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  • 8/6/2019 Maria Cecilia Donangelo

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    Medicina na Sociedade de Classes

    Maria Ceclia F. Donnangelo

    Diferentemente de outras prticas sociais, cuja origem

    coincidente com a prpria emergncia ou com o desenvolvimento da

    sociedade capitalista, a medicina tende a revestir-se mais facilmente

    de um carter de neutralidade face s determinaes especficas que

    adquire na sociedade de classes. O considervel desenvolvimento do

    aparato cientfico e tecnolgico subjacente pratica mdica e,

    consequentemente, a possibilidade de enfatizar na medicina, como

    atividade profissional especfica, o carter de cientificidade e a sua

    imediata funo social aplicar-se cientificamente ao objetivo da cura

    constitui apenas uma das vias pelas quais se introduz a concepo

    de neutralidade da prtica.

    Tal concepo, que se elabora e reelabora, tambm por

    referncia s demais prticas tcnicas, no conjunto de relaes

    sociais prprias a essas sociedade, encontra, ainda, na marcada

    continuidade histrica da medicina um de seus principais suportes. A

    prtica mdica e seus agentes no foram institudos no interior do

    modo de produo capitalista. Justamente por se situarem entre as

    mais antigas formas de interveno tcnica que eles podem

    tambm aparecer mais facilmente investidos do carter de

    autonomia, como ocorre com outras categorias de prticas e agentes

    que, preexistindo a um novo modo de produo parecem preservados

    de revestir novas formas correspondentes a articulaes inteiramente

    distintas com as estruturas econmica e politico-ideolgica que o

    compem.1

    Analisar a especificidade assumida pela prtica mdica na

    sociedade de classes implica, primeiro romper com essa concepo

    de neutralidade, buscando identificar, em todos os aspectos da

    prtica, as formas pelas quais ela exprime as determinaes prprias

    a essa estrutura. Tarefa obviamente mais fcil de propor que de

    executar, mas cuja formulao, quando menos, torna-se necessria

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    para orientar os limites bastante modestos atravs dos quais se

    tentar identificar para alm da imediata funo tcnica da medicina,

    seu significado econmico, poltico e ideolgico. O principal aspecto

    dessa limitao revelasse na impossibilidade de recobrir todo o

    campo da prtica do saber mdico ao produto do trabalho mdico e

    s formas de organizao e na conseqente necessidade de adotar

    uma perspectiva restrita atravs da qual se possa empreender a

    busca daquela especificidade. Essa perspectiva parecer, primeira

    vista, caracterizar-se pela externalidade em relao prpria prtica,

    na medida em que se centrar nas possibilidades de consumo de

    servios mdicos na sociedade capitalista. Procurar-se-, todavia,

    retendo a idia esboada no capitulo anterior, de que a prtica

    mdica expressa, em sua totalidade, as determinaes histricas,

    remeter a anlise, sempre que possvel, aos elementos que a

    integram.

    1. A medicalizao da sociedade

    Os estudos sobre a organizao atual da prtica mdica

    quaisquer que sejam as suas orientaes metodolgicas, dificilmente

    deixam de referir-se marcada expanso da produo de servios,

    bem como generalizao do consumo por contingentes sempre

    mais amplos da populao. Tambm raramente conseguem furtar-se

    identificao do papel central desempenhado pelo estado na

    ocorrncia dessa generalizao, quer o analisem como expresso da

    representatividade, ao nvel do estado, de interesses comuns

    coletividade social, quer o identifiquem com o desempenho da funo

    de reproduo das classes sociais. O fato de que essa temtica acabe

    sempre por impor-se, decorre menos de um processo de seleo

    arbitrria ao nvel da anlise do que de seu efetivo significado para a

    explicao da estrutura atual de produo de servios mdicos, bem

    como de sua importncia na problematizao, relativamente recente,

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    da pratica mdica, que se exerce a partir de fontes, motivaes e

    referenciais bastante distintos.

    O processo do qual a prtica mdica toma necessariamente

    como seu objeto diferentes categorias e classes sociais constitui,

    tambm aqui, o ponto central para a anlise dos aspectos que

    caracterizam essa prtica nas sociedades capitalistas,

    particularmente no capitalismo industrial. Os determinantes desse

    processo e as formas por ele assumidas encontram-se tambm,

    naturalmente, na origem dos sucessivos projetos ou tentativas de

    organizao racional da produo de servios, de que a Medicina

    Comunitria representa, em parte, uma das manifestaes.

    Um dos ngulos atravs dos quais se poderia apreender mais

    facilmente os nexos entre a prtica mdica e a estrutura de classes

    dado pela prpria diferenciao da prtica mdica conforme se

    destine s distintas classes e camadas sociais, diferenciao essa que

    tem sido registrada mesmo em sociedades onde a forma de

    organizao dos servios mdicos faria supor a ocorrncia de um

    padro igualitrio de consumo2.

    No sendo, em si, um fenmeno novo, uma vez que a prpria

    medicina antiga j difere, em sua prtica, segundo a origem social do

    paciente, a diferenciao adquire especificidade nas sociedades

    capitalistas como decorrncia da forma pela qual nela se projetam o

    fator trabalho e as relaes de classe. Assim que, mesmo a partir do

    momento em que o cuidado mdico se generalizou amplamente,

    como resposta, quer necessidade de reproduo da fora de

    trabalho frente ao processo de produo econmica, quer a

    momentos particulares do desenvolvimento, a nvel poltico, dos

    antagonismos de classe, verificou-se paralelamente: de um lado, a

    seleo de grupos sociais a serem incorporados ao cuidado mdico,

    conforme ao seu significado para o processo econmico e poltico; de

    outro, uma diferenciao das instituies mdicas voltadas para

    diferentes tipos de aes e diferentes tipos de clientelas, a qual se

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    expressa em grande parte em seu carter privado ou estatal mas

    que no se esgota a.

