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2. Mínimo Existencial e Meio Ambiente

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2. Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RECURSO ESPECIAL N. 1.366.331-RS (2012/0125512-2)

Relator: Ministro Humberto Martins

Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul

Recorrido: Município de São Jerônimo

Advogado: Olindo Barcellos da Silva e outro(s)

EMENTA

Administrativo. Processo Civil. Ação civil pública. Rede de

esgoto. Violação ao art. 45 da Lei n. 11.445/2007. Ocorrência.

Discricionariedade da Administração. Reserva do possível. Mínimo

existencial.

1. Cuida-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério

Público do Estado do Rio Grande do Sul objetivando o cumprimento

de obrigação de fazer consistente na instalação de rede de tratamento

de esgoto, mediante prévio projeto técnico, e de responsabilidade por

danos causados ao meio ambiente e à saúde pública.

2. Caso em que o Poder Executivo local manifestou anteriormente

o escopo de regularizar o sistema de encanamento da cidade. A câmara

municipal, entretanto, rejeitou a proposta.

3. O juízo de primeiro grau, cujo entendimento foi confi rmado

pelo Tribunal de origem, deu parcial procedência à ação civil pública

- limitando a condenação à canalização em poucos pontos da cidade e

limpeza dos esgotos a céu aberto. A medida é insufi ciente e paliativa,

poluindo o meio ambiente.

4. O recorrente defende que é necessária elaboração de projeto

técnico de encanamento de esgotos que abarque outras áreas carentes

da cidade.

5. O acórdão recorrido deu interpretação equivocada ao

art. 45 da Lei n. 11.445/2007. No caso descrito, não pode haver

discricionariedade do Poder Público na implementação das obras

de saneamento básico. A não observância de tal política pública fere

aos princípios da dignidade da pessoa humana, da saúde e do meio

ambiente equilibrado.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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6. Mera alegação de ausência de previsão orçamentária não afasta

a obrigação de garantir o mínimo existencial. O município não provou

a inexequibilidade dos pedidos da ação civil pública.

7. Utilizando-se da técnica hermenêutica da ponderação de

valores, nota-se que, no caso em comento, a tutela do mínimo existencial

prevalece sobre a reserva do possível. Só não prevaleceria, ressalta-se,

no caso de o ente público provar a absoluta inexequibilidade do direito

social pleiteado por insufi ciência de caixa - o que não se verifi ca nos

autos.

Recurso especial provido.

ACÓRDÃO

Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas,

acordam os Ministros da Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça

“A Turma, por unanimidade, deu provimento ao recurso, nos termos do voto

do(a) Sr(a). Ministro(a)-Relator(a).” Os Srs. Ministros Herman Benjamin,

Og Fernandes, Mauro Campbell Marques (Presidente) e Assusete Magalhães

votaram com o Sr. Ministro Relator.

Brasília (DF), 16 de dezembro de 2014 (data do julgamento).

Ministro Humberto Martins, Relator

RELATÓRIO

O Sr. Ministro Humberto Martins: Cuida-se de recurso especial interposto

pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, com fundamento no art.

105, inciso III, alíneas a, da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo

Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que, ao julgar apelações interpostas

contra decisão que deu parcial provimento à Ação Civil Pública, negou-lhes

provimento, nos termos da seguinte ementa (fl . 96, e-STJ):

“Apelação cível. Direito público não especifi cado. Ação civil pública. Rede de

esgoto. Discricionariedade da Administração.

1. Trata-se de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público objetivando

o cumprimento de obrigação de fazer consistente na instalação de uma rede de

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tratamento de esgoto cloacal e de responsabilidade por danos causados ao meio

ambiente e à saúde pública.

2. Em que pese a existência de dever do Município em zelar pelo meio

ambiente, fornecendo uma adequada estrutura de saneamento básico aos

cidadãos descabe a imposição por intermédio do Poder Judiciário em obrigar

o Município a construir rede de esgoto cloacal, principalmente pelos limites

impostos pela legislação financeira e orçamentária, tendo em vista que

investimentos deste vulto necessitam de inclusão no plano plurianual (PPA) e na

lei de diretrizes orçamentárias (LDO). Ausência de previsão legal para a imposição.

Precedentes desta e. Corte.

3. No caso dos autos, houve condenação a realização de obras de canalização

do esgoto a céu aberto em bairros desassistidos do Município medida que já tem

o condão de zelar pela saúde pública e evitar o escoamento de esgoto em céu

aberto. Sentença mantida no ponto.

4. As pessoas jurídicas de direito público são isentas do pagamento de custas

processuais nos termos da Lei n. 13.471, de 23.6.2010 que alterou o art. 11 do

Regimento das Custas (Lei n. 8.121/1985). Excluídas as despesas judiciais, por

força da ADI n. 970038755864. Sentença explicitada no ponto. Dupla apelação.

Apelações desprovidas, com explicitação da sentença.

No recurso especial, alega ofensa às disposições contidas no artigo 45 da

Lei n. 11.445/2007.

Apresentadas as contrarrazões (fls. 536, e-STJ), sobreveio o juízo de

admissibilidade negativo da instância de origem (fl . 543, e-STJ).

Interposto agravo em recurso especial (fl s. 373-432, e-STJ) e apresentada

a contra-minuta (fl . 436-451, e-STJ), determinei a conversão do agravo em

recurso especial (fl . 564, e-STJ).

O Ministério Público Federal manifestou-se da seguinte forma:

Ambiental. Ação Civil Pública. Instalação de uma rede de tratamento de

esgoto. Decisão do Tribunal a quo que determinou a canalização do esgoto

pluvial e cloacal.

1. Medida paliativa e inadequada. Negativa de vigência ao art. 45 da Lei

n. 11.445/2007. Implementação de política pública pelo Poder Judiciário –

Possibilidade excepcional.

2. Direitos Fundamentais básicos. Reserva do Possível: determinação judicial

indispensável para a garantia de um meio ambiente ecologicamente equilibrado

e de uma sadia qualidade de vida aos habitantes do Município de São Jerônimo.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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3. Parecer do MPF pelo conhecimento e provimento do Recurso Especial

interposto pelo recorrente, a fi m de julgar totalmente procedentes os pedidos

contidos na Ação Civil Pública, impondo ao Município de São Jerônimo obrigação

de fazer consistente na instalação de rede de tratamento de esgoto cloacal nas

Ruas Jerônimo Ferreira, José Batista Anjolim, Antônio de Carvalho, Glauco Saraiva

e Caetano Biachi, em São Jerônimo.

É, no essencial, o relatório.

VOTO

O Sr. Ministro Humberto Martins (Relator): Deve ser dado provimento

ao recurso especial.

Descrevo a controvérsia.

Na origem, foi ajuizada ação civil pública pelo Ministério Público contra

município, objetivando o cumprimento de obrigação de fazer consistente na

instalação de rede de tratamento de esgoto e de responsabilidade por danos

causados ao meio ambiente e à saúde pública. Os pedidos foram assim descritos

(fl . 17, e-STJ):

(...) requer: (...) ao fi nal, seja julgada procedente a presente Ação Civil Pública,

tornando definitiva as medidas liminares, bem como julgada procedente a

presente ação civil pública no sentido de 1. condenar o Município demandado à

obrigação de fazer, em prazo a ser concedido em sentença, sob pena de imposição

de multa ser fi xada por Vossa Excelência, consistente em apresentar projeto técnico à

FEPAM prevendo o encanamento dos esgotos que saem de cada uma das residências

situadas nas Ruas Jerônimo Ferreira, José Batista Anjolim Antônio de Carvalho,

Glauco Saraiva e Caetano Bianchi, situadas no bairro Vila Quininho, em São Jerônimo,

com tratamento e a destinação adequadas, de forma a não causar poluição do lençol

freático e ao Rio Jacuí.

