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Introdução O modelo curricular do Movimento da Es- cola Moderna (MEM) diz respeito a todos os níveis de educação. Surge do trabalho coope- rativo desenvolvido pelos professores do MEM em Portugal ao longo de 30 anos. Sérgio Niza é um dos seus fundadores e líderes educacionais. Tendo como ponto de partida a apresenta- ção das finalidades formativas propostas pelo MEM e a concepção filosófica em que se funda este movimento pedagógico, apresen- tam-se neste artigo a organização das práticas educativas dos educadores do MEM, subli- nhando ainda a teoria de desenvolvimento e aprendizagem de Vigotsky como uma das suas principais inspirações teóricas. O modelo pedagógico do MEM desafia a visão individualista do desenvolvimento in- fantil, propondo uma perspectiva social, em que o desenvolvimento se constrói através de práticas sociais, dentro de parâmetros históricos e culturais. A prática educacional, nomeadamente a que se refere à educação pré-escolar, foi muito in- fluenciada pela teoria do desenvolvimento de Piaget na qual o nível de desenvolvimento da criança é visto como determinante da sua aprendizagem. As oportunidades da criança de agir e explorar, num ambiente rico, no sentido de desenvolver uma compreensão pessoal do mundo, são o foco central dessas práticas. Os professores têm o papel não de ensinar, mas de acompanhar e observar a actividade das crian- ças e de monitorizar o seu desenvolvimento. Alguns especialistas têm apontado a insuficiên- cia desta teoria como base para a fundamenta- ção de práticas consistentes e mobilizadoras do desenvolvimento (Kessler,1991, Smith, 1993). O modelo do MEM partiu inicialmente de uma concepção empírica da aprendizagem feita através de tentativas e erros baseada na teoria de Celestin Freinet. Progressivamente integrou as perspectivas socio-construtivistas de Vigotsky e Brunner (Niza, 1996). Nesta perspectiva, a aprendizagem feita através de interacções socio- culturais enriquecida por adultos e pares, é o im- pulsionador do desenvolvimento. As grandes finalidades a que o modelo pe- dagógico do MEM se propõe são: 1) iniciação às práticas democráticas; 2) reinstituição dos valores e das significações so- ciais; 3) a reconstrução cooperada da cultura (Niza, 1991). Este modelo pedagógico propõe e realça o papel do grupo com um agente provocador do desenvolvimento intelectual, moral e cívico com uma forte ligação ao quotidiano. Esta li- gação dá um maior significado à Escola e vai proporcionar a aprendizagem através de desa- fios baseados nos problemas dos grupos e da comunidade. Princípios filosóficos e teóricos A perspectiva sociocêntrica O modelo pedagógico do MEM adopta 5 ESCOLA MODERNA Nº 5•5ª série•1999 A influência de Vigotsky no modelo curricular do Movimento da Escola Moderna para a educação pré-escolar 1 Maria Assunção Folque ESCOLA N. 5 6/12/06 13:25 Página 5

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Introdução

Omodelo curricular do Movimento da Es-cola Moderna (MEM) diz respeito a todos

os níveis de educação. Surge do trabalho coope-rativo desenvolvido pelos professores do MEMem Portugal ao longo de 30 anos. Sérgio Niza éum dos seus fundadores e líderes educacionais.

Tendo como ponto de partida a apresenta-ção das finalidades formativas propostas peloMEM e a concepção filosófica em que sefunda este movimento pedagógico, apresen-tam-se neste artigo a organização das práticaseducativas dos educadores do MEM, subli-nhando ainda a teoria de desenvolvimento eaprendizagem de Vigotsky como uma dassuas principais inspirações teóricas.

O modelo pedagógico do MEM desafia avisão individualista do desenvolvimento in-fantil, propondo uma perspectiva social, emque o desenvolvimento se constrói através depráticas sociais, dentro de parâmetros históricos eculturais.

A prática educacional, nomeadamente a quese refere à educação pré-escolar, foi muito in-fluenciada pela teoria do desenvolvimento dePiaget na qual o nível de desenvolvimento dacriança é visto como determinante da suaaprendizagem. As oportunidades da criança deagir e explorar, num ambiente rico, no sentidode desenvolver uma compreensão pessoal domundo, são o foco central dessas práticas. Osprofessores têm o papel não de ensinar, mas deacompanhar e observar a actividade das crian-

ças e de monitorizar o seu desenvolvimento.Alguns especialistas têm apontado a insuficiên-cia desta teoria como base para a fundamenta-ção de práticas consistentes e mobilizadoras dodesenvolvimento (Kessler,1991, Smith, 1993).

