1746-2866-1-pb

Upload: lucas-alves-barbosa

Post on 14-Oct-2015

5 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    82

    INTERDISCURSO, CENAS DE ENUNCIAO E ETHOS DISCURSIVO EM

    CANES DE ATAULFO ALVES

    Fabiana Castro Carvalho

    Resumo: Utilizando a Anlise do Discurso de linha francesa desenvolvida por Dominique

    Maingueneau, este artigo trata da constituio do ethos discursivo, relacionado ao

    interdiscurso e s cenas enunciativas em quatro canes de Ataulfo Alves (cantor e

    compositor mineiro cujo centenrio foi comemorado em 2009) que falam da infncia vivida

    na cidade de Mira. Analisando tal discurso, procuramos: a) examinar o modo de constituio

    do ethos discursivo; aprofundar-nos nos estudos em AD; b) pesquisar o papel do samba no

    Brasil; conhecer a vida e a obra de Ataulfo Alves levando em conta sua importncia na MPB;

    c) analisar quatro de suas canes tendo por base as noes de interdiscurso, cenas

    enunciativas e ethos discursivo, nas perspectivas apontadas por Maingueneau. Buscamos

    responder s seguintes questes metodolgicas: i) como se d a constituio do ethos nas

    canes de Ataulfo Alves selecionadas para a anlise? ii) H diferenas nessa constituio, de

    uma cano para outra? iii) At que ponto podemos transferir a constituio do ethos nas

    canes selecionadas para a anlise da cultura popular brasileira no perodo por elas

    retratado?

    Palavras-chave: Anlise do Discurso. Gnero cano. Interdiscurso. Cenas enunciativas.

    Ethos discursivo.

    Abstract: Using Discourse Analysis of the French line developed by Dominique

    Maingueneau, this article deals with the constitution of the discursive ethos, related to

    interdiscourse and scenes listed in the four Ataulfo Alves songs (singer and composer whose centenary was celebrated in 2009) that speak of childhood lived in the town of

    Mira. Analyzing such discourse, we will: a) examine how the discursive ethos is formed,

    make a deeper study on AD; b) search for the sambas role in Brazil, know the life and the work of Ataulfo Alves taking into account its importance in MPB; c) analyse four of his songs

    based on discursive ethoss notion, enunciative and interdiscourse scenes, in the prospects outlined by Maingueneau. We seek to answer the following methodological issues: i) How is

    the constitution of the ethos of the Ataulfo Alves songs selected for analysis? ii) Are there differences in this constitution, one song to another? iii) To what degree we can transfer up

    the ethos of the selected songs for the analysis of Brazilian popular culture in the period

    depicted by them?

    Keywords: Discourse Analysis. Gender song. Interdiscourse. Scenes of enunciation.

    Discursive ethos

    A autora professora de Lngua Portuguesa e Literatura da Secretaria de Estado de Educao de Minas Gerais.

    Obteve o ttulo de Mestre em 2010, orientada pela Prof. Dr. Virginia B. B. Abraho, do Programa de Ps-

    graduao Stricto Sensu: Mestrado em Estudos Lingusticos da Universidade Federal do Esprito Santo (Ufes),

    em Vitria-ES, Brasil. E-mail: [email protected]

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    83

    Introduo

    O ano de 2009 (ano de desenvolvimento da dissertao Interdiscurso, cenas de

    enunciao e ethos discursivo em canes de Ataulfo Alves) foi marcado pelas comemoraes

    do centenrio de nascimento do cantor e compositor Ataulfo Alves. Nascido em Mira, Minas

    Gerais, no dia 2 de maio de 1909, Ataulpho Alves de Souza1 cresceu na Fazenda Cachoeira,

    onde morava com a famlia. Filho de Severino de Souza e Matilde de Jesus, desde novo era

    capaz de versejar, graas ao contato com o som da viola, os versos improvisados, o gemido da

    sanfona e as toadas cantadas pelos viajantes na fazenda. Aos 11 anos, com a morte do pai,

    assumiu a responsabilidade de ajudar no sustento da casa; com menos de 20 anos (cf.

    CABRAL, 2009), ele se mudou para o Rio de Janeiro, onde teve contato com as rodas de

    samba, o que colaborou para o renascimento de sua vocao musical e o comeo de sua vida

    de compositor2, arte que s foi interrompida em 1969, com sua morte. Ao tomar suas canes

    como amostra para anlise, homenageamos este artista que se tornou um marco para a Msica

    Popular Brasileira (MPB) ao criar canes que integram a antologia do samba urbano-carioca,

    possuindo, no entanto, melodia triste e ritmo lento, caractersticas de sua mineiridade.

    Analisamos o interdiscurso e as cenas enunciativas a fim de apreender o ethos discursivo que

    se constitui nas canes. Neste artigo faremos uma breve reflexo acerca da trade de

    conceitos analisados e, em seguida, partiremos para a exposio dos resultados da pesquisa.

    Referenciais tericos

    Texto, discurso e sentido

    Segundo Maingueneau (1989), o texto um objeto discursivo, pois se manifesta como

    unidades verbais que integram um discurso. Objeto de estudo da AD, o discurso o elemento

    que faz a amarrao entre o lingustico e o extralingustico, possibilitando-nos entender a

    relao entre sujeito, sociedade e ideologia. Para o autor, algumas caractersticas so

    essenciais ao discurso, tais como: i) o discurso uma organizao situada para alm da frase;

    ii) o discurso orientado; iii) o discurso uma forma de ao; iv) o discurso interativo; v) o

    discurso contextualizado; vi) o discurso assumido por um sujeito; vii) o discurso regido

    1 Conforme Toledo (2008), o nome de registro Ataulpho Alves de Souza. Optamos, no entanto, por utilizar o

    nome artstico do cantor e compositor: Ataulfo Alves. 2 Sua entrada no mundo profissional artstico-musical se deu como compositor, tendo sua primeira composio

    gravada por Almirante em 1933: Sexta-feira. Seu primeiro sucesso, no entanto, foi Saudade do meu barraco

    (gravado por Floriano Belham, em 1935).

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    84

    por normas; viii) o discurso considerado no bojo de um interdiscurso (cf.

    MAINGUENEAU, 2008a, p. 52-56). Portanto, para falar de prtica discursiva, preciso

    articular discurso e condies de produo.