2. impor ao Município demandado a obrigação de reservar na Lei Orçamentária

valores para realização e implementação do projeto a que se refere o pedido F.1.

Após a instrução probatória, comprovou-se a omissão estatal em

implementar sistema de encanamento de esgotos em vários pontos do

município. Observou-se a presença de diversos esgotos a céu aberto dentro da

cidade, causando sérios riscos à saúde dos moradores das áreas. Cito trechos que

elucidam os problemas vividos (fl . 361, e-STJ):

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Já, no que se refere a canalização do esgoto pluvial que corre a céu aberto

na Rua José Batista Anjolim (item “5”), bem como limpeza das caixas da rede

de esgoto pluvial e cloacal existentes nas Ruas Jerônimo Ferreira, José Batista

Anjolim, Antônio de Carvalho, Glauco Saraiva e Caetano Bianchi, na Vila Quininho,

(item “6”), situação fática incontroversa, é de ser julgado procedente o pedido,

visto que trata-se de situação concreta de dano, demonstrada a omissão do Poder

Público, omissão na preservação dos interesses locais de proteção especial à

saúde dos moradores e do meio ambiente, dever constitucional, cuja reparação

do dano é exigível, visto que evidente o risco exposto - esgoto a céu aberto,

caixas da rede de esgoto sujas, entupidas, abertas e com vazamento, ao lado de

residências, ocasionando mau-cheiro, alagamento, bem como noticiados casos

de Hepatite tipo “A” em moradores do local, inclusive, crianças - justifi cando a

imediata intervenção do Poder Judiciário.

A omissão que se arrasta há mais de ano, comprometendo de forma concreta

a saúde pública, demonstra a negligência do Município com o dever de zelar

pela vida e saúde de seus concidadãos, garantindo infra-estrutura de moradia

digna aos seus habitantes, não mais cabendo aguardar inserção em programa de

esgotamento sanitário, mas, nesta situação posta, deve o Poder Público agir de

imediato.

Notou-se, à época, que o Poder Executivo local manifestou anteriormente o

escopo de regularizar o sistema de encanamento da cidade. A câmara municipal,

entretanto, rejeitou a proposta (fl . 353, e-STJ):

Nesta ceara, primeiramente, noticiou o Município pretensão em firmar

convênio com a CORSAN para a realização, dentre outros, do objeto da lide,

contudo, o Projeto de Lei restou refutado pelo Poder Legiferante, conforme

documentação juntada pelo Autor às fl s. 255-256.

O juízo de primeiro grau julgou procedente em parte a ação civil pública,

nos seguintes termos (fl . 362, e-STJ):

Em face do exposto, julgo procedente em parte o pedido formulado pelo

Ministério Público na Ação Civil Pública no 107.0001527-9, contra Município de

São Jerônimo para condenar o Requerido na canalização, no prazo de 60 dias,

do esgoto pluvial que corre em céu aberto na Rua José Batista Anjolim, em São

Jerônimo, bem como determinar que, no mesmo prazo, proceda na limpeza das

caixas da rede de esgoto pluvial e cloacal existentes nas Ruas Jerônimo Ferreira,

José Batista Anjolim, Antônio de Carvalho, Glauco Saraiva e Caetano Bianchi,

situadas na Vila Quininho, neste Município, e, no prazo de 60 dias, deverá re/

ratifi car o levantamento apresentado nas fl s. 166-186.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Ante a sucumbência recíproca, as duas partes interpuseram recursos de

apelação.

O Tribunal de origem, por unanimidade, negou provimento às duas

apelações, mantendo os termos da sentença. Em suma, consignou o Tribunal a

quo, basicamente, que o art. 45 da Lei n. 11.445/2007 não impõe a construção

de rede de esgotos, como pleiteia o MPE-RS.

O Ministério Público Federal manifestou-se sobre a insuficiência da

condenação da seguinte forma (fl . 493-494, e-STJ) :

A canalização do esgoto pluvial e cloacal é medida que não tutela

sufi cientemente o bem estar da população, tampouco o meio ambiente.

Como bem ponderou o Parquet estadual, a obra de canalização, sem a

instalação de rede de tratamento, implicará no lançamento de todo esgoto no

próprio solo, ou em algum curso d’água, fazendo apenas com que a poluição seja

transferida de lugar.

A canalização do esgoto é obra de engenharia que implica em custos para

a Administração. A implementação de medida defi nitiva, com a instalação de

rede de tratamento de esgoto, mostra-se mais efi ciente e efi caz do que a adoção

de medida paliativa, inadequada e também onerosa, consistente na simples

canalização do esgoto.

A insurgência do Ministério Público estadual, ora recorrente, reforça a tese

de insufi ciência do provimento jurisdicional do juízo:

Ora, a solução encontrada é incompreensível, pelas seguintes razões:

1) Se o Município foi condenado a canalizar a vala por onde escorre o esgoto

nas ruas mencionadas, é inevitável que ele elabore um projeto antes, já que

uma obra de canalização é uma obra de engenharia, e portanto é indispensável

a produção de um projeto; sendo indispensável a realização de um projeto de

canalização da vala, nada obstaria o Tribunal de ir adiante na proteção do meio

ambiente e exigir a elaboração de um projeto técnico de rede coletora de esgoto

doméstico, a ser submetido a aprovação do órgão ambiental competente;

2) Se o Município foi condenado a canalizar apenas a vala, sem dar ao esgoto

coletado na vala uma destinação ambientalmente adequada, o resultado fi nal

será que o esgoto coletado será lançado em algum lugar, ou a céu aberto no

próprio solo, ou em algum curso d’água; portanto, a decisão, tal como restou

deferida, será uma fonte de poluição ambiental.

Bem descrita a lide, passo a julgar.

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

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DA VIOLAÇÃO AO ARTIGO 45 DA LEI N. 11.445, DE 2007.

A interpretação dada pelo Tribunal de origem negou vigência ao artigo 45

da Lei n. 11.445/2007, cujo teor abaixo transcrevo:

Art. 45. Ressalvadas as disposições em contrário das normas do titular, da

entidade de regulação e de meio ambiente, toda edifi cação permanente urbana

será conectada às redes públicas de abastecimento de água e de esgotamento

sanitário disponíveis e sujeita ao pagamento das tarifas e de outros preços

públicos decorrentes da conexão e do uso desses serviços.

§ 1º Na ausência de redes públicas de saneamento básico, serão admitidas

soluções individuais de abastecimento de água e de afastamento e destinação

final dos esgotos sanitários, observadas as normas editadas pela entidade

reguladora e pelos órgãos responsáveis pelas políticas ambiental, sanitária e de

recursos hídricos.

§ 2º A instalação hidráulica predial ligada à rede pública de abastecimento de

água não poderá ser também alimentada por outras fontes.

Considerando as circunstâncias do caso, o preceito de lei federal não pode

ser interpretado como mera faculdade da administração pública. As evidências

nos autos apontam para a completa falta de sistema de saneamento básico em

diversos locais descritos na petição inicial.

A interpretação mais razoável da norma federal aponta para o dever de

o município implementar sistema completo de abastecimento de água e de

captação de esgoto sanitário. O § 1º, entretanto, evidencia exceção específi ca

para o caso de o município não possuir receita sufi ciente para a construção de

rede completa de abastecimento de água e/ou tratamento de esgoto.

O caso dos autos não se encontra no permissivo do referido parágrafo. O

Poder Executivo local já havia apresentado proposta ao Poder Legislativo para

que se fi rmasse convênio que possuía, entre outras medidas, a implementação do

sistema de saneamento básico em todo o município. Alegar simplesmente a falta

de previsão orçamentária para eximir-se da obrigação social vai de encontro à

vontade anteriormente manifestada.

