direito administrativo vol.2
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Diogo Freitas de AmaralTRANSCRIPT
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DIOGO FREITAS DO AMARAL
Professor Catedrtico da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa
CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO Vol. II
Com a colaborao de LINO TORGAL
ALMEDINA
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CURSO DE DIREITO ADMINISTRATIVO - VOL. II
AUTOR: DIOGO FREITAS DO AMARAL
EDITOR: LIVRARIA ALMEDINA - COIMBRA www.almedina.net
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OUTUBRO, 2001
DEPSITO LEGAL:93223/95
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Toda a reproduo desta obra, por fotocpia ou outro qualquer processo, sem prvia
autorizao escrita do Editor, ilcita e passvel de procedimento judicial contra o infractor.
PREFACIO
Quinze anos volvidos sobre a 1a edio do volume I do meu Curso de Direito Administrativo,
vem agora a lume o respectivo volume II, que abrange os princpios gerais do Direito
Administrativo, bem como as trs mais importantes formas de exerccio do poder
administrativo - o regulamento, o acto administrativo e o contrato administrativo.
Esta matria correu durante anos impressa em folhas policopiadas (Direito Administrativo,
volumes II e III), e dela s no incluo no presente trabalho o captulo sobre a
responsabilidade da Administrao, por estar para breve nova legislao acerca do assunto.
Tambm fica relegada para o volume III deste Curso a parte respeitante s garantias dos
particulares e, em especial, ao contencioso administrativo, cuja reforma iminente
desaconselha nesta oportunidade uma publicao que em breve ficaria desactualizada.
Apesar destas restries, a matria agora dada estampa corresponde, no essencial, ao
corao da teoria geral do Direito Administrativo - e a utilidade da sua publicao justifica-se
por si mesma.
No se pense, todavia, que o contedo deste volume U se limita a reproduzir, nas suas linhas
essenciais, a substncia do que j constava dos dois volumes de lies policopiadas acima
referidos. Na verdade, a matria foi toda repensada, revista e remodelada de uma ponta
outra. As inovaes so bastantes e no se confinam s notas bibliogrficas, nem s
actualizaes de legislao e jurisprudncia: ha novos conceitos, ha importantes debates
doutrinais, h extensas referencias (dantes inexistentes) ao Direito Comunitrio, sobretudo
em matria contratual, e h ainda, de um modo geral, uma tentativa de aproximao entre os
pontos de vista, tradicionalmente to afastados, das escolas de Lisboa e de Coimbra.
A minha concepo geral do Direito Administrativo continua a dever os seus alicerces
fundamentais obra fundadora do Prof. Marcelo Caetano, de quem tive a sorte de ser aluno e
tenho a honra de ser discpulo. Mas, sem prejuzo dessa influncia matriz, h que reconhecer
o mrito - e muitas vexes o bem fundado - de vrios contributos devidos a outros nomes
-
ilustres da mesma rea cientfica, nomeadamente da escola conimbricence. Onde a sntese me
pareceu possvel, no hesitei em superar teses e antteses. O leitor julgar se o fiz, ou no,
deforma cientificamente bem conseguida.
A publicao do presente volume no teria sido possvel, pelo menos nesta altura, se eu no
tivesse podido dispor da inteligente, competente e eficaz colaborao, de alto valor, do meu
Assistente e colaborador, Dr. Lino Torgal, que foi meu aluno no curso de mestrado da
Universidade Catlica, e prepara agora o doutoramento sob a minha orientao na
Universidade Nova de Lisboa.
Para ele vo os meus agradecimentos muito sinceros.
Lisboa, Maio de 2001.
DIOGO FREITAS DO AMARAL
PARTE II
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O PODER ADMINISTRATIVO E OS DIREITOS DOS PARTICULARES
CAPITULO I
CONCEITOS FUNDAMENTAIS
1
O PODER ADMINISTRATIVO
1. A separao dos poderes
Vamos agora estudar o poder administrativo. E comearemos, naturalmente, por alguns
conceitos fundamentais.
O primeiro conceito de que temos de partir para estudar o poder administrativo o conceito
de separao dos poderes1. Que significa ele?
1 A bibliografia portuguesa e estrangeira sobre este tema vastssima. Entre ns, cf., por
exemplo, ROGRIO SOARES, Direito Administrativo, policopiado Porto, s/d, mas 1980, pp.
21-35; Idem, Sentido e Limites da Funo Legislativa no Estado Contemporneo, in A
Feitura das leis, II, INA, 1986, pp. 433 e segs.; GOMES CANOTILHO, Direito
Constitucional e Teoria da Constituio, Coimbra, 1998, pp. 242 e segs.; JORGE
MIRANDA, Cincia Poltica, policopiado, Lisboa, 1992, pp. 91 e segs.;
SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,
Coimbra, 1987, pp. 25 e segs.; RUI MACHETE, Contencioso Administrativo, in Estudos de
Direito Pblico e Cincia Poltica, Lisboa,
p.10
-
A expresso separao dos poderes tanto designa uma doutrina poltica como um principio
constitucional.
Corresponde, desde logo, doutrina poltica que teve e tem por objecto a estruturao do
poder poltico do Estado2 e que, como sabido, foi primeiro desenvolvida por Locke e
subsequentemente celebrizada por Montesquieu 3. Consistia e
1991, pp. 185 e segs.; NUNO PIARRA, A Separao dos Poderes como Doutrina e
Principio Constitucional, Coimbra, 1988; Idem, A Separao de Poderes na Constituio de
1976. Alguns Aspectos, in (org. Jorge Miranda) Nos 10 anos da Constituio, Lisboa, 1987,
pp. 143 e segs.; Idem, Separao dos poderes, in Polis, 5, Lisboa-S. Paulo, cols. 682-714;
JORGE REIS NOVAIS, Contributo para uma Teoria do Estado de Direito, Coimbra, 1987,
pp. 82 e segs.; Idem, Separao de Poderes e Limites da Competncia Legislativa da
Assembleia da Repblica, Lisboa, 1997; MARIA DA GLRIA DIAS GARCIA, Da justia
Administrativa em Portugal. Sua Origem e Evoluo, Lisboa, 1994, pp. 280 e segs.;
MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva da Lei. A Causa da lei na Constituio Portuguesa
de 1976, Porto, 1992, pp. 85-173; e PAULO OTERO, A "desconstruo" da Democracia
Constitucional, in (org. Jorge Miranda), Perspectivas Constitucionais. Nos 20 anos da
Constituio de 1976, II, Coimbra, 1997, pp. 610-628.
Na doutrina estrangeira, cfr., tambm entre tantos outros, E. GARCA DE ENTERRA / T.R.
FERNNDEZ, Curso de Derecho Administrativo, I,
8 ed., Madrid, 1997, pp. 26-30; JEAN RIVERO /JEAN WALINE, Droit administratif, 15"
ed. Paris, 1994, pp. 18 e segs.; WOLFF / BACHOF / STOBER, Vewaitungsrecht, l, li' ed.,
Munique, 1999, pp. 213 e segs.; e STANLEY DE SMITH / RODNEY BRAZIER,
Constitutional and Administrative Law, 8a ed., Londres, 1999, pp. 17 e segs..
2 Antes dos autores liberais, o tema da separao dos poderes foi estudado a propsito da
questo da titularidade do poder, quer dizer, "da questo, inicial a qualquer organizao
poltica, de saber (onde) se situa a sede originria do direito de ordenar" - v. ROGRIO
SOARES, Direito Administrativo, p. 22. Sobre o assunto, v., desenvolvidamente, NUNO
-
PIARRA, A Separao dos Poderes como Doutrina e Princpio Constitucional, pp. 31 e
segs.. V. tambm FREITAS DO AMARAL, Histria das Ideias Polticas, I, Coimbra, 1997,
pp. 180-181.
3 V., de novo, NUNO PIARRA, A Separao dos Poderes como Doutrina e Princpio
Constitucional, pp. 63-139. Para uma sntese de outras concepes doutrinais, cfr. JORGE
MIRANDA, Cintia Poltica, pp. 102 e segs..
p.11
consiste tal doutrina, basicamente, numa dupla distino: a distino intelectual das funes
do Estado; e a distino poltica dos rgos que devem desempenhar tais funes -
entendendo-se que para cada funo deve existir um rgo prprio, diferente dos demais, ou
um conjunto de rgos prprios. Por seu intermdio, visaram originariamente os autores
liberais (sobretudo Locke), no "simplesmente (...) alcanar a mais perfeita organizao
estrutural para o exerccio da soberania, mas antes (...) criar condies institucionais de
respeito da esfera individual" 4.
A separao dos poderes , depois, um princpio constitucional caracterstico da forma de
governo democrtico-representativa e pluralista ocidental, e que a distingue da forma de
governo democrtico-popular de matriz comunista, a qual lhe contrape o princpio da
unidade e da hierarquia dos poderes do Estado 5. Tal princpio obteve a sua primeira
consagrao positiva importante na Constituio dos EUA, votada no Congresso de Filadlfia
de 1787. E, pouco tempo depois, teve tambm presena de destaque na legislao
constitucional francesa do perodo revolucionrio. Assim, o artigo 16. da Declarao dos
Direitos do Homem e do Cidado, de 26 de Agosto de 1789, afirma solenemente que "toda a
sociedade, em que no esteja assegurada a garantia dos direitos nem determinada a separao
dos poderes, no tem constituio" 6. Direitos fundamentais e princpio da separao dos
poderes constituam, pois, o critrio e o contedo essencial da Constituio moderna 7.
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4 V. SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia..., p. 25.
5 V. NUNO PIARRA, Separao dos poderes, loc. cit., col. 683.
6 Anteriormente s Revolues americana e francesa, o princpio figurava j nas
Constituies do protectorado de Cromwell e nas Constituies setecentistas das colnias da
Nova Inglaterra como, v. g., a de Massachussets de 1780.
7 V. NUNO PIARRA, Separao dos poderes, loc. cit.. col. 695.
p.12
Aprofundemos esta segunda vertente da separao dos poderes.
Em que se traduziu na generalidade das Constituies do mundo ocidental o princpio da
separao dos poderes?
A quinta-essncia do princpio da separao dos poderes difcil de destilar 8. Por outro lado,
o princpio da separao dos poderes no foi consagrado em todas as Constituies dos
sculos XVIII e XIX "da mesma maneira ou com a mesma rigidez" 9.
Didacticamente e simplificando, pode, no entanto, dizer-se que o princpio encontrou uma
traduo no plano do Direito Constitucional, e outra no campo do Direito Administrativo.