    Quanto ao sentido, este se materializa na enunciao por meio dos sujeitos. O sentido

    no dado a priori, mas construdo pelo analista na materialidade lingustica e histrica do

    corpus. essa materialidade que direciona o analista a reconstruir com o autor o sentido do

    texto. Para o autor, o sentido um mal-entendido sistemtico e constitutivo do espao

    discursivo (MAINGUENEAU, 1989, p. 120). Logo, o sentido no estvel, mas construdo

    no intervalo de posies enunciativas.

    Interdiscurso

    O interdiscurso conceituado por Maingueneau (1989) como um conjunto de

    discursos que mantm uma relao discursiva entre si, tripartido em universo discursivo,

    campo discursivo e espao discursivo: Universo discursivo o conjunto heterogneo de

    formaes discursivas que interagem numa conjuntura. Embora finito, irrepresentvel e no

    pode ser apreendido em sua globalidade. Campo discursivo o conjunto de formaes

    discursivas em concorrncia que se delimitam numa regio do universo discursivo. O discurso

    se constitui no interior de um campo discursivo, que foi etiquetado pela tradio como campo

    discursivo religioso, poltico, literrio, etc. Espao discursivo o subconjunto do campo

    discursivo, que liga no mnimo duas formaes discursivas que se relacionam e so

    importantes para o entendimento dos discursos em questo. Como analistas, colocamos em

    relao esses subconjuntos de formaes discursivas da maneira que julgamos relevante. O

    conceito de interdiscurso o que nos possibilita relacionar a memria coletiva anlise das

    canes, j que ele permite que os dizeres que j foram ditos tenham sentido em nossas

    palavras. Alm disso, o discurso ganha sentido quando se relaciona com outros discursos. A

    hiptese do primado do interdiscurso pressupe a presena do Outro, que se d por meio da

    heterogeneidade enunciativa3.

    3 Vale ressaltar a colaborao dos estudos de Authier-Revuz sobre a heterogeneidade mostrada no discurso

    (explcita) e a heterogeneidade constitutiva do discurso (implcita). Tais noes foram renomeadas por

    Maingueneau como interdiscurso (conjunto de unidades discursivas que pertencem a discursos precedentes com

    os quais um discurso particular se relaciona implcita ou explicitamente). Destacamos, ainda, a importncia do

    dialogismo do crculo de Bakhtin e dos estudos psicanalticos de Lacan para a abordagem de Authier-Revuz.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    85

    A cena enunciativa

    Segundo Maingueneau (2008c) o conceito de cena enunciativa tripartido em cena

    englobante, cena genrica e cenografia (dependendo do ponto de vista que se assume). A cena

    englobante corresponde ao tipo de discurso. Est relacionada ao tempo e ao espao, pois

    surge da necessidade da sociedade. Ela nos situa para interpretarmos o discurso, mostrando-

    nos em nome de que ele interpreta o coenunciador e tendo em vista a finalidade de sua

    organizao. So exemplos de tipo de discurso o filosfico, o potico, o poltico, o

    publicitrio etc. Para Maingueneau (1996), a cena englobante no satisfatria para explicitar

    as atividades discursivas nas quais se encontram os sujeitos. A cena genrica corresponde ao

    gnero do discurso, que define seus prprios papis; est ligada a uma instituio discursiva,

    o contrato associado a um gnero de discurso. O domnio dos gneros ou a competncia

    genrica fundamental para a competncia discursiva. Portanto, a primeira e a segunda cenas

    supracitadas definem o quadro cnico do texto, o espao estvel no qual o enunciado tem

    sentido. So elas que permitem o conhecimento do tipo e do gnero discursivo. Alm disso,

    na enunciao, ambas se fazem essencialmente presentes. A cenografia aquela com a qual o

    coenunciador se confronta, corresponde ao contexto que a obra implica. No se trata de um

    cenrio ou de um quadro j construdo e independente no interior de um espao. Ao contrrio,

    medida que a enunciao se desenvolve, o seu dispositivo de fala vai sendo constitudo.

    Trata-se, assim, da cena de fala que o discurso pressupe para que possa ser enunciado. Esta

    cena se apoia na memria coletiva a fim de legitimar um enunciado e ao mesmo tempo ser

    legitimada por ele. Ela s se manifesta plenamente se mantiver certa distncia em relao ao

    coenunciador, para que ela mesma controle seu desenvolvimento. Desse modo, a escolha da

    cenografia no se d sem propsitos, uma vez que o discurso se desenvolve a partir dela, no

    intuito de conquistar a adeso com a instituio da cena enunciativa que o torna legtimo. Em

    nossa anlise, a cena englobante corresponde ao discurso ltero-musical; a cena genrica

    corresponde ao gnero cano e a terceira cena, a cenografia, corresponde recordao, ao

    poema romntico, dependendo de cada cano.

    Ethos discursivo

    O conceito de ethos advm da Retrica de Aristteles e foi reformulado por

    Maingueneau para a AD. Segundo Maingueneau (2008b, p. 17):

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    86

    o ethos uma noo discursiva, ele se constri atravs do discurso, no uma imagem do locutor exterior a sua fala; o ethos fundamentalmente um processo interativo de influncia sobre o outro; uma noo fundamentalmente hbrida (scio-discursiva), um comportamento socialmente avaliado, que no pode ser apreendido fora de uma situao de

    comunicao precisa, integrada ela mesma numa determinada conjuntura scio-

    histrica (MAINGUENEAU, 2008b, p. 17).

    A partir desse conceito, podemos depreender que a subjetividade manifesta no

    discurso concebida como uma voz que no pode ser dissociada do corpo que enuncia. A

    noo de tom apresentada como uma voz especfica do texto oral e escrito. Este ltimo

    tambm tm uma vocalidade que pode se manifestar em mltiplos tons, associados a um

    fiador, construdo pelo destinatrio a partir dos indicadores que a enunciao libera.

    Relacionada noo de tom, a incorporao conceituada como a mescla que ocorre entre

    uma formao discursiva e seu ethos atravs do procedimento enunciativo. Alm disso, a

    incorporao evoca a imbricao do discurso e seu modo de enunciao (conceito que trata de

    uma maneira de dizer especfica a um discurso). A voz um dos planos constitutivos da

    discursividade e o modo de enunciao obedece s mesmas restries semnticas do contedo

    do discurso; alis, frequentemente ele se torna tema do discurso.