Nos pedidos da ação civil pública, inicialmente, exige-se apenas a

elaboração de projeto técnico de encanamento. Somente após à elaboração

do projeto ocorre a imposição de reserva de dotação orçamentária para a

execução do plano. Dá-se a oportunidade ao gestor público de programar,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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antecipadamente, as despesas do projeto juntamente com as demais despesas do

município. Não há falta de razoabilidade e exequibilidade nos pedidos da ação.

A interpretação do art. 45 da Lei n. 11.445/2007 passa necessariamente

pelos direitos sociais, pela “reserva do possível” e pela tutela do “mínimo

existencial”.

DA RESERVA DO POSSÍVEL

De início, é de deixar claro que a insufi ciência de recursos orçamentários

não pode ser considerada mera falácia.

Tanto é assim que a doutrina e jurisprudência germânica, conscientes da

existência de limitações fi nanceiras, elaboraram a teoria da “reserva do possível”

(Der Vorbehalt des Möglichen) - segundo a qual os direitos sociais a prestações

materiais dependem da real disponibilidade de recursos fi nanceiros por parte do

Estado.

Na verdade, a tese da reserva do possível assenta-se em ideia que, desde os

romanos, está incorporada na tradição ocidental - no sentido de que a obrigação

impossível não pode ser exigida (Impossibilium nulla obligatio est - Celso, D. 50,

17, 185). Não se pode exigir da ação humana a feitura de algo impossível.

O problema central é que as limitações orçamentárias vão de encontro à

necessidade de efetivação dos direitos fundamentais, principalmente aqueles

que, em regra, realizam-se com a implementação de prestações positivas pelo

Estado.

É justamente nesse ponto - da efetividade - que surge o principal desafi o

em matéria de direitos sociais, pois, sendo eminentemente prestacionais,

demandam um conjunto de prestações positivas por parte do Poder Público.

Tais direitos sempre abrangem a alocação signifi cativa de recursos materiais e

humanos para sua proteção e efetivação de uma maneira geral.

Assim, é necessário buscar a conciliação entre a existência de limitações

fáticas e a imperiosidade de efetivação dos direitos fundamentais. Por este

motivo, arrisco-me a aprofundar na análise em torno do que seja a reserva do

possível, qual o seu alcance e em que condições a tese pode ser alegada.

Nesta tarefa, recorro-me ao direito germânico para constatar que o

Tribunal Constitucional Federal Alemão, ao buscar desenvolver a noção da

“reserva do possível”, fi rmou o entendimento de que esta apresenta, pelo menos,

uma dimensão tríplice:

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

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a) uma dimensão fática, que diz respeito à efetiva disponibilidade dos

recursos para a efetivação dos direitos fundamentais;

b) uma dimensão jurídica, que guarda conexão com a distribuição das

receitas e competências tributárias e;

c) por fi m, na perspectiva de eventual titular de um direito a prestações

sociais, a reserva do possível envolve o problema da proporcionalidade e

razoabilidade da prestação, ou seja, aquilo que o indivíduo pode razoavelmente

exigir da sociedade.

Feitas essas considerações, observa-se que a dimensão fática da reserva do

possível é questão intrinsecamente vinculada ao problema da escassez, que deve

ser analisada com mais profi cuidade.

A escassez é “sinônimo” de desigualdade. Bens escassos são bens que não

podem ser usufruídos por todos e, justamente por isso, devem ser distribuídos

segundo regras que pressupõem o direito igual ao bem e a impossibilidade do

uso igual e simultâneo.

Esse estado de escassez, muitas vezes, é resultado de um processo de

escolha - de decisão. Quando não há recursos sufi cientes para prover todas

as necessidades, a decisão do administrador de investir em determinada área

implica escassez de recursos para outra que não foi contemplada. A título

de exemplo, o gasto com festividades ou propagandas governamentais pode

traduzir-se na ausência de dinheiro para a prestação de educação de qualidade

ou de serviços de saúde.

DA PRIORIDADE DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

A pergunta que se deve fazer neste momento é: o administrador público

possui, em todos os casos, discricionariedade para escolher as prioridades, ou

seja, para decidir quais valores serão contemplados e, consequentemente, quais

serão postergados em face da escassez dos recursos públicos?

Tal pergunta deve ser respondida com cautela. A regra é que, por típica

atribuição constitucional, cabe ao Poder Executivo defi nir os programas de

governo que serão tratados com prioridade; boa parte deles, referendados pela

vontade manifestada nas urnas.

Há, entretanto, um núcleo de direitos que não pode, em hipótese alguma,

ser preterido, pois constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado

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Democrático de Direito. O termo “em hipótese alguma” frisa que nem mesmo a

vontade da maioria pode tratar tais direitos como secundários.

Isto porquanto a democracia não se restringe à vontade da maioria. O

princípio do majoritário é apenas um instrumento no processo democrático,

mas este não se resume àquele. Democracia é, além da vontade da maioria, a

realização dos direitos fundamentais.

Explica-se. Só haverá democracia efetiva onde houver liberdade de

expressão, pluralismo político, acesso à informação, à educação, inviolabilidade

da intimidade, o respeito às minorias e às ideias minoritárias etc. Tais valores

não podem ser malferidos, ainda que seja a vontade da maioria. Caso contrário,

usar-se-á “democracia” para extinguir a própria democracia.

Com isso, observa-se que a realização dos direitos fundamentais não é

opção do governante, não é resultado de um juízo discricionário nem pode

ser encarada como tema que depende unicamente da vontade política. Não

priorizar os direitos essenciais implica o destrato da vida humana como um fi m

em si mesmo; ofende, às claras, o princípio da dignidade da pessoa humana.

A Constituição Federal reforça esse entendimento. Ao declarar, em seu

art. 1º, III, que a dignidade da pessoa humana é fundamento da República

Federativa do Brasil, a Carta Cidadã de 1988 escolhe algumas prioridades que

devem ser respeitadas pelo poder constituído.

Assim, aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana

- liberdades civis, direitos prestacionais essenciais como a educação e a saúde etc.

- não podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas

do administrador.

DO MÍNIMO EXISTENCIAL

A argumentação até aqui apresentada expõe a existência de duas questões

que precisam ser conciliadas: de um lado, há o real problema da ausência de

recursos orçamentários; do outro, a necessidade de realização dos direitos

fundamentais.

Entrincheirado nesse imbróglio, o Tribunal Constitucional Federal Alemão

desenvolveu a tese do “mínimo existencial”, segundo a qual, a impossibilidade de

concretização de todos os direitos sociais não impede que as pessoas possam

pleitear, no mínimo, o acesso a condições mínimas para uma vida digna. O

mínimo existencial é conceituado como: (Lobo Torres, 2009, p. 35-36)

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

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Há um direito às condições mínimas de existência humana digna que não

pode ser objeto de intervenção do Estado na via dos tributos (= imunidade) e que

ainda exige prestações estatais positivas. O direito é mínimo do ponto de vista

objetivo (universal) ou subjetivo (parcial). É objetivamente mínimo por coincidir

com o conteúdo essencial dos direitos fundamentais e por ser garantido a todos

os homens independentemente de suas condições de riqueza; isso acontece, por

exemplo, com os direitos de efi cácia negativa e com direitos positivos como o

ensino fundamental, os serviços de pronto-socorro, as campanhas de vacinação

pública, etc. Subjetivamente, em seu status positiuus libertatis é mínimo por tocar

parcialmente a quem esteja abaixo da linha de pobreza. (...)

Sem o mínimo necessário à existência, cessa a possibilidade de sobrevivência

do homem e desaparecem as condições iniciais da liberdade. A dignidade

humana e as condições materiais da existência não podem retroceder aquém

de um mínimo, do qual nem os prisioneiros, os doentes mentais e os indigentes

podem ser privados.

