1.6 componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/maria...

21
36 RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO No Brasil, desde o século XIX, já aparecia a preocupação com a proteção da qualidade dos rios e nascentes. Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em 1817 editou normas de proteção dos mananciais no Rio de Janeiro, com o intuito de preservar a qualidade e volume de água disponíveis naquela época. Essa regulamentação proibia a der- rubada de árvores no entorno de algumas nascentes de rios como o Carioca e o Paineiras, pois a falta d’água potável já se anunciava, com o esgotamento da água do aqueduto da Carioca. Dean (1996) refere-se ao cientista Loefgren 3 , que, ao estudar os ecossistemas brasileiros, concluiu que as florestas eram essenciais para o equilíbrio das condições climáticas e ao regime de chuvas, tomando, então, a iniciativa de fazer uma campanha por um código nacional em defesa das florestas. Loefgren defendia que “um serviço nacional de florestas poderia garantir a conservação de florestas necessárias a proteger os cursos d’água, solos e microclimas...”(ibid, p.248). 1.6 Componentes físicos de um curso d’água Os componentes físicos dos cursos d’água incluem a vegetação das margens, o leito (va- zante, menor e maior), com suas características de largura e profundidade, poços ou de- pressões, soleiras (riffles), meandros, planícies de inundação ou várzeas. Esses elementos desempenham papéis específicos no ecossistema fluvial, incluindo transporte de água e de sedimentos, armazenagem ou transbordamento das águas de enchentes, além de abrigarem habitats terrestres e aquáticos da fauna e da flora (RILEY, op.cit.). O leito da vazante é por onde correm as águas de estiagem que acompanham a linha de maior profundidade do leito, ou talvegue. O leito menor, bem delimitado pelos diques das margens, tem fluxo mais constante e não possibilita o crescimento da vegetação. O leito maior ou leito de cheia e a zona ripária têm a função de reter e armazenar as cheias, fazer a filtragem, retenção e dissipação de sedimentos e nutrientes (CARDOSO, 2003). Cardoso (op. cit.) esclarece que a água em deslocamento atua como agente intempérico que ocasiona modificações nas rochas aflorantes, alterações de ordem física (desagregação) e química (decomposição), e, ao transportar e depositar os sedimentos,produz a configuração morfológica do canal, dependendo das características do solo e da velocidade do fluxo. O autor apresenta os padrões morfológicos produzidos como retilíneos, meandrantes ou anas- tomosados, que assim se caracterizam: 3 Loefgren, cientista sueco que se radicou no Brasil na segunda metade do séc. XIX, contratado para trabalhar junto à Comissão Geológica e Geográfica nos assuntos de meteorologia .

Upload: vudang

Post on 18-Jan-2019

219 views

Category:

Documents


0 download

TRANSCRIPT

Page 1: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

36

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

No Brasil, desde o século XIX, já aparecia a preocupação com a proteção da qualidade dos

rios e nascentes. Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em 1817

editou normas de proteção dos mananciais no Rio de Janeiro, com o intuito de preservar a

qualidade e volume de água disponíveis naquela época. Essa regulamentação proibia a der-

rubada de árvores no entorno de algumas nascentes de rios como o Carioca e o Paineiras,

pois a falta d’água potável já se anunciava, com o esgotamento da água do aqueduto da

Carioca.

Dean (1996) refere-se ao cientista Loefgren3, que, ao estudar os ecossistemas brasileiros,

concluiu que as fl orestas eram essenciais para o equilíbrio das condições climáticas e ao

regime de chuvas, tomando, então, a iniciativa de fazer uma campanha por um código

nacional em defesa das fl orestas. Loefgren defendia que “um serviço nacional de fl orestas

poderia garantir a conservação de fl orestas necessárias a proteger os cursos d’água, solos e

microclimas...”(ibid, p.248).

1.6 Componentes físicos de um curso d’água

Os componentes físicos dos cursos d’água incluem a vegetação das margens, o leito (va-

zante, menor e maior), com suas características de largura e profundidade, poços ou de-

pressões, soleiras (riffl es), meandros, planícies de inundação ou várzeas. Esses elementos

desempenham papéis específi cos no ecossistema fl uvial, incluindo transporte de água e de

sedimentos, armazenagem ou transbordamento das águas de enchentes, além de abrigarem

habitats terrestres e aquáticos da fauna e da fl ora (RILEY, op.cit.).

O leito da vazante é por onde correm as águas de estiagem que acompanham a linha de

maior profundidade do leito, ou talvegue. O leito menor, bem delimitado pelos diques das

margens, tem fl uxo mais constante e não possibilita o crescimento da vegetação. O leito

maior ou leito de cheia e a zona ripária têm a função de reter e armazenar as cheias, fazer a

fi ltragem, retenção e dissipação de sedimentos e nutrientes (CARDOSO, 2003).

Cardoso (op. cit.) esclarece que a água em deslocamento atua como agente intempérico que

ocasiona modifi cações nas rochas afl orantes, alterações de ordem física (desagregação) e

química (decomposição), e, ao transportar e depositar os sedimentos,produz a confi guração

morfológica do canal, dependendo das características do solo e da velocidade do fl uxo. O

autor apresenta os padrões morfológicos produzidos como retilíneos, meandrantes ou anas-

tomosados, que assim se caracterizam:

3 Loefgren, cientista sueco que se radicou no Brasil na segunda metade do séc. XIX, contratado para trabalhar junto à Comissão Geológica e Geográfi ca nos assuntos de meteorologia .

Page 2: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

37

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Retilíneos – de discreta sinuosidade, porém de talvegue sinuoso em função da

deposição de sedimentos nas barras laterais dispostas alternadamente em cada

margem; apresentam baixo volume de carga no fundo, alto volume de carga no

fundo e declividade baixa.

Anastomosados - rasos, apresentam velocidade no transporte de sedimentos e de-

rivações laterais; são característicos de regiões de clima úmido, apresentam siste-

ma de canais estáveis e interconectados, conformando ilhas de forma irregular.

