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ESTUDO DOS CASOS INTERNACIONAIS (ESTADOS UNIDOS E CANADÁ) 3

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  • ESTUDO DOS CASOS INTERNACIONAIS(ESTADOS UNIDOS E CANADÁ)

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    A legislação e a experiência americanas relativas ao ecode-

    senvolvimento funcionam como um referencial que é acom-

    panhado por outros países, como o Canadá. Portanto, para

    entender o contexto dos casos, é importante conhecer a his-

    tória das iniciativas pró-preservação do patrimônio ambien-

    tal bem como alguns marcos da legislação americana1.

    Segundo Riley (1998), as bases históricas do planejamento

    e de ações práticas na área da recuperação ambiental re-

    montam a períodos da história em que houve ampla tomada

    de consciência diante de situações em que se apresentava

    a ameaça da escassez de recursos na nação americana. Essa

    autora situa esses momentos no pós-guerra civil (fi nal da

    década de 1860); na década de 1930, quando ocorreu o im-

    pactante “dust dowl”2; na década de 1960, quando houve

    várias manifestações da população contrárias à construção

    de eixos viários rompendo os centros urbanos, o aumento da

    poluição do ar e das águas dos rios; e, fi nalmente, na década

    de 1990, quando se deu o consenso sobre o desafi o do cres-

    cimento urbano, aquecimento global e a perda de ecossiste-

    mas e da biodiversidade.

    O movimento de recuperação dos rios nos Estados Unidos

    teve entre seus primeiros precursores, de acordo com Riley

    (ibid.), no fi nal do século XIX, as associações esportivas de

    pesca3. Desde 1856, em Massachussets, a Agência Governa-

    mental de Pescadores começou a manifestar sua preocupa-

    ção com a diminuição do contingente de peixes nos cursos

    d’água norte-americanos, que já vinha sendo registrada des-

    de o século XVII.

    Três organizações que atuam ainda hoje em prevenção de

    enchentes e conservação do solo nas esferas estadual e fe-

    1 A fonte para as referências sobre marcos legais americanos é a obra de Riley (1998).

    2 Dust bowl ou dirty thirties foi um período de fortes tempestades de poeira originadas por secas muito intensas oca-sionadas pela erosão de décadas de cultivo não planejado. Vários estados foram castigados por esse fenômeno, sendo os mais impactados Texas, Oklahoma, Novo México, Colorado e Kansas – fontes: Riley (op. cit.) e Wikipédia, acesso em abril 2008.

    3 Ver capítulo 2 – a importância de Frederick Law Olmsted como o principal precursor no século XIX.

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    deral surgiram entre a segunda metade do século XIX e a década de 1930: o Soil Conserva-

    tion Service (rebatizado como Natural Resources Conservation Service), o Army Corps of

    Engineers 4, o Bureau of Reclamation e o Geological Survey. Riley (op. cit.) ressalta que, com

    exceção do Geological Survey, as outras organizações, com o objetivo de prevenir inunda-

    ções, conter encostas ribeirinhas e assegurar o abastecimento de água para o meio urbano

    e rural, foram grandes incentivadoras de projetos de estreitamento e canalização de cursos

    d’água, substituição da vegetação das margens dos rios por enrocamento e construção de

    diques e reservatórios.

    Essas ações, tidas até a década de 1980 como conservacionistas, são atualmente contesta-

    das pela abordagem de recuperação de cursos d’água.

    A primeira ação considerada voltada para um planejamento e gestão dos recursos hídricos

    de modo integrado nos Estados Unidos é a experiência do Tenessee Valley Authority (TVA).

    Criado em 1933 pelo presidente Franklin D. Roosevelt como uma agência do New Deal 5 para

    a bacia do rio Tennessee, o TVA envolvia parte de sete estados do sudeste americano.

    Presidida por um quadro de três diretores escolhidos pelo presidente da República, essa

    agência governamental, envolvia-se com suprimentos de água, controle de inundação, na-

    vegação, geração de energia, com o fi nanciamento dos programas de geração de energia e

    de recursos hídricos e com a recuperação de danos ambientais causados pelo desenvolvi-

    mento, como desmatamento, atividades agrícolas em encostas, erosão e assoreamento. Seus

    programas abarcavam a recuperação ou conservação de recursos naturais, principalmente

    peixes e vida animal.

