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Nº 120 - Fevereiro 2016 - www.suplementopernambuco.com.br A POÉTICA DA “CRISE” E OUTRAS POÉTICAS EM ANA C., HOMENAGEADA DA FLIP 2016 JANIO SANTOS

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Suplemento Literário do Estado, edição 120, fevereiro de 2016

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  • N 120 - Fevereiro 2016 - www.suplementopernambuco.com.br

    A POTICA DA CRISE E OUTRAS POTICAS EM ANA C., HOMENAGEADA DA FLIP 2016

    JAN

    IO S

    ANTO

    S

  • 2PERNAMBUCO, FEVEREIRO 2016

    COL A BOR A M NESTA EDIO

    EXPEDIEN TE

    Igor Gomes, jornalista

    Caco Ishak, jornalista, tradutor literrio e autor de Eu, cowboy. Rodrigo Casarin, jornalista, atua como freelancer escrevendo sobre literatura. Maurcio de Almeida, escritor, ganhador do Prmio Sesc de Literatura, lana agora o romance A instruo da noite, da Rocco Editora. Thiago Soares, professor do departamento de Comunicao Social da UFPE com mestrado em Literatura sobre a obra de Caio Fernando Abreu. Yasmin Taketani, jornalista.

    Laura Erber, escritora, artista visual e autora de livros como Ghrasim Luca (EDUERJ, 2012) e de Bndicte no se move (e-galaxia, 2014)

    Gianni Paula de Melo, jornalista e mestranda em Teoria Literria na Unicamp

    CA RTA DOS EDITOR ES

    Os tons de rosa e lils que ilustram a capa do Pernambuco este ms no foram aleatoriamente ali dispostos sobre o close no rosto de Ana Cristina Cesar, homenageada este ano no mais importante

    evento de literatura do Brasil, a Flip. As cores em questo so socialmente construdas para apontar uma ideia do feminino, porque eis a uma das curvas na estrada que a jornalista Gianni Paula de Melo decide tomar para escrever sobre a poeta que tanto influenciou, no coincidentemente, uma gerao inteira de novas escritoras brasileiras. Negando toda e qualquer ideia do feminino enquanto espao de dico encerrada em clichs construdos pelos homens, e simultaneamente entendendo a importncia de no silenciar o gnero em sua escrita, Ana C. pode ter sido, como bem pontua o escritor (e professor da poeta) Silviano Santiago, a precursora do que hoje entendemos por queer. A partir de depoimentos, como o do prprio Silviano e de outras pessoas que conviveram ou foram diretamente influenciadas

    por aquela jovem escritora da Zona Sul do Rio de Janeiro, Gianni procura novas aproximaes para a literatura de Ana C., em texto fundamental para entender aquela indomada poesia.

    Destaque tambm para um especial que coloca em confronto direto a ideia desse patriotismo camisa da CBF, visto em manifestaes recentes no Brasil, com o patriotismo de um personagem seminal para a literatura brasileira: Policarpo Quaresma. No texto de Igor Gomes, a Histria reescrita, a fora da pena de um romancista negro de 100 anos atrs colocada frente ao Brasil contemporneo.

    E ainda: entrevista com o escritor portugus Jos Lus Peixoto, que acaba de lanar seu novo romance, Galveias, uma reviso afetiva de Thiago Soares para Onde andar Dulce Veiga?, de Caio Fernando Abreu, alm do comeo de uma srie escrita por Laura Erber sobre por que preciso pensar a problemtica relao institucional do Brasil com a memria no momento em que, por exemplo, se inaugura no Rio de Janeiro uma construo monumental chamada Museu do Amanh.

    Uma boa leitura a todas e todos.

    GOVERNO DO ESTADO DE PERNAMBUCO

    Governador Paulo Henrique Saraiva Cmara

    Vice-governador Raul Henry

    Secretrio da Casa CivilAntonio Carlos Figueira

    COMPANHIA EDITORA DE PERNAMBUCO CEPE

    PresidenteRicardo Leito

    Diretor de Produo e EdioRicardo Melo

    Diretor Administrativo e FinanceiroBrulio Meneses

    SUPERINTENDENTE DE PRODUO EDITORIALLuiz Arrais

    EDITORSchneider Carpeggiani

    EDITORA ASSISTENTECarol Almeida

    DIAGRAMAO E ARTEJanio Santos, Maria Lusa Falco e Karina Freitas

    TRATAMENTO DE IMAGEMAgelson Soares

    REVISODudley Barbosa

    COLUNISTASJos Castello, Marco Polo, Mariza Pontes e Raimundo Carrero

    PRODUO GRFICAJlio Gonalves, Eliseu Souza, Joselma Firmino e Sstenes Fernandes

    MARKETING E VENDASDaniela Brayner, Rafael Chagas e Rosana Galvo

    E-mail: [email protected]: (81) 3183.2756

    Uma publicao da Cepe EditoraRua Coelho Leite, 530 Santo Amaro Recife Pernambuco CEP: 50100-140

    Redao: (81) 3183.2787 | [email protected]

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20163

    Caco Ishak

    Nunca li David Foster Wallace. Lembro de quando Hermano apareceu com Infinite jest debaixo do bra-o, aquela capa horrorosa guisa de souvenir, outro, duas malas, mais um rveillon em Nova York com os pais. Avancei com On the road atochado no sovaco da esquerda. Nove anos se passaram e eu sempre de carona num sof com os beats. Hermano, enamorado por DFW (mais Eggers, Franzen, Easton Ellis). No falava de outra coisa. Embora os tpicos me soassem familiares, foi inevitvel: criei birra. Nove anos se pas-saram antes que eu casse em tentao e, folheando a Piau num frio de cermica, acabei lendo o trecho de This is water, publicado na edio do ms seguinte ao suicdio. Quarenta e seis anos. Eu, 27.

    Que tempos, aqueles. Lquidos de verdade. Tempos que foram se cristalizando sobre minha cabea, uma iCloud negra que me seguia aonde quer que eu fos-se, granizando consideraes, chanfrando opinies cada vez mais absurdas na razo, um processo de fato inconsciente. Eu era um cara criado no sculo 20, afinal. No precisava do DFW me dizendo como era duro viver numa sociedade hipermoderna em que a dvida da ironia paira at sobre um how do you do? corriqueiro. Percebe-se, portanto, que, mesmo desdenhando a obra do moo, no resistia aos peri-fricos. A birra, no fundo, era empatia. E no queria me deixar influenciar pela birra alheia. Nova desculpa pra banir de vez DFW da estante e fenomenologica-mente permitir que minha histria se escrevesse nas nuvens. Uma vez pronta, faltava s botar no papel.

    Na primeira oportunidade, peguei duzentos qui-lmetros de estrada at Salinas, no litoral paraense, cidade fantasma quando fora de poca, onde tinha de andar mil e quinhentos metros pra comprar cigarro, e passei duas semanas escrevendo os treze primeiros captulos. Contato quase nulo com os nativos, fora os alunos da banda marcial evanglica ensaiando britanicamente s 17h todas as tardes na casa em frente, ocasies em que aproveitava pra dormir (em turnos de 3h intercalados por 9h de escrita). ramos os cigarros, cerveja, um panelo de arroz com feijo e carne enlatada numa s gororoba requentada dia aps dia, a sacada, os carapans, o mar e eu. Finda a folga, retornei ao trabalho. Quatro meses depois, o patro faliu e, sem emprego, percorri trs mil quilmetros at o Rio, onde me tranquei num quartinho de empregada em Copacabana por mais duas semanas e escrevi os quatorze captulos restantes. Isso, em 2009. No ano seguinte, tentei a primeira reviso. Nascia o captulo paulista, como batizei o dcimo primeiro aps rees-crever metade. E a: bloqueio. No conseguia passar da vigsima pgina a cada nova tentativa de revisar o texto. O cowboy do Guilherme Pilla, a essa altura, j estava desenhado. Um livro com rosto, desmiolado.

    Foi quando li as Cinco notas sobre a franqueza do Daniel Pellizzari. A sinceridade um caminho de duas vias, assim comeava. Foi quando passei a me dar conta de e aceitar quem era Carlo Kaddish, ou melhor: o que de fato eu compartilhava com Ka-ddish, por pior que fosse. Um mal-estar domstico bem bernhardiano. A conscincia em formao ao longo de quatro anos me distanciando, afundado num sof de frente pra TV. Criou limo. Do limo, deslizei. Sem mais nem porqu, dormi, acordei, dei bom dia ao espelho e botei o p na estrada. Outros sete mil quilmetros ao volante de Belm a Buenos Aires. Sem estepe, nem extintor, quanto menos carta verde. Num Chery QQ 1.1 (18km/l, mdia de 123km/h, mxima de 154km/h) que s foi derrapar a 600km do destino final. Apelei pro Fernet. Em dez dias, saiu a reviso no terrao de um P.H. em San Telmo. Primeiro captulo 70% reescrito.

    Irnico pensar que precisei percorrer quase vinte mil quilmetros no total pra conseguir terminar um livro cujo protagonista no sai do lugar, sempre preso a uma tela, a uma teia. Talvez porque, enquanto autor, eu tenha precisado escapar desse personagem pra criar um universo paralelo, qui expandido, onde eu pudesse ir de encontro a mim mesmo, deixando o personagem livre pra escolher entre seguir meu rastro ou trilhar seu prprio caminho.