O mínimo existencial não tem dicção constitucional própria. Deve-se procurá-

lo na idéia de liberdade, nos princípios constitucionais da dignidade humana,

da igualdade do devido processo legal e da livre iniciativa, na Declaração dos

Direitos Humanos e nas imunidades e privilégios do cidadão.

Só os direitos da pessoa humana, referidos a sua existência cm condições

dignas, compõem o mínimo existencial. Assim, fi cam fora do âmbito do mínimo

existencial os direitos das empresas ou das pessoas jurídicas, ao contrário do que

acontece com os direitos fundamentais em geral.

A tese não deixa de ser uma decorrência do reconhecimento da reserva do

possível. Por não haver recursos para tudo, é que se deve garantir, ao menos, o

sufi ciente para que se possa viver com dignidade.

Esse mínimo existencial não pode ser postergado, devendo, portanto, ser

a prioridade primeira do Poder Público. Somente depois de atendido, abre-se

a possibilidade para a efetivação de outros gastos não entendidos, num juízo de

razoabilidade, como essenciais.

Por esse motivo, pelo menos a priori, a teoria da reserva do possível não

pode ser oposta ao mínimo existencial. Este foi o entendimento adotado por

esta Turma nos julgamentos do REsp n. 1.041.197-MS e REsp n. 440.502,

cujas ementas se transcrevem:

Administrativo. Ação civil pública. Controle judicial de políticas públicas.

Possibilidade em casos excepcionais. Direito à saúde. Fornecimento de

equipamentos a hospital universitário. Manifesta necessidade. Obrigação do

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

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Estado. Ausência de violação do princípio da separação dos poderes. Não-

oponibilidade da reserva do possível ao mínimo existencial.

1. Não comporta conhecimento a discussão a respeito da legitimidade do

Ministério Público para fi gurar no pólo ativo da presente ação civil pública, em

vista de que o Tribunal de origem decidiu a questão unicamente sob o prisma

constitucional.

2. Não há como conhecer de recurso especial fundado em dissídio

jurisprudencial ante a não-realização do devido cotejo analítico.

3. A partir da consolidação constitucional dos direitos sociais, a função estatal

foi profundamente modifi cada, deixando de ser eminentemente legisladora em

pró das liberdades públicas, para se tornar mais ativa com a missão de transformar

a realidade social. Em decorrência, não só a administração pública recebeu a

incumbência de criar e implementar políticas públicas necessárias à satisfação

dos fins constitucionalmente delineados, como também, o Poder Judiciário

teve sua margem de atuação ampliada, como forma de fi scalizar e velar pelo fi el

cumprimento dos objetivos constitucionais.

4. Seria uma distorção pensar que o princípio da separação dos poderes,

originalmente concebido com o escopo de garantia dos direitos fundamentais,

pudesse ser utilizado justamente como óbice à realização dos direitos sociais,

igualmente fundamentais. Com efeito, a correta interpretação do referido

princípio, em matéria de políticas públicas, deve ser a de utilizá-lo apenas para

limitar a atuação do judiciário quando a administração pública atua dentro dos

limites concedidos pela lei. Em casos excepcionais, quando a administração

extrapola os limites da competência que lhe fora atribuída e age sem razão, ou

fugindo da fi nalidade a qual estava vinculada, autorizado se encontra o Poder

Judiciário a corrigir tal distorção restaurando a ordem jurídica violada.

5. O indivíduo não pode exigir do estado prestações supérfluas, pois isto

escaparia do limite do razoável, não sendo exigível que a sociedade arque com

esse ônus. Eis a correta compreensão do princípio da reserva do possível, tal como

foi formulado pela jurisprudência germânica. Por outro lado, qualquer pleito que

vise a fomentar uma existência minimamente decente não pode ser encarado

como sem motivos, pois garantir a dignidade humana é um dos objetivos

principais do Estado Democrático de Direito. Por este motivo, o princípio da

reserva do possível não pode ser oposto ao princípio do mínimo existencial.

6. Assegurar um mínimo de dignidade humana por meio de serviços públicos

essenciais, dentre os quais a educação e a saúde, é escopo da República

Federativa do Brasil que não pode ser condicionado à conveniência política do

administrador público. A omissão injustifi cada da administração em efetivar as

políticas públicas constitucionalmente defi nidas e essenciais para a promoção

da dignidade humana não deve ser assistida passivamente pelo Poder Judiciário.

Recurso especial parcialmente conhecido e improvido. (Grifei)

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 439

(REsp n. 1.041.197-MS, Rel. Min. Humberto Martins, Segunda Turma, julgado

em 25.8.2009, DJe 16.9.2009.)

Processual Civil. Recurso especial. Ação civil pública. Ofensa ao art. 535 do

CPC não confi gurada. Alínea c do permissivo constitucional. Não-demonstração

da divergência. Direito a creche e a pré-escola de crianças até seis anos de

idade. Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA. Legitimidade ativa do

Ministério Público. Princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional. Lesão

consubstanciada na oferta insufi ciente de vagas.

1. A solução integral da controvérsia, com fundamento suficiente, não

caracteriza ofensa ao art. 535 do CPC.

2. Na ordem jurídica brasileira, a educação não é uma garantia qualquer que

esteja em pé de igualdade com outros direitos individuais ou sociais. Ao contrário,

trata-se de absoluta prioridade, nos termos do art. 227 da Constituição de 1988.

A violação do direito à educação de crianças e adolescentes mostra-se, em nosso

sistema, tão grave e inadmissível como negar-lhes a vida e a saúde.

3. O Ministério Público é órgão responsável pela tutela dos interesses

individuais homogêneos, coletivos e difusos relativos à infância e à adolescência,

na forma do art. 201 do Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA.

4. Cabe ao Parquet ajuizar Ação Civil Pública com a fi nalidade de garantir o

direito a creche e a pré-escola de crianças até seis anos de idade, conforme dispõe

o art. 208 do ECA.

5. A Administração Pública deve propiciar o acesso e a frequência em creche e

pré-escola, assegurando que esse serviço seja prestado, com qualidade, por rede

própria.

6. De acordo com o princípio constitucional da inafastabilidade do controle

jurisdicional (art. 5º, XXXV, da CF), garantia básica do Estado Democrático de

Direito, a oferta insufi ciente de vagas em creches para crianças de zero a seis

anos faz surgir o direito de ação para todos aqueles que se encontrem nessas

condições, diretamente ou por meio de sujeitos intermediários, como o Ministério

Público e entidades da sociedade civil organizada.

7. No campo dos direitos individuais e sociais de absoluta prioridade, o juiz

não deve se impressionar nem se sensibilizar com alegações de conveniência e

oportunidade trazidas pelo administrador relapso. A ser diferente, estaria o Judiciário

a fazer juízo de valor ou político em esfera na qual o legislador não lhe deixou outra

possibilidade de decidir que não seja a de exigir o imediato e cabal cumprimento dos

deveres, completamente vinculados, da Administração Pública.

8. Se um direito é qualificado pelo legislador como absoluta prioridade,

deixa de integrar o universo de incidência da reserva do possível, já que a sua

possibilidade é, preambular e obrigatoriamente, fi xada pela Constituição ou

pela lei.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

440

9. Se é certo que ao Judiciário recusa-se a possibilidade de substituir-se à

Administração Pública, o que contaminaria ou derrubaria a separação mínima

das funções do Estado moderno, também não é menos correto que, na nossa

ordem jurídica, compete ao juiz interpretar e aplicar a delimitação constitucional e

legal dos poderes e deveres do Administrador, exigindo, de um lado, cumprimento

integral e tempestivo dos deveres vinculados e, quanto à esfera da chamada

competência discricionária, respeito ao due process e às garantias formais dos atos e

procedimentos que pratica.