Meandrantes – sinuosos e assimétricos nos trechos curvilíneos; as margens côn-

cavas são profundas e abruptas e as convexas apresentam superfície ascendente;

apresentam em geral um único canal transbordante na época de cheias.

Saraiva (op. cit.) enfatiza a dimensão temporal como muito signifi cativa para os sistemas

fl uviais, que estão em contínua mutação própria de seu equilíbrio dinâmico e podem entrar

em ruptura sob a ação antrópica, ou por eventos climáticos ou geológicos de longo prazo.

Os planos de recuperação de rios se propõem a restabelecer as funções e a dinâmica acima

apresentadas, de acordo com as limitações advindas do desenvolvimento, principalmente do

meio urbano.

A fi gura a seguir apresenta os componentes físicos de um córrego e a situação desempenha-

da pela vegetação ripária, como um dos componentes que integram o sistema fl uvial.

Page 3: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

38

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Figura 04: Componentes físicas de um córregoFonte: Riley (1998, p. 29), modifi cado pela autora.

1.7 O rio como fonte de recursos hídricos

[...] a água é um dos elementos mais problemáticos, contraditórios e complexos da na-tureza e da edifi cação. Indispensável e ameaça – e, por isso e desde sempre, um desafi o a seu controle, utilização e usufruto (LAMAS, 2005, p. 50).

Elemento natural de combinação físico-química, duas moléculas de hidrogênio mais uma de

oxigênio, a água constitui-se em recurso hídrico, um bem de valor econômico (REBOUÇAS,

op.cit.), indispensável à manutenção da vida na terra, à saúde humana, à fauna e fl ora, ao

desenvolvimento da indústria, agricultura, pecuária, energia, transporte e também à dilui-

ção de poluentes. Trata-se de um componente de seres vivos, meio de vida de várias espécies

vegetais e animais, elemento representativo de valores socioculturais e fator de produção de

bens de consumo e produtos agrícolas (BASSOI, GUAZELLI, 2004).

De acordo com a classifi cação mundial das águas, água doce é aquela que apresenta teor

de sólidos totais dissolvidos (STD) inferior a mil mg/l. A água do planeta é 97,5% salgada,

distribuída entre mares e oceanos; 2,493%, doce, de difícil acesso, presente em geleiras ou

Page 4: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

39

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

aqüíferos, sendo que apenas 0,007% da água doce é acessível para o consumo humano, em

rios, córregos e lagos (SABESP)4.

Essa distribuição se processa dinamicamente num sistema, anteriormente mencionado, de-nominado ciclo hidrológico, que apresenta a água como um recurso renovável; ou seja, toda a água que cai sobre a superfície terrestre tem de ir para algum lugar, e seu volume total permanece constante, apenas sofrendo alterações de qualidade e distribuição. A água se precipita em forma de chuva, neve ou se transforma em camada de gelo ou geleiras nas re-giões de clima frio. Parte da água precipitada infi ltra-se, percolando pela superfície da terra, abastecendo os lençóis freáticos ou abastecendo a vegetação; parte retorna aos oceanos, através dos rios, lagos e lençóis subterrâneos, e outra parte evapora. Da água absorvida pelos animais e plantas, uma parcela retorna novamente à atmosfera por meio da transpiração das folhas e dos poros animais.

O índice pluviométrico anual sobre a superfície da terra é da ordem de 690 mm, distribuídos, no entanto, heterogeneamente; as áreas de deserto apresentam chuvas esporádicas, e certas regiões mais úmidas do planeta podem apresentar índices de até 10000 mm anuais. As fl o-restas infl uem na elevação do índice de precipitação das águas por meio da evapotranspira-ção (HOUGH, 1995), que é a transformação da água, de estado líquido ou sólido, em vapor, pela energia solar que atinge a superfície da terra e pela transpiração de organismos vivos. O

vapor sobe à atmosfera, onde esfria progressivamente, dando origem às nuvens (REBOUÇAS,

op. cit.).

4 Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, disponível em www.sabesp.com.br, acesso em 10 de outubro de 2007.

Figura 05: O Ciclo HidrológicoFonte: MACBROOM (1998, p.7) apud LECCESE, et al. ( 2004, p. 19).

Page 5: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

40

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Como ressaltado anteriormente, a água está associada à história do desenvolvimento da

civilização. Os exemplos clássicos da Mesopotâmia e do Egito e da civilização greco-romana

merecem ser citados como referências, pois, com a oportunidade de sobreviver com água

disponível, inclusive favorecendo a agricultura e a criação de animais, a população deixava

de ser nômade e se fi xava. Desde 4mil a.C., a posse da água signifi cava poder, como é o caso

da Mesopotâmia, que controlava os rios Tigre e Eufrates.

Porém, sempre tida, por séculos, como um recurso inesgotável, a água vem sendo desperdi-

çada pela sociedade na agricultura, indústria, uso doméstico e até pelos órgãos responsáveis

pela distribuição, que, por falta de manutenção na rede, perdem água tratada em vazamen-

tos na tubulação de distribuição. E há também os lençóis freáticos rebaixados para dar lugar

aos subsolos de edifícios – a água é então bombeada e despejada nas bocas de lobo, que

compõem o sistema de drenagem das vias públicas.

Somente nas últimas cinco décadas é que vem emergindo o questionamento acerca da

ameaça de escassez da água. “Escassez de água pode atingir 1 bilhão de pessoas, prevê ONU”

– segundo a manchete do jornal O Estado de São Paulo, do dia 7 de abril de 2007.

O Brasil detém 11,6% da água doce superfi cial do mundo, sendo que, desta parcela, 70%

localizam-se na Amazônia, sob ameaça, na medida em que o desmatamento se alastra nessa

região.