O modelo do MEM partiu inicialmente deuma concepção empírica da aprendizagem feitaatravés de tentativas e erros baseada na teoria deCelestin Freinet. Progressivamente integrou asperspectivas socio-construtivistas de Vigotsky eBrunner (Niza, 1996). Nesta perspectiva, aaprendizagem feita através de interacções socio-culturais enriquecida por adultos e pares, é o im-pulsionador do desenvolvimento.

As grandes finalidades a que o modelo pe-dagógico do MEM se propõe são:

1) iniciação às práticas democráticas; 2)reinstituição dos valores e das significações so-ciais; 3) a reconstrução cooperada da cultura(Niza, 1991).

Este modelo pedagógico propõe e realça opapel do grupo com um agente provocador dodesenvolvimento intelectual, moral e cívicocom uma forte ligação ao quotidiano. Esta li-gação dá um maior significado à Escola e vaiproporcionar a aprendizagem através de desa-fios baseados nos problemas dos grupos e dacomunidade.

Princípios filosóficos e teóricos

A perspectiva sociocêntrica

O modelo pedagógico do MEM adopta

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uma perspectiva sociocêntrica no qual o grupose constitui como o lugar desafiador ideal parao desenvolvimento social, intelectual e moraldas crianças. A vida do grupo organiza-senuma experiência de democracia directa, nãorepresentativa, onde se privilegia a comunica-ção, a negociação e a cooperação. De acordocom Niza, a cooperação é o estado mais avan-çado de desenvolvimento moral.

«Esta perspectiva de fazer do grupo-turmaem cooperação, o centro de toda a actividadee de toda a dinâmica social, retira a este mo-delo de trabalho o enfoque pedocêntrico emque as actividades e organização do trabalhose centram na criança em abstracto.»

A organização do trabalho partilhada comas crianças permite que estas participem de-mocraticamente e assim desenvolvam a coo-peração, através de uma organização coopera-tiva do trabalho.

A aprendizagem é impulsionada mais pelogrupo do que pelo professor ou por cadacriança individualmente. Comunicação e tro-cas entre o professor e as crianças e entre ascrianças, são uma maneira de construir aaprendizagem através de processos cooperati-vos, «todos ensinam e todos aprendem» (Niza,1996). O conhecimento nas salas de aula doMEM não é visto como propriedade privada.Em vez disso, a aprendizagem individual é sis-tematicamente estendida a todo o grupo ondeas crianças são encorajadas a comunicar.

Assim, a comunicação tem uma dupla fun-ção. Primeiro, a comunicação pode ser vistacomo activadora de uma função cognitiva queocorre quando se pede às crianças para fala-rem sobre as suas acções ou experiências.Neste caso, tem início um processo metacog-nitivo que lhes permite perceberem melhor oque têm a comunicar (Vigotsky, 1987). Em se-gundo lugar, a comunicação também tem umafunção social quando a informação é parti-lhada e disseminada de modo a que possa serutilizada pela «comunidade» e pelo escrutíniopúblico do conhecimento.

As perguntas que as crianças fazem sobre as

experiências dos outros podem levar os seusautores a questionarem-se a eles próprios e asentirem a necessidade de serem mais explíci-tos. O importante papel da linguagem, no de-senvolvimento cognitivo foi sublinhado porVigotsky que considerava que o significado so-cial dava sentido a esta prática (Niza, 1995 a).

Os conteúdos curriculares radicam na «vida»

O modelo do MEM propõe um currículo ba-seado nos problemas e motivações da vida reale uma escola profundamente integrada na cul-tura da sociedade que serve. Uma escola ligadaà vida e não um nicho cultural (António Sérgio).

