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Processo Penal Prof. Danilo Pereira Apostila 2. O Direito Processo Penal: conceito; características; direito público; relações com outras disciplinas; história; evolução no Brasil; evolução doutrinária. Conceito Uma vez que seja praticado um fato definido como crime, surge ao Estado o direito de punir. Este direito apenas poderá ser exercido através de um processo. Pode-se definir processo como o conjunto de atos cronologicamente concatenados (procedimentos), submetido a princípios e regras jurídicas destinadas a compor as lides de caráter penal. Sua finalidade é, assim, a aplicação do direito penal objetivo. O Direito Processual Penal, porém, não se cinge a esse objeto. Para que o Estado possa propor a ação penal, deduzindo a pretensão punitiva no processo, são indispensáveis atividades investigatórias consistentes em atos administrativos da Polícia Judiciária, o que é feito no inquérito policial (persecução). Além disso, as pessoas que praticam os atos de investigação e os atos do processo, devem estar devidamente legitimadas para realizar as atividades que se concretizem no procedimento, e devem ter reguladas as relações que entre si mantêm, com a determinação dos direitos, deveres, ônus e obrigações que daí derivam. São, portanto, necessárias as normas que disciplinem a criação, estrutura, sistematização, localização, nomenclatura e atribuição desses diversos órgãos diretos e auxiliares do aparelho judiciário destinado à administração da justiça penal, constituindo-se o que se denomina Organização Judiciária. Dessa 1

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

Apostila 2. O Direito Processo Penal: conceito; características;

direito público; relações com outras disciplinas; história; evolução

no Brasil; evolução doutrinária.

Conceito

Uma vez que seja praticado um fato definido como crime, surge ao Estado

o direito de punir. Este direito apenas poderá ser exercido através de um

processo. Pode-se definir processo como o conjunto de atos

cronologicamente concatenados (procedimentos), submetido a princípios

e regras jurídicas destinadas a compor as lides de caráter penal. Sua

finalidade é, assim, a aplicação do direito penal objetivo. O Direito

Processual Penal, porém, não se cinge a esse objeto. Para que o Estado

possa propor a ação penal, deduzindo a pretensão punitiva no processo,

são indispensáveis atividades investigatórias consistentes em atos

administrativos da Polícia Judiciária, o que é feito no inquérito policial

(persecução). Além disso, as pessoas que praticam os atos de

investigação e os atos do processo, devem estar devidamente legitimadas

para realizar as atividades que se concretizem no procedimento, e devem

ter reguladas as relações que entre si mantêm, com a determinação dos

direitos, deveres, ônus e obrigações que daí derivam. São, portanto,

necessárias as normas que disciplinem a criação, estrutura,

sistematização, localização, nomenclatura e atribuição desses diversos

órgãos diretos e auxiliares do aparelho judiciário destinado à

administração da justiça penal, constituindo-se o que se denomina

Organização Judiciária. Dessa forma, pode-se conceituar o Direito

Processual Penal, no seu aspecto de ordenamento jurídico, como o

conjunto de princípios e normas que regulam a aplicação jurisdicional do

Direito Penal, bem como as atividades persecutórias da Polícia Judiciária,

e a estruturação dos órgãos da função jurisdicional e respectivos

auxiliares. Como todo e qualquer Direito, o Direito Processual Penal

também pode ser encarado como Ciência Jurídica, que tem por objeto o

estudo das normas processuais penais, a sua construção dogmática, isto

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é, a formação dos institutos jurídicos dessa disciplina, e a crítica do

direito vigente.

Características do Direito Processual Penal

1. Autônoma: é uma ciência autônoma, pois possui objeto e princípios

que lhe são próprios.

2. Finalidade: a realização da pretensão punitiva que nasce da prática

de um ilícito penal, ou seja, é a de aplicar o Direito Penal.

