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O ATUAL CURRÍCULO DE GRADUAÇÃO EM FARMÁCIA EM SINTONIA COM O CAPITAL: UM FRACASSO PRÉ-ANUNCIADO1
Adriano Jorge Torres Lopes2
[...] Na atividade revolucionária, o transformar a si mesmo coincide com o transformar as circunstâncias.
Karl Marx & Friedrich Engels
Resumo O artigo pretende evidenciar o vínculo teórico das atuais Diretrizes Nacionais do Currículo de Graduação em Farmácia às tendências pedagógicas do “aprender a aprender” as quais são expressões organizadas do discurso pós-moderno, no plano educacional, e demonstrar a impossibilidade do cumprimento de tais Diretrizes naquilo que elas próprias se propõem a fazer, que é transformar a realidade. Para tanto, será utilizado o arsenal filosófico-científico fundamentado na esteira ontológica do materialismo histórico-dialético, resgatando além de trabalhos escritos por Karl Marx, teóricos posteriores e intérpretes que contribuíram e ainda contribuem com a reafirmação do legado marxiano. Palavras-chave: Educação farmacêutica; Ontologia marxiana; Aprender a aprender. THE CURRENT UNDERGRADUATE CURRICULUM IN PHARMACY IN TUNE
WITH CAPITAL: A PRE-ANNOUNCED FAILURE Abstract The article aims to highlight the theoretical connection between the current Undergraduate National Curriculum Guidelines for Pharmacy and the so called "learning to learn" pedagogical trends, which are organized expressions of the postmodern discourse applied to the educational field, as well as to demonstrate the impossibility of compliance with such Guidelines in what they themselves intend to do, which is to transform reality. For this purpose, the philosophical and scientific arsenal drawn from the ontological dialectical historical materialism will be called for, as Marx’s works will be claimed, along with those of later theorists and interpreters who have been contributing to the reassurance of Marx legacy. Keywords: Pharmaceutical education; Marxian ontology; Learning to learn 1 O referido texto é produto do prosseguimento investigativo iniciado com o meu trabalho monográfico “Uma análise histórico-crítica das atuais diretrizes curriculares do Curso de graduação em Farmácia”. 2 Graduado em Farmácia pela Universidade Federal do Maranhão - UFMA. Mestrando da Linha de Pesquisa Marxismo, Educação e Luta de Classes do Programa de Pós-Graduação em Educação Brasileira da Universidade Federal do Ceará – E-Luta/UFC. Pesquisador-Colaborador do Instituto de Estudos e Pesquisas do Movimento Operário IMO/UECE. E-mail: [email protected].
REVISTA ELETRÔNICA ARMA DA CRÍTICA | ANO 2: NÚMERO ESPECIAL | DEZEMBRO 2010 | ISSN 1984‐4735
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Considerações iniciais O título do texto aqui exposto advém justamente de uma provocação
feita no início de minha fala em ocasião do “I Fórum de Avaliação do Currículo
do Curso de Farmácia da UFPI”. Naquela oportunidade comecei a palestra3
asseverando: “[...] o atual currículo de Farmácia está fadado ao fracasso
naquilo que ele próprio se propõe a fazer, pois o que ele se propõe a fazer é
transformar a realidade”. Mas, vejamos o que dizem as Diretrizes:
O Curso de Graduação em Farmácia tem como perfil do formando egresso/profissional o Farmacêutico, com formação generalista, humanista, crítica e reflexiva, para atuar em todos os níveis de atenção à saúde, com base no rigor científico e intelectual. Capacitado ao exercício de atividades referentes aos fármacos e aos medicamentos, às análises clínicas e toxicológicas e ao controle, produção e análise de alimentos, pautado em princípios éticos e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade (BRASIL, 2002, p. 1, art. 3º, grifos nossos).
A partir de então, criou-se a expectativa de como se daria o
demonstrativo que validasse tal consideração4.
No presente trabalho serão enunciados os argumentos dispostos em
duas divisões: primeiro, versaremos sobre o alinhamento teórico do atual
currículo de graduação em Farmácia às tendências pedagógicas do “aprender
a aprender”; e, posteriormente, a sua impossibilidade concreta de se efetivar
enquanto instrumento para a tão proclamada “transformação da realidade”.
Para tanto, utilizaremos o arsenal filosófico-científico fundamentado na
esteira ontológica do materialismo histórico-dialético, resgatando além de
trabalhos escritos por Karl Marx, teóricos posteriores e intérpretes que
contribuíram e ainda contribuem com o legado marxiano.
3 O título da palestra proposto pela comissão organizadora do evento denominava-se “Avaliação e Reflexão Acerca da Implantação das Diretrizes Curriculares dos Cursos de Farmácia e o Currículo Generalista”. 3 Sobre esse assunto cf. LOPES (2009).
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O atual currículo de farmácia e a sua fundamentação nas tendências pedagógicas do “aprender a aprender”
Instituído pela Câmara de Educação Superior do Conselho Nacional de
Educação, através da Resolução CNE/CES 2, de 19 de fevereiro de 2002, as
Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Farmácia
entraram em vigor no dia 4 de março do mesmo ano conforme o Diário Oficial
da União (seção 1, p. 9). A partir daí, tornou-se urgente a análise de tal
Resolução na teoria e na prática, na forma e conteúdo da formação de
farmacêuticos (as), enquanto formação de sua individualidade, tanto como
reprodução particular do indivíduo quanto a reprodução direta da sociedade.
Contudo, não se trata de fazer qualquer análise sobre a referida
resolução que esteja disposta a enunciar uma lista de críticas avulsas e
especulativas baseadas de forma isolada nos 15 artigos que compõem a
Resolução aqui mencionada. Isto recairia na “crítica pela crítica”, numa
perspectiva unilateralmente negativa. Trata-se, pois, de uma análise, que parta
do mundo concreto, das relações sociais efetivas entre os seres humanos ao
longo da História para perceber o processo histórico de desenvolvimento da
humanidade, as suas mudanças dialéticas e as condições objetivas e
subjetivas para a transformação radical da atual sociedade em uma outra
organização societária mais avançada material e espiritualmente. O ponto de
partida é a atividade humana transformadora e o ponto de chegada é a
superação do que está dado, o devir.
