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37 3 A Nova Classe Média Nossa contemporaneidade faz do próximo o distante, separando-nos daquilo que nos cerca ao nos avizinhar dos lugares remotos. Neste caso, não seria o outro, aquilo que o “nós” gostaria de excluir? Renato Ortiz Em A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres (2005), Cynthia Andersen Sarti realiza um trabalho etnográfico sobre a camada pobre da periferia de São Paulo. A autora realiza um mapeamento dos estudos sobre os pobres pelas Ciências Sociais brasileiras e observa que o pobre é sempre o “outro”, que ora é desqualificado, ora glorificado, de modo que “[...] os estudos sobre pobreza constituíram-se como crítica da sociedade brasileira” (SARTI, 2005, p.46). Segundo Sarti, o processo de diferenciação social - quem somos nós e quem são eles - torna-se um problema, uma vez que os pobres são considerados uma cultura autônoma, mas subordinada a um sistema mais amplo, persistindo a indagação de como vivem e o que pensam. O mesmo se repete quanto à categoria “nova classe média”: milhares de brasileiros, cuja maioria se auto-reconhece como pobre, mas cujo potencial de consumo os classifica, de acordo com os critérios brasileiros, como classe média. Fato que gerou ampla discussão midiática em torno da qual se percebe uma tentativa de enquadramento, tentativa de definir quem somos “nós” e quem são “eles”. A polarização passa a ser pensada como uma lógica social à qual “eles’ como “nós”, estamos expostos. Dependendo da perspectiva de quem fala, define-se quem são “nós” e “eles”. Assim, a lógica da identificação e da diferenciação torna-se o problema a ser discutido, na medida em que constitui o próprio fundamento do processo de construção de identidades sociais, concebidos em termos relacionais” (SARTI, 2005, p.46) De forma generalizada, as matérias veiculadas em jornais televisivos e impressos disseminaram um estereótipo do que chamam de “família típica de nova classe média brasileira”, composta por pais que trabalham o dia inteiro e possuem um ou mais filhos, moram em casas pequenas na periferia, possuem diversos eletroeletrônicos e eletrodomésticos modernos como TV de tela plana de 29 polegadas, DVD, computador, freezer, geladeira, usam roupas da moda e compram tudo em parcelas no cartão de crédito. “São típicos consumistas”,

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A Nova Classe Média

Nossa contemporaneidade faz do próximo o distante, separando-nos daquilo que nos cerca ao nos avizinhar dos lugares remotos. Neste caso, não seria o outro, aquilo que o “nós” gostaria de excluir?

Renato Ortiz

Em A família como espelho: um estudo sobre a moral dos pobres (2005),

Cynthia Andersen Sarti realiza um trabalho etnográfico sobre a camada pobre da

periferia de São Paulo. A autora realiza um mapeamento dos estudos sobre os

pobres pelas Ciências Sociais brasileiras e observa que o pobre é sempre o

“outro”, que ora é desqualificado, ora glorificado, de modo que “[...] os estudos

sobre pobreza constituíram-se como crítica da sociedade brasileira” (SARTI,

2005, p.46). Segundo Sarti, o processo de diferenciação social - quem somos nós

e quem são eles - torna-se um problema, uma vez que os pobres são considerados

uma cultura autônoma, mas subordinada a um sistema mais amplo, persistindo a

indagação de como vivem e o que pensam. O mesmo se repete quanto à categoria

“nova classe média”: milhares de brasileiros, cuja maioria se auto-reconhece

como pobre, mas cujo potencial de consumo os classifica, de acordo com os

critérios brasileiros, como classe média. Fato que gerou ampla discussão midiática

em torno da qual se percebe uma tentativa de enquadramento, tentativa de definir

quem somos “nós” e quem são “eles”.

A polarização passa a ser pensada como uma lógica social à qual “eles’ como “nós”, estamos expostos. Dependendo da perspectiva de quem fala, define-se quem são “nós” e “eles”. Assim, a lógica da identificação e da diferenciação torna-se o problema a ser discutido, na medida em que constitui o próprio fundamento do processo de construção de identidades sociais, concebidos em termos relacionais” (SARTI, 2005, p.46)

De forma generalizada, as matérias veiculadas em jornais televisivos e

impressos disseminaram um estereótipo do que chamam de “família típica de

nova classe média brasileira”, composta por pais que trabalham o dia inteiro e

possuem um ou mais filhos, moram em casas pequenas na periferia, possuem

diversos eletroeletrônicos e eletrodomésticos modernos como TV de tela plana de

29 polegadas, DVD, computador, freezer, geladeira, usam roupas da moda e

compram tudo em parcelas no cartão de crédito. “São típicos consumistas”,

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segundo a afirmação de Ney Luiz Silva, diretor executivo do Ibope Inteligência, à

Revista Brasileiros. Para ele, a nova classe “é, na verdade, uma nova classe média

baixa, só que com bem mais disposição e condições de crédito para gastar”¹.

Embora o consumo desta classe seja um dos grandes responsáveis pela

recuperação da economia brasileira frente à crise internacional, a preocupação dos

economistas e cientistas políticos quanto à sua sustentabilidade é apontada pela

Pesquisa sobre Classe Média 2008.

Segundo a pesquisa, fatores econômicos devem estar aliados a uma busca

pela educação, a uma atitude empreendedora em relação ao trabalho, bem como à

canalização de recursos políticos através da articulação de interesses comuns para

manter o ritmo de crescimento e sua sustentabilidade. Constituem-se como riscos

de volta à pobreza o endividamento provocado pela compra a crédito em situações

de instabilidade profissional; a grande parte de trabalhadores que ainda se

encontram no mercado informal devido a protelações de reformas trabalhista e

tributária por parte do Governo; o fato de a mobilidade ter sido impulsionada ao

nível do consumo e não da produção, ratificando a instabilidade da nova classe; a

falta de “capital social”, ou seja, de participação em redes sociais formais e

informais; e o desinteresse pelo campo político. Sendo os dois últimos

impedimentos característicos da população brasileira de forma geral, mas que,

segundo o estudo, desfavorecem mais as classes em crescimento, pois ainda não

estão consolidadas.

Desde a dita Revolução Industrial, muitas “classes médias” já apareceram

na história do Ocidente, desencadeando debates e críticas semelhantes ao que

acontece com a “nova classe média brasileira”, de modo que podemos inferir

tratar-se de uma categoria do imaginário, cuja existência é mais da ordem da

representação do que realidade social. Ser pró ou contra a “nova classe média” é

ser pró ou contra uma representação social cujo representado acredito não ser os

“pobres emergentes”, mas a própria sociedade. De acordo com David

MacDougall, (2009), para ver é preciso ter uma definição do que se quer ver, as

imagens puras são imagens cegas. O significado guia nossa visão, de modo que

classificamos, cegamos, percebemos... Ao discursar sobre o enquadramento na

fotografia, o autor afirma que enquadrar é apontar, descrever, julgar. Este

processo permite que haja uma ampliação de certos aspectos da realidade e

também uma diminuição ao deixarmos conexões de fora. No caso das narrativas _______________________

¹FONSECA, Celso, BIRKHOLZ, Nathalia . A nova classe média. In: Revista Brasileiros. Disponível em <http://www.revistabrasileiros.com.br/edicoes/4/textos/246/> Acesso em: 17. Ago. 2010

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midiáticas sobre a “nova classe média”, percebe-se que há uma ampliação do fator

consumo, deixando de fora as especificidades de cada grupo que a compõe. Não

se fala em fatores culturais, educacionais ou visões de mundo, não de forma

positiva. Concordo com Jaques Aumont (2009) ao afirmar que a representação é

arbitrária e motivada, pois há, numa sociedade dita “de consumo”, fatores

suficientemente fortes para que o “consumo” seja o foco na representação da

“nova classe média”.

Durkheim afirma, em Representações Individuais e Representações

Coletivas (1970, p.15), que a vida coletiva e a vida mental são feitas de

representações, uma vez que “a analogia é uma forma legítima de comparação e a

comparação é o único meio prático de que dispomos para tornar as coisas

inteligiveis”. Mas estas representações com as quais nos orientamos são

construídas socialmente, elas já estavam constituidas quando nascemos. Sendo a

cultura um sistema de convenções, as representações sociais são um modo de

apreender o outro, classificá-lo, torná-lo inteligivel. Vemos o mundo com a lente

de nossa cultura, de nossa ideologia. Durkheim ratifica:

Aquilo que nos dirige não são as poucas ideias que ocupam presentemente nossa atenção, são, isto sim, os resíduos deixados por nossa vida anterior; são os hábitos contraídos, os preconceitos, as tendencias que nos movem sem que disso nos apercebamos[...].(DURKHEIM, 1970, p.20)

Em Jogo de Espelhos, Everardo Rocha (2003, p.55) apresenta o índio

didático, buscando através dos livros didáticos as representações dos índios, o

autor propõe três “tipos” de representação. De acordo com a cena histórica em

questão o índio, é apresentado ora como selvagem, de costumes bárbaros, ora

como criatura inocente, ora como herói. Segundo Rocha: “Aqueles que são

diferentes de nós, por não falarem de si, são representados sempre através de uma

ótica que responde às necessidades de nossa própria identidade construída de

contrastes de semelhanças”. É evidente que, no caso da classe média ou “nova

classe média”, existe uma série de mediações na “fabricação de representações”,

mas ainda assim é preciso considerar que a produção de textos para publicidade,

jornalismo, novela, documentários, entre outros, não está nas mãos destes “pobres

emergentes”, de modo que eles ainda são o “outro” para o qual se escreve um

discurso.

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3.1.

O Olhar Socioeconômico

Em 2010, dois anos após a criação da “nova classe média”, os cientistas

políticos Amaury de Souza e Bolívar Lamounier lançaram o livro A Classe Média

Brasileira: ambições, valores e projetos de sociedade com patrocínio da

Confederação Nacional da Indústria (CNI). Utilizando como base as pesquisas

empíricas, os autores traçam um perfil socioeconômico da “nova classe” com o

intuito de entender qual o impacto deste fenômeno na economia do país e refletir

sobre sua sustentabilidade. Logo no prefácio eles questionam:

Estão os indivíduos e as famílias que o protagonizam devidamente equipados para explorar o novo universo de oportunidade (e de restrições) que a economia globalizada oferece? Dispõem das necessárias habilitações no tocante ao empreendedorismo e a educação? Estão desenvolvendo atitudes e valores adequados a essa nova modernidade? Compreendem a arena política mais ampla que passam a se situar e preparam-se para agir eficazmente dentro dela? (SOUZA E LAMOUNIER, 2010, Prefácio)

Pelo que tais preocupações sugerem, maior renda e maior potencial de

consumo devem vir acrescidas de mudanças na postura social e cultural. O

dinheiro serve apenas como porta de entrada no processo de ascensão social, ele

pode aumentar o padrão de consumo, mas só isto não basta – temos aqui uma

postura que será reverberada pela mídia impressa, cujo olhar mais crítico nem

sempre corrobora com a festa realizada pelo mercado. Os autores enfatizam que a

“nova classe media brasileira” é definida em termos de renda, uma divisão que

não leva em conta os fatores educacional, ocupacional e cultural. A “nova classe”

comporta diversos tipos de pessoas com níveis educacionais e ocupacionais

diferenciados, ela vai da manicure com ensino fundamental incompleto ao

microempresário que fez graduação em Administração de Empresas. Ou seja,

trata-se de uma “superposição de camadas ou estratos identificáveis apenas em

termos estatísticos” (SOUZA E LAMOUNIER, 2010, p.14), um fato que,

conforme mostra Wright Mills (1976) ocorreu de forma semelhante na formação

da classe média tradicional dos Estados Unidos. Mills destaca que a classe dos

white collar era internamente dividida e fragmentada, que “sua história não teve

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grandes acontecimentos; seus interesses comuns não levam à unidade; seu futuro

não dependerá dela” (MILLS, 1976, p.11)

Segundo Souza e Lamounier (2010), o critério pecuniário de definição de

classes não é ideal, pois afasta a possibilidade de uma formação de classe nos

termos marxistas, de pessoas conscientes de seus interesses como membros de

uma nova camada social. Idéia que reconhecem no fato de 52% da população

brasileira se auto-identificarem espontaneamente como “classe trabalhadora” e

“classe baixa” conforme mostra Pesquisa sobre Classe Média 2008 (SOUZA E

LAMOUNIER, 2010). Além da renda e do padrão de consumo, o que une, de

certa forma, estas pessoas é sua origem social. A “nova classe média” é composta

de pessoas que ascenderam das classes econômicas D e E, ou seja, vieram de

famílias tradicionalmente pobres e por isso não possuem a mesma lógica e valores

da “classe média tradicional”. Esta nova classe não se identifica como “classe

média” porque possui um imaginário diferenciado do que seria a “classe média

brasileira”, como ter um padrão de vida mais elevado com acesso a educação de

qualidade, moradia em locais nobres, empregos melhores e mais estáveis. Há

igualmente a falta de identificação quanto aos valores morais e às questões

psicológicas, a classe tradicional seria menos nobre por viver em um mundo de

aparências e competição (SOUZA E LAMOUNIER, 2010).