    Em resumo, Maingueneau (2008b, p. 29) prope:

    A problemtica do ethos pede que no se reduza a interpretao dos enunciados a uma simples decodificao; alguma coisa da ordem da experincia sensvel se pe

    na comunicao verbal. As idias suscitam a adeso por meio de uma maneira de dizer que tambm uma maneira de ser. Apanhado num ethos envolvente e

    invisvel, o co-enunciador faz mais que decifrar contedos: ele participa do mundo

    configurado pela enunciao, ele acede a uma identidade de algum modo encarnada,

    permitindo ele prprio que um fiador encarne. O poder de persuaso de um discurso

    deve-se, em parte, ao fato de ele constranger o destinatrio a se identificar com o

    movimento de um corpo, seja ele esquemtico ou investido de valores

    historicamente especificados (MAINGUENEAU, 2008b, p. 29).

    Assim sendo, entendemos que o coenunciador no apenas decodifica enunciados, mas

    adere a uma identidade, pois ao incorpor-lo, o enunciador no projeta para ele um esteretipo

    qualquer. Ao contrrio, ele joga com os esteretipos para que seja definido um ethos singular.

    Este s pode ser de fato apreendido com a leitura do texto, com uma entrada progressiva no

    universo por ele configurado.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    87

    O gnero discursivo cano

    Para Maingueneau (2008f, p. 90), o gnero discursivo uma vertente tipolgica

    formal, do modo de enunciao, sendo este apenas a contrapartida do tom, voz fictcia que

    garante a presena de um corpo, ainda que o discurso seja escrito. No se trata de uma noo

    de fcil manejo, uma vez que um texto normalmente se encontra na interseo de vrios

    gneros, os quais implicam condies de ordem comunicacional e de ordem estatutria, que

    inclui a autoridade relacionada enunciao. Alm disso, as propriedades textuais de um

    gnero esto ligadas a condies de enunciao que vo desde o estatuto do enunciador at o

    ethos. A proposta do autor observar como o enunciador constri a cenografia de sua

    autoridade enunciativa e como determina para si e para os destinatrios os lugares que a

    enunciao requer para ser legtima. O gnero discursivo tomado como cena genrica que

    define seus prprios papis e est associada a uma instituio discursiva.

    Maingueneau (1989, p. 34) afirma que cada gnero presume um contrato especfico

    pelo ritual que define, por isso no podemos dizer o que queremos, em qualquer lugar, para

    qualquer indivduo, j que essa prtica presume um contrato. Para ele, h gnero quando

    vrios textos se submetem a um conjunto de coeres comuns. Segundo Maingueneau

    (2008f, p. 134), o gnero define as condies de utilizao dos textos que dele derivam: O

    fato de um poema ser destinado a ser cantado, acompanhado por um instrumento de certo tipo

    (...) tem uma incidncia radical sobre seu tamanho, seu recorte em estrofes, suas recorrncias

    etc...

    Na esteira de Maingueneau, Costa (2002, p. 107)4 caracteriza a identidade discursiva

    da cano como gnero que composto de elementos distintos: A cano um gnero

    hbrido, de carter intersemitico, pois o resultado da conjugao de dois tipos de

    linguagens, a verbal e a musical (ritmo e melodia). Para ele, o gnero cano exige trs

    competncias: a verbal, a musical e a ltero-musical (capacidade de articular as linguagens

    verbal e musical). Essa proposta vem ao encontro do que postula Maingueneau (2008f)

    quando este afirma que necessrio pensar a relao dos discursos abstratos (produo

    literria, filosfica, religiosa, pictrica, musical, etc.) com suas condies de produo de

    modo menos trivial. Para isso precisamos operar diretamente no nvel das articulaes

    fundamentais que possibilitam as unidades de interpretao. No entanto, tal aplicao ainda

    vista com dificuldade por muitos analistas.

    4 Nelson Barros da Costa professor da Universidade do Cear e pesquisador em AD francesa.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    88

    Metodologia

    Neste trabalho, analisamos o interdiscurso e a cena enunciativa a fim de apreender o

    ethos discursivo que se constitui nas canes. Para tanto, partimos do texto no qual tivemos

    contato com os fenmenos lingusticos que nos serviram de suporte. No entanto, na

    instncia do discurso que o ethos se manifesta. Considerando o carter intersemitico do

    gnero cano, em alguns momentos levamos em conta a musicalidade das canes

    selecionadas quando esse fator mostrou-se relevante, o que colaborou indubitavelmente para o

    enriquecimento da anlise, que foi feita a partir de quatro canes compostas por Ataulfo

    Alves que tratam do mesmo tema a infncia na cidade de Mira produzidas entre 1950 e

    1970. Tal contedo temtico e seu tratamento semntico nos interessaram de perto, pois, para

    ter seu discurso aceito, o enunciador se imps o tema da infncia na cidade de origem, como

    acontece recorrentemente no discurso da MPB. um tema imposto pelo campo discursivo,

    por isso est de acordo com o sistema de restries do discurso.

    Tendo em vista as anlises sobre as canes que tem em comum a temtica

    relacionada cidade de Mira, observamos que de fato o importante no o tema, mas seu

    tratamento semntico. Foi possvel perceber que cada cano tem seu modo especfico de

    abordagem temtica, pois a cidade natal e a infncia estiveram presentes de diversas maneiras

    no campo discursivo por ns apreendido. No entanto, de modo geral, as quatro canes

    apresentam em comum o tom nostlgico e saudosista do enunciador, conferindo-lhe um tom

    melanclico.