Seria prudente, nesta altura, deixar claro o nosso entendimento sobre tal
fenômeno na educação brasileira5 o qual abarca um conjunto heterogêneo de
tendências pedagógicas que, salvo as particularidades que as diferem
pontualmente entre si, levantam a mesma bandeira carregando o lema do
“aprender a aprender”. Podemos citar como exemplos, algumas de suas mais
expressivas tendências: Escola Nova, Pedagogia das Competências,
5 Em particular, para não nos alargarmos neste texto à discussão em nível internacional, apesar de reconhecermos, em geral, as suas bases mundializadas.
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Metodologias Ativas, Pedagogia do Professor Reflexivo, Multiculturalismo e
Construtivismo.
Para melhor visualização de tal perspectiva educacional utilizaremos os
estudos de Newton Duarte, cuja dissecação sistemática realizada em seu livro
Vigotski e o “aprender a aprender”: crítica às apropriações neoliberais e pós-
modernas da teoria vigotskiana, resultado de sua tese de livre-docência, é assaz
esclarecedora. Desta forma, Duarte (2006) nos apresenta quatro
posicionamentos valorativos contidos no “aprender a aprender”: a) o primeiro
posicionamento valorativo trata de colocar as aprendizagens adquiridas pelo
indivíduo por si só, de forma autônoma e espontânea como mais importantes
do que os conhecimentos transmitidos pelo intermédio de outros indivíduos; b)
o segundo diz ser muito mais importante o aluno desenvolver um método de
aquisição, elaboração, descoberta e construção de conhecimentos, do que
aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras
pessoas; c) o terceiro recomenda que a própria atividade do estudante deve
mover o processo educacional, ou seja, a educação deve ser impulsionada
pelos interesses e necessidades do estudante; d) e o quarto posicionamento
valorativo nas “pedagogias do ’aprender a aprender’” trata de reduzir a
educação à mera função de preparar o indivíduo para as aceleradas
modificações que acontecem na sociedade atual de modo a adaptá-lo às
exigências do mercado de trabalho.
A partir de então fica cada vez mais evidente o papel que a referida
perspectiva educacional cumpre na atual forma de sociabilidade e que nos
esforçaremos mais adiante em analisar. Porém, cabe frisar por ora, en passant,
que não compartilhamos do ideário amplamente difundido de que estaríamos
vivendo numa sociedade “pós-capitalista”, tampouco com a tese do “fim da
História”. Compartilhamos sim, a clareza de que vivemos em um período
histórico de alto patamar tecnológico proporcionado por um domínio humano
sobre a natureza sem precedentes na História. Por conseguinte, é fundamental
reconhecer a importância histórica que o modo de produção capitalista cumpriu
para o desenvolvimento do gênero humano. Diz-se “cumpriu”, pois representa
atualmente não mais uma forma de sociabilidade avançada que alcançou o
píncaro da evolução social, mas tão-somente um entrave para a emancipação
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humana. Emancipação esta que de forma alguma deve ser encarada como um
ideal a ser almejado, e sim um processo que inaugura uma organização
societária ulterior à divisão da sociedade em classes, à divisão social do
trabalho e à propriedade privada iniciadas no modo de produção asiático.
Importante frisar que diferentemente dos ascetas que insistem em
vislumbrar a qualquer hora no horizonte uma Canaã aprazível pronta e
acabada, concebemos o atual momento como um resultado do
desenvolvimento histórico. Portanto, concebemos o hoje como parte de um
processo que nega o presente – não por exclusão, mas incorporando-o – num
eterno movimento do devir rumo à superação do que está dado. Ou nas
palavras de Marx e Friedrich Engels: “[...] os homens não se libertam, em cada
época, na mesma medida de seu ideal de homem, mas sim de acordo com as
forças produtivas existentes [...]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 416). Nessa
direção, uma sociedade para além do capital deverá tornar efetiva a
universalidade e liberdade das coletividades humanas até aqui construídas as
quais hoje só existem enquanto possibilidades. Vejamos o comentário de
György Lukács:
[...] Marx extrai todas as conseqüências do desenvolvimento histórico. Descobre que os homens se autocriaram como homens através do trabalho, mas que a sua história até hoje foi apenas a pré-história da humanidade. A história autêntica poderá começar apenas com o comunismo, com o estagio superior do socialismo. Portanto, o comunismo não é para Marx uma antecipação utópico-ideal de um estado de perfeição imaginada à qual se deve chegar; ao contrário, é o início real da explicitação das energias autenticamente humanas que o desenvolvimento ocorrido até hoje suscitou, reproduziu, elevou contraditoriamente a níveis superiores, enquanto importantes realizações da humanização. Tudo isso é resultado dos próprios homens, resultado da atividade deles (LUKÁCS,1978, p.14).
Feitas as devidas colocações passemos à explicação de que a
prerrogativa de afinação do atual currículo de Farmácia ao lema do “aprender a
aprender”, não lhe é atribuída aqui de forma arbitrária, portanto faz-se
necessário trazer à baila a própria Resolução que assume, ex professo, a sua
filiação teórica a tal tendência pedagógica:
Educação permanente: os profissionais devem ser capazes de aprender continuamente, tanto na sua formação, quanto na sua
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prática. Desta forma, os profissionais de saúde devem aprender a aprender e ter responsabilidade e compromisso com a sua educação e o treinamento/estágios das futuras gerações de profissionais, mas proporcionando condições para que haja benefício mútuo entre os futuros profissionais e os profissionais dos serviços, inclusive, estimulando e desenvolvendo a mobilidade acadêmico-profissional, a formação e a cooperação através de redes nacionais e internacionais (BRASIL, 2002, p. 2, art. 4º, inciso V, grifos nossos).
Evidenciada a referida vinculação, examinemos com mais detalhes -
dadas as limitações do espaço de um artigo – os seus propósitos e
implicações.
A questão filosófico-científica O legado marxiano nos ensina que a diferença entre os seres humanos
e todas as outras formas de vida é dada pela diferença entre as suas
atividades vitais. Enquanto todas as outras espécies devem se adaptar à
natureza para reproduzir a sua existência, os humanos fazem o inverso;
adaptam a natureza a si, transformando o mundo natural em mundo
humanizado. E essa transformação só é possível a partir de uma atividade
essencialmente humana, matriz fundante do ser social, denominada trabalho6.