3. Instrumentalidade: é o meio (instrumento) para fazer atuar o direito

material penal, tornando efetiva a função deste de prevenção e repressão

das infrações penais.

4. Dogmático: é uma disciplina normativa, de caráter dogmático

(irrefutável) pois, partindo da norma jurídica, investiga os princípios,

organiza os institutos e constrói o sistema.

Direito Público

O Direito Processual Penal é um dos ramos do Direito Público, que se

identifica pelo sujeito das relações por ele reguladas e pelas finalidades

das suas normas. No processo penal, de um lado, um dos sujeitos é o

Estado soberano, titular do interesse coletivo e que se situa numa relação

de subordinação do particular; não atua, portanto, como Estado-súdito,

como em suas relações comuns. De outro, a finalidade das normas

processuais penais é obter a repressão dos delitos, ou seja, o exercício do

jus puniendi, que constitui um dos fins essenciais do Estado. Não se pode

negar, portanto, o caráter publicístico do Direito Processual Penal. Sendo

o processo uma forma de composição do conflito de interesses, conclui-se

que, conceitualmente, é ele uno, ou seja, refere-se às lides civil e penal.

Entretanto, o Direito Processual divide-se em dois grandes ramos: o

Direito Processual Civil e o Direito Processual Penal. Tal divisão é

estabelecida de acordo com o conteúdo do processo, ou seja, aquilo que

nele se contém. Quando se trata de uma pretensão de natureza extra-

penal a regulamentação normativa é de Processo Civil. Porém, se se trata

de uma causa penal, de uma pretensão punitiva ou correlata, a

regulamentação é feita pelo Direito Processual Penal. Assim, embora a

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doutrina predominante se concentre numa concepção unitária do

processo, porque a teoria geral do processo é uma conseqüência

inarredável do estudo sistemático das diversas categorias processuais, o

conteúdo do processo penal, que é a pretensão punitiva, individualiza o

ramo jurídico denominado Direito Processual Penal.

Relações do Direito Processual Penal com outras disciplinas

O Direito Processual Penal, como qualquer outro, deve submeter-se ao

Direito Constitucional em decorrência da supremacia da Constituição na

hierarquia das leis. É na CF que se institui o aparelho judiciário, se regula

o exercício da atividade jurisdicional, se definem as garantias individuais,

se registram casos de imunidade etc. vejamos as relações com cada

disciplina:

Direito Constitucional: na Constituição Federal, se disciplina a

instituição do Poder Judiciário, inclusive na sua atividade jurisdicional

penal (arts. 92 a 126), se regula o Ministério Público como o órgão

destinado a deduzir em Juízo a pretensão punitiva (arts. 127 a 130), se

organizam as polícias (art. 144) etc. No artigo 5°, a Carta Constitucional

prevê as garantias constitucionais, inclusive as relativas ao status

libertatis da pessoa humana, que devem encontrar na lei processual penal

a maneira adequada de se imporem no caso concreto. Referem-se elas: ao

processo penal, com os princípios do juiz natural (incs. XXXVII e LII), do

devido processo legal (inc. LIV), do estado de inocência (inc. LVII), da

ampla defesa e do contraditório (inc. LV), da inadmissibilidade de provas

obtidas por meios ilícitos (inc. LVI), da ação penal privada subsidiária

(inc. LIX), da concessão de habeas corpus em caso de ilegalidade ou

abuso de poder (inc. LXVIII) etc.; às formalidades essenciais relativas à

prisão (incs. XI, LXI, LXII, LXIII, LXIV, LXV, LXVI, LXVII); à instituição do

Júri, com competência mínima para o julgamento dos crimes dolosos

contra a vida (XXXVIII); às regras sobre fiança (incs. XLII, XLIII, XLIV,

LXVI) e liberdade provisória (inc. LXVI); à execução da pena privativa de

liberdade (incs. XLVIII, XLIV, L); à extradição (incs. LI e LII); à

assistência jurídica (inc. LXXIV) etc.