A disponibilidade per capita anual de água no mundo, segundo Squizato (2006), caiu 43%

entre 1970 e 2000, sendo que essa redução não afeta apenas residências e indústrias, que

respondem respectivamente, por 8% e 22% do consumo de água doce no mundo, mas

também a área rural. O autor chama atenção para o fato de que, no Brasil, avançou-se no

tratamento da água, o que não se verifi ca em relação ao tratamento de esgoto.

As populações que se adensam em grandes cidades estão expostas à escassez quantitativa e

qualitativa das águas. O saneamento urbano defi ciente no Brasil contribui para o lançamen-

to de esgoto sem tratamento e deposição de lixo nos rios, que recebem ainda a contribuição

de insumos químicos intensivamente empregados em áreas de desenvolvimento agrícola. A

escassez qualitativa representa grave ameaça ao ambiente, à saúde pública e, em conseqü-

ência, à economia (REBOUÇAS, op. cit.).

Segundo Dowbor (2005), atualmente, a água poluída e o saneamento inadequado nos países

em desenvolvimento ocasionam 80% das doenças e 33% das mortes, atingindo particular-

mente a população infantil e onerando o sistema de saúde.

O relatório do Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Brasil, de novembro de 2006,

aponta como crítica a situação de escassez da água e da inadequação das condições de

Page 6: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

41

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

saneamento em todos os continentes, e conclui que a crise “é, acima de tudo, uma crise dos

pobres”.

Os usos da água são classifi cados como consuntivos5 e não consuntivos (Vargas, 1999). A

demanda consuntiva é aquela em que se dá perda entre o volume derivado e o que retorna

ao curso d’água; e a não consuntiva é a que não implica em perda. Os usos consuntivos dos

recursos hídricos ocorrem na atividade industrial, abastecimento público das áreas urbanas,

irrigação, dessentação de animais, mineração, comércio e serviços. Os não consuntivos se

dão na diluição, transporte e assimilação de esgotos, preservação de fauna e fl ora, geração

hidrelétrica, aqüicultura, recreação, lazer, turismo, pesca intensiva e navegação.

Como diluidor de esgoto, o uso não consuntivo altera a qualidade da água, e o uso consun-

tivo, com a fi nalidade de gerador de energia, em represas, altera a quantidade de recursos

hídricos a jusante. São tipos de usos que ocasionam alterações na condição de desenvolvi-

mento socioeconômico, contribuindo para a escassez (ALVIM, op.cit.). No entender de Alvim

(ibid.), a solução para equacionar o problema da escassez passa pela aplicação de novos

padrões de planejamento e gestão, com o objetivo de articular equilibradamente rios, ter-

ritório e sociedade.

A escassez de água signifi ca geração de confl itos na disputa das demandas e compatibiliza-

ção de múltiplos usos. Confl itos internacionais vêm ocorrendo por várias décadas na disputa

por bacias hidrográfi cas – Turquia, Síria e Iraque na disputa pelas bacias do Tigre – Eufrates;

Israel, Jordânia e Síria pelo rio Jordão; Índia e Bangladesh pelo rio Ganges (SALATI et al.,

2006).

Para Rebouças (op.cit.), a situação do Brasil não é comparável aos exemplos anteriores. O

autor acredita que nosso problema não seja exatamente escassez, mas inefi ciência na ges-

tão do desenvolvimento em geral e da água em particular, tanto por parte do Estado, das

entidades públicas e privadas, como da sociedade civil, que carece de ética em relação ao

padrão de consumo.

Ao apresentar o aumento de consumo da água nos últimos 30 anos do século XX (Tabela

02), Tundisi (2003) afi rma que a demanda de usos múltiplos dos recursos hídricos foi au-

mentando à medida que a população mundial foi crescendo, e os índices de urbanização, de

irrigação para a produção de alimentos e de industrialização foram se ampliando. Ao ciclo

hidrológico se sobrepõe um ciclo hidro-social que vai exigir uma política de gestão integra-

da dos recursos hídricos.

5 Consuntivo original do latim consumptibile

Page 7: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

42

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Nota-se que a porcentagem de aumento do consumo doméstico deu um salto proporcio-

nalmente maior na categoria de suprimento doméstico do que nas categorias indústria e

agricultura. A gestão do suprimento doméstico é menos controlável pela pulverização das

unidades usuárias e exige campanhas contínuas para acusar resultados.

O tratamento de águas servidas ou esgotos não se dá na mesma proporção do aumento

do consumo, o que signifi ca contaminação dos corpos d’água de superfície e subsolo. Essa

situação obriga os municípios a recorrerem a mananciais cada vez mais distantes para abas-

tecimento da população.

1.8 A abordagem setorial da água e suas conseqüências

A especialização dos órgãos de gestão da água nas várias esferas da administração pública,

municipal, estadual e federal propiciou abordagens setoriais e unidisciplinares, resultando

em confl itos que se refl etem até hoje nas áreas urbanas.

No início do século XX, a gestão da água se dava em âmbito federal através da Secretaria

Nacional da Agricultura, já que o Brasil, nessa ocasião, tinha uma produção predominan-

temente agrícola. A partir do momento em que a industrialização foi se afi rmando, a água

passou a ter um enfoque que privilegiava a exploração do potencial energético dos sistemas

fl uviais. Apesar da legislação de 1934, o Código das Águas, que visava à regulamentação dos

usos da água, a ênfase no potencial hidroelétrico se manteve até a década de 1990, como

veremos adiante nas abordagens de autores diversos.

Na ótica de Lima e Zakia (2004, p. 33), da área de hidrologia fl orestal, relacionada ao manejo

ambiental da microbacia hidrográfi ca, a abordagem focal da água pressupõe “uma visão in-

tegrada ou ecossistêmica de manejo dos recursos naturais, a qual transcende aos interesses

fragmentados de diferentes disciplinas e setores”.

