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SOBRE A NATUREZA HUMANA – DIFERENTES VISÕES 1 Vera Eloci Estrasulas Daneli 2 O dever de estar vivo é o mesmo que o dever de transformar-se em si próprio, isto é, de transformar-se no indivíduo que ele é em potencial. Erich From RESUMO O homem possui em si, por conta de sua natureza, os recursos de que necessita para levar a termo a sua potencialidade de humanização. A consciência da relação do homem com o seu em torno, a reflexão que é capaz de fazer sobre sua ação e o uso da vontade são elementos capazes de propiciar ao homem um processo permanente de desenvolvimento, e se constituem em elementos de sua própria natureza, seja por disponibilidade da razão, seja pela capacidade de perceber os próprios sentimentos. A investigação sobre a natureza humana permite melhor entendimento das formas de relação do homem com o mundo, melhor compreensão de sua forma de ser. O texto busca alcançar algumas noções qualificadoras da natureza humana, pelo viés de visões diferentes em suas origens mas que acabam por afirmar similaridades quanto à natureza humana. Palavras-chave: natureza humana, ação humana, interação. A capacidade de progresso, de evolução, é natural no homem. Tendo em si essa possibilidade, e sendo ela potencializada pela ação-reflexão, a evolução é algo a que o homem está, praticamente, obrigado por sua própria natureza. Ao agir, está também agindo sobre si, modificando-se, evoluindo. Uma vez que uma experiência tenha sido registrada pela mente do homem, em condições normais, ele não pode de lá retirá-la. Cada experiência passa, portanto, a fazer parte dele, a construí-lo. Mas a capacidade de progresso do homem seria pequena, se ele aprendesse apenas com a própria experiência. O homem aprende também com a experiência dos outros. A experiência conceitualizada transforma-se em conhecimento, e o conhecimento de um pode ser informado a outros, seja de forma intencional ou não. Informado sobre algum tipo de conhecimento, seja pela via da observação ou da comunicação, o homem é capaz de associá-lo ao seu próprio conhecimento e realizar 1 Esse texto é parte integrante da dissertação de mestrado da autora, cujo tema é Educação no trabalho: uma proposição teórica. Está constituído por extratos dos capítulos 1 e 3. 2 Professora do Curso de Secretariado Executivo Bilíngüe da Universidade de Passo Fundo, graduada em Letras pela UPF, Especialista em Gestão de Recursos Humanos e Mestre em Educação. [email protected]

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  • SOBRE A NATUREZA HUMANA DIFERENTES VISES1

    Vera Eloci Estrasulas Daneli2

    O dever de estar vivo o mesmo que o dever de transformar-se em si prprio,

    isto , de transformar-se no indivduo que ele em potencial.

    Erich From

    RESUMO

    O homem possui em si, por conta de sua natureza, os recursos de que necessita para levar a termo a sua potencialidade de humanizao. A conscincia da relao do homem com o seu em torno, a reflexo que capaz de fazer sobre sua ao e o uso da vontade so elementos capazes de propiciar ao homem um processo permanente de desenvolvimento, e se constituem em elementos de sua prpria natureza, seja por disponibilidade da razo, seja pela capacidade de perceber os prprios sentimentos. A investigao sobre a natureza humana permite melhor entendimento das formas de relao do homem com o mundo, melhor compreenso de sua forma de ser. O texto busca alcanar algumas noes qualificadoras da natureza humana, pelo vis de vises diferentes em suas origens mas que acabam por afirmar similaridades quanto natureza humana.

    Palavras-chave: natureza humana, ao humana, interao.

    A capacidade de progresso, de evoluo, natural no homem. Tendo em si essa possibilidade, e sendo ela potencializada pela ao-reflexo, a evoluo algo a que o homem est, praticamente, obrigado por sua prpria natureza. Ao agir, est tambm agindo sobre si, modificando-se, evoluindo. Uma vez que uma experincia tenha sido registrada pela mente do homem, em condies normais, ele no pode de l retir-la. Cada experincia passa, portanto, a fazer parte dele, a constru-lo.