    Embora esses processos se apresentem sob graus e formas

    diferentes em distintas formaes sociais, devem ser registrados, em

    sua generalidade a fim de indicar que a extenso atual da medicina

    no traduz nem a total generalizao do cuidado mdico, nem o

    desenvolvimento necessrio de uma prtica uniforme por referncia

    aos tipos de cuidado prestados. Ao contrrio, a excluso, ainda atual

    de determinadas camadas sociais do acesso a tais cuidados, tanto em

    sociedades capitalistas centrais quanto nas dependentes, bem como

    a constatao de que a medicina institucionalizada reproduz na

    forma pela qual seleciona patologias, incorpora e utiliza a tecnologia,

    favorece o atendimento diferencial das classes sociais o carter de

    classe da sociedade, tem-na levado, com freqncia, ao centro do

    debate poltico acerca da estrutura dessas sociedades. Diga-se, de

    passagem, que esse carter seletivo conduz muitos dos crticos da

    medicina contempornea a ressaltarem sua orientao individualista,

    concepo que frequentemente confunde as expectativas de que a

    medicina se oriente no sentido de uma distribuio mais igualitria de

    seus recursos com a possibilidade de superao de um aspecto que

    caracteriza o ato mdico enquanto ato clnico, circunstncia em que a

    prtica mdica dirige-se ao indivduo, quer o conceba ou no em

    todas as suas determinaes.3 Parece ao contrrio, bastante

    apropriado considerar a orientao coletiva da medicina como o

    aspecto mais expressivo de sua articulao com a dinmica das

    relaes de classe.

    Neste sentido, no a diferenciao da prtica mdica em

    sociedade capitalistas, e sim a sua extenso, o que importa ressaltar

    de imediato, embora a distino entre esses dois aspectos parea

    artificiosa, dado que tanto um como outro constituem momentos de

    um mesmo processo e s podem ser elucidados por referncia aos

    mesmo determinantes. Ao referir-se prioritariamente extenso

    indica-se, antes de mais nada, a inteno de acentuar o aspecto mais

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    diretamente visualizvel da organizao atual dos servios mdicos,

    bem como de tentar discorrer sobre a peculiaridade das relaes

    entre medicina e classes sociais pelo ngulo do qual tende-se mais

    facilmente a neg-la. Por outro lado, atravs desse aspecto, as

    formas atuais de organizao da prtica mdica aparecem no

    apenas como o produto da ao das classes hegemnicas, mas

    revelam mais diretamente a participao, no processo poltico, das

    demais classes sociais.

    No que se designa aqui por extenso da prtica mdica h que

    destacar pelo menos dois sentidos que devem merecer ateno: em

    primeiro lugar, a ampliao quantitativa dos servios e a

    incorporao crescente das populaes ao cuidado mdico e, como

    segundos aspecto, a extenso do campo da normatividade da

    medicina por referncia s representaes ou concepes de sade e

    dos meios para se obt-la, bem como s condies gerais de vida.

    Ambos os aspectos manifestam-se quer atravs do cuidado mdico

    individual, quer atravs das chamadas aes coletivas em sade,

    tais como medidas de saneamento do meio, esquemas de

    imunizaes, programas de educao para a sade, entre outros.

    a extenso da prtica mdica atravs do cuidado mdico

    individual que se estar considerando, na maior parte do tempo, mas

    no exclusivamente, ao tratar do fenmeno da medicalizao da

    sociedade. Tomando de emprstimo a Ivan Illich o termo

    medicalizao para referir-se ao processo de extenso da prtica

    mdica, no se pretendeu sugerir, de sada, uma adeso s suas

    teses, em particular a nfase que atribui reproduo do modo

    industrial de produo pelo modelo de organizao da prtica

    mdica como elemento bsico explicativo da medicalizao, e sua

    postura marcadamente voluntarista a favor da total

    desinstitucionalizao da medicina.4 Visou-se reter principalmente

    algo do teor polmico ligado ao termo e decorrente sobretudo da

    obra desse autor com a finalidade de indicar que a extenso da

    prtica mdica no correspondeu a um fenmeno simples e linear de

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    aumento de um consumo especfico, e sim que ela se deu atravs de

    uma complexa dinmica econmica e poltica na qual se expressaram

    os interesses e o poder de diferentes classes sociais.

    A extenso mais marcada do cuidado mdico sob forma de

    consumo individual diz respeito, propriamente, estrutura de

    produo de servios j no sculo XX, quando na maior parte das

    sociedade capitalistas desenvolveram-se os esquemas de seguro-

    social e, com ele, da extenso do consumo mdico, constituiu um

    momento adiantado de um processo cujas origens so mais remotas

    e j revelam, sob outras facetas, a especificidade do papel assumido

    pela medicina na estrutura social da prtica mdica embora se

    revista atualmente de formas de institucionais especficas e se

    expresse no aumento das possibilidades de tambm sob outras

    formas, e em distintas circunstncias, a condies relacionadas ao

    processo de acumulao do capital ou, ainda necessria

    subordinao do trabalho ao capital em condies mais adequadas

    possveis obteno e apropriao da mais-valia. Antes de considerar

    algumas das situaes histricas atravs das quais se configurou a

    medicalizao, pode-se tentar sistematizar, em algum grau, as

    formas de participao da medicina na reproduo social atravs da

    reproduo da fora de trabalho e das relaes de produo, ou

    relaes de classe, sem que se vise distinguir, a no ser

    analiticamente, esses dois aspectos de sua articulao na estrutura

    social.

    A continuidade do processo de acumulao capitalista ou

    reproduo das condies econmicas e politico-ideolgicas da

    produo constitui, portanto, o ponto de referncia mais amplo para a

    anlise da medicina como prtica social na estrutura capitalista. O

    fato de que ele se encontre na reproduo da fora de trabalho um de

    seus componentes fundamentais, aponta imediatamente para uma

    das formas possveis de participao da medicina em tal processo,

    uma vez que o corpo representa, por excelncia, o seu objeto. Dado

    porm, que esse objeto s se define no conjunto das relaes sociais,

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    ao exercer-se sobre o corpo, definindo os limites de sua capacidade

    fsica e normatizando as formas de sua utilizao, a medicina no

    apenas cria e recria condies materiais necessrias produo

    econmica mas participa ainda da determinao do valor histrico da

    fora de trabalho e situa-se, portanto, para alm de seus objetivos

    tecnicamente definidos.