    Apesar de ser encarado por alguns como “construtor de represas”, o TVA estava preocupado

    em prevenir enchentes, lançando em 1939, em função desse objetivo, um manual que pode

    ser considerado uma publicação pioneira da literatura específi ca sobre recuperação de rios.

    Tratava-se do Manual para Controle de Erosão do Solo no Vale do Tennesse.

    Entre 1933 e 1944, um trabalho signifi cativo para estudos de planos de bacias foi estabele-

    cido em âmbito nacional, tendo também como objetivo coordenar e estabelecer prioridades

    para o trabalho do Army Corps of Engineers, Tennessee Valley Authority e Bureau of Resto-

    rations. Em 1936, o Congresso promulgou então uma lei, o Flood Control Act, atribuindo à

    Corporação de Engenheiros do Exército a tarefa de administrar um programa de prevenção

    de inundações por todo o território americano.

    4 Será traduzida nos textos de análise dos casos como Corporação de Engenheiros do Exército.

    5 Uma série de programas implementada por F. D. Roosevelt entre 1933 e 1937 com o objetivo de recuperar a economia americana pós-depressão de 1929.

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    No fi nal da década de 1960 e início de 1970, começaram a despontar na literatura especí-fi ca críticas às mediadas estruturais, tais como a canalização de rios e outras do gênero, em função do impacto ambiental por elas provocado.

    Em julho de 1970, como resposta aos clamores da população por melhores condições da água, do solo e do ar, o Congresso e a Casa Branca estabeleceram a EPA (Environmental Protection Agency)6, cuja missão era promover incrementos ambientais para a sociedade americana. A EPA desenvolveu um programa de excelência – Best Management Practices (BMP), com guias de práticas, nas mais variadas áreas, que não produzissem impactos am-bientais, devendo ser adotado pelas cidades americanas.

    Logo depois da criação da EPA, em 1971, foi criado no Canadá o Department of the Environ-ment, órgão federal incumbido de estabelecer políticas e programas de controle ambiental com o objetivo de preservar e melhorar a qualidade do ambiente natural, proteger os recur-sos renováveis e os recursos hídricos, monitorar alterações climáticas e ambientais e reforçar o controle das águas fronteiriças.

    Em 1972, o Congresso aprovou uma lei Federal, Water Pollution Control Act Amendments, que passou a se chamar Clean Water Act a partir de quando se investiu mais de um trilhão de dólares em melhoramento e expansão das estações de tratamento de esgoto. Passados 25 anos da aprovação do Clean Water Act, o número de córregos ou rios apropriados para pesca dobrou, o volume de esgoto não tratado descarregado nos rios caiu 46% e os efl uen-tes poluentes de indústrias caiu quase 90%; além disso, a carga de poluentes tóxicos foi eliminada. Os Estados Unidos conseguiram conter os focos pontuais de poluição, mas não os de poluição difusa, que, em 2001 eram responsáveis pelo impacto de 40% dos rios, córregos e lagos (RILEY, op. cit.).

    Entre 1970 e 1980, surgiu um movimento pró-plantio de árvores no interior das cidades americanas, como uma tentativa de envolver a comunidade na causa. De acordo com Ri-ley (op. cit), o movimento pró-recuperação de rios urbanos se originou nos anos 1980, expandindo-se a partir do movimento pró-rearborização das cidades, e, também buscando o envolvimento dos munícipes.

    Um dos elementos referenciais dos projetos de recuperação de rios urbanos é o LID (Low Im-pact Development)7. Esse programa, que surgiu em Maryland na metade da década de 1980 apresentando tecnologia de biorretenção, tem evoluído como um abrangente programa de manejo de águas pluviais, que propala a drenagem na micro escala através da infi ltração,

    fi ltragem, armazenamento, evaporação e detenção de defl úvios próximo à fonte de emissão.

    Essas medidas, que constituem a base do LID, são conhecidas como Integrated Management

    Practices (IMPs).

    6 Disponível em www.epa.gov – acesso: janeiro 2008

    7 Disponível em www.lid-stormwater.net

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    3.1 O Plano de Recuperação do Rio Don: Bring Back the Don8

    O processo de recuperação do rio Don (Toronto, Canadá) teve início em 1990, com a pressão

    da sociedade civil e ONGs (Organizações Não Governamentais) para que se recuperasse a

    qualidade ambiental e estética do rio e das áreas adjacentes, tendo como meta futura a

    recuperação da totalidade da bacia hidrográfi ca.