Consumo total de água (km³/ano)

Uso total 1970 1975 2000

Suprimento doméstico 120 150 500

Indústria 510 630 1300

Agricultura 1900 2100 3400

Total 2530 2880 5200

Tabela 02: Consumo total de água (TUNDISI, 2003, p. 32)

Page 8: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

43

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Tucci (2006) critica o planejamento do espaço urbano no Brasil e sua relação com os recur-

sos hídricos – abastecimento de água, transporte e tratamento de esgotos cloacal e pluvial,

mencionando a forma desorganizada como a infra-estrutura é implantada. Para o autor, o

escoamento das águas é obstruído por estreitamento do canal para execução de pontes,

por taludes nas estradas, por deposição de lixo e sedimentos nos rios ou ainda por projetos

de drenagem inadequados. Enfatiza a inefi cácia das ações públicas voltadas para medidas

estruturais com visão pontual, como as canalizações de cursos d’água sem avaliar as con-

seqüências dessas obras, que acabam aumentando as vazões e a freqüência de inundações,

principalmente nas cidades de porte médio e grande. O autor critica, ainda, os sistemas

tradicionais de drenagem, incapazes de abranger a complexidade do ciclo hidrológico, a seu

ver insustentáveis, e já há 30 anos abandonados por países desenvolvidos, por seus efeitos

desastrosos.

Para Dowbor (op.cit.), o problema está principalmente na ausência de planejamento e na

adoção de soluções de última hora e pontuais, ante o desespero da população vítima de

inundações. A resposta convencional e de curto prazo é a canalização de trecho local de

córrego, que, ao socorrer um bairro, penaliza o próximo a jusante.

Na mesma linha de raciocínio dos autores acima mencionados, Canholi (2005, p. 15) en-

fatiza que “a drenagem urbana é fundamentalmente uma alocação de espaços... A várzea

utilizada pelo rio ou córrego nas cheias, suprimida pelas obras de urbanização, será sempre

requerida a jusante.”

Como adverte Mattes (2001), a correlação das enchentes de maiores proporções em São

Paulo a partir da década de 1960 deu-se em função das decisões urbanísticas que privi-

legiavam o uso do solo de ocupação das várzeas e a crescente impermeabilização do solo

urbano,.

Já Machado (2003) ressalta que a consciência da necessidade de uma visão que contemplas-

se o gerenciamento dos usos múltiplos dos recursos hídricos, revendo a supremacia do setor

elétrico que perdurou por mais de 60 anos, resultou na revisão da legislação brasileira sobre

uso da água, com a instituição da Lei Federal nº. 9433 de 8 de janeiro de 1997, a Lei das

Águas. Foi então estabelecida a Política Nacional de Recursos Hídricos e a criação do Sistema

Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Dentro da visão integrada dos recursos hídricos, insere-se a implementação de uma aborda-

gem integrada de saneamento urbano que deve contemplar o abastecimento de água trata-

da, coleta e tratamento do esgoto, da drenagem e do lixo, prevendo, para tanto, os vetores

Page 9: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

44

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

de uso e ocupação do solo urbano. Esse caminho veio sendo objeto de discussões e políticas

públicas, culminando no Plano Nacional de Saneamento6.

É importante relembrar que há cerca de um século, entre 1905 e 1914, o engenheiro Satur-

nino de Brito já tinha uma visão abrangente e integrada dos recursos hídricos, quando fez

o plano de saneamento para a cidade de Santos, cuja meta era sanear, embelezar e prever a

expansão da cidade em um único plano (ANDRADE, 1992).

Sachs (2005) apresenta o estado da arte das ações práticas, criticando sua defasagem em

relação às diretrizes preconizadas pelos órgãos ambientais.

[...] Olhando em retrospectiva, o avanço intelectual – a revolução ambiental no pen-samento - foi bem mais rápido do que as ações práticas que sofreram, desde o início, várias limitações, entre as quais a mais grave foi tratar o meio ambiente como um setor à parte, e não como uma dimensão transversal da problemática do desenvolvimento. Se a instituição de ministérios de meio ambiente constituiu um passo para frente, atribuir-lhes competência em matéria de desenvolvimento sustentável, como aconteceu com vários países, foi um equívoco, na medida em que um pequeno ministério setorial não teria condições de coordenar a ação de todos os ministérios econômicos. A instrumen-talização do conceito de desenvolvimento sustentável exige que ele informe a ação do governo como um todo e, em particular, passe a ser o marco conceitual do planejamen-to (id.ibid. p.20 e 21).

A literatura que trata do desenvolvimento sustentável trabalha com o pressuposto de que

o esgoto coletado deve ser tratado antes de ser lançado aos rios ou oceanos. No Brasil, de

acordo com o último boletim do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística) de

Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, de 2000, 52,2% dos municípios têm esgotamento

sanitário; 32% têm serviço de coleta e 20,2% coletam e tratam o esgoto. Esses dados vêm

corroborar a argumentação de Sachs (op. cit.) e dar uma medida do comprometimento dos

corpos d’água no Brasil, que, expondo a população a problemas de saúde pública, refl etem

a política de saneamento desorientada diante de impasses de ordem técnica e econômica,

situação retratada na tabela abaixo.

6 PLANASA – Plano Nacional de Saneamento, institucionalizado em 1971 pelo governo federal com o objetivo de implantar ou expandir os serviços de saneamento básico, abastecimento de água e rede de esgoto sanitário, por meio de mecanismo de fi nanciamento do Banco Nacional de Habitação utilizando recursos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço).

Page 10: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

45

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Tabela 03: Proporção de municípios, por condição de esgotamento sanitário, segundo as Grandes Regiões - 2000Fonte:relatório do IBGE, IBGE (Instituto Brasileiro de Geografi a e Estatística) disponível em www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/27032002pnsb.shtm, acesso em 01 de outubro de 2007

Riley (1998) comenta o papel da engenharia nos Estados Unidos, principalmente a partir da

década de 1930, que, confi ante na grande evolução tecnológica, não titubeava em canalizar,

embutir em galerias ou estreitar o leito dos rios, eliminando a mata ciliar e tentando ganhar

espaços de várzea com o objetivo de conter inundações e abrir espaços para habitação.

