­nas diante dos seus olhos, mas am ados e eleitos e ch am a­dos e feitos sua possessão. Nele, desde a e ternidade, ele se am algam ou a si m esm o a cada hom em , a todos os h o ­mens, ao longo de todo o espectro que abrange o ser c r i­ado com o hom em , através da miséria h u m a n a até a glória p rom etida ao hom em . Tudo que se refere a nós é decidido nele, neste único hom em . É à sem elhança deste Único, à sem elhança de Deus, após a qual o h o m e m foi criado ho-

128 - Esboço de um a Dogm ática

m em . Este Ú nico em sua hum ilhação carrega o pecado, a perversidade, a estupidez, o so frim ento e a m o rte de t o ­dos. A glória deste Único é a glória que foi in tencionada para todos nós. Para nós sua in tenção é que po d em o s servi-lo em eterna justiça, inocência e bem -aven tu rança , u m a vez que ele ressuscitou, vive e governa na etern idade. Assim é a sabedoria da dispensação de Deus, esta coesão de cada h o m e m e todos os hom ens com o Único; esta é, visto assim para falar de cima, a base do senho rio de Cristo.

E agora a m esm a coisa vista do lado do hom em . U m a vez que esta d ispensação de Deus existe, u m a vez que in iciam os nesta coesão, um a vez que Jesus C risto é o único h o m e m e perm anece d iante de D eus em nosso fa­vor, e nós nele som os am ados, sustentados, conduzidos e gerados p o r Deus, som os p ropriedade de Jesus Cristo, po r obrigação estam os ligados nele, este P roprietário . O b ­serve bem que esta nom eação de nós para ser sua p ro p r i ­edade, esta conexão de nós para ele não possui em p rim eira instância algo com o um a m oral ou m esm o u m a qualidade religiosa, mas ela repousa sobre u m estado de obrigações, sobre um a ordem objetiva. O elem ento m oral e religioso é a cura posterior. Evidentem ente, o resultado necessariam ente tam bém incluirá um elem ento de m o ra ­lidade e religião. Porém, no p rim eiro caso o fato é s im ­plesm ente que pertencem os a ele. Em v ir tude da dispensação de D eus o h o m e m é p ropriedade de Cristo, não apesar de, mas na sua liberdade. Pois assim com o o h o m e m conhece e vive sua liberdade, ele vive na l iber­dade que lhe é oferecida e criada para ele pelo fato de que Cristo in tercede po r ele na presença de Deus. Esta é a g rande boa ação de Deus, anunciada nisto, que Jesus Cristo é o Senhor. É a d iv indade desta boa ação, a d iv in ­dade da m isericórd ia eterna que, antes de existirm os ou

Nosso Senhor - 129

pensarm os nele, fomos buscados e achados nele. N esta m isericórd ia divina que tam bém é para nós a base do se­nhorio de Cristo e que nos libera de todos os outros se­nhorios. É esta misericórdia divina que exclui o direito de todos os outros senhores falarem e to rna impossível es ta­belecer outra autoridade ao lado desta au to ridade e outro senhor ao lado deste Senhor, e ouvi-lo. É esta e te rna m i­sericórdia, na qual esta dispensação sobre nós está inc lu ­ída, que to rna impossível recorrer ao passado o Senhor Jesus Cristo para outro senhor e contar mais u m a vez com o destino, história ou natureza, com o se fossem estas coisas que, na verdade, tivessem nos dom inado . U m a vez que vimos que a potestas de Cristo está baseada na m ise­ricórdia de Deus, bondade e amor, som ente então a b a n ­donam os todas as reservas. Então a divisão entre a esfera religiosa e outras esferas cessa. Cessamos de separar entre corpo e alma, entre serviço de Deus e política. Todas estas separações cessam, pois o hom em é um , e com o tal está sujeito ao senhorio de Cristo.

A com unidade sabe que Jesus Cristo é nosso Se­nhor, isto é conhecido na igreja. Mas a verdade “nosso Se­n h o r” não depende do nosso conhec im ento ou reconhecim ento , ou da existência de um a congregação onde ela é en tend ida e tem sua expressão; é po rque Jesus Cristo é nosso Senhor que ele pode ser conhecido e p ro ­clam ado com o tal. Mas n inguém conhece com o u m a o b ­viedade que todos os hom ens têm seu Senhor nele. Este conhec im ento é um a questão da nossa eleição e cham ado, u m a questão da com unidade reunida jun to pela sua Pala­vra, um a questão da Igreja.

Citei a exposição de Lutero do segundo artigo. A l­guém poderia objetar esta exposição, onde Lutero faz do “nosso” Senhor um “m eu” Senhor. Evidentem ente, não me aventuraria a fazer disto um a acusação con tra Lutero;

130 - Esboço de uma Dogmática

pois esta concentração de Lutero sobre a exposição in d i­vidual adqu ire u m a urgência e u m peso ex traord inário . “M eu Senhor!” - através desta confissão o todo alcança u m a realidade e existencialidade fantásticas. Mas não d e ­vem os p e rde r de vista o fato de que, em concordância com a expressão aceita do Novo Testamento, a Confissão diz, “nosso S en h o r”. D a m esm a form a que na O ração do Senhor, o ram os no plural, não com o u m a m ultidão , mas em com panheir ism o. A confissão “nosso Senhor” é a c o n ­fissão daqueles que são cham ados em sua congregação para serem irm ãos e irmãs, com a com issão geral para e n ­fren tar o m undo . São aqueles que conhecem e confessam Jesus Cristo com o a pessoa que ele é. Eles o cham am “nosso” Senhor. Mas u m a vez que estam os cientes de que existe tal lugar de conhec im ento e confissão, devem os olhar mais u m a vez para fora, para a cena completa; e não devem os considerar o “nosso Senhor” em qualquer se n ­tido lim itado, com o se a congregação dos cristãos tivesse seu Senhor em Jesus Cristo, mas outras assembléias e co ­m unidades tivessem outros senhores. O N ovo Testa­m en to não deixa dúvidas para o fato de que existe apenas u m Senhor e este Senhor é o Senhor do m undo , Jesus Cristo. É isto que a com unidade tem de pregar para o m undo . A verdade e realidade da Igreja pertence ao te r ­ceiro artigo. Mas este tanto pode ser dito aqui, que a c o ­m u n id ad e de Jesus Cristo não é a realidade que existe po r si m esm a; ela existe po rque tem um a comissão. O que ela conhece ela tem de dizer ao m undo . “Deixe sua luz b r i ­lhar d iante dos h o m e n s” (Mt 5.16). Fazendo isto, sendo com o era desde o princípio, a única e viva advertência con tra o m undo , a proclam ação da existência do Senhor, dessa fo rm a não levantando falsos reclam os para si m esm a, po r sua fé ou seu conhecim ento . Não, Jesus Cristo é o Senhor.

Nosso Senhor - 131

Entretanto, aqui tam bém o C redo de Nicéia tem feito pouco progresso com parado com o C redo dos A pós­tolos - assim cham ado, unicum dom inum , o sole Senhor. Expressar e proclam ar isto é a comissão da Igreja. Entre os cristãos e na congregação devemos considerar o que é cham ado o “m u n d o ”, como a priori nada mais do que o dom ínio, do que aqueles homens, que devem ouvir isto mesm o, e além disso, de nós. Tudo o mais que concebe­m os que conhecem os sobre o m undo , todas as m an ifes ta ­ções de incredulidade são proposições secundárias e não nos p reocupam fundam entalm ente . O que interessa e nos p reocupa com o cristãos não é que o m u n d o está onde nós estamos, que ele fecha seu coração e cabeça à fé, mas s im ­plesm ente isso, que estes hom ens são pessoas que devem ouvir de nós, para quem nós podem os p roc lam ar o Se­nhor.

Neste pon to eu gostaria, a propósito, de responder a pergun ta que se m e tem colocado várias vezes duran te es­tas semanas: “Você não está ciente de que há m uitos dos que estão sentados nesta classe que não são cristãos?” Sempre sorrio e digo: “Isto não faz n e n h u m a diferença para m im ”. Deveria ser com pletam ente tem eroso se a fé dos cristãos objetivasse a separação e separasse uns dos outros. Ela é, na verdade, o motivo mais forte para reun ir hom ens e ligá-los todos juntos. E o que os liga, s im ples­m ente e desafiadoramente, ao m esm o tem po, a com issão que a com unidade tem para proclam ar sua m ensagem . Se considerarm os a questão mais um a vez do pon to de vista da com unidade, isto é, do ponto de vista daqueles que se­riam ente desejam ser cristãos - “Senhor, eu creio: ajuda- me na m inha descrença!” (Mc 9.24) - devem os lem brar que tudo dependerá não de o cristão p in tar para o não- cristão em palavra e ação um quadro do Senhor ou vima idéia de Cristo, mas sobre seu sucesso em, com suas pa la ­

132 - Esboço de um a Dogmática

vras h u m an as e idéias, apon tar o p róprio Cristo. Pois esta não é a concepção dele, não o dogm a de Cristo que é o Senhor verdadeiro, mas ele que é confirm ado na palavra dos Apóstolos. Diga-se a todos os que se cons ideram crentes: Q ue nos seja concedida não fu n d am e n ta r u m a im agem, qu an d o falamos de Cristo, u m ídolo cristão, mas em toda nossa fraqueza apontar Aquele que é o Senhor e assim, no p o d e r da sua D ivindade, a soberana decisão so ­bre a existência de todo hom em .

O Mistério e o Milagre do Natal

A verdade da concepção de Jesus Cristo pelo Espírito Santo e seu nascimento da Virgem M aria nos conduz à verdadeira Encarnação do verdadeiro Deus,

realizada na sua manifestação histórica, e lembra a fo rm a

especial através da qual este início do ato divino da graça e revelação, que

aconteceu em Jesus Cristo, fo i distinguido de outros acontecimentos humanos.

Chegam os agora a um dos pontos, e talvez, na ve r­dade, ao ponto, no qual sempre, e até m esm o em larga es­cala na com unidade cristã, som os insultados. Talvez seja a sua experiência tam bém , um a vez que esteve p ron to a seguir a explanação até aqui, em bora ocasionalm ente constrangido quanto a saber onde isto nos levará; você é levado ao assunto repentinam ente pelo que está para vir agora - e que não é m inha invenção, mas a Confissão da Igreja! Não vam os ficar apreensivos, mas tendo cam i­n hado até aqui em paz relativa, querem os abordar esta se­ção da m esm a forma, pacificamente e objetivam ente, a seção “concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem M aria”. Aqui tam bém nosso interesse deve ser s im ples­

134 - F.sboço de uma Dogmática

m ente a verdade; mas tam bém devem os nos aprox im ar com m uita reverência, para que as questões que nos de i­xam apreensivos, com o “devemos acreditar nisto?”, não seja a últim a, mas que talvez m esm o aqui possam os res­p o n d e r u m “Sim” com m uita alegria.

Temos de tra ta r com o início de u m a série com pleta de p ronunc iam en tos sobre Jesus Cristo. O que estivemos ouv indo até agora foi a descrição de u m sujeito. Todavia, agora ouvim os u m a quan tidade de definições - conce­bido, nascido, padecido, crucificado, sepultado, desceu, subiu novam ente , assentou-se à direita de Deus, p o r esta razão ele voltará... que descrevem u m a ação ou u m evento. Estam os interessados com a h is tória de u m a vida, com eçando com geração e nascim ento com o qualquer vida hum ana; u m a vida inteira notavelm ente co m p rim id a em u m a pequena palavra “padeceu”, u m a h is tória de p a i­xão e, f inalm ente, a confirm ação divina desta vida em sua Ressurreição, sua Ascensão e ainda a conclusão fo rm id á ­vel que, devido a tudo isso, ele voltará para ju lgar os vivos e os m ortos. Ele, que vive e age, é Jesus Cristo, o Filho de Deus, nosso Senhor.

Se qu iserm os en tender o significado de “concebido pelo Espírito Santo e nascido da Virgem M aria”, sob re­tudo devem os ten ta r ver que estas duas declarações fo r­midáveis asseguram que o Deus da livre graça to rnou -se hom em , um h o m e m real. A Palavra e terna se fez carne. Este é o milagre da existência de Jesus Cristo, a v inda do D eus dos altos céus até nós - o Espírito Santo e a Virgem M aria. Este é o m istério da Natividade, da Encarnação. N esta parte, a Confissão da Igreja Católica faz o sinal da cruz. E nos m ais variados cenários, com positores têm re ­p roduz ido este et incanatus est. Este m ilagre celebram os anualm ente , q uando celebramos o Natal.

O Mistério c o Milagre do Natal - 135

Se este milagre devo compreender

Então permaneça reverente meu espírito

Tal in nuce é a revelação de Deus; podem os apenas com preendê-la , som ente ouvi-la com o início de todas as coisas.

Porém não há nenhum a dúvida aqui sobre a c o n ­cepção e o nascim ento em geral, mas de u m a concepção e nascim entos específicos. Por que concebido pelo Espírito Santo e porque nascido da Virgem Maria? Por que este milagre especial que se pretende expresso na Encarnação? Por que o milagre da Natividade anda lado a lado com o m istério da Encarnação? Um a declaração noética é co lo­cada, po r assim dizer, ao lado de um a declaração o n to ló ­gica. Se na Encarnação tratam os com o e lem ento em si, aqui tra tam os com o símbolo. Os dois não p o d em ser confundidos. O elemento envolvido na N atividade é v e r ­dadeiro por si mesmo. Contudo, ele é relem brado, ex­posto no milagre do Natal. Porém, seria injusto concluir que, em bora “apenas” um símbolo esteja envolvido, isto signifique que se possa subtraí-lo do mistério. Deixe-m e alertá-lo contra isto. É raro na vida ser capaz de separar form a e conteúdo.

“Verdadeiro Deus e verdadeiro h o m e m ”. Se cons ide­rarm os em prim eiro lugar esta verdade cristã básica à luz de “concebido pelo Espírito Santo”, a verdade evidente é que o hom em Jesus Cristo simplesmente tem sua origem em Deus, isto é, ele deve sua origem na história ao fato de que Deus em pessoa tornou-se hom em . Isto significa que Jesus Cristo é, na verdade, hom em , verdadeiro hom em , mas ele não é apenas um hom em , não som ente u m dom ex traord inário ou um hom em especialm ente orientado, para não dizer u m super-hom em ; mas, enquan to hom em ,

136 - Esboço de um a Dogmática

ele é o p róp rio Deus. D eus é um com ele. Sua existência com eça com a ação especial de Deus; com o h o m e m ele está fu n d am e n tad o em Deus, ele é verdadeiro Deus. O su ­jeito da h is tória de Jesus Cristo é, portan to , o p róprio Deus, tão verdadeiro quanto é um h o m e m que vive, sofre e age. Tão seguram ente quanto está envolvida nesta vida, da m esm a fo rm a esta iniciativa h u m a n a tem seus fu n d a ­m entos no fato de que nele e através dele D eus to m o u a iniciativa. Deste pon to de vista não p o d em o s deixar de dizer que a E ncarnação de Jesus Cristo é análoga à c r ia ­ção. Mais u m a vez D eus age com o criador, m as agora não com o o C riado r a p a r t i r do nada; pelo contrário , Deus aden tra a criação e cria jun tam en te com ela u m novo co ­meço, u m novo com eço na história e, além do mais, na h istória de Israel. Na con tinu idade da h is tória h u m a n a um po n to se to rn a visível no qual o P róprio D eus apressa- se ao encon tro da cria tura e se to rn a um com ela. D eus se fez hom em . D esta form a esta h istória começa.

Agora, tem os de virar a página e nos achegar à se ­gunda declaração expressa relacionada a isto, qu an d o d i­zemos “nascido da Virgem M aria”. O fato realçado é que estam os na terra. H á u m a criança hum ana , a V irgem M a ­ria; assim com o enviado por Deus, Jesus ta m b é m veio deste ser hum ano . D eus deu-se a si m esm o u m a origem h u m a n a terrena, este é o significado de “nascido da Vir­gem M aria”. Jesus Cristo não é “apenas” o verdadeiro Deus; isto não seria encarnação verdadeira - n em é ele um ser in term ediário ; ele é u m h o m e m com o todos nós, um h o m e m sem restrição. Ele não apenas se assem elha conosco; ele é o m esm o que nós. C om o D eus é o sujeito na vida de Jesus Cristo, assim o h o m e m é o sujeito nesta história, porém , não no sentido de u m sujeito sendo in ­fluenciado, mas de um h o m e m que está na ação. O h o ­m em não se to rn a um m arionete neste encon tro com

O Mistério e o Milagre do Natal - 137

Deus, mas se há hum anidade genuína, aqui está, onde o p róprio Deus se fez hom em .

Isto configuraria o círculo que pode ser visto aqui; isto é, a verdadeira divindade e verdadeira h u m a n id ad e em com pleta unidade. No Concílio de Calcedônia, em 451, a Igreja ten tou cercar esta un idade con tra todos os equívocos; con tra a unificação monofisista, que resultou do assim cham ado docetismo, que estava fu n d am e n ta l­m ente desapercebido de qualquer h u m an id ad e v e rda ­deira em Cristo - Deus se fez h o m e m apenas aparentem ente - e contra a tentativa nestoriana de a u ­m en ta r a distância entre Deus e hom em , que queria s im ­plesm ente separar, e segundo a qual a d iv indade de Cristo pode ser considerada a todo instante com o separada da sua hum anidade . Além disto, esta dou tr ina re tom a u m erro mais antigo, aquele dos assim cham ados ebionitas. A partir destes ebionitas o cam inho conduz aos arianos que desejaram en tender Cristo simplesmente com o u m a cria ­tu ra especialm ente exaltada. O Concílio de C alcedônia form ulou a tese de que a un idade é “sem confusão, sem m udança, sem divisão, sem separação”. Talvez você esteja inclinado a descrever isto como “teólogos abandonados” ou com o “escaramuças de clérigos”. Todavia, em todas es­tas disputas a preocupação nunca foi deixar o m istério de lado, com o se quiséssemos por esta fórm ula resolver a questão racionalm ente; mas os prim eiros esforços da Igreja eram - e isto que a to rna digna de nossa atenção - conduzir os olhos dos cristãos de um a form a adequada a este mistério. Todas as outras tentativas foram tentativas para solucionar o mistério dentro de um a capacidade de com preensão hum ana. O próprio Deus e o h o m e m m iste­rioso, isto podia ser entendido; até m esm o a única co inci­dência deste Deus e deste hom em na form a de Jesus poderia ser explicada. Mas estas teorias, con tra as quais a

138 - Esboço dc um a Dogmática

igreja p rim itiva se voltou, não a ten tam para o mistério. Mas a o r todox ia p rim itiva estava in teressada em u n ir h o ­m ens sobre este centro, e ao h o m e m que recusasse acred i­tar deveria ser ignorado; mas nada deve ser d ilu ído aqui; este sal não deve perder seu sabor. Eis a razão da g rande aplicação de esforços pelos prim eiros concílios e teólogos. Há u m a grosseria de nossa parte, nos dias de hoje, com o resultado de u m a intelectualidade de a lgum a form a b á r ­bara, dizer que eles foram “m uito longe” naqueles dias, ao invés de serm os gratos pelo traba lho fu n d am en ta l que então realizaram. Você não precisa, ev identem ente, subir ao púlpito e recitar esta fórmula; mas você deveria assu­m ir a questão com o absolutam ente fundam enta l . A cris­tandade tem visto e estabelecido o que está envolvido no milagre da Natividade, ou seja, a unio hypostatica, a u n i ­dade genu ína do verdadeiro Deus e do verdade iro h o ­m em no único Jesus Cristo. E som os convidados a nos agarrar a isto.

C ertam ente , todos vocês agora observam que, n es ­tas expressões “concebido pelo Espírito Santo” e “nascido da Virgem M aria”, algo especial a inda está sendo m an ifes­tado. A declaração é de um a procriação e de u m nasc i­m en to raros. A isto dá-se o nom e de nativitas Jesu Christi. U m milagre leva ao m istério da verdadeira d iv indade e da verdadeira hum an idade , o milagre desta p rocriação e deste nascim ento .

O que se quer dizer com “concebido pelo Espírito Santo?” N ão significa que o Espírito Santo é su p o s ta ­m ente o pai de Jesus Cristo; em sentido restrito, apenas a negação está declarada através dela, de que o h o m e m Je­sus Cristo não tem pai. Em sua procriação não acontece o início da existência hum ana, mas sua h u m a n a existência inicia na liberdade do p róprio Deus, na liberdade na qual o Pai e Filho são u m na ligação do amor, no Espírito

O Mistério c o Milagre do Natal - 139

Santo. Assim, quando olhamos para o início da existência de Jesus, na verdade estamos o lhando para o p ro fundo da Divindade, na qual o Pai e Filho são um. Esta é a liber­dade da vida mais ín tim a de Deus, e nesta liberdade a existência deste hom em começa em 1 a. C. Por este aco n ­tecim ento, pelo próprio Deus m uito concre tam ente in i­ciar neste pon to consigo mesmo, este h o m e m que de si m esm o não estava capacitado ou propenso, pode não apenas proc lam ar a Palavra de Deus, mas por si m esm o ser a Palavra de Deus. No meio da velha h um an idade , a nova se inicia. Este é o milagre do Natal, o milagre da p rocriação de Jesus Cristo sem um pai. Isto não tem nada que ver com os mitos narrados em diversos lugares na h istória da religião, mitos de procriação de hom ens por deuses. N ão tem os nada que ver com este tipo de p ro c r ia ­ção. O p róprio Deus assumiu-se com o C riador e não com o um parceiro desta Virgem. A arte cristã de tem pos mais rem otos ten tou reproduzir este fato, isto é, de que não havia n en h u m a questão de u m evento sexual. E tem sido b em confirm ado que esta procriação se concretizou especialm ente pelo ouvido de Maria, que ouviu a Palavra de Deus.