O trabalho surge a partir de dado estágio da evolução biológica em que
permitiu ao ser humano ir além das barreiras orgânicas impostas pelas leis
férreas da Natureza limitadas pela mera transmissão genética das
características gerais da espécie e particularidades hereditárias. Este “ir além”
significa justamente superar o estado de passividade que coloca o espécime à
mercê do que a Natureza lhe oferece7 diretamente, ou seja, entre a
necessidade de um leão se alimentar e a gazela que ele avista, não há
absolutamente nada que esteja intermediando a fome (necessidade) à gazela
6 Neste caso não em sua acepção sinônima a “emprego” e “serviço”, que são formas historicamente situadas, mas sim o admitindo em sua dimensão ontológica. 7 Propositadamente usamos, logo em seguida, um exemplo que poderia nos remeter a idéia de “não-passividade” do leão, pois ele age “ativamente” para capturar a gazela. Contudo, o cerne é perceber que apesar do gasto de energia que o leão tem até conseguir se alimentar, ele não teve uma mediação para satisfazer essa necessidade vital. O mesmo serve para a relação direta entre um pássaro e uma fruta “oferecida” por uma árvore.
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(objeto). Portanto, tem-se uma fusão “necessidade-objeto” na percepção desse
felino, que apreende apenas o imediatamente real.
Quanto ao ser humano, este esquema se torna mais complexo. Aparece
in medias res um elemento novo surgido do trabalho que possibilita a
satisfação das necessidades não-diretamente, estabelecendo uma mediação
entre a necessidade e o objeto. Os primitivos que manipulavam o fogo não
viam nele diretamente o objeto que pudesse satisfazer a sua necessidade vital
de se alimentar, porém já se operava psiquicamente a percepção de sua
importância para cozer um coelho. Existe aqui, então, a utilização de um
instrumento natural que colocado para atender intencionalmente as
necessidades humanas se torna por sua vez humanizado. Da mesma forma
um galho8 que serve para compor uma estrutura que proteja o primitivo das
intempéries da natureza, apesar de poder ser encontrado no mundo ambiente
natural passa a ser um instrumento humanizado por ter a partir de então um
significado diferente daquele que tinha na natureza.
Na tão citada passagem de Marx e Engels fundamentamo-nos:
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir os seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material (MARX; ENGELS, p. 87).
Ora, se essa atividade denominada trabalho que possibilita a construção
de instrumentos que fazem a mediação entre a humanidade e a natureza (a
confecção de utensílios que não existem na natureza para a caça ou para a
proteção, o ressignificado humano de objetos encontrados na natureza, assim
como o uso de símbolos e linguagem articulada) não nos é transmitida através
do material genético e se é justamente ela que funda a abissal diferença entre
humanos e as outras formas de seres vivos, então o homem não nasce
homem; torna-se homem.
8 Forçamos dar exemplos de objetos que podem ser encontrados na natureza, como o galho e o fogo, para melhor apreensão do significado de “humanização”. Tendo em vista que é mais perceptível o reconhecimento de instrumentos humanos que não existem na natureza, como um machado e uma jangada construídos. Poderíamos citar ainda exemplos simbólicos como a linguagem articulada.
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Estabelece-se uma diferença fundamental entre o ser humano, natural,
meramente animalesco que nasce apenas com as informações no código
genético como herança que o classifica enquanto pertencente à espécie Homo
sapiens sapiens e o ser social, que a partir do trabalho constrói um mundo
novo humanizado. Podemos, então, trazer agora a categoria de gênero
humano9, mais apropriada ao indivíduo humanizado pelo trabalho, em
superação a classificação biológica espécie.
O currículo de Farmácia em sintonia com o “aprender a aprender” Passemos, então, aos quatro posicionamentos valorativos contidos no
lema “aprender a aprender” sistematizados por Duarte (2006):
a) O primeiro posicionamento valorativo trata de colocar as
aprendizagens adquiridas pelo indivíduo por si só, de forma autônoma e
espontânea como mais importantes do que os conhecimentos transmitidas pelo
intermédio de outros indivíduos;
Este primeiro posicionamento se coloca em uma postura no processo
educativo de defesa à autonomia e espontaneidade. Até aí não há desacordo
de nossa parte, mas a partir de sua supervalorização evidenciando serem
“mais importantes do que os conhecimentos transmitidos pelo intermédio de
outros indivíduos”, passamos a encontrar problemas.
Vimos na secção anterior como o homem se torna homem, isto é, como
o ser natural se torna ser social a partir do trabalho, que é a sua atividade
ontológica. Cabe agora expor as esferas da vida no mundo humanizado no
qual surgiu o processo educativo.
À medida que o homem transformava intencionalmente a natureza pelo
trabalho, dava respostas a perguntas que não existiam. E essas respostas
proporcionavam novas perguntas que por sua vez desencadeavam novas
resoluções que indicavam novos questionamentos e assim por diante. Nesse
eterno movimento o homem se transformava juntamente com a natureza por
9 “Gênero” neste caso não deve ser entendido no sentido da classificação taxonômica de Linnaeus, mas como uma importante categoria histórico-social.
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ele transformada numa ação recíproca. Tão evidente quanto perceber o mundo
há milhares de anos e os homens primitivos que nele viviam em comparação
com o servo da gleba e o sistema feudal ou o trabalhador no modo de
produção capitalista e o mundo atual.
Nesse processo, o homem deve se apropriar daquilo que foi produzido
coletivamente pelos seus antecedentes para que possa se inserir na história da
humanidade e, conseqüentemente, dar respostas novas às novas situações
criadas pelo seu trabalho. E esses produtos do trabalho são resultados de dois
momentos: o primeiro, teleológico, projetando psiquicamente uma prévia-
ideação daquilo que será produzido; e o segundo que é a causalidade, a qual o
homem não tem domínio. De forma que as produções humanas são sempre
um duo de subjetividade e objetividade. Como um martelo que é um resultado
objetivo da prévia-ideação humana e da causalidade. Diz-se então que o
martelo é uma objetivação humana. Objetivação esta que deve ser transmitida
(tanto o produto acabado quanto a técnica que o produziu) para a apropriação
das novas gerações. Por isso, a dinâmica entre apropriação-objetivação10 se
torna peça-chave para o entendimento e desenvolvimento do processo
educativo.
Nas comunidades primitivas, conta-nos Aníbal Ponce,
[...] os adultos explicavam às crianças como elas deveriam comportar-se em determinadas circunstâncias. Usando uma terminologia a gosto dos educadores atuais, diríamos que, nas comunidades primitivas, o ensino era para a vida e por meio da vida; para aprender a manejar o arco, a criança caçava; para aprender a guiar um barco, navegava. As crianças se educavam tomando parte nas funções da coletividade (PONCE, 20007, p. 19).