    Resultados da anlise da amostra

    A anlise da amostra seguiu os seguintes passos: temtica, anlise da superfcie

    lingustica, interdiscursividade, cenas de enunciao, ethos discursivo. As canes Meus

    tempos de criana5 e Minha infncia

    6 apresentam a infncia em primeiro plano. Nelas a

    5 Eu daria tudo que eu tivesse/ Pra voltar aos dias de criana/ Eu no sei pra qu que a gente cresce/ Se no sai

    da gente essa lembrana/ Aos domingos, missa na matriz/ Da cidadezinha onde eu nasci/ Ai, meu Deus, eu era

    to feliz/ No meu pequenino Mira/ Que saudade da professorinha/ Que me ensinou o beab/ Onde andar

    Mariazinha/ Meu primeiro amor, onde andar?/ Eu igual a toda meninada/ Quanta travessura que eu fazia/ Jogo

    de botes sobre a calada/ Eu era feliz e no sabia. (ALVES, 1956) 6 Meus dias to felizes que to longe vo/ Minha infncia inocente, calas curtas, ps no cho/ E as meninas do

    meu tempo que eu no sei onde andaro:/ Carmelita, Madalena, Isalina, Conceio, onde esto? No sei no./

    Minha infncia querida que vai muito alm, muito alm, muito alm./ Eu era um milionrio de felicidade/ Mas

    perdi os meus milhes, hoje eu vivo da saudade/ Dos primeiros companheiros que eu no sei onde andaro:/ Joo

    Sabino, Castelano, Z Rotondo, Z Ado, onde esto? No sei no./ Minha infncia querida que vai muito alm,

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    89

    cidade Mira aparece como pano de fundo. J Mira (Cidade miraiense)7 e Mira (Meu Mira

    que eu no me esqueo)8 apresentam Mira em primeiro plano. Nelas, a cidade

    personificada, chegando a ser divinizada, como vemos na tabela abaixo:

    Infncia em primeiro plano Mira em primeiro plano

    Meus tempos de criana Mira (Cidade Miraiense)

    Minha infncia Mira (Meu Mira que eu no me esqueo)

    Quanto s formaes discursivas, podemos unir Meus tempos de criana Mira

    (Cidade miraiense), como pertencentes a uma mesma FD na qual se delineia a construo de

    um sujeito catlico-burgus, o que se comprova, por exemplo, pelos versos Aos domingos,

    missa na matriz/ Da cidadezinha onde eu nasci/ Ai, meu Deus, eu era to feliz/ No meu

    pequenino Mira, de Meus tempos de criana, e Torro tranquilo e sereno/ Torro bendito

    por Deus/ Eu sinto-me to pequeno/ Pra ser um dos filhos teus, de Mira (Cidade miraiense).

    As canes Minha infncia e Mira (Meu Mira que eu no me esqueo) podem ser

    unidas por fazerem parte de outra FD na qual se constri um sujeito popular, da classe pobre,

    embora use um tom comedido e no trate do trabalho infantil no discurso, como vemos nos

    trechos Minha infncia inocente, calas curtas, ps no cho, de Minha infncia, e Quanta

    saudade no meu corao/ Do mulecote bem vadio/ Ai, que vontade que me d/ De me jogar

    naquele rio/ Na cachoeira ou no Maric, de Mira (Meu Mira que eu no me esqueo), como

    demonstra a tabela que segue:

    muito alm, muito alm./ Meus dias to felizes que to longe vo/ Que to longe vo/ Que to longe vo... (ALVES, 1962) 7 Cidade miraiense,/ Te quero com devoo/ Cidade miraiense, / Tu cabes no meu corao/ Torro tranquilo e

    sereno/ Torro bendito por Deus/ Eu sinto-me to pequeno/ Pra ser um dos filhos teus/ Perguntam por que sou

    triste/ Nos versos que j escrevi/ Sou triste porque cantando/ No posso esquecer de ti, Mira/ Torro tranquilo e

    sereno/ Torro bendito por Deus/ Eu sinto-me to pequeno/ Pra ser um dos filhos teus. (ALVES, 1962) 8 Meu Mira que eu no me esqueo/ Bero da minha gerao/ Lugar melhor eu no conheo/ Quanta saudade

    no meu corao/ Do mulecote bem vadio/ Ai, que vontade que me d/ De me jogar naquele rio/ Na cachoeira ou

    no Maric/ L na lavoura da Brana/ Como bonito recordar/ Mais parecia uma grana/ Meu velho pai a cantar,

    a cantar/ Uma cano que assim dizia:/ Maria foi passear/ Esse passeio de Maria/ Ainda faz mame chorar/ Esse passeio de Maria/ Ainda faz mame chorar/ L na fazenda dos Pereiras/ Naqueles vastos cafezais/ Havia tantas brincadeiras/ No fim da safra dos coloniais/ E no faltava um cantador/ No bom sentido a improvisar/ Umas

    quadrinhas de amor/ Para as mocinhas do lugar/ E uma sanfona apaixonada/ A noite inteira soluava/ E no

    romper da madrugada/ O sanfoneiro saudoso cantava/ Uma cano que assim dizia:/ Maria foi passear/ Esse passeio de Maria/ Ainda faz mame chorar/ Esse passeio de Maria/ Ainda faz mame chorar (ALVES, 1967)

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    90

    FD 1: sujeito catlico-burgus FD 2: sujeito popular, de classe pobre

    Meus tempos de criana Minha infncia

    Mira (Cidade Miraiense) Mira (Meu Mira que eu no me esqueo)

    Assim, comprovamos que so constitudos eth distintos, de diferentes lugares, com o

    mesmo sujeito. Considerando-se a disperso do sujeito, pode-se verificar a construo de uma

    imagem mais enquadrada aos padres (como em Meus tempos de criana e Mira Cidade

    miraiense), de um lado, e uma imagem de um sujeito mais p no cho (como em Minha

    infncia e Mira Meu Mira que eu no me esqueo), por outro lado.

    Esta oposio dos dois discursos s possvel considerando-se o tratamento dado ao

    tema. Para o leitor/ouvinte ingnuo, pode parecer que se trata da construo de um mesmo

    sujeito, que se posiciona do mesmo modo no campo discursivo. No entanto, observamos que

    o saudosismo e a melancolia ao cantar a grandeza da cidade, alm da felicidade idealizada da

    infncia, no aparecem sem motivos no discurso. Afinal, o enunciador quer conseguir adeptos

    e o faz por meio de suas escolhas lingusticas.

    Desse modo, ao observar a construo do ethos discursivo nas quatro canes

    analisadas, tendo por base os conceitos de interdiscurso e de cena enunciativa, o que pudemos

    observar foi a construo de um ethos a partir do discurso hegemnico romntico, religioso

    (cristo catlico) e de valorizao dos que lhe so prximos (amigos e famlia), marcado pelo

    saudosismo e pela nostalgia. O enunciador destaca-se, assim, como pequeno-burgus, inserido

    numa sociedade quase perfeita, na qual valoriza os Aparelhos Ideolgicos do Estado (famlia,

    igreja, etc.), bem como o seu bero, a sua origem, sem negar qualquer desses espaos ou

    question-los.