10. Recurso Especial não provido. (Grifei) (REsp n. 440.502-SP, Rel. Ministro

Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 15.12.2009, DJe 24.9.2010)

Feitas essas considerações, analiso se o direito objeto do litígio está incluído

no rol daqueles cuja observância é imprescindível para a existência digna.

Antes, mais uma consideração. O mínimo existencial não se resume ao

mínimo vital, ou seja, o mínimo para viver. Não deixar alguém morrer de fome

é, certamente, o primeiro passo, mas não é o sufi ciente para fazê-lo viver com

dignidade.

O conteúdo daquilo que seja o mínimo existencial abrange também as

condições socioculturais, que, para além da questão da mera sobrevivência,

asseguram ao indivíduo um mínimo de civilidade e convivência em um meio

ambiente equilibrado.

DO DIREITO AO SANEAMENTO BÁSICO, SAÚDE E MEIO

AMBIENTE EQUILIBRADO

O Estado possui o dever constitucional de zelar pela saúde, segurança, bem

estar, saneamento básico e demais direitos sociais que assegurem a existência

digna do indivíduo.

Primeiramente, cabe definir o que é saneamento básico. Este é um

conjunto de procedimentos adotados em determinada região com o escopo de

proporcionar uma situação higiênica saudável para os habitantes.

Nota-se, destarte, que o saneamento básico possui intrínseca relação com

os direitos à saúde e ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, porquanto

essencial para que o indivíduo não viva em contato direto com material orgânico

prejudicial à saúde.

O saneamento básico como garantidor do meio ambiente ecologicamente

equilibrado é instrumentalizado mediante infraestrutura de canalização e

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 441

técnicas de tratamento de esgoto - sem deixar que o dejetos orgânicos do esgoto

entrem em contato com lençóis freáticos, rios, reservatórios de água etc.

José Afonso da Silva ensina que o “meio ambiente é, assim, a interação

do conjunto de elementos naturais, artificiais e culturais que propiciem o

desenvolvimento equilibrado da vida em todas as suas formas. A integração

busca assumir uma concepção unitária do ambiente compreensiva dos recursos

naturais e culturais” (Direito ambiental constitucional, p. 2., 2007).

A falta de saneamento básico gera sérios problemas para a saúde da

população. As consequências dessa omissão estatal têm sido mais graves para as

classes sócioeconômicas desfavorecidas.

Em um estudo sobre a inter-relação entre o saneamento básico e o direito

à saúde, explicitou-se o grande risco à saúde pública que a omissão estatal no

tratamento de esgotos pode causar (Damasceno, 2010, “Saneamento Básico,

Dignidade da Pessoa Humana e Realização dos Valores Fundamentais”):

Grande parte das internações hospitalares de crianças e a própria mortalidade

infantil decorre de falta de saneamento básico. O jornal Folha de S. Paulo de 17

de dezembro de 1999 noticiou que 29 pessoas morrem no Brasil a cada dia em

decorrência de falta de água encanada, rede regular de esgoto ou coleta de lixo.

O cálculo fora feito por estudo da FUNASA a pedido do próprio jornal. Na mesma

edição, o jornal informava que a política de combate à mortalidade infantil

esbarrava na falta de saneamento básico. O mesmo jornal, em edição de 16 de

julho de 2000, trazia estudo que indicava que o número de mortes por doenças

decorrentes da falta de saneamento básico era superior aos mortos por AIDS. As

doenças e outros males decorrentes da falta de saneamento básico são diversas e

podem ser divididas em três origens: I - doenças relacionadas com a ausência de

redes de esgotos; II - doenças relacionadas com água contaminada; e III - doenças

e consequências da ausência de tratamento do esgoto sanitário (...)

O direito à saúde é direito fundamental, estendendo-se ao conceito de

bem-estar físico, mental, social, integração ao meio ambiente e à sociedade - bem

como à capacidade de exercício de direitos individuais. A falta de saneamento

básico pode obstar o gozo do direito à saúde, estando até mesmo relacionado

a casos de mortalidade infantil. O saneamento básico, portanto, é pressuposto

para o pleno gozo dos direitos à saúde, à vida e à própria dignidade da pessoa

humana - fundamento da República, conforme preceituado no art. 1º, III da

Carta Maior.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

442

Em situação parecida, esta Turma já se manifestou sobre a legitimidade do

instituto da ação civil pública contra a ingerência estatal na seara do saneamento

básico:

Processual Civil. Ação civil pública. Implantação de rede de coleta de esgoto,

ao objetivo de proporcionar melhores condições de saúde à população e de

preservação do meio ambiente. Plena confi guração de interesse difuso tutelável

pelo Ministério Público. Legitimidade ativa do parquet reconhecida. Precedentes

do Superior Tribunal de Justiça. Violação de dispositivos constitucionais. Análise

pelo recurso especial. Inadequação da via processual.

1. Nas razões do recurso especial, alega a ora agravante, além de dissídio

jurisprudencial, a existência de violação do disposto nos arts. 127 e 129, inc. II,

da Constituição Federal, bem como no art. 25, inc. IV, a, da Lei n. 8.625/1993 (Lei

Orgânica Nacional do Ministério Público).

2. É de se notar, entretanto, que o acórdão recorrido se encontra em perfeita

harmonia com a compreensão formada pelo Superior Tribunal de Justiça, no

sentido de que incumbe ao Ministério Público a defesa dos interesses difusos

e coletivos e de outras funções compatíveis com a sua natureza (Precedentes:

REsp n. 1.192.281-SP, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, Segunda Turma, DJe

10.11.2010; e REsp n. 397.840-SP, Rel. Ministro Francisco Falcão, Primeira Turma, DJ

13.3.2006).

3. É o que patentemente ocorre no caso concreto, em que se verifica a

atuação ministerial em defesa da implantação da rede de coleta de esgoto

de forma adequada. Nota-se, à evidência, que a postulação trazida pelo

Ministério Público perante a instância de origem não interessa apenas a

um conjunto de pessoas identificadas, mas a um universo indeterminado

de possíveis consumidores, bem como a toda a sociedade, na medida em

que subjacente a adoção de providências voltadas ao saneamento básico,

a viabilizar condições de saúde à população, evitando contaminação e

proliferação de doenças, além de preservar, com bem ponderou o Tribunal de

origem, o meio ambiente.

4. No que se prende à indigitada ofensa aos arts. 127 e 129, II, da Constituição

Federal, há de ser frisado que o Superior Tribunal de Justiça não é competente

para analisar, em sede de recurso especial, eventual violação de dispositivos

constitucionais, sob pena de usurpação da competência do Supremo Tribunal

Federal.

5. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 139.216-

SP, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, julgado em 7.11.2013, DJe

25.11.2013)

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 443

DA SEPARAÇÃO DE PODERES E DA GARANTIA DA

EFETIVIDADE DO MÍNIMO EXISTENCIAL

A força normativa da Constituição impede que o legislador local aja em

desacordo com as normas constitucionais, ainda que se trate de normas de

efi cácia limitada. Cabe ao Poder Executivo a decisão acerca da oportunidade

da implementação das políticas públicas, mas deve ser respeitada a garantia dos

direitos referentes ao “mínimo existencial”.

Embora desejável, a previsão orçamentária para implementação de políticas

públicas - comumente denominada como “reserva do possível” - não exonera o

Poder Público de assegurar o mínimo existencial dos administrados.

Não se fala em discricionariedade do gestor público quando a lesão ofende

direitos inerentes à existência do indivíduo. No caso, a violação da norma

infraconstitucional afeta os direitos à saúde, ao saneamento básico e a viver em

ambiente sadio e ecologicamente equilibrado - corolário dos arts. 6º, 23, IX, e

225 da Constituição Federal.