No plano do Direito Constitucional, o princpio da separao dos poderes visou retirar ao Rei
e aos seus Ministros a funo de legislar, deixando-lhes apenas a funo poltica e a funo
administrativa. Visou, noutros termos, a separao entre o Legislativo e o Executivo 10. Isto,
para evitar o arbtrio e o despotismo da autoridade e, em ltima anlise, garantir o respeito
-
plos direitos do cidado - matria que apenas poderia ser tocada por lei geral e abstracta do
Parlamento, e que a autoridade pblica deveria limitar-se a executar. A lei pretendia, como
sublinha Nuno Piarra, "por razes de ser-
8 A expresso de STANLEY DE SMITH / RODNEY BRAZIER, Constitutional an
Aministrative Law, p. 18.
9 V. JORGE MIRANDA, Cincia Poltica, p. 107.
10 E matria a aprofundar na disciplina de Direito Constitucional. Entre tantos, sobre a
complexa evoluo das relaes entre o Poder Legislativo e o Poder Executivo do Estado
Liberal de Direito ao Estado Social de Direito de nossos dias, cfr. ROGRIO SOARES,
Direito Administrativo, p. 21-35, e NUNO PIARRA, A Separao dos Poderes como
Doutrina e Principio Constitucional, pp. 143 e segs..
p.13
teza e segurana jurdicas, ser a exclusiva portadora dos critrios jurdicos de soluo de
litgios, pretendia possuir absoluta determinabilidade, de tal maneira que os rgos
encarregados de a executar vissem reduzido o desempenho da sua funo a uma actividade
automtica ou fonogrfica" 11. Portanto, "o motivo da separao entre os dois poderes
(legislativo e executivo) o da defesa da comunidade dos homens livres pela entrega do
poder de fazer leis prpria comunidade: o que acaba por significar o prprio parlamento"
12. A separao dos poderes foi, doutra forma, invocada para garantir o predomnio absoluto
do parlamento-legislador 13.
No campo do Direito Administrativo, o princpio da separao dos poderes visou a separao
entre a Administrao e Justia, isto , retirar Administrao pblica a funo judicial e
-
retirar aos Tribunais a funo administrativa - uma vez que at a existia uma certa confuso
entre as duas funes e os respectivos rgos 14.
Assim, em Frana, foi esse o propsito da lei de 16-24 de Agosto de 1790, ao estabelecer
completa autonomia funcional entre os juizes, de um lado, e os agentes da Administrao, do
outro 15. Efectivamente, a se referiu, como vimos no vol. I deste Curso, que "as funes
judicirias so distintas e permanecero separadas das funes administrativas. Os juizes
11 V. NUNO PIARRA, A Separao de Poderes na Constituio de
1976...., loc. cit., p. 151.
12 V. ROGRIO SOARES, Principio da legalidade e administrao constitutiva, in BFDC,
Coimbra, 1981, p. 171.
13 V. NUNO PIARRA, A Separao de Poderes na Constituio de
1976...., loc. cit., p. 152.
14 V. VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo dos particulares,
Coimbra, 1988, p. 20 e segs..
15 V. RUI MACHETE, Contencioso Administrativo, loc. cit., p. 189.
p.14
no podero, sob pena de alta traio, perturbar de qualquer maneira as operaes dos corpos
administrativos nem convocar perante si os agentes da administrao por motivo atinente s
funes destes". No mesmo sentido, estatuiu-se depois, na lei de 7-14 de Outubro de 1790,
que as reclamaes de incompetncia relativamente a corpos administrativos no so do
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conhecimento dos tribunais, devendo ser levadas ao monarca, chefe da administrao geral.
Por sua vez, o artigo 3. da Constituio de 3 de Setembro de
1791 afirmava no poderem os tribunais conhecer das funes administrativas ou citar
perante eles administradores em razo das suas funes.
Isto resultou da desconfiana do poder revolucionrio face aos tribunais judiciais, que
representavam ainda a continuao do "Antigo Regime", pois estavam nas mos da nobreza.
Efectivamente, conscientes do papel oposicionista desempenhado plos "parlamentos" no
perodo do Antigo Regime, os revolucionrios franceses vo procurar obviar ao aparecimento
de uma situao similar, retirando aos rgos judiciais competncia para decidir dos litgios
em matria administrativa 16. Pode, pois, dizer-se que, "neste contexto, o princpio da
separao era concebido como uma mquina de guerra dirigida contra os tribunais judiciais,
cuja introduo indiscreta no andamento da administrao se temia" 17.
Note-se, porm, que aquilo que a legislao revolucionria francesa vai consagrar, como
observa Vasco Pereira da Silva, "no , apenas, a separao entre a funo administrativa e a
funo judicial, impedindo que os tribunais exeram tarefas administrativas ou as entidades
administrativas tarefas jurisdicionais, mas tambm a impossibilidade de os tribunais
16 V. VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo dos particulares,
p. 22.
17 V. PROSPER WEIL, O Direito Administrativo, Coimbra, 1977, p. 127.
p.15
conhecerem dos litgios entre a Administrao e os particulares" 18. Dela resultou, noutros
termos, o princpio da iseno judicial da aco do Estado 19.
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Entre ns, a separao entre a Administrao e a Justia foi introduzida atravs dos decretos
n.0 22, 23 e 24, de 16 de Maio de 1832 20. No relatrio que antecedia a parte dispositiva dos
mesmos, observava Mouzinho da Silveira: "(...) A mais bela e til descoberta moral do sculo
passado foi, sem dvida, a diferena de administrar, e julgar".
Naturalmente que, num Curso de Direito Administrativo, a segunda direco referida do
princpio da separao dos poderes aquela que interessa aprofundar21.
Pois bem: sendo certo que a Constituio portuguesa de
1976 acolhe o princpio da separao dos poderes (cfr. artigos 2. e 111.), quais so os
corolrios actuais deste prin-
18 V. VASCO PEREIRA DA SILVA, Para um contencioso administrativo
dos particulares, p. 18-19.
19 V. MARIA DA GLRIA GARCIA, Da Justia Administrativa em Portugal, p. 306.
20 Sobre a justia administrativa em Portugal no perodo do Estado Liberal de Direito, cfr.,
desenvolvidamente, MARIA DA GLRIA GARCIA, Da Justia Administrativa em Portugal,
pp. 379 e segs..
21 Sem embargo de se reconhecer que o tema das relaes entre o Poder Legislativo e o
Poder Executivo coloca questes gerais de grande interesse dogmtico. V., por exemplo,
entre ns, sobre a questo da existncia, ou no, na Constituio de um domnio reservado
administrao contra as ingerncias do Parlamento, NUNO PIARRA, A reserva de
administrao, in OD, 122 (1991), II, pp. 325 e segs. e III-IV, pp. 571 e segs.; BERNARDO
AYALA, O (Dfice de) Controlo Judicial da Margem de Livre Deciso Administrativa,
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Lisboa, 1995, pp. 39 e segs.; JORGE REIS NOVAIS, Separao de Poderes e Limites da
Competncia Legislativa da Assembleia da Repblica, Lisboa, 1997; e GOMES
CANOTILHO, Direito Constitucional..., pp. 646 e segs.. Sobre este problema, na
jurisprudncia, v. especialmente os Acrdos do TC n. 1/97 e n. 24/98.
p.16
cpio 22, na parte que tem a ver com as relaes entre a Administrao e a Justia?
So, em sntese, os seguintes:
i) A separao dos rgos administrativos e judiciais. - Isto significa que tm de existir
rgos administrativos dedicados ao exerccio da funo administrativa, e rgos judiciais
dedicados ao exerccio da funo jurisdicional.
A separao das funes tem de traduzir-se numa separao de rgos;
II) A incompatibilidade das magistraturas. - No basta, porm, que haja rgos diferentes:
necessrio estabelecer, alm disso, que nenhuma pessoa possa simultaneamente desempenhar
funes em rgos administrativos e judiciais (cfr. artigo
216., n. 2, da CRP). Como j dizia Mouzinho da Silveira, no seu relatrio, "as magistraturas
administrativas so incompatveis com as judicirias, e as suas funes no se podem
acumular em caso algum" 23.
iII) A independncia recproca da Administrao e da Justia. - Tambm aqui Mouzinho
afirmou o princpio fundamental. Dizia ele, no relatrio j citado, que "a autoridade
administrativa independente da judiciria: uma delas no pode sobrestar na aco da outra,
nem pode pr-lhe embarao ou limite".
-
Este terceiro corolrio, da independncia recproca da Administrao e da Justia, desdobra-
se, por sua vez, em dois
22 Numa perspectiva histrica, cfr., por todos, MARIA DA GLRIA GARCIA, Da Justia
Administrativa em Portugal, passim.
23 A regra no se aplica, porm, aos rgos prprios de administrao da justia. Por
exemplo, o Conselho Superior da Magistratura, que rgo de administrao da justia e que
desempenha funes materialmente administrativas, integra como titulares um conjunto de
magistrados de carreira.
p.17
aspectos: a independncia da Justia perante a Administrao;
e a independncia da Administrao perante a Justia. Analisemo-los sucessivamente.
- A independncia da Justia perante a Administrao significa que a autoridade
administrativa no pode dar ordens autoridade judiciria, nem pode invadir a sua esfera de
jurisdio decidindo questes da competncia dos tribunais. Para assegurar este postulado
bsico, existem, fundamentalmente, dois mecanismos jurdicos: por um lado, o sistema de
garantias de independncia da magistratura (cfr. artigos 203. e 216. da CRP)24; e, por
outro, a regra legal de que todos os actos praticados pela Administrao pblica em matria
da competncia dos tribunais judiciais so nulos e de nenhum efeito, por estarem viciados de
usurpao de poder - cfr. CPA, artigo
133., n.0 2, alnea a).
-
- A independncia da Administrao perante a Justia significa, hoje, no uma proibio
absoluta de o juiz condenar, intimar, orientar ou impor comportamentos Administrao (cfr.
o artigo 268., n. 4, da CRP, onde, alm do mais, se prev a possibilidade de os tribunais
determinarem Administrao a prtica de actos administrativos legalmente devidos), mas,
apenas, o que bem diferente, uma "proibio funcional de o juiz afectar a essncia do
sistema de administrao executiva - no pode ofender a autonomia do poder administrativo
(o ncleo essencial da discricionaridade, quando a lei confere aos rgos da Administrao
poderes prprios de apreciao ou de deciso) nem a autoridade caracterstica do acto
administrativo (em especial, a sua fora de caso decidido, passado o prazo de impugnao)"
25.