    Mas nada disso importa. Importa que, quando enfim publiquei o Eu, cowboy, seis anos aps escrev--lo, me senti autorizado a deixar os beats de lado e ler DFW. Como bom tautista, porm, resolvi ver o filme antes, um aperitivo. E bum:

    Theres nothing more grotesque than somebody going around saying Im a writer. Im a writer. Im a writer (...) To have written a book about how seductive image is, how easy it is to get seduced off of any meaningful path because of the way our culture is now. What if I become a parody of that very thing?

    Estalou. Eu, juiz no banco dos rus. A conscin-cia da pardia no poderia ter surgido seno como consequncia do processo (No consegui passar da terceira pgina, disse a leitora nmero um aps a penltima reviso). O que teria sido posto em xeque caso tivesse lido Although of course you end up becoming yourself por considerar o livro de David Lipsky como mais um perifrico. No . Nem foi cinema. Sentado no mesmo sof, acabei lendo David Foster Wallace pela primeira vez na TV. Nunca o mesmo sof.

    At onde uma obra pode levar o seu escritorDe um rveillon guiado pela leitura de Infinite jest at o isolamento de uma crise, os caminhos para a construo final de um romance

    BASTIDORES

    JANIO SANTOS

    Eu, cowboyEditora Oito e MeioPginas 166Preo R$ 35

    O LIVRO

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20164

    RESENHA

    Quero ser chamado para a Flip s para levantar e fazer essa dancinha do esfrego, que uma das primeiras coisas que se aprende no McDonalds. tipo um movimento de Ssifo,limpando o cho eternamente, compara o autor.

    PADRO, PADRO, PADROO infinito para quem trabalha numa loja dessas parece s ser possvel enquanto regresso mesmo, devido maneira como a humanidade de cada um ali aplacada. No dia a dia limpando o esta-cionamento ainda que ele j esteja limpo e virando hambrgueres sistematicamente, uma palavra se repete insanamente: Padro. Padro. Padro. Padro. Padro. Para tudo preciso seguir o Padro. No h crime maior do que se desviar do Padro, tentar subvert-lo. O Padro o patro, o cara que manda apenas zela rigorosamente pelo Padro. Est l: O gerente de bigode, cofiando os pelos, diz que o direito de greve lei, e que entende a reivindicao dos garotos. Mas que isso no maior que o Padro, que foi atingido no nervo. Ou seja, at entende a insatisfao, mas preciso seguir o Padro. Quer ser voc mesmo? Pode ser, desde que o voc mesmo seja exatamente o que o Padro exige.

    J o tecnicismo brutal aproxima o ambiente de trabalho no qual o jovem vive das piores distopias da literatura. frente da chapa, exige-se que os hu-manos sejam robs, que jamais contestem ordens e que se lembram sempre de que ali no lugar de sindicalismo. Quando o protagonista entra na faculdade, descobre tambm que onde trabalha quase um pecado ou um sinal de arrogncia, esnobismo - buscar aprimorar a inteligncia e pen-sar de uma maneira menos bvia. Por experincia prpria, sei que esta uma realidade que no se limita s redes de fast food. Meu primeiro emprego

    Roberto levava uma vida relativamente tranquila. Na escola particular onde estudava, tirava notas me-dianas e, se estava longe de ser popular, ao menos ningum o atormentava. Em casa, uma srie de hipo-crisias deixava o ambiente artificialmente agradvel o que todos ali consideravam o suficiente para que conseguissem fingir ser uma famlia feliz. As coisas s comearam a mudar quando o pai de Roberto morreu em um acidente de carro. Aps uma breve turbulncia por conta de burocracias, as finanas familiares se estabilizaram. No entanto, a perda jamais seria superada por Roberto. Dali em diante, tudo em sua vida teria a forte marca daquela ausncia.

    Roberto no existe. O arremedo mal delineado de personagem nasceu e morreu justamente no pargrafo acima apenas para servir como exemplo da trajetria comum a muitos outros na literatura brasileira contempornea. Em maior ou menor escala, boa parte dos protagonistas criados pelos escritores nacionais atualmente no todos, mas aqueles ficcionistas que costumam compor o grosso das programaes de encontros literrios, bienais e afins levam uma vida parecida e reagem de maneira semelhante tragdia familiar. Espelham os homens brancos de classe mdia que dominam nossas letras.

    Excelente quando algum rompe com esse tipo como Henrique Rodrigues faz em O prximo da fila. O livro apresenta a histria de um jovem de classe mdia que leva uma vida confortvel, mora em uma boa casa e estuda em uma escola particu-lar. No entanto, aps a morte de seu pai as coisas mudam. Passa a estudar em um colgio pblico e a me precisa arrumar um lugar muito mais mo-desto para viver. Por mais que o protagonista sinta a perda, a vida no permite que se retraia em seus sentimentos. O dinheiro anda escasso e o jovem precisa se virar, arrumar um emprego e ajudar todos ali a sobreviver. Onde encontra? No McDonalds.

    Apesar do nome da multinacional no ser men-cionado no livro, fica evidente que boa parte da histria se passa no ambiente familiar a Henrique, o escritor, cujo primeiro emprego foi exatamente em uma loja da rede, onde esteve frente da chapa ou do balco dos 15 aos 18 anos.

    Eu no tinha nada daquele acesso leitura que depois vai transformar a pessoa em escritor, aque-la histria de pai e me que adoravam ler. Meus parentes no leem meus livros, no compram, e, quando compram, acham que esto fazendo um favor. A literatura brasileira escrita tradicional-mente por uma classe mdia, um pessoal que teve uma boa base de leitura, e isso tambm se reflete nas histrias que so escritas. Muito recentemente que surgiu o marginal, a voz dos excludos, mas desconfio um pouco desse modelo tambm. Eles tm algum espao, mas esto a por cota, como se tivessem que fazer um esteretipo para agradar as elites, mas apenas dentro do que as elites apontam como deve ser. Eu sou um intruso dos dois lados. No sou marginal, mas escrevo sobre um jovem pobre; tambm no represento a classe mdia, mas estou em uma das maiores editoras do pas (a Record), diz Henrique em um longo papo que tivemos por Skype.

    A figura do autor determina o que ele vai tratar como realidade. Uma vez, na faculdade, o pro-fessor falou que eu no deveria escrever poemas complexos e sonetos, mas apenas fazer hip hop s porque era pobre. Esse senso comum no legal. Personagens com essas caractersticas, que passam por esse tipo de rotulao, acabam tendo essa pos-sibilidade de representatividade e acho estranho pessoas to plausveis assim praticamente no existirem na nossa literatura, continuou, defen-dendo a necessidade de ampliarmos a diversidade de pessoas retratadas.

    Henrique me chamou ateno para seu livro antes mesmo de ele ser lanado. Entre uma cerveja e outra na Flip deste ano, o escritor explicou que o romance que estava para chegar s livrarias era inspirado em uma ao que muito repetiu enquanto trabalhava na lanchonete. Ele fez questo de se levantar da mesa e fingir que segurava um esfrego em suas mos para explicar que havia uma maneira correta de se limpar o cho: pegar o instrumento e ir desenhando um oito com o pano e caminhando de r. Ou, numa construo mais poderosa, como ele opta na obra, fazer o smbolo do infinito e ir andando para trs.

    MARIA LUSA FALCO

    Para que o infinito no retroceda O estranho lugar que a literatura de Henrique Rodrigues ocupa hoje Rodrigo Casarin

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20165

    desdobramentos. S estava receoso com relao primeira pessoa, com medo de acharem que era confessional, por isso escrevi em terceira, mas no gostei. Depois escrevi captulos em primeira e percebi que os leitores quem se colocariam na pele do personagem, relata sobre a experincia.

    Se frases cunhadas por ele como as citadas no pargrafo anterior vo alm do mero impacto inicial a primeira explicita a estupidez empresarial; a se-gunda, a crueldade em achar que algum realmente nasce para viver de fazer o smbolo do infinito com um esfrego , na estrutura do romance Henrique tambm no nos apresenta algo plano. Alm da histria de formao do protagonista, em seu en-torno encontramos um timo retrato da delicada realidade que o pas vivia no incio dos anos 1990.

    Dessa forma, fala de um povo com receio da democracia aps se decepcionar com suas prprias

    escolhas que sucederam a ditadura civil-militar e de uma poca de hiperinflao e incertezas eco-nmicas. A realidade da minha me, no entanto, diferente. Ela sabe que vem chegando o ms de reajuste do aluguel, e que a inflao vai dobrar o valor e sozinha no vai conseguir manter a casa e dois filhos, relata o protagonista. Dessa forma, um retrato mais amplo, no apenas particular das classes pobres traado ainda que o particular, no caso, j universalize satisfatoriamente as parcas possibilidades dos jovens menos abastados, maioria em nosso pas.

    o livro das coisas que do errado e voc precisa seguir em frente. Voc est vivendo uma crise, sua famlia est numa situao ruim economicamente e voc tem que continuar, diz o escritor. Essa turma das classes C e D est eternamente na sociedade brasileira condenada a viver o movimento igual ao do esfrego. Esse livro acaba em 1994, antes do Plano Real. Depois essas classes cresceram em termos econmicos, puramente de consumo, mas permanecem bem parades em termos educativos e culturais. muito bom que saiam da faixa de misria, tenham acesso a geladeira e fogo, mas a evoluo precisa ir alm disso. Hoje eles tm todos os bens de consumo vendidos como fundamentais, mas no tm livros em casa. Ainda falta esse salto: termos educao e cultura em larga escala.