“N ascido da Virgem M aria”. Mais u m a vez e agora de um ponto de vista hum ano, o m acho é excluído. O m a ­cho não teve n en h u m a participação neste nascim ento . O que está envolvido aqui, se você preferir, é o ato divino de julgamento. Para o que agora se inicia, o h o m e m em nada contribuiu através da sua ação e iniciativa. O h o m e m não está s im plesm ente excluído, pois a Virgem está presente. Mas o macho, com o agente específico da ação h u m a n a na história, com sua responsabilidade no d irec ionam en to da espécie hum ana, deve agora retirar-se para segundo plano, com a im potente figura de José. Esta é a resposta cristã à questão da mulher: aqui, a m ulher p e rm anece ab ­

140 - Esboço dc uma Dogm ática

so lu tam ente em p rim eiro plano, além disso, virgo, a V ir­gem M aria. D eus não escolheu o h o m e m em seu o rgulho e em sua rebeldia, mas o hom em em sua fraqueza e h u ­m ildade, não o h o m e m em seu papel histórico, m as o h o ­m em na fraqueza de sua natureza assim rep resen tada pela m ulher, a c ria tu ra h u m a n a que pode co n fron ta r Deus apenas em palavras, “Sou serva do Senhor; que aconteça com igo confo rm e a tua palavra” (Lc 1.38). Esta é a c o o p e ­ração h u m a n a nesta questão, isto e apenas isto! N ão deve­m os pensar no m érito da existência desta serva nem ten ta r m ais u m a vez a tribu ir po d er à criatura. M as D eus tem visto o h o m e m em sua fraqueza e em sua hum ildade , assim com o M aria expressou o que som ente a criação pode expressar em seu encontro. Assim M aria o fez e as­sim, portan to , a cria tura diz “Sim” para Deus, com o parte da g rande aceitação que chega ao h o m e m da par te de Deus.

O m ilagre do Natal é a form a atual do m istério da união pessoal de Deus com o hom em , a unio hypostatica. Repetidas vezes a igreja cristã e sua teologia tem insistido que não devem os postu la r que a realidade da Encarnação, o m istério do Natal, t inha que, po r absoluta necessidade, to m ar a fo rm a deste milagre. A verdadeira D iv indade e a verdadeira h u m a n id ad e de Jesus Cristo em sua un idade não d ep en d e m do fato de Cristo ter sido concebido pelo Espírito Santo e nascido da Virgem M aria. Tudo o que podem os dizer é que foi do agrado de D eus deixar o m is ­tério real e to rnar-se manifesto em sua forma. N o v a­mente, isto não pode significar que con tra esta form a fatual do milagre estam os com o que livres para afirm á-lo ou não, sub tra ir algo e dizer que tem os ouvido, m as que tem os reservas, que esta questão pode estar em ou tra form a para nós. Talvez en tendam os m elho r a relação da questão e forma, que está presente aqui, d an d o u m a

O Mistério e o Milagre do Natal - 141

olhada na história, familiar a todos, da cura do paralítico: “Mas, para que vocês saibam que o Filho do h o m e m tem na te rra au toridade para perdoar pecados... Levante-se, pegue a sua m aca e vá para casa” (Mc 2.10, 11). “Para que vocês saibam...”; desta form a o milagre do nascim ento virginal deve ser tam bém entendido. O que está em ques­tão é o m istério da Encarnação como a form a visível do milagre. E ntenderíam os mal Marcos 2, se qu iserm os in ­te rp re tar em sua leitura que o milagre principal foi o p e r ­dão dos pecados e o milagre corporal apenas um incidente. U m a coisa obviamente pertence necessaria­m ente à outra. Da m esm a form a deveríam os dar um alerta, tam bém , contra considerar o milagre da nativitas à parte, e aderir ao mistério como tal. U m a coisa deve ser dita definitivamente, que, toda vez que as pessoas querem fugir do milagre, um a teologia vem com o ajuda, que ces­sou de en tender e tam bém de hon ra r o mistério, e tem, pelo contrário, se esforçado em exorcizar o m istério da un idade de Deus e hom em em Jesus Cristo, o m istério da graça livre de Deus. Por outro lado, onde este m istério se faz en tend ido e onde os hom ens evitam qualquer te n ta ­tiva da teologia natural, um a vez que eles não têm neces­sidade dela, o milagre chega para ser graciosam ente e a legrem ente reconhecido. Ele se torna, podem os dizer, u m a necessidade in terna neste ponto.

Sofreu.

A vida de Jesus Cristo não é um triunfo, mas um a Jiumi- Ihação, não um sucesso, mas um a falha, não um a

alegria, mas sofrimento. Por esta mesma razão ela revela a rebelião dos homens

contra Deus e a ira de Deus contra o homem, que se segue

necessariamente; mas ela tam bém revela a misericórdia na qual Deus se

envolveu nos negócios próprios do hom em e conseqüentemente em sua humilhação, fa lha e sofri­

mento, para que, dessa form a, não necessitassem ser mais da alçada do homem.

No Catecismo de Calvino podem os nesta passagem ler a ex traord inária conclusão que na Confissão a vida de Jesus é ignorada até a Paixão, porque o que aconteceu nesta vida até à Paixão não pertence à “substância da nossa redenção”. Tomo a liberdade de dizer que aqui C a l­vino está errado. Com o pode alguém dizer que o resto da vida de Jesus não é substancialm ente para nossa re d e n ­ção? Neste caso qual seria seu significado? U m a narrativa m eram en te supérflua? Penso que está envolvido na vida completa de Jesus algo que recebe seu início no artigo “ele

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padeceu”. Em Calvino temos um exem plo prazeroso ante os nossos olhos, de alunos de um grande m estre sem pre vendo m e lh o r do que ele; pois no Catecism o de Heidel- berg, com posto pelos discípulos de Calvino, O levian e Ursino, a Q uestão 37 pergunta: “O que tu en tendes pela p equena palavra ‘sofrer’?” “Q ue ele durante todo o tempo da sua vida na terra, mas especialm ente ao fim disso, ca r­regou em seu corpo e a lm a a ira de D eus con tra o pecado de toda a raça h u m a n a”. A favor da visão de Calvino pode, claro, ser aduzido que Paulo, e as epístolas do Novo Testa­m en to em geral, ra ram en te referem -se a esse “todo o tem po” da vida de Cristo, e que os apóstolos tam bém , se­gu ndo Atos, parecem ter m ostrado consideravelm ente pouco interesse na questão. Para eles, aparen tem ente , apenas u m a coisa sobressaia, que, tra ído pelos judeus, ele estava liberado para os gentios, foi crucificado e ressurgiu da m orte . Mas se os cristãos da igreja p rim itiva estavam com seu o lhar tão com pletam ente concen trado no C ru c i­ficado e Ressurreto, isto não é para ser to m ad o com o ex­clusividade, mas de form a inclusiva. O fato de que Cristo m o rreu e ressurgiu é um a redução da vida completa de Je­sus; mas nisto devem os tam bém ver seu desenvolvi­mento. A vida com pleta de Jesus vem sob o títuloc< i >>

pclClCCCU .

Este é u m fato ex trem am ente su rp reenden te , para o qual não tem os sido p reparados d ire tam en te pelo que tem sido dito. Jesus Cristo, o Filho único de Deus, nosso Senhor, concebido pelo Espírito Santo, nascido da Virgem M aria, verdadeiro Filho de Deus e verdadeiro filho do h o ­m em - qual a relação destas coisas com o desd o b ram en to de toda a sua vida sob o signo de que ele “p adeceu”? P od í­am os esperar algo diferente, algo resplandecente , t r iu n ­fante, b em sucedido, jubiloso. De qualquer forma, não ouvim os u m a palavra disso, mas, p red o m in an te na p len i­

Sofreu... - 145

tude de sua vida, a asserção de que “ele padeceu”. Na ve r­dade, é a últim a palavra? Não podem os negligenciar com o esta vida com pleta term ina: no terceiro dia ele res­surge da m orte. Assim, a vida de Jesus não é com ple ta ­m ente desprovida de um sinal da alegria v in d o u ra e da vitória v indoura. Não sem motivo tanto é dito sobre g lo­rificação e, não sem motivo há a figura da alegria do casa­m ento tantas vezes m encionada. Em bora, certam ente, não é sem adm iração que várias vezes ouvim os Jesus ch o ­rando, mas nunca que ele riu, e há ainda para ser dito que con tinuam ente através do seu sofrim ento houve u m a es­pécie de centelha de alegria na natureza à sua volta, em crianças e, sobretudo, de alegria em sua existência e em sua missão. O uvim os mais um a vez que é dito que ele se regozijou sobre o fato de que Deus havia ocu ltado este co ­nhecim ento do sábio, mas revelado aos ingênuos. Assim nos milagres de Jesus há triunfo e alegria. C ura e alegria aqui ir rom pem na vida dos homens. Parece que se to rn o u visível quem está agindo. Na história da Transfiguração, na qual é relatado que os discípulos v iram as vestes de Je­sus mais alvas do que a neve, o que na te rra é perfe ita­m ente possível, este outro algo, a questão da sua vida - podem os tam bém dizer, seu início e origem - se to rn am visíveis po r antecipação. Bengel está indubitavelm ente certo quando diz dos Evangelhos antes da Ressurreição que podem os dizer de todas estas histórias de Jesus que eles spirant resurrectionem. Mas, mais do que isso, não podem os, na verdade, dizer. Há um a fragrância do início e do fim, um a fragrância de D ivindade tr iun fan te que está na ação.

Mas o tem po presente da sua vida está, na verdade, sofrendo desde o início. N ão há dúvida de que para os evangelistas Lucas e Mateus a infância de Jesus, seu nasc i­m en to e a m an jedoura em Belém, já estavam sob o signo

146 - Esboço dc um a Dogm ática

do sofrim ento . Este h o m e m é perseguido to d a sua vida, um es tranho para sua p rópria família - que declarações chocantes ele profere! - e para sua nação; u m es tranho nas esferas do Estado, da Igreja e da civilização. Q ue ca­m inhos de incom preensão ele trilhou! Em que com pleta solidão e ten tação ele perm aneceu entre os hom ens, os lí­deres da sua nação, até m esm o con fron tando as massas do povo e no p róp rio círculo dos seus discípulos! Neste círculo estreitíssim o ele encon trou seu tra idor; e no h o ­m em ao qual ele diz: “Tu és a Rocha...” o h o m e m que o negou três vezes. Finalm ente, é aos discípulos de q u em se é dito que “todos o abandonaram ” e o povo clam a em coro: “Fora com ele! Crucifica-o” A vida com pleta de Je­sus é vivida nesta solidão e, assim, já na som bra da cruz. E se a luz da ressurreição ilum ina aqui e ali, isto é u m a ex­ceção que com prova a regra. O filho do h o m e m deve su ­b ir a Jerusalém, lá deve ser condenado, to r tu ra d o e crucificado - ressurgir novam ente no terceiro dia. Mas p rim eiro é este d om inan te “deve” que o leva à m orte .

O que isto significa? N ão é o oposto do que p o d e ­m os esperar das novas de que Deus se fez H om em ? Aqui há sofrim ento . O bserve que é aqui pela p r im eira vez na Confissão que o g rande prob lem a do m al e sofr im ento encon tra -nos d iretam ente. Já nos referim os claram ente com freqüência a isso. Mas segundo a carta esta é a p r i ­m eira vez que tem os u m a indicação do fato de que na re ­lação C riado r e c ria tu ra tudo não é o m elhor, que a ilegalidade e a destru ição dom inam , que do r é ac rescen­tada ao sofrim ento . Aqui, pela p rim eira vez, o lado s o m ­brio da existência pene tra em nosso cam po de visão, e não no p r im eiro artigo, que fala de D eus o Criador. N ão na descrição da criação com o céu e terra , m as aqui na descrição da existência do C riador que se to rn o u criatura, o m al aparece; aqui a d istante m orte se to rn a visível. O

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fato de que isto é assim, no m ínim o, significa isto: que a discrição é exigida em todas as descrições da fraqueza e do mal com o sendo, em alguma m edida, independentes. Q u an d o isto foi realizado mais tarde, foi relativamente negligenciado que tudo isto entra em cam po un icam ente em conexão com Jesus Cristo. Ele sofreu, ele deixou visí­vel o que é a natureza do mal, da revolta do h o m e m c o n ­tra Deus. O que conhecem os do mal e do pecado? O que sabem os do que é cham ado sofrimento, ou o que significa a m orte? Aqui conseguim os entendê-lo. Aqui aparece esta treva com pleta em sua realidade e verdade. Aqui as quei­xas são destacadas e punidas, aqui a relação en tre D eus e o h o m e m é, na verdade, clarificada. O que são todas as nossas visões, o que é tudo o que o h o m e m pensa que sabe sobre sua estupidez e pecam inosidade e sobre o es­tado perd ido do m undo , o que é toda especulação sobre o sofrim ento e m orte confrontado com o que se to rn o u m a ­nifesto aqui? Ele, ele sofreu, aquele que é verdadeiro Deus e verdadeiro hom em . Toda conversa independen te sobre o assunto - isto é, conversa separada dele - necessaria­m ente será inadequada e imperfeita. A m enos que a c o n ­versa sobre esta questão parta do centro, ela será irreal. Q ue o hom em pode suportar os mais terríveis golpes do D estino e atravessar intocado com o quem atravessa um a pancada de chuva, isto pode ser visto p o r nós hoje em dia. Estamos simplesm ente intocados tanto pelo sofrim ento quan to pela p rópria realidade do mal; sabem os disto agora. Portanto, podem os repetidam ente escapar do c o ­nhecim ento da nossa culpa e pecado. Podem os apenas conseguim os u m conhecim ento adequado, q uando co ­nhecem os que ele que é verdadeiro D eus e verdadeiro h o ­m em , padeceu. Em outras palavras, é preciso fé para ver o que é o sofrimento. Aqui houve sofrimento. Tudo o mais que conhecem os com o sofrim ento é so frim ento irreal

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com parado com o que aconteceu aqui. Som ente deste pon to de vista, com parti lhando do sofrim ento que ele so ­freu, p o d em o s reconhecer o fato e a causa do sofr im ento em todo lugar no cosm os criado, secre tam ente e a b e r ta ­mente.

Se o lha rm os para este “ele padeceu”, p o d em o s c o ­m eçar do fato de que ele era Deus que se fez h o m e m em Jesus Cristo, que agora tem de sofrer, não da im perfeição do m u n d o criado, nem p o r qualquer pad rão da natureza, mas de h om ens e de sua atitude para com ele. De Belém à cruz ele foi aban d o n ad o pelo m u n d o que o cercava, re p u ­diado, perseguido, f inalm ente acusado, co n d en ad o e c ru ­cificado. Estes são os ataques dos h om ens sobre ele, sobre o p róprio Deus. Aqui há um a revelação da rebelião do h o m e m con tra Deus. O Filho de Deus é negado e rejei­tado. C om o Filho de D eus os hom ens p o d em apenas fa­zer o que eles fizeram segundo a parábola do viticultor: “Este é o herdeiro. V enham , vam os matá-lo , e a herança será nossa”. Esta é a resposta do h o m e m à graciosa p re ­sença de Deus. Para sua graça, ele não expressa nad a além de u m “N ão” cheio de ódio. É a nação de Israel que rejeita em Jesus seu Messias e Rei. É a nação de Israel que não conhece nada m e lho r a fazer com o Líder p ro m etid o de toda a sua história, à qual ele dá significado, conclui e cum pre, do que entregá-lo, finalmente, aos gentios. A s­sim Israel lidou com seu Salvador. E o m u n d o gentílico na form a de Pilatos pôde, po r sua parte, apenas aceitar esta entrega. Ele executa o ju lgam ento que os judeus p r o n u n ­ciaram, e desta fo rm a partic ipam sem elhan tem en te nesta rebelião con tra Deus. O que Israel faz aqui é a revelação de u m con teúdo que está presente na h istória com pleta de Israel: os hom ens enviados po r D eus não são recebidos com júbilo com o auxiliadores, confortadores e curadores; mas, de Moisés em diante, e aqui mais u m a vez, conclusi-

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vãm ente, eles enfren tam o fato de que o h o m e m diz Não para eles. Este Não toca dire tam ente o p róprio Deus. A s­sim, som ente neste ultimato, a mais ín tim a e d ireta p re ­sença de Deus, que expressa a distância do h o m e m dele, se to rna manifesta. Aqui se to rna manifesto o que é o p e ­cado. Pecado significa rejeitar a graça de D eus com o tal, que nos envolve e está presente em nós. Israel pensa que pode ajudar a si mesmo. Visto deste ponto, devem os dizer que tudo o que pensam os que sabemos com o pecado é in ­significante e casual e um a simples aplicação do pecado original. Da m esm a form a que no Antigo Testam ento to ­dos os m andam en tos não têm nada além do que u m a in ­tenção, a de conduzir o povo de Israel para o pacto da graça de Deus, portan to a transgressão de todos os m a n ­dam entos é perversa e má, porque manifesta o protesto do hom em contra a graça de Deus. O fato de que Jesus, o Filho de Deus sofreu sob os judeus e gentios revela - e so ­m ente ele revela - o mal em sua realidade. Som ente deste pon to podem os com preender o fato, a extensão e o c o n ­teúdo do im pedim ento do hom em , pois, pela p rim eira vez som os aqui desafiados com a raiz de toda g rande e in ­significante transgressão. Enquanto nós, em toda nossa pecam inosidade e nossa culpa m útua em grandes e insig­nificantes formas, não reconhecem os esta raiz e vem os nós m esm os acusados no sofrim ento de Cristo, vem os nós m esm os mais u m a vez nesta rebelião do h o m e m c o n ­tra o p róprio Deus, todo conhecim ento ou reconhec i­m ento de culpa é vã. Pois de todo conhecim ento de culpa além deste conhecim ento, nós podem os nos livrar mais um a vez, com o u m poodle m olhado que se seca b a lan ­çando todo o corpo. Enquanto não v irm os a perversidade em sua natureza real, não estamos presos (m esm o se fa ­larm os com veem ência sobre nossa culpa) à confissão, “pequei con tra os céus e perante ti”. Este “peran te ti” se

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to rna óbvio aqui, e óbvio com o o âm ago e significado de toda culpa individual na qual estam os envolvidos. Esta culpa indiv idual não se torna, portan to , incidental. O que é feito po r hom ens em ações individuais, desde a ação de Pilatos até aquela de Judas, é a rejeição da graça de Deus. Mas o que é feito pelos hom ens adquire sua im portânc ia com pleta do que foi feito para Deus. Pois nosso co n h ec i­m en to com pleto do mal dependerá do nosso reconhec i­m en to de que o h o m e m está sob acusação de ser ofensor con tra Deus. Som ente podem os ver a culpa infin ita n a ­quilo em que perm anecem os con tra Deus; o D eus que se fez hom em . O nde som os culpados com respeito ao h o ­m em , som os au tom aticam ente lem brados deste hom em . Pois cada h o m e m que tem os ofendido e to r tu rad o é u m daqueles que Jesus Cristo cham ou seus irm ãos. Agora, o que tem os feito para ele, tem os feito para Deus.

É verdade que na vida de Jesus e na h is tó ria da sua Paixão é ta m b ém a vida simples de u m h o m e m que se d e ­senrola. Pense nas grandes obras de arte cristãs, da visão de G rünew ald no “Sofredor sobre a C ru z”, até as te n ta t i ­vas m enos talentosas, na obra conhecida “C am in h o s da Paixão”, da p iedade católica? Tudo isto é este h o m e m em seu to rm en to , enquan to ele m ergu lha pelos degraus dos desfiladeiros da tribulação, de ser golpeado e, f inalm ente, de ser m orto . Mas m esm o visto deste aspecto não é ap e ­nas o h o m e m em sua imperfeição que com o u m ser m o r ­tal pode ser a to rm entado , em bora não sendo Deus; pois a figura do Jesus sofredor é a figura daquele co n d en ad o e punido . Desde o início, o que causou o sofr im ento de Je­sus é a ação legal da sua nação, que finalm ente se to rn a com ple tam en te explícita. Eles o vêem com o o suposto Messias que é diferente daquele esperado por eles, con tra cujo clam or eles podem , portan to , apenas protestar. Pense na a titude dos fariseus, ad en trando o Sinédrio: lá

Sofreu... -151

você tem o p ronunciam ento de um veredicto. Este vere­dicto expressa o julgam ento m un d an o executado p o r Pi- latos. Os Evangelhos colocam ênfase precisam ente sobre este ato legal. Jesus é a Pessoa acusada, condenada e p u ­nida. Aqui nesta ação legal é revelada a rebelião do h o ­m em contra Deus.