Como demonstra a Pesquisa sobre Classe Média 2008, apresentada no

livro, a identificação de classe está mais ligada ao fator ocupacional do que à

renda. Uma manicure com nível médio de escolaridade, que ganha R$ 2.000,00

mensais, tende a se considerar “pobre” e não “classe média baixa”, como sugere a

nova classificação econômico-social. Porém quando o parâmetro de identificação

é o padrão de consumo, percebe-se uma projeção para camadas mais altas. Sendo

o consumo um fator de homogeneização das classes, suas barreiras diluídas

permitem alguma identificação. Edgar Morin (1969) discorre sobre o assunto, ao

expor que, na formação da classe média por meio do serviço assalariado, uma das

inúmeras formadas ao longo da curta história do Ocidente Moderno, o fator de

homogeneização é o consumo de bens.

Este novo “salariado” permanece heterogêneo: múltiplos compartimentos são mantidos ou construídos entre os diferentes status sociais: os funcionários públicos recusam a identificar-se com os operários, os operários permanecem com sua consciência de classe, a fábrica continua sendo o gueto da civilização industrial. Prestígios, convenções, hierarquias, reivindicações diferenciam e dividem essa grande camada

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assalariada. Mas o que homogeneíza não é apenas o estatuto salarial (...) é a identidade dos valores de consumo, e são esses valores comuns que veiculam a mass media, é essa unidade que caracteriza a cultura de massa. (MORIN, 1969, p. 41-42)

A “nova classe média” ou “classe C”, embora heterogênea internamente,

tem, na sua origem pobre, uma consciência e uma formação cultural e de valores

que dificilmente deixarão para trás na nova condição econômica. Ao passo que,

para a “antiga classe média”, estes novos consumidores não podem ser uma “nova

classe média”, uma vez que sua visão de mundo não condiz com o imaginário

desta classe social. Não há qualquer reconhecimento, não podem estar no mesmo

patamar duas classes médias tão diferentes. Conforme matéria veiculada na

Revista Brasileiros, o publicitário Luiz Alberto Marinho, da BrandWorks, afirma

que as classes econômicas A e B não se consideram elite. Embora, dentro do

Brasil, possuam maior renda, eles se vêem como classe média porque “elite é

quem tem dinheiro de sobra no final do mês e freqüenta o mercado de luxo”.

Também Marcelo Neri, diretor do Centro de Políticas Sociais da Fundação

Getúlio Vargas, em entrevista à revista Época, argumenta que “a classe média

tradicional brasileira sempre comparou seu poder aquisitivo ao dos países

desenvolvidos”². São visões e aspirações diferenciadas que não podem ser

resumidas em termos de renda e consumo, principalmente numa sociedade

relacional e hierarquizada como a nossa.

Em Hierarquias em Classe (1974), Neuma Aguiar busca entender e

conciliar os conceitos de estratificação e classes sociais. De acordo com a autora,

“geralmente, estratificação e classes sociais são conceitos apresentados na

literatura sociológica como opostos, estratificação referindo-se exclusivamente

aos níveis jurídico e ideológico, classes sociais ao econômico.” (AGUIAR, 1974,

p.13) Mas ainda não há um consenso sobre a delimitação de ambos, conforme

indica a autora, o conceito de estratificação é mais complexo e engloba múltiplos

significados, podendo haver estratificação em um sistema de classes.

Estratificação diz respeito às hierarquias existentes e às avaliações conferidas

sobre as posições das pessoas na sociedade, considerando-se “tanto a distribuição

de pessoas, de acordo com a sua atividade produtiva, quanto à representação que é

feita de suas atividades.” (AGUIAR, 1974, p. 14). Portanto, na visão defendida

pela autora, a interação entre as diferenças nos valores e na distribuição de

especializações permite falar de hierarquias em classe sociais. Destaco, na

___________________________ ² Quem é a nova classe média do Brasil? Época, v., n. 534, p. 92-101, ago. 2008.

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coletânea de artigos que Neuma Aguiar apresenta para confirmar sua posição, os

textos de Pierre Bourdieu e David Lockwood.

Em Condição de Classe e Posição de Classe, (1966, apud AGUIAR,

1974) Bourdieu afirma que a classe não existe, mas coexiste: o camponês só

existe em sua relação com a cidade. A classe social não existe por si mesma, mas

é modificada e / ou qualificada pelos elementos com os quais coexiste, ela é parte

de uma estrutura e deve ser avaliada com relação ao todo. O autor exemplifica: a

classe alta de uma cidade pequena pode ser considerada média em uma grande

cidade ou em relação ao global. As posições sociais, portanto, não são estáticas, e,

numa sociedade que tornou possível a mobilidade social, a posição de

determinado indivíduo depende também de sua trajetória social, se ascendente ou

descendente. De acordo com Bourdieu, mesmo em sociedades diferentes em

termos espaciais ou temporais, a trajetória social pode definir características

semelhantes. Para confirmar sua tese, ele compara a “classe média” elizabetana,

utilizando como referência L. B. Wright, com a “classe média” de nossa

sociedade:

(...) crença no valor da educação como instrumento de ascensão social, como ‘meio de curar os males sociais, de gerar felicidade e de tornar a humanidade mais rica e mais piedosa’, reivindicação de uma educação ‘prática’, própria para fornecer treinamento para a profissão futura, estética ‘utilitarista’ que levara a julgar o valor de um livro segundo sua utilidade [...] (WRIGHT, 1935, p. 64, apud BOURDIEU, 1966, apud AGUIAR, 1974, p.57)

Este artigo de Bourdieu data de 1966 e mantém uma correlação com o que

mostra a Pesquisa sobre a Classe Média 2008. De acordo com a pesquisa, há uma

preocupação e uma busca por acesso a melhores condições de educação, sendo a

educação “o símbolo por excelência da identidade da classe média” (SOUZA E

LAMOUNIER, 2010, p.54). Além da busca pelo prestígio social, a educação

formal tornou-se um instrumento de ascensão social, e através dela, torna-se

possível alcançar melhores empregos e, consequentemente, melhores condições

econômicas. Wright Mills (1976) também observa que, na formação dos white

collars, a instrução perdeu seu significado no plano social e político para exercer

uma função econômica e profissional, servindo como instrumento de ascensão.

Mas a educação também é um fator simbólico de diferenciação entre as classes e

utilizá-la apenas como instrumento de ascensão econômica é fator de crítica por

quem está acima na hierarquia social.

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É comum ouvirmos falar o quanto a educação de hoje é diferente de uma

educação que prezava a cultura e o pensamento crítico, o quanto as pessoas vão

para as universidades apenas em busca de um diploma. Em todo Rio de Janeiro,

principalmente na Baixada Fluminense, surgem faculdades e universidades que

oferecem condições de ingresso para a “nova classe média”. Com preços baixos,

estas Instituições, oferecem ensino à distância e cursos tecnólogo, de menor

duração. É o caso, por exemplo, da Universidade Estácio de Sá, com pólos nos

municípios de Duque de Caxias, Nova Iguaçu, São João de Meriti e Queimados,

na Baixada Fluminense, com cursos a partir de R$ 199,00 mensais. No site da

universidade encontramos os motivos para escolher a instituição: material didático

em um tablet, cursos à distância e semipresenciais, descontos e financiamentos³.

Uma reportagem do site UOL4 demonstra o crescimento dos cursos de ensino à

distância (EAD) no país:

Aumentou o número de alunos que aderiram ao sistema de ensino a distância (EAD) no Brasil, o grupo soma mais de 3,5 milhões de estudantes. Os dados são do Censo EAD. BR 2011, divulgado no 18° Congresso Internacional de Educação a Distância, que vai até o dia 26 em São Luís (Maranhão). A maioria dos cursos ministrados a distância (56%) são livres, não precisam de autorização do MEC (Ministério da Educação) para funcionarem. São cursos de atualização ou aperfeiçoamento pessoal ou de aprimoramento profissional. Neles estavam matriculados, em 2011, 2,7 milhões de estudantes (77,2%). Nos livres, as áreas de conhecimento mais procuradas são Administração e Gestão, Educação e Ciências da Computação. Entre os 3.971 cursos autorizados pelo MEC, a maior parte dos matriculados estão no ensino superior (75%). A pós-graduação responde por 17,5% dos estudantes - inclusos aí mestrados, MBA e outros lato-sensu.

Em outra reportagem é possível perceber a relação entre o aumento das

faculdades em periferias e a “nova classe média”5:

Com o crescimento da classe média, aumenta o número de universidades nas periferias. Uma das explicações, além dessa expansão, são os programas de incentivo do governo, como o PROUNI. Em Brasília, o número de faculdades satélites já chega a 57, mais do que na região central, que soma 41 instituições. Além da proximidade, o preço mais em conta também atrai os estudantes.

Mas para ser de classe média é preciso ter uma educação de qualidade,

que garanta a sustentabilidade da posição e proporcione nova visão de mundo,

característica que falta à “nova classe média”. Bourdieu também destaca a ___________________________ ³ Site da Universidade Estácio de Sá: http://portal.estacio.br/home/aluno.aspx?&estado=RJ 4 Retirado de: http://educacao.uol.com.br/noticias/2012/09/26/cresce-numero-de-alunos-de-ead-no-pais-cursos-livres-sao-maioria.htm 5 Retirado do site de jornalismo do SBT Brasil: http://passaourepassa.com.br/jornalismo/noticias/Default.asp?c=10125&t=Cresce%20o%20numero%20de%20faculdades%20nas%20periferias

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importância das relações objetivas como a renda, não basta saber sua situação e

posição na estrutura social para definir a classe.

[...] ela deve também muitas de suas propriedades ao fato de que os indivíduos que a compõem entram deliberadamente ou objetivamente em relações simbólicas que, expressando as diferenças de situação e de posição, segundo uma lógica sistemática, tende a transmutá-las em distinções significantes (BOURDIEU, 1966, apud AGUIAR, 1974, p.63).

De modo que as roupas, a linguagem ou o sotaque e, sobretudo as ‘maneiras’, o

bom gosto e a cultura também são marcas distintivas e prestigiosas na demarcação

de uma classe.

Outros fatores de distinção que entraram no rol de discussão acerca da

“nova classe média” são a consciência política e o envolvimento social. De acordo

Souza e Lamounier (2010, p.161), a nova classe média “partilha com os demais

segmentos da sociedade um sentimento de aversão política”, que deriva da

“percepção de um padrão generalizado de corrupção”. Embora o desinteresse seja

generalizado, a conscientização e a busca de informação sobre questões políticas

como pagamento de impostos e funções governamentais estão concentradas nas

“classes A e B”. Elas utilizam, para se informar, diversos meios de comunicação

como jornal, revistas e internet, enquanto a “Classe C” informa-se

predominantemente pela televisão. As “classes A e B” possuem maior “capital

social” (BOURDIEU, 1998), participam de mais organizações e têm uma

possibilidade maior de articulação social em prol de seus interesses, enquanto as

classes mais baixas caracterizam-se pela participação nas organizações religiosas

e esportivas. A última afirmação retoma o tema da consciência de classe que seria

impossível a milhares de brasileiros cujo único denominador comum é o aumento

no padrão de consumo.