O papel da escola deverá ser o de propor-cionar uma aprendizagem que tenha um signi-ficado social, através de uma troca de conheci-mentos numa interacção constante com acomunidade. As actividades do jardim de in-fância têm um significado funcional ao consti-tuírem-se como algo que interessa e é útil parao grupo no seu contexto sociocultural. Numaforte ligação com a comunidade, as criançasmultiplicam as suas fontes de informação, etêm oportunidades de nela intervir, na procurae resolução de problemas. Num centro Infantildentro da cidade onde o parque das criançasestava localizado num local público, um grupode crianças esteve envolvido num projectocujo objectivo era melhorar esta área. Entre-vistaram outras crianças, pais e habitantes lo-cais sobre as condições do parque, escreverampara instituições pedindo materiais e final-mente apresentaram toda a informação, ideiase planos e conseguiram de facto persuadir asautoridades cívicas locais e reabilitarem o par-que de recreio em benefício das crianças assimcomo dos habitantes.

Analogia epistemológica entre ensino--aprendizagem e desenvolvimento do conhecimento

No MEM, procura-se uma analogia episte-

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mológica entre ensino-aprendizagem e desen-volvimento sociocultural nas ciências, nas téc-nicas, nas artes e na vida do dia-a-dia» (Niza,1996). Os processos de ensino e aprendizagemprocuram basear-se nos métodos utilizadospara a construção do conhecimento nas áreascientíficas ou culturais ao longo da história.Rejeitam-se «truques didácticos e simulações»que segundo Sérgio Niza revelam, por parteda escola, uma falta de significado social e des-respeito pelos alunos.

Uma perspectiva Antropológico-Histórica

Partilhando das concepções de Vigotsky,Niza vê o desenvolvimento como profunda-mente cultural e a educação como herança cul-tural. Ele acredita que todos os instrumentos(por exemplo, a imprensa, os computadores)que foram avanços para a Humanidade deve-riam ser incorporados ao nível escolar (Nizaem Grave-Resendes, 1989). É neste sentidoque a literacia adquire uma papel central nestecurrículo (discutido mais à frente). Niza afirmaque «devemos trazer para a escola verdadeirosinstrumentos culturais e não a transposição di-dáctica desses instrumentos» (Niza, 1995 a).Alguns grupos do MEM usam a imprensa paraa reprodução de textos. Inspirada na pedago-gia de Freinet a imprensa é vista como umaforma de desenvolver a escrita e a possibili-dade de alargar a comunicação no espaço e notempo. A imprensa nas escolas do MEM évista como um instrumento cultural. Na prá-tica, este conceito pode no entanto perder asua intenção e significados originais.

«Acontece que por vezes a imprensa éusada só como um instrumento didáctico, per-dendo o seu significado cultural. Quando istoacontece passa a ser mais a imprensa escolardo que a imprensa usada na realidade. Nestesentido é o mesmo que trabalhar com folhasde cálculo. Neste momento, temos a vanta-gem de ter nas nossas escolas, computadoressemelhantes àqueles que funcionam para o

processamento de textos, fora da escola. ».(Niza, 1995 a)

As bases filosóficas do MEM referidas,aplicam-se a todos os níveis de educação: re-velam uma concepção do processo de ensino--aprendizagem, e sua interacção com o desen-volvimento da criança e revelam tambémuma concepção sobre o papel da escola na so-ciedade.

O modelo do MEM na educação pré-esco-lar assenta em três condições fundamentais:

1) Grupos de crianças de idades variadas; 2)Existência de um clima em que se privilegia aexpressão livre; e 3) Proporcionar às criançastempo para brincar, explorar e descobrir.

No que diz respeito à primeira condição, osgrupos são organizados com crianças de dife-rentes idades com o objectivo de um enrique-cimento cognitivo e social das crianças. Ba-seia- se na teoria de Vigotsky no conceito deZona de Desenvolvimento Próximo (ZDP), namedida em que o contacto das crianças comadultos ou pares mais avançados, é promotorde aprendizagem.

«Qualquer esforço de uniformização ousimplificação retiram da educação que é com-plexa e holística, o seu sentido de desenvolvi-mento global». Niza (1995a)

A diversidade é vista como enriquecedorado meio social da sala de aula. Desde o iníciodo MEM, os professores integram crianças comnecessidades especiais nas suas turmas e emcada ano o grupo recebe novos elementos. Ascrianças mais novas são integradas no grupo ena organização da sala pelos mais velhos.

A segunda condição, fala-nos da necessi-dade de um clima de livre expressão que se re-porta ao trabalho de Freinet, reforçada poruma validação pública no grupo, das opiniõesdas crianças, das suas experiências e ideias. Aconstrução do saber das crianças faz-se a par-tir da expressão livre dos seus interesses e sa-beres.