Desta forma, a educação das futuras gerações era dada de forma
natural e espontânea no seio de sua comunidade para garantir tanto a
reprodução do indivíduo quanto a reprodução genérica da sociedade (que,
aliás, esta separação era imperceptível para não dizer inexistente). E não só
natural e espontânea como também irreflexiva e a-crítica devido às limitações
tecnológicas das comunidades primitivas que reproduziam a sua existência sob
10 Para maiores estudos cf. DUARTE (1992), os capítulos “um” e “dois” de ROSSLER (2006) e HELLER (2008).
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uma base comunal marcada pela escassez. Só a partir de dado
desenvolvimento no modo de produção as objetivações humanas puderam ter
um outro momento mais elaborado para a reprodução da existência, ou seja,
um momento não-natural, não-espontâneo, reflexivo e crítico11.
A ação de se apropriar da técnica de “manejar o arco no próprio ato de
caçar” nos remonta a formulação estruturada pelo grande referencial
escolanovista do séc. XX, John Dewey, expressa no learning by doing. A
preocupação surgida aqui se elabora na proposta de se dar a mesma ênfase
educacional para sociedades cujas bases econômicas são tão distantes, no
caso o modo de produção comunal primitivo e o modo de produção capitalista,
os quais são reflexos da forma como os seus indivíduos vivem, ou nas palavras
de Marx e Engels: “[...] Tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são
eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com o que
produzem como também com o modo como produzem” (MARX; ENGELS,
2007, p.87).
Distantes das comunidades primitivas por um universo de objetivações
resultantes de centenas de milhares de anos, não é compatível com o alto nível
de complexidade do ser social atingido hoje, em plena decadência do modo de
produção capitalista, que tenhamos o mesmo princípio educativo calcado no
“aprender fazendo” de nossos ancestrais, primeiros representantes do gênero.
Mas para Dewey (1980, p. 145) “O verdadeiro desenvolvimento é um
desenvolvimento da experiência pela experiência.”
O momento teórico (não-natural, não-espontâneo, reflexivo e crítico) é
fundamental para a prática e esta é a razão de ser e o critério de verdade da
teoria:
[...] a prática é a razão de ser da teoria, o que significa que a teoria só se constituiu e se desenvolveu em função da prática que opera, ao mesmo tempo, como seu fundamento, finalidade e critério de verdade. A teoria depende, pois, radicalmente da prática. Os problemas de que ela trata são postos pela prática e ela só faz sentido enquanto é acionada pelo homem como tentativa de resolver
11 Não nos ateremos neste texto aos aprofundamentos referentes às esferas das objetivações genéricas em-si (naturais, espontâneas, irreflexivas e a-críticas), do âmbito cotidiano e para-si (não-naturais, não-espontâneas, reflexivas e críticas, do âmbito não-cotidiano). Porém, é imprescindível destacar que aquelas se referem à reprodução direta do indivíduo (alimentar-se, vestir-se, dormir etc.) e estas à reprodução da sociedade (ciência, filosofia, arte etc.).
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os problemas postos pela prática. Cabe a ela esclarecer a prática, tornando-a coerente, consistente, conseqüente e eficaz. Portanto, a prática igualmente depende da teoria, já que sua consistência é determinada pela teoria. Assim, sem a teoria a prática resulta cega, tateante, perdendo sua característica especifica de atividade humana. Com efeito, a ação humana é uma atividade adequada a finalidades, isto é, guiada por um objetivo que se procura atingir. [...] Por isso, diante da observação dos alunos: ‘este curso é muito teórico; deveria ser mais prático’, minha tendência sempre foi a de responder: ‘Oxalá fosse muito teórico, pois, de teoria nós precisamos muito’ (SAVIANI, 2005, pp.261-262).
Nota-se que as objetivações humanas mais elaboradas, como a ciência
e a filosofia, não se encontram presas àquele primeiro momento da relação do
sujeito com o objeto, proporcionado pela experiência. A análise não-natural,
não-espontânea, reflexiva e crítica é característica essencial da apreensão
efetiva da realidade concreta para além do imediatamente real próprio das
outras formas de seres vivos. Porquanto verificamos uma contradição12 não-
dialética no atual currículo de Farmácia:
Tomada de decisões: o trabalho dos profissionais de saúde deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões visando o uso apropriado, eficácia e custo-benefício, da força de trabalho, de medicamentos, de equipamentos e de práticas. Para este fim, os mesmos devem possuir competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas em evidências científicas (BRASIL, art. 4º, inciso II, grifos nossos).
Ora, já foi indicado anteriormente a filiação do currículo de Farmácia ao
“aprender a aprender” e que este, como demonstrado neste primeiro
posicionamento valorativo – “as aprendizagens autônomas e espontâneas são
mais importantes” –, não preconiza o aprendizado substancialmente científico
(não-natural, não-espontâneo, reflexivo e crítico). Então, como o referido
currículo do “aprender a aprender” se propõe imperativamente a orientar os
profissionais de saúde a se basearem em “evidências científicas” se a sua
própria matriz teórica não se sustenta cientificamente?!
Dermeval Saviani apresenta o trabalho educativo no processo de
ensino-aprendizagem como
12 É oportuno explicitar que não estamos reivindicando aqui o tertium non datur nos marcos da lógica formal.
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o ato de produzir direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens. Assim, o objeto da educação diz respeito, de um lado, à identificação dos elementos culturais que precisam ser assimilados pelos indivíduos da espécie humana para que eles se tornem humanos e, de outro lado e concomitantemente, à descoberta das formas mais adequadas para atingir esse objetivo (SAVIANI, 2008, p. 13).
Isto causa um enorme incomodo aos adeptos do “aprender a aprender”
que pregam ser mais importante um aprendizado autônomo e espontâneo “do
que os conhecimentos transmitidos pelo intermédio de outros indivíduos”. Mas
será que mesmo estas formulações básicas do “aprender a aprender” não lhes
foram “transmitidas pelo intermédio de outros indivíduos” que defendem tal
tendência pedagógica?!