    Mas a capacidade de progresso do homem seria pequena, se ele aprendesse apenas com a prpria experincia. O homem aprende tambm com a experincia dos outros. A experincia conceitualizada transforma-se em conhecimento, e o conhecimento de um pode ser informado a outros, seja de forma intencional ou no. Informado sobre algum tipo de conhecimento, seja pela via da observao ou da comunicao, o homem capaz de associ-lo ao seu prprio conhecimento e realizar

    1 Esse texto parte integrante da dissertao de mestrado da autora, cujo tema Educao no trabalho:

    uma proposio terica. Est constitudo por extratos dos captulos 1 e 3. 2 Professora do Curso de Secretariado Executivo Bilnge da Universidade de Passo Fundo, graduada em

    Letras pela UPF, Especialista em Gesto de Recursos Humanos e Mestre em Educao. [email protected]

  • snteses que enriquecem o seu saber, de tal sorte que o homem se constri individualmente e socialmente e, por uma capacidade ou condio exponencial dessa construo, ela se torna universalizada e historicizada, passando a ser a construo da espcie.

    Tendo a espcie humana aumentado em nmero, a proximidade dos homens entre si tornou-se uma realidade, provocando o aprofundamento das trocas de experincias, isto , de conhecimento entre eles, a tal ponto que cada homem j no mais o resultado de suas vivncias, mas das vivncias de toda a humanidade. Assim constitudo, ao homem torna-se difcil separar o que sua necessidade, a necessidade da natureza individual, da necessidade do grupo todo, ou de todos os homens. Dessa maneira, o que bom para um passa a ser bom para todos, e o que bom para todos obriga a cada um dos homens. Assim que as necessidades do homem se confundem, porque se fundem com as necessidades da humanidade. Em se confundindo as necessidades, o homem perde o foco do interesse para agir. Inquieto por natureza, porque o progresso lhe natural, o homem cria necessidades, ou aceita, como suas, necessidades de outros, para justificar sua ao. Nesse processo, o homem desenvolve-se, mas nem sempre consegue tornar plena a sua prpria natureza. Ele desenvolve a espcie e perde de vista a individualidade. Penso que a felicidade, bem maior de cada homem, situa-se no equilbrio entre espcie e indivduo. Visto apenas como espcie, rompe-se o que natural no homem: a liberdade; visto apenas como indivduo, inviabiliza-se a humanidade.

    Os gregos, verdadeiros responsveis pelo surgimento do pensamento filosfico, evidenciaram uma preocupao com a ndole humana, e legaram humanidade os primeiros e mais ricos passos no caminho do entendimento do homem, da razo e do conhecimento. Desenvolveram o conceito de alma, atrelando a esse conceito as possibilidades de desenvolvimento do homem. Assim diz Aristteles sobre a alma: em efecto, la actualidad de cada ser est naturalmente inherente em su potencialidad; es decir, em su propia materia. De todo ello resulta con evidencia que el alma es una especie de actualidad o esencia de lo que tiene la capacidad de poseer un alma. (1967, p. 843) Assim vista, a alma constitua-se na prpria essncia da natureza humana, e conhecer a prpria alma significava, portanto, conhecer-se.

    Os filsofos gregos (principalmente Scrates e seus seguidores) formularam suas idias acerca do homem e da natureza humana como um regramento de conduta que o

  • homem deveria seguir para, pautando suas aes pela justa medida3, chegar excelncia e felicidade, fim ltimo do homem. Para isso, o homem deveria conhecer-se a si mesmo, inscrio gravada no templo de Delfos e que Scrates adotou como lema. Conhece-te a ti mesmo significava conhece tua alma e, por conseguinte, tua natureza. Conhecendo-a, o homem poderia saber o que era justo e certo e desenvolver-se para a felicidade, pois na alma estavam todas as suas possibilidades.

    Da leitura de Aristteles (1967, pg. de 826 a 862), depreende-se que assim era a natureza humana, composta por matria e forma, sendo matria o corpo e forma a alma, significando ser ela a prpria vida do corpo, em todos os sentidos. Neste composto h uma intencionalidade capaz de se desenvolver. Aristteles deixa claro que a alma constituda de uma parte irracional4 e de outra parte dotada de razo. pelo impulso da alma racional que o homem desenvolve tanto a excelncia intelectual, quanto a excelncia moral, imprescindvel para alcanar a felicidade, fim ltimo do homem. Nem por natureza nem contrariamente natureza a excelncia moral engendrada em ns, mas a natureza nos d a capacidade de receb-la, e esta capacidade se aperfeioa com o hbito. (ARISTTELES, 1999, p. 35) E o hbito resultado da prtica permanente da virtude, que a busca da excelncia moral. Essa excelncia alcanada a partir do conhecer-se, conhecendo a prpria natureza pelo desvelar da alma, que s possvel pelo uso da razo. Plato (1996, P. 265), no dilogo de Scrates com Alcibades, no deixa dvidas quanto ao uso da razo para o conhecimento da alma:

    Scrates Pues bien, querido Alcibades: si el alma desea conocerse a s misma, tambin debe mirar a un alma y, sobre todo, a la parte de ella en que se encuentra su facultad propia, la inteligencia, o bien a algo que se le semeje. Alcibades Ese es igualmente mi parecer, Scrates. Scrates - Pues hay en el alma, en efecto, una parte ms divina que esta donde se encuentran el entendimiento y la razn? Alcibades No.

    3 A justa medida consistia em pautar as aes pelo meio termo, evitando os excessos e a deficincia em

    todas aquelas aes que poderiam levar o homem a ser melhor. Consideremos primeiro, ento, que a excelncia moral constituda, por natureza, de modo a ser destruda pela deficincia e pelo excesso, tal como vemos acontecer com o vigor e a sade. (ARISTTELES, 1999). No havia justa medida, no entanto, no que no fosse considerado moralmente correto. O que no era virtude, no era objeto da justa medida. 4 Conforme Aristteles (1999) na parte irracional da alma encontra-se uma subdiviso comum a todos os

    seres vivos, de natureza vegetativa, responsvel pela nutrio e pelo crescimento, portanto impulso de vida fsica. Embora essa parte da alma esteja presente tambm nas criaturas plenamente desenvolvidas, no faz parte da excelncia humana.

  • Scrates Es que esta parte parece realmente divina, y quien la mira y descubre en ella todo ese carcter sobrehumano, un dios y una inteligencia, bien puede decirse que tanto mejor se conoce a s mismo. Alcibades As es.(p. 265)

    Assim, os gregos viam a natureza humana como um composto de corpo e alma e tinham na alma racional, portanto na razo, o meio para o desenvolvimento do homem. O homem, para atingir a excelncia, deveria ser capaz de refletir e usar a razo que, dominando os sentimentos, desenvolveria aqueles que fossem capazes de torn-lo bom e justo.5

    Com a conquista da Grcia pelos romanos e, mais tarde, com a disseminao do cristianismo, o racionalismo grego, e com ele a preocupao com a natureza humana,

    ficou esquecida at o incio do Renascimento na Itlia, no sculo XV, embora as universidades medievais, notadamente a de Paris, com Toms de Aquino e seus discpulos, tenham adotado o pensamento grego, especialmente Plato e Aristteles. No entanto, conforme Rossato (1998), nesse perodo a filosofia grega ficou restrita universidade e estrutura de pensamento da escolstica, no tendo, com isso, repercutido sobre pensadores fora da influncia do pensamento da Igreja Catlica.

    No sculo XVI, o Renascimento espalhou-se por toda a Europa, trazendo, junto com as artes, a arquitetura e a literatura clssicas, a retomada das humanidades. Dos humanistas desse perodo, destaco Rousseau que, dois mil anos depois do racionalismo grego, de certa forma retoma o Conhece-te a ti mesmo de Scrates, porm num quadro referencial diverso deste. Para Scrates, como j referi anteriormente, a razo era o ducto que conduzia o homem para dentro de si mesmo, para o conhecimento da prpria alma. Para Rousseau, a razo conduz o homem para fora de si. Por outro lado, o conhecimento do esprito6, da essncia humana, dever de qualquer homem, acontece pelo caminho dos sentimentos.