A terceira condição é a existência de um ca-rácter lúdico na exploração das ideias, dos ma-teriais e documentos para que o questiona-

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mento, a interrogação possa surgir. Assim ascrianças serão capazes de activamente se en-volverem e tentarem compreender o mundoque as rodeia.

Os princípios na prática

Centramo-nos agora na organização da salade aula e na aérea da literacia, como exemplodo modo como as práticas do MEM reflectemas bases filosóficas e teóricas do Modelodando uma maior visibilidade à influência deVigotsky.

A organização da sala de aula

No modelo do MEM a organização da salade aula é vista como a estrutura básica quefornece as oportunidades para os alunosaprenderem. Tradicionalmente, o professor éo responsável por esta organização o que in-clui planear o ambiente e as actividades, mo-nitorizar o trabalho das crianças e avaliar. NoMEM, o poder da tomada de decisões e sua re-gulação é partilhado pelo grupo. «A práticademocrática de organização partilhada é esta-belecida em conselho cooperativo. Engloba to-dos os aspectos da vida escolar desde o pla-neamento de actividades e projectos, até a suarealização e avaliação cooperativa» (Niza,1990). As crianças são desde logo iniciadas nautilização dos instrumentos e em práticas deplanificação e avaliação que permitem queeste processo aconteça.

Uma rotina é indispensável para criar umambiente seguro onde o envolvimento cogni-tivo possa ocorrer. A rotina diária dos centrosde educação de infância do MEM está em con-cordância com o papel relevante do grupo naaprendizagem e vida das crianças. Na parte damanhã, após um acolhimento colectivo ascrianças planeiam actividades e projectos queirão levar a cabo individualmente ou em pe-queno grupo, estabelecendo desta forma con-tratos e planos de trabalho. Após o trabalhonas áreas e uma pequena pausa, regressam nofinal da manhã ao grupo para as comunicações

de algumas das aprendizagens feitas. A impor-tância da aprendizagem individual estende-seao grupo quando é pedido às crianças que fa-lem dos processos vividos. Da intervenção in-dividual ou em pequeno grupo para a comuni-cação com o grupo alargado.

Da parte da tarde têm lugar actividades cul-turais. Crianças e educadores organizam dife-rentes actividades como contar histórias, cozi-nhar, conferências, e correspondência comoutras escolas, assim como a vinda de pais eoutros convidados da comunidade.

A reunião do conselho da tarde é uma revi-são partilhada do dia onde as experiências sãotrazidas para o grupo e tem lugar a avalia-ção/regulação. Normalmente, registam-se ideiasde alargar o projecto e as crianças falam dassuas próprias acções. O conselho de sexta--feira à tarde é o grande momento de regula-ção da semana a partir da leitura dos instru-mentos (tabelas, o diário), e onde têm lugar osprimeiros planos para a semana seguinte. Oconselho é um espaço reinstituinte.

Os instrumentos de regulação

O grupo tem ao seu dispor um conjunto deinstrumentos que ajudam a regular o queacontece na sala de aula e que contam a histó-ria da vida do grupo.

O mapa de presenças é um quadro com duasentradas com os dia da semana/mês na fila dotopo e os nomes das crianças na coluna dolado esquerdo. Todas as manhãs, à medidaque chegam, as crianças marcam a sua pre-sença. Esta tabela é usada como um registo depresenças normal mas também oferece outrasoportunidades de leitura como a descobertados ritmos temporais: «Ontem eu não vim àescola. Amanhã, é Sábado. Ninguém vem àEscola!» «É o começo de um novo mês…»«Quem foram os colegas que não vieram aojardim de infância» etc.

O mapa de actividades. As crianças registamas suas escolhas no mapa de actividades – umatabela de duas entradas com o nome de todasas crianças na coluna do lado esquerdo e as ac-

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tividades ou áreas de trabalho na horizontal.Cada criança faz um círculo nas actividadesplaneadas ou em curso e depois de terem ter-minado regressam para o preencher. Esteplano de actividades é usado como um pro-cesso de auto-reflexão sobre a acção na me-dida em que, progressivamente, as criançasaprendem a antecipar as suas actividades fa-zendo os seus planos. O plano de actividadesé completado por uma lista dos projectos emcurso onde se regista o nome do projecto, adata do seu início e provável conclusão e osnomes das crianças envolvidas. Estes instru-mentos são usados em reuniões do conselhopara regular o trabalho individual e do grupo.«Porque é que ninguém tem trabalhado naárea da carpintaria ultimamente?» «Quem estáa trabalhar nos projectos?». Estas questões sãodiscutidas em conjunto e as crianças tomamconsciência do seu próprio trabalho assimcomo do trabalho do grupo, participando emonitorizando o seu processo de desenvolvi-mento estabelecendo contratos de trabalho.