Na mesma linha de Riley e outros autores citados, Canholi (op. cit.) e Tucci (op. cit.) criticam

a engenharia tradicional no Brasil, que vem buscando compensar a progressiva perda da

drenagem natural urbana por meio das mesmas obras de implantação de galerias, canali-

zação, tamponamento e retifi cação de córregos. Os autores propõem abordagens alterna-

tivas, com medidas não convencionais, tais como o incremento de sistemas de infi ltração,

reservatórios de retenção e detenção, restauração de áreas de várzea e de meandrização dos

leitos dos córregos e restauração da mata ciliar. Essas medidas serão mais aprofundadas no

capítulo 2.

Jacobi (2006) sustenta a integração das ações das políticas públicas a partir de pesquisas

sobre a cidade e o meio ambiente, realizadas em bairros de São Paulo. O autor constata a

desigualdade intra-urbana e elenca os principais temas urbanos que se articulam quando se

trata de qualidade de vida e implicações sobre os recursos hídricos – ocupação indevida de

áreas de risco, rede de transporte público precária, perda da biodiversidade e da cobertura

vegetal, sistema inefi ciente de coleta de lixo e destinação de resíduos e falta de acesso a

serviços de saneamento. E faz referência, ainda, à importância de ações integradas:

A palavra chave “qualidade de vida” deve ser crescentemente internalizada pelas polí-ticas públicas tendo como elemento determinante a inter-setorialidade das ações para criar condições para a implementação de políticas orientadas para a sustentabilidade urbana, assim diminuindo os riscos ambientais e a pressão sobre os recursos naturais (Ibid.,p.13).

Sem coleta Só coletam Coletam e tratam

Brasil 47,8 32 20,2

Norte 92,9 3,5 3,6

Nordeste 57,1 29,6 13,3

Sudeste 7,1 59,8 33,1

Sul 61,1 17,2 21,7

Centro-Oeste 82,1 5,6 12,3

Proporção de municípios, por condição de esgotamento sanitário (%)Grandes Regiões

Page 11: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

46

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Por fi m, enfatiza a importância do posicionamento e desempenho técnico, político e da

educação ambiental na administração dos riscos ambientais no espaço urbano. O acesso à

informação e o sentimento de cidadania propiciam a consciência dos direitos e responsabi-

lidades e colocam o indivíduo na posição de ator relevante e participante ativo na comuni-

dade e no processo público.

1.9 A deterioração dos cursos d’água sob efeito dos impactos do meio urbano

Não se pode desvincular a problemática ambiental nas cidades da dinâmica de produção do

espaço, que, ao produzir impactos negativos na qualidade de vida urbana de várias ordens

– social, cultural e ambiental -, afeta, com distribuição desigual de riscos, toda a popula-

ção urbana. Essa refl exão, na visão de Coelho (2001), se dá no campo da ecologia política,

entendendo-se os impactos biofísicos como inerentes aos impactos sociais.

Essa temática está intimamente vinculada ao planejamento da paisagem e do território,

envolvendo a gestão do sítio urbano e dos recursos naturais. Os valores ambientais, paisagís-

ticos, estéticos e culturais emanados da sociedade em geral ou de grupos específi cos podem

contribuir para as tomadas de decisão, e oscilam entre a credibilidade na engenharia ou na

técnica para resolução dos problemas ambientais e a abordagem ecológica de preservação

da natureza e dos recursos naturais.

Tomando-se novamente o caso de São Paulo como referência do relacionamento da socie-

dade com os rios no Brasil, é possível verifi car os estágios diversos que marcaram a evolução

do seu desenvolvimento urbano: o povoado se estabeleceu no século XVI na colina situada

entre os rios Tamanduateí e Anhangabaú, valorizando a abundância da água para abasteci-

mento, a disponibilidade da pesca e o corredor navegável do Tamanduateí.

No século XIX, o rio Tamanduateí já apresentava problemas de saneamento e risco de en-

chentes, sendo a solução vislumbrada por governantes e empresários a de canalização do

leito do rio e aterramento de sua várzea.

À medida que a cidade se expandia, foi se defrontando com ondulações topográfi cas varia-

das e com a densa rede hidrográfi ca do Tietê e seus tributários. A várzea do Tietê começou

a ser drenada e urbanizada a partir de 1920. Na década de 1930, deu-se início às obras de

retifi cação do leito do rio e foi incorporada a proposta do sistema viário marginal ao rio,

prevista no Plano de Avenidas de Prestes Maia. Na mesma década, a Cia Light & Power reti-

fi cou o leito do rio Pinheiros e inverteu seu curso para gerar energia elétrica na Usina Henry

Borden.

Page 12: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

47

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

As ferrovias, implantadas a partir de meados do séc XIX, contribuíram para a organização es-

pacial de grande número de cidades brasileiras. Localizadas em áreas planas, possibilitavam

a disposição retilínea dos trilhos, ocupando áreas de fundos de vale junto aos cursos d’água,

retifi cando e desviando seus leitos e desmatando suas margens (LANDIM, 2004).

Desde o início do século XX até a década de 1930, o modelo adotado para proteção dos re-

cursos hídricos no Brasil era o de preservação total; para tanto, se desapropriavam as bacias

hidrográfi cas que contribuíam para os mananciais de abastecimento. Porém, os altos custos

das desapropriações e a demanda por terrenos nas grandes cidades foram inviabilizando

essa política (MARCONDES, 1999).

O intenso processo de urbanização ocorrido principalmente a partir da década de 1950, pro-

vocado pelos fl uxos migratórios advindos da área rural e pelos deslocamentos intra-urbanos,

exerceu signifi cativa pressão sobre as áreas urbanas, em especial sobre as metrópoles. Se, em

1950, a população residente nas áreas urbanas representava 36% da população brasileira,

em 2000 esse número saltou para 81%. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Ge-

ografi a e Estatística (IBGE), a população urbana em números absolutos correspondia a 19

milhões em 1950 e a 138 milhões no ano 2000.