    Transformando em literatura a vida das classes C e D que Henrique constri um romance importante em nossa atual cena literria. Precisamos mesmo de mais funcionrios do McDonalds bem repre-sentados artisticamente e de menos personagens escritores, jornalistas ou professores, de menos personagens como Roberto, o mal-acabado do incio deste texto. Esse um passo-chave para a pluralidade social to defendida pelos prprios autores de nosso pas.

    foi de auxiliar administrativo em uma empresa de cobranas, e ali a situao era bastante semelhante. No por acaso, abriram mo dos meus servios logo aps eu questionar algumas lavagens cerebrais que tentavam fazer com os funcionrios.

    Uma das funes da literatura pode ser exata-mente colocar essas realidades em cheque, mostrar a jovens que eles podem e devem! - se mostrar pensantes, principalmente quando so encarados como meras mquinas. Que s vezes preciso se rebelar e socar o gerente bigodudo, nem que seja metaforicamente. Mostrar outras possibilidades e caminhos para o futuro, que pode ser diferente de um infinito que anda para trs.

    Henrique tambm acredita nisso. O escritor tem que ser do contra. Se no for, vai fazer uma literatura muito questionvel. A literatura deve mostrar, por meio da representao simblica, o que no est certo. O germinal, do Zola, est na epgrafe do livro por isso, ele escreveu o romance baseado na greve dos mineiros. A arte no tem, inicialmente, uma misso utilitria e social, mas pode apontar para aspectos bizarros que deixamos de achar errados por causa do cotidiano. Essa mecanizao o oposto da literatura, que a liberdade.

    NECESSIDADE DA ASCENSO CULTURALHenrique, o escritor, velho malandro das letras, sabe o que est fazendo quando usa frases de efeito como mesmo quando tudo para, ningum pode ficar parado ou isso, garoto, vai danar a para sempre, voc nasceu pra isso. Poeta, cronista e organizador de antologias de contos inspirados na Legio Urbana e nos Beatles, autor de livros infantis e assessor de literatura do Sesc, deixou para estrear no romance agora, perto dos 40 anos, e levou seis meses para concluir O prximo da fila. Sabia que histria eu ia fazer, com qual final, quais

    O romance O prximo da fila traz um personagem s voltas com a rotina padro de um funcionrio derede fast food

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20166

    Como a vida, a escrita procura permanente

    ENTREVISTAJos Luiz Peixoto

    Entrevista a Yasmin Taketani

    O interior de Portugal j era conhecido na prosa de Jos Lus Peixoto (1974), seja no romance de formao Livro (Companhia das Letras, 2012) ou em Morreste-me (Dublinense, 2015), pequena mas potente narrativa sobre a morte de seu pai. Foi com a recente publicao de Galveias (Companhia das Letras), no entanto, que o autor portugus elevou sua cidade natal a per-sonagem central. Afinal, a identidade , como o escritor coloca nesta entrevista, a questo central de sua literatura.

    No novo romance, Peixoto vencedor do prmio Jos Saramago em 2001 e traduzido para mais de vinte idiomas relembra e narra a Galveias dos anos 1980 a partir das histrias de dezenas de personagens, to preciosas e

    O escritor portugus retorna ao ambiente de interior do seu pas numa potente narrativa em que fala da morte paterna e discute questes transnacionais de identidade

    cativantes. um olhar carinhoso que o autor lana sobre o que h de mais humano (para o bem e para o mal) nelas, alternando entre a vida pblica e privada, ntima e coletiva, sem ignorar as dificuldades da vida no interior portugus e os embates da chegada da modernidade.

    Na conversa a seguir, realizada via e-mail, Jos Lus Peixoto fala sobre o retorno a Galveias, discute aspectos da vida em uma pequena cidade, a relao entre fico e autobiografia, e outros temas.

    Galveias pode ter seus um mil habitantes, mas as dezenas de personagens do romance compem um universo riqussimo, pleno de idiossincrasias, vcios, ambies, amores, conchavos, desejos, medos. O que admira nessas personagens?

    As personagens que compem Galveias foram escolhidas uma a uma. Aos meus olhos, cada personagem teve de merecer o lugar que ocupa neste romance. O facto de eu ter nascido em Galveias, de ter vivido l at os 18 anos, faz com que a minha relao com o espao descrito no livro seja muito pessoal e, em alguns momentos, ntima. Assim, as pessoas que conheo de Galveias, que me marcaram muito enquanto crescia e formava as minhas impresses acerca do mundo, tm alguma presena na forma como constru estas personagens. De certo modo, cada uma dessas figuras, at as menos bvias, so homenagens a essa gente, a Galveias, a toda aquela regio e, mesmo, a todo o interior de Portugal. Nunca quis, no entanto, que essa homenagem lhes retirasse aquilo que mais admiro nelas, aquilo que creio que deve ser celebrado nelas: a sua humanidade. Essa foi a principal caracterstica que tentei preservar. Apesar da tentao de engrandec-las, tentei ao mximo que continuassem a ser personagens humanas, com qualidades e defeitos.

    E o principal desafio em retratar a vida na sua cidade natal, qual seria? O referencial autobiogrfico limitou de alguma forma a elaborao da fico?Desde h muito tempo que os meus livros ensaiam essa relao entre fico e autobiografia. Ao mesmo tempo, esse um assunto antigo na histria da literatura. Neste caso especfico, essa questo colocou-se de forma muito concreta at na escolha de todo o espao em que decorre a ao. O facto de tudo acontecer no lugar onde nasci e onde fui criana faz com que se torne muito concreto algo que seria bem mais abstrato se tivesse outro nome e outras referncias. Vejo o aspecto autobiogrfico, ou aquilo que o leitor toma por autobiogrfico, como uma fora. Pela minha parte, parece-me importante que se tenha conscincia dela e se use essa fora a servio da inteno central do texto em causa. Na circunstncia deste romance, o facto de se tratar de uma realidade que existe ajudou bastante na minha vontade de que o romance chamasse a ateno para as dificuldades que

    FOTO: DIVULGAO

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20167

    Portugal tem muitas dvidas acerca de si. Creio que essas questes ficam muito claras no conjunto da sua produo literria

    Eu mesmo vejo o aspecto autobiogrfico, ou aquilo que o leitor toma por autobiogrfico, como uma fora

    o interior de Portugal atravessa. Tal como Galveias, tambm essas dificuldades so reais. No mbito de um texto literrio, no entanto, o tema tem de ser trabalhado de modo a ser entendido de acordo com as caractersticas dessa dimenso, forma e contexto.

    E como chegou estrutura da histria, que se desenvolve quase que por meio de miniperfis dos moradores, cada um com seu captulo?Sob esse aspecto, a minha inteno era criar uma rede narrativa que sugerisse o coletivo que constitui uma comunidade. Assim, cheguei a essa estrutura onde cada personagem vai sendo protagonista da sua histria pessoal, dando-nos acesso a uma viso profunda daquilo que a constitui e, ao mesmo tempo, nos mostra uma perspectiva pblica de assuntos que cruzam aquela pequena sociedade. Essa viso mais superficial e, muitas vezes, acaba por ser aprofundada mais tarde. dessa forma, entre o social e o pessoal, que a narrativa de toda a comunidade vai sendo edificada e transportada ao longo das pginas do romance.

    Que cidade encontrou ao retornar para escrever o livro, trinta anos depois do perodo em que corre a histria? Como conciliou esse reencontro com sua prpria memria (o eu atual e o eu de ento)?Uma opinio muito simptica que tive oportunidade de ler acerca do romance, dizia que, na leitura, em certos momentos, se distinguia o olhar de quando eu tinha dez anos. Fiquei muito sensibilizado com essa

    observao porque, apesar de no ter tido conscincia dela enquanto estava a escrever, fui levado a concluir que, efetivamente, assim. Entre outros aspectos, escrever este livro foi um exerccio de memria, uma viagem no tempo. Em grande medida, a proposta que o romance apresenta uma contraposio do passado e do presente. Comparando esses dois tempos, chega-se a algumas concluses.

    A partir da leitura dos escritores contemporneos portugueses, que pas um leitor encontraria?Portugal um pas que tem muitas dvidas acerca de si prprio. Creio que essas questes ficam muito claras no conjunto da produo literria contempornea do pas. Talvez por causa do passado grandioso, acredito que Portugal desenvolveu certa bipolaridade: s vezes, convencemo-nos de que somos os melhores do mundo e, logo a seguir, achamos que somos os piores do mundo. Na realidade, parece-me, no somos nem uma coisa, nem outra. Se no formos os melhores, no temos necessariamente de ser os piores. Alm do passado, penso que a geografia e as relaes que estabelecemos tambm nos colocam numa situao complexa. Geograficamente, ficamos nesse canto da Europa, longe do centro, inclinados sobre um oceano enorme. Ao nvel das relaes, temos o Brasil que imenso e com quem temos inmeros mal-entendidos; temos Espanha, que nos rodeia e nos desconhece;

    temos frica, que nos to prxima, mas cuja relao ainda est muito moldada pelas cicatrizes do colonialismo.

    Ao deixar Galveias para estudar em Lisboa, como passou a ver seu local de origem a partir de uma grande cidade?A distncia oferece-nos sempre a perspectiva e, com ela, passamos a ver um pouco melhor detalhes que, antes, demasiado perto, demasiado envolvidos, tnhamos dificuldade de distinguir. Creio que existe uma tendncia natural para nos habituarmos a uma quantidade de vantagens, damo-las como adquiridas e, s quando as perdemos, lhes reconhecemos valor. Tudo isso aconteceu quando deixei Galveias e cheguei a Lisboa. No romance, tentei dar algum eco desse contraste. Os protagonistas da segunda parte tm uma forte ligao com Galveias e, ao mesmo tempo, a uma realidade exterior: Guin-Bissau, Lisboa, Belo Horizonte, entre outras.