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Direito Penal: sem este, o processo penal não existiria. É pelo processo

que se realiza, se dá existência concreta ao Direito Penal, ou seja, se

decide sobre a procedência e aplicação do jus puniendi (direito penal

subjetivo) do Estado, em conflito com o jus libertatis do acusado.

Matérias comuns, aliás, são disciplinadas tanto no Código Penal como no

Código de Processo Penal, com os relativos à ação penal, ao sursis, ao

livramento condicional, à reabilitação etc.

Além disso, no Código Penal são definidos os crimes, objeto final de

aplicação do processo penal.

Direito Processual Civil: são ramos do mesmo tronco, de tal sorte que

hoje se fala em Teoria Geral do Processo como disciplina para o estudo

dos institutos básicos dos dois ramos. Na verdade, os institutos

processuais só diferem em relação ao conteúdo do processo, seja ele a

pretensão punitiva (processo penal), seja ele a pretensão extra-penal

(processo civil).

Ressalte-se também que há influências recíprocas nas ações e sentenças

penais e civis. É efeito da condenação a obrigação de indenizar o dano

causado pelo crime (art. 92, I, do CP), tornando-se a sentença

condenatória título para a execução civil (arts. 63 do CPP). Também faz

coisa julgada no cível a sentença penal em que se reconhece ter sido o

ato praticado em estado de necessidade, em legítima defesa, em estrito

cumprimento de dever legal ou no exercício regular de direito (art. 65 do

CPP). Por outro lado, deve-se anotar também as questões prejudiciais, em

que se suspende obrigatória ou facultativamente a ação penal até a

decisão do processo civil (arts. 92 a 94 do CPP). Regulam-se também no

Código de Processo Penal matérias que seriam, a rigor, do juízo civil,

como as questões de posse de coisas (art. 120), de perda de bens (art.

122), de seqüestro de imóveis (art. 125), de hipoteca legal (art. 134) etc.

Direito Administrativo: a lei penal é aplicada através do processo por

agentes da Administração Pública (Juiz, Promotor de Justiça, Delegado de

Polícia etc.), sendo inúmeros os pontos de contatos dos dois ramos

jurídicos quando se prevê legislativamente a organização, composição,

competência, disciplina, deveres, ônus etc., da organização judiciária

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(Poder Judiciário e seus auxiliares), do Ministério Público, da Polícia

Judiciária, da Defensoria Pública etc. Além disso, a execução penal tem

uma natureza jurídica híbrida, interpenetrando-se as matérias penais,

processuais e administrativas. Há, inclusive, uma parte da atividade da

execução que se refere especificamente a providências administrativas e

que fica a cargo das autoridades penitenciárias.

Direito Civil: lembrando-se novamente a matéria referente às questões

prejudiciais, cujo objeto é civil (arts. 92 e 93 do CPP). Faz ainda o Código

de Processo Penal referência às restrições estabelecidas na lei civil

quanto à prova do estado das pessoas (art. 155) e aos documentos (arts.

231 a 238). Institui impedimentos decorrentes do Direito de Família,

como o casamento e o parentesco (arts. 252, 253, 254, 255 etc.) e

possibilita a recusa ao testemunho por essas mesmas relações civis (art.

206).

Direito Comercial: as ligações do Processo Penal se encontram

principalmente na Lei de Falências (L. 11.101, de 9.02.2005), que,

prevendo os crimes falimentares, fixa normas pertinentes à fase

preparatória da ação penal, aos prazos, às conseqüências do recebimento

da denúncia, à prisão, à reabilitação etc.