É preciso ter clareza sobre o que acarretará colocar hierarquicamente a
aprendizagem que o indivíduo adquire autônoma e espontaneamente como
superior e mais desejável que a transmitida por outro indivíduo. Em nossa
avaliação, este posicionamento conduz a uma superestimação do estudante
deixando em segundo plano a transmissão sistemática pelo professor das
objetivações genéricas mais complexas (ciência, filosofia, arte etc.) que a
humanidade coletivamente produziu ao longo da História com mediações não-
naturais, não-espontâneas, reflexivas e críticas13. Não há desacordo com a
proposição de que a educação escolar deve fomentar uma liberdade na
pesquisa e uma progressiva autonomia intelectual, porém é preciso perceber o
processo que desencadeia esta condição e que a transmissão das formas mais
elevadas do conhecimento socialmente produzidos não é uma barreira para se
chegar a esse estágio.
Avancemos ao segundo posicionamento valorativo:
b) Este diz ser muito mais importante o aluno desenvolver um método de
aquisição, elaboração, descoberta e construção de conhecimentos, do que
aprender os conhecimentos que foram descobertos e elaborados por outras
pessoas;
Complementando o primeiro posicionamento, este segundo carrega a
supervalorização do método de conhecimento em detrimento do conhecimento 13 Do ponto de vista político um dos resultados dessa postura é o esvaziamento do papel docente na aprendizagem do indivíduo implicando na precariedade de suas atividades.
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como produto. Esta inversão entre o ponto de partida e ponto de chegada14 é
fundamental para compreendermos o equívoco na questão. Ilustremos essa
prerrogativa do “aprender a aprender” com uma passagem de Jean Piaget,
grande teórico utilizado pelo Construtivismo:
O problema da educação internacional é, portanto, essencialmente o de direcionar o adolescente não para soluções prontas, mas para um método que lhe permita construí-las por conta própria (PIAGET apud DUARTE, 2006, pp. 35-36).
Imaginemos um indivíduo que precise reinventar15 algo que já existe
(pelo fato de desconhecer a sua existência ou porque ignora a técnica de sua
produção), ou seja, precise dispensar tempo e energia no desenvolvimento da
síntese de algo que ele necessite como prévia condição para se chegar a um
ponto do qual já poderia ter partido inicialmente. Nesse direcionamento, o
atraso que a humanidade se encontraria caso tivesse que, a cada geração,
“reinventar”/“redescobrir” o método que poderia nos levar ao Teorema de
Pitágoras ou à Fórmula de Bhaskara seria extraordinário. Ao invés de se partir
das objetivações genéricas de dado momento, construídas ao longo de
milhares de anos e historicamente situadas, o “aprender a aprender” propõe o
retrocesso de darmos marcha-à-ré e partamos de um ponto atrás, já superado
pelos indivíduos de outrora!
Se esse fosse o “caminho científico” utilizado por Albert Einstein é
possível que ele não tivesse chegado em 1905 à redação de seu polêmico
artigo científico sobre a teoria da relatividade, por estar ocupado em chegar as
conclusões que Issac Newton já tivera, pelo menos dois séculos antes, sobre a
lei universal da gravitação dos corpos.
Lukács (1978, p. 5), ao dissertar sobre o fato de a humanidade dar
respostas aos seus carecimentos históricos em busca de sua satisfação,
ressalta:
Tão-somente o carecimento material, enquanto motor do processo de reprodução individual ou social, põe efetivamente em movimento o
14 O que no campo da atividade política seria o equivalente ao problema de entendimento entre tática e estratégia. 15 Note que não digo “reproduzir”, que é um momento importante no processo de desenvolvimento do educando, digo “reinventar”.
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complexo do trabalho; e todas as mediações existem ontologicamente apenas em função da sua satisfação. O que não desmente o fato de que tal satisfação só possa ter lugar com a ajuda de uma cadeia de mediações, as quais transformam ininterruptamente tanto a natureza que circunda a sociedade, quanto os homens que nela atuam [...]; e isso porque elas tornam praticamente eficientes forças, relações, qualidades etc., da natureza que, de outro modo, não poderiam exercer essa ação, ao mesmo tempo em que o homem – liberando e dominando essas forças – põe em ser um processo de desenvolvimento das próprias capacidades no sentido de níveis mais altos.
Como para o gênero humano as carências se convertem em perguntas
devendo ser respondidas de acordo com as possibilidades existentes em cada
tempo presente, o desenvolvimento científico-filosófico do séc. IV a.C. permitiu
que o materialismo antigo de Demócrito apenas pudesse abstrair o átomo
enquanto menor parte constituinte da matéria, sendo comprovado somente
quase vinte e quatro séculos mais tarde. A dominação humana sobre a
natureza através do trabalho nos proporciona estágios em que forjamos, a
cada momento, um desenrolar de forças produtivas que nos elevam “a níveis
mais altos” na evolução do ser social. Talvez por isso Leonardo da Vinci,
limitado pelo seu séc. XV, não pudesse materializar os projetos de fazer “o
homem voar” sem antes de a humanidade passar pelas Revoluções Industriais
que transformaram substancialmente a forma de o gênero humano reproduzir a
sua existência. E essas “mediações” são fundamentais para conectarem o
momento subjetivo, de prévia-ideação, à possibilidade concreta de sua
objetivação.
Enfatizo esses exemplos para dimensionarmos o quão reacionária é a
proposição de preterir a espontaneidade de o educando “desenvolver um
método de aquisição, elaboração, descoberta e construção de conhecimentos”
em detrimento da transmissão do que há de mais avançado nas objetivações
humanas até aqui. Reinventemos a roda!
Prosseguindo, o “aprender a aprender” nos dá uma pista do porquê de
supervalorizar “o método” em relação ao conhecimento como produto que é
“transmitida por outras pessoas” quando expõe no art. 13º, inciso II das atuais
Diretrizes que os currículos de Farmácia deverão ter como estrutura:
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[...] contemplar a abordagem de temas observando o equilíbrio teórico-prático, desvinculado da visão tecnicista, permitindo na prática e no exercício das atividades a aprendizagem da arte de aprender (BRASIL, 2002, p. 5, grifos nossos).
Nesse bojo, analisamos a passagem supra da seguinte forma: primeiro;
lembremos dos primitivos que “aprendiam a navegar navegando” já explicado
anteriormente, portanto não dispensemos mais linhas comentando sobre a
“aprendizagem da arte de aprender” na “prática e no exercício das atividades”.