    5 A definio do que bom e do que justo para os gregos era peculiar quela poca, diferente, portanto

    das definies atuais, impregnadas pelos valores do cristianismo. Bom e justo, para os gregos, era considerado o que fosse virtude e dependia do conhecimento, que era legtimo somente para o homem livre. Pode-se verificar a clareza desse conceito em Plato, no final de Alcebades. (Platon, 1996, p.266-267). 6 Rousseau bipolarizava o homem em fsico e esprito, e ao esprito atribua a fora vital do homem. No

    esprito localizavam-se as emoes, os sentimentos, as virtudes e os defeitos. Rousseau era cristo protestante, e provavelmente essa condio tenha tido influncia sobre o que referia como esprito, embora a viso de esprito como um atributo humano recebido da divindade seja mais subliminar do que pretenderia nossa necessidade de definio. Pode-se deduzir isso desenvolvendo algumas associaes: para Rousseau, o livre arbtrio e o sentido de perfeio acompanham o homem desde suas origens; claramente, em vrias passagens, ele coloca no esprito a caracterstica humana de ser livre e de se

  • Adotando o paradigma da natureza, Rousseau evidencia sua desiluso com as transformaes a que as sociedades civilizadas conduziram o homem que, pelo culto dos refinamentos e pela cultura intelectual, perde a conscincia e permite que se degenerem as exigncias morais mais profundas da natureza humana. Conforme sua obra, Rousseau no pretende o retorno do homem vida selvagem, mas o retorno conscincia e moral humana, e faz isso evidenciando o quanto o homem, mais prximo de seu estado de natureza e, portanto, livre em muito da influncia que a vida civilizada e a cultura tiveram sobre ele, mais feliz e melhor.

    Para Rousseau (1993), o homem, no seu estado de natureza, est muito prximo dos demais animais, distinguindo-se deles apenas pelo livre arbtrio e pela capacidade de aperfeioar-se,

    faculdade que, com o auxlio das circunstncias, desenvolve sucessivamente todas as outras e se encontra, entre ns, tanto na espcie quanto no indivduo; o animal, pelo contrrio, ao fim de alguns meses, o que ser por toda a vida, e sua espcie, ao fim de milhares de anos, o que era no primeiro ano destes milhares.(p. 243

    Essa diferena evolutiva entre a espcie humana e as demais espcies animais , portanto, atribuda qualidade de agente livre possuda pelo homem, que lhe d a possibilidade de concordar ou discordar, de se submeter ou resistir, de querer e no querer, de desejar e temer. O esprito se evidencia na conscincia da liberdade: (...) a fsica de certo modo explica o mecanismo dos sentidos e a formao das idias, mas no poder de querer, ou antes, de escolher e no sentimento deste poder s se encontram atos puramente espirituais que de modo algum sero explicados pelas leis da mecnica. (ROUSSEAU, 1993, p. 243) Ao esprito humano, portanto, pertence a evoluo, a busca pelo aperfeioamento que, embora tenha ocorrncia individual, atinge a toda a espcie, na medida em que o progresso (ou o retrocesso) de um reflete em seus pares, seja por influncia direta ou indireta.7

    aperfeioar; tambm diz que para entender a verdadeira natureza do homem, seria necessrio separar o que a vontade divina fez daquilo que a arte humana pretendeu fazer (1993, p.231). possvel deduzir-se, assim, que o esprito est relacionado idia de ligao com Deus. 7 Rousseau atribua evoluo do homem e ao progresso a razo de todos os males que afligiam a

    humanidade, j no seu tempo. No Discurso sobre a Desigualdade, no percurso da anlise que faz sobre a natureza humana, desabafa: Seria triste para ns vermo-nos forados a convir que seja essa faculdade (de aperfeioar-se), distintiva e quase ilimitada, a fonte de todos os males do homem; que seja ela que, com o

  • Hegel um pensador humanista dialtico, v na Razo todas as possibilidades de relao do homem consigo e com o mundo. Enquanto pensador racional dialtico, est em oposio a Rousseau, mas tambm Hegel (1995) v o homem como fsico e espiritual, identifica no homem esta capacidade de aperfeioar-se, e a localiza no esprito:

    As mudanas na natureza, apesar de serem infinitamente diversas, mostram apenas um crculo que sempre se repete; na natureza, nada de novo acontece debaixo do sol e, por isso, o jogo multiforme das suas configuraes traz consigo o tdio. S nas transformaes que acontecem no terreno espiritual surge algo de novo. Esta manifestao no espiritual permite ver no homem uma determinao diferente da que tem lugar nas coisas simplesmente naturais (...) a saber, uma efetiva capacidade de modificao e, claro est, como se disse, para o melhor e mais perfeito um impulso de perfectibilidade. (p. 127)