O Diário de Turma é composto por quatrocolunas: «Não gostámos», «Gostámos», «Fize-mos» e «Queremos». As primeiras três colunaspermitem ao grupo fazer uma avaliação socio-moral da semana e a quarta uma participaçãono planeamento organizacional e pedagógico .As diversas colunas do diário vão sendopreenchidas ao longo da semana de acordocom os pedidos das crianças. Estes registos po-dem ser ilustrados ou apoiados pelas tentati-vas de escrita das próprias crianças. No fim dasemana, durante o conselho de sexta-feira, oconteúdo é analisado em debate. Este é ogrande momento de clarificação funcional dosvalores em que o grupo se interajuda na pro-cura de uma realização humana mais demo-crática e solidária. Ocorrências negativascomo «eu não gosto quando o João me dápontapés» ou «Eu não gosto que a Joana estra-gue os meus desenhos» podem, por vezes, darorigem a uma nova regra, que é registadanuma listagem reguladora dos comportamen-

tos sociais do grupo. Este elenco (Combinámos)é aberto às necessidades reais de cada grupo.

Outro instrumento usado nas salas de aulado MEM é o Mapa das Tarefas. As salas são lu-gares onde há muito trabalho a fazer. Tal comoé o grupo que planeia e avalia o seu trabalho,também este é responsável pela manutençãodo espaço e dos materiais: arrumar as ferra-mentas, preparar as refeições, limpar as mesas,regar as plantas ou dar de comer aos animais.Estas tarefas são distribuídas semanalmentepelas crianças, rotativamente, na reunião doconselho na segunda feira de manhã.

Todos estes instrumentos são facilitadoresda organização democrática e ajudam as crian-ças a integrar as suas próprias experiências nogrupo. Pode parecer muito complicado mantertodos estes registos e conseguir que criançasde apenas três anos os usem sistematica-mente. Os grupos do MEM são constituídospor grupos com crianças de várias idades eque, todos os anos, integram crianças novasassim como crianças que já foram socializadasnesta organização. Os mais velhos explicamos procedimentos aos mais novos, e estes,começando por imitá-los, acabam por inte-grá-los nas suas práticas à medida que come-çam a entender as funções e os processos sociais.

A utilização por todo o grupo destes instru-mentos é uma forma de partilhar com as crian-ças o poder de decisão e a avaliação. Por ve-zes, as crianças com idades de 3-6 anos, fazemjulgamentos e tomam decisões baseadas naspróprias vontades e perspectivas. Piaget de-monstrou claramente a dificuldade que elastêm em compreender os pontos de vista dosoutros. Tendo este aspecto em conta, o educa-dor deve ser promotor do desenvolvimento.Ouvir o que a criança tem a dizer e ajudá-la acomunicar com o grupo ajuda a criança a des-centrar-se e a estar mais receptiva a diferentesperspectivas. Tal como na aquisição da litera-cia a criança experiencia a abordagem socio-cêntrica na vida da turma antes de a poderproduzir ou até de a entender. Tal como Vi-gotsky enuncia:

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«qualquer função no desenvolvimento cul-tural da criança aparece primeiro no nível so-cial – processo interpessoal e mais tarde ao ní-vel individual – processo intrapessoal»(Vigotsky, 1987).

Para que este desenvolvimento se processe,o adulto simultaneamente desafia e apoia. Oprofessor aceita a criança individual, ouve-a evaloriza-a, ajudando-a a situar-se no grupo, acomunicar, a ouvir os outros e a colocar assuas experiências individuais no contexto co-lectivo. O professor tem o importante papelde proporcionar um ambiente seguro onde acomunicação possa circular eficazmente.