24 V. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., p. 579 e segs..
25 V. VIEIRA DE ANDRADE, A Justia Administrativa (Lies), 2." ed., Coimbra, 1999, p.
94.
p.18
Por outro lado, a referida independncia significa tambm que os tribunais comuns no so os
tribunais competentes para conhecer dos litgios em que esteja em causa a actuao da
Administrao pblica no exerccio de uma actividade de gesto pblica. Efectivamente,
dispe-se no artigo 212., n. 3, da CRP que cabe aos tribunais administrativos "o julgamento
das aces e dos recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litgios emergentes
das relaes jurdicasadministrativas". Mas esta regra conhece excepes - v.g., a
impugnao judicial de coimas faz-se hoje em dia perante os tribunais judiciais; e tambm as
indemnizaes devidas por expropriaes por utilidade pblica so arbitradas plos tribunais
judiciais.
2. O poder administrativo: caracterizao
-
Das consideraes antecedentes resulta, pois, que a Administrao pblica , nos nossos dias,
um poder. um poder pblico, faz parte daquilo a que se costuma chamar os poderes
pblicos.
Mas que poder a Administrao pblica? Ser o poder executivo?
Se s houvesse Administrao pblica estadual, se toda a administrao fosse administrao
do Estado, poderia chamar-se poder executivo ao poder administrativo. Porm, como vimos
j, no assim. Existem outras administraes pblicas para alm da estadual: as autarquias
locais, as regies autnomas, as associaes pblicas - e estas no emanam do Estado, no
pertencem ao Estado, no so administrao estadual.
Portanto, falar em poder executivo, de modo a englobar nele tambm as autarquias locais e
essas outras entidades que foram referidas, inadequado. Assim, antes prefervel utilizar a
expresso poder administrativo, que compreende de um
p.19
lado o poder executivo do Estado, e do outro as entidades pblicas administrativas no
estaduais.
Certos autores, como Marcello Caetano, falam a este respeito na concepo da
"administrao pblica em sentido formal", que seria assim um terceiro sentido a acrescer
queles dois que logo desde o incio ns detectmos. Vimos que se falava em administrao
pblica num sentido orgnico ou subjectivo, e num sentido material ou objectivo 26. Aparece
agora um terceiro sentido, que o sentido formal - a administrao pblica como poder.
-
Diz Marcello Caetano: "a administrao pblica no nos aparece hoje em dia na maior parte
dos pases como uma forma tpica da actividade do Estado, mas antes como uma das
maneiras por que se manifesta a sua autoridade. A administrao deixa de se caracterizar
como funo para se afirmar como poder. E mais adiante continua: "o sistema dos rgos
administrativos recebe pois da lei a faculdade de definir a sua prpria conduta para a
realizao dos fins que lhe esto designados e de impor generalidade dos cidados o
respeito dessa conduta. A Administrao um verdadeiro poder, porque define, de acordo
com a lei, a sua prpria conduta e dispe dos meios necessrios para impor o respeito dessa
conduta e para traar a conduta alheia naquilo que com ela tenha relao"27.
Concordamos com esta concepo. A Administrao pblica , efectivamente, uma
autoridade, um poder pblico - o poder administrativo.
Mas em que consiste o poder administrativo? Quais so as suas manifestaes e as suas
principais consequncias?
26 V. o volume I deste Curso, p. 32 e segs..
27 V. MARCELLO CAETANO, Manual, I, pp. 15-16.
p.20
3. Manifestaes do poder administrativo
As principais manifestaes do poder administrativo so basicamente quatro:
- o poder regulamentar;
-
- o poder de deciso unilateral;
- o privilgio da execuo prvia;
- o regime especial dos contratos administrativos.
Analisemo-las.
a) O poder regulamentar. - A Administrao pblica, num sistema administrativo de tipo
francs, como o nosso, tem o poder de fazer regulamentos (cfr. CRP, artigos 199., alnea
c), 227., n. 1, alnea d), e 241o) - aquilo que chamamos "poder regulamentar" e outros
autores denominam de faculdade regulamentaria.
Diferentemente, num sistema administrativo de tipo britnico, a Administrao pblica no
tem poder regulamentar normal: s pode fazer regulamentos nos casos em que o poder
legislativo - o Parlamento ou o Congresso - expressamente lhe confira essa competncia e,
quando isso suceda, os regulamentos so a encarados como delegated legislation 2S.
No assim no sistema de tipo francs, e no assim designadamente em Portugal, onde, por
fora da prpria Constituio, a Administrao pblica tem o poder de fazer regulamentos.
Por seu turno, estes regulamentos que a Administrao tem o direito de elaborar so
considerados como uma fonte de direito: colocado abaixo da lei, do ponto de vista da
28 Sobre a origem histrica e funes da delegated leislation, cfr. STANLEY DE SMITH /
RODNEY BRAZIER, Constitutional an Administrativ Law, pp. 338 e segs..
-
p.21
hierarquia das fontes de direito, o regulamento , no obstante, uma fonte de direito
autnoma.
Enquanto no sistema de tipo britnico, onde a Administrao pblica no considerada como
poder, os regulamentos, nos casos especiais em que a Administrao os possa fazer, so
encarados como uma forma de legislao delegada, e portanto tm natureza legislativa,
embora por delegao do Parlamento. entre ns o regulamento no tem natureza legislativa -
tem uma natureza especfica, sui generis, o que significa que uma fonte diferente da lei.
Porque que a Administrao pblica goza de poder regulamentar?
Adiante responderemos de forma mais desenvolvida a esta questo 29. Por ora, sublinhe-se,
em sntese, que isso sucede justamente porque, como poder, goza da prerrogativa de definir
unilateral e previamente, em termos genricos e abstractos, em que sentido que vai
interpretar e aplicar as leis em vigor: e isso, f-lo justamente elaborando regulamentos.
b) A segunda manifestao tpica do poder administrativo o poder de deciso unilateral.
Enquanto no regulamento a Administrao pblica nos aparece a fazer normas gerais e
abstractas, embora inferiores lei, aqui a Administrao pblica aparece-nos a decidir casos
individuais e concretos.
Perante um caso concreto, individualizado, perante o problema do Sr. A ou da empresa B, a
Administrao pblica tem o poder de definir unilateralmente o direito aplicvel a esse caso
concreto.
-
Este poder um poder unilateral, quer dizer, a Administrao pblica pode exerc-lo por
exclusiva autoridade sua, e sem necessidade de obter o acordo (prvio ou a posteror) do
interessado.
29 V. infra, Captulo II, 2..
p.22
E aqui estamos ns a encarar a Administrao naquilo que ela tem de mais especfico e
caracterstico, que a possibilidade de traar a sua conduta ou a conduta alheia. Para usar a
terminologia de Marcello Caetano, ela tem a possibilidade de traar a sua prpria conduta ou
a conduta alheia independentemente do recurso aos tribunais.
Compare-se isto com o que se passa quando um particular quer levar algum a adoptar um
dado comportamento a que ele se julga com direito. Por exemplo, o credor perante o devedor:
se o devedor no paga, o credor, para ver definido o seu direito de crdito contra o devedor,
tem de recorrer ao tribunal, e tem de obter deste uma sentena que reconhea esse seu direito.
A Administrao no: perante um caso concreto, ela tem por lei o poder de definir
unilateralmente o direito aplicvel. E esta definio unilateral obrigatria para os
particulares. Por isso, a Administrao um poder.
Por exemplo, a Administrao que unilateralmente determina o montante do imposto
devido por cada contribuinte. Claro que ao faz-lo se limita a aplicar a lei fiscal ao caso
concreto, mas a Administrao que declara quanto h a pagar, e f-lo unilateralmente, no o
faz por acordo com o particular, o que alis seria certamente difcil de conseguir... E
justamente porque isso seria difcil ou impossvel que a Administrao, em nome do
interesse colectivo, recebe da lei o poder de definir unilateralmente o direito aplicvel. E ela
que liquida certos impostos a cobrar aos contribuintes; que confere ou recusa as autorizaes
e as licenas de que os particulares porventura caream, nos termos da lei, para
-
desenvolverem as suas actividades privadas; que unilateralmente aplica sanes disciplinares
aos seus funcionrios quando entender que eles cometeram alguma infraco disciplinar; e
assim sucessivamente.
p.23
Portanto, e ao contrrio dos particulares, que nas suas relaes privadas no podem definir
unilateral e autoritariamente o direito, a Administrao declara o direito no caso concreto, e
essa declarao tem valor jurdico e obrigatria, no s para os funcionrios subalternos,
mas tambm para todos os particulares.
Os particulares devem obedincia aos actos administrativos plos quais nos casos concretos a
Administrao pblica define o direito. Pode a lei exigir, e regra geral exige (cfr. artigos
100. e segs. do CPA), que os interessados sejam ouvidos pela Administrao antes de esta
tomar a sua deciso final: por exemplo, em processo disciplinar o arguido tem o direito de ser
ouvido antes de a Administrao definir que pena se prope aplicar-lhe. Mas a deciso da
Administrao uma deciso unilateral: ela ouve o arguido, mas depois decide como
entende.
Pode tambm a lei facultar, e na realidade faculta (cfr. CPA, artigos 158. e segs.), aos
particulares a possibilidade de apresentarem reclamaes ou recursos hierrquicos contra as
decises da Administrao pblica. Mas estas garantias administrativas impugnatrias s
vm, por definio, depois de a deciso j existir, e ela existe como deciso unilateral; por
outro lado, o julgamento dessas mesmas reclamaes e recursos novamente feito atravs de
deciso unilateral da Administrao.
Por ltimo, a lei permite que os interessados impugnem as decises unilaterais da
Administrao pblica perante os tribunais administrativos, a fim de obterem a sua anulao
ou declarao de nulidade no caso de as mesmas serem ilegais e lesarem posies jurdicas
-
subjectivas. Mas a verdade que esse recurso contencioso s possvel depois de a deciso
ter sido tomada unilateralmente pela Administrao. Quer dizer:
a Administrao decide, e s depois que o particular pode
p.24
recorrer da deciso. E no a Administrao que tem de ir a tribunal para legitimar a deciso
que tomou: o particular que tem de ir a tribunal para impugnar a deciso tomada pela
Administrao.
Note-se que o princpio da deciso administrativa prvia - "de acordo com o qual, salvo
disposio legal expressa em contrrio, a Administrao s poderia ser accionada perante um
tribunal administrativo depois de ter sido instada a pronunciar-se sobre o assunto em litgio"
30 - no constitui trao essencial do contencioso administrativo portugus no seu conjunto.