Mas nisso há tam bém a revelação da ira de Deus con tra o hom em . “Padeceu” é explicado no Catecism o de H eidelberg com o Jesus carregando a ira de Deus po r sua vida inteira. Desta forma, ser um ho m em significa estar diante de Deus e m erecer esta ira. Nesta un idade de Deus e hom em , o ho m em está limitado a ser este condenado e golpeado. O ho m em Jesus em sua un idade com D eus é a figura do hom em golpeado por Deus. M esm o a justiça do m undo , que cum pre este julgamento, o faz pela vontade de Deus. O Filho de Deus se fez ho m em a fim de deixar o hom em ser visto sob a ira de Deus. O Filho do h o m e m deve sofrer, ser entregue e crucificado, diz o Novo Testa­mento. Nesta Paixão a conexão se to rna visível entre a culpa infinita e a reconciliação que necessariam ente se se­gue sobre esta culpa. Torna-se claro que, onde a graça de D eus é rejeitada, o hom em se apressa para a sua p rópria perdição. É aqui, onde o próprio Deus se fez hom em , que a mais p ro funda verdade da vida h u m a n a é manifesta: o sofrim ento total que corresponde ao pecado total.

Ser um hom em significa estar tão s ituado na p re ­sença de Deus com o Jesus está, isto é, ser o p o r tad o r da ira de Deus. Isto nos pertence, e seu fim é a m orte. T oda­via, este não é o final, nem a rebelião do hom em , nem a ira de Deus. Mas o mais profundo m istério de D eus é este, que o p róprio Deus, no h o m e m Jesus, não se esqu i­vou de to m ar o lugar do hom em pecador e de ser (aquele que não conhecia pecado, ele o fez pecado) o que o h o ­m em é, um rebelde, carregando nele o sofrim ento tal

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com o ho m em , para ser ele m esm o o cu lpado com pleto e a reconciliação completa! Foi isto que D eus fez em Jesus Cristo. Isto é, sem dúvida, o elem ento absoluto oculto desta vida, que vê p rim eiro a luz na ressurre ição de Cristo. Mas a paixão de Cristo pode ser e rroneam en te in ­te rpre tada , se não fôssemos além da queixa sobre o h o ­m em e seu destino. N a verdade, o sofr im ento de Cristo não foi exaurido neste desafio de protesto con tra o h o ­m e m e o te rro r d iante da ira de D eus (este é apenas u m lado da Paixão e m esm o o A ntigo Testam ento apon ta além dela). A aliança de paz perm anece ta m b ém acim a desta insurgente e assustadora figura do hom em . D eus é aquele que se fez cu lpado e reconciliação. P ortan to , o li­mite se to rn a visível, ajuda total con tra a culpa total. Esta é a ú lt im a coisa, com o ela tam b ém foi a p rim eira , que D eus está presente e sua b o ndade é infindável. M as o sig­nificado disto pode apenas se to rn a r claro no contexto posterior. D evem os passar para a consideração, que está in terposta n u m a form a extraord inária , quer dizer, “sob Pôncio Pilatos”.

Sob Pôncio Pilatos

Em virtude do nome de Pôncio Pilatos estar conectado com ele, a vida e a paixão de Jesus Cristo é um evento

na mesma história mundial na qual nossa vida também acontece.

E com a cooperação deste estadista ela adquire visivelmente o caráter de um a

ação na qual o compromisso e retidão divinos, assim como a perversão hum ana e a injustiça da ordena­

ção do Estado do que acontece no mundo, se tornaram efetivas e manifestas.

C om o Pôncio Pilatos en trou para o Credo? De certa form a grosseira e sarcástica, a resposta pode ser antes de tudo: com o um cachorro num belo quarto! D a m esm a form a com o a política envolve a vida h u m a n a e depois, de u m a form a ou outra, a vida da Igreja tam bém ! Q u em é Pôncio Pilatos? Na verdade, um a figura desagradável e in ­significante com um caráter detestável. Q u em é Pôncio Pilatos? U m funcionário ex trem am ente subalterno, um a espécie de com andante militar do governo aliado que ocupava o po d er em Jerusalém. O que ele fazia lá? A co ­m un idade judaica local expediu u m a resolução, para a execução da qual não tinha suficiente autoridade. Foi t r a ­

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zida u m a sentença de m orte , que agora deveria ser legali­zada pelo pod er executivo de Pilatos. D epois de algum a hesitação, ele faz o que exigiam dele. U m h o m e m in s ign i­ficante n u m papel com pletam ente externo; pois tu d o que havia de im portan te e espiritual foi exaurido entre Israel e Cristo no S inédrio que o acusa e o rejeita. Pilatos se posta em seu un ifo rm e e é usado, e seu papel não é nad a h o n ­roso; ele reconhece que o ho m em é inocente e m esm o as­sim o en cam in h a para a m orte. Ele era forçado a agir es tr i tam ente segundo a lei, mas não age assim e se deixa d e te rm in a r pelas “considerações políticas”. Ele não se aventura a m an te r a decisão judicial, mas se rende ao cla­m o r p opu la r e entrega Jesus. Ele cum priu a crucificação pelas suas coortes. Q u an d o no meio da Confissão da Igreja Cristã, no m o m en to em que estam os no po n to de en tra rm os na área do mais p ro fundo mistério, tais coisas vêm à mente, e alguém pode até exclamar com o G oethe, “u m negócio sujo! Q ue vergonha! U m a fraude política!” Mas lá está “sob Pôncio Pilatos...”; portan to , devem os p e r ­gun ta r a nós m esm os o que isto significa. A rom ancis ta D oro thy L. Sayers, escreveu vima peça para a rádio inglesa in titu lada The m an born to be King [O h o m e m nascido para ser rei], e nela in terpreta o sonho de Procla, a esposa de Pilatos, onde esta m u lher ouviu n u m sonho, atraves­sando os séculos em cada língua, este m esm o brado: “So­freu sob o p o d e r de Pôncio Pilatos”. C om o pô d e Pôncio Pilatos en tra r para o Credo?

O n o m e em conexão com a Paixão de Cristo deixa inequ ivocam ente claro que esta Paixão de Jesus Cristo, este desvelar da rebelião do h o m e m e da ira de Deus, ape­sar da sua m isericórdia , não aconteceu no céu ou em a l­gum planeta rem oto, ou m esm o em algum m u n d o das idéias; aconteceu em nosso tempo, no centro da h istória m und ia l na qual nossa vida h u m a n a é vivida. Portanto ,

Sob Pôncio Piiatos - 155

não devem os escapar desta vida. Não devem os alçar vôo para u m a te rra melhor, para alguma altura ou ou tro lugar desconhecido, nem para outra Terra do Faz-D e-C onta es­piritual, nem para um conto de fadas cristão. D eus veio para nossa vida em sua mais com pleta am abilidade e te ­mor. Q ue a Palavra se fez carne tam bém significa que ela se to rn o u temporal, histórica. Ela assume a form a que pertence à cria tura hum ana, na qual há pessoas tais com o o p róprio Pôncio Piiatos - o povo ao qual pe r tencem os e que som os nós m esm os em qualquer tem po n u m a escala ligeiram ente grande! Não é necessário fechar nossos olhos para isto, pois Deus tam bém não fechou os seus; ele a assum iu com tudo. A Encarnação da Palavra é u m evento ex trem am ente concreto, no qual u m nom e h u ­m ano pode fazer parte. A Palavra de Deus tem o caráter de hic et nunc. Não há nada da opinião de Lessing de que a Palavra de Deus é um a “verdade eterna da razão”, e não um a “verdade acidental da história”. A história de D eus é, na verdade, u m a verdade acidental da história, com o este insignificante com andante . Deus não se envergonhou de existir neste estado acidental. Aos fatores que d e te rm i­nam nosso tem po hum ano e história hum ana , tam b ém pertencem , em virtude do nom e de Pôncio Piiatos, a vida e Paixão de Jesus. Não somos abandonados neste m u n d o assustador. Neste m u n d o alienado, Deus veio até nós.

Sem dúvida, fica claro que este m esm o fato de que Jesus Cristo sob o poder de Pôncio Piiatos pode apenas sofrer e morrer, caracteriza a história m und ia l com o um fato ex trem am ente questionável. Aqui se to rn a óbvio que tem os a ver com este m undo passageiro, a velha era, o m u n d o cujo representante típico, Pôncio Piiatos, co n ­fronta Jesus em com pleta im potência e desam paro. O p o ­der m und ia l de Roma está exposto, assim com o Piiatos, o tenente do grande senhor em Rom a está exposto. Esta é a

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form a com o a ação política total aparece à luz da ap rox i­m ação do Reino de Deus: tudo d irec ionado para u m r o m ­p im en to e p rev iam ente contraditado. Este é u m lado: este m u n d o no qual Cristo veio, é ilum inado p o r ele em sua com pleta fragilidade e estupidez.

Mas não seria correto para rm os aqui, pois o ep isó ­dio de Pilatos, em todos os quatro Evangelhos, tem ainda m uito mais im portância , para que estejamos satisfeitos com declarações de que Pilatos é apenas u m h o m e m deste m undo . Ele não é apenas isto, mas o estadista e político; p o r tan to , este encontro entre o m u n d o e o Reino de D eus é, na verdade, m uito especial. N ão é u m a questão de e n ­con tro en tre o Reino de Deus e o conhec im en to hum ano , a sociedade hum ana , o traba lho hum ano , mas do e n c o n ­tro entre o Reino de Deus e a polis. Pilatos, assim, rep re ­senta a o rd em que confron ta a ou tra o rdem rep resen tada po r Israel e a Igreja. Ele é o representante do im perad o r Tibério. Ele representa a h istória m undial, no que diz res­peito estar sob as ordens do Estado. Q ue Jesus Cristo so ­freu sob Pôncio Pilatos, significa, portan to , ta m b é m que ele aceitou a o rdem deste Estado. “N ão terias n e n h u m p o ­der sobre m im , se do céu não te fosse dado” (Jo 19.11). Je­sus Cristo estava falando m uito sério q uando disse: “Dai a César o que é de C ésar” (Mt 22.21). Ele deu-lhe o que era dele; ele não atacou a au toridade de Pilatos. Ele sofreu, mas não p ro tes tou con tra Pilatos proferir u m ju lgam en to sobre ele. Em outras palavras, a o rdem do Estado, a polis, é a área na qual sua ação tam bém , a ação da e te rna Pala­vra de Deus, acontece. É a área na qual, segundo a p e r ­cepção h u m a n a , sob a am eaça e aplicação da força física, a decisão é to m ad a quan to ao certo e e rrado na vida ex­te rna dos hom ens. Este é o Estado, isto é o que cham am os política. Tudo o que acontece no dom ín io da política é, de a lgum a form a, u m a aplicação desta tentativa. O que

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acontece no m u n d o é sempre igualm ente o rdenado pelo Estado, em bora , felizmente, não som ente pelo Estado! No meio deste m u n d o de ordenanças do Estado, surge Jesus Cristo. Pelo fato de sofrer sob Pôncio Pilatos, ele tam bém partic ipa desta ordem , portan to é d igno de consideração o que este fato deve significar, como as ordens externas se parecem, com o a realidade total de Pôncio Pilatos parece do pon to de vista do sofrim ento do Senhor.

Este não é o lugar para desenvolver a dou tr in a cristã do Estado, que não é para ser separada da dou tr in a cristã da Igreja. Todavia, um as poucas palavras devem ser ditas aqui, pois neste encontro de Jesus e Pilatos tudo está re u ­nido in nuce , daquilo que seria considerado e dito do lado do Evangelho com relação ao dom ín io da polis.

O rd em do Estado, poder do Estado, com o rep resen ­tado por Pôncio Pilatos vis-à-vis Jesus, to rna-se visível em sua form a negativa, em toda perversão e injustiça h u m a ­nas. A lguém pode, na verdade, dizer que se em algum lu ­gar o Estado é visível como o Estado do erro, esse lugar é aqui; e se em algum lugar o Estado tem sido exposto e sua política provou-se m onstruosa, então mais u m a vez este lugar é aqui. O que fez Pilatos? Ele fez o que políticos fa­zem mais ou m enos sempre, e o que sem pre se identificou com a realização da política em todos os tempos: ele te n ­tou resgatar e m an ter a ordem em Jerusalém e, dessa forma, ao m esm o tem po preservar sua p rópria posição de poder, po r meio de subord inar a clara lei, para a proteção da qual ele estava, na verdade, instalado. E x traord inária contradição! Sua ocupação é decidir sobre o certo e o e r ­rado; esta é sua raison detrê; e a fim de m an te r sua p o s i­ção, “tem endo os judeus”, renuncia a fazer exatam ente o que estava obrigado a fazer: ele cede. Na verdade, ele não condena Jesus - ele não pôde condená-lo, ele não o acha culpado - todavia, ele o entrega. Ao entregar Jesus, ele

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tam b ém está se entregando. Por to rnar-se o p ro tó t ipo de todos os perseguidores da Igreja e pelo que N ero veria nele, pelo Estado injusto que está a tuando aqui, com o um Estado caído em desgraça. Na pessoa de Pilatos o Estado a b an d o n a sua p róp ria base de existência e se transfo rm a em covil de ladrões, u m Estado gângster, o o rd en am en to de u m a cam arilha irresponsável. Isto é a polis, isto é p o lí­tica. É de se ad m ira r que alguém queira tapar o rosto d i ­ante disso? Se o estado tem , duran te anos e décadas se apresentado a si m esm o som ente nesta aparência, não é de se ad m ira r que alguém se canse do d o m ín io com pleto da política? N a verdade o Estado assim observado, o Es­tado após o pad rão de Pilatos, é a polis em sua mais pu ra oposição à Igreja e ao reino de Deus. Este é o Estado com o ele é descrito no Novo Testamento, em Apocalipse 13, com o a Besta do abismo, com a ou tra Besta com o grande focinho que a acom panha, a qual a p r im e ira Besta con tinuam en te glorifica e adora. A paixão de Cristo se to rn a o desm ascaram ento , o ju lgam ento, a condenação desta Besta, cujo nom e é polis.

M as isto não é tudo, e não podem os para r neste ponto. Se Pilatos, antes de tudo, traz à superfície a d e te r i­oração do Estado e, portan to , o Estado injusto, devem os tam b ém não falhar em reconhecer neste espelho côncavo o b o m preceito de D eus que está aqui estabelecido, e m an tém -se , e efetivo, o Estado justo, que é, na verdade, desgraçado pela injustiça das ações hum anas, m as que, tan to quan to a Igreja correta, não p o d e ser com ple ta ­m en te posto de lado, po rque repousa sobre a institu ição e m a n d a to divino. O po d er que Pilatos d em o n s tra não é m enos conced ido a ele po rque ele abusa dele. Jesus o re ­conhece, exatam ente na form a em que mais ad iante Paulo reun ia os cristãos rom anos para reconhecer, m esm o no estado de Nero, a instituição e m anda to divinos, para

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confo rm ar a este m andato e assim renunciar a todo cris ti­anism o não-político, e, particu larm ente , reconhecer sua responsabilidade para a m anutenção do Estado. Q ue a o r ­dem do Estado está correlacionada com o sendo u m a o r ­dem de Deus, está tam bém claro no caso de Pilatos, nisto- enquan to com o um m au estadista ele en tregou Jesus à m orte, ele não pode senão, como u m genuíno estadista, declará-lo inocente. Tam bém se to rn a visível com um a força excepcional, que Pilatos, um m au estadista, tem p o ­der e vontade para fazer exatamente o con trá rio do que com o u m genuíno estadista ele podia ter desejado e feito- libertar Barrabás e levar Jesus à morte, e p o r tan to (quão diferente da form a que lemos em 1 Pedro 2.14!) “h o n ra r os que praticam o mal e pun ir o bem ” - mas, com o resu l­tado (que não o exime, mas justifica a sabedoria de Deus!), ele deve cum prir tam bém a suprem a lei. Q ue Je­sus, o justo, deveria m orre r no lugar do injusto, que c o n ­seqüentem ente este hom em - Barrabás! - deveria ser libertado no lugar de Jesus, foi, na verdade, a vontade de Deus no sofrim ento de Jesus Cristo. E desta fo rm a foi seu sofrim ento sob Pôncio Pilatos, o estadista m au - justo con tra sua vontade. E foi a vontade de D eus no sofri­m ento de Jesus Cristo, que Jesus deveria ser entregue p e ­los judeus para os pagãos, que a Palavra de D eus pode sair do seu estreito dom ínio da nação de Israel para o m u n d o gentio. O gentio que aceita Jesus - desde as m ãos im undas de Judas, dos sum o-sacerdotes e do povo de Je­rusalém, ele p róprio u m hom em com m ãos sujas - este gentio é o estadista perverso, Pôncio Pilatos - justo c o n ­tra sua vontade! N u m certo aspecto, ele ta m b ém é, com o H am an n o cham ou, o executor do Novo Testamento, n um certo sentido o fundador da Igreja de judeus e g en ­tios. Assim, Jesus tr iunfa sobre aquele, sob cujas perversi- dades ele tem de sofrer. Assim, Jesus tr iun fa sob o

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m undo , no qual tr i lhando -o ele tem de sofrer. Assim, ele é o Senhor ta m b ém onde ele é rejeitado pelos hom ens. Assim a p róp ria o rdem política, in d ep en d en tem en te de sua co rrupção através da culpa h u m a n a q u an d o Jesus foi p o r ela subjugado, está destinada a to rn a r claro que está, na verdade, subjugada a ele. Eis po r que os cristãos devem orar pelos governantes. Eis p o r que eles to rn am -se res­ponsáveis p o r sua m anutenção. Eis po r que a tarefa dos cristãos é buscar o m elhor para a cidade, h o n ra r a divina indicação e institu ição do Estado, escolhendo e desejando no m e lho r do seu conhecim ento , não o Estado errado, mas o Estado direito, o Estado que faz do fato de que seu p o d e r vem “de cima”, não u m a vergonha, com o Pilatos, mas u m a honra . E além disto eles estão confiantes de que a lei de D eus na vida política, m esm o onde ela é ignorada pelos h om ens e pisoteada, é a parte mais forte, p o r causa da Paixão de Jesus - o Jesus para quem todo p o d e r no céu e na te rra é dado. A provisão foi feita para que o m al e p e ­queno Pilatos se inquietasse à toa, no final das contas. C om o, neste caso, poderia um cristão to m ar pa r t ido dele?

Foi Crucificado, Morto e Sepultado, Desceu ao Inferno

Na morte de Jesus Cristo, Deus humilhou a si mesmo e en ­tregou a si mesmo, a f i m de cumprir sua lei

sobre todo hom em pecador, assumindo seu lugar e,

assim, de uma vez por todas, removendo do hom em para si mesmo

esta maldição que o afetou, a punição que o hom em merecia, o passado que quer ver corrigido,

o abandono no qual ele caiu.

O m istério da Encarnação se desdobra no mistério da Sexta-feira Santa e da Páscoa. E mais u m a vez é com o a vem os sem pre presente no mistério com pleto da fé, ou seja, de que devemos sem pre ver as duas coisas in terliga­das, devem os sempre entender um a pela outra. Na h is tó ­ria da fé cristã, na verdade, sempre esteve latente que o conhec im ento dos cristãos sempre pendeu mais para um lado do que para outro. Temos isto na decisiva inclinação da Igreja Ocidental em relação à theologia crucis - isto é, u m a tendência em to rnar público o fato de que ele foi e n ­tregue pelas nossas transgressões. E nquan to que a Igreja O rien ta l acentua mais o fato de que ele ressuscitou para nossa justificação, e, portanto , inclina-se para a theologia

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gloriae. N esta questão não há n e n h u m sentido em querer jogar u m a con tra a outra. Você sabe desde o início que Lutero enfatizou a tendência ocidental - não a theologia gloriae, mas a theologia crucis. O que Lutero p re tendeu dizer com isto está certo. Mas não devem os erigir e c o n ­firm ar qualquer oposição; pois não há n e n h u m a theologia crucis que não tenha seu com plem ento na theologia glo­riae. É evidente que não há n e n h u m a Páscoa sem a Sexta- feira da Paixão, mas do m esm o m o d o não há Sexta-feira da Paixão sem a Páscoa! D em asiada tribu lação e sob rie ­dade são facilmente lavradas no cristianism o. Mas se a cruz é a C ruz de Jesus Cristo e não u m a especulação so ­bre a cruz, que qualquer pagão fun d am en ta lm en te t a m ­bém possa tecer, então não pode nem po r u m segundo ser esquecido ou ignorado que o Crucificado ressurgiu da m orte no terceiro dia. Celebrarem os, neste caso, a Sexta- feira da Paixão com pletam ente diferente, e talvez seria desejável não can tar na Sexta-feira da Paixão os h inos tristes e desconsolados da Paixão, mas com eçar a can tar os h inos da Páscoa. N ão foi um a coisa triste e pesarosa que aconteceu na Sexta-Feira da Paixão; pois ele ressusci­tou. Q uero ser o p rim eiro a declarar que você não pode to m ar abs tra tam ente o que tem os a dizer sobre a m o rte e a Paixão de Cristo, mas já o lhar além para o lugar onde sua glória é revelada.

Este âm ago da cristologia tem sido descrito na velha teologia sob dois conceitos principais de exinanitio e o exaltatio de Cristo. Q ual o significado que a hum ilhação e a exaltação assum em aqui?

A hum ilhação de Cristo inclui o todo, com eçando com “sofreu sob Pôncio Pilatos”, e dec id idam en te visível em “foi crucificado, m orto e sepultado, desceu ao in ­ferno”. O que ocorreu prim eiro, certam ente, foi a h u m i­lhação deste h o m e m que sofreu, m o rreu e trans itou pelas

Foi Crucificado, M orto e Sepultado, Desccu ao Inferno - 163

mais densas trevas. Mas o que prim eiro dá sua significa­ção para a hum ilhação e o abandono deste h o m e m é o fato de que este ho m em é o Filho de Deus, e de que não é ou tro senão o p róprio Deus que se hum ilha e se entrega a si mesmo.