A literacia como um instrumento cultural

A aquisição da literacia é um longo pro-cesso que se inicia muito cedo e se desenvolvepelo acto social da escrita (Niza, 1995). Esta vi-são baseia-se na concepção de Vigotsky acercada leitura e da escrita como instrumento cul-tural. A concepção do MEM em relação à lite-racia baseia-se em algumas condições: 1) o en-sino é organizado de forma a que as criançascompreendam a funcionalidade do acto de lere escrever. 2) A linguagem escrita é portadorade significado para a criança qualificando oseu quotidiano. 3) A aquisição do código es-crito é encarada como um momento naturaldo desenvolvimento social e cognitivo dacriança, e não como um treino (motor) que éimposto do exterior (Vigotsky em Niza, 1995).

A concepção de Vigotsky da pré-história dalinguagem escrita, chama-nos a atenção para aimportância dos diferentes códigos simbólicoscomo o gesto, a fala, o jogo simbólico e odesenho que constituem simbolismos de pri-meira ordem representando as ideias e a reali-dade. A escrita, antes de se tornar um simbo-lismo de primeira ordem, começa por ser odesenho da fala a que Vigotsky chamou sim-bolismo de segunda ordem. Os educadores noMEM ajudam a que a criança se aproprie destecódigo simbólico, tão importante para oavanço cultural da humanidade, quando fun-cionam como «escribas» que registam pensa-

mentos e ideias das crianças. Uma área de es-crita com uma imprensa (ou o computador),uma fotocopiadora, e outros materiais comodicionários, papel e canetas, convidam tam-bém a criança a escrever e a formular hipóte-ses acerca da linguagem escrita. O texto «li-vre», que a criança dita à educadora pode ser oponto de partida para muitas outras activida-des como por exemplo o drama, a música, de-senho, pintura, etc. Estas linguagens são esti-muladas nas salas do MEM pois funcionamcomo representações do mundo e ampliam asformas de comunicação.

Da produção à compreensão – processo metacognitivo

A escrita é utilizada como uma estratégiapara facilitar um processo metacognitivo daprodução para a compreensão. A partir dotexto individual, as crianças envolvem-se nadescoberta do código escrito, reproduzindo-oe imprimindo-o na imprensa ou no computa-dor. Começam a produzir textos sem ainda sa-ber escrever.

O simples nome que se escreve para identi-ficar as produções das crianças, convida tam-bém a criança a envolver-se na sua produção eposteriormente na compreensão. Primeiro co-meçam por usar os seus próprios rabiscosidiossincráticos até que descobrem que osseus nomes têm uma certa forma que deve serrespeitada. Nesta fase começam a imitar a es-crita adulta até que conseguem memorizá-la ereproduzi-la sem copiarem. É depois disto quecomeçam a observar com mais atenção, acomparar, a fazer correspondência com sons ecom nomes parecidos e a formular hipóteses«de como funciona». Mas nesta altura as crian-ças talvez já tenham escrito o seu nome cente-nas de vezes.

O aspecto funcional da literacia

Como diz Vigotsky, «ler e escrever devemser coisas de que a criança necessite … escre-

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ver deve ser relevante para a vida». Esta carac-terística, já referida, é central na pedagogia doMEM também no que diz respeito à aquisiçãoda literacia. Escreve-se o que as crianças di-zem, o que fazem, aquilo com que concordamenquanto grupo e o que está planeado. O pa-pel do educador é proporcionar um ambienteonde a escrita tenha uma um papel relevante,de modo a despertar a curiosidade e a pro-gressiva descoberta dos seus códigos. Paraalém dos instrumentos usados na sala de aulapara registar a vida do grupo e documentar asactividades e processos, a escrita tem tambémuma função de comunicação à distância. Porvezes as crianças querem contar a outras pes-soas o que fizeram e descobriram e pedir in-formação que não está disponível na escola.Usando o «Jornal da Turma», e a correspon-dência escrita alargam a comunicação ao exte-rior. O Jornal de Turma é impresso periodica-mente e é composto por uma colecção detextos de crianças, acontecimentos, e projec-tos. São enviados para outras turmas, para oscorrespondentes e para os pais. A correspon-dência com outras escolas é uma forma de asturmas MEM tomarem contacto com as van-tagens da língua escrita, o seu poder comuni-cativo e cultural. Quando chega um pacotedos correspondentes, uma nova fonte de inte-resses, informação e entusiasmo traz vida àturma e provoca uma quantidade de novasideias e trabalhos.