    Essa aplicao da medicina ao corpo, enquanto agente

    socialmente determinado da produo econmica, fundamenta entre

    outras, umas perspectiva de anlise que apreende a participao da

    prtica mdica no processo de acumulao atravs de sua imediata

    articulao com a estrutura econmica, em particular com o

    momento da produo. Sinteticamente, tal perspectiva acentua o

    papel da medicina no processo de produo da mais-valia, em

    particular da mais-valia relativa, atravs, basicamente, do aumento

    da produtividade do trabalho, dado que a melhoria das condies de

    sade do trabalhador possibilita a obteno de um mximo de

    produtos em menor tempo de trabalho e, correspondentemente, a

    produo de mercadorias por custo mais reduzido. Ou, em outros

    termos, ao dirigir-se fora de trabalho ocupada na produo, a

    prtica mdica (embora aumente o valor absoluto dessa fora pelo

    aumento de tempo de trabalho a ela incorporado) contribui para o

    aumento da mais-valia atravs da reduo do tempo de trabalho

    necessrio para a obteno do produto a que essa fora de trabalho

    se aplica, e da conseqente baixa de seu valor por relao ao

    produto.

    Apontando para esse aspecto nuclear da especificidade da

    medicina como prtica social, a produtividade do trabalho constitui

    tema central de vrios estudos que buscam no econmico e, em

    particular, no momento da produo, um elemento explicativo da

    articulao estrutural da medicina, como conhecimento ou como

    prtica. Pode-se utilizar os termos de Polack para indicar o contedo

    dessas formulaes, embora com a advertncia de que tais termos

    no as sintetizam, mas apenas expressam o sentido geral em que se

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    orientam: Dirigindo-se fora de trabalho, o ato teraputico eleva

    seu nvel ou contribui para sua manuteno no quadro de uma

    reproduo (...). A Medicina no visa essencialmente o domnio dos

    quadros organizativos da economia, mas a definio permanente de

    um nvel de produtividade. As foras produtivas (a energia proletria)

    constituem o seu alvo eleito. Por isso mesmo, a influncia da

    atividade sanitria sobre a marcha da economia relativamente

    direta, imediata. O sistema de cuidados tem sob seu controle a parte

    humana da atividade de produo, o trabalho (...). Toda a medicina

    ato de regulao da capacidade de trabalho. A norma do trabalho

    impregna o julgamento dos mdicos como um ponto de referncia

    mais preciso que um valor biolgico ou fisiolgico mensurvel. A

    sociedade atribui, portanto, ao trabalho um valor de norma

    biolgica.5 O processo de trabalho mdico seria ento permeado, em

    todos os seus momentos, pela necessidade basicamente econmica

    de reproduo da fora de trabalho. ainda nesse sentido, embora

    no quadro de uma problemtica mais restrita, que se orienta Dreitzel

    ao desenvolver a anlise do que designa atitude instrumentalista

    para o corpo como base do processo de obteno da produtividade e

    do lucro e como elemento explicativo de aspectos da organizao dos

    servios mdicos nos Estados Unidos: Em nossas sociedades

    capitalistas a sade institucionalmente definida como a capacidade

    de produzir o excedente apropriado pelos proprietrios dos meios de

    produo. Isso explica porque na sociedade americana dificilmente se

    proporciona mais servios desprezveis para os pobres e os velhos

    que no vendem sua fora de trabalho no mercado. Por outro lado,

    muitas indstrias empregam seus prprios mdicos no por razes

    altrustas, mas afim de manter sua fora de trabalho em boas

    condies fsicas e impedir que os 'malingerers'* decidam adoecer o

    que representa freqentemente a ltima defesa contra o 'stress' e a

    alienao do trabalho industrial6

    A questo da produtividade, em particular como se expressa

    nesse ultimo texto, permite introduzir algumas observaes com

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    vistas ao dimensionamento progressivo dos nexos que se

    estabelecem entre a prtica mdica e processo de acumulao, bem

    como, paralelamente, dos fatores que se encontram diretamente

    relacionados medicalizao da sociedade. O trecho citado enfatiza

    um aspecto relativamente restrito da articulao entre a medicina e a

    reproduo da fora de trabalho, ao referir-se ao trabalhador

    efetivamente incorporado ao processo de produo, mais

    especificamente, na produo industrial. Em decorrncia, requer,

    antes de mais nada, que se explicite que a questo da reproduo da

    fora de trabalho se coloca tambm sob outros ngulos, o primeiro

    dos quais diz respeito s exigncias de constituio progressiva da

    fora de trabalho potencialmente utilizvel, quer no sentido da

    necessria reposio de trabalhadores, quer como garantia frente a

    eventuais oscilaes na quantidade de trabalhadores requeridos pela

    produo e, poder-se-ia acrescentar embora se encontre implcito

    no recurso s idias genricas de fora de trabalho e produtividade

    tambm no sentido da constituio e reposio da fora de trabalho

    cujo significado para a produo resulta de seu papel no processo de

    realizao da mais-valia.

    Permanecendo ainda no plano das relaes com a prtica

    econmica e o momento da produo necessrio, portanto, para

    visualizar as possibilidades a contidas de extenso dos cuidados

    mdicos, que se considere os aspectos referentes fora de trabalho

    tanto no interior do processo produtivo quanto fora dele. Em outros

    termos, apreender genericamente as determinaes da prtica

    mdica a partir do momento da produo equivale a admitir que a

    garantia da manuteno do processo de produtividade do trabalho

    tenderia a estender o mbito de ao da medicina para alm da fora

    de trabalho incorporada produo, com vistas disponibilidade em

    nveis controlveis, de volumes adequados de fora de trabalho

    potencial. Esse , sem dvida, um dos pontos a serem considerados

    para explicar a nfase atribuda a programas mdicos destinados a

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    diferentes grupos sociais, tais como os que se desenvolvem na rea

    materno-infantil.

    Na necessidade de proporcionar cuidados de sade ao

    trabalhador direta ou indiretamente com vistas a objetivos

    econmicos imediatos encontra-se uma importante explicao para a

    expanso dos servios mdicos, bem como para algumas de suas

    formas de organizao, em particular as que se desenvolvem no

    interior de, ou estreitamente vinculados a setores de produo de

    bens materiais. Mas, no expressando todas as ordens de

    determinaes que incidem sobre a prtica mdica, esse fator no

    responde tambm inteiramente pela incorporao crescente ao

    cuidado mdico de vrias categorias de consumidores, em particular

    os diferentes grupos etrios e as categorias sociais marginalizadas do

    processo de produo. Esse ponto dever ser posteriormente

    retomado.

    reproduo da fora de trabalho como ngulo privilegiado a

    partir do qual se pode apreender, ao nvel do prprio objeto da

    medicina enquanto prtica tcnica, a sua relao com o processo de

    acumulao, deve-se agregar outro aspecto pelo qual ela se articula

    de forma tambm relativamente direta com a produo econmica.