    Quais aspectos da vida numa pequena comunidade lhe interessam? E, fora da literatura, quais dispensa?Infelizmente, em muitos pontos, a realidade apresentada no romance menos dura do que a vida que, hoje, se vive naquela regio. Estes trinta anos no foram apenas de evoluo, pelo contrrio. Hoje, o interior de Portugal constitudo sobretudo por comunidades muito envelhecidas e, a um ritmo preocupante, tem perdido muita populao. Esse um tema muito concreto que eu quis lembrar com este romance. Ainda assim,

    claro que o livro tem uma abrangncia mais ampla e que toca, por exemplo, a questo da vida em pequenas comunidades. Nesse ponto, a minha inteno era mostrar a dimenso humana dessas relaes. Nas pequenas comunidades, os indivduos tm um papel de maior destaque e, por consequncia, de maior importncia. Essa caracterstica, no entanto, no apenas positiva. Por vezes, no fcil viver com essa falta de privacidade e, tambm, com o julgamento coletivo, a vigilncia da moral coletiva.

    E de que maneira acredita que a infncia em Galveias raiz a partir da qual cresceu, como j afirmou lhe moldou, formou parte importante das suas noes? H uma forma de pensar e ver o mundo que advm da ruralidade?Para mim, muito difcil fazer uma avaliao isenta dessa influncia. Este facto , em si mesmo, representativo da importncia dessa raiz. Creio que a ruralidade impe marcas muito fortes no modo como se encara a vida. Por um lado, h a proximidade da natureza e a maneira como essa relao influencia noes essenciais, como o caso da morte. Por outro lado, h o tempo. A maneira como entendemos o tempo, como respiramos, determinante em tudo o que fazemos, tem reflexo nas dimenses que medimos, nas propores que atribumos, naquilo que valorizamos. Alm disso, h tambm a importncia que dada ao indivduo nas pequenas comunidades, como j

    referi, e vrios outros elementos tambm fundamentais. A ruralidade determina bastante e, parece-me, aquilo que mais importa dessas caractersticas transnacional, apesar das especificidades de cada realidade.

    Sua sensibilidade e percepo so frequentemente elogiadas em crticas, e visveis tanto em obras mais autobiogrficas, como Morreste-me e Galveias, quanto em Livro, que trata de uma gerao anterior sua, e mesmo em Dentro do segredo, relato sobre a Coreia do Norte. O que ser que lhe confere essas caractersticas? Atualmente, mais de uma dcada depois de seu primeiro livro, qual a caracterstica que mais lhe interessa trabalhar enquanto escritor?Como a vida, a escrita uma procura permanente. Ao longo do tempo, tenho seguido caminhos que me pareceram sedutores por questes pessoais. Interrogo sempre a mim prprio acerca da pertinncia de cada questo que desenvolvo nos livros que escrevo. Nestes anos e nestes ttulos, tenho aberto ramificaes que, essencialmente, esto ligadas questo da identidade. Em qualquer desses livros, a pergunta fundamental : quem sou? Muitas vezes, parece-me que essa a principal questo, aquela que est debaixo de todas as outras. Esse o tamanho que considero para essa busca. Por isso, independentemente daquilo que o futuro me trar, creio que continuarei trabalhando essa questo, mesmo que nem sempre de forma evidente.

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 20168

    O grande desafio do escritor contemporneo reunir com extrema qualidade os contedos mate-rial e literrio da obra, com nfase para o contedo literrio, de forma a alcanar os melhores resultados estticos. Isso quer dizer que o Belo est acima do discurso social, econmico ou poltico.

    A histria da literatura mostra esta verdade em absoluto: os autores que privilegiaram o elemento artstico tiveram os melhores resultados, enrique-cendo de forma definitiva a narrativa em forma ou em prosa. A questo no relevar a segundo plano o contedo material, mas qualific-lo, sem que se torne fechado ou esotrico. Basta trabalhar com intensidade o contedo literrio ou artstico, at porque a finalidade da obra a Beleza.

    Exemplo de obra conteudstica que se transforma em obra literria de grande qualidade o romance A resistncia, de Julin Fuks, recentemente publicado pela Companhia das Letras. Trata-se do drama ou tragdia dos ativistas polticos argentinos que enfrentaram a ditadura militar e que tiveram seus

    Raimundo CARRERO

    O Caminho do artista para o BeloJulin Fuks lana livro que mostra a maturidade em uso de tcnicas literrias

    FERNANDA SUCUPIRA/DIVULGAO

    filhos, sobretudo recm-nascidos, sequestrados e entregues a famlias desconhecidas. Algo profun-damente doloroso e inquietante e, sem dvida, tema para grandes obras. Alis, grande obra que Fuks enfrentou e realizou com imensa qualidade. Na verdade, incontestvel.

    Desta maneira, o escritor paulista se aproxima muito daquelo tipo de romance do qual Thomas Mann o principal representante: fico com ensa-smo, ou ensastica, em que se defende um ponto de vista, por assim dizer, cientfico, mas considerando sempre, e de maneira radical, a qualidade literria, nem sempre observada pelo escritor se que escritor mesmo contemporneo.

    Em geral, e quase sempre em geral, privilegia--se o contedo material, que no literatura, e o resultado apenas um panfleto sem conquistas literrias. Pode ter mritos, e at grandes mri-tos, mas fica-se devendo literatura. Observe-se, por exemplo o romance Abril despedaado, de Ismail Kadar, em que a tcnica supera, em muito, a de-

    MERCADOEDITORIAL

    Marco Polo

    Uma coleo de crnicas, traando uma viso panormica da evoluo do Recife, entre o final do sculo 19 e o incio dos anos 20, fase marcada por fortes transformaes e melhoramentos urbanos, e pelo surgimento de novos hbitos e costumes sociais. Tudo escrito num estilo simples e afetivo, mas preciso em suas referncias factuais, sociolgicas e histricas. Estas so as qualidades

    MEMRIA

    Obra-prima de Mario Sette, livro de crnicas Arruar, sobre o Recife antigo, ser relanado este ano pela Cepe Editora

    REPR

    OD

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    principais de um clssico da literatura pernambucana, o livro Arruar: histria pitoresca do Recife antigo, considerado a obra--prima do romancista, contista, jornalista, professor e tradutor pernambucano Mario Sette (foto), que ser relanado ainda este ano pela Cepe Editora, com atualizao ortogrfica e novo projeto grfico, dentro da poltica de conservao da memria cultural da cidade.

  • I Os originais de livros submetidos Cepe, exceto aqueles que a Diretoria considera projetos da prpria Editora, so analisados pelo Conselho Editorial, que delibera a partir dos seguintes critrios:

    1. Contribuio relevante cultura.

    2. Sintonia com a linha editorial da Cepe, que privilegia:

    a) A edio de obras inditas, escritas ou traduzidas em portugus, com relevncia cultural nos vrios campos do conhecimento, suscetveis de serem apreciadas pelo leitor e que preencham os seguintes requisitos: originalidade, correo, coerncia e criatividade;

    b) A reedio de obras de qualquer gnero da criao artstica ou rea do conhecimento cientfico, consideradas fundamentais para o patrimnio cultural;

    3. O Conselho no acolhe teses ou dissertaes sem as modificaes necessrias edio e que contemplem a ampliao do universo de leitores, visando a democratizao do conhecimento.

    II Atendidos tais critrios, o Conselho emitir parecer sobre o projeto analisado, que ser comunicado ao proponente, cabendo diretoria da Cepe decidir sobre a publicao.

    III Os textos devem ser entregues em duas vias, em papel A4, conforme a nova ortografia, devidamente revisados, em fonte Times New Roman, tamanho 12, pginas numeradas, espao de uma linha e meia, sem rasuras e contendo, quando for o caso, ndices e bibliografias apresentados conforme as normas tcnicas em vigor. A Cepe no se responsabiliza por eventuais trabalhos de copidesque.

    IV Sero rejeitados originais que atentem contra a Declarao dos Direitos Humanos e fomentem a violncia e as diversas formas de preconceito.

    V Os originais devem ser encaminhados Presidncia da Cepe, para o endereo indicado a seguir, sob registro de correio ou protocolo, acompanhados de correspondncia do autor, na qual informar seu currculo resumido e endereo para contato.

    VI Os originais apresentados para anlise no sero devolvidos.

    VII vedado ao Conselho receber textos provenientes de seus conselheiros ou de autores que tenham vnculo empregatcio com a Companhia Editora de Pernambuco.

    Companhia Editora de PernambucoPresidncia (originais para anlise)Rua Coelho Leite, 530 Santo AmaroCEP 50100-140Recife - Pernambuco

    CRITRIOS PARA RECEBIMENTO E APRECIAO DE ORIGINAIS PELO CONSELHO EDITORIAL

    A Cepe - Companhia Editora de Pernambuco informa:

    Fulguras, de Elimar Macdo, um livrinho curioso. Edio artesanal do autor, com projeto de Joo Cludio Caminha, composto de uma capa e duas folhas de papel A4 dobradas de modo a conter 18 poemas sobre o cotidiano, visto com delicadeza. Alguns versos surpreendem pelo surrealismo: Tenho pena dos bois e vacas/ O colorido ia fazer-lhes muito bem. Comeo diferente para um poeta.