E segundo; o “aprender a aprender” na ânsia animada em se contrapor ao
tecnicismo joga fora a água suja junto com a criança quando trata toda
transmissão de conhecimento como mecânica, muito bem esclarecido por
Saviani (2008, p. 18) ao refutar a postura mecanicista da Escola Nova tendo
[...] claro que é o fim a atingir que determina os métodos e processos de ensino-aprendizagem, compreende-se o equívoco da Escola Nova em relação ao problema da atividade e da criatividade. Com efeito, a crítica ao ensino tradicional era justa, na medida em que esse ensino perdeu de vista os fins, tornando mecânicos e vazios de sentido os conteúdos que transmitia. A partir daí, a Escola Nova tendeu a classificar toda transmissão de conteúdo como mecânico e todo mecanismo como anticriativo, assim como todo automatismo como negação da liberdade16.
16 E continua a preleção: “Entretanto, é preciso entender que o automatismo é condição da liberdade e que não é possível ser criativo sem dominar determinados mecanismos. Isto ocorre com o aprendizado nos mais diferentes níveis e com o exercício de atividades também as mais diversas. Assim, por exemplo, para se aprender a dirigir automóvel é preciso repetir constantemente os mesmos atos até se familiarizar com eles. Depois já não será necessária a repetição constante. Mesmo se esporadicamente, praticam-se esses atos com desenvoltura, com facilidade. Entretanto, no processo de aprendizagem, tais atos, aparentemente simples, exigem razoável concentração e esforço até que fossem fixados e passassem a ser exercidos, por assim dizer, automaticamente. Por exemplo, para se mudar a marcha com o carro em movimento, é necessário acionar a alavanca com a mão direita sem se descuidar do volante, que será controlado com a mão esquerda, ao mesmo tempo que se pressiona a embreagem com o pé esquerdo e, concomitantemente, retira-se o pé direito do acelerador. A concentração da atenção exigida para realizar a sincronia desses movimentos absorve todas as energias. Por isso o aprendiz não é livre ao dirigir. No limite, eu diria mesmo que ele é escravo dos atos que tem que praticar. Ele não os domina, mas, ao contrário, é dominado por eles. A liberdade só será atingida quando os atos forem dominados. E isto ocorre no momento em que os mecanismos forem fixados. Portanto, por paradoxal que pareça, é exatamente quando se atinge o nível em que os atos são praticados automaticamente que se ganha condições de se exercer, com liberdade, a atividade que compreende os referidos atos. Então a atenção liberta-se, não sendo mais necessário tematizar cada ato. Nesse momento, é possível não apenas dirigir livremente, mas também ser criativo no exercício dessa atividade. E só se chega a esse ponto quando o processo de aprendizagem, enquanto tal, completou-se” (idem, p.19). Esta passagem é uma ótima resposta à confusa orientação do “aprender a aprender” de que a estrutura do Curso de Farmácia deva “ser organizada de forma a permitir que haja disponibilidade de tempo para a consolidação dos conhecimentos e para as atividades complementares objetivando progressiva autonomia intelectual do aluno” (BRASIL, 2002, p. 5, art. 13º, inciso VI, grifos nossos).
268
O “problema” de se transmitir conhecimento na visão míope do
“aprender a aprender” é o simples ato de fazê-lo, isto é, o fato em si mesmo.
Desta forma, pelo menos no discurso, não interessa o que é transmitido, mas
sim que é “transmitido” e por isso deve ser evitado.
O terceiro posicionamento recomenda:
c) Que a própria atividade do estudante deve mover a processo
educacional, ou seja, a educação deve ser impulsionada pelos interesses e
necessidades do estudante.
Este posicionamento está intimamente ligado aos outros dois anteriores
na medida em que prima pela centralidade no estudante e secundariza o
professor, despropositando o papel docente como transmissor intencional do
que já fora produzido pelo conjunto da humanidade em seu desenvolvimento
histórico-social (renominando-o de “facilitador”). É deslocar a educação
sistematizada das objetivações não-naturais e não-espontâneas para segundo
plano em favorecimento de um saber natural e espontâneo, próprio das
comunidades primitivas que, dado o grau resumido de desenvolvimento
histórico-social, viam-se obrigadas a estar diretamente ligadas ao ato laborativo
para dele se obter aprendizagem, ou seja, a “aprender fazendo”. A sua
identificação nas atuais Diretrizes de Farmácia dispensa investigações mais
rigorosas, estando evidente quando enuncia:
O Curso de Graduação em Farmácia deve ter um projeto pedagógico, construído coletivamente, centrado no aluno como sujeito da aprendizagem e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem. Este projeto pedagógico deverá buscar a formação integral e adequada do estudante através de uma articulação entre o ensino, a pesquisa e a extensão/assistência (BRASIL, 2002, p. 4, art. 9º, grifos nossos).
É inevitável lermos essa passagem que sugere um “caminho” educativo
“centralizado no aluno como sujeito da aprendizagem” e não nos reportarmos
ao milenar embate filosófico da relação sujeito-objeto no processo de
apreensão da realidade efetiva. Sobretudo com as contribuições avançadas, à
época, de Immanuel Kant, que superara a velha objetividade a-histórica greco-
269
medieval pondo a regência no sujeito e não mais no objeto. Mas foi Marx que,
radicalmente, conseguiu elevar as possibilidades de apreensão do mundo ao
estabelecer unidade ontológica entre subjetividade e objetividade. Se antes de
Marx os pesos eram dados unilateralmente ao sujeito ou ao objeto, com o
intelectual-militante alemão essa separação foi superada pela dialética
subjetividade-objetividade, com primazia no objeto.
O subjetivismo da “revolução copernicana” supervalorizava o sujeito na
relação sujeito-objeto e por isso era obrigado a recorrer ao “Eu transcendental”
no interior da consciência para explicações objetivas mais complexas que a
complexa sociedade incipiente, surgida da Revolução Francesa, requeria.
Portanto, não escapando a um idealismo mais elaborado que o escolástico.
Mas, e quanto à “dialética subjetividade-objetividade, com primazia no
objeto”? Não poderia causar um desconforto de retorno à grisalha objetividade
com esta “primazia no objeto”?! Absolutamente, pois não há uma
supervalorização, somente o reconhecimento que é o objeto o apreendido pela
mediação subjetiva daquilo que ele é e não daquilo que queiramos que ele
seja. Ou em outros termos, a cor vermelha é vermelha independente do sujeito
que a vê. Se o sujeito é daltônico e vê a cor verde ao invés do vermelho, por
exemplo, é um problema patológico óptico em nível celular e não porque a
visualização sensível do vermelho é relativa ou depende do sujeito. Vemos
(exceto os daltônicos) a cor vermelha porque é a única cor refletida do espectro
da luz para a nossa retina e processada no cérebro. O objeto nos diz o que ele
é, mas para apreendê-lo é preciso condições para tanto. Condições histórico-
ontológicas para que se possa utilizar as mediações mais avançadas
objetivadas na ciência, filosofia, arte etc. para apreender o mundo. Como os
poucos recursos tecnológicos que impossibilitaram os humanos medievais de
apreenderem o sol em sua forma real e concreta, isto é, esférica, e não plana
como eles acreditavam ser.