Roberto DaMatta (1997), ao estudar a sociedade brasileira, observa que

nossa sociedade é relacional e burocrática ao mesmo tempo. Nela, convivem o

“espaço da rua”, que simboliza o mundo burocrático e individualizado do Estado

– onde o que vale são as leis –, e o “espaço da casa” – no qual predominam as

relações e suas consequentes hierarquias. Para “navegar” entre os espaços, é

imprescindível o uso das relações sociais, seja no famoso “jeitinho” ou no “sabe

com quem está falando”. De forma que, possuir capital social é uma vantagem

para que a pessoa, ou grupo, consiga alcançar benefícios neste espaço público

impessoal, mas no qual predominam as relações.

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Segundo Bourdieu:

O capital social é o conjunto de recursos atuais ou potenciais que estão ligados à posse de uma rede de relações mais ou menos institucionalizadas de interconhecimento e inter-reconhecimento, ou, em outros termos, à vinculação a um grupo como conjunto de agentes que não somente são dotados de propriedades comuns (...) mas também, são unidos por ligações permanentes e úteis (1998, p.67)

Sendo assim, a manutenção da posição em uma sociedade está relacionada

com a aquisição de capital social, que está, sobretudo, associada à antiguidade na

classe e à extensão e qualidade da rede de relações. Ao falar de “capital social”, é

preciso levar em consideração que este não deve ser dissociado do capital

econômico e cultural, uma vez que ele não é natural e nem dado, mas construído e

mantido de forma estratégica através da troca. Sejam palavras, presentes ou

rituais, a troca é institucionalizada de forma a impor limites e manter o grupo.

Para construção do capital social é necessário conhecimento cultural comum e o

dispêndio de esforço, tempo e dinheiro. Embora a “nova classe média” tenha

acumulado capital econômico, o capital cultural e social que possuem não é

suficiente para serem reconhecidos como classe média.

O que Bourdieu aborda vai ao encontro do estudo realizado por Mary

Douglas e Baron Isherwood (2004, p. 35) no qual afirmam que “[...] a medida

correta da pobreza não são as posses, mas o envolvimento social [...]”. Ter muitos

bens não significa ser rico, pois eles não têm significação fora das dinâmicas das

relações. Ser rico ou ser pobre depende do reconhecimento social atribuído a estas

categorias. Os autores demonstram que há um entrelaçamento entre o “capital

econômico” e o “capital social”, embora não utilizem estes termos. Não basta ter

bens, é preciso ser convidado a participar dos rituais de consumo, é preciso

conhecer nomes de lugares, comidas, pessoas, ter um consumo compartilhado.

Isolados e sem envolvimento social, alguns domicílios ficam vulneráveis às

mudanças socioeconômicas que ocorrem. Também não conseguem legitimar suas

opiniões, fazer ouvir sua voz, uma vez que “[...] o ambiente social homogêneo da

classe trabalhadora nunca oferecerá o mesmo tipo de informação que a família de

classe média pode obter por seus contatos sociais.” (DOUGLAS E

ISHERWOOD, 2004, p.144). Neste caso, a classe trabalhadora equivale à “nova

classe média”, ainda dispersa na sociedade e sem consciência de si como classe.

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David Lockwood (1966 apud AGUIAR, 1974) identifica duas formas

utilizadas pelas pesquisas para conceituar estruturas de classes, sendo a primeira

baseada em modelos de “poder” ou “conflito” ou “dicotômico”, e a segunda em

modelos de “prestígio” ou de “status” ou “hierárquico”. Segundo o autor, os

trabalhadores tendem ao primeiro modelo e a classe média ao segundo. Lockwood

também identifica três tipos de trabalhadores: o “tradicional”, cuja imagem da

sociedade toma forma do modelo de poder; o trabalhador “deferencial”, cuja

percepção da desigualdade fundada na hierarquia; e o trabalhador “privatizado”,

cuja consciência social se aproxima a um modelo pecuniário de sociedade. Ele

afirma ser o trabalhador tradicional um conceito mais sociológico do que

histórico, com perfis mais associados às indústrias que concentrem os

trabalhadores, exigindo um alto envolvimento no trabalho e certa autonomia. Um

tipo de trabalhador que preze pela solidariedade ocupacional e pela sociabilidade

comunal, estabelecendo uma diferença ente “nós trabalhadores” e “eles

superiores”. Já o “trabalhador deferencial” possui certa “solidariedade” com os

superiores, demonstrada através do reconhecimento da liderança, dos laços fracos

com os de sua área, e da relação particularizada com o patrão. Por sua vez, o

trabalhador privatizado, que o autor chama de “nova classe trabalhadora”, acredita

em um modelo de sociedade que:

[...] só é possível quando os relacionamentos sociais que podem proporcionar experiências prototípicas para construção de idéias de classes de poder conflitantes, ou de grupos de status hierarquicamente interdependentes, estão ou desprovidos ou carentes de seu significado (LOCKWOOD, 1966, apud AGUIAR, 1974, p. 132)

Uma vez que os laços sociais deste tipo de trabalhador são fracos, a

associação é dada apenas pela renda e pelo consumo. Este tipo apresentado por

Lockwood torna-se interessante, pois vai ao encontro do que estudiosos afirmam

sobre a “nova classe média”, sendo este, inclusive, um nome utilizado pelo autor

para denominar esta classe de trabalhadores privatizados.

[...] a classe central com a qual o trabalhador privatizado se identifica é vista como um fenômeno relativamente novo, efetivado pela incorporação da antiga classe média à “classe trabalhadora”, ou, alternativamente, pela incorporação da antiga classe trabalhadora a nova “classe media”. Quer o resultado final da troca seja visto como uma “classe trabalhadora” ou “classe média”, sua identidade é basicamente uma identidade econômica; as pessoas são designadas para esta classe central por terem níveis de renda e posses aproximadamente semelhantes. Devido ao fato de que a convergência da “antiga” classe trabalhadora e

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da classe média é vista em termos essencialmente econômicos, a designação da nova classe central como média ou trabalhadora parece mais uma questão de saber como a mudança é percebida em sua ocorrência do que uma expressão de consciência ou status de classe. (LOCKWOOD, 1966, apud AGUIAR, 1974, p. 140-141)

O autor ainda destaca o fato de os meios de comunicação de massa disseminarem

este modelo pecuniário de sociedade, criando a crença de que as desigualdades

são da ordem do quantitativo e não do qualitativo. Uma ideia que só pode ser

sustentada em indivíduos que não têm consciência de classe e vivem afastados de

sistemas hierárquicos.

A divergência entre a aceitação ou não da “nova classe média” reflete uma

divergência entre os diversos modos de conceituação de uma classe. O critério de

classes econômicas, adotado no Brasil, leva em conta apenas a renda e o potencial

de consumo, gerando divisão entre estudiosos do assunto, como sociólogos e

cientistas políticos. O livro de Souza e Lamounier (2010) não nega a existência

desta classe, muito ao contrário, manifesta o desejo de conhecê-la e apresentá-la

ao mercado. Mas coloca em evidência o conflito entre os valores de uma “antiga

classe média” e uma “nova classe média”, que não se reconhece e nem é

reconhecida. Estes conflitos de uma discussão intelectualizada sobre o assunto é

refletido nos meios de comunicação. É através deles que nos foi apresentada uma

“nova classe média” adorada pelo mercado porque é consumista, cujo poder de

compra é da ordem dos trilhões, mas que também é colocada em “xeque” quando

se volta o olhar para outros fatores que não o consumo. Portanto, trata-se também

de uma crítica à sociedade de consumo. É o que veremos a seguir.

3.2.

O Olhar Midiático

Nas próximas linhas, pretende-se demonstrar como a visão hedonista do

consumo prevalece nas reportagens televisivas sobre a “nova classe média”, às

vezes sutilmente misturada com um discurso moralista. Ao passo que, nas

reportagens em mídia impressa, observa-se maior tom crítico com resistência à

ideia da formação de uma classe baseada em renda e potencial de consumo. A

fim de observar tais representações, serão analisadas matérias veiculadas nas duas

mídias. Trata-se de duas reportagens feitas para o Jornal Hoje, da TV Globo, que

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podem ser classificadas como “guias de consumo” para a “nova classe média”;

uma reportagem veiculada no Jornal Nacional, jornal de horário nobre da TV

Globo, que destaca as prioridades de consumo da “nova classe média”; uma

reportagem da série do Jornal da Record que busca traçar um perfil da “nova

classe média”.

De acordo com dados do IBOPE6, estes telejornais estão entre os seis mais

assistidos no país, no período de 2008 a 2012, sendo o Jornal Nacional líder de

audiência. Considerando os dados de 2012, este último possui uma audiência de

30 pontos, o equivalente à 5.730.000 domicílios ou aproximadamente 19 milhões

de telespectadores; o Jornal Hoje com aproximadamente 8 milhões de

telespectadores e o Jornal da Record com 3,5 milhões. É importante salientar que

o público-alvo destes telejornais é predominantemente da “classe C”7, ou seja, da

dita “nova classe média”. Tais dados ratificam a importância do tema para a mídia

nacional e de sua relação com o consumo, bem como ressalta a importância de se

analisar o imaginário que está sendo formado. Todas as reportagens analisadas se

baseiam em dados de pesquisa, e deixam isso bem claro ao utilizar gráficos e

destacar as fontes. No caso do Jornal da Record, a pesquisa realizada pelo

Instituto Data Popular foi encomendada especialmente para a série, fato que a

jornalista e apresentadora do telejornal, Ana Paula Padrão, menciona em vários

momentos. Este recurso, entre outros, como o testemunho, as entrevistas, a

palavra do especialista e a voz off, requisitam legitimidade para a matéria e a

reforçam como fato e como verdade.

_____________________ 6 Verificar em: RELATÓRIOS DE PESQUISA. IBOPE – Instituto Brasileiro de Opinião Pública e Estatística.Disponível em: <http://www.ibope.com.br/pt-br/conhecimento/relatoriospesquisas/Paginas/default.aspx> Acessado em: 08 de novembro de 2012. VEJA a audiência dos telejornais brasileiros. PDTV Audiência. Publicado em 20 de junho de 2012. Disponível em: http://pdtvaudiencia.wordpress.com/2012/06/20/veja-a-audiencia-dos-telejornais-brasileiros/> Acessado em: 08 de novembro de 2012 7 Verificar em: JORNAL NACIONAL. DGC – Direção Geral de Comercialização da Rede Globo. Disponível em: <http://comercial2.redeglobo.com.br/programacao/Pages/jornal-nacional.aspx> Acessado em: 20 de dezembro de 2012. JORNAL HOJE. DGC – Direção Geral de Comercialização da Rede Globo. Disponível em: <http://comercial2.redeglobo.com.br/programacao/Pages/JornalHoje.aspx#> Acessado em: 20 de dezembro de 2012. JORNAL DA RECORD. ISSUU.COM. Disponível em: <http://issuu.com/d-lab/docs/folder_jornal_da_record> Acessado em: 20 de dezembro de 2012

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Na mídia impressa foram selecionados trechos de reportagens do ano de

2008, ano do surgimento da categoria, e de 2010 que destacam a questão do

endividamento. Os jornais selecionados possuem credibilidade no cenário

nacional, estando entre eles a Folha de São Paulo, O Globo e O Estado de São

Paulo (Estadão) que constam entre os cinco primeiros colocados no ranking do

IVC – Instituto Verificador de Circulação, divulgado pela ANJ – Associação

Nacional de Jornais8. Em 2008, a Folha de São Paulo obteve a circulação média

de 311.287 exemplares/dia, O Globo 281.407 e O Estado de São Paulo 245. 966.

Também foram utilizados na análise trechos do Jornal do Brasil, que no mesmo

ano, antes de sua queda na venda de exemplares e mudança para versão

totalmente digital, alcançou a média de 95 mil exemplares vendidos por dia.