Deixando de lado o recurso contencioso propriamente dito, os particulares que necessitem de
proteco jurisdicional no so obrigados a esperar ou a provocar actos administrativos s
para poderem aceder justia administrativa" 31. Por um lado, o legislador constitucional
no s consagra - no n. 4 do artigo 268. - o direito fundamental de acesso aos tribunais
administrativos, seja por via de recurso, seja por via da aco, como tambm delimita - no n.
3 do artigo 212. - o domnio da justia administrativa em termos de relao jurdica, e no
apenas, como se fazia tradicionalmente, a partir das categorias da actividade da
Administrao e, concretamente, a partir do acto administrativo32. Por outro lado, nos nossos
dias "desapareceu o mito do acto administrativo como nico momento em que se resumem e
se exprimem todas as vicissitudes das relaes entre a Administrao e o particular, entre o
Estado e a Sociedade" 33.
A questo deve ser aprofundada na disciplina de Contencioso Administrativo.
-
Esta uma das mais importantes manifestaes do poder administrativo, porventura a mais
importante. Chamamos-lhe poder de deciso unilateral. Outros autores chamam-lhe "auto-
30 V. VIEIRA DE ANDRADE, Justia Administrativa (Lies), p. 91.
31 V. VIEIRA DE ANDRADE, Justia Administrativa (Lies), p. 91.
32 V. VIEIRA DE ANDRADE, Justia Administrativa (Lies), p. 67.
33 V. RUI MEDEIROS, Estrutura e mbito da aco para o reconhecimento de um direito ou
de um interesse legalmente protegido, in RDES, 1989, p. 70.
p.25
- tutela declarativa" porque, nos termos que ficam expostos, a Administrao pblica tem o
direito de fazer justia por suas mos (auto-tutela), nos casos da sua competncia, atravs da
declarao do direito (auto-tutela declarativa).
c) O privilgio da execuo prvia. - Alm do referido, a lei d Administrao pblica a
faculdade de impor coactivamente aos particulares as decises unilaterais constitutivas de
deveres ou encargos que tiver tomado e que no sejam por aqueles voluntariamente
cumpridas. Efectivamente, nos termos do artigo 149., n. 1, do CPA, "o cumprimento das
obrigaes e o respeito pelas limitaes que derivam de um acto administrativo podem ser
impostos coercivamente pela Administrao sem recurso prvio aos tribunais, desde que a
imposio seja feita pelas formas e nos termos previstos no presente Cdigo ou admitidos por
lei".
-
Comparemos de novo com o que se passa no direito civil. O credor obtm do tribunal uma
sentena declarativa condenatria; mas, obtida a sentena, de duas uma: ou o devedor cumpre
ou no cumpre; se no cumpre, o credor, embora munido j de uma sentena que declara o
seu direito, no pode impor pela fora essa sentena ao devedor; tem, antes, com base nesse
ttulo executivo, de desencadear o processo executivo, e de novo recorrer aos tribunais, para
que eles imponham coactivamente o direito declarado (cfr. Cdigo Civil, artigos 817. e
segs., e Cdigo de Processo Civil, artigos 801. e segs.).
Ora, a Administrao pblica tambm est, em regra, como se viu, dispensada de, nesse
segundo momento (momento executivo), recorrer aos tribunais. Teoricamente, poderia
conceber-se um sistema em que a Administrao tivesse o poder de definir unilateralmente o
direito, mas, depois, na fase executiva, fosse obrigada a recorrer, na generalidade dos casos, a
tribunal para conseguir a imposio forada dessa decla-
26
rao aos particulares recalcitrantes. essa a perspectiva hoje adoptada por alguns
administrativistas portugueses34.
No assim, como vimos: a Administrao tem, no apenas o poder de definir
unilateralmente o direito, mas tambm, salvo nalgumas matrias35, o poder de promover por
si prpria a execuo forada desse direito, se o particular no se conformar voluntariamente
com a definio feita.
As coisas passam-se assim: a Administrao pblica decide unilateralmente; a partir desse
momento, pode exigir do particular que cumpra o dever ou encargo que lhe foi eficazmente
definido; o particular tem por lei o dever de obedecer definio que a Administrao fez; se
no cumprir, a Administrao tem o direito de executar coactivamente (sem recurso prvio
aos tribunais) a declarao que ela prpria efectuou, embora s o possa fazer pelas formas e
nos termos previstos no CPA ou na lei (cfr. artigo 149., n. 2).
-
Entretanto, o particular tem, depois disso, o poder de recorrer aos tribunais para impugnar a
definio feita, pedindo a anulao do acto administrativo. Mas este recurso no tem
normalmente efeito suspensivo, o que significa que, enquanto vai decorrendo o processo
contencioso em que se discute se o acto administrativo legal ou ilegal, o particular tem de
cumprir o acto; se no o cumprir, a Administrao pblica pode impor coactivamente o seu
acatamento.
Isto quer dizer, portanto, que a Administrao dispe, nos termos que foram expostos, de dois
privilgios: por um lado, na fase declaratria, o privilgio de definir unilateralmente o direito
no caso concreto, sem necessidade de uma declarao judicial; por outro lado, na fase
executria, o privilgio de, por via de regra, executar o direito por via admi-
34 V. infra, Cap. II, 3., VII.
35 V. CPA, artigo 155..
p.27
nistrativa, sem qualquer interveno prvia do tribunal. o poder administrativo na sua
mxima pujana: a plenitude potestatis.
No mbito do Direito Fiscal, costuma chamar-se a este princpio solve et repete, ou seja,
"paga primeiro e protesta depois", ou, como outros dizem, "submete-te e apresenta a conta".
d) A quarta manifestao do poder administrativo consiste no regime especial dos contratos
administrativos. - A forma tpica de agir da Administrao pblica , ainda nos nossos dias, o
acto administrativo, a deciso unilateral que declara autoritariamente o direito e que,
impondo um dever ou um encargo, pode ser depois imposta pela fora por via administrativa.
-
Essa a manifestao tpica do poder administrativo, aquilo que h de mais caracterstico
no Direito Administrativo.
Por vezes, contudo, e actualmente de forma cada vez mais frequente 36, a lei considera que,
em certas matrias, no possvel ou conveniente que a Administrao pblica actue por via
unilateral e autoritria. H certos comportamentos que s se conseguem atravs do acordo
dos interessados: e ento a lei prev que, nesses casos, a Administrao lance mo da figura
do contrato. Simplesmente, entendeu-se que, para certos efeitos, no convinha que a
Administrao pblica se servisse da figura do contrato civil ou comercial - e ento criou-se a
figura tpica do contrato administrativo, que tambm estudaremos mais adiante.
O que um contrato administrativo? Como diz a lei, "um acordo de vontades pelo qual se
constitui, modifica ou extingue uma relao jurdica administrativa" (cfr. CPA, artigo 178.,
n. 1)37.
36 V. o artigo 179., n. 1, do CPA.
37 V. infra.
p.28
E outra vez, nesta matria, como prprio do Direito Administrativo, esse regime diferente
do regime do direito privado para mais e para menos. Para mais, porque a Administrao
pblica, para poder garantir a satisfao do interesse pblico, fica a dispor de prerrogativas ou
privilgios de que as partes nos contratos civis no dispem (por exemplo, o poder de
modificao unilateral do contedo das prestaes do seu co-contratante; ou o poder de
rescindir o contrato por convenincia do interesse pblico); para menos, porque a
Administrao pblica fica sujeita a restries e a deveres especiais, que no existem nos
contratos civis (por exemplo, o dever de fazer preceder a celebrao do contrato de um
procedimento administrativo tendente escolha do co-contratante).
-
De novo aqui verificamos, pois, um conjunto de manifestaes tpicas do poder
administrativo: porque, mesmo quando actua atravs do contrato a Administrao conserva
na sua mo um certo nmero de privilgios que representam o afloramento do poder
administrativo no mbito da figura do contrato.
Estas, pois, as principais manifestaes do poder administrativo.
4. Corolrios do poder administrativo
a) O primeiro, cujo alcance j se referiu anteriormente, traduz-se na independncia da
Administrao perante a Justia. Existem vrios mecanismos jurdicos para assegurar o
respeito deste corolrio.
Em primeiro lugar, os tribunais comuns so incompetentes para se pronunciarem em termos
efinitivos38 sobre as questes administrativas (ressalvadas as excepes legais).
38 V. Cdigo de Processo Civil, artigo 97., n. 1: "Se o conhecimento do objecto da aco
depender da deciso duma questo que seja
p.29
Em segundo lugar, o regime dos conflitos de jurisdio permite retirar a um tribunal judicial
uma questo administrativa que indevida e erradamente nele esteja a decorrer (v. Cdigo de
Processo Civil, artigos 115. e segs.).
-
b) Segundo corolrio do poder administrativo o foro administrativo, ou seja, a entrega de
competncia contenciosa para julgar os litgios administrativos no aos tribunais judiciais
mas aos tribunais administrativos. A existncia de um foro administrativo uma das
caractersticas fundamentais que decorrem da concepo da Administrao pblica como
poder.
O foro administrativo nasceu historicamente como um privilgio da Administrao. Como
vimos, quis "assegurar-se ao poder Executivo um espao de manobra em face dos outros
poderes e, particularmente, do poder judicial. Para que o juiz no v, no controlo da
Administrao, colocar-se na veste do administrador e realizar uma segunda administrao -
com atentado ao princpio da separao dos poderes - h-de ter-se o cuidado de se lhe deixar
apenas a verificao da legalidade dos actos administrativos" 39.
Hoje, porm, ele subsiste por razes da especializao funcional - porque se entende que
prefervel que haja tribunais cujos juizes estejam especializados no conhecimento das
questes de Direito Administrativo -, e no para privilegiar a Administrao pblica.
Todavia, a verdade que no regime jurdico actual do contencioso administrativo ainda h
vrias disposies que se explicam pela ideia de privilgio concedido Administrao
pblica, e no pela ideia de uma ordem jurisdicional especializada em razo da matria 40.
da competncia do tribunal criminal ou do tribunal administrativo, pode o juiz sobrestar na
deciso at que o tribunal competente se pronuncie".
39 V. ROGRIO SOARES, Administrao Pblica e Controlo Judicial, in
RLJ, n. 3845, p. 227.
40 V. FREITAS DO AMARAL, Direito Administrativo, IV, Lisboa, 1988, pp. 128 e segs..
p.30
-
c) Terceiro corolrio a existncia de um Tribunal de Conflitos, que existe em Frana e em
Portugal (cfr. o artigo 209., n. 3, da CRP), mas no existe em nenhum sistema de tipo ingls
ou de administrao judiciria.