Direito Internacional Público: as relações do Direito Processual Penal

se estabelecem nas matérias relacionadas no Código de Processo Penal e

referentes à ação penal por crimes praticados em território estrangeiro

(art. 88), à bordo de embarcações ou aeronaves (art. 89, 90), à

prevalência de tratados, convenções e regras de direito internacional

sobre a lei processual (art. 1°, I), às relações jurisdicionais com

autoridades estrangeiras (arts. 780 a 782), que se constituem das cartas

rogatórias (arts. 783 a 786) e da homologação de sentenças penais

estrangeiras (arts. 787 a 790) etc.

Ciências auxiliares: para a realização do Direito Penal e, portanto,

servindo como instrumento do Processo Penal, colaboram ciências

extrajurídicas auxiliares. São elas a Medicina Legal, a Psiquiatria

Forense, a Psicologia Judiciária e a Criminalística.

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É com a Medicina Legal, aplicação de conhecimentos médicos para a

realização de leis penais ou civis, que se comprova a materialidade ou

extensão de inúmeras infrações penais (homicídio, lesões corporais,

estupro etc.), incluindo-se nela a matéria de toxicologia (envenenamento,

intoxicação alcoólica e por tóxicos etc.). O Código de Processo Penal

disciplina a ocasião e a forma de realização dos exames de corpo de delito

nessas hipóteses (arts. 158 e ss).

A Psiquiatria Forense (ou Judiciária) tem por objetivo o estudo dos

distúrbios mentais em face dos problemas judiciários e, no processo

penal, tem importância decisiva na verificação das hipóteses de

inimputabilidade, apurada em exame realizado no incidente de

insanidade mental do acusado (arts. 149 a 154 do CPP). É importante

também essa ciência na execução da pena e da medida de segurança

quando da realização dos exames destinados à classificação dos

condenados e internados e de verificação de cessação de periculosidade.

Também a Psicologia Judiciária se ocupa dos exames de personalidade,

inclusive o criminológico, para a classificação dos criminosos com vistas à

individualização da execução. Entretanto, cuida ela especialmente do

estudo dos participantes do processo judicial (réu, testemunha, juiz,

advogado), fornecendo elementos úteis sobre a colaboração de cada um

na atividade processual, em especial quanto ao valor probatório dos

testemunhos, interrogatórios etc.

A Criminalística, também chamada Polícia Científica, é a técnica que

resulta da aplicação de várias ciências à investigação criminal,

colaborando na descoberta dos crimes, na identificação de seus autores,

na apuração de circunstâncias do fato etc. Seu objetivo é o estudo de

provas periciais referentes a pegadas, manchas, impressões digitais,

projéteis, locais de crime etc. A Datiloscopia pode levar à identificação de

pessoas com a comparação das impressões digitais.

História do Direito Processual Penal

O processo penal da Grécia

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Considerando a distinção então corrente entre crimes privados e crimes

públicos, na Grécia a repressão dos primeiros, que se caracterizavam

pela pouca relevância e por atingirem bens essencialmente particulares,

ficava à mercê do ofendido. Os demais, mais graves por atingirem

interesses sociais, eram apurados com a participação direta dos cidadãos

e o procedimento primava pela oralidade e publicidade dos debates.

Quanto aos delitos que atentavam contra o próprio Estado, após a

denúncia perante a Assembléia ou Senado, era indicado o acusador e

o Arconte (título dos membros que compunham a assembléia dos nobres

em Atenas) designava e compunha o tribunal popular para o julgamento.

Perante este se manisfestava o acusador, apresentando suas

testemunhas, e em seguida a defesa. Os juízes votavam sem deliberar e a

decisão era tomada por maioria de votos, sendo absolvido o acusado se

houvesse empate. Para os crimes políticos de maior gravidade, após a

manifestação do Conselho dos Quinhentos (Assembléia Legislativa),

reunia-se a Assembléia do Povo, não se concedendo ao acusado qualquer

garantia. Existiam outros tribunais como o Areópago, destinados a julgar

os homicídios premeditados, os incêndios etc., o Tribunal dos Éfetas,

composto de 51 membros, para o julgamento dos homicídios não

voluntários e não premeditados, e o Tribunal dos Eliastas (Heliea), com

jurisdição comum e que chegou a ser composto por 6.000 pessoas,

dividido em seções de 500 cada, em que cada uma podia julgar

isoladamente ou em conjunto com outras.