Somados, estes jornais alcançaram cerca de um milhão de exemplares vendidos

por dia para um público predominantemente de “classe AB”9, reafirmando a

resistência deste grupo à invenção da “nova classe média”. Para a questão do

endividamento os trechos selecionados são de jornais de menor circulação, mas

não menos importante visto seu público alvo. Trata-se do Valor Econômico, com

circulação média de aproximadamente 55 mil exemplares por dia, líder no

segmento de Economia, Negócios e Finanças com 92% do público na “classe

AB” 10 e do Monitor Mercantil, com venda média de 20 mil exemplares por dia e

62% 11de pessoas jurídicas como público-alvo.

_____________________ 8 Verificar em: IVC – Instituto Verificador de Circulação . Disponível em: < http://www.ivcbrasil.org.br/> Acessado em: 08 de novembro de 2012. MAIORES Jornais do Brasil. ANJ - Associação Nacional de Jornais. Disponível em: <http://www.anj.org.br/a-industria-jornalistica/jornais-no-brasil/maiores-jornais-do-brasil> Acessado em: 08 de novembro de 2012. 9 Verificar em: PORTAL DE PUBLICIDADE. Folha de São Paulo. Disponível em: < http://www.publicidade.folha.com.br/web/consultarPerfilLeitor.jsp?p1=FSP&p2=x> Acessado em: 20 de dezembro de 2012 DADOS DO MERCADO. Jornal O Globo. Infoglobo. Disponível em: <https://www.infoglobo.com.br/Anuncie/perfilLeitores.aspx> Acessado em: 20 de dezembro de 2012 MÍDIA KIT. O Estado de São Paulo. Disponível em: <http://www.grupoestado.com.br/midiakit/estadao/index.asp?Fuseaction=Cadernos_Perfil&Id_Cad=55> Acessado em: 20 de dezembro de 2012 JORNAL DO BRASIL. Hemeroteca Digital Brasileira. Disponível em: <http://hemerotecadigital.bn.br/artigos/jornal-do-brasil > Acessado em: 20 de dezembro de 2012 10MÍDIA KIT. Valor Econômico. Disponível em: <http://midiakit.valor.com.br/downloads/ApsinstitucionaldowloadMKIT.pdf> Acessado em: 20 de dezembro de 2012. 11 PERFIL DO LEITOR 2010/2011. Monitor Mercantil . Disponível em: <http://www.monitormercantil.com.br/perfil11.pdf> Acessado em: 20 de dezembro de 2012

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O Jornal Hoje é um telejornal produzido e veiculado pela Rede Globo de

Televisão que vai ao ar de segunda a sábado no horário da tarde e que utiliza um

tom leve e descontraído para abordar temas variados. As duas reportagens aqui

destacadas foram ao ar no início de 2009, tendo a jornalista Sandra Annenberg

como apresentadora. Cada uma possui cerca de dois minutos e meio de duração,

abaixo, a transcrição de boa parte deste material.

A primeira reportagem da série especial de comportamento da nova classe

média: viagem de avião.

(Sandra Annenberg) Milhares de brasileiros nunca viajaram de avião, mas isso tá mudando né? Nos últimos dois anos sete milhões de pessoas voaram pela primeira vez, e o Jornal Hoje entrevistou passageiros que vão ajudar você a fazer tudo certo nos aeroportos.

(off) Tudo foi registrado (imagens de fotos) nem a tripulação do vôo escapou de uma foto.

(Joana D’Arc - recepcionista) Ao entrar no avião também né? Sei lá olhei assim, meu Deus é hoje, é hoje...

(off) (Imagens de Joana vendo as fotos) Há um mês Joana fez a primeira viajem de avião para visitar os parentes no Recife. Com medo de perder o vôo ela foi ao aeroporto um dia antes da viajem.

[...] (Elaine Bast - repórter) Nos últimos dois anos, sete milhões de pessoas viajaram

pela primeira vez de avião, segundo as companhias aéreas, novos passageiros que encontraram nos aeroportos um mundo desconhecido cheio de palavras novas como, por exemplo, check-in.

(Elaine Bast pergunta a Joana) Quando falaram pra você “tem que fazer check-in”?

(Joana D’Arc) Aí eu falei, “o que é isso”? (câmera foca imagem do cartaz escrito check-in)

(off) E o que significa check-in, este termo em inglês? Quem explica é o Sr. Gildo, aposentado da aeronáutica

(Sr. Gildo) É a área de apresentação para o embarque (off acompanhado por imagens que mostravam o passo-a-passo) É no balcão do

check-in, que fica logo na entrada do aeroporto, que o passageiro mostra os documentos e deixa as bagagens. O funcionário da companhia aérea entrega o bilhete, nele estão indicados o portão de embarque, o número do vôo, o horário da partida e o número da poltrona. Ainda tem os painéis do saguão do aeroporto, onde é possível ver se a partida do avião está no horário. E outra informação: dependendo do destino o vôo não é direto pode ter paradas em outras cidades que podem ser conexões e escalas.

(Marcos Donizete - contabilista) Vôo com escala é quando o passageiro não desce do avião, permanece no avião, e com conexão é quando ele troca de aeronave.

(off) Antes do embarque o passageiro passa por detectores de metal, a bagagem de mão é checada com um raio X. Na bolsa, por exemplo, não podem estar tesourinhas de unha, pinça e isqueiro. Ricardo e Renato fizeram um guia com dicas para enfrentar essas situações novas sem medo.

(Renato Meirelles - publicitário) São 20 milhões de pessoas que passaram a fazer parte da classe média e a movimentar a economia. São pessoas que passaram a usar este dinheiro pra viajar de avião pela primeira vez, pra andar de carro novo, pra entrar no restaurante, pra viajar...

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A segunda reportagem da série especial de comportamento da nova classe

média: hotéis e restaurantes

(Sandra Annenberg) A renda de vinte milhões de brasileiros subiu nos últimos anos, é a nova classe média que investe mais em lazer. Ontem nós mostramos o que você deve saber pra viajar de avião, hoje vamos tirar as dúvidas mais comuns pra quem começa a freqüentar hotéis e restaurantes.

(Repórter em Maceió) Hóspede de primeira viajem, Ammy Caroline sentiu um frio na barriga logo na chegada ao hotel

(Ammy Caroline - gerente de banco) Me deparei com uma situação totalmente diferente do meu cotidiano, humildemente nunca tinha vivido aquilo.

(off) Ammy se assustou quando funcionários foram levar a bagagem (Ammy Caroline) Eu até sei que eles levam as malas, mas pedir a minha bolsa a

tira-colo pra mim foi super estranho. Me tiraram tudo, eu tava com duas sacolas na mão, me deixaram sem nada!

(off acompanhado por imagens que mostravam o passo-a-passo) Pra quem entra pela primeira vez o hotel pode intimidar, logo na chegada o hóspede vai ter que fazer o check-in, que na verdade é o preenchimento de uma ficha de registro.

(supervisor da recepção) E aí nós entregamos a chave e damos as orientações pra que ele tenha uma boa estada no hotel.

(Ana Bast - repórter) Nos hotéis as chaves vêm sendo substituídas por cartões como este, ele não serve apenas para abrir a porta. Para que tudo funcione dentro do quarto, é preciso colocar o cartão dentro deste aparelhinho que serve para economizar energia, sem ele a luz não acende. (repórter faz a demonstração)

(off) No quarto a geladeirinha chamada de frigobar está sempre cheia, uma tentação! Mas cuidado! Tudo é cobrado e custa caro, um refrigerante, por exemplo, pode custar quatro reais, é o preço da comodidade. Mas o hóspede tem alternativa!

(Ana Bast pergunta ao funcionário) O hóspede pode comprar um refrigerante fora do hotel e usar o frigobar, a geladeirinha, para guardar este refrigerante sem custo?

(Supervisor de funcionários) Claro! A utilização do frigobar é do hóspede. (off) Quase todos os hotéis oferecem produtos de higiene pessoal, xampus,

sabonetinhos, pasta de dente, nada disso é cobrado... (Ana Bast pergunta ao funcionário) Na saída, o hóspede pode levar o xampu? (Supervisor de funcionários) Claro que pode, ele tem direito sim! Pelo menos o

sabonete e o xampu têm que levar né? [...] (off) A clientela dos restaurantes também tem crescido! (Ricardo Sodré - publicitário) Vinte milhões de pessoas que eram de uma classe

mais baixa conseguiram atingir outro patamar de consumo e hoje eles formam a classe média brasileira. Como as pessoas hoje podem consumir o que elas não podiam, então elas enfrentam situações novas.

(off) (imagens descritivas) Novidades que podem atrapalhar, os talheres, por exemplo, a dica é começar pelos que estão mais longe do prato. Faca de peixe é diferente das outras.

(Joana D’Arc - professora de etiqueta) Isso aqui é uma faca que não corta tá, por quê? Porque o peixe é macio né?Vvocê não precisa serrar como se fosse uma carne

(off) A maioria dos restaurantes oferecem uns petiscos chamados de couvert (Joana D’Arc) Geralmente é cobrado à parte, então se você não quiser o couvert

você não é obrigado aceitar (off) E na dúvida? (Renato Meirelles - publicitário) Não tenha vergonha de perguntar, pergunte, o

profissional ta lá pra te explicar.

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Como se pode notar há nestas reportagens um intuito pedagógico, de

servir como um guia para “marinheiros de primeira viajem” em aeroportos, hotéis

e restaurantes. É apresentado um passo-a-passo, literalmente, de como se

comportar em tais lugares, contando com ajuda de especialistas como o

publicitário Renato Meirelles, a professora de etiqueta, pessoas mais entendidas

no assunto e funcionários do local. Como afirma Meirelles, são 20 milhões de

pessoas que viajam, freqüentam bares e restaurantes pela primeira vez e a mídia, a

quem sempre coube o papel de socialização para o consumo, o faz através destas

reportagens. Everardo Rocha (2006) enfatiza esta função pedagógica da mídia.

Segundo o autor, a comunicação de massa realiza o amplo trabalho de dar

significado a produção, socializando para o consumo. Rocha usa como referência

a ideia de Lévi-Strauss (1970; 1975) sobre o totemismo, articulação das diferenças

e semelhanças entre natureza e cultura, para demonstrar que a mídia, mais

propriamente a publicidade, age como um “operador totêmico” articulando

produção e consumo. “Ao tornar público o significado atribuído ao mundo da

produção, disponibilizando um enquadramento cultural e simbólico que o

sustenta, esse sistema realiza a circulação de valores e a socialização para o

consumo” (ROCHA, 2006, p.92)

Em outro texto, Rocha (2005), ao enfatizar a importância do estudo do

consumo sob o viés cultural, argumenta que o consumo é como um código,

através do qual são traduzidas nossas relações sociais e uma das funções da

cultura de massa é viabilizar este código, comunicando-o à sociedade. É a mídia

que realiza sua dimensão pública, socializando-nos de maneira semelhante.

Assim, a cultura de massa “interpreta a produção, socializa para o consumo e nos

oferece um sistema classificatório que permite ligar um produto a outro e todos

juntos às nossas experiências de vida” (ROCHA, 2005, p.15). Para o antropólogo,

é um traço específico de nossa cultura “construir um sistema de integração

simbólica de diferenças pela via da distribuição do significado com base na esfera

da produção, realizando o destino de produtos e serviços na direção de mercados e

consumidores” (ROCHA, 2005, p.15). O consumo moderno é singular, é de fato

um “artefato histórico” (MCCRAKEN, 2003)

O Jornal Nacional é um telejornal noturno da Rede Globo, apresentado à

época da reportagem mencionada, pelo casal Willian Bonner e Fátima Bernardes.

É considerado o mais famoso e importante telejornal da televisão brasileira.

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Aborda assuntos variados a nível nacional e internacional e possui alta

credibilidade junto à população. Abaixo, segue a transcrição da reportagem de

dois minutos que foi ao ar em 05/08/2011, por ocasião do resultado de uma

pesquisa realizada pelo Instituto Data Popular.