    Este aspecto diz respeito propriamente aos meios de trabalho

    mdico.

    J se fez referncia anteriormente, s modificaes que se

    processam continuamente na prtica mdica com o desenvolvimento

    das cincias biolgicas e a incorporao de novas tcnicas de

    diagnstico e teraputica. Considerados da perspectiva do processo

    de trabalho mdico, os novos conhecimentos biolgicos e as

    possibilidades ento abertas para novas intervenes tcnicas dizem

    respeito, em um primeiro momento, a modificaes internas no

    processo de trabalho, a mais significativa das quais se encontra nas

    mediaes que se estabelecem entre o mdico, seus instrumentos de

    trabalho e seu objeto. A imediatez da relao entre mdico e paciente

    corresponde prpria imediatez da relao entre o mdico e seus

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    instrumentos de trabalho no apenas no sentido de que a relativa

    simplificao tecnolgica desses instrumentos garante a sua posse

    integral pelo mdico, mas sobretudo na medida em que permite

    estabelecer como que um circuito relativamente fechado, no prprio

    momento do ato teraputico, entre conhecimento mdico e aes

    tcnicas. Esse circuito acaba necessariamente por romper-se desde

    quando entre o mdico e o objeto de sua prtica interpem-se novos

    meios de trabalho consistentes em um conjunto sempre crescente de

    recursos materiais cuja utilizao substitui etapas anteriormente

    inerentes ao ato clnico.

    O sentido dessas alteraes no se esgota, todavia, na

    modificao interna do processo de trabalho mas diz respeito a uma

    forma particular de articulao entre a medicina e a produo em

    geral. Desse ngulo, os novos elementos materiais que compe o

    processo teraputico e que vo desde produtos sempre renovados

    da indstria farmacutica, at uma enorme variedade de

    equipamentos e maquinrias produzidas por muitos setores

    industriais devem ser considerados como mercadorias cuja

    produo externa medicina, mas cujo consumo s se efetiva

    atravs dela. A prpria organizao de todo o campo da medicina

    (desde o tipo de conhecimento elaborado e as formas de sua

    transmisso, at a constituio de princpios legitimadores, a nvel

    tico ou jurdico, do exerccio da prtica), com seu efetivo monoplio

    sobre as aes de sade, garante prtica mdica uma posio

    central na distribuio e consumo dessas mercadorias e, portanto, na

    realizao de seu valor, permitindo que se complete o processo de

    valorizao do capital aplicado na produo industrial.

    Esse segundo aspecto, pelo qual a medicina se articula j no

    apenas com o momento imediato da produo, mas tambm com a

    realizao da mais-valia produzida em diferentes setores industriais,

    leva a indagar acerca das propores em que o prprio contedo da

    prtica teraputica poderia estar sendo determinado pela

    necessidade de reproduo de capitais aplicados em diferentes

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    setores da produo. E isto, na medida em que a medicina pode

    responder por um consumo sempre crescente de bens, impostos pela

    lgica da produo capitalista.7 Por outro lado, e visto que se

    encontra subordinada a essa racionalidade mais geral, a prtica

    mdica tambm encontraria a o seus prprios limites. Analisando o

    conhecimento e a prtica mdica atuais, Laura Conti conclui que eles

    se orientam para a observao e o aumento da competio

    produtiva que se define no apenas no plano da produtividade

    individual, mas deve lev-los ainda a respeitar os limites a partir dos

    quais estariam afetando a competncia produtiva em um sentido

    mais geral: Curar os infartos confirma a lgica da competncia e por

    isso o fazemos (...). Criar um tipo de vida com menos 'stress', capaz

    de reduzir os casos de infarto significaria diminuir a competncia em

    nossa vida: por isso no o fazemos. O mesmo poderamos dizer do

    cncer do pulmo, cuja preveno significaria intervir na competncia

    eliminando-a, seja nas indstrias, seja junto aos automobilistas...8

    Mais do que explicar o processo de extenso da prtica mdica

    tal como vem sendo aqui entendido e ao qual ela no alheia

    essa forma de articulao da medicina com o econmico permite

    identificar a constituio de um campo problemtico que interessa de

    imediato caracterizar pelo menos em um de seus aspectos: o que diz

    respeito questo dos custos mdicos progressivos, em grande parte

    decorrente da incorporao do custo dos produtos industriais ao valor

    do cuidado mdico. Ainda que tais custos se encontrem cada vez

    mais socializados, por meio da participao do Estado nessa rea de

    produo e consumo, eles acabam por introduzir um dos elementos

    contraditrios da prtica mdica em seus processo de extenso, na

    medida em que esse processo, no tendo sido aleatrio e no ponto

    central de crise dado pelo fato de que as alternativas de soluo

    poderiam afetar componentes da prtica mdica igualmente

    necessrios, no sentido de que respondem a determinaes

    estruturais igualmente significativas, ainda que essas determinaes

    se desdobrem em dimenses distintas explicativas de um ou outro

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    dos componentes. A fim de explicitar o sentido dessa afirmao deve-

    se introduzir um aspecto ainda no considerado do processo de

    generalizao do consumo mdico. Antes, todavia, registre-se, de

    passagem, que o interesse especfico dessa questo para o

    encaminhamento do estudo dado, em grande parte, pelo fato de

    que aqueles dois aspectos da prtica mdica a necessria extenso

    dos servios e a elevao dos custos (tambm necessria, conforme

    anlise prvia) conjugam-se para dar origem a vrias tentativas de

    racionalizao desse setor, aos quais no alheia a proposta da

    Medicina Comunitria.