Assim, quando este fato é con trabalançado com o a exaltação de Jesus Cristo como o m istério da Páscoa, esta glorificação é, na verdade, um a auto-glorificação de Deus; é para sua hon ra que este tr iunfo aconteça: “Deus b radou em alta voz”. Mas o mistério verdadeiro da Páscoa não é que Deus é glorificado nele, mas que o h o m e m é exaltado, elevado pela mão direita de Deus e perm itido tr iun far sobre o pecado, a m orte e o diabo.

Q u an d o sustentam os estes dois pontos jun tos, então o quadro que temos diante de nós é de u m a inconcebível troca, de um a katalage, isto é, um a substituição. A reco n ­ciliação do hom em com Deus acontece ao colocar Deus a si m esm o no lugar do hom em e o h o m e m no lugar de Deus, com o o mais puro ato da graça. É este milagre in ­concebível que se to rna nossa reconciliação.

Q uando a p rópria Confissão já acentua este “crucifi­cado, m orto e sepultado...” num a form a p u ram en te ex­te rna através de um a franqueza e in tegridade de um registro que não é superabundan te em palavras; além disso, quando os Evangelhos pro longam a h istória da Crucificação até um certo ponto, e quando em todos os tem pos a C ruz de Jesus é evidenciada com o o centro real de toda a fé cristã; quando em todos os séculos se ouve repetidas vezes, Ave crux única spe m ea , tem os de ser cla­ros em que o ponto não é a glorificação e ênfase na m orte em m artír io de u m fundador de u m a religião - há h is tó ­rias indubitáveis de m ártires mais im pressionantes, mas nas quais não estamos interessados - e n em m esm o é a expressão do universal so fr im en to -do -m undo sobre a

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C ruz com o u m a espécie de símbolo do lim ite da experi­ência hum ana . Por meio disso nos d is tanciam os do co ­nhec im en to daqueles que têm te s tem unhado o Jesus Cristo crucificado. No sentido do te s tem unho apostólico, a crucificação de Jesus Cristo é a ação concre ta do p r ó ­prio Deus. D eus m u d a a si mesm o, o p róprio D eus se to rn a mais próxim o, Deus pensa que não é u m a exp lo ra ­ção ser divino, isto é, ele não se apega aos despojos com o um salteador, mas D eus reparte consigo m esm o. Tal é a glória da sua D ivindade, aquela onde ele pode ser “a b n e ­gado”, aquela onde ele pode, na verdade, p e rd o a r a si m esm o em algum a coisa. Ele se m an tém genu inam en te verdadeiro para si m esm o, mas som ente po r m eio de não ter de lim itar-se à sua Divindade. É a p ro fundeza da D i­vindade, a g randeza da sua glória que é revelada no p r ó ­prio fato de que ela tam bém pode se esconder em sua mais p u ra oposição, na mais p ro funda das rejeições e na m aior das misérias da criatura. O que acontece na C ru c i­ficação de Cristo é que o Filho de D eus assum e para si m esm o é que deve se to rn a r a cria tura em estado de re ­volta, que quer libertar-se da sua condição de cria tu ra e declarar-se a si m esm o o Criador. Ele se põe a si m esm o nas necessidades da cria tura e não a ab an d o n a a si m esm a. A lém disso, ele não apenas a ajuda de fora e a saúda de longe; ele faz sua a desgraça da sua cria tura. C om que propósito? Para que sua cria tu ra seja livre, para que o fardo que carrega sobre si seja tirado. A p róp ria c r i­a tura deve estar em frangalhos, mas Deus não deseja isto; ele quer ver a sua salvação. É tão g rande a ru ína da c r ia ­tu ra que qualquer coisa m enos que a au to -en trega de Deus não seria suficiente para o seu resgate. M as D eus é tão grande, que foi sua vontade entregar a si m esm o. Re­conciliação significa Deus tom an d o o lugar do hom em . D eixe-m e acrescentar que n en h u m a d o u tr in a deste mis-

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tério central pode com preender com precisão e exaustão ou expressar até onde Deus interveio po r nós. N ão co n ­funda m in h a teoria da reconciliação com a p róp ria re ­conciliação. Todas as teorias da reconciliação não passam de indicadores. Mas esteja atento tam bém para este “po r nós”: nada pode ser subtraído dele! O que quer que a dou tr ina da reconciliação procure expressar, ela deve d i­zer isto.

Na m orte de Jesus Cristo, Deus tem cum p rid o sua lei. Na m orte de Jesus Cristo, ele a tuou com o Juiz para com o H om em . O hom em se colocou n u m pon to no qual o veredicto de Deus é declarado sobre ele e tem de ser carregado inevitavelmente. O h o m e m perm anece diante de D eus com o u m pecador, com o um ser que está sepa­rado de Deus, que se rebelou contra aquilo que ele deve ser. Ele se rebelou contra a graça; com o se isso fosse pouco, ele v irou as costas para a gratidão. Tal é a vida h u ­m ana, este constante afastar-se, este vulgar e sutil pecado. O pecado leva o hom em à necessidade inconcebível: ele se to rna impossível diante de Deus. Ele se coloca onde Deus não pode vê-lo. Ele colocou-se, po r assim dizer, por detrás das costas da graça de Deus. Mas as costas do “Sim” de Deus é o divino “Não”; é o ju lgam ento. Assim com o a graça de Deus é irresistível, assim tam b ém seu ju lgam ento é irresistível.

Agora podem os entender o que foi declarado de Cristo, que ele foi “crucificado, m orto e sepultado...”, com o a expressão daquilo que está, na verdade, cum prido sobre o hom em .

Crucificado. Q uando um israelita era crucificado, significava que ele era amaldiçoado, banido , não apenas do dom ín io da vida, mas da aliança com Deus, rem ovido do círculo dos eleitos. Crucificado significava rejeitado, ser entregue à m orte da forca infligida aos pagãos. Vamos

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deixar claro o que está envolvido no ju lgam en to de Deus, no qual a cr ia tu ra h u m a n a tem de sofrer do lado de D eus com o u m a c ria tu ra pecadora; ele está envolvido na rejei­ção, na maldição. “M aldito todo aquele que for p e n d u ­rado no m aneiro”. O que recaiu sobre Cristo é o que deveria recair sobre nós.

Morto. A m orte é o fim de todas as possibilidades presentes de vida. M orrer significa exaurir a ú lt im a das possibilidades que nos foi dada. Q u er desejem os in te rp re ­tar m o rre r fisicamente e metafisicamente, seja o que for que aconteça, u m a coisa é certa, que acontece o ú ltim o ato que pode acontecer na existência da criatura. Seja o que for que aconteça além da m orte deve, pelo m enos, ser algo diferente da con tinu idade desta vida. A m o rte rea l­m ente significa f im . Este é o ju lgam ento peran te o qual nossa vida está: a espera da m orte. N ascer e crescer, a m a ­durecer e envelhecer, é cam inhar em direção ao m o m en to no qual para cada u m de nós será o fim, defin itivam ente o fim. A questão vista deste lado, é um a questão que t ra n s ­form a a m orte n u m elem ento em nossa vida, sobre o qual preferim os não pensar.

Sepultado. Ele perm anece lá tão d iscre tam en te e n u m a simples superficialidade. Mas ele não está lá po r nada. A lgum dia serem os enterrados. A lgum dia u m p u ­nhad o de h om ens se dirigirão ao cem itério onde descerão u m caixão e todos re to rnarão para casa; mas alguém não voltará, e este tal serei eu. O selo da m orte será que eles m e en terrarão com o u m a coisa que é supérflua e p e r tu r ­bado ra na te rra dos vivos. “Sepultado” dá à m orte o c a rá ­ter de passagem e declínio e à existência h u m a n a o cará ter de transito riedade e corruptib ilidade. Então, qual o significado da vida hum ana? Significa apressar-se para a sepultura. O h o m e m apressa-se para en co n tra r o seu passado. Este passado, no qual não há mais futuro, será a

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coisa final: tudo o que somos terá ido e terá sido c o r ro m ­pido. Talvez a m em ória perm anecerá, enquan to houver hom ens que gostem de lembrar-se de nós. Mas algum dia eles tam bém m orrerão e a m em ória deles tam b ém se ex­tinguirá. Não há um grande nom e na h is tória h u m a n a que n u m dia ou outro não será esquecido. Este é o signifi­cado de ser “sepultado”; e este é o ju lgam ento sobre o h o ­m em , que no túm ulo ele é deixado ao esquecimento. Esta é a resposta de Deus para o pecado: não há nada mais para ser feito com o hom em pecador, exceto en terrá-lo e esquecê-lo.

Desceu ao inferno. No Antigo Testamento a im agem de inferno é algo diferente do que se desenvolveu po s te r i­orm ente. Inferno, o lugar do inferi, Hades no sentido do A ntigo Testamento, é, na verdade, o lugar de to rm ento , o lugar de com pleta separação, onde o h o m e m con tinua a existir apenas com o um não-ser, com o u m a sombra. Os israelitas pensavam neste lugar com o u m lugar onde os hom ens se perpetuavam suspensos a rodear com o so m ­bras furtivas. E a parte ru im sobre estar no inferno no sentido do Antigo Testamento é que na m orte não p o ­d iam mais louvar a Deus, não pod iam mais ver sua face, não pod iam mais cum prir as regras do Sabath de Israel. É um estado de exclusão de Deus, o que to rn a a m orte tão tem erosa, e que faz do inferno o que ele é. O h o m e m estar separado de Deus significa estar nu m lugar de torm ento . “C horo e ranger de dentes” - nossa im aginação não está adequada para esta realidade, esta existência sem Deus. O ateu não está consciente do que é a não-existência de Deus. A não-existência de Deus é a existência no inferno. O que mais além disto é oferecido com o resultado do p e ­cado? O hom em não se separou de Deus p o r seu p róprio ato? “D esceu ao inferno” é simplesm ente a confirm ação disto. O ju lgam ento de Deus é justo - isto é, ele oferece ao

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h o m e m o que ele quer. Deus não seria Deus, o C riado r não seria o Criador, a cria tura não seria a c r ia tu ra e o h o ­m em não seria o hom em , se este veredicto e sua execução pudessem ser detidos.

Porém , agora, a Confissão nos diz que a execução deste veredicto é efetivada por D eus desta forma, que ele, o p róp rio Deus, em Jesus Cristo seu Filho, u m a vez v e rd a ­deiro D eus e verdadeiro hom em , assum iu o lugar do h o ­m e m condenado . O ju lgam ento de Deus é executado, a lei de D eus assum e seu curso, mas de u m a tal fo rm a que o que o h o m e m tin h a de sofrer é sofrido po r Aquele, que com o Filho de D eus sofreu po r todos. Tal é o senhorio de Jesus Cristo, que se ofereceu por nós diante de Deus, t o ­m a n d o sobre si o que nos pertencia. Nele, D eus se faz res­ponsável, até ao pon to no qual som os am ald içoados e culpados e perdidos. Ele estava em seu Filho, que na p es ­soa deste h o m e m crucificado suporta no G ólgota tudo aquilo que deveria ser levado p o r nós. D esta fo rm a ele põe u m fim à maldição. Não é da vontade de D eus que o h o m e m pereça; não é da vontade de D eus que o h o m e m pague o que estava sujeito a pagar; em outras palavras, Deus ex tirpa o pecado. Ele o faz, não a despeito da sua justiça, m as é a p róp ria justiça de D eus que ele, o Santo, in te rvenha a favor nós, os profanos, que ele queira salvar- nos e assim o faça. Justiça no A ntigo Testam ento não é a justiça do juiz que faz o devedor pagar, mas a ação de u m juiz que no acusado reconhece o vilão que ele deseja a ju ­dar d ando -lhe os direitos. É isto que significa justiça. Jus­tiça significa assentar o direito. E é isto que D eus faz. C ertam ente , não sem a punição ser sup o r tad a e toda a angústia irrom per, mas através de ele colocar-se no lugar do culpado. Ele que pode e faz isto é justificado pelo fato de que ele assum e o papel da sua criatura. A m isericórd ia de D eus e a justiça de Deus não são divergentes en tre si.

Foi Crucificado, M orto e Sepultado, Desceu ao Inferno - 169

“Seu Filho não é igualmente querido para ele,

Ele o entregou; pois ele

Do fogo e terno através do seu sangue

Me resgataria.”

Este é o mistério da Sexta-feira da Paixão.

Mas, na verdade, estamos o lhando para além da Sexta-feira da Paixão, quando dizemos que D eus vem em nosso lugar e assume nosso castigo sobre si. Deste m odo, ele, na verdade, o tom a de nós. Todo sofrim ento , toda tentação, assim com o nosso morrer, é apenas a som bra do ju lgam ento que Deus já executou a nossa favor. Aquilo que na verdade nos afetava e podia nos afetar, foi, na ve r­dade, lançado fora de nós na m orte de Cristo. Isto está atestado pelas palavras de Cristo na Cruz: “Está co n su ­m ado!” Portanto, na visão da C ruz de Cristo som os co n ­vidados, po r um lado, a perceber a m agnitude e peso do nosso pecado e o custo do nosso perdão. N u m sentido mais rigoroso não há conhecim ento do pecado exceto à luz da C ruz de Cristo. Pois som ente com preende o que é o pecado, quem sabe que seu pecado é perdoado. Por o u ­tro lado podem os perceber que o preço é pago ao nosso favor, pois som os absolvidos do pecado e suas co n seq ü ­ências. Não som os mais tratados e vistos p o r D eus com o pecadores, que devem passar sob o ju lgam ento po r sua culpa. Não tem os mais nada para pagar. Somos absolvi­dos gratuitam ente, sola gratia , pela p rópria in tervenção de Deus po r nós.

Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos Mortos

Na Ressurreição de Jesus Cristo, o hom em é, de um a vez por todas, exaltado e levado a descobrir com Deus

seu direito contra todos os seus adversários e assim libertar-se para viver um a nova vida, na qual ele não mais terá pecado e, portanto, a maldição, a morte, o

túm ulo e o inferno à sua frente, mas atrás de si.

“Ao terceiro dia ressurgiu dos m orto s” é a m e n sa ­gem da Páscoa. Ela assegura que não foi em vão que Deus se h u m ilh o u em seu Filho; fazendo assim ele seguram ente agiu tam bém para sua própria hon ra e para a c o n f irm a­ção da sua glória. Pela sua misericórdia tr iun fou em sua p rópria hum ilhação, o resultado sendo a exaltação de Je­sus Cristo. E quando dissemos an terio rm ente que na h u ­m ilhação o Filho de Deus estava envolvido e, portan to , o p róprio Deus, devemos agora enfatizar que o que está e n ­volvido na exaltação é o hom em . Em Jesus Cristo o h o ­m em é exaltado e levado para a vida para a qual D eus o l ibertou na m orte de Jesus Cristo. Deus, p o r assim dizer, abandonou a esfera da sua glória e o h o m e m pôde agora tom ar seu lugar. Esta é a m ensagem da Páscoa, o objetivo da reconciliação, a redenção do hom em . É o objetivo que já era visível na Sexta-feira da Paixão. Através da interces-

172 - Esboço de uma Dogmática

são de D eus pelo h o m e m - os escritores do N ovo Testa­m en to não estavam tem erosos em usar a expressão “pagando” - o h o m e m é um a cria tu ra resgatável. Apolytrosis é u m conceito legal que descreve o resgate de um escravo. O alvo é que o h o m e m seja transferido para ou tro status na lei. Ele não pertence mais àquilo que tin h a direito sobre ele, ao dom ín io da maldição, m o rte e in ­ferno; ele é traduz ido para o reino do querido Filho de Deus. Isto significa que seu posição, sua condição, seu status legal com o u m pecador é rejeitado em to d a forma. O h o m e m não é visto mais seriam ente po r D eus com o um pecador. O que quer que ele possa ser, tudo que existe para ser dito dele, tudo que possa vir a reprová-lo, D eus não o leva mais a sério com o u m pecador. Ele m o rre u para o pecado; lá na C ruz do Gólgota. Ele não está mais presente para o pecado. Ele é reconhecido e estabelecido diante de D eus com o um h o m e m justo, com o aquele que é justo d iante de Deus. Assim com o se apresenta, ele tem, ev identem ente, sua existência em pecado e, assim, em sua culpa; mas ele o tem atrás dele. A m u d a n ça foi com ple­tada, de um a vez po r todas. Mas não po d em o s dizer, “Eu abandone i de um a vez po r todas, eu experim ente i” - não; “de u m a vez p o r todas” é o “de u m a vez p o r todas” de Je­sus Cristo. Mas se crem os nele, então é nosso. O h o m e m está em Cristo Jesus, que m o rreu p o r ele, em v ir tude da sua Ressurreição, o Filho am ado de Deus, que vive p o r e para o b o m grado de Deus.

Se esta é a m ensagem da Páscoa, então você percebe que na Ressurreição de Jesus Cristo há a revelação do fruto a inda escondido da m orte de Cristo. É este exato pon to decisivo que está ainda escondido na m o rte de Cristo, oculto sob o aspecto no qual o h o m e m lá aparece consum ido pela ira de Deus. A partir de agora o Novo Testam ento nos to rna testem unhas de que este aspecto do

Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos M ortos - 173

h o m e m não é o significado do evento no Gólgota, mas que por trás deste aspecto o real significado deste evento é aquele que é revelado no terceiro dia. Sobre este terceiro dia com eça um a nova história do hom em , tan to que p o ­dem os até m esm o dividir a vida de Jesus em dois grandes períodos, os tr in ta e três anos até sua m orte , e o bem curto e decisivo período dos quaren ta dias entre sua m orte e a Ascensão. Ao terceiro dia com eça u m a nova vida de Jesus; mas, ao m esm o tempo, no terceiro dia co ­meça um novo A eon , um a nova form a de m undo , depois do velho m u n d o ter sido com pletam ente acabado e qu i­tado na m orte de Jesus Cristo. A Páscoa é a nov idade de u m novo tem po e m undo na existência do h o m e m Jesus, que agora começa um a nova vida com o conquistador, com o u m condu to r vitorioso, como o des tru ido r do fardo do pecado do hom em , que foi posto sobre ele. N esta sua existência d iferenciada a prim eira com unidade viu não apenas a continuação sobrenatural da sua vida anterior, mas u m a nova vida completa, aquela do exaltado Jesus Cristo e s im ultaneam ente o início de u m novo mundo. (Os esforços para relacionar a Páscoa a certas renovações, com o as que ocorrem na natureza, com o a prim avera, ou até m esm o no desperta r do hom em pela m anhã , e assim por diante, não têm qualquer força. Depois da p rim avera segue-se, inexoravelmente, um inverno, e depois do des­pertar, o cair no sono novamente. O que tem os aqui são m ovim entos cíclicos renováveis. Mas to rnar-se novo na Páscoa é tornar-se novo de um a vez por todas.) N a res­surreição de Jesus Cristo o reivindicação está feita, se­gundo o Novo Testamento, de que a vitória de D eus em favor do h o m e m na pessoa de seu Filho já foi ganha. A Páscoa é, na verdade, o grande p en h o r da nossa espe­rança, mas ao m esm o tem po este fu turo já está presente

174 - Ksboço de um a Dogmática

na m ensagem da Páscoa. É a p roclam ação da vitória já vencida. A guerra está no fim - em bora aqui e acolá t r o ­pas estejam atirando, po rque ainda não ouv iram nada so ­bre a capitulação. O jogo está vencido, em bora o jogador a inda faça alguns m ovim entos adicionais. N a verdade, ele já está derro tado. O relógio está parando , em bora o p ê n ­dulo a inda oscile len tam ente para lá e para cá. É neste es­paço in terino que estam os vivendo: as coisas velhas já passaram , eis que tudo se fez novo. A m ensagem da Pás­coa nos conta que nossos inimigos, o pecado, a m aldição e a m orte foram vencidos. No final das contas, eles não p o d em mais causar danos. Eles a inda se c o m p o rtam com o se o jogo ainda não tivesse acabado, a ba ta lha não te rm inada ; devem os ainda contar com eles, m as fu n d a ­m en ta lm en te devem os para r de tem ê-los de u m a vez po r todas. Se você ouviu a m ensagem da Páscoa, você não pode mais anda r po r aí com um a face trágica e u m a c o n ­du ta existencial desan im ada de u m h o m e m que não tem esperança. U m a coisa ainda está segura, e som en te esta coisa deve ser levada a sério: que Jesus é o Vitorioso. A se ­riedade de quem olha para trás, com o a esposa de Ló, não é a seriedade cristã. Pode estar que im ando lá atrás - e verdade iram en te está queim ando - , p o rém devem os olhar, não para isso, mas para o outro fato, de que som os convidados e convocados a to m ar com seriedade a vitória da glória de D eus neste h o m e m Jesus e se regozijar nele. Só então p odem os viver em gratidão e não em medo.

A Ressurreição de Jesus Cristo revela e com pleta esta p roclam ação de vitória. N ão devem os t ran sm u ta r a Ressurreição em u m evento espiritual. D evem os ouvi-la e deixá-la con tar-nos a h istória de com o houve u m túm u lo vazio, que u m a nova vida além da m orte to rn o u -se v isí­vel. “Este [hom em arrebatado da m orte] é o m e u Filho

Ao Terceiro Dia Ressurgiu dos M ortos - 175

am ado, no qual tenho prazer”. O que foi anunc iando no batism o no Jordão agora se to rna u m evento e manifesto. A todos que conhecem este evento, a ru p tu ra entre o ve­lho m u n d o e o novo é proclamada. Eles ainda têm um a pequena linha para term inar, até que se to rne visível que Deus em Jesus Cristo j á cum priu tudo para eles.