(1ª Chamada da matéria - Willian Bonner) Uma pesquisa descobre os sonhos de

consumo da nova classe média brasileira

[...] (2ª Chamada da matéria - Fátima Bernardes) Uma pesquisa com cidadãos da

chamada nova classe média descobriu os maiores sonhos de consumo destes milhões de brasileiros e mostrou também que são pessoas cheias de otimismo

(off) Renda mais alta e o resultado sempre aparece por aqui (imagens do shopping). Uma pesquisa feita pelo instituto Data Popular com dezoito mil pessoas12 em todas as regiões do país mostra que os brasileiros com uma renda familiar mensal de quase dois mil e trezentos reais querem em primeiro lugar trocar de celular nos próximos doze meses, em segundo aparece a vontade de comprar um computador, depois vem o desejo de reformar a casa, de viajar de avião e por último de comprar um carro.

(Beatriz Thielmman no shopping- repórter) A pesquisa revela ainda que a maioria dos brasileiros desta nova classe média demonstra otimismo. Oitenta por cento deles acreditam que a vida pode ficar ainda melhor. Os mais otimistas estão no nordeste e no norte quase com o mesmo percentual, seguidos dos moradores do centro oeste e sudeste, os menos otimistas estão no sul (gráficos com dados da pesquisa Data Popular – nordeste 89%, norte 88%, centro-oeste 82%, sudeste 76%, sul 75%)

(Renato Meirelles – coordenador da pesquisa) A classe média é mais otimista porque, de fato, foi a que mais melhorou de vida nos últimos anos

(off) Os pesquisadores também quiseram saber os planos para o futuro. Era possível dar mais de uma resposta. Quase oitenta por cento daqueles que se declararam otimistas querem fazer algum curso nos próximos doze meses, logo depois vem a vontade de abrir um negócio, seguido pelo desejo de prestar um concurso público. (gráficos com a pesquisa)

(Imagens do shopping) Dona Elenice anda animada, nos últimos dois anos o salário dela quase dobrou, estímulo mais que perfeito para realizar os sonhos (imagens de Elenice olhando vitrines e apontando)

(Elenice - funcionária pública) Prioridade pra mim agora é ficar bonita, comprar roupa, sapato, coisas que eu não podia fazer antes, cuidar do cabelo, da unha, fiquei mais vaidosa

Utilizando gráficos, dados, entrevistas e imagens alusivas, a reportagem

aborda os sonhos de consumo e as prioridades da “nova classe média brasileira”.

Celular, computador, casa, viagem, carro são os itens enumerados. A reportagem

dá visibilidade à pesquisa de mercado, que está interessada no poder e nas

prioridades de compra de um grupo que começa a ganhar mais, mas pouco explica

sobre a relação deste público com o consumo. Segundo a explicação do próprio

Instituto sobre si, o Data Popular13 foi criado para produzir conhecimento de

qualidade sobre o mercado popular no Brasil. Para o instituto o que interessa é

“saber como funciona o mercado da base da pirâmide. Saber onde estão esses

_________________________________________

12 O número parece absurdo, mas a pesquisa foi realizada pela Internet. 13Verificar em: Instituto data Popular. Disponível em: <http://www.datapopular.com.br/home_empresa_pt.htm.> Acessado em: 10 de junho de 2012.

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consumidores. Saber sua relação com os produtos, com as marcas. Saber como

falar com eles.”

Segundo Rocha (2005, p.11), o “pensamento em marketing debate o

consumo como resultado a ser auferido”. Os estudos e pesquisas aplicados têm o

intuito de vender mais e gerar lucro para as empresas que a contratam, por isso o

interesse em conhecer os segredos do consumidor, estudando seu comportamento.

Não há um interesse de refletir sobre o papel do consumo na sociedade

contemporânea, de modo a contribuir para a elaboração de uma teoria do consumo

moderno. Marshall Sahlins (1979, p.188) nos lembra a importância do consumo

na famosa frase “sem o consumo, o objeto não se completa como um produto:

uma casa desocupada não é uma casa”, mas para o autor, o valor de uso de um

objeto não deve ser determinado pela via das necessidades ou desejos, porque os

homens produzem não apenas objetos, mas tipos específicos de objetos, eles

definem “[...] os objetos em termos de si e definem-se em termos de objeto”. Os

bens são “código-objeto”, através dos quais se criam significações e

classificações. E a integração entre as distinções sociais e de objeto se dá de forma

dialética, o produto objetifica a categoria social e a constitui na sociedade, bem

como a “diferenciação da categoria aprofunda os recortes sociais do sistema de

bens.” (p206). Outro fato interessante que se deve destacar nesta reportagem é

que, imediatamente antes dela, o Jornal Nacional apresentou uma matéria sobre a

crise e os dias difíceis na bolsa de valores. A reportagem termina com Willian

Bonner dizendo:

Aqui no Brasil o índice da bolsa de Valores de São Paulo oscilou muito e terminou o dia em leve alta, mas foi a pior semana do Ibovespa desde o fim de 2008, as perdas acumularam dez por cento (aparece o gráfico mostrando dados). No câmbio o dólar fechou em alta, cotado a um real, cinco, oito, sete.

Daí a câmera abre e se volta para Fátima Bernardes que anuncia o otimismo da

“nova classe média”.

É interessante contrastar a preocupação com a economia global e a euforia

dos novos consumidores, embora, acredita-se, isso não tenha sido evidente para

todos. A mensagem que se lê, ainda que em decorrência do envolvimento com a

questão, é a de que há uma parcela da população que está alheia aos problemas

globais, mesmo que a reportagem tenha feito uso de um viés hedonista para o

consumo, no qual as pessoas estão mais felizes porque estão consumindo. Mas a

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oposição entre as matérias lembra que há um viés moralista sobre o consumo que

o considera como algo supérfluo e banal, “coisa de emergente”, se comparado ao

mundo sério e valorizado da produção. “A cigarra canta, gasta, consome, e a

formiga labora, poupa, produz”. (ROCHA, 2005, p.7).

O Jornal da Record é um jornal noturno produzido e exibido pela Rede

Record, seus atuais apresentadores são Celso Freitas e Ana Paula Padrão.

Segundo Ana Paula, que produziu as reportagens da série, a Record contratou o

Instituto Data Popular para fazer uma pesquisa exclusiva para servir de base, e

legitimar, é claro, a série que foi veiculada. Trata-se de seis reportagens exibidas

entre 06 e 11/09/2010, cujos temas foram: As mudanças sofridas pela classe

média brasileira; Nova classe média brasileira realiza sonho de viajar e ter casa

própria; Veja como se diverte a nova classe média; Mulheres comandam a nova

classe média brasileira; Pequenos produtores rurais ascendem à classe média; e

70% dos brasileiros da nova classe média compram no bairro onde moram.

Todas as reportagens da série começavam com a Ana Paula Padrão em

primeiro plano e, ao fundo e abaixo, exceto a última em que ela se encontra no

mesmo nível, imagens ilustrativas do tema (rua, aeroporto, trio elétrico, empresa,

fazenda). Também todas utilizaram como recursos os gráficos com dados das

pesquisas, os testemunhos de pessoas que estão vivendo a situação, a voz off, e

palavra do especialista. Há materiais interessantes até para se promover um debate

público, como na terceira reportagem na qual é levantada a relação entre o

“tecnobrega”, ritmo nordestino, e a indústria fonográfica, mas que fica perdido em

meio à questão do consumo. Por conta dos limites deste trabalho, serão utilizados

apenas dados da última reportagem da série, que é representativa para a

abordagem do consumo. Nesta reportagem da série, Ana Paula Padrão, conta a

história de uma moradora da periferia de São Paulo que tem como “sonho de

consumo” a compra de um carro. Abaixo alguns destaques:

(off) Quando a gente chegou, a Erivânia estava lavando o carro velho dela (Erivânia Quirino- segurança): é simplesinho, mas eu tenho um ciúme desse

carro... (Ana Paula Padrão) Sessenta por cento da nova classe média já tem carro por

causa do crédito mais fácil e quando a gente entrou na casa que a Erivânia aluga descobriu que quase tudo foi comprado assim, no carnê!

Erivânia: O guarda roupa eu parcelei e a cama eu também parcelei Ana: E a televisão? Erivânia: A TV também foi parcelada [...]

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(off) Pra ser bombeira, a Erivânia precisa estudar um pouquinho mais, ela está fazendo supletivo, tem trabalho de casa pra entregar, mas não tem computador. Sem problema. Setenta e um por cento das pessoas dessa nova classe média resolvem tudo no comércio do próprio bairro (gráfico para ilustrar). Erivânia vai lá no bazar da Ana Paula e procura lá no fundo o Anderson pesquisador de trabalho de escola. O bazar cobra dois reais pela pesquisa e ele, o Anderson, ganha um salário que ajuda a pagar a faculdade. É, o Anderson é um universitário, o orgulho da família. Nessa nova classe média sessenta e oito por cento dos filhos estudaram mais do que os pais (gráfico para ilustrar) e por isso mandam muito na opinião, nas decisões da casa inteira.

(Anderson dos Santos - universitário) Principalmente pro meu pai né? Que não importa do que seja a faculdade, o importante é que o filho dela tá na faculdade, tá se formando.

(off) Tanto é assim que a família investiu num computador para o filho. Sessenta por cento das casas dessa nova classe média no Brasil já têm um computador (destaque), e fica assim como a gente viu na casa do Anderson bem na sala pra que todo mundo possa usar. A dona Maria, mãe do Anderson essa não usa não, ela se atrapalha toda, e também fica muito ocupada durante o dia todo cuidando dessa gracinha aí que é a filha da vizinha.

[...] (off): Em resumo, a nova classe média já representa metade do Brasil, noventa e

cinco milhões de pessoas e trinta por cento da massa de renda do brasileiro. Olha é um poder de compra imenso (imagens de uma loja). A Erivânia, por exemplo, acabou trocando aquele carro velho pelo vermelho, olha ele ali (imagens do carro).

(Ana Paula à Erivânia) Parabéns, feliz proprietária! (Erivânia) Proprietária! (Ana Paula Padrão) Agora serão quarenta e oito prestações de quinhentos e

cinqüenta e um reais, mas a Erivânia tá numa felicidade só (imagens de Erivânia saindo com o carro). Mais do que os novos consumidores, a Erivânia, o Anderson, a mãe dele a dona Maria, o Valdenir e a família dele todos eles sentem-se novos cidadãos e serão os principais eleitores no dia três de outubro.

No clássico A Teoria da Classe Ociosa (1965), Thorstein Veblen afirma

que o padrão de vida é um hábito e que os homens relutam em limitar seus gastos

ao passo que facilmente aprendem a gastar mais. Este padrão é determinado pela

comunidade ou classe a que o indivíduo pertence, de modo que “o motivo do

consumidor é um desejo de se conformar com o uso estabelecido para evitar

reparos e comentários desfavoráveis” (VEBLEN, 1965, p.55). Ao longo da série

foi demonstrado como o aumento da renda gerou aumento dos gastos e vontade de

consumir, tendo a “nova classe média” um potencial de consumo que é a todo o

momento enfatizado pela mídia. Também foi abordada a questão do consumo

como fator de inclusão e integração à sociedade, o que se percebe na fala do

publicitário Renato Meirelles, na quarta reportagem da série, quando afirma que

“a vaidade é uma ferramenta pra inclusão social dessa mulher”, e também na

conclusão de Ana Paula Padrão, na reportagem transcrita, de que mais que novos

consumidores, são novos cidadãos, lembrando a associação feita por Nestor

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Canclini (1995), na qual o exercício da cidadania na sociedade moderna passa

pelo consumo, o cidadão de hoje é o consumidor.