Direito romano

Em Roma, a separação entre delicta publica (delitos públicos - crimes

contra a segurança da cidade, parricidium etc.) e delicta privata (delitos

privados - infrações menos graves) determinava também a distinção dos

órgãos competentes para o julgamento. Quanto aos crimes privados, o

Estado era o árbitro para solucionar o litígio entre as partes, decidindo de

acordo com as provas por elas apresentadas. Com o passar dos anos,

porém, o processo penal privado foi abandonado quase totalmente. No

processo penal público, ao contrário, ocorreu a evolução. Da ausência de

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qualquer limitação ao poder de julgar existente no começo da monarquia,

em que nenhuma garantia era dada ao acusado (cognitio), passou-se ao

provocatio ad populum, em que o condenado podia recorrer da

condenação para o povo reunido em comício. Já na República surgiu a

justiça centurial (infantarias romanas), em que as centurias, integradas

por patrícios e plebeus, administraram a justiça penal em um

procedimento oral e público e, excepcionalmente, os julgamentos pelo

Senado, que a podia delegar aos questores. Já no último século da

República surgiu nova forma de procedimento: a accusatio, ficando a

administração da justiça a cargo de um tribunal popular, composto

inicialmente por senadores e, depois, por cidadãos. No império, a

accusatio foi, pouco a pouco, cedendo lugar a outra forma de

procedimento: a cognitio extra ordinem (conhecimento fora de ordem,

afastamento das regras impostas), processo penal extraordinário, a

cargo, no início, do Senado, depois ao imperador e, finalmente, outorgado

ao praefectus urbis (prefeito urbano, o prefeito da cidade de Roma). Os

poderes do Magistrado, foram invadindo a esfera de atribuições já

reservadas ao acusador privado a tal extremo que, em determinada

época, se reunia no mesmo órgão do Estado (magistrado) as funções que

hoje competem ao Ministério Público e ao Juiz. Fez-se introduzir, então, a

tortura do réu e mesmo de testemunhas que depusessem falsamente e a

prisão preventiva. Pode-se apontar tal procedimento como a base

primordial do chamado sistema inquisitivo.

Direito germânico

Entre os povos germânicos, os crimes privados eram reprimidos pela

vingança privada e também, mais tarde, pela composição. Existia também

a Assembléia, que atuava somente por iniciativa da vítima ou de seus

familiares, presidida pelo rei, príncipe, duque ou conde. O procedimento

era acusatório, regido pelos princípios da oralidade, imediatidade,

concentração e publicidade. A confissão tinha um valor extraordinário,

vigorando, na questão das provas as ordálias ou juízos de Deus (prova

de água fervente, do ferro em brasa, do fogo etc.), bem como os duelos

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judiciários, com os quais se decidiam os litígios, pessoalmente ou através

de lutadores profissionais. Era absolvido o acusado que suportasse as

ordálias ou vencesse o duelo.

Direito canônico

Entre as épocas do direito romano e germânico e o direito moderno

estendeu-se o Direito Canônico ou o Direito Penal da Igreja, com a

influência decisiva do cristianismo na legislação penal. Embora

contribuísse para essa humanização, politicamente a Igreja lutava para

obter o predomínio do Papado sobre o poder temporal a fim de proteger

os interesses religiosos de dominação. Assim, até o século XII, o processo

somente podia ser iniciado com a acusação, apresentada aos Bispos,

Arcebispos ou oficiais encarregados de exercerem a função jurisdicional.