    Importa destacar o espao da interdiscursividade na construo dos discursos, pois

    esses foram marcadamente tecidos a partir das estratgias de reconhecimento do discurso do

    outro e por vezes da sua anexao, buscando nesses discursos a legitimidade do seu prprio

    dizer.

    Pela memria discursiva, podemos relacionar Meus tempos de criana ao poema

    Pobre velha msica9, de Fernando Pessoa (1888-1935), significativo poeta do Modernismo de

    Portugal, pois neste texto aparece tambm o desejo de voltar a uma infncia apresentada como

    um momento de felicidade efmero e eternamente recupervel nos momentos da fraqueza do

    9 Pobre velha msica!/ No sei porque agrado,/ Enche-se de lgrimas/ Meu olhar parado./ Recordo outro ouvir-

    te./ No sei se te ouvi/ Nessa minha infncia/ Que me lembra em ti./ Com que nsia to raiva/ Quero aquele

    outrora!/ E eu era feliz? No sei:/ Fui-o outrora agora. (PESSOA, 2009)

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    91

    presente. Alm do mais, os ltimos versos, questionando a existncia da felicidade, parecem

    dialogar entre si. Contrapondo-se o verso Eu era feliz e no sabia aos versos E eu era feliz?

    No sei:/ Fui-o outrora agora, os sujeitos enunciam o sentimento de felicidade dos tempos

    vividos percebido somente no presente. Ambos reencontram a felicidade ao recordar os

    tempos infantis.

    Desse modo, confirma-se a hiptese do primado do interdiscurso, defendido por

    Maingueneau em sua abordagem, pois um discurso no existe sozinho, mas dialogando com

    outros. Definido como um conjunto de discursos que mantm entre si uma relao discursiva,

    o interdiscurso est relacionado memria coletiva onde acontece o funcionamento do

    discurso em que os sujeitos esto inscritos.

    Podemos relacionar a cano Meus tempos de criana ao poema Infncia10

    , de Carlos

    Drummond de Andrade. Tal como Ataulfo Alves (nascido em 1909 em Mira-MG), o poeta

    Drummond (nascido em 1902 em Itabira-MG) pertenceu dcada em que ocorreu a crise da

    arte que resultou no Modernismo, movimento literrio de expressiva contribuio para a

    criao de uma identidade brasileira. Os dois artistas dividiram o mesmo tempo e o mesmo

    espao. Podemos estabelecer semelhanas quanto s histrias de vida dos dois.11

    No entanto,

    o que nos interessa o pertencimento dos dois textos a um mesmo campo discursivo, bem

    como o tratamento semntico do tema saudade da infncia.

    No poema, o enunciador organiza seu discurso a partir das lembranas e impresses

    guardadas em sua memria. O espao em que se desenvolve a fazenda da famlia, espao

    interiorano de tranquilidade e segurana proporcionado pelo ncleo familiar do menino. O

    cotidiano da famlia relatado no discurso, quando se enuncia que o pai ia para o campo

    montado a cavalo, a me cosia e zelava pelo sono do irmo mais novo, o menino lia entre as

    mangueiras e fazia comparaes entre sua histria e a histria lida. Os dois ltimos versos E

    eu no sabia que minha histria/ era mais bonita que a de Robinson Cruso finalizam o

    10

    Meu pai montava a cavalo, ia para o campo./ Minha me ficava sentada cosendo./ Meu irmo pequeno dormia. Eu sozinho menino entre mangueiras./ lia a histria de Robinson Cruso,/ comprida histria que no

    acaba mais./ No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu/ a ninar nos longes da senzala nunca se esqueceu/ chamava para o caf./ Caf preto que nem a preta velha/ caf gostoso/ caf bom./

    Minha me ficava sentada cosendo/ olhando para mim:/ - Psiu... No acorde o menino./ Para o bero onde

    pousou um mosquito./ E dava um suspiro...que fundo!/ L longe meu pai campeava/ no mato sem fim da

    fazenda./ E eu no sabia que minha histria/ era mais bonita que a de Robinson Cruso. (DRUMMOND, 2004, p. 67) 11

    Ambos deixaram suas cidades de origem e partiram de trem de ferro para novos lugares: Ataulfo mudou-se

    para o Rio de Janeiro, onde teve vrias profisses, destacando-se como prtico de farmcia e l se envolveu com

    as rodas de samba, desenvolvendo sua musicalidade; Drummond mudou-se para Belo Horizonte, onde se formou

    em Farmcia, embora no se interessasse pela profisso. Como no se adaptou vida de fazendeiro, Drummond

    mudou-se para o Rio de Janeiro em 1934 e chegou a ser Ministro da Educao e da Sade Pblica. Apesar disso,

    sobressaiu-se como poeta.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    92

    poema com a ideia de que a felicidade suficiente para que sua histria de vida seja

    considerada bela. Essa melanclica concluso se identifica com o verso Eu era feliz e no

    sabia, que finaliza a cano de Ataulfo.

    J cano Minha infncia, de 1962, pode ser conectada pela memria discursiva

    cano Meus tempos de criana, de 1956, o que prova mais uma vez o carter dialgico da

    linguagem12

    . Podemos relacionar a cano Minha infncia tambm ao poema Meus oito

    anos13

    , publicado em 1859 na obra As primaveras, de Casimiro de Abreu, expressivo poeta

    romntico brasileiro que viveu de 1837 a 1860. No toa que a expresso a infncia

    querida encontrada nos dois textos. Merece destaque tambm o verso Ps descalos,

    braos nus , encontrado na quinta estrofe do poema de Abreu, com o qual o trecho calas

    curtas, ps no cho da cano de Ataulfo dialoga.

    Minha infncia tambm parece ser relacionada ao poema Profundamente14

    , publicado

    em 1930, do poeta Manuel Bandeira, que viveu de 1886 a 1968. A comear pela sensibilidade

    herdeira do romantismo, a tristeza profunda aliada ao desencanto e melancolia, encontramos

    reminiscncias do poema de Manuel Bandeira na cano de Ataulfo Alves. Em ambos os

    textos, a infncia como retorno ao passado, novamente colocada em oposio ao presente de

    angstia.