A concentração populacional no meio urbano no decorrer da segunda metade do século

XX, em um cenário caracterizado pela carência de investimentos em planejamento e infra-

estrutura, sob a atuação de administrações inefi cientes, desencadeou um processo de perda

de qualidade de vida urbana. No tocante aos padrões ambientais, resultou em água, ar, solo

e vegetação impactados e em franca deterioração.

Deterioração da qualidade da água

Um dos principais problemas relacionados à degradação dos rios e mananciais, seja em fun-

ção de atividades urbanas ou não, é a escassez qualitativa da água enquanto fonte de vida

e manutenção do desenvolvimento da sociedade.

Fracalanza (2002, apud ALVIM, 2003) propõe que o debate sobre a escassez da água deve ser

considerado sob dois prismas distintos, porém interligados: o primeiro diz respeito à quan-

tidade de água necessária à execução das atividades humanas no território, e o segundo

relaciona-se à qualidade da água a ser utilizada nessas atividades. Além de levar em conta

esses dois prismas, o potencial de renovabilidade desse recurso deve ser também considera-

do como um importante defi nidor de sua escassez ou abundância.

[...] atualmente, a possibilidade da água se renovar vem sendo constantemente ques-tionada, uma vez que a capacidade de regeneração tem sido prejudicada pela forma de utilização e pelo ritmo com que este recurso é utilizado. A impermeabilização do solo,

Page 13: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

48

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Figura 06: Relação entre superfície impermeabilizada e superfície de escoamentoFonte: LECCESE, et al. (2004, p. 76), modifi cado pela autora.

pelas construções humanas, por exemplo, aumenta o escoamento e a velocidade da água que se dirige aos rios, podendo vir a provocar enchentes, ou, a remoção da cober-tura vegetal diminui a evapotranspiração e retenção das águas nas bacias de drenagem. Ou seja, a sociedade humana vem ao longo de sua história modifi cando constantemen-te o território e conseqüentemente as paisagens (ALVIM, 2003, p. 38).

O difícil acesso da população de baixa renda às áreas mais centrais das cidades contribuiu

para a expansão da periferia, o que muitas vezes implicou, e implica ainda, em invasão das

áreas de proteção de mananciais, com a aquiescência do poder público (ROLNIK, 1997). Essa

dinâmica agravou a situação de risco dos mananciais pela eliminação das matas ciliares e

conseqüente erosão das margens dos cursos d’água e assoreamento de suas calhas, e pela

contribuição do esgoto “in natura”.

A eliminação da cobertura vegetal das matas ciliares e a redução das fl orestas geram des-

continuidade e fragmentação da área vegetada e, portanto, menor armazenamento de água

de superfície e subsolo, para garantir abastecimento contínuo. A redução da vegetação de

porte arbóreo, associada à expansão da pavimentação, resulta, como demonstra a fi gura 05,

em volume crescente de água de escoamento superfi cial, além das conseqüências sobre o

aquecimento nas áreas densamente ocupadas.

A tabela a seguir, extraída de Cardoso (2003), comprova que as áreas urbanas em declive são

as maiores produtoras de sedimentos, devido à remoção da cobertura vegetal e impermea-

bilização do solo, fatores que contribuem para o assoreamento dos corpos d’água.

Page 14: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

49

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Carmo (2005) ressalta que, como recurso hídrico, a água passou a ser alvo de aumento de de-

manda, ao mesmo tempo em que os mananciais se degradaram por contaminação de esgoto

doméstico e industrial, criticando a decisão adotada, de modo geral, quanto ao saneamento –

investir predominantemente em coleta subestimando o tratamento dos efl uentes.

Em resumo, o impacto da ação antrópica de contaminação das bacias hidrográfi cas, afetando

águas superfi ciais e também subterrâneas, se dá tanto por vias diretas - poluição por despejo de

efl uentes doméstico, agroindustrial e industrial -, quanto por vias indiretas - remoção de fl o-

restas ripárias, construção mal planejada de usinas hidroelétricas, uso e ocupação inadequados

do solo ao longo dos cursos d’água, ou poluição difusa, gerada em grande parte pelos defl úvios

contaminados provenientes das áreas urbanas e áreas de agricultura, signifi cativas causas e

fontes de dregadação dos rios, lagos e estuários, como expõem os quadros a seguir.

Tabela 04: Erosão em função da topografi a Fonte: U.S. Forest (1969) apud CARDOSO (2003, p.18)

Topografia Quantidade de sedimentos produzidos*

Área de florestas (plana) 10 a 40

Área de floresta (em declive) 25 a 100

Área urbana (plana) 25 a 100

Área urbana (em declive) 75 a 500

* Toneladas por milha quadrada por ano: 1 milha quadrada = 2,59 km²

ç p g

Quadro 01: Principais causas e fontes de degradação dos rios, lagos e estuáriosFonte: LECCESSE, et al.( 2004, p.14).

Principais processos poluidores da água

Processo Definição

Contaminação Introdução de substâncias nocivas à saúde e às espécies da vida aquática (ex.patogênicos e metais pesados)

Assoreamento Acúmulo de substâncias minerais (areia, argila) ou orgânicas (lodo) em um corpo d’água, o que provoca a redução de sua profundidade e de seu volume útil

Eutrofização Fertilização excessiva da água por recebimento de nutrientes (nitrogênio, fósforo), causando o crescimento descontrolado (excessivo) de algas e plantas aquáticas.