No século seguinte, entretanto, estabeleceu-se o procedimento

inquisitivo, com denúncias anônimas e foram abolidas a acusação e a

publicidade do processo. Tentava-se abolir as ordálias e os duelos

judiciários mas se estabelecia a tortura, a ausência de garantia para os

acusados, o segredo. Instalou-se o temido Santo Ofício (Tribunal de

Inquisição) para reprimir a heresia, o sortilégio, a bruxaria etc. O

sistema inquisitivo estabelecido pelos canonistas pouco a pouco dominou

as legislações laicas da Europa Continental, convertendo-se em

verdadeiro instrumento de dominação política.

O processo penal moderno

As sementes do processo penal moderno encontram-se na segunda

metade do século XVIII, com o chamado período humanitário do

Direito Penal. O objetivo é a humanização da Justiça, procurando-se

conciliar a legislação penal com as exigências da justiça e os princípios de

humanidade. Montesquieu elogiava a instituição do Ministério Público,

que fazia desaparecer os delatores; Beccaria condena a tortura, os juízos

de Deus, o testemunho secreto, preconiza a admissão em Juízo de todas

as provas, investe contra a prisão preventiva sem prova da existência do

crime e de sua autoria. Voltaire censurava a lei que obrigava o juiz a

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portar-se não como magistrado mas como inimigo do acusado. Assim,

após o Código de Napoleão, de 1808, na França é organizada a

administração da Justiça, mantendo-se a tripartição de tribunais

(Tribunais Correcionais, Tribunais de Polícia e Cours d'assises [tribunal

de recursos]), com ação penal pública exercida pelo Ministério Público.

Instala-se, posteriormente um processo penal em que se estabelece um

sistema misto de inquisitivo (na fase de instrução preparatória) e

acusatório, que teve reflexos em toda a Europa. Já na metade do século

passado surge um movimento no sentido de se extinguir o sistema

inquisitivo da fase instrutória. Hoje em quase todas as legislações

predomina, com maior ou menor intensidade, o sistema misto.

Evolução do processo penal no Brasil

Quando da descoberta, vigente as Ordenações Afonsinas em Portugal,

entretanto não chegaram a ter qualquer aplicação no país pois tudo

estava por fazer e organizar por longos anos.

1603 - entrou em vigor as Ordenações Filipinas, que realmente foi o

primeiro instrumento legal aplicado no Brasil. Previam um processo

criminal iniciado por “clamores”, depois passaram a começar por

“querelas” (delações em juízo por particulares) e por “denúncias”, todas

em o concurso do acusado. Essa legislação refletia ainda o direito

medieval, em que os ricos e poderosos gozavam de privilégios, podendo,

com dinheiro, salvarem-se das sanções penais.

1609 - criou-se o Tribunal de Relações na Bahia que era destinado a

conhecer dos recursos das decisões dos Ouvidores Gerais, que conheciam

das apelações das sentenças proferidas pelos Ouvidores das Capitanias e

dos juízes ordinário.

1709 - criou-se o Tribunal de Relação do Rio de Janeiro, instância

superior a todas então existentes, que foi elevado à categoria de Casa de

Suplicação, constituindo o Superior Tribunal de Justiça.

Na região dominada pelos holandeses instalou-se o direito dos usos,

ordenações e costumes imperiais da Holanda, Zelândia e Frísia Oriental

(cordão de ilhas localizada no norte da Holanda e países baixos),

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complementada por leis promulgadas no país pelo Alto Conselho e pelos

demais poderes da colônia. No processo inexistia distinção entre fase

policial e fase judicial e a acusação contra criminosos partia de

funcionários do Estado ou dos particulares. O Escolteto era ao mesmo

tempo, chefe de polícia e promotor público, mas a acusação não era

apenas pública pois os particulares também podiam pedir aos tribunais a

condenação dos delinqüentes. Buscava-se a confissão dos réus com

insistência, inclusive por meio de fraude e de torturas. A prova

testemunhal tinha grande valor, ainda quando conseguida mediante

tortura ou promessas de recompensa. As normas jurídicas aplicadas pelos

holandeses nos territórios ocupados no Brasil, porém, em nada de

relevante contribuíram para a construção do processo penal brasileiro.