A reportagem também lembra o ensaio, já mencionado, de Colin Campbell

(2006), no qual o autor admite a centralidade do consumo no mundo moderno e

busca compreender o porquê de o consumo ter se tornado tão central. O título é

baseado no livro I shop therefore I am, de April Benson, que fala sobre a

compulsão por compras, que por sua vez é plagiada da famosa frase de Descartes,

“Penso, logo existo”. Para Campbell, a frase se aplica a todos os consumidores

modernos, uma vez que o ato de consumir está relacionado à questão do ser e do

existir, ou seja, da formação da identidade e da experimentação do real. Guiados

por essa visão, conclui-se que não é a toa que essas pessoas começam a existir no

momento em que entram para o mercado consumidor. De fato, a Comunicação de

massa é uma “janela panorâmica para a sociedade” (ROCHA, 1995, p.36), pois

através da chamada “nova classe média” e os discursos que a ela se aplicam, é

possível vislumbrar um discurso sobre a nossa sociedade, também conhecida

como “sociedade de consumo”, conforme a denominou por Baudrillard (1973).

Apesar da festa do mercado e do alarde midiático acerca da “nova classe

média”, há os que critiquem os critérios de classificação e, com a ajuda de

testemunhos destes pobres não avisados da subida na escala socioeconômica,

declaram que não existe, ou ao menos é passível de dúvidas, a existência de uma

“nova classe média”. Como pode o Brasil ter uma classe média que ganha tão

pouco, apenas o bastante para os gastos necessários, ficando de fora a saúde e a

educação privada de qualidade, o acesso à cultura e ao lazer? Como pertencer à

classe média indivíduos que se importam tão pouco com a sustentabilidade de sua

condição, que subiram na vida mais pelos esforços do governo na redistribuição

de riqueza do que pelo tão exaltado esforço pessoal? Os discursos mostram que

eles não são da classe média.

É certo que estas pessoas estão ganhando a mais e estão gastando em

dobro, contraindo dívidas e arriscando voltar à pobreza, da qual, aliás, nem

saíram. Do que adianta comprar mais se estes brasileiros levam a mesma vida

dura de sempre? Nos trechos que serão apresentados abaixo, nota-se que o

consumo de bens e a renda não são considerados critérios ideais para definir uma

classe, a compra de bens está longe de ser um meio eficiente para medir a

pobreza. Uma crítica semelhante aparece em trabalhos da década de 1960, como o

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de John H. Goldthorpe, presente no livro Aguiar (1974). Ao abordar sobre a

questão da estratificação na sociedade industrial, o autor afirma que a questão

ocupacional é vista como elemento central para a hierarquia, mas rebate a hipótese

de que a educação estreitaria os laços entre as posições econômicas e os estilos de

vida. Um não modifica o outro, uma vez que a também chamada “nova classe

média” ou “nova classe trabalhadora” surgida na época não fora reconhecida. Nas

palavras do autor sobre a situação social da “nova classe trabalhadora”:

[...] as vantagens apreciáveis obtidas em renda e nos padrões de vida em geral recentemente alcançados por certos setores da mão-de-obra manual não foram em sua maior parte acompanhadas por mudanças em seus estilos de vida, de tal maneira que a sua posição de status tivesse sido aumentada proporcionalmente à sua posição econômica. Em outras palavras, há evidência da existência de barreiras culturais e, em particular, ‘sociais’ entre a ‘classe trabalhadora’ e a ‘classe média’ inclusive nos casos em que as diferenças materiais imediatas desapareceram. (GOLDTHORPE, apud AGUIAR, 1974, p.239)

Os trechos abaixo são consequência da pesquisa A Nova Classe Média,

realizada e publicada pela Fundação Getúlio Vargas, FGV, em 2008, pesquisa que

criou e nomeou a nova categoria social:

Titulo: Raça em extinção Pelos cálculos da Fundação Getúlio Vargas, o Brasil terá menos pobres que micos-leões-dourados em 2018

O Estado de São Paulo - SP ,07/08/2008. Chamada de capa: Nem só de renda vive a classe média Título: Educação e Trabalho, símbolos de classe média [...] Entrevista com sociólogo do IUPERJ Adalberto Cardoso Um operário pode ganhar R$ 1 mil estar nessa faixa pela renda. Mas, na estrutura social, ele é um operário. Tradicionalmente a classe média está no setor de serviços e no comércio. E não no operariado fabril. Olhando dessa forma, acaba-se misturando alhos com bugalhos.

O Globo - RJ, 07/08/2008 É de lascar! A fundação Getúlio Vargas, através de seu órgão de pesquisa, classificou como pertencente à classe média um porteiro que ganha R$ 460 por mês, complementa a “renda” comercializando celulares usados, tem um carro ano 1996, e comprou recentemente uma TV de 19 polegadas. Das antigas, nada de LCD. Classe média, coitado? Só se for à do Burundi.

Jornal do Brasil – RJ, 08/08/2008 Título: Falta de classe As companhias aéreas redefiniram as classes com seu politicamente correto “avant la lettre”: abaixo da primeira classe não existe carne de segunda, mas “business class”, nem de terceira, mas “classe econômica”. [...] Mas fora do avião, o que é uma classe? Para o economista padrão, classe média é uma categoria estatística de renda [...]. Para o economista, há só o indivíduo que interage em mercados. [...]. Tanto faz se tenham

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socialmente algo em comum que não seja seu lugar na distribuição estatística. [...] A “classe média” dessas estatísticas recentes é apenas isso: abstração estatística. Multidões não mudam de classe devido apenas a efeitos de um ciclo econômico, passageiro por definição, por melhor e mais bem-vinda que seja a redução da miséria.

Folha de São Paulo – SP, 10/08/2008 Título: No Rio, uma nova faixa social sobe o morro A classe média excedeu os limites de bairros tradicionalmente tidos como redutos da população “remediada” e subiu os morros e favelas cariocas. [...] Em vez de ruas largas e arborizadas, esse contingente da “nova classe média brasileira” se amontoa em vias apertadas, com coleta de lixo deficiente e saneamento precário.

O Estado de São Paulo – SP, 10/08/2008 Título: Os pobres subiram na vida sem saber [...] milhões de brasileiros só continuavam pobres por falta de informação: toda família capaz de juntar R$ 1.064 a R$ 4.591 por mês está na classe média “Então, que é pobre?”, intrigou-se um porteiro. [...] A expansão do que a pesquisa chamou de “nova classe média” transformou em ricos os integrantes da velha e boa classe média, incluiu os ricos na lista dos bilionários da Forbes e catapultou os bilionários para altitudes jamais alcançadas por um Bill Gates.

Jornal do Brasil – RJ, 13/08/2008

Estes dois trechos de 2010 destacam a questão do endividamento:

Título: Novo consumidor ganha confiança para se endividar “Crédito serve como uma alavanca importante para o consumo, mas é preciso cuidado com o endividamento.” Foto de homem numa sala simples. Legenda: Ricardo Oliveira: com a troca de emprego e salário maior, compra de uma televisão de LCD para ser paga em 12 vezes.

Valor Econômico – SP, 03/05/201 Titulo: ‘Nova classe média’ aceita até quem ganha ½ salário Para ingressar na “nova classe média”, criada por um pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV) basta ter renda de R$ 1.126 a R$ 4.854 residencial. [...] Ainda de acordo com os critérios de pesquisa, o crescimento do país nos últimos anos estaria mais baseado em geração de renda do que em consumo. Estudo do BNDES, porém, mostra que os mais pobres gastaram, nos últimos anos, 122% das suas rendas, expondo que o crescimento do consumo guarda forte relação com o aumento do endividamento da população.

Monitor Mercantil – RJ, 11/09/2010

Como se pode perceber, o critério econômico de classificação social não é

completamente aceito como meio de definir uma classe social, uma perspectiva

que corrobora com sociólogos e cientistas políticos. O que está em pauta é uma

discussão acerca da definição de classe, na qual um modelo pecuniário de

sociedade deve ser descartado em prol de uma classificação mais baseado no

simbólico, mais de acordo com as visões de Weber e Bourdieu. A educação, a

informação, o lazer, a cultura, a consciência política, o gosto e o comportamento

são citados como uma falta aos que alcançaram um padrão de consumo melhor.

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Evidente e necessário que se exijam condições sociais melhores a toda sociedade,

mas implícito nestas críticas por uma sociedade mais igualitária estão às marcas

da hierarquia de uma sociedade que prega a democracia racial, mas possui

acentuada distância social como afirma Darcy Ribeiro (1995). Vale à pena

perguntar se, em dados momentos, não estamos traçando a mesma linha

evolucionista que os primeiros antropólogos utilizaram. Quando se fala em acesso

à cultura, está se falando de qual cultura? Que tipo de gosto, que educação, que

tipo de lazer e habilidades estão no topo da escala? Dentro desta discussão,

percebe-se também uma crítica à sociedade de consumo, a um consumidor com

comportamento pouco consciente, que faz escolhas erradas e cuja melhora no

padrão de consumo não significou melhora no padrão de vida, pois:

[...] ao mesmo tempo em que festeja este boom de consumo, a nova classe média brasileira ainda sonha com a inclusão social, um bem que não é vendido no shopping e tem que ser adquirido aos poucos, num prazo ainda maior que o dos financiamentos do mercado.

O Globo – RJ, 10/10/2010

Para concluir, segue a transcrição de parte da coluna do renomado Artur

Xexéo, do Jornal O Globo, na qual a diferença dos gostos aparece claramente,

bem como uma crítica a reconfiguração do mercado para atender a quem compra

mais.

Não gosto de axé. Nem de pagode. Nem mesmo de sertanejo universitário. Por isso, não custa nada perguntar, dá pra tocar outra coisa? Como qualquer brasileiro, me orgulho muito da nova classe média e dos oito milhões de conterrâneos que chegaram à sociedade do consumo nos últimos tempos. Consumo para todos! Mas, vejam bem, para todos, o que inclui a velha classe média. É democrático o fato de vôos comerciais poderem ser pagos em 17 vezes. Mais gente viajando, mais gente fazendo turismo, nem me incomodo com os aeroportos superlotados. Mas, vem cá, dá pra variar o cardápio? Ou vou ser obrigado a comer barrinha de cereal para o resto da vida?Alguém já perguntou se a velha classe média gosta de barrinha de cereal? Eu não gosto. Dá pra sair um sanduíche de queijo com suco de laranja? [...] Cresci aprendendo que profissão pra valer era engenheiro, médico ou advogado. Se o sujeito não tivesse aptidão para uma dessas três categorias, tentava um concurso para o Banco do Brasil ou para a Caixa Econômica. Agora, todos gritam no meu ouvido: empreendedorismo! O certo seria ter aberto um salão de beleza, um serviço de comida pronta, uma padaria...Tarde demais, ensinaram-me a fechar o mês sem contas a pagar. Agora, o governo me alicia: Crédito! Crédito! Crédito! E eu não quero comprar uma TV de plasma, nem um segundo telefone celular, nem quero passar as férias em Porto Seguro. Na verdade, estou pensando em vender o meu freezer, o meu forno de microondas e a minha secretária eletrônica. Tornei-me um estranho no ninho. Sou da velha classe média. [...] Sejam bem-vindos ao paraíso dos que ganham entre R$ 1.200 e R$ 5.174 por mês. Eu quero de volta o meu filme legendado na TV e torço pela possibilidade de passar um

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intervalo comercial inteirinho sem assistir a um anúncio do Supermarket. Onde foi parar a televisão da velha classe média? Sempre fui noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti às novelas de Ivany Ribeiro em versão original. Mas não agüento mais tramas ambientadas na comunidade, sambão na trilha sonora, mocinha cozinheira e jogador de futebol. Eu quero de volta a minha novela de Gilberto Braga!

O Globo, Coluna da Revista O Globo, 15/04/2012, por Artur Xexéo

Contrastando as diversas reportagens apreende-se o quanto o fator

consumo, principalmente hedonista e impensado, está aliado ao “novo grupo

social”. É possível perceber e concluir que na arena midiática há, de um lado, a

voz do mercado felicitando os novos consumidores e, de outro, os intelectuais

com o contra-argumento das faltas e carências, indicadoras da instabilidade do

fenômeno de ascensão, que impedem estas pessoas de serem da classe média.