Ascendeu aos Céus, e Está Assentado À Direita

de Deus Pai Todo-Poderoso

O objetivo da obra de Jesus Cristo, que aconteceu de uma vez por todas, é o fu ndam en to da sua Igreja através

do conhecimento, confiado às testemunhas da sua ressurreição, de que a onipotência de Deus e a graça de Deus, que são ativas e

aparentes nele, são um a e a mesma coisa. Assim, o f im desta obra é tam bém o início

do tempo-final, isto é, do tempo no qual a Igreja tem de proclamar para todo o m undo a graciosa onipotência e a

onipotência graça de Deus em Jesus.

O curso do texto da Confissão de Fé m os tra -nos ex­te rio rm en te que estamos nos aprox im ando de u m obje­tivo, o objetivo da obra de Jesus Cristo, desde que ela aconteceu de u m a vez por todas. Nessa estrada ainda há u m a parte pendente, que é futuro e que se to rn a rá visível ao final da Confissão, “de onde ele há de v ir” mais um a vez... Mas o que aconteceu de um a vez po r todas, agora se apresenta consum ado diante de nós em u m a série c o m ­pleta de verbos no tem po perfeito: gerado, concebido, nascido, sofrido, crucificado, m orto, sepultado, desceu, ressuscitou; e agora, subitam ente u m presente: “Está as­sentado à direta de Deus...” É com o se tivéssemos esca­

178 - Esboço de um a Dogm ática

lado u m a m o n ta n h a e agora alcançado seu cum e. Este presente é com pletado por u m final no perfeito, que ele ascendeu aos céus; o que po r sua parte com pleta o “res­surgiu dos m o rto s”.

C o m este “está assentado à direita de D eus Pai” o b ­viam ente passam os para u m novo tem po que é nosso tem po presente , o tem po da igreja, o tem po-final, in a u g u ­rado e fu n d ad o pela obra de Jesus Cristo. N o N ovo Testa­m en to o relato deste evento constitu i a conclusão dos relatos da Ressurreição de Jesus Cristo. H á - quase a n á ­logo aos milagres da Natividade - u m a linha tênue rela­tiva no N ovo Testamento, que fala da ascensão de Cristo aos céus. Aqui e acolá apenas a Ressurreição é m e n c io ­nada e en tão d ire tam en te a parte sobre estar à m ão direita do Pai. No Evangelho tam b ém a ascensão aos céus é m e n ­cionada de m o d o relativamente escasso. O que está envol­vido é esta transição, a m udança do tem po da revelação para o nosso tempo.

Q ual é o significado da Ascensão? Segundo o que tem os dito sobre céus e terra, ela significa em qualquer m ed ida que Jesus deixa o espaço terreal, o espaço, isto é, que foi concebido para nós e que ele criou p o r am o r a nós. Ele não pertence mais a ele com o nós pertencem os. Isto não significa que se to rn o u alienado para ele, que este espaço não é seu espaço tam bém . Pelo contrário , u m a vez que ele p erm anece acima deste espaço, ele o p reenche e se to rn a p resen te para ele. Mas agora, ev identem ente , não mais na m an e ira do tem po da sua revelação e da sua ativ i­dade terreal. A Ascensão não significa que Cristo subiu para ou tro dom ín io do m u n d o criado, para o d o m ín io do que é inconcebível para nós. “À direita de D eus” significa não apenas a transição do concebível pa ra o inconcebível no m u n d o criado. Jesus é rem ovido na direção do m is té ­rio do espaço divino, o que está abso lu tam ente oculto ao

Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai Todo-Poderoso - 179

hom em . Não são os céus a sua m orada; ele está com Deus. O Crucificado e o Ressurreto está onde D eus está. A m eta da sua atividade sobre a terra e na h is tória é que ele vai para lá. Envolvido na Encarnação e na C rucifica­ção está a hum ilhação de Deus. Mas na Ressurreição de Jesus Cristo está envolvida a exaltação do hom em . Cristo está agora, com o o C ondu to r da hum an idade , com o nosso Representante, no lugar onde Deus está e na form a na qual D eus é. Nossa carne, nossa natureza h um ana , está exaltada nele para Deus. O fim da sua obra é que estam os com ele em ascensão. Estamos com ele ao lado de Deus.

Deste pon to inicial temos que o lhar para trás e para frente. Se en tenderm os o Novo Testamento corretam ente, com seus testem unhos para esta conseqüência da vida e atividade de Jesus Cristo, esta conseqüência é carac teri­zada em u m cam inho duplo.

Deste Ú ltim o surgiu a luz, que é vista pelos seus Apóstolos. O conhecim ento conclusivo está confiado às testem unhas da sua Ressurreição. No Evangelho segundo São M ateus perm anecem as palavras de Cristo (28.18): “Foi-me dada toda autoridade nos céus e na terra”. É sábio e necessário trazer estas palavras em conexão com a parte ‘a direita de Deus Pai Todo-poderoso”. O conceito de o n i­potência aparece nos dois pontos. Em Efésios 4.10 o m esm o conhecim ento é declarado: “Aquele que desceu é o m esm o que subiu acima de todos os céus, a fim de e n ­cher todas as coisas...”; enchê-las com sua vontade e sua Palavra. Ele agora está nas maiores alturas; ele agora é o Senhor, e revelado como tal. Voltamos a esta passagem para coisas que nós tocam os acima na exposição do p r i ­m eiro artigo. Se falamos corretam ente do D eus T odo-po- deroso que está sobre todas as coisas, então nunca devem os en tender po r onipotência de D eus qualquer coisa além da realidade da qual o segundo artigo fala. O

180 - Esboço de um a Dogmática

conhec im en to que os Apóstolos adqu ir iram com base na Ressurreição de Cristo, cuja conclusão é a A scensão de Cristo, é essencia lm ente este conhec im ento básico de que a reconciliação que aconteceu em Jesus Cristo não é u m a h istória casual, m as que nesta obra da graça de D eus nós lidam os com a palavra da onipotência de Deus, de que aqui a ú lt im a e suprem a coisa en tra em ação, atrás da qual não há n e n h u m a ou tra realidade. N ão há nad a para além deste evento, do qual o segundo e o terceiro artigos falam. Cristo é aquele que tem todos os poderes, e com ele es ta ­m os engajados, se acreditam os. Reciprocam ente, a o n ip o ­tência de D eus é revelada e ativa in te iram ente na graça da reconciliação de Jesus Cristo. A graça de D eus e a o n ip o ­tência de D eus são idênticas. N unca devem os en tender um a sem a outra. Aqui, mais u m a vez, tem os de lidar com a revelação do m istério da Encarnação, que este h o m e m é o Filho de D eus e o Filho de D eus é este hom em . Jesus Cristo tem este lugar, esta função sobre todos nós, e ele as tem na realidade final. Ele está em relação a D eus com o o Ú nico para o qual o po d er de Deus é abso lu tam ente c o n ­fiado; com o u m G overnador ou u m Prim eiro M inistro , para quem seu Rei transferiu todo seu poder. Jesus Cristo fala com o D eus e age com o Deus; e reciprocam ente , se qu iserm os saber da fala e ação de Deus, precisam os ap e ­nas o lhar para esse hom em . Esta iden tidade de D eus e h o m e m em Jesus Cristo é o conhecim ento , a revelação do conhec im ento , pelo qual a obra de Jesus Cristo, cum priu - se de u m a vez p o r todas, alcançou sua conclusão.

“Está assentado à direita de Deus Pai” - o cum e foi alcançado, o passado perm anece atrás de nós e en tram os no d o m ín io do presente. É isto que tem os para dizer do nosso tem po - que é a p rim eira e ú lt im a coisa que im ­p o r ta para nossa existência no tempo. N esta base está esta existência de Jesus Cristo, assentado à direita de D eus Pai.

Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai Todo-Poderoso - 181

Q ualquer que seja a prosperidade ou derro ta que aco n ­teça em nosso espaço, qualquer que seja a m udança , ou o que quer que passe, há um a constante, u m a coisa que p e r ­manece e continua, é este seu assentar à d ireita de Deus Pai. Não há n en h u m ponto decisivo histórico que se ap ro ­xim e disto. Aqui tem os o mistério do que cham am os h is­tória m undial, história da Igreja, história da civilização; aqui tem os a coisa que fundam enta tudo. Este p rim eiro de tudo absoluto, simplesmente significa a coisa que está expressa mais um a vez no final do Evangelho de São M a­teus, pelo tão conhecido m andato missionário: “Ide por todo o m un d o e fazei discípulos, batizando-os e ens i­nando-os a observar as coisas que tenho m a n d ad o ”. C om o conseqüência, este conhecim ento, de que a “o n ip o ­tência de Deus é a graça de D eus”, não é u m conhec i­m ento inútil. E a conclusão do tem po da revelação não é o fim de um espetáculo, onde a cortina se fecha e os es­pectadores po d em ir para casa, mas ela te rm ina com um desafio, com um m andam ento . O evento da salvação torna-se agora a ponta de um evento m undial. O que agora se to rna visível para os Apóstolos co rresponde ao fato de que aqui tam bém na terra, com o u m a história h u ­mana, com o um a ação dos discípulos, há u m lugar te r ­reno que corresponde ao lugar celestial, u m a vida e ação de testem unhas da sua Ressurreição. C om a p ar tida de Je­sus Cristo para o Pai, algo é estabelecido na terra. Sua partida significa não apenas um fim, mas tam b ém um início, m esm o que não como um a continuação do seu a d ­vento. Para isto não seria dito que a obra de Jesus Cristo sim plesm ente continua na vida de cristãos e na existência da Igreja. A vida dos santos não é o p ro longam en to da re ­velação de Jesus Cristo sobre a terra. Isto con trad iz o seu “Está consum ado”. O que aconteceu em Jesus Cristo não precisa de continuação. Mas, evidente, o que aconteceu

182 - Esboço de um a Dogm ática

de u m a vez po r todas possui no que agora acontece sobre a te rra u m a correspondência , u m reflexo; não u m a rep e ­tição, mas u m a semelhança. E toda esta v ida cristã é na fé em Cristo, tudo isto é cham ado de com unidade , é esta se­melhança, este som bream en to a par ti r da existência de Je­sus Cristo com o a Cabeça do seu corpo. C risto fu n d a sua Igreja ao ir para o Pai, ao fazer-se conhec ido para seus Apóstolos. Este conhec im en to significa o cham ado de “Ide p o r todo o m u n d o e pregai o Evangelho a to d a c r ia ­tura”. C ris to é o Senhor. Isto é o que toda criação, o que todas as nações devem conhecer. A conclusão da obra de Cristo é, po rtan to , não um a opo r tu n id ad e dada para os A póstolos para inatividade, mas o serem enviados para o m undo . Aqui não há repouso possível; aqui há, pelo c o n ­trário, correria e corrida; aqui está o início da missão, o enviar da Igreja ao m u n d o e para o m undo .

Este tem p o que agora vivemos, o tem po da Igreja, é ao m esm o tem po o tem po-final, o tem po no qual a exis­tência ou o significado da existência do m u n d o das c r ia ­turas alcança seu objetivo. O uvim os, q uando falam os da C ruz de Cristo e Ressurreição, que a ba ta lha foi vencida, o relógio está parando, mas Deus a inda tem paciência, D eus a inda está esperando. Para este tem po da sua p ac i­ência ele colocou a Igreja no m undo , e o significado deste ú lt im o tem p o é, que ele está repleto da m ensagem do Evangelho e que o m u n d o tem seu m andam en to , para o u ­vir esta m ensagem . Podem os cham ar este tem p o que i r ­rom peu com a Ascensão de Jesus aos céus, “o tem p o da Palavra”, talvez ta m b ém o tem po do ab an d o n o e, em certo sentido, da solidão da Igreja na terra. É o tem po no qual a Igreja está u n id a com Cristo apenas na fé e pelo Santo Es­pírito; é o tem po in terino entre sua existência te rrena e seu re to rno em glória; é o tem po da grande o po rtun idade , da tarefa da igreja voltada para o m undo ; é o tem p o da

Ascendeu aos Céus, e Está Assentado à Direita de Deus Pai Todo-Poderoso - 183

missão. C om o dissemos, é o tem po da paciência de Deus, no qual ele está esperando pela Igreja, e, com a Igreja, pelo m undo . Pois o que tem acontecido conclusivam ente em Jesus Cristo com o o cum prim en to do tem po, obvia­m ente não é para ser realizado sem a partic ipação do h o ­m em , sem o louvor a Deus dos seus lábios, sem os seus ouvidos, que podem ouvir a Palavra, sem os seus pés e mãos, pelos quais eles podem se to rn a r m ensageiros do Evangelho. Q ue Deus e hom em to rnaram -se u m em Jesus Cristo pode ser visto, p rim eiro pelo fato de que há h o ­m ens de Deus na terra, a quem é concedido serem suas testem unhas. O tem po da Igreja, o tem po-final - o que to rn a o tem po tão significante e grandioso, não é que ele seja o tem po-final, mas que ele deixa o p o r tu n id ad e para o ouvir, crer e arrepender, para proclam ar e com preender a m ensagem . É tem po que se concretiza para Jesus Cristo no re lacionam ento do “Eu estou à porta , e bato”. Ele está mais próximo. Ele deseja entrar; tão p róxim o e a inda do lado de fora, diante da porta , e já podem os ouvi-lo e ficar à espera da sua entrada. - Neste tem po in terino e te m p o ­final, neste tem po de espera e da paciência divina, nele chega a o rdem dupla da divina providência, as conexões entre Igreja e Estado, das esferas in ternas e externas em sua oposição e coordenação. Elas não são as últim as o r ­dens ou a ú lt im a palavra; mas, co rre tam ente entendidas, elas são as boas ordenanças para o objetivo, que corres­p o n d em à graça de Deus. A Ascensão é o com eço deste tem po em que vivemos.

XX A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz

A memória da Igreja é também sua expectativa, e sua mensagem para o mundo é tam bém a esperança

do mundo. Pois Jesus Cristo, de cuja palavra e obra a Igreja conscientemente, e o

m undo ainda inconscientemente, origina, é o mesmo que veio ao encon­

tro da Igreja e do mundo, como o objetivo do tempo que está chegando ao f im , a f i m de tornar

visível, f ina lm ente e para todas as pessoas, a decisão to­m ada nele a graça e o reino de Deus

como a medida pela qual a hum anidade inteira e cada existência hum ana é medida.

“...De onde há de vir julgar os vivos e os m o rto s”. Depois de muitos perfeitos e o presente, segue-se o futuro- “ele voltará”. Podem os analisar gram aticalm ente todo o segundo artigo em três tempos, que ele veio, que ele está assentado à direita de Deus e que ele voltará.

Primeiro, deixe-me dizer algo sobre o conceito cris­tão do tempo. Não podem os deixar de perceber q u e a q u i

um a luz es tranha cai sobre o que nu m sentido genu íno e apropriado é cham ado de tem po real - o tem po à luz do tem po de Deus, a eternidade.

186 - Esboço de um a Dogmática

Jesus Cristo veio, todos aqueles tem pos passados, responderiam pelo que deno m in am o s passado. Mas quão inap ropriado seria dizer deste evento que ele foi u m p a s ­sado. O que Jesus sofreu e realizou não é ce r tam en te p a s ­sado; pelo contrário , é o velho que foi passado, o m u n d o do ho m em , o m u n d o da desobediência e deso rdem , o m u n d o da m iséria, pecado e m orte. O pecado foi cance­lado, a m orte foi vencida. O pecado e a m o rte existiram, e to d a a h is tória hum ana, inc lu indo aquela que segue seu curso post Christum, exatam ente em nossos dias, existi­ram. Tudo isto é passado em Cristo; po d em o s apenas pensar em tudo isto o lhando para trás.

Mas Jesus Cristo assentou-se ao lado do Pai, com o aquele que sofreu e ressurgiu dos m ortos. Isto é o p re ­sente. Assim ele está presente com o D eus está presente, com o isto já se adm ite que ele voltará com o a pessoa que ele u m a vez foi. Ele que é hoje o m esm o que foi ontem , tam b ém será o m esm o am anhã - Jesus Cristo on tem e hoje, e o m esm o para a eternidade. U m a vez que Jesus Cristo existe com o a pessoa que foi, obviam ente ele é o início de u m tem po novo, diferente daquele que co n h ec e ­mos, u m tem po no qual não há desvanecim ento , mas o tem po real que tem u m ontem , u m hoje e u m am anhã. Mas o on tem de Jesus Cristo é tam bém o seu hoje e seu am anhã. N ão é ausência do tempo, u m a e te rn idade vazia que tem lugar no seu tempo. Seu tem po não está no fim; ele con tinua seu m ovim en to desde on tem para hoje, até o am anhã. Ele não possui a tem erosa efem eridade do nosso presente. Q u an d o Jesus Cristo assentou-se à d ireita do Pai, a existência dele com Deus, sua existência com o o possu idor e representante da divina graça e p o d e r o u to r ­gada aos hom ens , não tem nada que ver com o que r id i ­cu lam ente concebem os com o etern idade - isto é, um a existência sem o tem po. Se esta existência de Jesus Cristo

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 187

à direita de Deus é um a existência real e com o tal a m e ­dida de toda existência, então ela tam b ém existe no tempo, em bora em outro tem po além desse que conhece­mos. Se o senhorio e governo de Jesus Cristo à d ireta do Pai é o significado do que vemos com o a existência da nossa h istória do m u n d o e nossa h istória de vida, então esta existência de Jesus Cristo não é um a existência sem o tempo, e a etern idade não é um a etern idade sem o tempo. A m orte é sem o tempo, o nada é sem o tempo. Então so ­mos hom ens sem o tem po quando estam os sem D eus e sem Cristo. Assim, não tem os o tempo. Mas esta ausência de tem po ele venceu. Cristo tem o tempo, a p len itude do tempo. Ele assentou-se à direita de Deus com o aquele que veio, aquele que agiu e sofreu e tr iun fou na m orte . Sua parte à direita de Deus não é apenas o extrato desta h is tó ­ria; é o e terno den tro desta história.

Paralelam ente a esta existência e terna de Cristo há tam bém sua existência transform adora . O que era, veio; o que aconteceu acontecerá. Ele é o Alfa e o Ômega, o cen ­tro do tem po real, o tem po de Deus; que não é o tem po sem significado que passa. Não o presente com o nós o co ­nhecem os, no qual todo “agora” é apenas u m salto do nunca-m ais para o ainda-não. Seria este presente a agita­ção na som bra do Hades? Na vida de Jesus Cristo outro presente nos encontra, que é o p róprio passado, e, p o r ­tanto, não u m a ausência de tem po que leva ao nada. E quando se diz que Cristo está voltando, este re to rno não é u m objetivo localizado no infinito. A “infin itude” é um a atividade desconfortável e não um predicado divino, mas aquilo que se refere à natureza da cria tura caída. Este fim sem um fim é apavorante. É um a im agem da perd ição do hom em . O ho m em se encontra em tal estado que ele é precipitado n u m a interminável falta de propósito . Este ideal do infindável nada tem que ver com Deus. U m li­

188 - Esboço cie uma Dogmática

m ite é, pelo contrário , p reparado para este tem po. Jesus Cristo é e traz o tem po real. Mas o tem po de D eus ta m ­b ém tem u m fim, assim com o u m início e u m meio. O h o m e m está c ircundado e envolto em todos os lados. Isto é a vida. Portan to , a existência do h o m e m se to rn a visível no segundo artigo: Jesus Cristo com seu passado, p re ­sente e futuro.

Q u an d o a com unidade cristã olha para trás ao que aconteceu em Cristo, na sua p rim eira vinda, sua vida, m orte e ressurreição, quando ela vive nesta m em ória , e n ­tão não é u m a m era lem brança, não o que cham am os h is ­tória. Isto que aconteceu de u m a vez po r todas, pelo contrário , é o po d er da divina presença. O que aconteceu a inda acontece e, com o tal, acontecerá. O po n to do qual a com un idade cristã origina-se, com sua confissão de Jesus Cristo, é o m esm o pon to ao qual ela vai ao encontro . Suas recordações são tam b ém suas expectativas. E q u an d o a com un idade cristã aborda o m undo , sua m ensagem à p r i ­m eira vista tem certam ente o caráter de u m a narrativa histórica, então a fala é de Jesus de Nazaré, que sofreu sob Pôncio Pilatos, depois de nascer sob o Im p era d o r A u ­gusto. Mas que angústia se a m ensagem cristã para o m u n d o tivesse parado neste evento. O con teúdo e obje­tivo desta narra tiva seria inevitavelmente de u m h o m e m que viveu o “era u m a vez” ou um a figura lendária para a qual m uitas nações o lhariam para trás de u m a m ane ira sem elhante, u m fun d ad o r de um a religião en tre outros. Q uão decepcionado o m u n d o estaria sobre o que fez e faz existir a verdade, sobre as boas novas que “Cristo veio para nossa reconciliação; regozijai, ó c r is tandade!” Este perfeito “Cristo veio” tam bém deve ser p roc lam ado em sua contextualização con tra o m u n d o com o aquilo que este m u n d o mais espera, e em cujo encon tro a h istória m und ia l ta m b ém vai.