O que um tribunal de conflitos?
um tribunal superior, de funcionamento intermitente (s quando surge um conflito), de
composio mista, normalmente parietria, e que se destina a decidir em ltima instncia os
conflitos de jurisdio que surjam entre os tribunais administrativos e os tribunais comuns41.
Qualquer questo de fronteira em que esteja em causa a competncia dos tribunais judiciais
ou dos tribunais administrativos s pode ser decidida por um tribunal de composio mista,
parietria, onde estejam representados tanto os tribunais judiciais como os tribunais
administrativos, de tal forma que a deciso seja uma deciso que se imponha, com igual
autoridade, quer aos tribunais judiciais quer aos tribunais administrativos 42.
a esse rgo que se chama Tribunal de Conflitos.
41 Ou conflitos de jurisdio entre o STA e o Tribunal de Contas - cfr. artigo 1., n. 3, da
Lei n. 98/97, de 26 de Agosto.
42 V. sobre a matria MARCELLO CAETANO, Manual, 1, pp. 37-38;
VIEIRA DE ANDRADE, A Justia Administrativa (Lies), p. 106 e seg.. V. ainda
ANTNIO DAMASCENO CORREIA, Tribunal de Conflitos, Coimbra, 1988.
2
-
PRINCPIOS CONSTITUCIONAIS SOBRE O PODER ADMINISTRATIVO
5. Enumerao
Como lembra Vital Moreira, "as constituies no se restringem "constituio poltica" em
sentido restrito, ou "constituio do Estado", em sentido prprio. Elas no so hoje somente o
estatuto da pessoa colectiva Estado, definindo as suas atribuies, a sua organizao, a
competncia dos seus rgos. Cada vez mais, as constituies inserem as "ttes de chapitre"
dos demais ramos do direito. Sob ponto de vista material - ou seja, quanto ao seu objecto - o
direito constitucional, alm do (...) direito do Estado (...) em sentido estrito, abrange tambm
princpios essenciais dos ramos infra-constitucionais do direito. Em maior ou menor medida
os vrios compartimentos do direito, tanto (...) do direito pblico, como mesmo do direito
privado, tm as suas bases na Constituio" 43.
E, justamente, prossegue o mesmo Autor, "se existe um ramo do direito pblico com uma
presena significativa na Constituio esse - a par do direito penal - o direito
43 V. VITAL MOREIRA, Constituio e Direito Administrativo (A "Constituio
Administrativa" Portuguesa), in AB UNO A OMNES. 75 Anos da Coimbra Editora,
Coimbra, 1998, p. 1141.
p.32
administrativo. A "constituio administrativa" o direito constitucional administrativo, ou o
direito administrativo constitucional. nela que se encontram as bases do direito
administrativo. Sendo direito constitucional formal (e tambm material) as normas
constitucionais administrativas so direito administrativo material" 44.
-
As vrias Constituies portuguesas sempre foram, em maior ou menor medida, fonte de
Direito Administrativo: a de 1976 no foge regra, e vai at bastante longe nesse sentido 46.
Pode dizer-se mesmo que ela representou "uma verdadeira "revoluo administrativa"", posto
que "nunca at ento a administrao tinha tido tanta ateno constitucional" 47.
Efectivamente, "para alm de um captulo especialmente dedicado ao tema (artigos 266. a
272.), abundam no texto constitucional as disposies com incidncia directa na
administrao pblica"48.
De entre essas disposies, vamos agora analisar aquela que se refere aos princpios
constitucionais da actividade administrativa material - a do artigo 266. 49.
44 V. VITAL MOREIRA, Constituio e Direito Administrativo..., loc. cit., p. 1141-1142.
45 V. FREITAS DO AMARAL, Direitos Fundamentais dos Administrados, in (org. Jorge
Miranda) Nos Dez Anos da Constituio, Lisboa, 1987, p. 11.
46 V. tambm sobre esta matria JORGE MIRANDA, A Administrao Pblica nas
constituies portuguesas, in OD, 120. (1988), II/IV, pp. 607-617.
47 V. VITAL MOREIRA, Constituio e Direito Administrativo..., loc. cit., p. 1145.
48 V. VITAL MOREIRA, Constituio e Direito Administrativo..., loc. cit., p. 1145.
49 Sobre a matria, cfr., entre ns, SRVULO CORREIA, Noes de Direito Administrativo,
Lisboa, 1982, I, pp. 227 e segs.; Idem, Os Princpios Constitucionais da Administrao
Pblica, in Estudos sobre a Constituio, III, Lisboa, 1979; ESTEVES DE OLIVEIRA,
-
Direito Administrativo, I, Coimbra, 1980, pp. 287 e segs.; GOMES CANOTILHO e VITAL
MOREIRA, Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, 3a ed., Coimbra,
p.33
Antes de prosseguir, convm ter presente a distino entre regras e princpios conhecida j
das disciplinas de Introduo ao Direito e de Direito Constitucional. As diferenas bsicas
so, recorde-se, as seguintes:
enquanto as regras "so normas que, verificados determinados pressupostos, exigem, probem
ou permitem algo em termos definitivos, sem qualquer excepo (direito definitivo), os
princpios "so normas que exigem a realizao de algo, da melhor forma possvel, de acordo
com as possibilidades fcticas e jurdicas. Os princpios no probem, permitem ou exigem
algo em termos de "tudo ou nada"; impem a optimizao de um direito ou de um bem
jurdico, tendo em conta a "reserva do possvel", fctica e jurdica" 50. Por outro lado,
enquanto a "convivncia dos princpios conflitual (...), a convivncia das regras
antinmica" - "os princpios coexistem, as regras antinmicas excluem-se"51.
O primeiro princpio referido no artigo 266. da CRP o Principio de prossecuo do
interesse pblico.
este o princpio motor da Administrao pblica. A Administrao actua, move-se,
funciona para prosseguir o interesse pblico. O interesse pblico o seu nico fim.
Mas a Administrao no pode prosseguir o interesse pblico de qualquer maneira; tem de
faz-lo dentro de certos
-
1993, sub artigo 266.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lies de Direito Administrativo,
I, 2 ed., Lisboa, 1999, pp. 81 e segs.; FAUSTO DE QUADROS, "Principio Gerais", 1 do
estudo colectivo Procedimento Administrativo, in DJAP, VI, pp. 502-508; JOO CAUPERS,
Introduo ao Direito Administrativo, Lisboa, 2000, pp. 61 e segs.; FREITAS DO AMARAL
et alli, Cdigo do Procedimento Administrativo Anotado, sub artigos 3 e segs.; ESTEVES
DE OLIVEIRA / PEDRO GONALVES / PACHECO DE AMORIM, Cdigo do
Procedimento Administrativo, sub artigos 3 e segs.; PAULO OTERO, Direito
Administrativo (Relatrio de uma disciplina apresentado no concurso para professor
associado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa), Lisboa,
1998, pp. 379 e segs.; MARIA JOO ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado,
Coimbra, 1996, pp. 167-187. V. tambm L. S. CABRAL DE MONCADA, Os Princpios
Gerais de Direito e a Lei, in Estudos de Direito Publico, 2001, pp. 367 e segs. (maxime, 375-
377).
50 V. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., p. 1123.
51 V. GOMES CANOTILHO, Direito Constitucional..., p. 1035.
p.34
limites, com respeito por determinados valores, no interior de um quadro definido por dados
parmetros. Surgem assim mais dois princpios: o Principio da legalidade, que manda
Administrao obedecer lei, e o princpio do respeito plos direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares, que obriga a Administrao a no violar as situaes
juridicamente protegidas dos particulares.
Dentro dos limites assim fixados sua aco, a Administrao pblica muitas vezes
investida pela lei de um espao de autonomia que corresponde quilo que se denomina como
poder discricionrio. No se trata de um poder arbitrrio, mas de um poder legal, jurdico,
regulado e condicionado por lei.
-
O exerccio do poder discricionrio , com efeito, condicionado pela ordem jurdica. Como
deve ser ele exercido? Diz-nos a CRP, no n. 2 do referido artigo 266., que esse poder deve
ser exercido com igualdade, proporcionalidade, justia, imparcialidade e boa f: daqui
decorrem, pois, o princpio da igualdade, o princpio da proporcionalidade, o princpio da
justia, o princpio da imparcialidade, e o princpio da boa f.
Eis, pois, a chave do estudo que vamos empreender, o qual tem por objecto uma das partes
mais importantes de toda a teoria geral do Direito Administrativo.
Analisaremos, assim, os pontos seguintes:
- princpio da prossecuo do interesse pblico;
- princpio da legalidade;
- princpio do respeito dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares;
- poder discricionrio da Administrao;
- princpio da justia (sentido amplo);
- princpio da igualdade;
- princpio da proporcionalidade;
- princpio da boa f;
-
- princpio da justia (sentido restrito);
- princpio da imparcialidade.
p.35
6. O princpio da prossecuo do interesse publico
52
Noo. - J dissemos que o primeiro princpio a examinar o princpio da prossecuo do
interesse publico.
Dele se faz eco o artigo 266., n. 1, da CRP, que diz o seguinte: "a Administrao pblica
visa a prossecuo do interesse pblico, no respeito plos direitos e interesses legalmente
protegidos dos cidados".
Deixemos a segunda parte desta disposio, que tem j a ver com outro princpio, e
concentremo-nos sobre a primeira parte.
O que o "interesse pblico"?
Trata-se, sem dvida, de um conceito "cuja evidncia intuitiva no facilita em muito a
definio" 53.
-
No obstante, h que tentar concretiz-lo o mais possvel.
Numa primeira aproximao, pode definir-se o interesse pblico como o interesse colectivo,
o interesse geral de uma determinada comunidade, o bem-comum - na terminologia que vem
j desde So Toms de Aquino, o qual definia bem-comum como "aquilo que necessrio
para que os homens no apenas vivam, mas vivam bem" (quod homines non soium vivant,
sed bene vivant) 54.
Num sentido mais restrito, pode, com Jean Rivero, caracterizar-se o interesse pblico como
sendo o que representa a esfera das necessidades a que a iniciativa privada no pode
responder e que so vitais para a comunidade na sua totalidade e para cada um dos seus
membros 55.
52 V. ROGRIO SOARES, interesse pblico, legalidade e mrito, Coimbra, 1955, passim.
Por ltimo, vieira DE ANDRADE, Interesse pblico, in DJAP, V, p. 275 e segs
53 V. SRVULO CORREIA, Os Princpios Constitucionais da Administrao Publica, loc.
cit., p. 662.
54 Sobre esta noo, v., de modo mais desenvolvido, FREITAS DO AMARAL, Histria das
Ideias Polticas, I, pp. 175-176.