Trata-se também de um discurso de alteridade, de uma tentativa de demarcar as

fronteiras entre o que sempre foi considerado como classe média no Brasil e o que

a pesquisa da FGV revela como tal. Embora a melhor distribuição de renda seja

bem-vinda, ela é questionada quanto à capacidade efetiva de mudar a vida

financeira e social destes milhares de brasileiros que podem ser chamados de

consumistas sim, mas de “classe média” não.

3.3.

O Olhar do Outro

Como já se pode perceber, o perfil do “novo grupo social” traçado pelas

pesquisas de mercado permite vislumbrar as diferenças entre o ideal de uma

“classe média” e o grupo “emergente” em questão. Diferenças, aliás, muito

parecidas com as que encontramos em novelas que colocam novos ricos e elite

juntos em cena. Em agosto de 2008, momento em que o assunto ganha força na

mídia, a Revista Época faz uma matéria de capa com o título “Quem é a nova

classe média do Brasil?”, cuja primeira frase é a de uma manicure, moradora da

favela da Rocinha que pergunta “Classe média, eu?”, mostrando sua falta de

reconhecimento. Logo abaixo, a revista traça um perfil que chama de “típico” de

uma família da “nova classe média brasileira”: uma casinha de 35 metros

quadrados com eletroeletrônicos e eletrodomésticos de última geração, comprados

em muitas parcelas, um varal com roupas da moda, TV por assinatura e crianças

fãs de Cartoon NetWork e Discovery Kids. Nem mesmo a classe média já

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constituída no Brasil reconhece a existência de uma “nova classe média”. É o que

se pode notar na crítica de Helio Fernandes veiculada no Jornal Tribuna da

Imprensa em agosto de 2008: “Quem ganha mil reais, sobrevive? Se for é

duramente. Pois as exigências da classe média são extraordinárias.” Ou a crítica

de Anna Ramalho no Jornal do Brasil também em 2008: “Classe média, coitado?

Só se for à do Burundi”.

Devemos nos perguntar se em um país de Casa Grande & Senzala

(FREYRE, 1958) ou como lembra Sarti (2005, p.35), no qual o pobre – porque é

assim que se consideram a maior parte dos membros da “nova classe média” –

sempre é o “outro”, qual é a repercussão deste tipo de reportagem feito sobre um

grupo de “pobres emergentes” e veiculada para outro grupo social, uma vez que a

Classe C não é o maior público da revista Época? Uma questão que ainda não me

sinto apta a responder, mas desconfio que estas reportagens sirvam para erguer

“cercas e pontes” (DOUGLAS E ISHERWOOD, 2004). “Pontes” que ligam

empresas a um grupo com grande potencial de compra e “cercas” capazes de

diferenciar “classes médias” que se aproximam através do consumo, mas que

diferem em questões de gosto, comportamento, engajamento social, educação, etc.

É o que se percebe nas discussões que gravitam em torno da criação de uma “nova

classe média”.

Como visto nas reportagens anteriormente citadas, enquanto muitos lutam

para alcançar um patamar de vida e consumo que coincidem com o que chamam

de “nova classe média”, outros criticam: “Classe média, coitado?”. Embora o

consumo, classificado como hedonista e exagerado, seja o responsável por

milhares de brasileiros subirem na escala social14, sociólogos e economistas

afirmam que “Nem só de renda vive a classe média”. A falta de educação

qualificada, de ocupação e comportamento adequados são riscos de volta à

pobreza e barreiras para que estas pessoas sejam de fato “classe média”. Nos

discursos sobre “nova classe média”, encontra-se um “outro”, na verdade um

grupo muito heterogêneo de pessoas, mas todas aglomeradas no mesmo “outro”

que se contrapõe a um “nós”, os que proferem os discursos, a classe média. Uma

vez que os pobres não são uma cultura totalmente autônoma (SARTI, 2005), é

importante então demarcar qual é o lugar ocupado por quem e como as

identidades podem ser construídas em termos relacionais. Neste ponto, entra o

documentário Pacific (Brasil, 2009), de Marcelo Pedroso, embora não haja

______________________________________ 14 A classificação econômica leva em consideração a renda e bens de consumo da família, entre outros fatores como formação do “chefe” da casa

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nenhuma menção explícita na capa ou no decorrer do filme sobre a “nova classe

média”.

De acordo com Bill Nichols (1997), o estatuto do documentário não está

nele, mas nos discursos proferidos sobre ele, e é preciso considerar a ligação do

filme com o “mundo que conocemos y compartimos” (NICHOLS, 1997, p.42) Ele

é uma junção do ponto de vista do realizador, do texto e do espectador, e o

espectador torna-se crucial em sua definição. “La marca distintiva del documental

puede ser menos intríseca al texto que lá función de los supuestos e expectativas

asignados aL proceso de visionado del texto.” (NICHOLS, 1997, p.55). Pacific

surge quando a questão sobre a “nova classe média” está sendo amplamente

discutida e torna-se inevitavelmente recurso para o debate. É o que demonstram as

cartas15 que Marcelo Pedroso troca com Jean-Claude Bernadet, cujo conteúdo

revela a intenção inicial do cineasta de realizar uma crítica “a classe média e seus

excessos”, e a relação do documentário com uma reportagem sobre cruzeiros

marítimos e a “nova classe média” mencionada por Bernadet, que afirma, “o teu

filme acertou no alvo”.

O documentário de Marcelo Pedroso foi montado com imagens amadoras

e pessoais cedidas pelos passageiros do Cruzeiro Pacific, que partiu de Recife

rumo ao arquipélago de Fernando de Noronha em dezembro de 2008. Uma

viagem dos sonhos, rumo a um Paraíso tropical e paga em muitas prestações – nas

palavras dos próprios passageiros. Um filme em que as lentes das câmeras e

filmadoras se fazem presentes o tempo todo, elas também são protagonistas do

filme. O documentário foi exibido na 29ª Bienal de São Paulo, na 13ª Mostra de

Cinema de Tiradentes e ganhou prêmio de Melhor Filme na 9ª Mostra do Filme

Livre e no 4º Panorama Coisa de Cinema de Salvador.

Recorrendo aos comentários e discursos que ajudam a significar e definir o

documentário enquanto tal (NICHOLS, 1997), encontra-se uma ideia inocente, na

qual se acredita que não houve a intervenção do diretor no filme, uma vez que se

considera que a intervenção só acontece na filmagem e, neste caso, quem filma

são os próprios passageiros. É o caso do comentário de um site, que afirma “a

grande questão do filme é: nenhum dos passageiros sabia que seu vídeo poderia ir

para o cinema. Estavam todos gravando para seus amigos, familiares e arquivos

pessoais. E é isso que tornaria o longa-metragem natural e tão legal.”16 Um

comentário que se contrapõe a outros e ao do próprio autor que assume “não se ________________________________________

15Encontradas no Blog : http://jcbernardet.blog.uol.com.br/arch2011-01-09_2011-01-15.html 16 Publicado em 19/10/2011 no site http://oitudoemcima.com/2011/10/19/o-documentario-pacific-virou-uma-discussao-sobre-a-nova-classe-media/ 17 Cartas, op. cit.

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trata de um filme de colaboração ou participação, mas da forma como eu,

pessoalmente, enxergo aquele mundo a partir das imagens que me chegaram.”17

Há uma relação de poder, um olhar que dirige. Há uma ideia inicial que se

manifesta a partir da edição dos quadros, ou seja, da montagem. Mas, ao mesmo

tempo em que há um direcionamento, há também algo que não se pode controlar

conforme comenta Marcelo Pedroso: “as imagens me enterneceram e eu passei a

reconhecer ali, naquele imaginário extasiado, elementos que dizem respeito à

nossa própria constituição enquanto pessoa, a aspectos os mais frágeis de nossa

formação” 18. Alguns blogs como o Scream e Yell19 também reconhecem no filme

que “a montagem foi o grande destaque”, mas ainda assim persiste a ideia de que

não há representação, as imagens estão ali e falam por si mesmas, se é uma

“caricatura do novo rico”, o é “representada por eles mesmos”. É uma espécie de

“vídeocassetada” em que ninguém cai ou se machuca. O efeito de realidade

advém das marcas do amadorismo, a não intervenção é comprovada pelas letras

que aparecem em tela preta no inicio do filme explicando:

Em dezembro de 2008, uma equipe de pesquisa participou de viagens a bordo do Cruzeiro Pacific. No navio, a produção identifica passageiros que estavam filmando a viagem sem realizar qualquer tipo de contato com eles. Ao fim do percurso, eles foram abordados e convidados a ceder suas imagens para um documentário.

Não houve contato com os passageiros, eles não filmaram para um

documentário, mas não se pode dizer que estavam “naturais”. Quanto ao haver ou

não intervenção, as palavras do cineasta esclarecem que sim houve um olhar,

mesmo que as frases do filme descritas acima pareçam contradizê-lo. Quanto ao

estarem ou não “naturais”, utilizo também as palavras de Pedrosa a Bernadet

quando questionado sobre estar ou não expondo os personagens ao ridículo:

[...] os personagens do filme dentro da excepcionalidade do momento que eles estão vivendo. São férias de gente que passou o ano inteiro pagando prestações para estar no navio. Estão realizando um sonho e querem levar o aproveitamento disso ao paroxismo

Também sobre a mesma questão, o crítico de cinema argumenta baseado

no artigo de André Brasil (2010) sobre o documentário, que as empresas de

audiovisual criam o desejo de aparecer, de encenar, Jean-Claude Bernadet lembra

que estamos na época das redes sociais e do compartilhamento de vídeos e da vida

privada pela internet, de modo que, talvez, “os turistas que aceitaram ceder o

__________________________ 18 Cartas, op. cit.

19 Blog Scream e yell , escrito por Juliana Torres em novembro de 2011. Disponível em http://screamyell.com.br/site/2011/10/12/cinema-pacific-marcelo-pedroso/ 20 Cartas, op. cit

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material para a feitura de um filme público, poderão ter visto na tua proposta uma

possibilidade de ampliar o que já estava no material que produziam [...]”20.

Houve ou não encenação? Eram imagens da realidade ou uma

representação? Ilana Feldman (2011) argumenta, em artigo da Revista Eletrônica

Ciberlegenda, que em Pacific temos uma “construção ficcional amalgamada a

partir de materiais documentais”, “por meio da montagem narrativa do material

desprovida de uma encenação explícita”, em um diálogo com um momento

histórico em que se vive o artifício como real. Trabalha-se com uma indefinição

entre “ficção e documentário, pessoa e personagem, autenticidade e encenação,

vida e trabalho, experiência e representação [...], empenhados tanto em performar

certas formas de vida quanto em evitar o enfrentamento das contradições [...]”.

(FELDMAN, 2011)

Vislumbra-se uma “classe média espontânea” que encena a todo tempo

para as próprias câmeras, que também é personagem. Mas o filme pode nos levar

a pensar que não vemos pela lente do autor, mas pelas lentes deste grupo

emergente que realiza seu “sonho de consumo”. O próprio autor o admite:

A grande questão que se colocaria para mim então: seria possível ao filme referendar a expressão subjetiva dos personagens, endossar e compartilhar de sua experiência de vida, dividir com eles a alegria genuína dos momentos vividos, mas ao mesmo tempo se manter crítico a alguns valores ali expressos, à fórmula de felicidade irrefletida e compulsória oferecida pelo navio, à espetacularização das relações sociais e outras questões mais?21

A primeira cena do filme é emblemática, ouvimos o som do mar, vemos a

imagem e em seguida uma mão que segura a câmera, vemos imagens tremidas das

mãos que tentam filmar um grupo de golfinhos, ao fundo ouve-se a voz de mulher

que diz, “esperei cinqüenta anos para ver isso”, e antes do corte para as palavras

que explicam o projeto ouve-se a pergunta, “filmou?” E a resposta, “filmei,

lógico!” Após a explicação de que se trata de imagens cedidas por passageiros do

Cruzeiro, vemos uma imagem de rosas vermelhas, um vestido que fica sem foco.