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 189

Além disso, a fé cristã poderia ser vista com o expec­tativa e esperança; mas esta expectativa pod ia ser de um caráter vazio e generalizado. Uns esperam p o r m elhores tem pos, melhores circunstâncias “nesta vida”, ou na form a de outra vida no tão-cham ado “além”. Assim, sutil- m ente a esperança cristã se to rna um a expectativa in d e ­te rm inada por algum a espécie de glória desejada. Alguns se esquecem do verdadeiro conteúdo e objetivo da expec­tativa cristã - ou seja, de que aquele que vem é o m esm o que foi. Estamos para encon trar aquele de quem viemos. Isto tam bém deve, na relação entre a Igreja e o m undo , ser a substância da sua mensagem: ela não aponta para o vazio quando concede coragem e esperança para os h o ­mens; ela pode dar coragem e esperança em vista do que aconteceu. “Está consum ado” é com pletam ente válido. O tem po perfeito cristão não é imperfeito; mas co rre ta ­m ente en tend ido o perfeito tem a força do futuro. “M eu tem po está em tuas mãos!” (SI 31.15). Assim nos a d m ira ­m os com o Elias na força deste alim ento quaren ta dias e quaren ta noites para o Monte de Deus, tam bém cham ado Horebe. A inda é a cam inhada e não o objetivo, mas um a cam inhada d irecionada pelo objetivo. Eis a m ane ira com o nós, cristãos, podem os falar aos não-cristãos. Não deve­mos nos sentar entre eles como corujas melancólicas, mas na certeza do nosso alvo, que sobrepuja todas as outras certezas. Todavia, quantas vezes nos pos tam os envergo­nhados entre os filhos do m undo, e quão freqüen tem ente nós as com preendem os se a nossa m ensagem não as satis­faz. Aquele que entende que “nosso tem po está em tuas m ãos” não tra tará altivamente os hom ens do m u n d o que, na esperança precisa que m uitas vezes nos envergonha, seguem seu cam inho; mas ele os en tenderá m e lho r do que eles en tendem a si mesmos. Ele verá a esperança deles com o um a parábola, um sinal de que o m u n d o não está

190 - Esboço de um a Dogm ática

abandonado , mas tem u m início e u m propósito . Nós, cristãos, devem os tran sp o r ta r o verdadeiro Alfa e Ô m ega ao coração da esperança e pensam en to seculares. M as só po d em o s fazer isso se excederm os o m u n d o em con fi­ança.

Portan to , a situação é que o m u n d o orig ina-se in ­conscien tem ente , enquan to que a Igreja orig ina-se cons­c ien tem ente de Jesus Cristo, da sua obra. O fato objetivo é que Jesus Cristo veio e que falou sua palavra e fez sua obra. Isto existe , independen tem en te de se nós, hom ens, crem os ou não. Isto vale para todos, para os cristãos e para os não-cristãos. D erivam os do fato de que Cristo veio e devem os o lhar o m u n d o de acordo com isto. Q ue o m u n d o seja “m u n d a n o ” não quer dizer nada. M as é o m u n d o no m eio do qual Jesus Cristo foi crucificado e res- surrecto. A Igreja tam bém surgiu dele e está na m esm a posição que o m undo . Mas a Igreja é o lugar onde a p es­soa tem conhec im en to disto e isto, na verdade, faz a t r e ­m e n d a diferença entre a Igreja e o m undo . Nós, cristãos, p o d em o s saber isso, podem os ver com olhos abertos a luz que ressurgiu, a luz da parúsia. Nisto reside u m a graça es­pecial, na qual p odem os nos alegrar a cada m anhã . Na verdade, não m erecem os esta graça; os cristãos não são m elhores do que os filhos do m undo . Portanto , isto pode ser apenas u m a questão de sua apresentação, a p a r t i r do seu conhec im ento , algo para os outros que não c o n h e ­cem. Eles devem deixar b rilhar a tênue luz, que foi conce­d ida a eles.

Tanto a Igreja quan to o m u n d o estão dian te daquele de quem eles se orig inam . E para os dois o m ilagre é que este alvo de esperança não está em algum lugar, devendo nós cons tru ir laboriosam ente a estrada que nos co n d u z a ela, p o rém o que está dito na Confissão é Venturus est. N ão que devem os vir; é ele quem vem. A onde chegare-

A V inda de Jesus Cristo, O Juiz - 191

m os com nossa preocupação e correria? A h is tória do m undo , com sua diligência, com suas guerras e seus a r ­mistícios, a h istória da civilização com suas ilusões e im ­probabilidades - é este o cam inho? Temos de sorrir. Mas quando ele vem, ele que é o Ator, então tudo aquilo que é tão miserável em nossa “progressividade” é visto sob um a nova luz. A fraqueza e tem eridade tolas da Igreja e do m u n d o são elevadas po r ele. “Cristo nasceu”. Mais u m a vez o Advento. A v inda de Cristo mais u m a vez é a v inda daquele que está presente. Portanto, a tolice dos pagãos e a fraqueza da Igreja não têm desculpas, m as elas en tram na luz do dia de Páscoa: “O m u n d o estava perdido, Cristo nasceu”. Todavia, Cristo não apenas in tercedeu po r nós; ele tam b ém intercederá por nós. D esta fo rm a a existência- ambas, h u m a n a e cristã - é m antida desde o início até o seu fim. Cristo não foi e nem será envergonhado de ser cham ado nosso Irmão.

“... De onde há de vir”. Neste “de onde” está contido sobre tudo este fato, de que ele em ergirá da obscuridade onde ele está para nós hoje, onde ele é proc lam ado e crido pela Igreja, onde ele está presente para nós apenas na sua Palavra. O Novo Testamento diz deste fu turo po rv ir que “ele virá sobre as nuvens dos céus com grande p o d e r e glória” e “assim como o relâmpago sai do O rien te e vai para o Ocidente, assim será a v inda do Filho do h o m e m ” (Lc 21.27; M t 24.27). São metáforas, mas m etáforas das realidades finais, que ao m enos indicam que isto não acontece mais em mistério, mas é com pletam ente reve­lado. N inguém mais será capaz de enganar-se sobre esta realidade vivente. Portanto, ele virá. Ele rasgará os céus e se postará diante de nós como a pessoa que ele é, assen­tado à direita da divina onipotência. Ele vem com o aquele em cujas m ãos nossa existência inteira está selada. Nele esperam os, ele está voltando e ele será m anifesto com o

192 - Esboço dc um a Dogm ática

aquele a quem já conhecem os. Em suas m ãos estão todos estes eventos; a ún ica coisa à espera é aquilo que está e n ­coberto para ser rem ovido para que todos o vejam. Ele já cu m p riu isto e ele tem o po d er de fazê-lo manifesto. Em suas m ãos se encon tra o verdadeiro tem po e não o tem po sem fim no qual nunca tem os o tempo. M esm o neste m o ­m en to este c u m p rim en to pode existir. N ossa v ida tem um cu m p rim en to e este cum prim en to será manifesto. Nosso fu turo consiste em nosso ser m ostrado que tu d o foi c o r ­reto e b o m em nossa existência e nesta h is tó ria do m u n d o m á e - m ilagre dos milagres! - nesta a inda mais m á h is tó ­

ria da Igreja. N ão podem os vê-lo: o que está em H euss i15 não é bom , e o que está nos jornais não é bom . Todavia, algum dia será m anifesto com o reto, po rque Cristo foi o centro. Ele governa, assentado à direita do Pai. Isto virá à luz e toda lágrim a será enxugada. Este é o m ilagre do qual podem os ir ao encontro , e o qual em Jesus Cristo será ex­posto a nós com o já existente, pois ele virá em sua glória, com o u m relâm pago que brilha do O rien te e se estende para o O cidente.

“... Para ju lgar os vivos e os m o rto s”. Se desejarm os en tender co rre tam en te aqui, devem os desde o início su ­p r im ir certas im agens do ju lgam ento do m undo , até onde podem os, e fazer um esforço para não pensar o que elas estão descrevendo. Todas estas visões, com o os grandes p intores as represen taram , sobre o ju lgam ento do m u n d o (M iguelangelo na Capela Sistina), Cristo avançando com o p u n h o cerrado, d ivid indo aqueles que estão à direita daqueles que estão à esquerda, enquan to o o lhar de a l­guém se m an tém fixo naqueles da esquerda! Os pin tores im aginaram , até certo pon to com prazer, com o estes con-

15. O a lem ão Kart Heussi (1877-1961), historiador da igreja, cuja obra era bastante crítica.

A Vinda de Jesus Cristo, O Juiz - 193

denados naufragavam no lago do inferno. Mas não é este o caso. A Pergunta 52 do Catecismo de H eidelberg p e r ­gunta: “Q ue conforto terás com a v inda de Cristo para julgar os vivos e os m ortos?” Resposta: “De que em todos os m eus sofrim entos e perseguições possa o lhar com m i­nha cabeça ereta para o próprio Cristo, que antes se e n ­tregou a si m esm o por m im no ju lgam ento de D eus e levou sobre si todas as m inhas maldições, para vir com o Juiz dos céus...” H á um a observação diferente e chocante aqui. O re to rno de Jesus Cristo para julgar os vivos e os m ortos são boas novas de alegria. “C om a cabeça ereta”, o cristão e a Igreja podem de devem confron ta r este futuro. Pois aquele que vem é o mesm o que an terio rm en te ofere­ceu a si m esm o para o julgam ento de Deus. É pelo seu re ­to rno que esperamos. Se tivesse sido concedido a Miguelangelo e outros artistas ouvir e ver isto!

Jesus Cristo vindo novam ente para ju lgam ento, sua últim a e universal manifestação sem pre é descrita no Novo Testamento como a revelação. Ele será revelado, não som ente para a Igreja, mas para todos, com o a pessoa que ele é. Ele não apenas será o juiz, ele é já o é; mas então pela p rim eira vez ele se to rnará visível, que isto não é um a questão do nosso Sim e Não, nossa fé ou nossa falta de fé. Na claridade e publicidade plenas o “está consum ado” virá à luz. Por isto a Igreja está esperando; e sem o saber o m u n d o está esperando também. Estamos todos na ro ta de encontro desta manifestação. Não parece, todavia, que a graça e a justiça de Deus são, na verdade, válidas com o a m edida pela qual a hum anidade com pleta e cada ind iv í­duo em si são medidos. A inda tem os dúvidas e ans ieda­des. A inda há lugar para a justiça pelas obras e orgulho pela p iedade assim como pela impiedade. Isto pode ainda ser visto. A Igreja proclam a Cristo e a decisão feita nele. Porém ainda se vive neste tem po que é chegado ao fim e é

194 - Esboço de um a Dogmática

p o r tad o r de todas as marcas de grande fraqueza em si. O que traz o futuro? Mais u m a vez, não u m po n to decisivo na história, m as a revelação do que é. É o futuro, m as o fu turo daquilo que a Igreja rem em ora, daquilo que já aconteceu de u m a vez p o r todas. O Alfa e o Ô m ega são a m esm a coisa. A volta de Jesus Cristo provará que G oethe estava certo q uando escreveu:

“A D eus pertence o Oriente e o Ocidente;

D e N orte a Sul repousam as terras

N a profu nda p a z das próprias m ãos de Deus.”

Na perspectiva bíblica o juiz não é p r im ar iam en te aquele que recom pensa alguns e pune outros; ele é o h o ­m e m que cria a o rdem e restaura o que foi destru ído . P o ­dem os en co n tra r este juiz, esta restauração ou, m elhor, a revelação desta restauração em confiança incondicional, p o rque ele é o juiz. Em confiança incondicional, p o rque viem os da sua revelação. O tem po presente parece tão m esqu inho e desprezível e não nos satisfará, n em m esm o o presente tem po da Igreja e da cris tandade. Mas é esta c r is tandade que pode e deve deixar-se ch am ar repetidas vezes, cham ada de volta à sua origem e ao m esm o tem p o a en co n tra r o fu turo de Jesus Cristo, o des lum bran te e glorioso fu turo do p róprio Deus, que é o m esm o on tem e hoje e para sempre. Para a seriedade da idéia de ju lga ­m en to n e n h u m dano será feito, pois será m anifesto que a graça de D eus e a justiça de D eus são a m ed id a pela qual toda a h u m a n id ad e e cada h o m e m será m edido . Venturus judicare: D eus sabe tudo o que existe e acontece. Então podem os ficar b em apavorados, e neste po n to estas visões do Juízo Final não são s im plesm ente sem significado. Aquele que não provém da graça e da justiça de D eus não pode existir. Tanto a “grandeza” h u m a n a quan to a cristã talvez m ergu lhe in fin itam ente para a m ais p ro fu n d a das

A V inda de Jesus Cristo, O Juiz - 195

trevas. Q ue existe um tal Não divino, de fato está p ressu ­posto neste judicare. Mas no m om en to em que adm itim os isto devem os reverter para a verdade de que o Juiz que se­para alguns para a esquerda e os outros para a direita, é, na verdade, aquele que se entregou a si m esm o para o ju l­gam ento de Deus no meu lugar e levou todas as m inhas m aldições sobre si. Foi ele quem m orreu na C ruz e res­suscitou na Páscoa. O tem or de Deus em Jesus Cristo não pode ser n en h u m além daquele que perm anece na alegria e confiança da pergunta: “Na v inda de Cristo o que te conforta?” Isto não nos leva à apostasia. H á u m a decisão e u m a divisão, mas através dele, que in tercede po r nós. Existe nos dias de hoje um a divisão mais aguda e u m d e ­safio mais urgente do que a m ensagem sobre este Juiz?

Creio no Espírito Santo

Q u an d o os hom ens pertencem a Jesus Cristo de tal m a ­neira que eles têm liberdade para reconhecer sua Palavra com o destinada tam bém a eles, sua obra com o realizada tam bém para eles,

a m ensagem sobre ele como tam bém sua tarefa; e assim,

po r sua parte, liberdade para esperar pelo m elhor de todos os outros

hom ens, isto acontece, na verdade, com o sua experiência e ação hum anas, e m esm o que não em v ir ­

tude da sua capacidade, de term inação e esforço hum anos, mas som ente

na base do D om gratuito de Deus, no qual tudo isto é concedido a eles. Neste

ato de conceder e dar, Deus é o Espírito Santo.

Neste pon to do Credo mais u m a vez repete-se a p a ­lavra “creio”. Isto não tem apenas u m significado estilís­tico; aqui a atenção é cham ada com urgência para o fato de que o conteúdo da Confissão Cristã é levantado mais um a vez para um a nova luz, e o que agora se segue não está obviam ente conectado com o que veio antes. É com o

198 - Esboço dc uma Dogmática

se fizesse u m a pausa; é u m a pausa notável entre a A scen ­são e o Pentecostes.

As afirm ações do terceiro artigo estão d irec ionadas ao hom em . E nquan to o p rim eiro artigo fala de D eus, o segundo do D eus-hom em , agora o terceiro fala do h o ­m em . N ão devem os neste ponto, ev identem ente, separar os três artigos; devem os entendê-los em sua un idade . Es­tam os ocupados com o h o m e m que partic ipa no ato de Deus, e, além disso, partic ipa ativamente. O h o m e m p e r ­tence ao Credo. Este é o m istério que não foi ouvido, do qual estam os agora nos aproxim ando. H á u m a fé no h o ­m em , desde que este h o m e m partic ipe a tivam ente e livre­m en te no traba lho de Deus. E isto que na verdade acontece, é a obra do Espírito Santo, a obra de D eus na terra, que tem sua analogia na obra oculta de Deus, na em anação do Espírito da parte do Pai e do Filho.

Q ual é o significado desta partic ipação do h o m e m na obra de Deus, de seu livre e ativo com partilhar? Não seria nada confortável se tudo perm anecesse objetivo. Há, tam bém , u m elem ento subjetivo; podem os ver a m o d e rn a exuberância deste elem ento subjetivo, que já foi in t ro d u ­zido na m e tade do século dezessete, e traz ido p o r Schlei- e rm acher para a o rdem sistemática, com o u m a tentativa forçada de trazer a verdade do terceiro artigo.

H á u m a conexão geral de todos os h om ens com Cristo, e todo h o m e m é seu irmão. Ele m o rreu p o r todos os hom ens e ressuscitou por todos os hom ens; portan to , todo h o m e m é enfocado pela obra de Jesus Cristo. Q ue seja assim, é a p rom essa para toda a h um an idade . Esta é a base mais im portan te , e a única que abrange tudo, do que cham am os hum anidade . Aquele que u m a vez percebeu o fato de que D eus se fez h o m e m não pode falar e agir d e ­sum anam ente .

Creio no Espírito Santo - 199

Mas, antes de tudo, quando falamos do Espírito Santo, não vam os olhar para todos os hom ens, m as para hom ens especiais que pertencem , de um a m aneira espe­cial, a Jesus Cristo. Q uando falamos do Espírito Santo, es­tam os falando de hom ens que pertencem a Jesus Cristo de um a m aneira especial que eles têm a liberdade de reco ­nhecer sua Palavra, sua obra, sua m ensagem em u m a m a ­neira precisa, e tam bém esperar de sua parte o m elhor para todos os homens.

Q u an d o falamos de fé, acentuam os o conceito de li­berdade. O nde estiver o Espírito do Senhor, aí há liber­dade (2Co 3.17). Se desejarmos parafrasear o m istério do Espírito Santo, é m elhor escolher este conceito. Receber o Espírito, ter o Espírito, viver no Espírito significa se liber­tar e se perm itir viver em liberdade. N em todos os h o ­mens são livres. Liberdade não é um a coisa natura l e não é sim plesm ente um predicado da existência hum ana. To­dos os hom ens estão destinados à liberdade, mas n em to ­dos estão nesta liberdade. O nde passa a linha de separação está oculto a nós, homens. O Espírito sopra onde ele quer (Jo 3.8). Não verdade, não é u m a condição natura l do hom em para ele ter o Espírito; isto sem pre será um a distinção, um D om de Deus. O que im porta aqui é, simplesmente, pertencer a Jesus Cristo. N ão nos o c u p a ­mos com Espírito Santo como algo novo e diferente dele. Esta sempre foi um a concepção errônea do Espírito Santo. O Espírito Santo é o Espírito de Jesus Cristo. “Re­ceberá do que é m eu e vos dará” (Jo 16.14). O Espírito Santo não é nada mais do que um a certa relação da Pala­vra com o hom em . No derram am ento do Espírito Santo no Pentecostes, há um m ovim ento - pn eu m a significa vento - de Cristo para o hom em . Ele soprou sobre eles: “Recebei o Espírito Santo!” Cristãos são todos aqueles so ­prados por Cristo. Portanto, nu m certo aspecto, nunca

200 - Esboço dc uma Dogmática

p o derem os falar de m odo suficientem ente solene do Es­pírito Santo. O que está envolvido é a partic ipação do h o ­m em na Palavra e obra de Cristo.

Mas esta simples coisa é ao m esm o tem po algo su ­p rem am en te inconcebível. Pois esta partic ipação do h o ­m e m significa partic ipação ativa. Vamos a inda p o n d e ra r o que isto significa em sua mais p ro fu n d a verdade: ser traz ido ativam ente para a grande esperança de Jesus Cristo que susten ta todos os hom ens, não é verd ad e ira ­m ente u m a coisa natural. É u m a resposta para a perg u n ta que se renova d iante de nós a cada m anhã . Ela envolve a m ensagem da Igreja Cristã; e através do m eu ouvir esta m ensagem ela to rna-se m in h a p rópria tarefa. Esta m e n sa ­gem ta m b ém passa p o r m im , com o cristão; ta m b ém m e to rno p o r ta d o r dela. Mas, po r meio dela, sou colocado na posição de, p o r m in h a parte, considerar os hom ens, todos os hom ens, m uito d iferentem ente de antes; já não posso mais fazer ou tra coisa senão esperar o m elhor para todos.

Ter ouvidos in ternos para a Palavra de Cristo, ser agradecido p o r sua obra e ao m esm o tem po responsável pela m ensagem dele e, po r últim o, ter confiança nos h o ­m ens po r am or a Cristo - esta é a liberdade que obtem os, qu an d o Cristo sopra sobre nós, quando ele nos envia seu Santo Espírito. Se ele não vive mais n u m lugar rem oto histórico ou celestial, teológico ou eclesiástico para m im , se ele se aproxim a de m im e tom a posse de m im , o resu l­tado será que eu ouço, que sou agradecido e responsável e que, finalm ente, posso esperar p o r m im m esm o e p o r t o ­dos os outros; em outras palavras, que eu posso viver de um a m ane ira cristã. É um a coisa t rem en d am en te g rande e de m o d o algum u m a coisa natural, ob ter esta liberdade. Devemos, portan to , cada dia e cada ho ra o rar Veni Crea- tor Spiritus, ouv indo a Palavra de Cristo e em ação de g ra ­ças. Este é u m círculo fechado. Não “possu ím os” esta

Creio no Espírito Santo - 201

liberdade; ela é, repetidas vezes, concedida a nós po r Deus.

Na exposição do prim eiro artigo da Confissão eu disse que a criação não era u m milagre m e n o r do que o nascim ento virginal de Cristo. E agora, em terceiro lugar, gostaria de dizer que o fato de que há cristãos, hom ens que têm esta liberdade, não é um milagre m e n o r do que o nascim ento virginal de Jesus Cristo do Espírito Santo e da Virgem M aria, ou do que a criação do m u n d o a par tir do nada. Pois, se lem brarm os o que, e quem , e com o somos, devem os clamar. “Senhor, tem m isericórdia de nós”. Para este milagre os discípulos esperaram dez dias após a As­censão do Senhor aos céus. Não senão depois desta pausa o derram am en to do Espírito Santo aconteceu e com isso u m a nova com unidade surgiu. Lá aconteceu u m novo ato de Deus, que, com o todos os atos de Deus, é u m a con fir­m ação dos anteriores. O Espírito não pode ser separado de Jesus Cristo. “O Senhor é o Espírito”, diz Paulo.