    As historiadoras Bartira Ferraz Barbosa e Socorro Ferraz esto lanando pela Editora UFPE o livro Serto: fronteira do medo, resultado de uma pesquisa original destinada a cobrir lacunas sobre a histria das populaes indgenas habitantes da regio do Mdio So Francisco. Acervos cartoriais e eclesisticos e outros documentos encontrados em arquivos de Portugal e da Holanda serviram

    ESTREIA

    Jovem poeta estreia com livro artesanal sobre o cotidiano

    HISTRIA

    Pesquisa sobre a vida das populaes indgenas do Mdio So Francisco revela relaes de poder no processo de colonizao

    de fonte para a apurao. Um dado que sobressaiu da matria foi a marca do medo como fenmeno social, produzido pelas relaes de poder, durante o processo de colonizao. O prefcio assinado pela professora Maria Hilda Baqueiro Paraso, da Universidade Federal da Bahia, considerada uma das maiores autoridades brasileiras na histria das populaes indgenas do Serto do Nordeste.

    nncia social do kanun do sangue. A pura denncia social pode at revelar e apaixonar, mas esta no a tarefa da literatura.

    O contedo material temtica, denncia, material jornalstico, fotografias, cartas, depoimentos ante-cede a criao e motiva a elaborao da obra, mas so-mente ter a grandeza necessria quando trabalhada pelo contedo literrio texto, estilo, cenas, cenrios, personagens, dilogos at se transformar em obra artstica, que , enfim, o objetivo de toda obra.

    Chamo a ateno, por exemplo, para este texto na pgina 15 do romance de Julin Fuks. Trata-se de um monlogo o monlogo uma tcnica de discurso interior em que o personagem fala consigo mesmo de maneira linear e lgica, por considerar que tem algum para ouvi-lo, enquanto o solilquio ilinear e ilgico, porque o personagem fala com ele e somente com ele, sem ouvido para escut-lo. O estilo denso e as frases se desdobram de forma a lembrar um eco, como apontam os crticos no estilo de Proust, por exemplo:

    Alm da mgoa. H anos observo em meu irmo, impressionado, sua capacidade de afastar prontamente os pensamentos que lhe desagradam, de interromper conversas sem brusquido, de mudar de assunto sem se dar conta, de deslizar entre uma ideia e outra de forma quase instan-tnea, sem sobressalto. Vejo seu rosto se crispar por um segundo ante um vago infortnio, alguma frase infeliz que ningum chegou a proferir, uma nfima sugesto ou aproximao ao que o perturba, pra logo retornar s suas feies comuns, sua indiferena, sua neutralidade anestesiada.

    No prximo texto, porm, percebe-se como o contedo material aflora e assume a narrativa, mesmo que o contedo literrio conquiste o brilho esttico, mantendo o equilbrio entre as partes. Como nesse caso:

    Cmplices de uma ptria sem carter que os perseguia, nisso haviam se tornado. Por mais ver-dadeiros que fossem, seus argumentos pareciam incuos. Eles haviam se recusado, sim, a vestir a camisa, haviam contido todos os gritos, vaiado com afinco cada autoridade que aparecesse na tela, cada farda reluzente que s cmaras se apresentasse.

    este equilbrio que revela um escritor de gran-de qualidade, a exigir maior ateno da crtica e dos estudiosos. Outro cuidado exemplar de Fuks est no uso do dilogo, tcnica que pode provocar grande dano na narrativa, mas tratado com muita ateno aqui, de modo que praticamente no exis-te, a no ser no caso do discreto discurso indireto livre. Usasse o dilogo tradicional, correria o risco de trazer o panfleto direto para o texto. Todos sabem que o dilogo tradicional eloquente e vibrante, na maioria das vezes tornando a narrativa muito discursiva.

    A histria do romance brasileiro registra o uso e abuso do dilogo tradicional, sobretudo no roman-ce regionalista, que pretende registrar e documen-tar a fala no sentido sociolgico-antropolgico. Nos textos mais recentes comum o uso do discurso indireto livre, criado por Flaubert, sobretudo no romance Madame Bovary. Quem fortaleceu o uso do discurso indireto livre no Brasil foi Clarice Lispector atravs do solilquios e de monlogos interiores. Julian no apresenta influncias de Clarice, at porque tem um timbre forte e uma linguagem muito pessoal.

    preciso destacar que so inmeras como procuro demonstrar as qualidades deste ro-mance. Alis, o romance brasileiro tem sido muito enriquecido por muitos autores que tm na prosa a realizao plena da obra artstica, mesmo quando tende a enveredar pela denncia social e por ques-tes polticas, que devem ser sempre questionadas.

    A resistncia , sem dvida, um romance que con-solida a arte da narrativa no Brasil. Pela habilidade com que dissolve a questo poltica em alta qua-lidade literria.

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    CAPA

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201611

    Texto: Gianni Paula de Melo | Ilustraes: Janio Santos

    Um manual para entender as crises que marcam a obra da homenageada da Flip 2016

    Walt Whitman, Katherine Mansfield, Katia Muricy, Grazyna Drabik E, nos intertextos com as novas geraes, est mais presente que sempre nas obras de Anglica Freitas, Bruna Beber, Ana Martins Marques, Laura Liuzzi, Ricardo Domeneck... ad infinitum.

    IVAos 17 anos, Laura Erber vivia em Florena, na Itlia, onde cursava o segundo grau em um liceu artstico. Estava s voltas com a grande deciso de todo ado-lescente nessa idade e se via dividida entre Cine-ma, Letras e Filosofia. Embora se reconhea mais influenciada pelos ensaios do que pela poesia da Ana Cristina Cesar, a edio de A teus ps, que tomou emprestada das estantes da sua me, foi determinante naquele cenrio. A idealizadora da Zazie Edies atribui leitura da poeta carioca e do Chico Alvim a sua adeso aos bancos da graduao de Letras com um anseio to maisculo quanto despretensioso: poder ler melhor Literatura Brasileira. Laura entrou para a UERJ em 1998. 27 anos antes, Ana C. apostava no mesmo curso, nos bancos da PUC.

    VSer professor da Ana C. era uma misso na esquina do privilgio com a encrenca. bem verdade que ficou amiga de alguns deles, o que no significa que tenha facilitado seu trabalho. Clara Alvim sempre conta da primeira vez que a viu, bancando a inglesa, dormindo no fundo da sala. A proposta inicial da disciplina que ministraria era uma abordagem greimasiana de au-tores brasileiros, mas a sonolncia de Ana provocou a professora a rever seus caminhos. Clara levou Manuel Bandeira para a discusso, Ana passou s cadeiras da frente e as anlises de poemas foram acontecendo, sem a mo pesada e onipotente do Estruturalismo francs da poca. Criada no atrevimento, a poeta se envolveu, em 1975, na polmica estabelecida entre seus profes-sores Luiz Costa Lima e Cacaso a respeito de como a teoria era abordada no espao universitrio, tomando partido da discusso em seu artigo nada amistoso intitulado Os professores contra a parede. Era sua estreia no jornal Opinio, no dia 12 de dezembro. Impressionam a atualidade da discusso e a lucidez com que Ana avalia o seu contexto: Tomar partido no debate teoria x no-teoria no embarcar para o inferno ou para o pa-raso, mas numa canoa furada. Na poca, a estudante questionava o uso exclusivo de uma determinada abordagem que se diz mais cientfica ou verdadeira

    e condenava a pretenso de banir da crtica literria o elemento apreciativo ideolgico. Hoje, o tal elemento apreciativo ideolgico no s acolhido como comea a pedir freios. Os estudos literrios parecem norteados por prerrogativas diferentes, flexibilizadas, com uma vocao mais ensastica que terica nesse sentido duro que tinha na poca, e, por vezes, hostilizando a herana e o esforo de vis formalista.

    Silviano Santiago tambm experimentou a agridoce

    sensao de ter a insuportavelmente crtica e irnica Ana C. como aluna, em uma turma de outros nomes brilhantes, como Flora Sussekind e Geraldo Carneiro. Assim como Clara Alvim, o escritor tem formao francesa e rascunhava suas aulas, principalmente as de difcil exposio. Certa vez, decidiu explicar o sistema metafrico do Sermo da Sexagsima, de Padre Antnio Vieira, baseado na parbola do semeador, ou seja, do padre catequista de ndios. Em casa, preparou um belo e complexo esquema sobre as metamorfoses por que passa a metfora colonizadora da semente semen est verbum Dei na transposio do Evangelho para a Carta de Caminha e o Sermo de Vieira. Silviano estava no meio da transcrio para o quadro-negro do seu complicado esquema metafrico quando aquela que sabia ser ferina* perguntou se o professor no conseguia dar aula sem consultar notas escritas.

    VIAlice SantAnna estava fazendo uma pesquisa no Google sobre Modernismo para um trabalho da escola e, no aleatrio abrir e fechar de abas, caiu em um site de poesia acaso previsto para acontecer cedo ou tarde. Aos 15 anos, j tinha o hbito e o prazer da leitura, mas no nutria nenhum interesse especial por versos. De repente, se viu diante daquela coisa esquisita: olho muito tempo o corpo de um poema/ at perder de vista o que no seja corpo/ e sentir separado dentre os dentes/ um filete de sangue nas gengivas. Poesia, at onde sabia, era encastelada, sublime, metrificada; e aquele registro tinha assunto, organizao e desfecho estranhssimos. Buscou mais

    * A Ana poderia fazer uma crtica ferina como o corte que uma folha de papel faz, jamais como uma faca; est mais como um corte de navalha que s se sente depois, ou que sangra mais tarde, estrito, em linha reta, digamos assim, Amando Freitas Filho.