Acidificação Abaixamento do pH, como decorrência da chuva ácida (chuva com elevada concentração de Íons H+ pela presença de substâncias químicas como dióxido de enxofre, óxidos de nitrogênio, amônia e dióxido de carbono), que contribui para a degradação da vegetação

Erosão em função da topografi a

Page 15: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

50

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Ao mencionar a poluição difusa, é necessário atentar para a questão da drenagem urbana,

um dos grandes agentes difusores da poluição e um dos geradores de situações de calami-dade pública nas áreas urbanizadas na estação de chuvas. Tucci (2003) explica como se dá o processo de poluição difusa – as chuvas captam a poluição do ar, varrem a superfície das áreas urbanizadas contaminadas por componentes orgânicos e metais, carreiam resíduos sólidos e lixo urbanos, e transportam o esgoto despejado indevidamente na tubulação de drenagem.

Quanto ao aumento das vazões, o mesmo autor justifi ca o fato em função da redução da evapotranspiração, redução do escoamento subterrâneo e do tempo de concentração dos defl úvios na bacia, concentrando o escoamento de águas pluviais através de dutos e canais. No entender de Tucci, ações desencontradas ou inadequadas no equacionamento da infra-estrutura contribuem para concentrar a drenagem, situação que se evidencia na estação das chuvas, com a ocorrência de inundações em várias cidades brasileiras. O autor (op. cit. p. 36) esclarece, ainda, que o conceito de “escoar a água precipitada o mais rápido possível” foi abandonado nos países desenvolvidos há mais de 30 anos, que partiram para infi ltrar a água em vez de transportar, criando impactos à jusante.

Bonilha (2002) partilha do mesmo ponto de vista e aponta para a necessidade de controle do uso do solo, afi rmando que enchentes são processos naturais do ciclo hidrográfi co, mas inundações resultantes da urbanização são processos combinados de ocupação do solo, a começar pelas planícies de várzea que eram originalmente reservatórios naturais de absor-ção.

As interferências causadas pela urbanização e pelos usos múltiplos impactam o ciclo de re-

carga provocando eutrofi zação7 e depleção8 dos volumes de superfície e dos aqüíferos sub-

Quadro 02: Principais causas e fontes de degradação dos rios, lagos e estuários.Fonte: LECCESSE, et al.( 2004, p.14).

7 Eutrofi zação: falta de oxigenação das águas devido ao crescimento excessivo de plantas aquáticas na camada superfi -cial do corpo d’água estimulado por nutrientes resultantes da lixiviação dos solos lindeiros.

8 Depleção: rebaixamento do nível do lençol freático ou dos leitos, que ocorre quando a extração da água do subsolo excede a recarga natural.

Causas e fontes de degradação dos rios, lagos e estuários

Rios e córregos Lagos e reservatórios Estuários

Patogenias (Bactérias) Nutrientes Metais (principalmente mercúrio)

Sedimentação Metais (principalmente mercúrio) Pesticidas

Alterações do habitat Sedimentação Substâncias que retiram oxigênio

Agricultura Agricultura Fontes pontuais municipais

Modificações Hidrológicas Modificações Hidrológicas Escoamento urbano/ águas pluviais

Modificações do Habitat Escoamento urbano/ águas pluviais

Descargas industriais

Page 16: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

51

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

terrâneos e, concomitantemente, sedimentação de rios, lagos e represas; portanto, causam

deterioração geral dos mananciais, aumento no custo do tratamento das águas e a captação

de água para abastecimento urbano em fontes progressivamente mais distantes (TUNDISI

et al, op.cit, p.23).

Figura 07: Ciclo de recarga dos aqüíferos.Fonte: United States Geological Survey (USGS). Disponível em: http://ga.water.usgs.gov/edu/watercyclegwdischarge.html - Acesso em 26 de setembro de 2007

Alterações morfológicas nos sistemas fl uviais

A construção de represas ocasiona a perda de vegetação e fauna terrestres, interferência na

migração dos peixes, mudanças hidrológicas à jusante da represa, alterações na fauna do rio,

interferência no transporte de sedimentos, propagação de doenças de veiculação hídrica,

perda de patrimônio histórico e cultural, afetação de atividades econômicas, relocação de

população. Há, no entanto, uma contrapartida positiva – produção de eletricidade, retenção

de água regionalmente, aumento do potencial de água potável e de recursos hídricos, fo-

mento de turismo e recreação, produção de peixes e aquacultura, regulação do fl uxo e inun-

dações locais, possibilidade de geração de empregos no local (TUNDISI et al, 2006, p.184).

O binômio saneamento e sistema viário também opera profundas transformações nos lei-

tos dos rios e suas várzeas. Desde a década de 1930, a retifi cação dos rios foi adotada no

combate a inundações, visando à prevenção de epidemias como medida de saúde pública;

mas, ao mesmo tempo, as várzeas drenadas passavam a ser urbanizadas e ocupadas. No caso

do rio Tietê, em São Paulo, a obra de retifi cação concebida por Saturnino de Brito previa,

Page 17: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

52

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

para controle das cheias, uma lagoa de detenção onde está hoje a Ponte das Bandeiras. A

obra, porém, não foi executada. E esse foi, por muitos anos, um dos pontos de inundação

do Tietê.

Os impactos ambientais gerados pela canalização incluem, segundo Riley (op. cit.): elimina-

ção dos alagados e da biodiversidade inerente a esses sistemas; supressão das matas ciliares,

expondo a vida aquática a temperaturas elevadas; eliminação dos meandros, aumentando

a velocidade da água e extinguindo componentes bióticos do sistema; aumento da erosão

e assoreamento, removendo solos ricos para ávida aquática; instabilidade do canal; prejuízo

à qualidade da água e alterações nas condições hidrológicas do rio, afetando seu leito, a

capacidade de drenagem, sua descarga e seu fl uxo (Figuras 08, 09 e 10).

A qualidade da paisagem é profundamente afetada, pois as matas ciliares são eliminadas e a

condição de estabilidade das margens passará a contar com contenções de concreto, enro-

camento ou taludes revestidos de vegetação à custa de adubos químicos e herbicidas.