    Em seu sentido mais geral, a questo levantada a propsito dos

    custos remete a um aspecto muito importante da articulao da

    medicina na sociedade de classes, presenteado pelo significado

    poltico e ideolgico da extenso da prtica mdica e que responde

    tambm, fundamentalmente, pela irreversibilidade acima referida, do

    processo. A necessidade de manter e recuperar a fora de trabalho

    com vistas ao aumento da produtividade, se proporciona o ngulo

    privilegiado da articulao da medicina com o econmico e revela a

    sua participao relativamente direta na organizao do processo

    produtivo, no esgota, quer a anlise de seu papel na reproduo da

    estrutura de classes, quer a identificao dos elementos subjacentes

    medicalizao e s formas por ela assumidas.

    A fim de identificar sob outros ngulos as determinaes que

    incidem sobre a prtica mdica, necessrio considerar que as

    condies de continuidade do processo de acumulao no se

    encontram dadas inteiramente no plano da reproduo, a nvel

    econmico, dos fatores de produo. Na medida em que as relaes

    de produo so relaes de classe que se processam atravs de

    uma contradio fundamental, consistente na oposio entre o

    carter social da produo e o carter privado da apropriao, elas

    implicam a possibilidade do desenvolvimento dos antagonismos de

    classe e da transformao do modo de produo. Nesse sentido, a

    continuidade do processo de acumulao capitalista depende da

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    presena de condies supra-estruturais ideolgicas e polticas

    capazes de assegurar que no se manifestem contradies j

    instaladas ao nvel da estrutura da produo, adquirindo, tambm a

    nvel poltico, a forma de antagonismo. Depende, em outros termos,

    das possibilidades de exerccio da hegemonia, entendida como

    domnio ideolgico e poltico das classes no poder sobre as demais

    classes na sociedade, o qual se processa atravs de um conjunto de

    instituies privadas ou estatais.

    O conceito de hegemonia, elaborado por Gramsci com vistas a

    explicar, atravs da anlise do ideolgico e do poltico, as condies

    de sujeio das classes dominadas, permite apreender as relaes

    entre as classes no sentido de direo cultural e poltica. Distinguindo

    a sociedade civil da sociedade poltica ou Estado, Gramsci refere-

    se funo de domnio direto ou de comando exercido pelo Estado

    como organizao poltico-jurdica, expressas atravs da obteno de

    um consenso coletivo acerca da orientao impressa ao poder pelo

    grupo dominante, quer atravs da direo intelectual e moral, quer

    atravs da coero por via dos tradicionais aparelhos repressivos do

    Estado. Essa distino entre sociedade civil e sociedade poltica

    representa um aspecto central da construo terica de Gramsci que

    no cabe aqui discutir. Mas, ainda que em certo contexto ela adquira

    o carter de distino metodolgica9, seu significado imediato decorre

    da possibilidade de lembrar que as condies supraestruturais de

    continuidade ou de superao da estrutura elaboram-se no conjunto

    das relaes e instituies da sociedade e no necessitam ser

    exclusivamente identificados com agentes e instituies diretamente

    articuladas com a estrutura do Estado. o papel dos intelectuais ou

    das instituies de cultura (escola, igreja, imprensa...) na

    elaborao da ideologia dominante que as anlises de Gramsci

    reforam, permitindo buscar nas prticas aparentemente mais

    distanciadas da dominao, elementos de confronto ideolgico-

    poltico na sociedade de classes. Por outro lado, a participao do

    Estado nesse processo, de forma mais ou menos direta, e atravs de

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    distintos aparelhos, representa uma constante na realizao histrica

    do capitalismo, embora assuma dimenses mais marcadas na fase

    atual da reproduo.10

    O que importa acentuar que o conceito de hegemonia permite

    apreender a manifestao das relaes de classe, a nvel poltico e

    ideolgico em sua articulao com a estrutura da produo. E mais,

    que remetendo s condies de exerccio do domnio poltico-

    ideolgico como elemento necessrio do processo de reproduo

    social, revela, em contrapartida, a importncia da atividade poltica

    como potencialmente transformadora das relaes de produo: O

    fato da hegemonia pressupe indubitavelmente que se tenha em

    conta os interesses e as tendncias dos grupos sobre os quis ela se

    exercera, que se forme um certo equilbrio de compromisso, que o

    grupo dirigente faa sacrifcios de ordem econmico-corporativa; mas

    tambm indubitvel que estes sacrifcios e este compromisso no

    podem referir-se ao essencial; porque se a hegemonia tico-poltica,

    no pode deixar de ser tambm econmica, no pode deixar de ter

    seu fundamento na funo decisiva que o grupo dirigente exerce no

    ncleo decisivo da estrutura econmica.11 Em outros termos, as

    possibilidades de exerccio da hegemonia no se encontram j dadas

    historicamente mas se efetivam atravs de um processo contraditrio

    de enfrentamentos e, por vezes, de concesses, entre classes e

    fraes de classes, indicando a presena, ao menos potencial, de

    distintas ideologias e projetos polticos capazes de desempenhar

    papel efetivo na transformao da estrutura.

    A anlise da articulao da medicina com o poltico e o

    ideolgico encontra suporte em muitos estudos que se aplicam

    medicina, quer como campo do saber, quer como conjunto de

    prticas cristalizadas em instituies hospitais, escolas mdicas

    quer como servio cuja produo e consumo se estruturam conforme

    dinmica poltica. o caso, por exemplo, das anlises de Foucalt,

    atravs das quais se pode acompanhar, sob a forma de uma historia

    poltica da sociedade capitalista, a partir do sculo XVIII, seja a

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    constituio da loucura como doena mental e objeto da medicina,

    seja a emergncia com a clinica, de um uso inteiramente novo do

    discurso cientifico. O mesmo se aplica a numerosos estudos que

    intentam a crtica das prticas psiquitricas, especialmente queles

    que, partindo da anlise do poder no interior da instituio

    psiquitrica, buscam a sua articulao com a distribuio do poder no

    conjunto da sociedade12. Deve tambm merecer referencia o estudo

    de Boltanski acerca da difuso das normas da moderna puericultura o

    qual, embora omitindo a perspectiva da reproduo das relaes de

    classe, quer a nvel de sua constituio na estrutura de produo,

    quer a nvel de suas manifestaes supra-estruturais, proporciona

    todavia importantes indicaes sobre a possibilidade de incorporao,

    pela pratica mdica, de um projeto de normatizao das condutas de

    diferentes classes sociais. Fundamentando-se em rico material

    emprico, o estudo revela como, equiparando-se instituio escolar,

    a medicina, a a partir da tentativa de estruturao simblica, para

    toda a sociedade, das representaes de sade e doena empreende

    a tarefa de regular a vida privada, em particular dos estratos sociais

    inferiores (os novos brbaros ou trabalhadores da cidade).