Q uando os hom ens podem receber e possu ir o Espí­rito Santo, isto é natura lm ente um a experiência h u m a n a e u m ato hum ano. É tam bém um a questão de e n ten d i­m en to e de vontade e, posso dizer na verdade, da im ag i­nação. Isto tam bém pertence ao ser um cristão. O h o m e m completo, até nas mais íntimas regiões do tão cham ado “inconsciente”, é tom ado em clamor. A relação de Deus com o h o m e m inclui o hom em completo. Mas não deve haver m á compreensão: o Espírito Santo não é u m a form a de espírito hum ano. A teologia é trad ic iona lm ente reco­nhecida com o vima das “ciências do intelecto”. Isto pode passar com o piada de bom gosto. Mas o Espírito Santo não é idêntico ao espírito hum ano, po rém o encontra . N ão desejaríamos degradar o espírito h u m a n o - é p a r t i ­cu larm ente necessário tratá-lo com u m pouco de carinho na nova A lem anha - e m esm o os teólogos não deveriam

202 - Esboço de uma D ogm ática

se desviar n u m a atitude papista e arrogante. M as esta li­berdade da vida cristã não vem do espírito hum ano . N e ­n h u m a capacidade hum ana , ou possibilidades, ou esforços de qualquer espécie po d em alcançar esta l ibe r­dade.

Q u an d o acontece de o hom em obter liberdade tor- nando-se u m ouvinte, responsável, agradecido, u m a p e s ­soa esperançosa, não é po r causa de u m ato do espírito hum ano , mas som ente po r causa do ato do Espírito Santo. Portan to isto é, em outras palavras, u m D o m de Deus. Isto tem que ver com u m novo nascim ento , com o Espí­rito Santo.

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade

Desde que aqui e acolá, através do Espírito Santo, os h o ­m ens se encontram com Jesus Cristo e, desta forma, tam bém um com o outro,

a com unidade cristã visivelmente surge e existe aqui e acolá.

É um a forma do único, universal e santo povo de Deus, e um a com unhão

de hom ens e obras santas, que se subm ete ao governo único de Jesus Cristo, em quem ela

está fundam entada , que tam bém almeja viver som ente no cum prim en to do seu serviço com o

embaixadora, reconhecendo seu objetivo unicam ente na sua esperança,

que é o seu limite.

D evem os ser breves nesta parte, que p o r direito d e ­veria ser tra tada muito com pletamente. Nossas horas de palestra são num eradas. Mas talvez não haja n e n h u m prejuízo nisso. Hoje, há coisas demais ditas sobre a Igreja. Há algo melhor: vamos ser a Igreja!

Seria um grande lucro, se o urgente desejo de Lutero tivesse sido cum prido e a palavra “congregação” tivesse tom ado o lugar da palavra “Igreja”. Claro que podem os

204 - Ksboço de uma Dogmática

achar na palavra “Igreja” o que é b o m e verdadeiro , u m a vez que Igreja significa Kyriake Oikia, a Casa do Senhor; ou, o rig inada de circa, u m espaço c ircular fechado. As duas explanações são possíveis, mas ekklesia certam en te significa congregação, um ajuntamento, que surge da convocação para a assembléia nacional que se encon tra ao ch am am en to do m ensageiro, ou melhor, ao som da tro m b e ta do arauto.

U m a congregação é o a jun tam en to daqueles que pe r tencem a Jesus Cristo através do Espírito Santo. O u v i­mos que estes hom ens especiais per tencem , de u m a form a especial, a Jesus Cristo. Isto acontece qu an d o os hom ens são cham ados pelo Espírito Santo para p a r t ic ip a ­rem na Palavra e obra de Cristo. Esta associação especial tem sua analogia ao nível horizontal na associação d a q u e ­les h om ens uns com os outros. O de rram am en to do Espí­rito Santo afetou d ire tam ente o a jun tam en to destes hom ens. Não podem os falar do Espírito Santo - isto p o r ­que é neste pon to que a congregação aparece im ed ia ta ­m en te - sem a continuação do credo ecclesiam, creio na existência da Igreja. Reciprocam ente, ai de nós, quem so ­m os nós q u an d o falamos da Igreja sem estabelecê-la to ­ta lm ente na obra do Espírito Santo! Credo in Spiritum sanctum , mas não Credo in ecclesiam: Creio no Espírito Santo, mas não na Igreja. Ao contrário , creio no Espírito Santo, e, portan to , tam b ém na existência da Igreja, da congregação. Portanto , devem os elim inar todas as idéias de ou tra assembléia h u m a n a ou sociedades que têm exis­tido, parc ia lm ente pela natureza, parc ia lm ente pela h is tó ­ria, na base de acordos e organizações. A congregação cristã surge e existe, n em p o r natureza n em pela decisão h is tórica hum ana , mas com o um a divina convocatio. Aqueles cham ados ao a jun tam ento pela obra do Espírito Santo congregam -se ao serem convocados p o r seu Rei.

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade - 205

O nde a Igreja coincide com a vida natura l da c o m u n i­dade, com, por exemplo, aquela das nações, o perigo de u m a m á com preensão sempre é ameaçador. Ela não pode ser fo rm ada por mãos hum anas; po r isto a en tusiasm ada e rápida fundação de igrejas, tal com o acontece na A m é ­rica e tam bém algumas vezes na H olanda, é u m negócio duvidoso. Calvino gostava de aplicar à Igreja u m a co n ­cepção militar, a de la compagnie desfidèles. U m a c o m p a ­nhia geralm ente vem do a juntam ento sobre a base de u m com ando e não sobre a de um livre acordo.

Através de hom ens se congregando aqui e acolá no Espírito Santo surge aqui e acolá u m a congregação cristã visível. É m elhor não aplicar a idéia de invisibilidade para a Igreja; som os todos inclinados a escorregar com isto na direção de um a civitas platônica ou algum a espécie de “te rra de cucos nas nuvens”, na qual os cristãos estão u n i ­dos in tim am ente e invisivelmente, enquan to a Igreja visí­vel é desvalorizada. No Credo dos Apóstolos ela não é u m a es tru tu ra invisível que é planejada, mas u m a jun ta ­m en to com pletam ente visível, que se origina com os doze Apóstolos. A prim eira congregação era u m g rupo visível, que causou um alvoroço público visível. Se a Igreja não tem esta visibilidade, então não é a Igreja. Q u an d o digo congregação, estou pensando p r im ariam en te na form a concreta de u m a congregação em local particular. É claro que cada u m a destas congregações tem seus problem as, com o a congregação de Roma, de Jerusalém etc. O Novo Testamento nunca apresenta a Igreja fora dos seus p rob le ­mas. Sempre que um problem a de variação na congrega­ção individual aparece, pode levar a um a divisão. Tudo isto pertence à visibilidade da Igreja, que é o objeto do se­gundo artigo. Crem os na existência da Igreja - o que sig­nifica que crem os que cada congregação em particu lar seja u m a congregação de Cristo. G uarde bem isto: um a

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pessoa que não crê que nesta congregação à qual p e r ­tence, inc lu indo aqueles hom ens e m ulheres, viúvas e c r i­anças, a congregação de Cristo existe, não crê na existência da Igreja. Credo ecclesian significa que creio que aqui, neste lugar, nesta assembléia visível, a ob ra do Espírito Santo acontece. Por isto não p re tendo u m a deifi- cação da criatura; a Igreja não é o objeto da fé, não cre­m os na Igreja; mas crem os que nesta congregação a obra do Espírito Santo se to rn a um evento. O m istério da Igreja é que para o Espírito Santo não é pouca coisa ter tais formas. C onseqüentem ente , existem na verdade não m uitas Igrejas, mas um a Igreja em te rm os desta ou d a ­quela igreja concreta, que reconheceria a si m esm a com o u m a Igreja e todas as outras tam bém .

Credo unam ecclesiam: creio em u m a fo rm a do povo de D eus que ouviu a voz do Senhor. Existem ta m b é m d i­ferenças arriscadas com o aquela, p o r exemplo, en tre a nossa e a Igreja Católica Rom ana, na qual não é simples reconhecer u m a Igreja. Mas, m esm o assim, a Igreja ainda é mais ou m enos reconhecível. Mas, antes de tudo , os cristãos são sim plesm ente convocados para crer em D eus com o a origem com um , o objetivo c o m u m da Igreja para o qual eles são cham ados. Não som os colocados n u m a torre, da qual podem os vislum brar todas as variedades de Igrejas; s im plesm ente estam os na te rra n u m lugar defi­n ido e existe a Igreja, a ún ica Igreja. C rem os n a u n idade da Igreja, na u n idade das congregações, se c rem os na existência da nossa Igreja concreta. Se crem os no Espírito Santo nesta Igreja, então m esm o na p io r das h ipóteses não som os abso lu tam ente separados das ou tras congrega­ções. Os verdadeiros cristãos ecum ênicos não são aqueles que vu lgarizam as diferenças e f lu tuam acim a delas; mas são aqueles que em suas respectivas igrejas são concreta- m en te a Igreja. “O n d e dois ou três estiverem reun idos em

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m eu nom e, aí estarei” (Mt 18.20) - isto é a Igreja. Nele, apesar de todas as variedades nas congregações ind iv idu ­ais, estarem os unidos, de algum a forma, uns com os o u ­tros.

“Creio na santa... Igreja”. Qual é o significado de sancta ecclesia? Segundo o costum e do term o, ele significa “estar separado”. Pensamos na origem da igreja, daqueles cham ados do m undo. “Igreja” sem pre significará u m a se­paração. O uvim os que há tam bém sociedades natura is e históricas, mas som ente a congregação cristã é a ecclesia sancta. Ela é d istin ta de toda estas sociedades po r causa da sua comissão, seu fundam en to e seu objetivo.

“Creio na santa igreja católica [universal]...” - eccle­sia catholica. O conceito de catolicidade está m anchado para nós, porque em conexão com isso pensam os da Igreja Católica Romana. Mas os Reform adores in d u b ita ­velmente fizeram um a reivindicação sobre este conceito para si mesmos. O que está envolvido é o povo único, santo e católico de Deus. Fundam enta lm en te os três co n ­ceitos fazem a m esm a declaração: ecclesia catholica s ign i­fica que através de toda a h istória a Igreja perm anece a m esm a consigo mesma. Ela não altera sua natureza. Há, evidentem ente, diferentes formas nas principais igrejas. H á tam bém fraquezas, perversões, erros em todas elas. Mas não há igrejas substancialm ente diferentes. A opos i­ção a elas poderia ser apenas aquela de que há verdadeiras e falsas igrejas. Faremos bem em não incluir esta oposição com m uita rapidez e freqüência den tro da discussão.

A Igreja é a com unhão dos santos, com m unio sanc­torum. Aqui existe u m problem a de exegese: é o n o m in a ­tivo sancti ou sancta? Não quero decidir esta d isputa , mas apenas falar se não existe a intenção de um a am bigü idade notável n u m sentido mais profundo. Pois som ente quando as duas interpretações são assimiladas lado a

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lado, a questão recebe seu com pleto e m e lho r significado. Sancti significa não especialm ente u m povo excelente, mas, p o r exemplo, povo com o os “santos em C orin to”, que foram santos ex trem am ente esquisitos. Mas estes co m p a ­nheiros esquisitos, a quem tam bém pertencem os, são sancti. A congregação é o lugar onde a Palavra de D eus é p roc lam ada e os sacram entos são solenizados e o c o m p a ­nheirism o da oração acontece, não m en c io n an d o os dons e obras interiores, que são o significado daqueles ex te r io ­res. Então, sancti pertence a sancta e vice-versa.

D eixe-me recapitular: Credo ecclesiam significa que creio que a congregação à qual pertenço, na qual tenho sido cham ado à fé e sou responsável pela m in h a fé, na qual tenho m eu ministério , é aquela Igreja santa e u n iv e r ­sal. Se não acredito nela, não acredito em nada dela. N em falta de beleza, n em “rugas e m anchas” nesta congregação p o d em desviar-m e do cam inho. O que está envolvido aqui é u m artigo de fé. Não há sentido, q u an d o buscam os a “verdadeira” congregação, abandonar a congregação concreta. Em todo lugar estam os nos “re lac ionando com h o m e n s”. Claro, a separação não pode ser excluída; ela pode ser ob je tivam ente necessária. Mas n e n h u m a divisão jam ais levará o “relacionam ento com h o m e n s” a ser ex­cluído com ple tam en te em um a recém -separada co n g re ­gação do Espírito Santo. Q u an d o os R eform adores chegaram e a Igreja R om ana pe rm aneceu atrás da Igreja R eform ada e separada dela, não estava em ação na Igreja evangélica n e n h u m a Igreja im aculada, pois ela tam b ém estava cheia de “m anchas e rugas” até nossos dias. Pela fé certifico que a congregação concreta a qual pe r tenço e pela vida da qual sou responsável, está designada para a tarefa de fazer neste lugar, nesta forma, aquela santa Igreja universal visível. D izendo Sim p a ra isto, com o aquele que pertence a outras congregações pelo Espírito

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Santo, espero e tenho esperança de que o Espírito Santo de Jesus Cristo atesta nisto e através disto tam b ém aos o u ­tros e confirm a que nisto aquela natureza santa e un ive r­sal da Igreja se to rnará visível.

N o Credo de Nicéia um quarto pon to é acrescen­tado a estes três predicados da Igreja, que eu creio n a ­quela una, santa, católica e apostólica Igreja. Mas este quarto predicado não perm anece s im plesm ente n u m a fi­leira com os outros três predicados, mas p rocu ra explicá- los. Qual é o significado de Unidade, Catolicidade, Santi­dade? O que distingue a congregação de todas as outras sociedades do tipo natural ou m esm o histórico? Talvez possam os dizer que ela é a ecclesia apostolica - isto é, a Igreja fundada sobre o testem unho dos A póstolos - que transm ite seu testem unho e que foi consti tu ída e será constitu ída sem pre em novidade pelo fato de que ela ouve o te s tem unho dos Apóstolos. Somos desafiados com a com pleta totalidade da existência da Igreja e ao m esm o tem po com a totalidade dos problemas, nos quais não te ­m os tem po nem espaço para entrar. Mas ten tarei to rn a r visível em três linhas o que a apostolicidade da Igreja sig­nifica.

Nossa declaração de abertura diz que a congregação cristã é “u m a com unhão de hom ens e obras santas, que se subm ete ao governo único de Jesus Cristo, em quem ela está fundam en tada , que tam bém almeja viver som ente no c um prim en to do seu serviço com o em baixadora, reco­nhecendo seu objetivo unicam ente na sua esperança, que é o seu limite”. Aqui você vê as três linhas que estão envol­vidas.

O nde a Igreja Cristã está, estamos obviam ente co ­nectados de u m a form a ou ou tra com Jesus Cristo. Este nom e indica a unidade, santidade e universalidade da Igreja. Q uer esta base e apelo aconteça de jure é a questão

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que deve ser levantada em cada congregação em todo lu ­gar. O nde a Igreja Apostólica está, a Igreja que ouve e transm ite o te s tem unho dos Apóstolos, u m sinal def in i­tivo estará vivo, u m a nota ecclesiae, de que Jesus Cristo, a saber, não é apenas aquele de quem a igreja se origina, mas que Cristo é aquele que governa a congregação. Ele, e som ente ele! Em n e n h u m lugar ou espaço a Igreja é um a au toridade que se susten ta a si m esm a, mas - e aqui se se­gue u m im portan te princíp io com relação ao governo da Igreja - fundam en ta lm en te a Igreja não pode ser gover­nada n em m onarqu icam en te n em dem ocra ticam ente . Aqui Jesus Cristo governa sozinho, e qua lquer governo do h o m e m po d e apenas representar este governo dele. E deve deixar-se m ed ir po r este governo. M as Jesus Cristo governa em sua Palavra pelo Espírito Santo. O governo da Igreja é, assim, idêntico com a Sagrada Escritura, através do seu te s tem unho dele. Portanto, a Igreja deve c o n t in u a ­m ente estar o cupada com a exposição e aplicação da Es­critura. O n d e a Bíblia se to rn a u m livro m o rto com a cruz sobre a capa e m argens douradas, o governo de Jesus na Igreja é inativo. Neste caso, a Igreja não é m ais aquela santa Igreja universal, mas perm anece a am eaça de r u p ­tu ra naquilo que é profano e separatista. Evidente que até m esm o esta “Igreja” se cham ará pelo n o m e de Jesus Cristo. Entre tan to , não são as palavras, m as a realidade que interessa; e tal Igreja não estará n u m a posição para trazer a realidade à ação.

A vida da ún ica santa Igreja universal está d e te rm i­nada pelo fato de que ela é o cum prim en to do m in is té rio de em baixadora o rdenado sobre ela. A Igreja vive com o outras com unidades vivem, mas neste m in is té rio da Igreja sua na tu reza aparece - p roclam ação da Palavra de Deus, adm in is tração dos sacram entos, u m m aio r ou m e ­n o r desenvolvim ento litúrgico, a aplicação da lei da Igreja

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade -211

(a tese de R. Sohm é um trabalho fantástico, pois até m esm o a p rim eira congregação tinha ao m enos u m o rd e ­nam en to com o Igreja, isto é, Apóstolos e congregação) e, po r últim o, um a teologia. O grande problem a, que a Igreja tem de responder repetidas vezes, é este - o que acontece em e po r meio de todas estas funções? É um a questão de edificação? É a bem -aventurança de ind iv í­duos ou tudo que o envolve? É o cultivo da religião viva, ou objetivam ente um a ordem (segundo o conceito o n to ­lógico de Igreja) que deve simplesm ente ser cum prida com o a obra de D eus7. O nde a vida da Igreja está exaurida no auto-serviço, tem-se o gosto de morte; o e lem ento d e ­cisivo foi esquecido, de que a vida inteira é vivida apenas no exercício do que cham am os m inistério de em baixador da Igreja, proclamação, kerygma. U m a Igreja que reco ­nhece sua comissão não desejará, nem estará apta a p e t r i ­ficar em quaisquer de suas funções, para ser u m a Igreja em interesse próprio. Há o “grupo dos crentes em Cristo”; mas este g rupo foi enviado: “Ide e pregai o Evangelho!” Ele não diz, “Ide e celebrai o m inistério!”; “Ide e edificai a vós m esm os com o serm ão!”; “Ide e celebrai os S acram en­tos!”; “Ide e apresentai-vos na liturgia, que p o rv en tu ra re ­pita a liturgia celestial!”; “Ide e deixai o legado de u m a teologia que possa gloriosamente se desdobrar com o a Su m m a de T hom as de A quino!” Claro, não há nada que proíba tudo isto; pode haver um a boa causa para fazer tudo isto; mas nada, nada afinal para seu interesse p ró ­prio! Nela, todas aquelas coisas devem prevalecer: “Pregai o Evangelho a toda criatura!” A Igreja corre com o o arauto para entregar a mensagem. Não é u m caracol que transpo rta sua pequena casa sobre suas costas e está tão bem acom odado, que apenas ocasionalm ente liga suas antenas, e depois pensa que a “exigência de publicidade” foi satisfeita. Não, a igreja vive pela sua com issão com o

212 - Esboço de um a Dogmática

arauto; ela é la compagnie de Dieu. O nde a Igreja está viva, ela deve p e rg u n ta r a si m esm a se está serv indo esta c o ­m issão ou se to rnou -se u m objetivo em si m esm a? Se o ú ltim o for o caso, então com o regra ela com eça a ter o gosto pelo “sagrado”, com afetos de piedade, a agir com o sacerdote e m u rm urado r . Q ualquer u m com nariz ag u ­çado sentirá o cheiro e achará formidável! O C ris tian ism o não é “sagrado”; pelo contrário ele respira o ar fresco do Espírito. De ou tra forma, não é Cristianism o. Pois ele é algo “m u n d a n o ” exposto para toda hum an idade : “Ide po r todo o m u n d o e pregai o Evangelho a toda cria tu ra”.