    O plano, inicialmente chamado “Bring Back the Don”, teve adesão do poder público nas ins-

    tâncias municipal, estadual e federal, estabelecendo objetivos, diretrizes e metas de acordo

    com as características e peculiaridades de cada trecho de intervenção.

    O foco principal do plano era recuperar o delta do rio Don, onde este encontra o lago On-

    tário, revitalizando a área portuária e criando alagados construídos. Buscava-se recuperar

    o contato da população com o rio, com a criação de um sistema de trilhas, pistas de cami-

    nhada e parques lineares que conectam os bairros e proporcionam um acesso seguro ao rio

    Don.

    O monitoramento do plano é uma das principais características deste caso, que elaborou o

    documento 40 Steps to a new Don e indicadores para verifi car o cumprimento das metas

    estabelecidas. Esse documento é considerado uma referência metodológica para a elabora-

    ção de um plano ambiental que pretende criar mecanismos de acompanhamento, monito-

    ramento e gestão.

    Atualmente, o plano encontra-se em contínuo processo de implementação, em diversas

    etapas, com a participação de diferentes instâncias governamentais e, também, com a ativa

    participação da sociedade civil e ONGs como, por exemplo, na captação de recursos para a

    viabilização de cada etapa. A sociedade civil, com um programa de voluntários, tem partici-

    pado da construção de trilhas, das ações de refl orestamento e da implantação de programas

    de educação ambiental. Dezoito anos após a formalização da Task Force Bring Back the Don,

    o plano continua propalando Ações que você pode assumir pelo Don, que incluem medidas

    não estruturais de caráter individual, como: controlar o consumo da água; reduzir a ligação

    das águas pluviais das galerias, dando preferência por infi ltrá-las no jardim; evitar que ele-

    mentos com toxidade escoem com as águas pluviais; plantar jardins com espécies nativas e,

    ainda, fazer uma doação à causa da recuperação do Don.

    8 Para a análise deste estudo de caso, foram levantados os seguintes documentos e referências bibliográfi cas: Toronto Waterfront Revitalization Task Force: “Our Toronto Waterfront – Gateway to the New Canada” (2000); Hough (1995); Toronto and Region Conservation for the Living City: Forty Steps to a New Don – Sumário Executivo. Fonte: www.trca.on.ca/water_protection/strategies/don/pdf/40_steps_summary.pdf – acesso em 21.05.2008).

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    3.1.1 Contextualização

    Caracterização do sítio

    O rio Don insere-se no sistema de bacias hidrográfi cas da Grande Bio – Região de Toronto

    - Canadá, que abrange desde as montanhas Oak (aqüífero de recarga que forma a nascente

    do rio) até o lago Ontário. A área da bacia do rio Don possui, aproximadamente, 360 km²,

    sendo que o mesmo percorre 38 km de extensão da área abrangida pela metrópole e está

    intimamente ligado ao processo de crescimento urbano do território (Figura 20 e 22).

    Há milhões de anos atrás, a cidade de Toronto era uma área coberta por espessas camadas de

    gelo. As áreas dos lagos e dos rios de água doces eram maiores que as atuais. Cada era geoló-

    gica contribuiu para o depósito de sedimentos e fósseis. Durante a Era Glacial (Pleistoceno),

    três sucessivos períodos de glaciação encobriram a camada rochosa sob a camada de gelo.

    O rio Don surgiu no fi nal desse período, há 13.000 anos. As geleiras derretidas formaram os

    córregos que escoavam em direção ao sul de suas nascentes, pelos cumes de gelo das mon-

    tanhas Oak (“Oak Ridges Moraine”).

    Figura 20: Grande Bio – Região de Toronto. Localização da Bacia Hidrográfi ca do Rio Don

    Fonte: HOUGH (1995, p.52)

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    Figura 21: Fisiografi a da área de Toronto. Destaca-se a cota do antigo Lago Iroquois em relação a cota atual do Lago Ontário

    Fonte: HOUGH (1995, p.54)

    O rio então corria por dois leitos em direção à lagoa, formada por uma barra linear de areia

    criada pela ação do escoamento da água e pela correnteza da orla do antigo lago Iroquois. A

    ação contínua do degelo carregando sedimentos foi aterrando o lago Iroquois, que, reduzido

    no seu perímetro, se transformou no atual lago Ontário.