55 V. JEAN RIVERO, Direito Administrativo, Coimbra, 1983, p. 14.
p.36
Esta noo de interesse pblico traduz, portanto, uma exigncia - a exigncia de satisfao
das necessidades colectivas.
-
Segundo Rogrio Soares, pode distinguir-se o interesse pblico primrio dos interesses
pblicos secundrios: o interesse pblico primrio aquele cuja definio e satisfao
compete aos rgos governativos do Estado, no desempenho das funes poltica e
legislativa: o bem comum nacional; os interesses pblicos secundrios so aqueles cuja
definio feita pelo legislador, mas cuja satisfao cabe Administrao pblica no
desempenho da funo administrativa. Exemplos: a segurana pblica, a educao, a sade
pblica, a cultura, os transportes colectivos, etc. 56.
Corolrios. - O princpio da prossecuo do interesse pblico em Direito Administrativo tem
numerosas consequncias prticas, das quais importa citar aqui como mais importantes as
seguintes:
1) a lei que define os interesses pblicos a cargo da Administrao: no pode ser a
Administrao a defini-
-los, salvo se a lei a habilitar para o efeito, deferindo-
-lhe competncia para concretizar certo tipo de conceitos indeterminados 57;
56 V. ROGRIO SOARES, Interesse pblico, legalidade e mrito, p. 99 e segs. No mesmo
sentido, cf. VIEIRA DE ANDRADE, Interesse pblico, loc. cit., p. 277. Com referncias de
direito comparado, cfr. SRVULO CORREIA, Noes de Direito Administrativo II, p. 228-
231.
57 Como referiremos adiante, a concretizao de certos conceitos indeterminados, traduzindo
uma verdadeira interveno constitutiva dos rgos administrativos na concretizao dos
pressupostos que formam a hiptese legal, demonstra que a Administrao pode, em certa
medida, co-determinar o prprio interesse pblico que lhe cabe realizar. V., tambm, VIEIRA
DE ANDRADE, Interesse pblico, loc. cit., p. 280.
-
p.37
2) A noo de interesse pblico uma noo de contedo varivel: o que ontem foi
considerado conforme ao interesse pblico pode hoje ser-lhe contrrio, e o que hoje tido por
inconveniente pode amanh ser considerado vantajoso. No possvel definir o interesse
pblico de uma forma rgida e inflexvel, ne varietur;
3) Definido o interesse pblico pela lei, a sua prossecuo pela Administrao obrigatria
58;
4) O interesse pblico delimita a capacidade jurdica das pessoas colectivas pblicas e a
competncia dos respectivos rgos: o chamado Principio da especialidade, tambm
aplicvel s pessoas colectivas pblicas59;
5) S o interesse pblico definido por lei pode constituir motivo principalmente determinante
de qualquer acto da Administrao. Assim, se um rgo da Administrao praticar um acto
que no tenha por motivo principalmente determinante o interesse pblico posto por lei a seu
cargo, esse acto estar viciado por desvio de poder, e por isso ser um acto ilegal, como tal
anulvel contenciosamente 60;
6) A prossecuo de interesses privados em vez do interesse pblico, por parte de qualquer
rgo ou agente administrativo no exerccio das suas funes, constitui
58V. ROGRIO SOARES, Direito Administrativo, pp. 53 e 55; e MARIA JOO
ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado, p. 171.
59 Sobre este princpio, v. MARIA JOO ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado,
pp. 199-202.
-
60 V. MARIA JOO ESTORNINHO, A Fuga para o Direito Privado, PP. 171-172.
p.38
corrupo, e como tal acarreta todo um conjunto de sanes, quer administrativas quer
penais, para quem assim proceder;
7) A obrigao de prosseguir o interesse pblico exige da Administrao pblica que adopte
em relao a cada caso concreto as melhores solues possveis, do ponto de vista
administrativo (tcnico e financeiro): o chamado dever de boa administrao.
1. Idem: o "dever de boa administrao"
O princpio da prossecuo do interesse pblico, constitucionalmente consagrado, implica,
alm do mais, a existncia de um dever de boa administrao, quer dizer, um dever de a
Administrao prosseguir o bem comum da forma mais eficiente possvel.
O dever de boa administrao, ou o princpio da eficincia, est expressamente previsto na
alnea c) do artigo 81. da CRP para o sector pblico empresarial. Mas o artigo 10. do CPA,
parte final, estende-o a toda a actividade da Administrao Pblica61. A ideia , pois, a de
que a actividade administrativa deve traduzir-se em actos cujo contedo seja tambm
inspirado pela necessidade de satisfazer da forma mais expedita e racional possvel o
interesse pblico constitucional e legalmente fixado 62.
61 "A Administrao Pblica - reza o artigo 10. do CPA - deve ser estruturada de modo a
aproximar os servios das populaes e de forma no burocratizada, a fim de assegurar a
celeridade, a economia e a eficincia das suas decises".
-
62 Sobre o princpio da eficincia ao nvel da Administrao Pblica, v., por todos, PAULO
OTERO, O Poder de Substituio em Direito Administrativo, II, Lisboa, 1995, p. 638 e seg..
V. tambm ESTEVES DE OLIVEIRA
p.39
Tem sido discutida a relevncia jurdica deste dever de boa administrao. Em nossa opinio,
ele um dever jurdico, mas um dever jurdico imperfeito, porque no comporta uma
sano jurisdicional. No possvel ir a tribunal obter a declarao de que determinada
soluo no era a mais eficiente ou racional do ponto de vista tcnico, administrativo ou
financeiro, e portanto deve ser anulada: os tribunais s podem pronunciar-se sobre a
legalidade das decises administrativas, e no sobre o mrito dessas decises. O dever de boa
administrao , pois, um dever imperfeito. Mas existe, apesar disso, como dever jurdico. Na
verdade, h vrios aspectos em que esse dever assume uma certa expresso jurdica: 1)
Existem recursos graciosos, que so garantias dos particulares, os quais podem ter por
fundamento vcios de mrito do acto administrativo; 2) A violao, por qualquer funcionrio
pblico, dos chamados deveres de zelo e aplicao constitui infraco disciplinar, e leva
imposio de sanes disciplinares ao funcionrio responsvel; 3) No caso de um rgo ou
agente administrativo praticar um facto ilcito e culposo de que resultem prejuzos para
terceiros, o grau de diligncia e de zelo empregados pelo rgo ou agente contribuem para
definir a medida da sua culpa e,
consequentemente, os termos e limites da sua responsabilidade. Estes trs aspectos
significam, portanto, que o dever de boa administrao existe, e que a sua violao tem
algumas consequncias jurdicas - ainda que no todas aquelas que so normalmente
inerentes violao dos deveres jurdicos perfeitos.
Cumpre, no entanto, reconhecer que certos deveres especficos que antes se pensava e dizia
integrarem o dever geral
-
62 V. ESTEVES DE OLIVEIRA / PEDRO GONALVES / PACHECO DE AMORIM,
Cdigo do Procedimento Administrativo, p. 132; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lies
de Direito Administrativo, I, pp. 114-115; e L. S. CABRAL DE MONCADA, Direito Pblico
e Eficcia, in Estudos de Direito Pblico, Coimbra, 2001 (mas 1997), pp. 164 e segs..
p.40
de boa administrao tm de ser vistos hoje como verdadeiros deveres jurdicos decorrentes
de princpios gerais da actividade administrativa e, designadamente, dos princpios da
proporcionalidade e da imparcialidade. A necessidade de a Administrao tomar decises
equilibradas (isto , decises que satisfaam o interesse pblico sem sacrifcio intolervel dos
interesses particulares conflituantes), por exemplo, no um mero dever sem sano -
constitui um dever jurdico que resulta do princpio da proporcionalidade, cujo desrespeito
representa uma ilegalidade susceptvel de invalidao judicial63. Por outro lado, o dever de a
Administrao ponderar todos os interesses relevantes para a soluo de certo caso no
igualmente um dever imperfeito - uma exigncia do princpio da imparcialidade cuja
inobservncia gera ilegalidade 64.
Admitir isto no significa, note-se, que os tribunais possam controlar o mrito da aco
administrativa - j dissemos que no podem65. Significa somente que certos parmetros
outrora considerados fora do mundo jurdico esto hoje dentro dele. A tendncia recente do
Direito administrativo portugus foi no sentido da transformao de certos padres de mrito
em padres de juridicidade 66.
8. O princpio da legalidade
Como vimos, a Administrao pblica existe para prosseguir o interesse pblico: o interesse
pblico o seu norte,
63 V. infra.
-
64 V. infra.
65 V. infra.
66 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Dever da Fundamentao Expressa de Actos
Administrativos, Coimbra, 1991, p. 383, em nota. V. ainda JOO CAUPERS, Introduo ao
Direito Administrativo, pp. 65-66.
41
o seu guia, o seu fim. Mas a Administrao no pode prosseguir o interesse pblico de
qualquer maneira, e muito menos de maneira arbitrria: tem de faz-lo com observncia de
um certo nmero de princpios e de regras.
Designadamente, e em especial, a Administrao pblica tem de prosseguir o interesse
pblico em obedincia lei: o que se chama o princpio da legalidade 67.
Este princpio , sem dvida, um dos mais importantes princpios gerais de direito aplicveis
Administrao pblica, e que, alis, se encontrava consagrado como princpio geral do
Direito Administrativo antes mesmo que a Constituio o mencionasse explicitamente.
Hoje, este princpio encontra-se formulado no nosso texto constitucional, dizendo o artigo
266., n. 2, o seguinte:
"os rgos e agentes administrativos esto subordinados Constituio e lei (...)".
-
O princpio da legalidade era tradicionalmente definido, por exemplo, por Marcello Caetano,
da seguinte forma:
"nenhum rgo ou agente da Administrao pblica tem a
67 O texto das rubricas n. 8 a 12 segue de perto o nosso artigo Princpio da Legalidade, in
Polis, 3, cols. 976-995. V., para maiores desenvolvimentos, Autores e obras a citados na
bibliografia. Posteriormente publicao deste artigo importa destacar a obra fundamental de
SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia Contratual nos Contratos Administrativos,
Lisboa, 1987, pp. 15-340, e a sntese de VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico
Administrativo, in Contencioso Administrativo, Braga,
1986, pp. 35-48. V. tambm MANUEL AFONSO VAZ, Lei e Reserva de Lei, pp. 387 e segs.
e 473 e segs.; MARCELO REBELO DE SOUSA, Lies de Direito Administrativo, I, pp.