Às últimas conseqüências, a centralização no sujeito nos leva a
conceituações abstrato-especulativas proporcionadas por um subjetivismo de
larga intimidade com o sobrenatural, tratando a consciência de si, como auto-
consciência e não como reflexo ativo da vida real. O subjetivismo idealiza um
mundo a partir de sua própria idéia de mundo e não a partir da concretude do
270
mundo real: “[...] a antiguidade pode ser considerada realista, na medida em
que para os antigos a comunidade era uma ‘verdade’, enquanto para os
modernos ela não passa de uma ‘mentira’ idealista” (MARX; ENGELS, p. 147).
Marx ironiza Max Stirner explicando que “[...] na verdade ele não
‘apreende’ ‘o mundo’, mas apenas suas ‘fantasias delirantes” (idem, pp. 130-
131) e mais a frente arremata:
O que São Max deveria provar é não que um determinado “Tu”, isto é, o Szeliga, torna-se pensante, falante, cantante, quando começa a pensar, falar e cantar, mas sim deveria provar que: o pensador cria a si mesmo a partir do nada desde o momento em que começa a pensar; o cantor cria a si mesmo a partir do nada desde o momento em que começa a cantar etc. – aliás, poderíamos até mesmo dizer que não são o pensador e o cantor, mas sim o pensamento e o canto, enquanto sujeitos, que criam a si mesmos a partir do nada, desde o momento em que começam a pensar e a cantar” (idem, p. 152).
Contudo, o fato de centralizar “no aluno como sujeito da aprendizagem”
não deve nos levar ao deslize de estudarmos a relação sujeito-objeto na
educação como se tratasse da mesma relação entre um homem (sujeito) e um
átomo de carbono (objeto), pois o ato educativo é mais complexo; trata-se de
estabelecer uma relação entre um sujeito (educador) e um objeto (educando)
que também é sujeito por conter um momento subjetivo (teleológico-causal) ao
contrário do átomo de carbono (que é pura causalidade)17. O educando
enquanto “sujeito”, porém sem os excessos do “aprender a aprender”. Quanto
a isso Marx elabora na terceira tese Ad Feuerbach que
A doutrina materialista sobre a modificação das circunstâncias e da educação esquece que as circunstâncias são modificadas pelos homens e que o próprio educador tem de ser educado. Ela tem, por isso, de dividir a sociedade em duas partes – a primeira das quais está colocada acima da sociedade. A coincidência entre a altera[ção] das circunstâncias e a atividade ou automodificação humanas só pode ser apreendida e racionalmente entendida como prática revolucionária (MARX, 2007, pp. 533-534).
Portanto, o fato aqui não é unilateralizar simplória e mecanicamente o
peso no processo de ensino-aprendizagem no estudante ou no professor, mas
sim ter clareza do papel central do docente como transmissor do patrimônio 17 Cf. TONET (2005).
271
histórico-cultural construído até hoje. Contudo percebendo qual o lugar do
educando enquanto sujeito nesse processo, pois sugerir que “a educação deve
ser impulsionada pelos interesses e necessidades do estudante” é não levar
em consideração dois pontos: o cotidiano alienado no qual o estudante está
imerso e de qual “estudante” estamos nos referindo, se o “estudante concreto”
ou o “estudante empírico”.
Na sociabilidade regida pela reprodução do capital, como a nossa, em
que se encontram relações de dominação no intercâmbio humano, faz-se
necessário direcionar as esferas da vida para a manutenção do existente. E
essa “presentificação” atinge primeira e mais facilmente o cotidiano, alienando-
o, ou seja, tornando-o estranho, alheio à própria práxis humana. Essa é uma
grande tarefa do complexo ideológico patrocinado pelas classes dirigentes.
Quanto a “qual estudante”, Saviani indaga:
A questão levantada pode ser ilustrada com o tema relativo aos interesses do aluno, colocado no centro do debate pedagógico pelo movimento da Escola Nova. O objetivo do processo pedagógico é o crescimento do aluno; logo, seus interesses devem necessariamente ser levados em conta. Cabe, porém, indagar: quais são os interesses do aluno? De que aluno estamos falando? Do aluno empírico ou do aluno concreto? O aluno empírico, como indivíduo imediatamente observável, tem determinadas sensações, desejos e aspirações que correspondem à sua situação empírica imediata. Ora, esses desejos e aspirações, esses seus interesses, não correspondem necessariamente aos seus interesses reais, definidos pelas condições sociais que o situam enquanto indivíduo concreto (2004, p. 48).
Ou seja, qual o lugar do estudante na luta de classes?
Proclamar que o estudante deve direcionar o ato educativo conforme as
suas necessidades e interesses é induzir que todos os indivíduos têm as
mesmas necessidades e interesses (não importando o seu lugar na produção
econômica, se é o filho do empresário de transportes coletivos ou se é o filho
do motorista de ônibus). Pulverizar o caráter classista das relações de
dominação na atual sociedade é uma tarefa fundamental para a burguesia se
assegurar como hegemônica no campo educacional e para isso usa o discurso
sedutor de fazer o estudante ter um “papel ativo” na escola, levando os seus
“interesses” carregados do cotidiano alienado e direcionado pelos preconceitos
e sensos-comuns reproduzidos na sociedade capitalista.
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O quarto posicionamento é obscenamente revelador do papel que as
tendências do “aprender a aprender” cumprem na sociedade.
d) O quarto posicionamento valorativo nas “pedagogias do ’aprender a
aprender’” trata de reduzir a educação à mera função de preparar o indivíduo
para as aceleradas modificações que acontecem na sociedade atual de modo a
adaptá-lo às exigências do mercado de trabalho.