    No poema, o eu faz duas perguntas (Onde estavam os que h pouco/ Danavam/

    Cantavam/ E riam/ Ao p das fogueiras acesas? e Minha av/ Meu av/ Totnio Rodrigues/

    12

    H, inclusive, uma gravao de Ataulfo Alves na qual as duas canes so cantadas simultaneamente, como se

    Minha infncia fosse a continuao de Meus tempos de criana. Como tratam do mesmo tema, as canes so

    facilmente conectadas pela memria discursiva. 13

    Oh! que saudades que tenho/ Da aurora da minha vida,/ Da minha infncia querida/ Que os anos no trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras/ sombra das bananeiras,/ Debaixo dos

    laranjais!/ Como so belos os dias/ Do despontar da existncia!/ Respira a alma inocncia/ Como perfumes a flor;/ O mar lago sereno,/ O cu um manto azulado,/ O mundo um sonho dourado,/ A vida um hino d'amor!/ Que aurora, que sol, que vida,/ Que noites de melodia/ Naquela doce alegria,/ Naquele ingnuo folgar!/

    O cu bordado d'estrelas,/ A terra de aromas cheia/ As ondas beijando a areia/ E a lua beijando o mar!/ Oh! dias

    da minha infncia!/ Oh! meu cu de primavera!/ Que doce a vida no era/ Nessa risonha manh!/ Em vez das

    mgoas de agora,/ Eu tinha nessas delcias/ De minha me as carcias/ E beijos de minha irm!/ Livre filho das

    montanhas,/ Eu ia bem satisfeito,/ Da camisa aberta o peito,/ Ps descalos, braos nus / Correndo pelas campinas/ A roda das cachoeiras,/ Atrs das asas ligeiras/ Das borboletas azuis!/ Naqueles tempos ditosos/ Ia

    colher as pitangas,/ Trepava a tirar as mangas,/ Brincava beira do mar;/ Rezava s Ave-Marias,/ Achava o cu

    sempre lindo./ Adormecia sorrindo/ E despertava a cantar!/ ................................/ Oh! que saudades que tenho/

    Da aurora da minha vida,/ Da minha infncia querida/ Que os anos no trazem mais!/ Que amor, que sonhos, que flores,/ Naquelas tardes fagueiras/ A sombra das bananeiras/ Debaixo dos laranjais!/ (ABREU, 2009) 14

    Quando ontem adormeci/ Na noite de So Joo/ Havia alegria e rumor/ Estrondos de bombas luzes de Bengala/ Vozes, cantigas e risos/ Ao p das fogueiras acesas./ No meio da noite despertei/ No ouvi mais vozes

    nem risos/ Apenas bales/ Passavam, errantes/ Silenciosamente/ Apenas de vez em quando/ O rudo de um

    bonde/ Cortava o silncio/ Como um tnel./ Onde estavam os que h pouco/ Danavam/ Cantavam/ E riam/ Ao

    p das fogueiras acesas?/ Estavam todos dormindo/ Estavam todos deitados/ Dormindo/ Profundamente./ */ Quando eu tinha seis anos/ No pude ver o fim da festa de So Joo/ Porque adormeci/ Hoje no ouo mais as/

    vozes daquele tempo/ Minha av/ Meu av/ Totnio Rodrigues/ Tomsia/ Rosa/ Onde esto todos eles?/ Esto todos dormindo/ Esto todos deitados/ Dormindo/ Profundamente (BANDEIRA, 2001, p. 81).

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    93

    Tomsia/ Rosa/ Onde esto todos eles?) e a resposta aparece duas vezes afirmando que eles

    esto todos deitados, dormindo profundamente, sono que faz aluso morte. Na cano, o

    eu se questiona acerca dos amigos (Carmelita, Madalena, Isalina, Conceio, onde esto?

    e Joo Sabino, Castelano, Z Rotondo, Z Ado, onde esto?) e a resposta aparece duas

    vezes: No sei no. A maneira como as palavras so empregadas j uma marca da

    interdiscursividade constitutiva do discurso.

    Tanto no poema quanto na cano so quebrados paradigmas poticos, como a forma

    fixa e a mtrica, pois os versos so livres. No poema, h dois tempos distintos: o passado,

    quando o menino tinha seis anos, facilmente percebido nos primeiros versos; e o presente, o

    hoje, marcado linguisticamente nos ltimos versos. Tambm na cano, o sujeito se desloca

    para o passado, recordando os tempos em que se considerava um milionrio de felicidade. No

    verso Mas perdi os meus milhes, h uma volta ao presente para concluir que no mais

    feliz como antes, quando diz hoje eu vivo da saudade.

    A terceira cano, Mira (Cidade miraiense), o hino oficial da cidade de Mira. Seu

    contedo temtico referente cidade e relao de devoo do sujeito com essa terra. Alm

    de dizer romanticamente que a cidade cabe em seu corao, o enunciador assume uma postura

    de humildade, ao se colocar como pequeno para ser um filho dela. Diferentemente do que

    se pode observar nas outras canes, aqui eu dialoga com a cidade, ele a personifica e se

    declara a ela, como se falasse com uma pessoa. O texto composto por quatro estrofes de

    quatro versos cada uma, sendo que a ltima a repetio da segunda. A linguagem usada pelo

    sujeito uma linguagem simples e emotiva, sem se prender ao padro formal, com diversas

    marcas explcitas da subjetividade.

    Quanto interdiscursividade, os versos te quero com devoo e torro bendito por

    Deus marcam na superfcie lingustica o dilogo com o discurso religioso, quando o

    enunciador assume uma postura devota diante da cidade e quando o homem se humilha diante

    de Deus, assumindo uma postura de humildade, simplicidade e pequenez, o que se comprova

    tambm nos versos eu sinto-me to pequeno/ pra ser um dos filhos teus. Este ltimo

    evidencia tambm o discurso familiar que constitui a cano, ao tratar a cidade como me,

    uma vez que o sujeito se posiciona como filho. O verso tu cabes no meu corao parece

    remeter-nos ao Romantismo literrio com caracterstica ufanista. O discurso deixa entrever na

    cano uma identidade catlico-burguesa, que manifesta sua emoo ao cantar a terra natal.

    Na quarta cano, Mira (Meu Mira que eu no me esqueo), o sujeito cita a saudade

    da poca em que era moleque e do lazer no rio (Maric ou cachoeira), as brincadeiras na

    fazenda dos Pereiras, bem como o cantar do pai na lavoura da Brana. A temtica a mesma

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    94

    da cano analisada anteriormente. No entanto, o tratamento semntico e a identidade que se

    constri no discurso diferem uma da outra.