81-89; DAVID DUARTE, Procedimentalizao, Participao e Fundamentao: para uma
Concretizao do Princpio da Imparcialidade Administrativa como Parmetro Decisrio,
Coimbra, 1997, pp.
337-344; e Rui MACHETE, Algumas notas sobre a chamada presuno da legalidade dos
actos administrativos, in Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Pedro Soares
Martmez, I, Coimbra, 2000, p. 37 e segs..
p.42
faculdade de praticar actos que possam contender com interesses alheios seno em virtude de
uma norma geral anterior" 68.
Se bem repararmos nesta definio, verificamos que ela consistia basicamente numa
proibio: a proibio de a Administrao pblica lesar os direitos ou os interesses dos
particulares, salvo com base na lei. Ou seja, por outras palavras, o princpio da legalidade
aparecia ento encarado como um limite aco administrativa, limite esse estabelecido no
-
interesse dos particulares. O princpio da legalidade, por conseguinte, por um lado era um
limite, por outro era estabelecido no interesse dos particulares.
A doutrina mais recente entende o princpio da legalidade de outra maneira. Podemos aqui
defini-lo, de acordo com as concepes mais modernas, da seguinte forma: os rgos e
agentes da Administrao pblica s podem agir com fundamento na lei e dentro dos limites
por ela impostos.
Quais so as principais diferenas entre esta maneira de definir o princpio da legalidade e a
anterior?
So basicamente trs.
Em primeiro lugar, o princpio da legalidade aparece agora definido de uma forma positiva, e
no j de uma forma negativa. Diz-se o que a Administrao pblica deve ou pode fazer, e
no apenas aquilo que ela est proibida de fazer.
Em segundo lugar, verifica-se que o princpio da legalidade, nesta formulao, cobre e abarca
todos os aspectos da actividade administrativa, e no apenas aqueles que possam consistir na
leso de direitos ou interesses dos particulares. Designadamente, o princpio da legalidade
visa tambm proteger o interesse pblico, e no apenas os interesses dos particulares.
Em terceiro lugar, na concepo mais recente, a lei no apenas um limite actuao da
Administrao: tambm o
68 MARCELLO CAETANO, Manual, I, p. 30.
-
p.43
fundamento da aco administrativa. Quer isto dizer que, hoje em dia, no h um poder livre
de a Administrao fazer o que bem entender, salvo quando a lei lho proibir; pelo contrrio,
vigora a regra de que a Administrao s pode fazer aquilo que a lei lhe permitir que faa.
Por outras palavras, a regra geral - em matria de actividade administrativa - no o princpio
da liberdade, o princpio da competncia. Segundo o princpio da liberdade, que constitui a
regra no Direito privado, pode fazer-se tudo aquilo que a lei no probe; segundo o princpio
da competncia, pode fazer-se apenas aquilo que a lei permite. H duas expresses latinas
que traduzem estes dois princpios. Para o princpio da liberdade, permissum videtur m omne
quod non prohibitum, ou seja, "considera-se permitido tudo o que no estiver proibido". Para
o princpio da competncia, quae non sunt premissa prohibita inteiliguntur, ou seja, "o que
no for permitido considera-se que proibido". Em suma, e parafraseando Orlando de
Carvalho, pode dizer-se que, hoje, a actividade administrativa "jamais produto de uma
faculdade permissiva, de um licere, de um Drfen; mas sempre e s de uma faculdade
concedente, de um posse, de um Knnen"69 .
Porqu esta diferena entre a formulao tradicional, de que se fazia eco ainda Marcello
Caetano no seu Manual de Direito Administrativo, e a formulao mais recente? Tal
diferena o resultado de uma longa evoluo histrica dos sistemas polticos e do Direito
pblico na Europa, desde o sculo XVIII at actualidade.
69 V. ORLANDO DE CARVALHO, Contrato Administrativo e Acto Jurdico Pblico (2.
edio), in Escritos. Pginas de Direito, I, Coimbra, 1998, P. 185.
p.44
9. Idem: evoluo histrica
-
70
Numa primeira fase, encontrvamo-nos na poca da monarquia absoluta, que configurava
aquilo a que se chama o Estado de policia: o Poder absoluto, no est limitado pela lei, nem
plos direitos subjectivos dos particulares, e traduz, portanto, uma situao de arbtrio. Este
arbtrio do Poder manifesta-se quer na possibilidade de lesar direitos dos particulares sem que
contra essa leso haja remdios jurdicos suficientes, quer na possibilidade de dispensar
alguns particulares (e no outros) do cumprimento dos deveres legais, quer ainda no direito
de o prncipe ou o rei outorgar privilgios a certos particulares a seu bel-prazer.
Esta situao conheceu ainda uma certa atenuao antes da Revoluo Francesa, na medida
em que a doutrina distinguiu, nessa altura, entre o Estado e o Fisco, ou, melhor dizendo, entre
o Estado-soberano e o Estado-fisco: o Estado-soberano estava isento de obedincia lei, mas
o Estado-fisco, para efeitos patrimoniais, devia obedincia lei e as decises ilegais que
tomasse podiam ser jurisdicionalmente apreciadas.
Com a Revoluo Francesa, entra-se numa segunda fase, que a fase do Estado de Direito
liberal (sculo XIX). Nesta fase estabelece-se o princpio da subordinao lei: a
Administrao pblica fica submetida lei. A lei aparece, portanto, como um limite da aco
administrativa: esta no pode praticar quaisquer actos que contrariem as normas legais. o
princpio da legalidade na sua primeira configurao, ou seja, na sua formulao negativa
(tambm conhecido como princpio do primado da lei): a lei (parlamentar) um limite
aco administrativa.
70 Sobre toda a matria desta rubrica, v. especialmente ROGRIO SOARES, Direito Pblico
e Sociedade Tcnica, Coimbra, 1969, passim.
p.45
-
Por outro lado, e de harmonia com a doutrina liberal, o princpio da legalidade aparece nesta
fase dirigido proteco dos direitos dos particulares: para garantia dos particulares que se
estabelece o princpio da submisso da Administrao pblica lei. Por que que, nesta fase,
o principio da legalidade e
apenas um limite da aco administrativa, e no tambm o prprio fundamento dessa aco
administrativa? Porque todo este perodo marcado pela ideia que inicialmente o
caracterizou, ou seja, pela ideia de monarquia limitada.
Existe uma monarquia, cuja legitimidade uma legitimidade histrica, tradicional,
consuetudinria, mas que a dada altura aceita a necessidade de uma limitao pela soberania
popular representada no Parlamento.
H, assim, dois poderes do Estado, autnomos, cada um com a sua legitimidade prpria: o
Poder Executivo, encabeado pelo rei e seus ministros, tem uma legitimidade hereditria,
decorrente da tradio monrquica; o Parlamento, por seu lado, tem uma legitimidade
democrtica, decorrente do
voto popular.
Dentro desta concepo, a Administrao pblica est s ordens do soberano, depende
hierarquicamente dele, e por isso pode fazer tudo aquilo que ele lhe ordenar, excepto o que
for proibido atravs de lei votada no Parlamento.
No Estado de polcia (monarquia absoluta), a Administrao pblica dependia do rei, a aco
administrativa tinha por fundamento a vontade e o poder do soberano, e no conhecia limites
legais. No Estado liberal (monarquia limitada), a Administrao pblica continua a depender
do rei e a ter por fundamento a vontade real e o poder monrquico, mas encontra-se limitada
negativamente pela lei no interesse dos particulares: pode fazer tudo o que o rei ordenar,
contanto que no ofenda direitos dos particulares seno com base numa lei anterior.
p.46
-
Depois, os tempos evoluem e a monarquia liberal do sculo XIX d origem, na Europa, a trs
regimes diferentes:
por um lado, surgem os regimes autoritrios de direita, as ditaduras de tipo fascista do sculo
XX; por outro, os regimes comunistas; por outro ainda, as democracias modernas de tipo
pluralista e ocidental.
Ora, o princpio da legalidade vai assumir uma conotao diferente em cada um desses tipos
de regime.
Nos regimes autoritrios de direita substitui-se a noo de Estado de Direito pela noo de
Estado de legalidade, que consiste na ideia de que a Administrao pblica deve obedecer
lei, mas a lei deixa de ser a expresso da vontade geral votada no Parlamento representativo
da Nao, para passar a ser toda e qualquer norma geral e abstracta decretada pelo Poder,
inclusive pelo Poder Executivo. Os governos adquirem a possibilidade de fazer leis, a que se
chama na terminologia jurdica decretos-lei. Portanto, aqui, o princpio da legalidade j no
necessariamente a subordinao do Poder Executivo ao Parlamento, mas sobretudo a
subordinao da Administrao pblica ao Governo.
Por outro lado, o princpio da legalidade aparece caracterizado fundamentalmente como
proteco do Estado; um princpio que visa garantir o Estado e os interesses objectivos da
Administrao pblica; s a ttulo reflexo ou secundrio que protege tambm os
particulares. Da que certos autores - por exemplo, na Itlia fascista, o administrativista
Enrico Guicciardi - tenham construdo todo o sistema de garantias dos particulares contra os
actos ilegais da Administrao na base da ideia de que o particular, quando recorre para o
tribunal administrativo de um acto ilegal, no est a defender o seu interesse particular, mas
sim a comportar-se como um zelador do interesse colectivo.
-
Neste tipo de regime, a legalidade aparece-nos ainda como limite da aco administrativa,
mas apenas como um limite relativo, e no j como um limite absoluto.
p.47
Quanto aos regimes comunistas, viriam a dar uma interpretao muito prpria ao princpio da
legalidade. Mantiveram-no, certo - como princpio que exige a subordinao da
Administrao pblica lei -, mas entendiam que o objectivo da construo do socialismo,
conduzida sob a direco do partido nico (ou hegemnico), que devia comandar a
interpretao e aplicao das leis; as leis deviam ser interpretadas e aplicadas de acordo com
as directivas e instrues formuladas pelo partido, com vista construo do socialismo.
Assim se chegou noo de legalidade socialista, que no consistia necessariamente na
legalidade que resultaria de uma interpretao puramente jurdica das leis em vigor, mas era a
legalidade que resultava da interpretao vivificada e norteada pelo objecto da construo do
socialismo, tal como era entendido e aplicado pelo Partido Comunista. Nesta ptica, o
princpio da legalidade socialista no era mais um limite, quer absoluto, quer relativo, aco
da Administrao: era, sim, um instrumento dessa aco administrativa, ou melhor, um
instrumento do poder administrativo ao servio dos fins de natureza poltica consagrados na
Constituio do respectivo pas e definidos, em cada momento, pelo partido nico.