    Hegel v a transformao do que natural no homem como contingencial: entre a natureza em si determinada do germe e a adequao da existncia a essa mesma natureza, nada se pode introduzir (1995, p.129), mas o mesmo no acontece com o esprito: Mas no esprito diferente. A passagem da sua determinao sua realizao mediada pela conscincia e pela vontade.(1995, p. 129) . A evoluo e o desenvolvimento humano no so pacficos e tranqilos, conforme nos faz ver Hegel: O desenvolvimento no o simples produzir incuo e pacfico, como o da vida orgnica, mas constitui o duro e importuno trabalho contra si mesmo (1995, p.129), e ainda: o princpio do desenvolvimento implica que se encontre subjacente uma determinao interna, um pressuposto presente em si, que assim se traz existncia.(HEGEL, 1995, p.128) Esse pressuposto que impulsiona o homem para a progresso tem sempre uma mesma direo: a perfectibilidade.

    O homem possui uma natureza enquanto indivduo, que se desdobra em uma natureza enquanto espcie. Individualmente, a natureza humana se manifesta no exerccio da liberdade, pelo exerccio da vontade. O homem s ser efetivamente livre se quiser s-lo, e para isso precisa disciplinar a vontade, equilibrando razo e emoo. Coletivamente, a natureza humana se manifesta na prxis que leva ao progresso,

    tempo, o tira dessa condio original na qual passaria dias tranqilos e inocentes; que seja ela que, fazendo com que atravs dos sculos desabrochem suas luzes e erros, seus vcios e virtudes, o torna com o tempo o tirano de si mesmo e da natureza. (1993, p.243)

  • evoluo. No significa que individualmente no acontea o progresso, a evoluo, e que coletivamente no possa acontecer o exerccio da vontade.

    Rousseau tambm associou o entendimento humano s paixes: pela sua atividade (das paixes) que nossa razo se aperfeioa. (1983, p. 244). Segundo ele, o conhecimento se constri a partir do estado de tenso entre o saber e o no saber. O homem busca conhecimento quando, diante de uma necessidade e a partir de um entendimento anterior, sabe que no sabe e que precisa e quer saber. S procuramos conhecer porque desejamos usufruir e impossvel conceber por que aquele que no tem desejos ou temores dar-se-ia a pena de raciocinar.(ROUSSEAU, 1983, p. 244). Ainda, As paixes, por sua vez, encontram sua origem em nossas necessidades e seu progresso em nossos conhecimentos, pois s se pode desejar ou temer as coisas segundo as idias que delas se possa fazer.(1983, p. 244). Portanto, a paixo (ou vontade) outro aspecto da natureza do homem capaz de lev-lo ao progresso, ao lado da razo.

    Para Rousseau (1983), os sentimentos vm antes da razo, e enquanto a razo responsvel por levar o homem para fora de si, os sentimentos o remetem para o seu interior, para a busca da virtuosidade, indicando-lhe as possibilidades (especialmente pela piedade) de unidade com seus iguais (sentimento, mais do que idia, de espcie) e possibilitando ao homem alcanar a conscincia da liberdade, verdadeiro fim do esprito humano.

    Oh! virtude, cincia sublime das almas simples, sero necessrios, ento, tanta pena e tanto aparato para conhecer-te? Teus princpios no esto gravados em todos os coraes? E no bastar, para aprender tuas leis, voltar-se sobre si mesmo e ouvir a voz da conscincia no silncio das paixes? (ROUSSEAU, 1983, p. 352)

    Voltar-se sobre si mesmo, conhecer as prprias virtudes e desenvolver-se moralmente. Essas so as possibilidades que aproximariam o homem do seu estado de natureza. Para Rousseau, o processo de civilizao distanciou o homem de si mesmo, voltando-o para fora de si. A cultura retira o homem da barbrie do selvagem e o transporta para a barbrie da civilizao, pela perda da conscincia natural, que pura e campo frtil para as virtudes.

    Hegel desenvolveu o conceito de razo histrica (unificadora). Cada homem individual e tambm toda a humanidade. A histria faz a mediao entre unidade e multiplicidade. O homem uma subjetividade auto-ativa que, ao construir-se

  • (desenvolver-se), constri a humanidade, o universal. O universal torna-se realidade efetiva a partir do particular, do individual. (...) o activo sempre individual: no agir, eu sou eu; o meu fim que tento cumprir. O interesse pode, sem dvida, ser um interesse inteiramente particular, mas da no se segue que seja contrrio ao universal. (HEGEL, 1995, p. 76). E Hegel tambm percebe o homem como integrador de potncias que so responsveis pela construo da humanidade universal: primeiro, est a razo. atravs dela que possvel perceber a realidade; depois, h que destacar a paixo (vontade), mbile da ao humana.