    A cenografia na qual se desenvolve a cano , novamente, a recordao. Quanto ao

    espao, so citados os lugares em que aconteciam as aes recordadas no texto: o rio (na

    cachoeira ou no Maric), a lavoura da Brana, a fazenda dos Pereiras, os vastos cafezais.

    Quanto ao tempo, interessa-nos observar o modo como o enunciador se vale da cronografia:

    do verso 1 ao verso 10, o tempo utilizado o presente, pois corresponde ao agora da

    enunciao. J do verso 11 ao verso ao verso 36, o tempo verbal que predomina o pretrito,

    pois o enunciador relata fatos que eram habituais no passado e que no o so no presente.

    Importa destacar que tudo narrado a partir da perspectiva da simplicidade e da qualidade de

    vida.

    Algumas marcas da interdiscursividade so facilmente apreendidas na materialidade

    lingustica dos enunciados, tais como a comparao entre a grana e o pai a cantar, que traz

    no bojo da cano a popular expresso cantar como um passarinho, muito utilizada quando

    se tem a inteno de elogiar quem canta. De fato, ao relacionar o canto da grana ao canto do

    pai, o enunciador concede-lhe uma imagem valorativa.

    Alm disso, dos versos 13 a 18 e 31 a 36, o enunciador incorpora ao seu discurso o

    trecho de uma embolada de Ari Kerner Veiga de Castro chamada Trepa no coqueiro15

    ,

    registrada como composio de 1930. Apesar de algumas alteraes, o trecho Papai, cad

    Maria? Maria foi passe / Papai, cad Maria? Maria foi passe / Os passeio de Maria / Faz

    papai, mame chor encontrado na cano de Ataulfo Alves, numa clara relao

    interdiscursiva de incorporao. Trata-se de uma parfrase, uma tentativa de controlar em

    pontos nevrlgicos a polissemia que a lngua e o interdiscurso possibilitam (cf.

    MAINGUENEAU, 1989, p. 96), pois nenhuma parafrasagem discursivamente neutra.

    Tal incorporao parece colaborar para a construo de um ethos pautado no tom

    nostlgico, da saudade, da recordao, visando conquistar a adeso do outro. Alis, manifesta-

    se na cano a preocupao em criar uma boa imagem do pai, cantor que comparado a uma

    grana, sanfoneiro que lhe inspira saudade. Desse modo, o coenunciador, que se identifica

    com o sentimento da cano, adere ao discurso e o incorpora.

    15 Oi, trepa no coqueiro / Tira coco / Gipe, gipe, nheco, nheco / No coqueiro olir / Papai, cad Maria? / Maria foi passe / Papai, cad Maria? / Maria foi passe / Os passeio de Maria / Faz papai, mame chor / Oi, trepa no

    coqueiro / Maria moa nova / Sorteira, no tem juzo / Maria moa nova / Sorteira, no tem juzo / Os passeio de Maria / S pode d prejuzo / Oi, trepa no coqueiro / Maria sobe a ladeira / Maria pula regato / Maria sobe a ladeira / Maria pula regato / Mas com essa brincadeira / Gasta a sola do sapato / Oi, trepa no

    coqueiro (CASTRO, 2009).

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    95

    Como vimos, as canes que compem a amostra recuperam outros discursos e neles

    se constituem. Nesse sentido, destacamos que os interdiscursos perpassam as quatro canes,

    embora as anlises tenham sido feitas de maneira separada. As cenas enunciativas ocuparam

    espao marcante, pois delas o enunciador sempre se ausentava, elas surgiam ento, como

    espao do desejo e do passado. Por meio da cenografia apresentada o enunciador se coloca no

    discurso como sofredor, estratgia marcadamente romntica.

    Esse tom romntico, eivado pelo discurso hegemnico, marcadamente urbano (ainda

    que interiorano) e fortemente interdiscursivo, ao ponto de trazer as prprias canes anteriores

    para o dilogo, destacam um enunciador extremamente preocupado com o coenunciador,

    buscando a sua adeso, a sua aceitao, dentro de um momento histrico de dificuldades

    sociais muito marcadas. Esse enunciador busca a construo de uma identidade brasileira e

    dentro dela o seu reconhecimento como propalador das virtudes da terra e da valorizao do

    lugares sociais hegemnicos. Desse modo a sua construo e legitimao concorrem com a

    construo e legitimao dos seus espaos sociais inseridos no movimento nacionalista de

    ento, que se contrape aos estrangeirismos no final dos anos 1950 e 1960. H nas canes,

    portanto, a busca de uma identidade perdida.

    Consideramos que esse ethos dificilmente pode ser percebido pelo coenunciador

    comum, que at o presente valoriza as canes que trazem esse tom, pois condizem com o

    estabelecimento da ordem social garantida pela identidade e no pela diferena. Bem dentro

    da concepo do Estado Novo, a unidade se fazia na aniquilao das diferenas e a adeso a

    essa proposta a construo que percebemos ao analisar essas canes.

    Acreditamos que s foi possvel chegar a essas concluses devido ao olhar

    intersemitico e discursivo proposto pelo nosso arcabouo terico. Desse modo, ainda que

    no levssemos em conta todos os aspectos relacionados ao ritmo e melodia e buscssemos

    analisar as letras das canes como poemas, foi o fato de considerar esses discursos a partir do

    gnero cano que nos trouxe a oportunidade de reconhecer nesse enunciador a voz que

    marcou o Brasil dentro do seu momento histrico-social e que se legitima na organizao

    desse pas de ento a partir da sua ideologia dominante.

    guisa de concluso

    A partir das quatro canes de Ataulfo Alves selecionadas para anlise, pudemos

    observar que a MPB , de fato, uma espcie de catalisador do pensamento brasileiro. O samba

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    96

    fator que constitui a cultura brasileira, pois carrega histrias do povo, transmitidas de

    gerao em gerao. Atravs das canes tomadas enquanto discurso foi possvel perceber

    como se revela o ethos discursivo, como ele se constitui na cena enunciativa e sua relao

    com o interdiscurso.