A miopia gerencial e arrogante e a resistência à mudança, que paira em grande parte no sistema produtivo, devem dar lugar à aprendizagem, ao conhecimento, ao pensar, ao refletir e ao resolver novos desafios da atividade dinâmica que caracteriza a economia global dos tempos modernos. [...] os empresários e os trabalhadores devem cada vez mais investir no desenvolvimento do seu potencial de adaptabilidade e de empregabilidade [...] O êxito do empresário e do trabalhador do século XXI terá muito que ver com a maximização das suas competências cognitivas. Cada um produzirá mais na razão direta de sua maior capacidade de aprender a aprender [...] A capacidade de adaptação e de aprender a aprender e a reaprender, tão necessária para milhares de trabalhadores que terão de ser reconvertidos em vez de despedidos, a flexibilidade e modificabilidade para novos postos de trabalho vão surgir cada vez com mais veemência. [...] e tais postos de trabalho terão que ser conquistados pelos trabalhadores preparados e diferenciados em termos cognitivos (FONSECA apud DUARTE, 2006, pp. 41-42).
A inserção no “mundo do trabalho” (assalariado!) é uma preocupação
urgente do “aprender a aprender”18. E como a sociedade capitalista em
decadência se aprofunda numa barbárie cada vez mais desumana para
defender a propriedade privada e a reprodução do capital, tais tendências
pedagógicas se alinham, planando confortavelmente nos ventos pós-modernos
desta fase monopolista. Desta forma, é imprescindível que se adestre os
indivíduos, aprofundando o grau de alienação, formulando na educação termos
abstrato-ideológicos como “cidadão”, “generalista”, “participativo” etc. Assim, lê-
se que a formação de farmacêuticos deve direcionar o “profissional” para as
“competências e habilidades”:
[...] atuar multiprofissionalmente, interdisciplinarmente e transdisciplinarmente com extrema produtividade na promoção da
18 “Administração e gerenciamento: os profissionais devem estar aptos a tomar iniciativas, fazer o gerenciamento e administração tanto da força de trabalho, dos recursos físicos e materiais e de informação, da mesma forma que devem estar aptos a serem empreendedores, gestores, empregadores ou lideranças na equipe de saúde” (BRASIL, 2002, p. 2, art. 4º, inciso V).
273
saúde baseado na convicção científica, de cidadania e de ética (BRASIL, 2002, p. 2, art. 5º, inciso III, grifos nossos).
Ivo Tonet destaca, em relação às possibilidades existentes de
desenvolvimento do gênero humano:
Contudo, o pleno desabrochar destas possibilidades é bloqueado e pervertido pelas relações sociais fundadas na propriedade privada. Vale dizer, a divisão social do trabalho é intensificada: o acesso à educação é cada vez mais dificultado; os próprios conteúdos são cada vez mais fragmentados e alienados; o processo educativo é sempre mais submetido às regras do mercado. Disto resulta uma formação dos indivíduos cada vez mais unilateral, deformada e empobrecida. Destaque-se, porém, que isto se dá ao mesmo tempo em que se torna sempre mais amplo o fosso entre a realidade e o discurso. Enquanto aquela vai no sentido da fragmentação, da oposição entre os indivíduos, da guerra de todos contra todos, da exclusão social, do aumento das desigualdades sociais, este intensifica o apelo por uma educação humanista, solidária, integral, cidadã, democrática e participativa (TONET, 2005, p. 134).
Então, “comprometer o aluno com o desenvolvimento científico e a
busca do avanço técnico associado ao bem estar, à qualidade de vida e ao respeito aos direitos humanos” (BRASIL, 2002, p. 5, art. 13º, inciso V, grifos
nossos) torna-se um discurso vazio de conteúdo com forte apelo ideológico.
Como defender o capital e as suas várias formas de propriedade privada e
contemporaneamente ser defensor da “qualidade de vida” e “respeito aos
direitos humanos19”?! Existem fortes limitações a esse respeito.
Ora, este discurso não só não é uma forma correta de fazer frente aos aspectos desumanizadores do capitalismo atual, como é muito mais um sintoma do agudo extravio da consciência. Ao nosso ver, ele está a indicar que a consciência não compreende mais a lógica do processo social e por isso não sabe onde se encontra a matriz dele. Está a indicar também que admite que o sujeito não tem condições de atacar as bases materiais, que são o fundamento da sociabilidade, limitando-se a apontar o dedo acusador para os seus efeitos. O resultado é que quanto menos compreendida e atacada a realidade prática desumanizadora, tanto mais forte o discurso dito humanista, crítico, etc. Ou seja, a intensificação do discurso humanista é na verdade, a contrapartida da incapacidade de compreender e de mudar praticamente a realidade (TONET, 2005, p. 134).
19 Não nos reportamos aqui aos “direitos humanos” prescritos pela ONU, mas numa relação genuinamente humana que só será encontrada a partir de uma sociedade emancipada em todas as esferas da vida.
274
Portanto, as vociferações que proclamam uma educação “cidadã”,
“participativa”, “humana”, “generalista” etc. sem um conteúdo radical, isto é,
sem atingir as raízes da matriz econômica na qual estão fincadas todos os
alicerces do modo como nos reproduzimos hoje, é tão-somente tergiversar
sobre tal assunto. O que, em última instância, acabam por contribuir com a
continuação desta forma atrasada de interação humana insuperável por dentro
do capitalismo. Então, apontar uma perspectiva educacional que caminhe em
direção à transformação da realidade (à uma transformação social, à uma
sociedade humana no discurso e na prática), quer dizer necessariamente lutar
pela emancipação humana. E não há luta pela emancipação humana sem a
luta pela superação do capital.
Notas conclusivas O entendimento de que a contribuição para a “transformação da
realidade” proclamada pelas atuais Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso
de Graduação em Farmácia não passa de mera superficialidade por não tratar
de uma transformação radical no modo de reprodução humana, o qual
encontra no capital a sua matriz histórica, torna-se evidência ao percebermos
quais os instrumentos educacionais utilizados para empreender tal tarefa.
Nessa perspectiva, percebemos a filiação teórica das atuais Diretrizes às
tendências pedagógicas do “aprender a aprender” tão in voga no meio
educacional brasileiro, em particular, e o seu estrito vínculo com o discurso
pós-moderno, por sua vez tão afinado às exigências do mercado capitalista.
Contudo, não pretendemos encerrar o debate assaz importante e ainda pouco
discutido no âmbito da formação de trabalhadores em saúde, mas expor a
falácia e insuficiência teórica com bases científico-filosóficas ao se pretender
uma educação voltada para transformar a realidade sem fazer dela uma arma
para a compreensão histórico-ontológica de tais possibilidades efetivas.
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