    Dos cem prismas de uma joia/quantos h que no presumo

    IH dias pensando o que escrevo, em como escrevo. Pergunto-me, alis, por que raios aceitei escrever sobre ela quando, na verdade, todo texto que qui-sesse evoc-la deveria ser para ela. Logo eu, capaz de mapear a minha desorientao diante dos teus versos, do tamanho do mapa-mndi, at topar no poema exato que me desdiga. Incomodei muitos po-etas nessa virada de ano, e alguns me responderam mesmo estando com problemas, mesmo estando em Nova Dli. Parece que fui indelicada com o Armando Freitas Filho, embora no tivesse a inteno. Mas faz diferena, a inteno, em matria de indelicadeza? Escrevo em fragmentos porque, hoje, no consigo de outro modo, e no pretenso, est mais para desespero. No sei se desisto.

    IIAristteles aponta duas causas naturais para a origem da poesia: a capacidade de imitao, que implica em um jogo prazeroso, e o ritmo, aprendizado orgnico, inscrito no corpo vivo. T no pulso marcado, desde o zero no princpio, era o verbo. Ana sacou bem cedo, foi pega pelo ouvido nas leituras de poesia religiosa das igrejas que frequentava com a famlia. Tinha quatro ou cinco anos quando ditou seus primeiros poemas para a me, se antecipando escrita, o que no fazia em esttica concentrao, mas saltitando de l pra c, brincando de melopeia, e ardor dentro do gog.

    IIIAos nove anos de idade, Ana j no ditava seus tex-tos, mas os escrevia em caderninhos. Nessa poca, arquitetou um poema montado com o primeiro verso de vrios sonetos de Cames. Ali, para a menina da zona sul do Rio de Janeiro, a apropriao era, talvez, um percurso ldico da escrita, mas para a autora mo-derna, leitora de poetas modernos, se tornaria um mtodo de adensamento das suas questes literrias. Construir por colagem ou remixagem pode parecer muito familiar no contexto da produo contempo-rnea, no entanto, na dcada de 1970 era uma das marcas da originalidade de Ana C. Aprendemos com ela aquilo que Armando Freitas Filho definiu como uma cleptomania estilstica. Levava na ponta do lpis Elizabeth Bishop, Billie Holiday, Emily Dickinson,

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    CAPA

    na internet e, na persistncia do desentendimento, decidiu dormir cedo pra pegar a livraria abrindo no dia seguinte. Era uma descoberta: poesia para valer no comunica. Na poca, a Nova Fronteira estava lan-ando uma edio verdinha de poemas da Ana, Novas seletas, um livro voltado para o pblico juvenil, com um glossrio explicando o que era brasa, mora e outras grias da dcada de 1970.

    VII difcil encontrar matrias sobre a homenagem a Ana Cristina Cesar na Flip deste ano que no regis-trem o fator de gnero: em treze edies do evento, a segunda mulher homenageada. Para a escritora, esse tipo de aluso constantemente pontuada pela crtica e, principalmente, a conscincia de ser es-critora mulher era motor de dvidas. J no final dos anos 1970, alertava que falar em literatura feminina poderia significar a condenao a uma dico potica pr-estabelecida, socialmente construda; por outro lado, silenciar totalmente a referncia, como se ela fosse irrelevante, tambm lhe parecia problemtico. Buscava, ento, uma terceira via. Em seus ensaios, voltou temtica algumas vezes na leitura de Ceclia Meireles, Henriqueta Lisboa, Angelina Melim e Adlia Prado; reflexes lcidas e errantes, mas nunca indife-rentes a essa chave de discusso. Sabia desde sempre que havia uma ideia de feminino a ser combatida e que ela coincidia com a prpria ideia enjaulada de poesia a dico e os temas devem ser belos: ovelhas e nuvens. Indagava, no plano terico, para transformar no criativo: No haveria por trs dessa concepo fludica de poesia um sintomtico calar de temas de mulher, ou de uma possvel poesia moderna de mu-lher, violenta, briguenta, cafona, onipotente, sei l?. Mas, por vezes, cedia sua prpria ideia do feminino, como quando comparou os livros As mulheres gostam muito e Os caminhos do conhecer, de Angela Melim, julgando ser

    se deve esquecer que ela era leitora das romancistas inglesas, e certamente do Orlando, de Virginia Woolf, e contempornea de Michel Foucault, que j em 1981 dizia que ser gay no se resume a revelar um segredo e assumir uma identidade. Ser gay um modo de vida. Retorno ento Flip e s duas nicas mulhe-res homenageadas at ento: Ana Cristina e Clarice Lispector. H um universo comum evocado por esses nomes, para alm do fato de serem donas de obras literrias assombrosas, transformadoras das nossas experincias. Dois nomes que remetem pungncia. A jovem Ana C., alis, fora leitora atenta de Clarice, conversava com suas narrativas em seus livros repletos de grifos e comentrios. Porm, parte o imaginrio do feminino partilhado e das marcantes fotos em p/b, aproximaes que ambicionem relacionar os textos da poeta e os da ficcionista requerem cautela: Essas questes so delicadas e qualquer discusso mais grosseira apenas serve para empanar o brilho indi-vidual das figuras em jogo. Tanto Clarice quanto Ana Cristina e muitos outros escritores e escritoras pisam o mesmo cho cristalizado pela leitura inteligente de certa tradio lrica luso-brasileira, menosprezada nos anos de 1930 a 1960 pelos poetas militantes polticos. A tradio lrica marginalizada passa a ser adubada por alguns grupos, de que Clarice na prosa e Ana Cristina na poesia so exemplos, e fermentada pela leitura do melhor da literatura anglo-sax, avalia Silviano Santiago. J o colega e autor do perfil biogrfico da poeta, Italo Moriconi, traa uma aproximao mais estreita entre as escritoras: Ana Cristina pode ser classificada como uma das autoras e autores que se inserem no que gosto de chamar de linhagem clariceana na literatura brasileira (o Joo Gilberto Noll outro que classifico assim). Onde ela mais segue Clarice, a meu ver, na busca de um texto que simula uma vontade de caotizao. Mas a linguagem de Clarice (veja gua viva ou A paixo segundo GH) se ramifica em dualidades,

    o segundo uma obra engravatada, interrogando se a poeta havia virado homem. Sua rotulagem, no entanto, dura o instante do pensamento espontneo, no ma-turado, e a autocensura irrompe impiedosa. O que escrever como mulher? Ana perseguia a charada sem resposta: tenho a impresso de que toda mulher que escreve tem de se haver com essa questo de alguma forma. Quando pergunto a Laura Erber se existe um fator do feminino que seja decisivo na sua escrita ou na da Ana C., ela responde que a poeta refletia o al-cance e a infertilidade dessa noo: No acho que seja balela, mas importante no baratear, no reduzir o feminino ao seu clich de feminilidade e docilidade. Alice SantAnna tambm segue nessa pista de que o homem escreve diferente da mulher: Vi um dia desses o filme sobre o Chico, que adoro, e fiquei pensando na quantidade de msicas lindas com nomes de mulher. E ento tentei lembrar o nome de uma msica, uma s, com o nome de homem. Uma msica em que uma mulher cortejasse (ou lembrasse, ou mesmo falasse mal de) um homem. Ainda no lembrei nenhuma. claro que o que a Ana escreve profundamente marcado pelo lugar de onde ela fala, os dirios nti-mos, a coceira depois do passeio de bicicleta, o enjoo que d o acar do desejo, a conversa de senhoras bebericando ch isso tudo evidentemente escrito por uma mulher. A minha birra com essa questo que colocar a etiqueta de poesia feminina na Ana parece muito pobre, limitador, um rtulo de minoria, de gueto. Seguimos no labirntico dessa reflexo, s vezes com a sensao de andar em crculos, talvez porque, como disse o Silviano Santiago, a questo de gender na vida e na arte menos contrastiva e mais plural: As performances sexuais se disseminam de maneira aleatria e anrquica. Acredito que se se quiser ler a poesia de Ana Cristina pelo vis do gnero e da sexualidade, estaria mais apropriado dizer que ela foi precursora do que hoje entendemos por queer. No

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    Pelo vis do gnero, Ana C. seria precursora do que hoje entendemos por queer, afirma o crtico literrio Silviano Santiago

    vai se desdobrando rizomaticamente, com certo rigor. Os textos mais radicais de Ana C. trabalham, antes, na esfera do acmulo. Em Clarice existe sempre a questo da narrativa em prosa, j a plataforma de Ana simplesmente a poesia, a lrica, uma lrica inquieta por certo, e que se autodissolve na narrativa dos dias, prosaiando-se, prosificando-se.

    VIIIEm 1980, antes mesmo da edio de A teus ps ficar pronta, Carlito Azevedo conheceu a poesia de Ana C. O ponto de encontro foi a extinta Livraria Muro, espao de resistncia cultural democrtica, onde era possvel comprar exemplares da produo literria dos artistas independentes. Naquele momento, aos 19 anos, ainda no sabia quem era a tal escritora de Cenas de abril, mas achou o livro lindo, sofisticado. Para o rapaz que se tornaria o radar de uma gerao de poetas, ali, no final da experincia adolescente, era como se estivesse diante no apenas de uma obra admirvel, mas de algum com o mesmo grau de confuso de sua cabea e de suas ideias.