Conquanto a implementação de políticas públicas seja atribuição

típica e privativa do Poder Executivo, o Judiciário, com base na garantia do

“mínimo existencial”, garante a efi cácia e a integridade de direitos individuais

e/ou coletivos, como bem estabeleceu a Suprema Corte, na Arguição de

Descumprimento de Preceito Fundamental n. 45:

“(...) o encargo reside, primariamente, nos Poderes Legislativo e Executivo. Tal

incumbência, no entanto, embora em bases excepcionais, poderá atribuir-se ao

Poder Judiciário, se e quando os órgãos estatais competentes, por descumprirem

os encargos político-jurídicos que sobre eles incidem, vierem a comprometer,

com tal comportamento, a eficácia e a integridade de direitos individuais e/

ou coletivos impregnados de estatura constitucional, ainda que derivados de

cláusulas revestidas de conteúdo programático.

Cabe assinalar, presente esse contexto - consoante já proclamou esta Suprema

Corte - que o caráter programático das regras inscritas no texto da Carta Política

“não pode converter-se em promessa constitucional inconsequente, sob pena de

o Poder Público, fraudando justas expectativas nele depositadas pela coletividade,

substituir, de maneira ilegítima, o cumprimento de seu impostergável dever, por

um gesto irresponsável de infidelidade governamental ao que determina a

própria Lei Fundamental do Estado” (RTJ 175/1.212-1.213, Rel. Min. Celso de Mello).

A supremacia da tutela do mínimo existencial é questão pacífica no

Superior Tribunal de Justiça, não podendo, portanto, ser arbitrariamente obstada

pela simples alegação de não previsão orçamentária:

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

444

Administrativo. Controle judicial de políticas públicas. Possibilidade em

casos excepcionais - direito à saúde. Fornecimento de medicamentos. Manifesta

necessidade. Obrigação solidária de todos os entes do poder público. Não

oponibilidade da reserva do possível ao mínimo existencial. Não há ofensa à

Súmula n. 126-STJ.

1. Não podem os direitos sociais ficar condicionados à boa vontade do

Administrador, sendo de suma importância que o Judiciário atue como órgão

controlador da atividade administrativa. Seria uma distorção pensar que o

princípio da separação dos poderes, originalmente concebido com o escopo de

garantia dos direitos fundamentais, pudesse ser utilizado justamente como óbice

à realização dos direitos sociais, igualmente importantes.

2. Tratando-se de direito essencial, incluso no conceito de mínimo existencial,

inexistirá empecilho jurídico para que o Judiciário estabeleça a inclusão de

determinada política pública nos planos orçamentários do ente político, mormente

quando não houver comprovação objetiva da incapacidade econômico-fi nanceira

da pessoa estatal.

3. In casu, não há impedimento jurídico para que a ação, que visa a assegurar

o fornecimento de medicamentos, seja dirigida contra o Município, tendo em

vista a consolidada jurisprudência do STJ: “o funcionamento do Sistema Único

de Saúde (SUS) é de responsabilidade solidária da União, Estados-membros e

Municípios, de modo que qualquer dessas entidades têm legitimidade ad causam

para fi gurar no pólo passivo de demanda que objetiva a garantia do acesso à

medicação para pessoas desprovidas de recursos fi nanceiros” (REsp n. 771.537-RJ,

Rel. Min. Eliana Calmon, Segunda Turma, DJ 3.10.2005).

4. Apesar de o acórdão ter fundamento constitucional, o recorrido interpôs

corretamente o Recurso Extraordinário para impugnar tal matéria. Portanto, não

há falar em incidência da Súmula n. 126-STF.

5. Agravo Regimental não provido. (AgRg no REsp n. 1.107.511-RS, Rel. Ministro

Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 21.11.2013, DJe 6.12.2013)

Administrativo. Direito à saúde. Direito subjetivo. Prioridade. Controle judicial

de políticas públicas. Escassez de recursos. Decisão política. Reserva do possível.

Mínimo existencial.

1. A vida, saúde e integridade físico-psíquica das pessoas é valor ético-jurídico

supremo no ordenamento brasileiro, que sobressai em relação a todos os outros,

tanto na ordem econômica, como na política e social.

2. O direito à saúde, expressamente previsto na Constituição Federal de 1988

e em legislação especial, é garantia subjetiva do cidadão, exigível de imediato,

em oposição a omissões do Poder Público. O legislador ordinário, ao disciplinar a

matéria, impôs obrigações positivas ao Estado, de maneira que está compelido a

cumprir o dever legal.

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 445

3. A falta de vagas em Unidades de Tratamento Intensivo - UTIs no único hospital

local viola o direito à saúde e afeta o mínimo existencial de toda a população local,

tratando-se, pois, de direito difuso a ser protegido.

4. Em regra geral, descabe ao Judiciário imiscuir-se na formulação ou execução

de programas sociais ou econômicos. Entretanto, como tudo no Estado de Direito,

as políticas públicas se submetem a controle de constitucionalidade e legalidade,

mormente quando o que se tem não é exatamente o exercício de uma política

pública qualquer, mas a sua completa ausência ou cumprimento meramente

perfunctório ou insufi ciente.

5. A reserva do possível não configura carta de alforria para o administrador

incompetente, relapso ou insensível à degradação da dignidade da pessoa humana,

já que é impensável que possa legitimar ou justifi car a omissão estatal capaz de

matar o cidadão de fome ou por negação de apoio médico-hospitalar. A escusa

da “limitação de recursos orçamentários” frequentemente não passa de biombo

para esconder a opção do administrador pelas suas prioridades particulares em vez

daquelas estatuídas na Constituição e nas leis, sobrepondo o interesse pessoal às

necessidades mais urgentes da coletividade. O absurdo e a aberração orçamentários,

por ultrapassarem e vilipendiarem os limites do razoável, as fronteiras do bom-senso

e até políticas públicas legisladas, são plenamente sindicáveis pelo Judiciário, não

compondo, em absoluto, a esfera da discricionariedade do Administrador, nem

indicando rompimento do princípio da separação dos Poderes.

6. “A realização dos Direitos Fundamentais não é opção do governante, não

é resultado de um juízo discricionário nem pode ser encarada como tema que

depende unicamente da vontade política.

Aqueles direitos que estão intimamente ligados à dignidade humana não

podem ser limitados em razão da escassez quando esta é fruto das escolhas do

administrador” (REsp n. 1.185.474-SC, Rel. Ministro Humberto Martins, Segunda

Turma, DJe 29.4.2010).

7. Recurso Especial provido. (REsp n. 1.068.731-RS, Rel. Ministro Herman

Benjamin, Segunda Turma, julgado em 17.2.2011, DJe 8.3.2012)

Utilizando-se da técnica hermenêutica da ponderação de valores, nota-

se que, no caso em comento, a tutela do mínimo existencial prevalece sobre a

reserva do possível. Só não prevaleceria, ressalta-se, no caso de o ente público

provar a absoluta inexequibilidade do direito social pleiteado por insufi ciência

de caixa - o que não se verifi ca nos autos.

Ante o exposto, dou provimento ao recurso especial para condenar o

município a elaborar o projeto técnico de encanamento de esgotos no prazo de

60 dias, incluindo, por conseguinte, os valores da realização do projeto na lei

orçamentária do exercício fi nanceiro subsequente.

É como penso. É como voto.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

446

COMENTÁRIO DOUTRINÁRIO

Leonardo Castro Maia1

1. BREVE DESCRIÇÃO DOS FATOS E DAS QUESTÕES

JURÍDICAS ABORDADAS NO ACÓRDÃO

O Acórdão em estudo examinou e decidiu o Recurso Especial n. 1.366.331

– RS interposto pelo Ministério Público gaúcho contra julgado do Tribunal

de Justiça que negou provimento às apelações interpostas contra sentença de

procedência parcial dos pedidos formulados em ação civil pública voltada à

defesa da saúde, do meio ambiente e do direito ao saneamento básico.