    Compartimentalizando a anlise no nvel simblico-ideolgico, o

    estudo no ultrapassa de muito as abordagens tradicionais do

    processo educativo em sua dimenso socializadora. Mas tampouco se

    reduz a elas, na medida em que, por um lado, proporciona elementos

    para se desvendar a coerncia e o carter prprio de classe das

    configuraes de saber e pratica referentes sade, por outro, e

    conseqentemente, deixa aberta a possibilidade de analise dessa

    dimenso pedaggica da pratica medica como expresso parcial do

    processo de reproduo das relaes de classe.13

    A importncia desses estudos para o problema em questo

    decorre do fato de indicarem a partir de diferentes perspectivas, e

    com distinto instrumental terico a impossibilidade de descartar a

    dimenso poltico-ideolgica como explicativa dos aspectos que

    revestem a prtica mdica, o que no significa que o aparato

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    conceitual de que se servem remeta sempre s relaes de classe

    como elemento nuclear dos processos que se desenvolvem a nvel

    poltico-ideolgico. Por outro lado, revelam a possibilidade de anlise

    dessa questo por referencia a distintos elementos da prtica. De

    imediato, entretanto, a articulao da medicina com o processo da

    hegemonia poltico-ideolgica ser considerada atravs das

    possibilidades de aumento do consumo de servios mdicos, vale

    dizer, do sentido que adquirem no desenvolvimento dos

    antagonismos de classe, as polticas referentes ao aumento do

    consumo de bens e servios, sejam ou no conduzidas diretamente

    pelo Estado.

    O processo amplo de controle dos antagonismos, visando

    mant-los dentro de limites compatveis com a reproduo da

    estrutura, expressa, em sua dimenso ideologia mais geral, a nfase

    na unidade social negadora da existncia da diferenciao bsica

    entre classes identificadas no plano das relaes de produo. Essa

    nfase, todavia, no incompatvel com o reconhecimento e mesmo

    a justificativa da desigualdade no plano da distribuio de bens de

    consumo ou, ainda, com o acionamento de mecanismos capazes de

    garantir a elevao dos nveis de consumo. Mas trata-se, j ento, de

    uma para orientar a anlise, entre outras razes, porque acabaria por

    perder, em teor explicativo, o que ganharia em extenso.

    desigualdade que no se refere s fontes de obteno da renda

    trabalho ou propriedade e sim ao seu montante e, por essa forma, a

    perspectiva se desloca da contradio para a hierarquizao das

    categorias sociais segundo um quantum de consumo. Nesse

    sentido, parece adequado considerar que a prpria tica da

    diversidade do consumo das diferentes categorias sociais pode j

    representar um mecanismo potencia de suavizao de conflitos

    sociais, na medida em que corresponda a um deslocamento para a

    exclusiva esfera do consumo, de antagonismos identificveis ao nvel

    da produo. Essa tica tem a vantagem de proporcionar um

    elemento de manejo econmico e poltico possvel, dado que a

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    elevao controlada do consumo no afeta o essencial da estrutura

    de produo e que nveis mais elevados de consumo podem

    constituir, particularmente em certas conjunturas, aspecto

    significativo da hegemonia, conquanto deva ser mantido em limites

    compatveis coma realizao de taxas adequadas de acumulao

    limites apenas definveis por relao dinmica econmica e poltica

    no plano das formaes sociais. Neste plano, a estrutura de classes

    no se reduz s duas classes polares identificadas ao nvel do modo

    de produo capitalista burguesia e proletariado mas expressa-se

    atravs de uma multiplicidade de classes, fraes de classes,

    camadas, cuja situao de classe deve ser todavia referida s

    relaes de produo, ou seja, s formas pelas quais se definem as

    suas posies na estrutura da produo. Do fato dessa multiplicidade

    de classes, que s podem ser apreendidas e analisadas pelo estudo

    da forma como se realiza o modo de produo em cada sociedade

    concreta, decorre em parte a possibilidade do deslocamento da

    nfase na diferenciao dada ao nvel da produo para aquela que

    se d ao nvel do consumo ou , sob outra forma, a possibilidade de

    sobrepor presena de uma estrutura de classes a tica da

    estratificao social.

    Atentar para a ocorrncia desse deslocamento, bem como para

    o fato de que ele pode estar em correspondncia com os interesses

    econmicos, polticos e ideolgicos das classes dominantes, no

    significa que se deva visualizar o processo poltico to-somente pelo

    ngulo da dominao. O interesse dessa perspectiva decorre da

    possibilidade que oferece para a compreenso de uma das dimenses

    das polticas sociais destinadas a proporcionar consumos

    especficos tais como educao, sade, habitao, e que na fase atual

    do capitalismo encontram no Estado o seu agente privilegiado.

    importante reafirmar que tais polticas no correspondem a qualquer

    alterao significativa nas relaes de produo e que, alm do

    sentido que adquirem no processo poltico podem mesmo

    corresponder ao interesse imediatamente econmico do capital, quer

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    por ativarem determinadas reas de produo, quer por

    representarem a garantia de um salrio indireto o qual, refletindo-se

    em uma redistribuio da renda ou em um maior montante de

    consumo, traz ademais a vantagem de no incidir diretamente sobre

    o capital sempre que os custos so socializados sobretudo por meio

    da participao do Estado. Isto no significa que as polticas sociais

    correspondem sempre e estritamente aos interesses dominantes mas

    apenas que, manipuladas dentro de certos limites, elas no ameaam

    a estrutura de poder e, como tal, adquirem sua potencialidade de

    utilizao no processo poltico. Tal potencialidade e colocado o

    Estado no centro do processo acresce-se do fato de que,

    incorporando efetivamente, em sua funo de controle do

    desenvolvimento de antagonismos polticos, interesses imediatos das

    classes dominadas mais freqentemente o que se expressam na

    busca de elevao de renda o Estado reveste mais facilmente o

    carter de entidade representativa dos interesses coletivos.