1822 - Proclamada a Independência em 7.09.1822, continuou a vigorar

as Ordenações do Reino.

1824 - Constituição promulgada, primeira o Brasil. Dava a organização

judiciária básica do Poder Judiciário brasileiro, previa as denúncias pelo

promotor público ou qualquer do povo. A regra era competência do

julgamento centrada no júri. Era uma constituição de anseios modernos e

liberais.

1830 – Promulgado o Código Criminal do Império, primeira legislação

penal genuinamente brasileira.

1832 – entrou em vigor o Código de Processo Criminal do Império

(29.11.1832), que foi a primeira legislação processual penal

genuinamente brasileira. Deixaram de existir as devassas e as querelas,

que assumiram novas formas, agora com o nome de queixas. As

denúncias podiam ser oferecidas pelo Promotor Público ou por qualquer

do povo, sendo possível o procedimento ex officio (de ofício) em todos os

casos de denúncia. Como regra geral, a competência para o julgamento

era centrada no Júri, estando delas excluídas as contravenções e os

crimes menos graves. Refletia um direito medieval em que os poderosos

gozavam de privilégios, escapando de sanções penais, apesar de

inspirado na CF/24, que era uma constituição liberal.

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

1871 – decreto 4824/1871 e lei 2033/1871 regulavam também o processo

penal. Esta última regulou pela primeira vez o “inquérito policial”, cujo

nome até hoje é utilizado.

1889 – Proclamação da República (15.11.1889).

1890 – Promulgado o Código Penal de 1890 (11.10.1890).

1891 – promulgada Constituição de 1891. Os Estados passaram a ter

suas próprias constituições e leis, inclusive de caráter processual, mas

poucos utilizaram dessa faculdade. Apesar de instalado o novo sistema de

governo, e nova Constituição não houve um Código de Processo Penal

neste período.

1937 – Promulgada a Constituição Federal de 1937.

1940 - Promulgado o Código Penal de 1.940 (decreto lei 2.838/40, de

7.12.1940 e com vigência desde 1º.01.1942), vigente até os dias atuais.

Claro que diversas leis e reformas o alteraram ao longo dos anos.

1941 – Promulgado do Código de Processo Penal pelo decreto-lei

3.689/41, de 3.10.1941 e com vigência a partir de 1/01/1942, junto a Lei

de Introdução ao Código de Processo Penal, Decreto-lei 3.931/41, que

visava adaptar o novo Código aos processos pendentes. Manteve o

inquérito policial e o procedimento burocrático ainda derivado das

legislações portuguesas, instalou a instrução contraditória e a completa

separação das funções julgadoras e acusatória, restringiu a competência

do Júri dentre outras inovações.

Atualmente: o Código de Processo Penal possui 811 dispositivos. Sofreu

desde então várias alterações em seu conteúdo, além de existir várias leis

especiais cujo trazem em seu bojo diversas disposições processuais,

recentemente, as leis 11.689/08, 11.690/08, 11.719/08 e 12.403/11

trouxeram relevante alterações. Além disso, o processo de execução

penal passou a ser regido pela Lei 7.210/84 (lei das Execuções Penais),

tornando inaplicáveis as disposições contidas no Livro IV do CPP (artigos

668 a 779). Hoje, vivenciamos uma fase e grandes discussões no campo

processual e estamos na iminência de um novo Código de Processo Penal

fruto do Projeto de Lei no Senado nº 156/09, inclusive com redação

aprovada aos 8.12.2010.