A descoberta do funcionamento da escritanão surge naturalmente, especialmente em co-munidades onde a linguagem escrita não éusada enquanto instrumento cultural.

Num projecto investigação-acção sobre aaquisição da linguagem escrita num bairro ca-renciado de Lisboa, Manuela Castro Neves eMargarida Martins (1994) relatam-nos as difi-culdades sentidas sempre que era pedido àscrianças para trazerem de casa qualquer su-porte de escrita. A maioria das crianças nãoconseguiu trazer nada. As poucas que trouxe-ram alguma coisa foram aquelas que tinhamum ambiente familiar mais estruturado. Para

este grupo, a linguagem escrita era uma maté-ria escolar, e a escola um mundo à parte, gera-dor de insucesso, separado do seu quotidiano.A professora decidiu então pedir-lhes quetrouxessem embalagens vazias de alimentosou de quaisquer outros produtos domésticos.Quando na turma descobriram que conse-guiam ler os rótulos e que essas palavras escri-tas faziam parte do seu dia-a-dia, mudaramcompletamente a sua atitude face às mensa-gens escritas. A linguagem escrita tornou-seafinal algo que já fazia parte dos seu mundo(embora de forma limitada) e um código sobreo qual elas já sabiam alguma coisa. A partirdeste momento a ponte estava feita e as crian-ças aumentaram o desejo de compreender estecódigo que lhes parecia tão distante.

O papel dos professores

Os professores das turmas MEM têm umpapel activo. São agentes cívicos e morais numcontexto de vida democrática. O papel do pro-fessor é promover uma organização participa-tiva, a cooperação e a cidadania democrática,ouvindo e encorajando a liberdade de expres-são, as atitudes críticas, a autonomia e a res-ponsabilidade.

Conclusões

O modelo pedagógico do MEM afirma queo desenvolvimento da criança vai para alémdas actividades individuais de compreensãodo mundo. A criança também se desenvolve apartir de contactos sociais com os pares de di-ferentes idades e adultos que a introduzem naherança cultural da humanidade. Neste sen-tido o pré-escolar tem um papel fundamentalinstituindo uma comunidade cultural na qualsão utilizados os instrumentos culturais queimpelem os seres humanos a avançar no seudesenvolvimento.

A criança é considerada como um tododentro de um contínuo de experiência social eemocional. Se a educação negligencia o pas-

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sado da criança, inibe a sua aprendizagem(Niza em Graves-Resendes, 1989). A liberdadede expressão da criança, as experiências forada escola e as suas motivações são o ponto departida para estudos e projectos. A família e acomunidade são fontes de informação e co-nhecimento.

A educação para a vida democrática é pra-ticada nas escolas do MEM onde a cidadaniada criança constitui uma área de educação fun-damental. Uma abordagem sociocêntrica emvez de uma pedagogia centrada no adulto ouna criança, é considerada vital para a aprendi-zagem e desenvolvimento.

A tomada de consciência pelas crianças doseu processo de aprendizagem, através de es-tratégias organizacionais e circuitos de comu-nicação, enriquece o desenvolvimento cogni-tivo e social valorizado pela relevância que sedá à escrita e à língua (Vigotsky, 1987).

Finalmente, a importância do grupo propor-cionar à criança uma aprendizagem mais signi-ficativa e desafiadora que lhe permita ir maisalém no seu desenvolvimento, constitui um de-safio genuíno para os educadores de infância.

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1 Trabalho feito no âmbito de um Mestrado em De-senvolvimento Infantil e Educação de Infância, sob a se-guinte proposta: «Influência de psicólogos no currículoem educação de infância. Posteriormente, foi apresentadona Second Warwick International Early years Conference«Building Bridges – Learning for Life» em Março de 1996,e na 6ª Conferência Europeia sobre Qualidade na Educa-ção de Infância «Desenvolvendo Adultos, DesenvolvendoCrianças»- organizada pela European Early ChildhoodEducation Research Association EECERA e pelo Grupode Estudos para o Desenvolvimento e Educação de Infân-cia GEDEI, em Setembro de 1996 em Lisboa. Publicado(versão inglesa) no Journal of Early Childhood TeacherEducation Volume 19, Nº 2 (1998-99), 131-140.

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