    A percepo da desigualdade no plano da distribuio e do

    consumo de bens, mesmo quando implica o deslocamento das

    relaes de produo do centro do processo poltico-ideolgico, no

    corresponde, todavia, superao dos antagonismos. E isso, em

    duplo sentido: persiste o antagonismo bsico, dado j ao nvel das

    relaes de produo, ainda quando no se manifeste sob essa

    especifica forma, desenvolvem-se outras ordens de conflitos,

    secundrios por referencia queles, mas potencialmente capazes de

    assumir a forma de antagonismo de classe, a depender do processo

    amplo de realizao da estrutura social. Os interesses manifestos por

    diferentes fraes de classe atravs das exigncias de elevao do

    consumo pelo aumento da renda-salrio ou do acesso a bens de

    servios proporcionados diretamente por instituies privadas ou

    estatais dizem respeito, no plano imediato, a essa ordem de

    conflitos considerados como secundria, e o seu preciso significado

    poltico s pode ser apreendido no plano concreto das relaes

    sociais: a questo particular do mal-estar ou do bem-estar

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    econmico como causa de novas realidades histricas um aspecto

    parcial da questo de correlao de foras em seus diversos graus.

    Podem produzir-se novidades, seja porque uma situao de bem-

    estar tornou-se intolervel e no se v na sociedade nenhuma fora

    capaz de mitig-lo e de restabelecer uma normalidade com os meios

    legais. Pode-se dizer, por conseguinte, que todos esses elementos so

    a manifestao concreta das flutuaes de conjuntura no conjunto

    das correlaes sociais de foras, em cujo terreno se produz a

    passagem destas a correlaes polticas de foras....14 inegvel

    que em diferentes sociedades e em especificas conjunturas polticas,

    a ao de classes ou fraes de classes tem-nas revelado como

    foras sociais, a partir da expresso dessa modalidade de interesses.

    Conseqentemente, se por vezes a hegemonia poltico-ideolgica se

    expressa atravs de interferncias no plano da distribuio e do

    consumo de bens que assumem um carter aparentemente

    independente das relaes de classe, especialmente na medida em

    que podem antecipar-se a qualquer manifestao imediata de

    conflitos de conflitos sociais, preciso considerar que, mesmo na

    incorporao dessa ordem de interesses pela sociedade, revela-se

    tambm a presena potencial das classes no hegemnicas como

    foras sociais. Em outros termos, a compreenso da poltica social

    como parte do processo de controle dos antagonismos, implica que se

    apreenda o fato de que ela expressa, em sua realizao e em suas

    modalidades, a relao das foras sociais ao nvel das sociedades

    concretas.

    Embora no se trate de privilegiar a articulao da medicina

    com o poltico frente ao sentido que adquire no plano da produo

    econmica senso estrito o seu significado respectivo por referencia

    reproduo social s poderia ser apreendido em outro nvel de

    anlise pode-se admitir que o processo pelo qual a prtica mdica

    acabou por tomar necessariamente como seu objeto praticamente

    todas as classes, fraes de classes e camadas sociais constitui

    sobretudo uma das formas de manifestao, no plano poltico, das

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    relaes de classe. O prprio fato de que a enfermidade e a morte se

    distribuam de maneira a revelar as formas de participao dos grupos

    sociais na estrutura da produo e nas oportunidades de consumo

    contribui para tornar a medicina uma rea significativa do ponto de

    vista poltico. Nas alteraes experimentadas pela produo de

    servios mdicos manifestou-se, em seu duplo sentido, o processo

    acima referido de incorporao da desigualdade ao nvel poltico

    ideolgico: expresso a um s tempo, do exerccio da hegemonia de

    classe e das presses por aumento de consumo como potencialmente

    negadoras dessa hegemonia. A histria poltica da medicina, em

    todas as sociedades, revela momentos particularmente expressivos

    dessa ordem de determinaes: Se se considera mais de perto essa

    noo de tica, possvel dar-se conta de que o valor da vida

    humana sofre variaes incessantes em torno de alguns momentos

    de flexo histrica e poltica. Esse valor variou sem dvida, na Frana,

    com a Frente Popular, a Resistncia, a Libertao, a liquidao das

    situaes coloniais, sem que se possa afirmar, por outro lado, o

    paralelismo dessas modificaes com o crescimento econmico e as

    variaes da balana comercial (...). A respeito do valor da vida

    humana e de suas flutuaes, a inrcia do sistema essencialmente

    econmica, as mutaes so poltico-sociais.15 O mesmo fenmeno

    pode ser descrito para a maior parte das sociedades europias, a

    partir do sculo XIX, bem como para as sociedades americanas,

    especialmente no sculo XX. Todavia, importante assinalar a

    relativa impropriedade da compartimentalizao, expressa no citado

    texto, das determinaes econmicas e polticas que incidem sobre a

    prtica mdica. Necessria para efeito de anlise, ela no

    corresponde complexidade da forma de articulao da medicina no

    conjunto das prticas sociais, na medida em que, referidas s

    condies gerais do processo de acumulao, reflita as contradies

    prprias a ele.

    A participao da medicina na dinmica das relaes de classe

    evidencia-se mais facilmente na poca atual, quando a noo de

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    direito sade tornou-se a pedra de toque atravs da qual se

    manifestam as determinaes poltico-ideolgicas que incidem sobre

    a prtica mdica. Todavia, e desde que no se compartimentalize o

    econmico e o poltico-ideolgico no plano concreto da reproduo

    social possvel pensar a progressiva reorganizao histrica da

    prtica mdica como inseparvel de todo o processo de constituio e

    reproduo da estrutura das sociedades capitalistas.

    Notas:

    1. A referncia de Gramsci categoria de intelectuais tradicionais recobrenitidamente a dimenso de neutralidade que, da derivada, cerca a medicina eo mdico: Dado que estas vrias categorias de intelectuais tradicionais sentem

    com esprito de grupo sua ininterrupta continuidade histrica e suaqualificao, eles consideram a si mesmos como sendo autnomos eindependentes do grupo social dominante. Essa auto colocao no deixa deter consequncias de grande importncia no campo ideolgico e poltico: toda afilosofia idealista pode ser facilmente relacionada com esta posio assumidapelo complexo social dos intelectuais e pode ser definida como a expressodessa utopia social segundo a qual os intelectuais acreditam serindependentes, autnomos, revestidos de caractersticas prprias Gramsci,A. Os intelectuais e a Organizao da Cultura, Ed. Civilizao Brasileira, 1968,p 6.