    Atualmente, o Don transborda para fora da antiga lagoa e atravessa o sul das planícies sedi-

    mentares, que, anteriormente, eram integrantes do lago Iroquois. Dessa forma, ele entra no

    lago Ontário como um córrego, repetindo o processo de construção da baía, formando ilhas

    (portos) e a lagoa conhecida como “Ashbridges Marsh”. Esta foi uma grande área natural

    alagada, rico habitat dos peixes e da fauna, e importante provedora de alimentos para os

    primitivos habitantes indígenas (Figura 21).

    A evolução da apropriação do rio e impactos decorrentes

    Em 1787, teve início a colonização de Toronto, cidade planejada para ser capital do Canadá.

    Os primeiros colonizadores aproveitavam o potencial energético das águas do rio para acio-

    nar suas máquinas de carpintaria e produção de farinha, lã e papel, bem como o potencial

    da mineração de argila para produção dos tijolos e construção da cidade, e o potencial das

    matas ciliares do curso baixo do rio, onde a vegetação foi totalmente removida para comer-

    cialização de madeira, em menos de 150 anos. Ainda assim, o Don era tido pelos coloniza-

    dores como uma ameaça e um obstáculo para expansão da cidade em direção a leste, e sua

    extensa área alagada, como um pântano insalubre.

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    RIOS E CIDADES: RUPTURA E RECONCILIAÇÃO

    Desde o fi nal do século XVIII e, particularmente, a partir da segunda metade do século XIX, a

    industrialização e a crescente urbanização ao longo das margens do rio foram ocasionando

    o processo de degradação ambiental da sua bacia hidrográfi ca. Os últimos 5 km de mean-

    dros do baixo curso do rio, onde se depositavam seus sedimentos, foram canalizados e par-

    cialmente retifi cados de acordo com os princípios normalmente adotados pela engenharia

    (Figura 24 e 25).

    A ruptura com os sistemas fl uviais, tal como foi descrito no capítulo 2 começou a se pro-

    cessar. Mudanças hidrológicas na bacia hidrográfi ca tiveram início quando os colonizadores

    converteram fl orestas em campos agrícolas, removendo a vegetação ripária de córregos

    tributários do Don e ocasionando erosão e assoreamento, que se agravaram com o desen-

    volvimento urbano. Intensifi caram-se os problemas da erosão, do aumento da temperatura

    e da poluição da água. As matas ciliares, que contribuíam para infi ltração das águas pluviais

    e controle das inundações, começaram a ser removidas. Os alagados (wetlands) associados

    ao delta do rio desapareceram e, assim, perdeu-se a riqueza da fauna e fl ora presentes

    nesse habitat. Restaram apenas algumas manchas de matas ciliares e alagados em alguns

    tributários do Don, ou em locais isolados pelas vias expressas construídas no vale. O ciclo

    hidrológico foi, portanto, severamente alterado pelas expansões urbanas e suburbanas de

    áreas impermeabilizadas: pavimentos, telhados, estradas e lotes de estacionamento. A água,

    que outrora abastecia o solo e corria lentamente pela superfície natural, passou a ser cole-

    tada por uma rede de esgotos subterrânea que transportava velozmente as águas pluviais e

    poluentes para o rio.

    Os cursos baixo e médio foram transformados em corredores de transporte com a substi-

    tuição da vegetação lindeira por vias expressas (Figura 23), ferrovias, rodovias, pontos de

    instalação de torres de transmissão e áreas para depósito de sal, utilizado para descongelar

    a neve e o gelo durante o inverno.

    A estruturação das vias de transporte ferroviárias no fi nal do século XIX, e, a partir de 1950,

    das vias rodoviárias e de outros elementos de infra-estrutura urbana nas proximidades do

    rio, levou à retifi cação e estrangulamento do leito hídrico, transformando o corredor do Don

    em uma área inacessível a pedestres e ciclistas. A população voltava, assim, as costas para as

    esquecidas margens do rio. Alguns bairros perderam o contato com o vale (Figura 26).