    IXMy dear, chove a cntaros. Sempre que retorno Correspondncia completa, tenho a impresso de estar lendo a apresentao de uma potica, uma esp-cie de manifesto artstico individual. O livrinho de 1979 condensa caractersticas-norte da sua escrita e consiste em uma carta fictcia, de Jlia para algum, seu interlocutor singular e annimo, nos diria Sil-viano Santiago. Ana sofria de gigantismo epistolar, o mesmo mal que abatia Mrio de Andrade, e fazia das suas cartas privadas espao literrio, pois no se rendia escrita inocente. Certa vez, Helosa Buar-que de Hollanda declarou que Ana comportava-se como se estivesse sempre em crise e fingia precisar dos conselhos das amigas mais velhas. Perguntei

    do relacional na arquitetura do texto. para voc que escrevo, hipcrita. Para voc sou eu que te sacudo os ombros e grito verdades nos ouvidos, no ltimo momento. Esses versos, alis, nos remetem mais uma vez s certeiras anlises de Siscar: O poema no defensivo em relao indiferena do inter-locutor; pelo contrrio, faz dela a razo de seu drama ou de sua farsa. Mas, aqui, voltamos Correspondncia completa e ao Silviano Santiago, para ressaltar que o mesmo poema que no se intimida perante a indi-ferena reage ao autoritarismo. leitor autoritrio o que enfrenta as exigncias do poema com ideias preconcebidas e globalizantes, afirma Santiago para, adiante, nos lembrar de que Ana C. tinha fobia da explicao otimista e vencedora, convincente e lgica, redonda e massacrante, que existe em toda leitura bem-sucedida de um poema. Em matria de poesia, cedemos a esse mpeto de controle e compreenso quase que inconscientemente e, estou certa, com mais frequncia do que ns, leitores imaginativos e bem intencionados, gostaramos. Ana dificulta para os impacientes enquanto observa nossa ansiedade de apropriao por trs dos culos escuros.

    XAos 31 anos, mesma idade com que a Ana morreu, Mariano Marovatto mergulhou no arquivo da poeta e vasculhou cada folha de cada caderno para chegar seleta de inditos Visita oficina, seo da edio Potica, da Companhia das Letras. Por ter escrito uma tese que contempla a gerao da escritora e organizado o acervo de Cacaso, realizou esse trabalho com certa intimidade e encantamento. No entanto, aos 18 anos de idade, o contato inicial com a obra da Ana Cristina Cesar foi diferente. Quando leu A teus ps pela primeira vez, na poca em que saiu a edio da tica, encarou aqueles poemas com desdm, como quem olha um oponente. No tinha maturidade, no atingiu o cerne. Amor comea tarde.

    XINo documentrio Bruta aventura em versos, chamam ateno os momentos em que Chacal e Alice SantAnna tentam recitar o mesmo poema da Ana C., mas no conseguem record-lo com preciso. curtinho, cinco versos, o do filete de sangue nas gengivas. Se, antes, falamos de uma menina que comeou ditando seus textos e poesia, a princpio, propor um ritmo , hoje sabemos que a mulher, a poeta de projeto, encontrou uma batida a que de-moramos a nos acostumar. Muito disso se deve recorrncia obsessiva da interrupo, o que se d sinttica, imagtica e tematicamente, em construes que no nos chegam com o acabamento que nos familiar. A tentativa de ler seus poemas em voz alta no raro nos causa embaraos: atrapalhamo-nos na entonao e nas pausas, perdemos o flego, pedimos mais uma chance, somos constrangidos pela carncia da mtrica, e fica a sensao de que melhor deixar ele ali, fixado no papel, uma vez que no sabemos domar sua melodia. Seus poemas so escorregadios memria, esto sempre sendo lidos pela primeira vez, presentificados pela sua essncia interlocutria. Uma caracterstica melhor explicada por Viviana Bosi, quando ela pontua que a dificuldade de memoriza-o dos poemas de Ana Cristina se deve tanto forma, que tangencia o informe, saindo dos parmetros poticos usuais de paralelismo, eco, ritmo metrificado (que facilitariam a recitao); quanto ao contedo, pois os saltos inesperados da frase, as mudanas de tom, a proposital quebra da continuidade semntica e sinttica, obrigam o seu leitor a interagir com o texto, completando-o pela imaginao e pelo sentimento. Mais uma vez, as evidncias de que h formas de resistir ao autoritarismo dos sentidos no interior do jogo literrio e de que preciso combater a nossa vocao para o poder e para o controle.

    XIIVoc no para de cair/ fugindo/ por entre os dedos de todos:/ gua da mina/ resvalando pelas pedras. Ningum dedicou-lhe tantos versos quanto o amigo Armando Freitas Filho e ningum a sustentou no ar como o poeta. De cor, publicado em 1988, carrega a cicatriz do sentimento de perda sem resgate possvel. Tenho estudado a obra do escritor, principalmente seus ltimos livros. Tateio as imagens da finitude, da morte e me aventuro nas reflexes sobre o estilo tardio. Penso nela, inaugural e subversiva, destoan-do da dico de sua gerao para criar a gramtica da nossa; e recordo o Edward Said, quando ele nos diz que ser tardio portanto uma espcie de exlio autoimposto diante de tudo que costuma ser aceito, um exlio posterior e sobrevivente a isso. Penso nela, tardia desde sempre, pois o tempo biolgico no fator nico da nossa relao com o fim nem da conscincia de distanciamento e anacronismo; e recordo Adorno, quando o terico afirma sobre as obras tardias em que ele [o artista] no providencia sua sntese harmoniosa. Como poder de dissociao, ele as dilacera no tempo para, quem sabe, preserv-las para a eternidade. Na histria da arte, as obras tardias so as catstrofes. Penso nela, na vertigem.

    Correspondncia incompleta (e-book)Armando Freitas Filho e Helosa Buarque de Hollanda (Org.), Editora e-galxia.Livro rene as cartas enviadas para Clara Alvim, Helosa Buarque de Hollanda, Maria Ceclia Fonseca e Ana Candida Perez.

    26 poetas hoje (e-book)Helosa Buarque de Hollanda (Org.), Editora e-galxia.Antologia da dcada de 1970 que mapeou importantes poetas da poca e lanou Ana Cristina Cesar.

    Ana Cristina Cesar O sangue de uma poeta (e-book)Italo Moriconi, Editora e-galxiaPerfil biogrfico sobre a poeta carioca revisto e ampliado.

    Cartes postais (aplicativo para dispositivos mveis) Helosa Buarque de Hollanda (Org.), Editora e-galxia.Aplicativo com cartes postais inditos enviados para a amiga Helosa Buarque de Hollanda.

    Obs.: At o fechamento da edio, no recebemos os lanamentos da Companhia das Letras para este ano.

    por que ela achava que havia fingimento em certos pedidos de socorro, o que me explicou: Porque, antes de tudo, a Ana construiu uma persona potica interessantssima e atraente, e a crise, muitas vezes, foi usada na composio dessa persona. Por ter essa intimidade funda com as correspondncias, Ana compreendeu desde cedo o endereamento do texto literrio, a questo da destinao do poema como experincia de tenso e teso entre leitor e texto, nas palavras de Laura Erber. Enxergo em Correspondncia completa o ensaio de uma esttica por algumas razes, e a primeira o fato de que a missiva destinada a algum que tem informaes que completam o texto; my dear recebe notcias e respostas a respeito de uma vivncia comum, h uma partilha de mundo que vai alm do texto. Pensando na sua obra, observamos o alargamento dessa retrica em poemas que muitas vezes se dirigem a um interlocutor que est a par, prximo, mas ns no estamos. Uma equao flu-tuante, nunca espontanesmo, tampouco tecnicismo criador. Por um lado, os efeitos de espontaneidade, sinceridade, franqueza, aluses constantes que guar-dam o aspecto de acontecimentos pessoais e segredos ntimos, como descreveu o Marcos Siscar. Por outro, a constatao de que somos falsos ntimos, de que revirar o poema no nos ofertar nenhum segredo alm do poema. A exposio da intimidade uma estratgia de seduo, afinal, you know what lies are for. H uma urgncia do envolvimento, da interlocuo e

    PERNAMBUCO, FEVEREIRO 2016

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201614

    ESPECIAL

    CENA 1Bem, Policarpo, eu no quero contrariar voc; continue l com suas manias.

    Ouve isso, o Policarpo, e sai; Adelaide, a irm, continua a lavar a loua. A gua caindo sobre os pratos tornou prati-camente inaudvel o at mais tarde que o major Quaresma dera. Pelo espelho da cozinha, conseguia ver um pequeno e franzino vulto verde e amarelo saindo de casa.

    Entrou na estao do metr. Enredado na plataforma cheia, pedia licena mecnica e gentilmente. Notou os olhares curio-sos das pessoas sem dar muita confiana. Era bvio para onde se dirigia. As aes estavam marcadas para aquele domingo, em todo o Pas. Poucos, na plataforma, estavam como ele, de verde e amarelo. Uns cinco, no mximo. Estavam distantes, mas se enxergaram com aprovao.

    Chegou o metr. Policarpo suburbano. Um dia foi carioca; hoje no mais. Errava quem quisesse encontrar nele qualquer regionalismo; Quaresma era, antes de tudo brasileiro. Desceu do vago, percorreu as escadas. Na rua, tomou automatica-mente o rumo da praa.

    Policarpo Quaresma no s suburbano, como se podia constatar na praa. a loura calando salto alto Louboutin e a dona de casa de meia-idade, que comanda uma famlia remediada. Criana, ele , e tambm o homem de 40 anos descendo do Mercedes com pai, me, noiva e sogro. Ele , ainda, casal de rapazes, um calmo e outro nervoso: o motorista do nibus parou longe do ponto.