    2. A propsito da persistncia desses distintos padres de distribuio derecursos, inclusive sob o Sistema Nacional de Sade ingls que corresponde modalidade talvez mais extensiva de organizao da produo e do consumomdico em sociedades capitalistas, veja-se: Tudor Hart, J. The Inverse CareLaw, The Lancet, fevereiro de 1971, pp. 405-412.

    3. A prtica mdica, enquanto prtica tcnica que toma por objeto o corpo,permanece individualizada ao nvel do ato teraputico: No convendria decir, alfin de cuentas, que el hecho patolgico slo es captable como tal, es decir,como alteracin del estado normal, en nivel de la totalidad organica y,tratando-se del hombre, em el nivel de la totalidad individual consciente dondela enfermedad se convierte em uma espcie de mal? Canguilhem, G. Lonormal y lo Patolgico, siglo XXI, Buenos Aires, 1971, p.60. Eis a indicao deum dos fundamentos do carter individual do ato teraputico enquanto atoclnico.

    4. Ressaltando a subordinao da medicina a modelos organizacionais e objetivos

    econmicos definidos ao nvel da produo industrial; identificando osfenmenos de poder que se expressam na importncia crescente assumidapela prtica mdica na tarefa de homogeneizao cultural dos c grupos sociaisatravs de seus efeitos na ordem simblica, e de sua subordinao a objetivoseconmicos na esfera do consumo; apontando e descrevendo a iatrogneseclnica e social decorrente daquela expanso e consistente em efeitosnegativos para a sade contradio fundamental da medicina a obra deIllich, consideravelmente divulgada, desempenha papel significativo naproblematizao atual da prtica mdica. Quanto posturadesinstitucionalizadora acima referida, encontra-se assim sintetizada porIllich, aps discutir e descartar vrias alternativas de soluo para aiatrognese social decorrente da medicalizao Tous ces remdes ont unechose en commun, ils tendent a renfocer les processus de mdicalisation. Leur

    faillite invitable nous obligera reconnatre que seule une reductionsubstantielle de loutput global de lentreprise mdicale peut permettre aux

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    homes de retrouver leur autonomie et par l leur sant. Nmesis Medicale,Editions du Seuil, 1975, p. 104.

    5. Polack, J. C. - La medicine du Capital, Maspero, Paris, 1971, pp. 35-36* O termo malingerer designa os indivduos que simulam doena como forma

    de evitar o trabalho.6. Dreitzel, H. P. (ed.) - The social Organization of Health, Recent Sociology, no. 3,

    The Macmillan Comp., N.Y., 1971, Introduo7. As instituies de sade podem sem dvida atenuar a florescncia das

    enfermidades que a sociedade cria e favorece; mas esta compensao tomanecessariamente a forma imposta pelas leis de mercado e se transforma emconsumos individuais, medicamentos e jornadas de repouso, devidamentecontabilizados, fontes mltiplas de um consumo suplementar e de novos lucros(indstrias farmacuticas, alimentares, aparelhos mdicos, leito e mobiliriohospitalar, etc)... A medicina permite e favorece o deslocamento (para umplano secundrio) dos bens coletivos de preveno, para alimentar uma ondade consumidores individuais de 'objetos de sade' (pastas dentifrciasmilagrosas, vitaminas salvadoras... revistas mdicas, massagens, saunas, etc.).Como representa o executor ideolgico daquele deslocamento, a medicinaenfatiza a equao que relaciona a cura ao ato de consumo, isto compra deum bem. - Polack, J.C. - op. Cit., p. 47.

    8. Conti, L. - Estructura Social y Medicina, in Medicina y Sociedad, EditorialFontanela, Barcelona, 1972, p. 297.

    9. El Planteamiento del movimiento librecambista se basa en un error tericocuyo origen prctico no es dificil de identificar; es decir se basa em la distincinentre sociedad politica y sociedad civil, que de distincin metologica seconvierte en (y es presentada como) distincin organica Pero, dado que en larealidad concreta la sociedad civil y el Estado se identifican Gramsci A. LaPoltica y el Estado Moderno, Ed. Pennsula, Barcelona, 1971, p 95. Comoindicao do sentido complexo da distino entre sociedades civil e sociedadepoltica, ver entre outros, Bobbio Norberto Gramsci y la Concepcin de laSociedad Civil, Cuadernos de Pasado y Presente, n 19, 2. ed. 1972, pp. 65 e

    93 e Portelli, Hughes Gramsci y el Bloque Histrico, Siglo XXI, 1974.10.Analisando a reproduo das relaes de produo, Althusser agrega aoconceito de aparelhos repressivos, o de aparelhos ideolgicos de Estado,desempenhando, todos os aparelhos, em distintas propores, funesrepressivas e ideolgicas: Althusser, L. Ideologie et Appareils IdeologiquesdEtat, La Pense, n 151, junho, 1970. Poulantzas estende o conceito dessesaparelhos que so apenas a materializao e condensao das relaes declasse e de alguma forma as pressupem, no sentido de abranger, alm dasfunes polticas e ideolgicas por eles preenchidas, tambm as econmicas:Poulantzas, N. As Classes Socias no Capitalismo de Hoje, Zahar, R. Janeiro,1975, pp. 26-30. Dada a necessidade de considerar, no decorrer do texto,aspectos muito distintos da prtica mdica, no se adotou o conceito deaparelhos de Estado

    11.Gramsci, A. op. cit., p. 9612.Uma interessante reviso comparativa das tendncias nestas anlises da

    instituio psiquitrica encontra-se em: Castel, Robert Ver ls NouvellesFrontires de la Maladie Mentale, Revue Franaise de Sociologie, n especial,1973, pp. 110-136.

    13.Boltanski, L. Prime Education et Morale de Classe, Mouton, Paris, 1969. Ver, aproposito, o estudo de Establet, R. E Baudelot, C. LEcole Capitaliste enFrance, Maspero, Paris, 1973, no qual, por referencia instituio educacionalpropriamente dita, os autores procedem analiseda participao do aparelhoescolar na reproduo das relaes de classe.

    14. Gramsci, A. op. cit., p. 116.15.Polack, J. C. op. cit., p.43