Banhado

VegetaçãoDossel

Sub-bosqueVegetação rasteira

Figura 08: Mudanças Biológicas: Meio Ambiente Terrestre - Impactos da canalização sobre as funções naturais do rioFonte: RILEY (1998, p. 101), modifi cado pela autora.

Sub-bosqueVegetação rasteira

Dossel

Copas

Mudança do usodo solo

CÓRREGO NATURAL– Densidade da vegetação ripária, banhado e habitat da várzea rico em biodiversidade

CÓRREGO CANALIZADO– Habitat limitado, com baixa densidade

Page 18: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

53

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

CÓRREGO NATURAL CÓRREGO CANALIZADO

Figura 09: Impactos da canalização sobre as funções naturais do rio (Mudanças Biológicas no meio ambiente aquático)Fonte: RILEY (1998, p. 101), modifi cado pela autora.

SoleiraPoço

Poço

Zona de refluxo

Vegetaçãoaquática

Barranca

Zona de refluxo

Fragmento

Poço

Faixa escavadaabaixo da margem

Sombra

- Diversidade do habitat: poços, cascalhos, marolas, escapes d’água. Profundidade suficiente para vida aquática em épocas de seca e velocidade diversificada. Temperatura da água mais estável.

- Plâncton: Alta diversidade, biomassa e densidade.

- Peixe: Extensiva proteção e diversidade de suprimento alimentar.

- Aumento da temperatura e profundidade da água insuficiente para dar suporte à vida aquática em períodos de seca. A velocidade de fluxos rápidos pode ser muito alta para a vida aquática.

- Sem equilíbrio, o fluxo baixo do canal, frequentemente trançado, sem poços, soleiras, cascalhos, escapes d’água ou esconderijos.

Canal de fundotrançado

Sem sombra

Sedimento

Sedimento

- Plâncton: Baixa diversidade, biomassa e densidade.

- Peixe: Limitada proteção e suprimento alimentar. Valor do habitat inexistente.

Page 19: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

54

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Figura 10a: Impactos da canalização sobre as funções naturais do rio - Mudanças FísicasFonte: RILEY (1998, p. 101), modifi cado pela autora.

Erosão

Vegetação exposta

Erosão

CÓRREGO NATURAL

CÓRREGO CANALIZADO

Page 20: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

55

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

Nível d’água

Nível de cheia

Nível normal

Retorno lento

Banhado

Escape

- Armazenamento natural do fluxo de inundação com um lançamento lento da correnteza nas áreas altas para as baixas (montante para jusante).

- Elevação do nível d’água durante a época de seca.

Figura 10b: Impactos da canalização sobre as funções naturais do rio - Mudanças FísicasFonte: RILEY (1998, p. 101), modifi cado pela autora.

Aumento da velocidadee da capacidade

Canal de erosão

Nível de cheia

Nível normal

Nível d’água

Sem escape parabanhado ou várzea

- Extensão do pico das inundações sendo lançadas rapidamente para as áreas à jusante.

- Rebaixamento do nível d’água.

CÓRREGO NATURAL

CÓRREGO CANALIZADO

Page 21: 1.6 Componentes físicos de um curso d’águatede.mackenzie.br/jspui/bitstream/tede/2632/2/Maria Cecilia... · Franco (2000) menciona a postura inovadora de Dom João VI, que, em

56

RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

A pressão do transporte automobilístico veio a complementar a situação de comprome-

timento das margens dos rios, que passaram a ser sistematicamente adotadas como área

de expansão do sistema viário. Quantas avenidas “beira-rio” podem ser contabilizadas nas

cidades brasileiras, que teriam um potencial cênico e de drenagem e que, no entanto, com-

primem e reduzem o potencial de escoamento e drenagem das águas?

Em apenas cem anos, durante o processo acelerado e descontrolado de industrializa-ção e expansão urbana, os leitos dos rios foram aterrados e ocupados pela cidade. Os argumentos sanitaristas e hidráulicos “fundamentaram” o verdadeiro objetivo que era “lotear e vender” as várzeas. O imenso logradouro público, espaço ideal para o Parque Linear Metropolitano foi privatizado e os rios canalizados desprezando-se a navegação fl uvial. A metrópole construída pela especulação imobiliária e a precariedade da infra-estrutura urbana transformaram os rios da cidade em canais de esgoto, confi nados entre avenidas que têm o caráter de rodovias urbanas. Esse conceito de canalização de rios e construção de avenidas de fundo de vale, iniciado com a proposta de um plano de avenidas, apresentada em 1930 por Prestes Maia, se espalhou e está impregnada, ainda hoje, nas administrações públicas, agora com a justifi cativa, contraditória, de controle das enchentes e circulação de automóveis. Idéias de um urbanismo rodoviário contrá-rio aos ideais de um urbanismo humanista, preocupada com a qualidade da estrutura ambiental urbana. Para este urbanismo rodoviarista, pedestres e ciclistas não existem; metrô, parques e áreas verdes, equipamentos sociais e habitação social não são priori-tários (DELIJAICOV, 1998, p.5).

Ao se verifi car as situações de ruptura nas relações entre as cidades e os cursos d’água, ou

mais amplamente entre sociedade e natureza, percebe-se nitidamente que o desligamento

físico do rio das funções urbanas acarreta num desligamento afetivo dos sistemas fl uviais e

fundos de vale, e a eles se atribuem características de entrave e de elemento de depreciação

do ambiente urbano.

Com a deterioração, a dimensão cultural dos rios, de grande importância outrora para a

sociedade, manifestada na recreação, religião, literatura, fi losofi a, mitologia, artes plásticas,

música, paisagem e fruição estética, foi relegada na cidade contemporânea, de modo geral

até o fi nal do século XX. Nesta ocasião, as discussões internacionais sobre conservação e

restauração dos recursos naturais trouxeram à pauta dos desafi os urbanos do século XXI o

resgate dos cursos d’água urbanos.