Logo percebemos que alguém tenta ligar a câmera, mas não consegue. Ouve-se

“como é que eu faço?”, seguido de “acende essa luz, tem que acender essa luz!”,

após, vemos uma série de imagens embaçadas até ouvir “tá gravando? E a

resposta “tá gravando!” Vemos imagens de um show no navio com dançarinos ao

som de New York, New York e várias mãos com câmeras que filmam o show.

__________________________ 21 Cartas, op. cit.

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Depois ouvimos a mesma música, mas aparece uma tela negra com a frase:

“Pacific, um filme de Marcelo Pedroso”. É o resumo do filme: veremos um

espetáculo através das câmeras dos próprios personagens. A importância de filmar

e de fotografar também foi abordada em várias reportagens sobre a “nova classe

média”, como na matéria exibida pelo Jornal Hoje, citada no subitem anterior.

É certo que há diferenças de intenção entre uma reportagem e um

documentário, apesar de ter havido uma intervenção recíproca nas duas

modalidades na década de 70, quando cineastas trabalharam para a televisão

produzindo séries de reportagens. De um lado, os cineastas melhoraram a

qualidade do jornalismo, conferindo-lhe credibilidade, ao passo que tiveram que

fazer concessões sob a pressão do formato televisivo, conforme nos mostra Igor

Sacramento (2008). Mesmo que o documentário não se confunda ou não deva se

confundir “com os relatos que buscam a objetividade sob a modalidade do

discurso jornalístico” (COMOLLI, 2008, p.43) é possível traçar uma ponte entre

os materiais, e neste caso, há uma grande aproximação entre um filme que,

segundo o autor, lança um olhar crítico sobre os exageros de um grupo de

emergentes e uma reportagem que ensina tal grupo a comportar-se direito.

Além disso, há a ênfase na questão da necessidade de tudo filmar e

fotografar, como se a realidade fosse mais vivida através das imagens. No site

Cineclick foi possível encontrar a seguinte crítica22 “uma pessoa que faz isso está

a um passo de levar uma piscina de plástico para a praia, fugindo do mundo real

[...]”. Estamos diante de um “bizarro espetáculo” que é a felicidade do “outro”, a

crítica enfatiza que quem julga é o espectador, e que não há esta intenção expressa

no filme. Um fator questionável, embora Marcelo Pedroso tenha escrito que

suavizou o filme, uma vez que havia ficado mais “pesado” na primeira edição.

Podemos presumir que este “bizarro espetáculo” ao qual se refere à crítica

repete-se, pelo menos pra quem assim o julga, nas reportagens sobre a “nova

classe média” quase todos os dias. Em um momento em que a “sociedade do

consumo” (BAUDRILLARD, 1973) clama com voz forte pela sustentabilidade e

pelo consumo consciente, momento em que vivemos uma crise financeira

mundial, nos é diariamente apresentado um grupo de emergentes loucos por

compras que se endividam para realizar seus sonhos, como nos mostra a primeira

reportagem da série “a nova classe média” produzida pelo Jornal da Record. A

jornalista e apresentadora, Ana Paula Padrão, lança uma questão no início da

___________________________________________________

22 Crítica de Heitor Augusto postada em 01 de setembro de 2011 no site http://www.cineclick.com.br/criticas/ficha/filme/pacific/id/2787.

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matéria, “que a nova classe média está comprando, e comprando muito, você

provavelmente já sabe, mas vocês sabem como estas pessoas estão comprando?”.

A seguir a jornalista vai à casa de uma suposta integrante da “nova classe média”

e afirma “da TV grande que a casa toda adora até aquilo que não precisa a Luiza

compra [...] e tudo no cartão de crédito da amiga Cristina [...]”. São imagens do

real? Essas imagens são reais, Luiza existe. Mas por que a Luiza? Por que

enfatizar sua avidez por compras e as inúmeras dívidas que faz? A reportagem

não mostra os valores morais e sociais da personagem, seu modo de pensar.

Dentre vários discursos possíveis, um é ressaltado pelo enquadramento e pela

montagem: Luiza é uma consumidora irracional!

Como as primeiras imagens do filme, as últimas também são

emblemáticas. Após sete dias no navio e um na paradisíaca ilha, os tripulantes

voltam ao navio que está todo enfeitado para Festa de Ano Novo. Começa uma

contagem regressiva, vêem-se os fogos e ouve-se a música que é cantada

repetitivamente até o corte brusco no final: “Adeus Ano Velho/ Feliz Ano Novo /

Que tudo se realize/ No ano que vai nascer / Muito dinheiro no bolso / Saúde pra

dar e vender.” O que mais podem querer aquelas pessoas senão que haja muito

dinheiro para que mais sonhos se realizem, sonhos como o de viajar em um

cruzeiro, o de viver uma vida de lazer? Não é isso que busca a “nova classe

média”? Pelo menos é o que a mídia apresenta e o que aparece na primeira

reportagem da série “a nova classe média”. Ana Paula Padrão anuncia: “hoje são

95 milhões de pessoas (gráfico) com renda familiar de 1.530 à 5.100 reais (cenas

das pessoas entrando nas lojas). E que compram! Porque não querem mais adiar

nenhum sonho de consumo”.

Tanto nas reportagens quanto em Pacific, ficamos diante de um “outro”,

um “outro” próximo que compartilha da mesma cultura, no sentido antropológico

desta, mas ao mesmo tempo um “outro” estranho e sobre o qual se deseja que se

mantenha estranho. Nos enunciados das reportagens mostra-se uma intenção de

dar voz a este “outro”, de conhecê-lo, mas esta voz que aparece nas entrevistas

não é autônoma. As vozes de especialistas e a voz off se sobrepõem a ela, a

enquadra e a define. Em Pacific não vemos os recursos de interferência, não há

uma “voz da verdade”, nem mesmo o enquadramento da câmera, o discurso

narrativo está na montagem, notamos a interferência por ela e pelos discursos

externos ao filme. Há uma cena que ilustra bem: uma pessoa filma o apresentador

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do show à noite, há uma cortina vermelha atrás e o apresentador anuncia os

créditos de coreografia, figurino, dança e direção e antes do show ele diz, “nossos

queridos passageiros tenham todos um, mais um excelente espetáculo, muito

obrigado!” Ao som das palmas, a tela negra aparece e permanece um tempo

durante o qual ouvimos uma música de circo. Esta cena insinua que estamos

diante de um espetáculo, observando aquele “outro” tão estranho e confuso quanto

a seqüências de cenas do show que junta O Fantasma da Ópera e Garota de

Ipanema.

Usando as definições de Pessoa Ramos (2008) podemos dizer que Pacific

aparenta ser do tipo “cinema direto”, no qual se observa a realidade com o mínimo

de interferência, havendo um recuo do cineasta. Característica que Ramos observa

na chegada do “direto” ao Brasil cujo núcleo temático principal era a

“representação do popular enquanto alteridade” (2008, p.330). Mas como afirma

Béla Balázs (1970, p.97), não há nada mais subjetivo do que o objetivo. Posição

da qual compartilha Jean-Louis Comolli (2008, p. 45), “subjetivo é o cinema e,

com ele, o documentário”, o documentário precisa assumir de que lugar fala,

como fizeram os documentários “Congo”, “Di Glauber” e “Interprete mais, pague

mais”, analisados por Bernadet (2005). Filmes que mostram a impossibilidade de

se apreender o real, mesmo que este real seja filmado pelo próprio grupo em cena.

Embora as cartas, acima mencionadas, entre Pedroso e Bernadet indiquem que

Pedroso tem a intenção de falar de um lugar superior na escala social, criticando

os novos ricos, nos comentários sobre Pacific paira a dúvida sobre se houve ou

não intervenção, são ou não imagens do real? Não é pretensão desta pesquisa

realizar uma discussão teórica sobre o conceito de realidade. Mas há um

sentimento de que quanto mais vozes entram em cena, menos distorcida se torna a

representação. Daí a importância do trabalho etnográfico, a de aproximar-se do

objeto de estudo, permitindo-se olhar o mundo com outra lente.

Béla Balàzs (1983) mostra como um objeto pode ser várias coisas de

acordo com a angulação e o enquadramento. Segundo o pensador, o objeto é

formado por uma fisionomia própria e outra determinada pelo ponto de vista do

espectador e pela perspectiva da imagem. É o operador da câmera que nos

revelará, através do ângulo escolhido, a “face real do objeto” ou o “estado de

espírito do personagem”, conseguindo uma identificação emocional com o

espectador. “O enquadramento e o ângulo podem fazer com que as coisas se

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tornem odiosas, adoráveis, aterradoras ou ridículas, à sua vontade” (BALÀZS,

1983, p. 98). Balàzs enfatiza que não há nada de objetivo no Cinema, pois o

objetivo é em si uma subjetividade. A partir destas reflexões pode-se pensar que o

cinema possibilita tanto revelar quanto esconder. De acordo com Ismail Xavier

(2003), a imagem por si mesmo não tem sentido nenhum, as associações é que

lhes dão sentido. A imagem ganha sentido de acordo com a pergunta que se faz a

ela, a imagem “revela, mas engana”. Porém, pode haver desencontros entre o

sentido atribuído pelo autor e o percebido pelo espectador.

Da mesma forma que o autor de cinema cria sentido para as imagens e

para o mundo, também o cientista social o faz quando estuda um grupo e lhe

atribui sentido. Assim também o jornalista, ao escrever/ veicular uma matéria. Em

nossa crença, o jornalismo se afasta do Cinema de ficção e se aproxima do

Cinema documental, porque acreditamos que ele seja verdade, que trabalhe com

fatos, com critérios objetivos, que mostre a realidade tal como ela é. Mas ambos

trabalham com construções, com representações, ambos fornecem materiais para

pensarmos a vida. Como os personagens no romance, no teatro e no cinema, os

personagens que invadem nossas vidas diariamente pelos jornais escritos e

televisionados são construídos. Quando o jornal apresenta a “nova classe média”,

os mesmos recursos são acionados. Escolhe-se uma pessoa, ou algumas, que se

encaixaria no “tipo” pretendido, no “tipo” que se quer apresentar: as perguntas

feitas, o cenário, a edição concorrem para que tudo saia conforme o roteiro. O

jornalista mescla as imagens obtidas com uma narrativa montada por ele, e pronto,

eis “a nova classe média”.

O discurso da representação não fala do indivíduo, mas de um grupo. E de

fato espera-se que uma boa representação trate do coletivo, transcenda as pessoas

que falam. Quando se representa, buscam-se os fatores de homogeneização, o

heterogêneo é tratado como indivíduo, por isso há pouca ênfase em figuras

centrais. Elas aparecem apenas para confirmar o que já se esperava, mudam-se as

figuras, mas permanece a narrativa. Por falar em nome do grupo, de forma

generalista, podem acontecer desvios na representação e o outro corre o risco de

se tornar uma caricatura. A própria antropologia busca meios para que o outro

fique menos caricato através da individuação, uma vez que, é possível perceber

nos indivíduos as regras sociais, mas também as contradições.

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O importante é não ter medo de deixar o outro falar, mesmo com

contradições, é não explicar o outro apenas pelas teorias. Dar voz, espaço,

relativizar, deixar o outro construir também seu próprio personagem, não construir

sozinho, mas em conjunto. Evidente que sempre colocaremos nossa visão, pois é a

que temos, mas deve-se ter uma abertura. Na “arena da mídia” (KELNNER, 2001)

isto é problemático, há uma luta travada há tempos pela busca de espaços. Vê-se,

por exemplo, que negros e pobres só ingressaram no mundo da publicidade

recentemente. Quanto à “nova classe média”, a representação que se faz hoje é a

mesma que se fez há meio século quando da formação da classe média americana,

segue a mesma linha do que se apresenta há décadas sobre os emergentes nas

novelas. Portanto, as representações são vulneráveis, mas também são

permanentes, nem todos conseguem mudá-las. A seguir apresenta-se uma

tentativa de dar voz ao “outro” e acrescentar novos problemas à discussão da

pesquisa. Trata-se de uma pesquisa de campo, realizada na Cidade de Nilópolis,

na Baixada Fluminense.

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