Finalmente, nos regimes democrticos de tipo ocidental, vigora o Estado social de Direito.
Neste, o princpio da legalidade sofre algumas alteraes importantes relativamente ao
entendimento que dele se tinha no Estado liberal. Naturalmente que prximo do princpio
da legalidade tal como ele foi concebido a seguir Revoluo Francesa nos regimes liberais,
mas sofre
algumas transformaes.
-
A primeira que a ideia de subordinao lei completada pela ideia de subordinao ao
Direito, no sentido de que no existe apenas um dever de obedincia lei, como lei ordinria,
antes existe sobretudo um dever de obedincia a mais qualquer coisa do que lei ordinria. A
Administrao pblica deve respeitar a lei ordinria, sem dvida, mas deve
p.48
respeitar tambm: a Constituio, o Direito Internacional que tenha sido recebido na ordem
interna, os princpios gerais de Direito enquanto realidade distinta da prpria lei positiva e
ordinria, os regulamentos em vigor, e ainda os actos constitutivos de direitos que a
Administrao pblica tenha praticado e os contratos administrativos e de direito privado que
ela tenha celebrado, pois uns e outros constituem tambm uma forma de vinculao da
Administrao pblica que equiparada legalidade. Por isso, Maurice Hauriou falava j no
de legalidade, mas de bloco legal, para significar todo este conjunto de fontes que vo para
alm da simples lei positiva ordinria. Modernamente, alguns Autores exprimem esta ideia de
sujeio administrativa ao Direito atravs da formulao do Principio da juridicidade 71.
Por outro lado, neste regime e nesta fase histrica, o princpio da legalidade no visa apenas a
proteco dos direitos subjectivos e interesses legalmente protegidos dos particulares, como
tambm no visa apenas a proteco dos interesses objectivos da Administrao e do Estado -
visa simultaneamente garantir o respeito das normas aplicveis, quer no interesse da
Administrao, quer no interesse dos particulares.
Enfim, a legalidade aparece-nos aqui no apenas como um limite da aco administrativa,
mas como o verdadeiro fundamento da aco administrativa; nestes regimes e nesta fase
histrica, a Administrao pblica s pode agir se e na medida em que a norma jurdica lho
permitir. Isto porque o Poder
71 V., entre ns, VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo loc. cit.,
p. 41. No mesmo sentido, referem GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA,
Constituio da Repblica Portuguesa Anotada, p. 895, que "o princpio da legalidade aponta
-
para um princpio de mbito mais abrangente: o princpio da juridicidade da administrao,
pois todo o direito - todas as regras e princpios da ordem juridico-constitucional portuguesa -
serve de fundamento e pressuposto da actividade da Administrao".
p.49
executivo deixa de ser considerado um poder com legitimidade prpria, como era no tempo
da monarquia, e passa a ser um simples poder constitudo, cuja autoridade derivada da
Constituio e da lei, pelo que se deve subordinar lei e ao Direito.
Aqui e agora, o Poder Executivo no pode invocar como
fundamento da sua aco nem a autoridade monrquica, baseada numa legitimidade histrica
anterior lei, nem qualquer outro ttulo de legitimidade prpria, autnoma, exterior lei. O
Poder Executivo tambm no pertence ao ditador (ao Fhrer ou ao Duce), nem ao partido
nico. O Poder Executivo deriva a sua existncia e a sua legitimidade da Constituio e da lei
e, por conseguinte, em ltima anlise, da soberania popular. Por isso, a lei passa a ser tambm
o fundamento, e no j apenas o limite, da aco administrativa.
De tudo resulta que, na actualidade e no direito portugus, so duas as funes do princpio
da legalidade: por um lado, ele tem a funo de assegurar o primado do poder legislativo
sobre o poder administrativo, porque o primeiro emana da soberania popular e a representa,
enquanto o segundo meramente detentor de uma autoridade derivada e secundria; por
outro lado, desempenha tambm a funo de garantir os direitos e interesses legalmente
protegidos dos particulares, que o Estado social de Direito no pode deixar de respeitar e
proteger em toda a linha 72.
72 Atribuindo-lhe, noutros termos, uma tripla funo: garantstica (tutela de posies
jurdicas subjectivas dos particulares); legitimadora (a legalidade como instrumento de
indirizzo poltica da Administrao); e de racionalizao (definio dos interesses e dos
-
critrios de deciso administrativa) - SRVULO CORREIA, Legalidade e Autonomia..., pp.
17 e segs. e 188 e segs.. Em sentido semelhante, cfr. BERNARDO AYALA, O (Dfice de)
Controlo judicial..., p. 78 e segs., e, mais recentemente, PAULO OTERO, Direito
Administrativo..., p. 379.
p.50
10. Idem: contedo, objecto e modalidades
a) Contedo. - Conforme deixmos entender, na fase histrica actual e no quadro dos regimes
democrticos, ou seja, no mbito do Estado social de Direito, o contedo do princpio da
legalidade abrange no apenas o respeito da lei, em sentido formal ou em sentido material,
mas a subordinao da Administrao pblica a todo o bloco legal (Hauriou), a saber: a
Constituio; a lei ordinria; o regulamento; os direitos resultantes de contrato administrativo
e de Direito privado ou de acto administrativo constitutivo de direitos, e, no lugar adequado
que for o seu, os princpios gerais de Direito, bem como o Direito Internacional que vigore na
ordem interna.
A violao, por parte da Administrao pblica, de qualquer destas sete categorias de normas
ou actos implica violao da legalidade e constitui, por conseguinte, ilegalidade.
b) Objecto. - Por seu turno, o princpio da legalidade tem por objecto todos os tipos de
comportamento da Administrao pblica, a saber: o regulamento; o acto administrativo; o
contrato administrativo; os simples factos jurdicos.
Qualquer destas formas de aco administrativa tem necessariamente de respeitar a
legalidade. A violao da legalidade por qualquer desses tipos de actuao gera ilegalidade -
com todas as consequncias jurdicas da decorrentes (v.g., invalidade ou ilicitude,
responsabilidade civil, etc.).
-
c) Modalidades. - O princpio da legalidade comporta duas modalidades: a preferncia de lei
e a reserva de lei.
A preferncia de lei (ou legalidade-limite) consiste em que nenhum acto de categoria inferior
lei pode contrariar o bloco de legalidade, sob pena de ilegalidade.
A reserva de lei (ou legalidade-fundamento) consiste em que nenhum acto de categoria
inferior lei pode ser praticado sem fundamento no bloco de legalidade.
p.51
A respeito da reserva de lei, convm ainda acrescentar o seguinte :
ao invs do que sucedia no perodo liberal, hoje, por fora das transformaes verificadas
aps as guerras mundiais do sculo XX a nvel, quer do tipo de actividade desenvolvido pela
Administrao (deixou de ser meramente "agressiva" para passar tambm a ser
"constitutiva") quer dos fins da lei (que deixaram de ser apenas a garantia da liberdade e
propriedade dos cidados), a reserva de lei um problema que se coloca, sobretudo, no
quadro constitucional e no no campo administrativo - est em causa a delimitao de
fronteiras da competncia legislativa do Parlamento e do Governo 74.
Por outro lado, tambm ao contrrio do que se verificava no perodo do Estado liberal, a lei
deixou de ser um conceito material, quer dizer, referido ao estatuto de liberdade dos
particulares e, desse modo, capaz de traar as fronteiras entre a funo legislativa e a funo
administrativa 75.
Ainda assim, a reserva de lei continua a ter relevo no campo administrativo, isto , a
propsito das relaes entre o Legislador e a Administrao. Estando constitucionalmente
-
vedada ao Governo a interveno legislativa em determinadas matrias (v. artigo 161 e 162
da CRP), da decorre a inadmissibilidade de a Administrao regular as matrias reservadas
mediante regulamentos independentes (admissveis so apenas os regulamentos executivos),
e o "imperativo dirigido ao legislador para disciplinar no essencial essas matrias. A reserva
de lei implica, portanto, uma especial densidade normativa da lei (...)" 76.
Por outro lado, "se no possvel definir, com base na reserva legal, um conceito material de
lei (...), sempre se pode afirmar que pertence lei, em exclusivo, a determinao, pelo menos,
dos interesses pblicos que constituem o fim da actividade administrativa, bem como a
repartio de atribuies e competncias plos entes e rgos da Admi-
73 Trata-se de um ponto cujo aprofundamento tem sido tradicionalmente feito na disciplina
de Direito Constitucional.
74 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo, loc. cit., p. 38.
75 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo, locc. cit., p. 38.
76 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo, loc cit., p. 39.
p.52
nistrao - em especial no que toca prtica de actos jurdicos que correspondem ao
exerccio de poderes de autoridade" 77.
Em sntese, pode dizer-se, com Vieira de Andrade, que o princpio da reserva de lei, alm de
significar que a actuao da Administrao dever ter sempre a lei como pressuposto,
funciona tambm "como critrio de regulao da intensidade da normao legislativa: da
-
intensidade mnima postulada pela reserva de funo (competncia e fim) intensidade
mxima exigida pela reserva parlamentar (vinculao, no essencial, do contedo)" 78.
11. Idem: excepes ao princpio da legalidade
A maior parte da doutrina administrativa entende tradicionalmente que o princpio da
legalidade comporta trs excepes: a teoria do estado de necessidade; a teoria dos actos
polticos; o poder discricionrio da Administrao.
Por ns, contudo, entendemos que nenhuma destas trs alegadas excepes ao princpio da
legalidade o verdadeiramente. Se no, vejamos.
a) A teoria do estado de necessidade79 diz-nos que, em circunstncias excepcionais, em
verdadeira situao de necessidade pblica - como, por exemplo, em estado de guerra, em
estado de stio ou em caso de grave calamidade natural -, a Administrao pblica, se tanto
for exigido pela situao, fica dispensada de seguir o processo legal estabelecido para
circunstncias normais e pode agir sem forma de processo, mesmo que isso implique o
sacrifcio de direitos ou interesses dos particulares. Claro que posteriormente ter de indemni-
77 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo,loc. cit., p. 39.
78 V. VIEIRA DE ANDRADE, O Ordenamento Jurdico Administrativo, loc. cit., p. 40.
79 Abordaremos esta matria mais adiante.
p.53
-
zar os particulares cujos direitos assim tiverem sido sacrificados: mas pode sacrificar-lhes os
direitos e interesses sem seguir a forma normal de processo, o due process of law 80.
A teoria do estado de necessidade aceite pela doutrina e jurisprudncia de todos os pases
democrticos. E est tambm, as mais das vezes, legislativament