A sentença sustentara não caber ao Judiciário a imposição ao Município

de São Jerônimo da obrigação de construir uma rede de esgoto cloacal, pena de

violação dos limites impostos pela legislação fi nanceira e orçamentária, embora

haja condenado o Município à realização de obras de canalização do esgoto em

determinados pontos da cidade, a fi m de que este não mais escoasse a céu aberto.

Lado outro, o Poder Executivo já havia manifestado disposição em

regularizar o sistema de esgotos da cidade, iniciativa que não fora adiante, por

haver sido rejeitada pela Câmara Municipal.

Ao Ministério Público estadual coube, assim, interpor o recurso especial

perante o STJ, ante a violação ao art. 45 da Lei 11.445/2007, que determina a

conexão de toda edifi cação urbana às redes públicas de abastecimento de água e

de esgotamento sanitário.

2. SOLUÇÃO APRESENTADA PELO SUPERIOR TRIBUNAL

DE JUSTIÇA

No Acórdão do STJ, decidido à unanimidade por sua Segunda Turma,

julgou-se violado o art. 45 da Lei 11.445/2007, dando-se provimento ao

Recurso Especial, para condenar o Município a elaborar o projeto técnico de

1 Especialista em Direito Ambiental e Urbanístico pela Universidade Anhanguera (UNIDERP). Membro

do Conselho de Política Estadual do Meio Ambiente (Copam) de Minas Gerais. Membro da Associação

Brasileira dos Membros Ministério Público de Meio Ambiente (ABRAMPA). Secretário-Geral da Rede

Latino-Americana do Ministério Público Ambiental. Coordenador das Promotorias de Justiça de Meio

Ambiente da Bacia Hidrográfi ca do Rio Doce. Promotor de Justiça em Minas Gerais.

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 447

encanamento de esgotos, no prazo de 60 dias, e a incluir os valores da realização

do projeto na lei orçamentária do exercício fi nanceiro subsequente.

A propósito, o voto condutor do Ministro Relator Humberto Martins

examina detidamente todas as nuanças e vieses do caso, em especial a aplicação

das teorias da discricionariedade administrativa, da separação dos poderes,

da reserva do possível e da supremacia do mínimo existencial, considerados

os direitos ao saneamento básico, à saúde e ao meio ambiente equilibrado,

deslindando, passo a passo, todos os aparentes óbices à prolação de uma decisão

judicial em favor dos citados direitos fundamentais.

3. ANÁLISE TEÓRICA DOGMÁTICA DOS FUNDAMENTOS

DO ACÓRDÃO

Há sempre muito a ser dito sobre as instigantes questões suscitadas no

Acórdão em comento, mas, é bem de ver, muito pouco a acrescentar sobre elas a

partir da exposição dos fatos e do direito contida no voto do Eminente Ministro

Relator, que estabelece um caminho tranquilo e lógico até a decisão adotada

pelo Tribunal.

De fato, o julgado da Segunda Turma do STJ é, tanto quanto pode ser uma

decisão judicial, uma síntese perfeita e acabada acerca das questões que enfrenta.

Com apreciável clareza de raciocínio inicia pela descrição dos fatos, para

então abordar as questões jurídicas envolvidas de forma direta, pacifi cando cada

uma delas, com base em elegante argumentação e na melhor jurisprudência do

próprio STJ.

Prontamente, o julgado identifi ca a violação ao art. 45 da Lei 11.445/2007,

que estabelece que “toda edifi cação permanente urbana será conectada às redes

públicas de abastecimento de água e de esgotamento sanitário”, para então

orientar a interpretação no sentido de se vivifi car o dispositivo, esclarecendo aos

envolvidos e, por que não dizer, a todos quanto recorrem ao precioso manancial

de jurisprudência do STJ que: a ligação das edifi cações à rede não é “mera

faculdade da administração pública”.

Ou seja: é dever do município implementar o sistema completo de

abastecimento de água e de captação de esgoto sanitário, somente incidindo o

permissivo do §1º do próprio art. 45, nas situações nele compreendidas, quando

evidenciada autêntica insufi ciência de receita por parte da Administração, algo

não demonstrado nos autos.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

448

Nesta linha de raciocínio, o Relator pondera que o Poder Executivo local

já havia apresentado proposta ao Legislativo para que se fi rmasse convênio para,

entre outras medidas, a implementação do sistema de saneamento básico, razão

pela qual não o socorre agora o argumento da falta de previsão orçamentária.

Além disto, observa que a ação civil pública manejada pelo Ministério

Público limitava-se a exigir a elaboração do projeto técnico para solução

do problema, assegurando-se ao gestor, desta forma, a oportunidade de

programar, em momento posterior, as despesas para sua execução, o que confere

razoabilidade e exequibilidade ao pedido formulado pelo Parquet.

Sem a pretensão de expor novidades, senão com o objetivo de destacar o

acerto da decisão em estudo, importante divisar o ambiente normativo em que o

pedido está inserido, vejamos:

a) A CF/1988 incluiu a saúde como direito fundamental do cidadão (CF,

art. 6.º), estipulando ser dever do Estado garanti-lo a cada um dos brasileiros

(CF, art. 196).

b) Pari passu, a Lei Maior alçou o direito ao meio ambiente ecologicamente

equilibrado à categoria de direito fundamental, impondo ao Poder Público o

dever de defendê-lo e preservá-lo, e com efetividade (§1º do art. 225), para a

presente e as futuras gerações (CF, art. 225).

c) A mesma Constituição de 1988 estabelece que é competência comum

da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios cuidar da saúde,

prover a efetiva proteção ao meio ambiente e combater a poluição em qualquer

de suas formas (CF, art. 23, incisos II e VI) e, no mesmo sentido, o inciso IX

do art. 23 lhes atribui a competência para promover programas de construção

de moradias, melhorias das condições habitacionais e de saneamento básico,

compreendido, nos termos do art. 3º, I, alíneas “a”, “b”, “c” e “d”, da Lei Federal

11.445/2007, como um conjunto de serviços, infraestruturas e instalações

operacionais de abastecimento de água potável, esgotamento sanitário, limpeza

urbana e manejo de resíduos sólidos, drenagem e manejo das águas pluviais

urbanas.

É neste contexto que o Relator ingressa seguramente no exame da teoria

da Reserva do Possível, nunca a desconsiderá-la, senão reconhecendo-a e

conferindo-lhe a nitidez dos contornos e do matizado que, ao fi nal, defi nirão o

alcance e aplicação ao caso em exame.

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 449

Com efeito, por meio de sua análise, o Ministro Relator acaba por

demonstrar que é ela, justamente, a teoria a militar como um dos fundamentos

jurídicos para que o Município não seja desonerado de suas obrigações para

com a implementação das políticas públicas de saneamento básico, eis que

assecuratórias dos direitos fundamentais.

De fato, como anota o Relator, se a citada teoria parte da premissa de

que há permanentemente restrições orçamentárias resultantes de um perene

processo de escolhas por parte do gestor público, certo é que não havendo

recursos sufi cientes para prover todas as necessidades da população, tais escolhas

devem sempre favorecer a satisfação das que são básicas, a exemplo das que

dizem respeito aos interesses fundamentais, núcleo de direitos que, nas palavras

do Eminente Relator, “não pode, em hipótese alguma, ser preterido, pois

constitui o objetivo e fundamento primeiro do Estado Democrático de Direito”,

não havendo sobre a implementação (ou não) de tais direitos um autêntico

juízo discricionário pena de “destrato da vida humana” e “ofensa ao princípio da

dignidade da pessoa humana”.