Agora, o ú lt im o ponto, de que onde a Igreja estiver, tam b ém haverá u m alvo, o reino de Deus. Este objetivo da Igreja está destinado a consti tu ir u m a con tínua in q u ie ­tação para os h om ens na Igreja, cuja ação não tem n e ­n h u m a relação com a grandeza do objetivo. N ão devem os p e rm iti r que a existência cristã, isto é, a existência da Igreja, a existência teológica, seja p rivada deste. Pode acontecer que queiram os largar a m ão do arado, q uando com param os a Igreja com este objetivo. Podem os, com freqüência, ter u m a aversão pela vida da Igreja com o u m todo. Se você não conhece esta opressão, se você s im ples­m ente s e n te -s ’ b em den tro das paredes da Igreja, você certam ente não viu a verdadeira d inâm ica desta questão. Na Igreja po d em o s ser com o u m pássaro na gaiola que está sem pre se debatendo con tra as grades. Algo bem m aio r está em jogo do que nosso p u n h ad o de pregação e liturgia! Mas onde a Igreja Apostólica está viva, a lguém conhece, verdadeiram ente , este anseio, nós ansiam os pela m ansão p reparada para nós, mas não fugirm os, s im ples­m en te não abandonam os. Pela esperança do reino, nós não nos perm itim o s ser im pedidos de p e rm a n ece r com o um soldado raso na compagnie de Dieu, e assim avançar para o alvo. O limite nos é m arcado pelo alvo. Se real-

A Igreja, Sua Unidade, Santidade e Universalidade -2 1 3

m ente esperam os pelo reino de Deus, então podem os su ­p o r ta r a Igreja em sua insignificância. Então não ficaremos envergonhados em descobrir na congregação concreta a única Igreja santa e universal, e en tão n e n h u m indivíduo será envergonhado da sua confissão particular. A esperança cristã, que é a coisa mais revolucionária que som os capazes de pensar e além da qual todas as outras revoluções são meros cartuchos vazios, é u m a esperança disciplinada. Ela orienta o hom em nas suas limitações: nela você persevera. O Reino de Deus é chegado, p o r ­tanto, você não deve com eçar a luta pelo Reino de Deus. Tome seu lugar e esteja em seu lugar com o u m verdadeiro minister verbi divini. Você pode ser u m revolucionário, mas você pode ser tam bém um conservador. O n d e este contraste entre revolucionário e conservador está un ido em u m hom em , onde ele pode ser de um a vez com ple ta ­m ente ansioso e com pletam ente tranqüilo, onde ele pode estar com os outros desta m aneira na congregação, na qual os m em bros reconhecem um ao ou tro em anseio e em hum ildade na luz do divino humor, ele fará o que tem de fazer. Nesta luz toda nossa ação na Igreja é perm itida e, na verdade, recom endada. Portanto, a Igreja, esperando e apressando, cam inha ao encontro da v inda do Senhor.

O Perdão dos Pecados

O h o m e m cristão olha para trás e, apesar do seu pecado, recebe o testem unho, através do Espírito Santo

e através do santo batismo, da m orte de Jesus Cristo e assim da justificação

da sua própria vida.Sua fé, po r último, está fundada

no fato de que o próprio Deus, tom ando o lugar do hom em em Jesus Cristo,

assumiu responsabilidade incondicional por seu cam inho.

Este é o cam inho do hom em cristão, que foi cons ti­tu ído pela graça de Deus e que tem seu lugar na congre­gação. Não devemos, portanto, sob circunstância alguma, separar o que temos ouvido agora, perdão dos pecados, ressurreição do corpo e vida eterna, do fato de que Deus, pelo Espírito Santo, age de m aneira tal que há hom ens que ouvem, e surge um a congregação. O cam inho do cris­tão é derivado do perdão dos pecados e conduz à ressu r­reição do corpo e vida eterna. Esta origem do h o m e m cristão está concentrada, realmente e substancialm ente nu m único ponto. Este ponto é o centro do segundo a r ­tigo, a paixão e ação de Jesus Cristo. Estamos jun to s com

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ele no Espírito Santo. Somos a sua congregação, e tudo que é nosso é orig inalm ente e par ticu la rm en te dele. Vive­m os pelo que ele é. Não devem os nos afastar deste centro de toda a verdade. Perdão dos pecados, ressurreição, vida ete rna não são coisas externas a Cristo, m as são a ação de Deus na sua luz. Ele, o Único, ilum ina, e o h o m e m cristão m ove-se em sua luz. O que distingue o h o m e m cristão é que ele perm anece neste feixe de luz que vem de Cristo. Mas esta existência na luz não é u m propósito egoísta, p o ­rém o h o m e m cristão move-se nesta luz, a fim de ter luz em si m esm o. D eus am ou o m u n d o de tal m ane ira que deu o seu único Filho. Cristãos são m ensageiros no lugar de Cristo. Mas aqui na congregação ele é reconhecido, ele é visto e experim entado , o que Cristo é para o ho m em , para todos os hom ens, a fim de que o te s tem u n h o possa ser conduzido daqui.

Creio no perdão dos pecados - este é o p o n to no qual o cristão obviam ente olha para trás no cam in h o do qual ele vem. N ão som ente no m o m en to da sua conver­são’, m as é o que acontece sem pre q uando o cristão olha para trás: ele está o lhando para o perdão dos pecados. Este é o acon tecim ento que o confron ta e o im pele para u m a atitude, isto e nada mais. N ão se acrescenta a isto, com o perdão dos pecados e m in h a experiência ou perdão dos pecados e m inhas realizações! O que está em re tro s ­pecto, sabem os p o r nós m esm os, som ente p o d e ser isto, que vivemos através do perdão. Para serm os honestos, so ­m os indigentes.

Se perdão dos pecados significa tudo que ficou para trás de nós, então u m julgam ento passou sobre nossa vida. N ão há n e n h u m mérito, aquele da gratidão, d iga­mos, no qual tenho oferecido toda espécie de coisas ao querido Deus. Tenho sido um lutador! Tenho sido u m te ­ólogo! Talvez tenha escrito livros! Não, isto não justifica.

O Perdão dos Pecados -2 1 7

Tudo que fomos e fizemos estará sujeito ao ju lgam ento de que estava em pecado. E pecado significa transgressão, desvio. Se havia algum a coisa a mais, sem pre foi a coisa que veio de cima, da qual não tem os de que nos jactar, m esm o porque é a m isericórdia de Deus. Todo dia deve­mos começar, podem os com eçar com a confissão: “Creio no perdão dos pecados”. Na breve hora da nossa m orte ainda terem os mais para dizer. Talvez possam os m elhor clarificar o conceito de perdão ou remissio, com o algum a coisa que foi gravada em escritos, po r exemplo, nossa vida; agora um grande golpe, e ele é retirado por inteiro. Ele merece ser retirado e - graças a Deus! - será retirado. Apesar do m eu pecado, agora posso aceitar u m te s tem u ­nho de que m eu pecado não será mais lem brado para mim. Não posso, po r m im mesmo, removê-lo de m im mesmo. O pecado significa a perdição eterna do hom em . C om o poderíam os por nós m esm os conduzir esta re m o ­ção? Q ue tenho pecado significa que sou um pecador.

Mais u m a vez tudo isto nos leva ao te s tem unho do Espírito Santo, o testem unho da Palavra de D eus ouvida e o tes tem unho do batismo. Pois a relevância do santo b a ­tismo é esta, de que podem os duran te toda a nossa vida pensar no fato de que somos batizados; assim com o Lu­tero na tentação apanhou um giz e escreveu na lousa, baptizatus sum. O batism o fala de m im com pletam ente, independen tem en te se sempre estive atento ao te s tem u ­nho do Espírito Santo com a m esm a vivacidade. H á algo de errado com a nossa percepção. Há um sobe e desce nela; algumas vezes a Palavra não é viva para m im , e é aqui onde o fato pode intervir, de que sou batizado. Mais u m a vez em m in h a vida um sinal foi estabelecido, de que estou seguro m esm o quando o te s tem unho do Espírito Santo não me alcança. Assim com o nasci, tam bém fui b a ­tizado. C om o um a pessoa batizada, to rne i-m e u m a teste-

218 - Esboço de um a Dogmática

m u n h a para m im mesm o. O batism o não co n firm a nada além do que o Espírito Santo confirm a, p o rém com o um a pessoa batizada posso po r m im m esm o ser u m a te s te m u ­nha para o Espírito Santo e res taurar a m im m esm o po r este testem unho . O batism o m e lem bra do m in is tério do testem unho , u m a vez que ele m e leva ao a r rep en d im en to diário. Ele é u m sinal estabelecido em nossa vida. C om o as braçadas do n ad ad o r estão sem pre em m ov im en to para que ele não afunde, assim o batism o nos cham a de volta ao testem unho.

Mas este te s tem unho é a Palavra de D eus para nós, dizendo: Você, ó hom em , com seu pecado, pe r tence c o m ­pletam ente, com o p ropriedade de Jesus Cristo, ao d o m í­nio da m isericórd ia inconcebível de Deus, que não nos vê com o aqueles que vivem po r viver e agem p o r agir, mas diz para nós, ‘Você está justificado’. Para M im você não é mais u m pecador, mas onde você está ta m b ém Eu estarei. O lhe para este O utro . Se você está ansioso sobre com o se arrepender, deixe apenas que se lhe diga: “Teus pecados foram p e rd o ad o s”. Se você pergun ta r “que mais posso fa­zer, com o adequar m in h a vida em com panhe ir ism o com D eus”, deixe a resposta chegar até você de que a expiação po r sua vida já foi realizada e sua co m u n h ão com D eus com pletada. Sua reação, ó filho do hom em , consiste ap e ­nas na aceitação desta situação, de que D eus o vê agora mais u m a vez e o recebe mais u m a vez em Sua luz, com o a c ria tu ra que você é. “Fomos sepultados com ele na m orte po r m eio do ba tism o” (Rm 6.4). Batismo é a rep resen ta ­ção da m o rte de Cristo no meio da nossa vida. Ele nos diz que qu an d o Cristo foi m orto e sepultado ta m b ém fomos m ortos e sepultados, nós transgressores e pecadores. C om o aquele que foi batizado, você pode ver você m esm o com o m orto . O perdão dos pecados repousa no fato de que este m o rre r aconteceu no tem po no Gólgota. O ba-

O Perdão dos Pecados - 219

tism o diz a você que aquela m orte foi tam b ém a sua m orte.

O Próprio Deus, em Jesus Cristo, to m o u a iniciativa de dar o p rim eiro passo no lugar do hom em . Pensam os mais u m a vez na nossa declaração de que a reconciliação é u m a troca. Deus agora assume a responsabilidade po r nós. Agora som os sua propriedade, e ele nos tem à sua disposição. Nossa própria indignação não nos afeta mais. Vivemos agora pelo fato de que ele faz isto, o que significa não u m a existência passiva, mas u m a existência ex trem a­m ente ativa. Se puderm os usar a figura, p odem os pensar em u m a criança desenhando um objeto. Ela não consegue fazê-lo. Então o professor senta-se no lugar do aluno e d e ­senha o m esm o objeto. A criança fica ao seu lado e ape­nas olha, enquanto o professor traça os finos desenhos em seu próprio caderno de exercícios. Isto é justificação - D eus realizando em nosso lugar o que não po d em o s rea ­lizar. Fui desem baraçado das formas minúsculas; agora, se ainda há algo a ser dito contra m im , verão que isto não mais m e diz respeito, mas àquele que sentou-se no m eu lugar. E todos os que têm algum a reclamação con tra m im , o diabo e suas legiões e aqueles queridos com panheiros , se ousarem erguer-se contra m im , verão ele sen tado em m eu lugar. Esta é m inha situação. Assim, sou inocente, posso m e rejubilar com pletamente, po rque as acusações con tra m im cessaram. A justiça de Jesus Cristo agora é m inha justiça. Isto é o perdão de pecados. “C om o és tu justo diante de Deus? Somente pela fé em Jesus Cristo” (Pergunta 60, Catecismo de Heidelberg). Foi assim que a Reform a viu a questão e a expressou. D eus nos concedeu que aprendam os como adquirir mais u m a vez a verdade com pleta da vida que resulta dela.

Agora não devemos dizer que isto não é suficiente para viver pelo perdão ‘som ente’. Esta objeção foi levan­

220 - Ksboço de um a Dogmática

tada con tra o C redo e fortem ente con tra os R efo rm a d o ­res. Q ue tolice! C om o se quisesse dizer que o pe rdão dos pecados, não fosse a única coisa pela qual vivemos, o p o ­der de todos os poderes! C om o se tudo não estivesse la ­tente na frase! É precisam ente qu an d o estam os conscientes de que ‘Deus é po r m im ’, que sou no v e rd a ­deiro sen tido responsável. Pois deste pon to de vista e so ­m ente dele há u m a ética verdadeira, tem os u m critério do b em e do mal. Portanto , viver pelo perdão não significa de qua lquer m ane ira passividade, mas o viver cristão em sua plenitude. Se preferirm os descrevê-la com o a g rande liberdade ou u m a disciplina estrita, com o a p iedade ou com o verdadeiro m undan ism o, com o m ora lidade p a r t i ­cular ou com o m ora lidade social, se o lham os para esta vida sob o signo da grande esperança ou sob o signo da paciência diária, de qualquer form a vivemos apenas pelo perdão. Aqui está a dis tinção entre o cristão e o pagão, o cristão e o judeu. O que não passa sobre esta lâm ina afi­ada do perdão de pecados, ou graça, não é cristão. Por isto serem os julgados, sobre isto o Juiz u m d ia ques tio ­nará, quer você viva pela graça ou já escolheu deuses para si m esm o, ou talvez queira se to rn a r com o um . Você tem d em o n strad o a fé de u m servo, que não tem do que se ja c ­tar? N este caso você é aceito; desta fo rm a você ce r ta ­m en te tem sido m isericord ioso tam b ém e tem p e rdoado seus devedores; tam b ém tem seguram ente confo r tado o u ­tros e sido a luz, suas obras tam bém têm se d em o n s trad o boas, obras que fluem do perdão dos pecados. A pergun ta sobre estas obras é a pergun ta do Juiz, que tem os de e n ­frentar.

A Ressurreição do Corpo e a Vida Eterna

O olhar do cristão para além e apesar da sua m orte , re ­cebe do Espírito Santo e da Ceia do Senhor

o testem unho da ressurreição de Jesus Cristo e assim da

conclusão da sua própria vida.Sua fé nisto está fundam entada no fato

de que, u m a vez que ao hom em é perm itido tomar, em Jesus Cristo, o lugar de Deus, foi-lhe concedido a p a r ­

ticipação incondicional na glória de Deus.

U m cristão olha para trás, falamos na declaração de abertu ra anterior. U m cristão olha para frente, dizem os agora. Este olhar para o passado e olhar adiante cons ti­tuem a vida do cristão, a vita hum ana Christiana , a vida de vim h o m e m que recebeu o Espírito Santo, que pode v i­ver na congregação e é cham ado para ser nela u m a luz para o m undo .

Um ho m em olha adiante. Fazemos u m a volta, com o se fosse de 180 graus: atrás de nós está o nosso pecado e diante de nós a m orte, o morrer, o caixão, o túm ulo , o fim. O h o m e m que não leva isto seriamente, o fato de que estam os olhando para este fim, o hom em que não percebe o que o m o rre r significa, que não fica apavorado com isto,

222 - Esboço dc um a Dogmática

que não tenha talvez a alegria suficiente na vida e assim não conhece o tem o r do fim, que ainda não e n ten d eu que esta vida é u m D o m de Deus, que não tem inveja da lo n ­gevidade dos patriarcas, que não t in h am apenas cem, mas trezentos, e quatrocentos, ou mais anos, o h o m e m que, em outras palavras, não assimilou a beleza desta vida, não pode com preender o significado da “ressurre ição”. Pois esta palavra é a resposta ao te rro r da m orte , o te r ro r de que esta vida algum dia chegará ao fim, e este fim é o h o ­rizonte d a nossa existência. “No m eio da vida som os afi­velados à morte...” A existência h u m a n a é u m a existência sob esta am eaça, m arcada p o r este fim, p o r esta co n tra d i­ção con t inuam en te levantada con tra nossa existência: você não p o d e viver! Você crê em Jesus Cristo e p o d e ap e ­nas crer, e não ver. Você está d iante de D eus e gostaria de se regozijar e pode se regozijar, todavia deve e x p e r im e n ­ta r a cada d ia com o seu pecado é novo a cada m anhã . H á paz, e, todavia, apenas a paz que p o d e ser con firm ada p o r m eio da luta. Aqui en tendem os, e, todavia, ao m esm o tem po en tendem os tão pouco. H á vida, m as a v ida a inda no vale da som bra da m orte. Estam os lado a lado, p o rém u m dia nos separarem os u m do outro. A m o rte põe seu selo sobre tudo; é o salário do pecado. A con ta está fe­chada, o caixão e a co rrupção são a ú lt im a palavra. A d is ­pu ta está decidida, e decidida con tra nós. Isto é a m orte.

A gora o cristão olha adiante. Q ual o s ignificado da esperança cristã nesta vida? U m a vida após a m orte? U m evento fora da m orte? A pequena alm a que, com o a b o r ­boleta, esvoaça sobre a sepultura e a inda é p reservada em algum lugar, a fim de viver em im ortalidade? É assim que os pagãos vêem a vida após a morte. Mas isto não é a es­p erança cristã. “Creio na ressurreição do co rpo”. C o rp o na Bíblia é s im plesm ente o hom em ; ho m em , além disto, sob o signo do pecado, h o m e m caído. Para este h o m e m é

A Ressurreição do C orpo c a Vida Eterna - 223

dito “Tu ressuscitarás”. Ressurreição significa não a co n t i­nuação desta vida, mas sua conclusão. Para este h o m e m u m “Sim” é dito onde a som bra da m orte não pode alcan­çar. N a ressurreição, nossa vida está envolvida, nós, h o ­m ens com o som os e estamos situados. Nós ressuscitare­mos, n inguém mais tom ará nosso lugar. “Seremos transfo rm ados” ( IC o 15); isto não quer dizer que um a vida diferente se inicia, mas “o corruptível se revestirá de incorruptib ilidade e o m ortal de im orta lidade”. Então será manifesto que “a m orte foi tragada pela vitória”. Portanto, a esperança cristã afeta nossa vida com o u m todo; as n o s ­sas vidas serão completadas. Esta que foi sem eada em d e­sonra e fraqueza ressuscitará em glória e poder. A espe­rança cristã não nos conduz para longe desta vida; pelo contrário , é a revelação da verdade na qual D eus vê nossa vida. É o tr iunfo sobre a morte, mas não u m vôo para o Além. A realidade desta vida está envolvida. A escatolo- gia, corre tam ente entendida, é a coisa mais prá tica que pode ser considerada. Nela, a luz cai sobre nossas vidas. Esperam os p o r esta luz. “Nós te oferecemos esperança”, disse Goethe. Talvez até ele m esm o sabia desta luz. A m ensagem cristã, em toda medida, de m o d o confiante e confortante, proclam a esperança nesta luz.

É verdade que não podem os nos conceder ou p e rsu ­adir de que tem os esta esperança de que nossa vida será concluída. Ela deve ser crida, apesar da m orte. O h o m e m que não conhece o que é a m orte tam bém não conhece o que é a ressurreição. É necessário o te s tem unho do Espí­rito Santo, o testem unho da Palavra de Deus p roclam ada e ouvida na Escritura, o testem unho do Jesus Cristo res- surreto, a fim de que se creia que haverá luz e que esta luz com pletará nossa vida incompleta. O Espírito Santo, que fala a nós na Escritura, nos ensina que po d em o s viver esta grande esperança.

224 - Esboço de uma Dogmática

A Ceia do Senhor pode ser m ais com p reen d id a do pon to de vista da Páscoa, do que geralm ente a vemos. Não é p r im ar iam en te u m a refeição de luto ou fúnebre, mas a an tecipação da festa de casam ento do Cordeiro . A Ceia é u m a refeição alegre: o com er da carne dele, Jesus Cristo, e beber do seu sangue, é com ida e bebida da vida e terna no m eio da nossa vida. Somos convidados à sua m esa e assim jam ais serem os separados dele. Portanto , neste sinal o te s tem unho da sua refeição está un id o ao te s tem unho do Espírito Santo. A Ceia verdade iram en te nos diz, “você não m orrerá , mas viverá”, e p roc lam a a obra do Senhor! Vocêl Somos convidados à M esa do Se­nhor, que não é apenas u m a imagem; é u m acon tec i­m ento. “Todo o que crê em m im terá vida e te rna”. Sua m o rte está posta na m orte . Você já está, na verdade, morto. O te rro r que você enfrenta, você já deixou c o m ­p le tam ente para trás. Você deve viver com o u m conv i­dado para esta mesa. Você deve ir na força desta com ida quaren ta dias e quaren ta noites. Nesta força isto é p o ss í­vel. Deixe prevalecer isto, que você com eu e bebeu; deixe tudo que é m orta l que o c ircunda ser conquistado. Não acalente seu lam ento com ternura; não faça u m pequeno ja rd im disso com salgueiros chorões suspensos! “N ão to r ­nem os a cruz e a d o r m aiores do que a nossa m elancolia”. Somos cham ados para um a situação diferente. “Se m o r re ­m os com Cristo, cremos que tam bém com ele v iverem os” (Rm 6.8). O h o m e m que crê nisto já com eçou aqui e agora a viver a v ida plena.

A esperança cristã é a sem ente da vida eterna. Em Jesus Cristo não estou mais nu m pon to no qual posso m orrer; nele nosso corpo já está no céu (Pergunta 49, Ca­tecismo de Heidelberg). D esde que recebem os o te s tem u ­n ho da Ceia do Senhor, já vivemos aqui e agora na an tec i­pação do eschaton, q uando Deus será tudo em todos.

Karl Barth: Teólogo protestante suíço nascido em Basiléia, conhecido como o criador da teologia dialética do século XX. Estudou nas universidades de Berna, Berlim e Tübingen, e Marburg. Foi editor- assistente do jornal Die Christliche Welt, pároco da Igreja Reformada Alemã em Genebra e pastor em Safenwill, ainda na Suíça. Lecionou teologia nas universidades alemãs de Gòttingen, de Munique e de Bonn, de onde foi demitido pelo governo nazista (1935) e teve seus diplomas de teologia anulados devido a sua posição antinazista. Voltando a Suíça, organizou a resistência dos pastores ao nacional- socialismo, dirigiu outros movimentos de âmbito internacional, defendeu os operários de Viena e os republicanos espanhóis. Com o fim da guerra, voltou à cátedra de Bonn, depois à de Basiléia, onde se aposentou (1961). Morreu em Basel eseus principais livros foram Der Rõmerbrief - Carta aos Romanos (1919) e Die Christliche Dogmati (1932-1969), obra em 26 volumes

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