    A imediata viso da histria, porm, mostra-nos as aes dos homens, que emanam das suas necessidades e paixes, dos seus interesses, das suas representaes e dos fins que subseqentemente para si forjam, dos seus caracteres e talentos; e, claro est, de tal modo que neste espetculo de atividade surgem como mbiles apenas as necessidades, as paixes, os interesses. (HEGEL, 1995, p. 72)

    Hegel, ao mesmo tempo em que no concebe a ao humana desprovida de paixo, de um interesse que a legitima, no desconhece que a palavra paixo traz em si conotaes (e o impulso da paixo traz conseqncias) que podem ser negativas, e que o fazer humano assim conduzido pode estar revestido de egosmo. Por isso, remete a paixo ao carter (e moral), e a entende como a determinidade particular do carter, explicando:

    Dizemos, portanto, que nada se produziu sem o interesse daqueles cuja atividade cooperou; e se chamamos paixo a um interesse, na medida em que a individualidade inteira se entrega, com postergao de todos os demais interesses e fins mltiplos que se tenham e possam ter, se fixa num objeto com todos os veios inerentes do querer e concentra neste fim todas as suas necessidades e foras, devemos ento dizer no geral que nada de grande se realizou no mundo sem paixo. A paixo o lado subjetivo e, portanto, formal, da energia do querer e da atividade cujo contedo ou fim ainda indeterminado tanto na prpria convico como no prprio discernimento e conscincia. Interessa, ento, que contedo tem a minha convico, e igualmente que fim possui a paixo, se um ou outro de natureza verdadeira. (1995, p. 77)

    Com isso, Hegel remete a ao humana ao campo da tica, da ao reflexiva, pensada, racional. Ele deixa claro que o desenvolvimento, a progresso do esprito

  • humano, no deve ser unicamente quantitativo, o que teria como resultado somente a variao, alm de ser evidncia de ausncia de pensamento. Mas o quantitativo se quisermos falar com preciso do progresso justamente o desprovido de pensamento. O fim que importa alcanar deve ser conhecido. Na sua atividade, o esprito , em geral, tal que as suas produes e transformaes se devem conceber e conhecer como alteraes qualitativas.(1995, p. 128) Portanto, o que o desenvolvimento deve ter como resultado no so somente acumulaes, sempre mais conhecimentos, uma cultura mais refinada somente comparativos como estes (HEGEL, 1995, p. 128), mas a prpria elevao do esprito para a realizao do conceito de liberdade, que a sua essncia. Assim Hegel estabelece uma das mais importantes relaes humanas para o mundo moderno: a relao do homem com a sua ao (a atividade do esprito e suas produes), e a conseqente construo constante do prprio homem. Embora com interesses diferentes, tanto Rousseau quanto Hegel acabam por afirmar similaridades, quando atribuem o desenvolvimento ao esprito, quando o situam no indivduo, embora universalizado, e no na espcie, quando associam a atividade do esprito s paixes ou vontade e, principalmente, quando definem, como fio condutor do desenvolvimento humano, o conceito de liberdade e um impulso para a perfeio. Para o interesse do meu estudo, essas vises de origens to diversas e, ao mesmo tempo, convergentes nesses aspectos, so importantes enquanto fundamentam aquilo que busco propor: que o homem um ser que se desenvolve pela ao reflexiva. Como considero que essa ao reflexiva inclui o trabalho humano, acho importante, ainda, ver em Marx a questo da prxis. Conforme Gorender (in MARX, 1983, p.7 a 73) Marx foi um pensador que transitou igualmente pela filosofia, pela sociologia, pela antropologia, pela economia e

    pela poltica. Hegeliano de incio, acolheu as idias de Feuerbach que o ajudaram a se libertar de Hegel e a se definir pelo materialismo. A influncia e o gosto pela economia poltica vieram com Engels, posteriormente parceiro no desenvolvimento das teorias do comunismo e companheiro de produo, crtico e amigo por toda a vida. Com relao natureza do homem, Marx no tece muitas consideraes, alm daquelas que esto relacionadas ao trabalho ou ao modo de produo humanos. mesmo pela produo que ele marca as diferenas evolutivas entre o homem e os demais animais:

  • Pode-se distinguir os homens dos demais animais pela conscincia, pela religio e por tudo o mais que se queira. Eles mesmos comeam a se distinguir dos animais desde que principiam a produzir os seus meios de existncia, um passo adiante e conseqncia de sua organizao corporal. Ao produzir os seus meios de existncia, os homens produzem indiretamente a sua prpria vida material. (MARX, 1996, p. 45,grifo do autor)

    A prxis humana , para Marx, um processo dialtico que ocorre entre o homem e a natureza, e pelo qual os homens produzem a sua existncia e, alm disso e mais importante, significa um modo de vida determinado (MARX,1996, p. 46). Assumindo o materialismo dialtico, Marx elimina o esprito como recurso de interao do homem com a realidade, assim como a existncia de uma conscincia autnoma. Segundo ele, assim como a religio, a metafsica e todo o resto da ideologia, a conscincia no tem autonomia.

    Elas no tm histria, no tm desenvolvimento; so ao contrrio, os homens que, ao desenvolverem a sua produo material e suas relaes materiais, transformam, com essa realidade que lhes prpria, o seu pensamento e os produtos do seu pensamento. No a conscincia que determina a vida, mas a vida que determina a conscincia. (MARX, 1996, p. 51)

    Esse colocar o homem em relao ao seu processo de produo constitui uma das bases do materialismo histrico, forma de pensamento que identifica a prxis, aplicada ao desenvolvimento das foras produtivas, como o motor da histria.

    Ao falar do trabalho e da relao do homem com o trabalho, Marx (1983) resgata o pensamento hegeliano da construo do homem pela sua ao (para Hegel, ao do esprito), e elucida esse processo de forma brilhante. Comea por definir que o trabalho um processo que ocorre entre o homem e a natureza. Em contato com a natureza, o homem usa de todos os seus recursos para regul-la e dela apropriar-se, tornando-a til para a sua vida. Nesse processo, o homem regula tambm a sua prpria natureza, de forma que ao modificar a natureza externa, modifica-se tambm, porque modifica sua prpria natureza. Ele desenvolve as potncias nela adormecidas e sujeita o jogo de suas foras a seu prprio domnio. (MARX, 1983, p.149)

    Marx define o trabalho de maneira tal que o caracteriza como exclusividade humana e orientado a um fim:

  • Uma aranha executa operaes semelhantes s do tecelo, e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construo dos favos de suas colmeias. Mas o que distingue, de antemo, o pior arquiteto da melhor abelha que ele construiu o favo em sua cabea, antes de constru-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtm-se um resultado que j no incio deste existiu na imaginao do trabalhador, e portanto idealmente. (1983, p. 150-1)

    O trabalho visto, assim, como prxis que possibilita a humanizao do homem, porquanto provoca o desenvolvimento da natureza humana, pressupe um projeto. Primeiro ele pensado, a idia do objeto a ser construdo se estrutura na mente humana, depois ocorre o processo de construo propriamente dito. Fora dessa viso, a relao homem-trabalho seria frustrante em termos de humanizao. Pela viso dos pensadores objeto de estudo nesse texto fica claro que a natureza humana oferece os recursos para o desenvolvimento do homem. A evoluo toda da civilizao se deu a partir desse incessante fazer humano, provocado pelo impulso de superao do homem que, ao inquiet-lo, provoca a sua ao sobre o meio ou natureza externa, modificando-a a fim de atender s suas necessidades, sejam estas reais ou construdas pela prpria inquietude humana. E essa ao do homem sobre o seu em torno chama-se trabalho.

    REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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    HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich. A Razo na Histria Introduo Filosofia da Histria Universal. Lisboa: Edies 70, 1995.

    MARX, Karl. O Capital: crtica da economia poltica. So Paulo: Abril Cultural, 1983. v.1.

    PLATO. Obras Completas. Alcebiades da la naturaleza del hombre. Madrid:Aguilar. 1996.

    ROSSATO, Ricardo. Universidade: nove sculos de histria. Passo Fundo: Ediupf, 1998.