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Processo PenalProf. Danilo Pereira

Evolução doutrinária

De acordo com o seu desenvolvimento científico, o Direito Processual

Penal pode ser separado em dois períodos, tendo o segundo se iniciado

com o Código de Processo Criminal (Code d'Instruction Criminelle),

promulgado na França em 1808. No primeiro período os doutrinadores

identificam as seguintes fases: dos glosadores, dos pós-glosadores,

dos práticos e dos precursores.

Os glosadores limitaram-se a breves notas de interpretação (glosae),

constituindo sua contribuição em mera exegese primitiva de fragmentos

do Direito Romano. Cabem-lhes, porém, os méritos de haver iniciado,

para o processo penal, o adequado tratamento jurídico, lançando assim os

alicerces da doutrina processual penal. Destacaram-se dentre eles Irnério

(1085-1125), Búlgaro (De Judiciis), Placentino (De varietate actionem),

Bernardo de Dorna (Summula de libellis), Tancredo e Acúrsio etc.

Os pós-glosadores desenvolveram o sistema das glosas, passando aos

comentários, ainda com base no direito romano (Justiniano), em estudos

conjuntos com o direito processual civil. Dessa fase são Bártolo de

Assoferrato (1314-1357), Jacobus de Bellovisu (1270-1335) e Albertus

Gandinus (Tratactus de maleficiis, de 1262).

Os práticos passaram à exposição sistemática, ainda com caráter

precário, mas numa ordem mais organizada de exposições que se

elevavam ao plano das questões gerais. Devem ser mencionadas as obras

de Júlio Claro de Alexandria (1525-1575), Prosperio Farinácio (1554-

1613), Benedito Carpsov, Antonio Matheus, Nicola Vigelus, Mathias

Berlich, Beaunamoir, Pierre Ayrault etc.

Os precursores são os comentadores do Período Humanitário, que

incluem, além de Cesare de Bonesana (marquês de Beccaria), Filangieri,

Vauglans, Romagnosi etc. e, em Portugal, Pascoal de Melo Freire, Pereira

de Souza, Caetano Gomes etc.

No segundo período, iniciado após o Código de Napoleão, de 1808,

surgem os estudos mais completos a respeito do processo penal,

distanciado do direito material, nas obras de Francesco Carrara

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(Programma del Corso di Diritto Criminalle); Faustin Hélie (Traité de l'

Insttruction Criminelle), Garraud (Compêndio de Direito Criminal); Luigi

Lucchini (Elementi di Procedura Penale) etc. Anote-se, sobretudo, o nome

de Oscar Bulow, com sua obra “A Teoria das Exceções Dilatórias e dos

Pressupostos Processuais”, em que, com fundamento na relação

processual de caráter público, imprime novos rumos e aponta outros

métodos ao Direito Processual.

No Brasil, durante o regime imperial, quem mais contribuiu para o

desenvolvimento da doutrina processual penal foi Pimenta Bueno, com a

obra “Apontamentos sobre o Processo Criminal Brasileiro”. Já na

República, o maior processualista é João Mendes de Almeida Junior (O

Processo Criminal Brasileiro), salientando-se ainda os nomes de Galdino

Siqueira, Costa Manso, Cândido Mendes, Firmino Whitaker, João de

Oliveira Filho, Pontes de Miranda, Florêncio de Abreu. Sobre o Código de

Processo Penal, devem ser ressaltados os comentários de E. Espínola

Filho (Comentários ao Código de Processo Penal), José Frederico

Marques (Elementos de Direito Processual Penal e Tratado de Direito

Processual Penal), Hélio Tornaghi (Instituições de Direito Processual

Penal), E. Magalhães Noronha (Curso de Direito Processual Penal).

Valiosa também tem sido a colaboração dos novos processualistas

brasileiros: Ada Pellegrini Grinover, Rogério Lauria Tucci, Afrânio Silva

Jardim, Sérgio Marcos de Moraes Pitombo, Herminio Alberto Marques

Porto, Vicente Greco Filho, Antonio Scarance Fernandes, Fernando da

Costa Tourinho Filho.

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