    Especificamente trabalhada em cada cano, a temtica da cidade natal e da infncia

    nos levou a observar a construo de uma imagem de si projetada no discurso nos moldes do

    discurso dominante do contexto histrico em questo. O sujeito enunciador no questiona os

    Aparelhos Ideolgicos do Estado, ao contrrio, adqua seu discurso a eles. Desse modo, foi

    possvel observar a construo de um ethos pequeno-burgus resignado com o presente,

    marcado pelo tom saudosista, melanclico, nostlgico.

    O interdiscurso constituiu-se, nas anlises, como um dilogo entre os diferentes

    discursos. As canes foram tecidas a partir do reconhecimento do Outro e at mesmo de sua

    incorporao. Foi possvel comprovar, atravs dos rastros interdiscursivos, que todo discurso

    traz no bojo o Outro, pois o dialogismo inerente linguagem. As cenas de enunciao

    ocuparam espao marcante na anlise. Por recordar momentos passados, resignando-se com o

    presente, o enunciador se apresentou como sofredor. A cenografia era, ento, um espao do

    desejo, caracterstica romntica. Sua escolha no se deu sem propsitos, visto que o discurso

    se desenvolveu a partir dela, a fim de conquistar a adeso do coenunciador com a instituio

    da cena enunciativa que o legitimou.

    Nossos objetivos foram alcanados, pois nosso propsito era verificar fatores

    identitrios e culturais ligados trade conceitual interdiscurso, cenas enunciativas e ethos

    discursivo. A AD mostrou-se um importante e adequado arcabouo terico-metodolgico de

    base para a anlise empreendida, graas ao olhar intersemitico e discursivo proposto por

    Maingueneau (1989, 1996, 2008), uma vez que os trs elementos atuam concomitantemente

    na produo de sentidos.

    Quanto ao sujeito emprico Ataulfo Alves, trata-se de um resultante do processo

    histrico-social do qual participou. No obstante, por ter sido eleito para representar a grande

    massa dos negros brasileiros e ter sido convidado a se colocar do lado do poder, como a figura

    que dizia do momento de renovao social e poltica do pas, ele garantiu seu lugar na

    histria, aproveitou bem os espaos a ele atribudos e soube contornar as adversidades. Cem

    anos aps seu nascimento e quarenta anos aps sua morte, sua obra permanece viva, pois o

    samba continua sendo uma marca cultural do Brasil. A ele nossas saudaes miraienses, pois

    por ele Mira se destaca no cenrio brasileiro.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    97

    Referncias bibliogrficas

    AUTHIER-REVUZ, J. Heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva. In: Entre a

    transparncia e a opacidade: um estudo enunciativo do sentido. Porto Alegre: EDIPUCRS,

    2004, p. 11-80.

    BANDEIRA, M. Os sinos. In: Estrela da vida inteira. Rio de Janeiro: Jos Olympio, 1970. p.

    88-9.

    ______. Profundamente. In: Antologia Potica Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001, p. 81.

    CABRAL, S. Ataulfo Alves: vida e obra. So Paulo: Lazuli Editora: Companhia Editora

    Nacional, 2009.

    CARVALHO, F. C. A construo da identidade do mito da Amlia, sob a tica da Anlise Crtica do Discurso. 2004. 39 f. Monografia. Departamento de Letras e Artes, Universidade

    Federal de Viosa, Viosa, 2004.

    CASTRO, A. K. V. Trepa no coqueiro. In: Recordando a MPB. Disponvel em:

    . Acesso em: 07 ago. 2009.

    COSTA, N. B. As letras e a letra: o gnero cano na mdia literria. In: DIONISIO, A. P.;

    MACHADO, A. R.; BEZERRA M. A. (Orgs.). Gneros textuais & Ensino. Rio de Janeiro:

    Lucerna, 2002, pp.107-121.

    ______. Cano popular e ensino da lngua materna: o gnero cano nos Parmetros

    Curriculares de Lngua Portuguesa. In: Linguagem em (Dis)curso, Tubaro. 1(1), 2003, pp.9-

    36.

    DIAS, G. Cano do exlio. In: FEITOSA, S. Jornal de Poesia. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 dez. 2009.

    MAINGUENEAU, D. Novas Tendncias em Anlise do Discurso. Campinas: Pontes &

    Editora da Unicamp, 1989.

    ______. Pragmtica para o discurso literrio. So Paulo: Martins Fontes, 1996.

    ______. Anlise de textos de comunicao. 5. ed. So Paulo: Cortez, 2008a.

    ______. A propsito do ethos. In: MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana (Orgs.) Ethos

    discursivo. So Paulo: Contexto, 2008b, p. 11-29.

    ______. Cenas da enunciao. Organizao: Srio Possenti, Maria Ceclia Pres Souza-e-

    Silva. SP: Parbolas Editorial, 2008c.

    ______. Discurso e Anlise do Discurso. In: SIGNORINI, Ins (Org.). [Re]discutir texto,

    gnero e discurso. So Paulo: Parbola Editorial, 2008d, p. 135-155.

  • PERcursos Lingusticos Vitria (ES) v. 3 n. 1 p. 82-98 2011 (edio especial)

    98

    MAINGUENEAU, D. Ethos, cenografia, incorporao. In: AMOSSY, Ruth. (org.). Imagens

    de si no discurso: a construo do ethos. 1. ed. So Paulo: Contexto, 2008e.

    ______. Gnese dos discursos. Curitiba: Criar, 2008f.

    ______. Michel Pcheux: trs figuras. In: BARONAS, R. L.; KOMESU, F. Homenagem a

    Michel Pcheux: 25 anos de presena na Anlise do Discurso. Campinas, SP: Mercado de

    Letras, 2008g, p. 79-92.

    MARINHO, R. I. (Org.) MPB Compositores Ataulfo Alves. So Paulo: Editora Globo, 1997.

    MORAES, E. O ethos em uma autobiografia. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (Orgs.)

    Ethos discursivo. So Paulo: Contexto, 2008, p. 107-117.

    MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (Orgs.) Ethos discursivo. So Paulo: Contexto, 2008.

    PESSOA, F. Pobre velha msica. In: FEITOSA, S. Jornal de Poesia. Disponvel em:

    . Acesso em: 10 dez. 2009.

    TOLEDO, R. R. Ataulfo Alves: razes mineiras do Brasil pela memria musical. Dissertao

    (Mestrado em Letras rea de concentrao: Literatura Brasileira) - Juiz de Fora: Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora, 2008.