O julgado mostra-se, assim, totalmente afi nado com a ideia de que a

discricionariedade, entendida como juízo de conveniência e oportunidade,

somente existe quando, em um caso específi co, o administrador possa decidir

entre duas ou mais medidas convenientes, oportunas, razoáveis, justas e,

obviamente, lícitas.

Contrario sensu, se não há, à luz da legislação vigente, espaço para escolha

de atuação do administrador, como no caso examinado pelo Tribunal, senão

a presença de dispositivos legais impondo uma conduta específica (aqui:

socioambientalmente adequada), não há que se falar em discussão sobre mérito

administrativo ou discricionariedade administrativa, mas sobre exame da

legalidade.

Neste sentido, vale lembrar a observação de Erika Bechara que, ao tratar

da poluição hídrica causada pelo lançamento de esgotos in natura, notou que

o artifício da discricionariedade só seria admissível se houvesse duas ou mais

maneiras de se impedir a poluição e o Poder Público optasse por uma delas2.

É que no caso da Administração Pública, o poder de agir se converte

no dever de agir, para que ela o exerça em benefício da coletividade, não se

2 BECHARA, Érika. Tratamento do esgoto doméstico pelo Poder Público: discricionariedade ou vinculação? Anais

do 7º Congresso Internacional de Direito Ambiental, volume I, São Paulo.

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

450

admitindo a omissão da autoridade diante de situações que exijam a sua atuação,

vale dizer, não há a possibilidade da autoridade administrativa renunciar ao

cumprimento e exercício das competências que lhe foram outorgadas por lei.

Não por acaso, ações civis públicas propostas em razão de omissão ou de

danos causados relacionados com atividades do Estado, especialmente as de

defesa do meio ambiente e da saúde, têm encontrado guarida no âmbito de

nossos Tribunais, com destaque para o STJ, por ser o Tribunal da Cidadania:

“PROCESSO CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANOS AO MEIO AMBIENTE

CAUSADO PELO ESTADO. SE O ESTADO EDIFICA OBRA PÚBLICA – NO CASO, UM

PRESÍDIO – SEM DOTÁ-LA DE UM SISTEMA DE ESGOTO SANITÁRIO ADEQUADO,

CAUSANDO PREJUÍZOS AO MEIO AMBIENTE, A AÇÃO CIVIL PÚBLICA É, SIM, A VIA

PRÓPRIA PARA OBRIGÁ-LO ÀS CONSTRUÇÕES NECESSÁRIAS À ELIMINAÇÃO DOS

DANOS; SUJEITO TAMBEM ÀS LEIS, O ESTADO TEM, NESSE ÂMBITO, AS MESMAS

RESPONSABILIDADES DOS PARTICULARES. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E

PROVIDO”. (STJ – RESP 88776 - Rel. Min. Ari Pargendler. J. 19/05/1997)

“ADMINISTRATIVO E PROCESSO CIVIL – AÇÃO CIVIL PÚBLICA – ATO

ADMINISTRATIVO DISCRICIONÁRIO: NOVA VISÃO.

1. Na atualidade, o império da lei e o seu controle, a cargo do Judiciário,

autoriza que se examinem, inclusive, as razões de conveniência e oportunidade

do administrador.

2. Legitimidade do Ministério Público para exigir do Município a execução

de política específi ca, a qual se tornou obrigatória por meio de resolução do

Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente.

3. Tutela específi ca para que seja incluída verba no próximo orçamento, a fi m

de atender a propostas políticas certas e determinadas.

4. Recurso especial provido.” (RE n. 493.811 – SP 2002/0169619-5. Relatora:

Ministra Eliana Calmon. Recorrente: Ministério Público do Estado de São Paulo.

Recorrido: Município de Santos)

A propósito da teoria da reserva do possível e do mínimo existencial,

importa ainda trazer a lume as ponderações do Ministro Celso de Mello, do

STF, pela acuidade com que foram expostas nos autos da ADPF 45 MC/DF,

vejamos:

“(…) a realização dos direitos econômicos, sociais e culturais – além de

caracterizar-se pela gradualidade de seu processo de concretização – depende,

em grande medida, de um inescapável vínculo financeiro subordinado às

possibilidades orçamentárias do Estado, de tal modo que, comprovada,

Mínimo Existencial e Meio Ambiente

RSTJ, a. 27, (239): 425-452, julho/setembro 2015 451

objetivamente, a incapacidade econômico-fi nanceira da pessoa estatal, desta

não se poderá razoavelmente exigir, considerada a limitação material referida, a

imediata efetivação do comando fundado no texto da Carta Política.

Não se mostrará lícito, no entanto, ao Poder Público, em tal hipótese – mediante

indevida manipulação de sua atividade fi nanceira e/ou político-administrativa –

criar obstáculo artifi cial que revele o ilegítimo, arbitrário e censurável propósito

de fraudar, de frustrar e de inviabilizar o estabelecimento e a preservação, em

favor da pessoa e dos cidadãos, de condições materiais mínimas de existência.

Cumpre advertir, desse modo, que a cláusula da ‘reserva do possível’ -

ressalvada a ocorrência de justo motivo objetivamente aferível – não pode ser

invocada, pelo Estado, com a fi nalidade de exonerar-se do cumprimento de suas

obrigações constitucionais, notadamente quando, dessa conduta governamental

negativa, puder resultar nulificação ou, até mesmo, aniquilação de direitos

constitucionais impregnados de um sentido de essencial fundamentalidade.

(...)

Parece-nos cada vez mais necessária a revisão do vetusto dogma da Separação

dos Poderes em relação ao controle dos gastos públicos e da prestação dos

serviços básicos no Estado Social, visto que os Poderes Legislativo e Executivo

no Brasil se mostraram incapazes de garantir um cumprimento racional dos

respectivos preceitos constitucionais.

(...)

A negação de qualquer tipo de obrigação a ser cumprida na base dos Direitos

Fundamentais Sociais tem como consequência a renúncia de reconhecê-los

como verdadeiros direitos. (...) Em geral, está crescendo o grupo daqueles que

consideram os princípios constitucionais e as normas sobre direitos sociais como

fonte de direitos e obrigações e admitem a intervenção do Judiciário em caso de

omissões inconstitucionais.” (ADPF 45 MC/DF, em 29.04.2004).

4. CONCLUSÕES.

Como se vê, o Acórdão proferido nos autos do Recurso Especial n.

1.366.331 – RS é mais um importante marco na jurisprudência do STJ a

assegurar o cumprimento da legislação federal e a observância aos direitos

fundamentais, entre eles os direitos à vida, a saúde, à dignidade e ao meio

ambiente, estabelecendo, precisamente:

a) A fórmula hermenêutica capaz de conferir efetividade ao direito em

discussão, qual seja, a que conduz à aplicação do art. 45 da Lei 11.445/2007,

através da prévia elaboração de um projeto técnico de encanamento de esgotos

na cidade,

REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA

452

b) A inexistência de discricionariedade administrativa ou de ofensa à

separação dos poderes a justifi car a contínua poluição, com o prejuízo da saúde

das pessoas, mediante o lançamento de esgoto não tratado no meio ambiente.

c) A compatibilização das teorias da reserva do possível e do mínimo

existencial, com a prevalência deste último sobre aquela e o reconhecimento

de que a implementação da política pública de saneamento básico diz respeito

à satisfação de direitos fundamentais assegurados nas leis e na Constituição

Federal.

d) Que no processo, a mera alegação de ausência de previsão orçamentária

não tem o condão de demonstrar a inexequibilidade dos p edidos da ação civil

pública, nem de afastar a obrigação de garantir o mínimo existencial.