    Imagina que medito grandes obras, uma refor-ma, a emancipao de um povo, disse a si mesmo. Soaram apitos e buzinas. Fotgrafos, cinegrafistas e jornalistas se encaminharam para as bordas do aglomerado de gente. O cortejo patritico seguiria pelas ruas da cidade em instantes.

    ***O major Policarpo Quaresma foi apresentado em 1911, no formato de folhetim. Sua histria se fizera conhecer nas edies vespertinas do carioca Jornal do Commercio durante dois meses. Em dezembro de 1915, seu criador, Lima Barreto (1881-1922),

    KARINA FREITAS

    No vale a pena cair na patriotada oca e achar que a sada trocar um heri por outro, acredita Lilia Schwarcz

    Cegueira em cores verde e amarela Como seria o patriotismo do major Policarpo Quaresma nos conturbados dias atuais? Igor Gomes

    o publicou em livro: Triste fim de Policarpo Quaresma. Comemoramos os 100 anos da obra cientes de

    seu evidente dilogo com a contemporaneidade os tipos medocres (como o personagem Genelcio, bajulador profissional); a ideia de que deter ttulos distintivos garantiam conhecimento e certa natu-reza superior, metfora personificada na figura do doutor Armando e nos militares Albernaz, Caldas e Bustamante; a corrupo poltica do governo Floriano Peixoto e de polticos da zona rural. Todos encontram fcil correspondncia com pessoas e prticas da atualidade.

    Mas o que fica do livro, a lembrana primeira, o major, cone, na literatura brasileira, de um projeto de nacionalidade repleto de boa vontade, porm absurdo, do qual a expresso maior a pro-posio do tupi-guarani como lngua do Brasil. Um Dom Quixote brasileiro que viver na tradio, como sintetizou o jornalista e diplomata Manuel

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201615

    vicioso de benefcios, pistoles e corrupes t-pico da Primeira Repblica. Enfim, assim como Policarpo, mais uma vez nos deparamos com a realidade do sistema, completa.

    CENA 2Policarpo esqueceu a senha, mas lembrou-se rapidamente. No gostava de deix-la gravada no navegador da web. Fez o login, foi lendo o que aparecia na linha do tempo. Leu postagens sobre gnero, poltica e urbanismo de alguns dos seus professores na faculdade, de desconhecidos em grupos de discusso. Compartilhou um gif (pequena animao) com uma cena do seriado House of Cards.

    Clicou no cone do processador de texto, que j estava aberto, e releu o texto que escrevera mais cedo, quase pron-to. Criticava o Governo Federal, mas defendia que voltar ditadura era burrice. Pediu o impeachment. No fim, exaltou a riqueza do Brasil. Digitou Nossa terra, que tem todas as riquezas do mundo, capaz de produzir e parou. Apagou. Decidiu encerrar com um vers que o filho teu no foge luta!. Copiou os quatro pargrafos e publicou em seu perfil no Facebook. Aguardava ansiosamente o termmetro apitar: as curtidas.

    ***As definies do dicionrio Houaiss para a pa-lavra patriotismo so 1) qualidade ou caracte-rstica de quem patriota; e 2) devoo ptria. Os nacionalistas, que hoje voltam cena, assim so chamados pelo evidente uso dos smbolos da nao: o hino nacional, uso abundante do verde--amarelo especialmente a camisa da seleo brasileira. Proliferam, tambm, declaraes de amor ptria (e dio ao governo) no Facebook.

    Ao contrrio dos sentimentos exacerbados fa-cilmente encontrados entre os que vo s ruas ou se pronunciam nas redes sociais, no se acha, no patriotismo do major Quaresma, qualquer trao de malcia. Anos de estudo profundo o fizeram ganhar

    de Oliveira Lima em crtica ao livro publicada em 1916 no jornal O Estado de S. Paulo.

    Diante de camisetas verde-amarelas nas ruas nos ltimos dois, trs anos, o major vem men-te. H, verdade, uma pequena diferena entre Policarpo e os patriotas de hoje a desiluso com a ptria problemtica que trouxe o triste fim de Quaresma (morte simblica ainda pior que a f-sica, porque destruio de um projeto de vida) o que move, em parte, aqueles que vo s ruas. Entretanto, o livro, como um todo, um dilogo de igual para igual entre 1915 e 2015 porque, assim como todos ns, ao longo da obra, o protagonista se volta para os ideais de democracia e cidadania aos trancos e barrancos.

    Assim como Policarpo, acreditamos, hoje em dia, muito na Repblica; sobretudo aps a promulgao da Constituio Cidad de 1988. A Primeira Repblica [1889-1930] vivia uma crise econmica, poltica e social do tamanho da nossa. Crise poltica depois do golpe (e quando Floriano assume sem convocar eleies); crise financeira com o encilhamento de Rui Barbosa; crise social com o povo nas ruas, com revoltas como Armada, Marinha, Canudos, Contestado, Greves Oper-rias e por a vai, explica Lilia Moritz Schwarcz, antroploga, historiadora e pesquisadora da obra de Lima Barreto.

    Com a ascenso do PT ao poder houve final-mente uma inverso nessa pirmide social perver-sa, comenta Luciana Hidalgo, autora de O passeador (Ed. Rocco), finalista dos prmios Jabuti e do antigo Portugal Telecom (hoje Oceanos), cujo protagonista Lima Barreto. A eleio do presidente Lula histrica. Mas, como vivemos numa democracia, com todos os partidos tomando decises no Con-gresso, o PT teve de fazer alianas justamente com essas elites, ou no teria sustentao poltica para ir at o fim do mandato. E continuamos no crculo

    Ao contrrio dos sentimentos exacerbados das passeatas atuais, no se encontra malcia no major Quaresma

    a pecha de esquisito como narra Lima Barreto, havia preconceito, na virada do sculo 19 para o 20, com quem estudava, lia livros acadmicos de forma autodidata; por outro lado, havia exaltao dos diplomados. Na obra, uma sucesso de maus entendidos associados a essa fama de louco fi-zeram o protagonista ser encaminhado para um sanatrio. Posteriormente, passa a exercitar seu patriotismo na zona rural, trabalhando a terra, tentando fazer exercitar a fertilidade da terra do Brasil possvel herana de uma viso romntica herdada dos romnticos como Gonalves Dias ou Jos de Alencar. No toa, ambos figuravam nas prateleiras do major, como descreve Lima Barreto quando vai apresentar seu protagonista.

    Sobre autores como Alencar ou Dias, o crtico li-terrio Antonio Candido lembra, em seu livro A edu-cao pela noite (tica, 1989), que a ideia de ptria [deles] se vinculava estreitamente de natureza e em parte extraa dela a sua justificativa. Ambas conduziam a uma literatura que compensava o atraso material e a debilidade das instituies por meio da supervalorizao dos aspectos regionais, fazendo do exotismo razo de otimismo social (p. 141). Policarpo, na zona rural, planejou sua vida agrcola em detalhes. Vislumbrou lucro, no por ambio de fazer fortuna, mas por haver nisso uma demonstrao das excelncias do Brasil. Tu irs ver minhas culturas, minha horta, o meu pomar e ento que te convencers como so fecundas as nossas terras, diz o major afilhada, deixando claro seu afeto inocente pela ptria.

    Mas essa a ideia dos romnticos, no de Lima Barreto. Negro, suburbano, pobre e com gene da loucura nas veias (herdado do pai), o autor era, ao mesmo tempo, vtima de uma sociedade injusta e um agente crtico dessa mesma coletividade. Chegou, o que era incomum sua poca, a en-trar na Escola Politcnica do Rio de Janeiro, mas abandonou quando o pai perdeu a sanidade. Foi influenciado pela leitura de escritores russos (em especial, Dostoivski), franceses (Gaultier, Taine e outros), alm de nomes como Ea de Queirs e Miguel de Cervantes. Suas atuaes em jornais, na revista Floreal (da qual era fundador e editor) e como escritor deram vazo necessidade de expurgar sua viso dos problemas sociais.

    Ao olhar para a formao do autor, compreende--se que Policarpo uma crtica ao nacionalismo

    romntico que imperava em sua poca. Um pa-triotismo que, cultivado em uma vida, teimava em resistir aps sucessivos choques de realidade at culminar em desiluso triste fim. No difcil ver o major nos protestos verde-amarelos.

    No vale pena e essa a ironia do livro de Lima Barreto cair na patriotada oca e achar que a sada trocar um heri por outro, opina Lilia Schwarcz. Cidadania projeto de todos; de cada um e em tempo integral. Ou seja, de nada adianta acusar apenas os polticos, vestir camisa amarela enrolado de bandeira e continuar (no seu canto) fazendo, tambm, atos que atentem ao bem-estar comum. por isso que a literatura reflete, mas tambm produz o seu contexto. Triste fim reflete quando se volta para as questes do seu momento; produz, com sua ironia, e com todas as possibilidades abertas que s um romance pode oferecer, ressalta a pesquisadora.

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201616

    ESPECIAL

    um livro comum, em que pretendo mostrar a pueridade de muitas das pretenses brasileiras, diz Lima sobre sua obra

    CENA 3Policarpo significa o que produz muitos frutos (dicionrio Houaiss). Entretanto, o que o nome promete, a vida no d; os esforos do major continuam estreis, sem resultados. Quaresma o perodo que antecede a crucificao do Na-zareno. Um prenncio de sacrifcio?

    Quando critica o pas, porque deseja v-lo melhor. Suas reclamaes sobre a Petrobras, ciclovias, nibus lotados, sobre as obras no metr de So Paulo, a usina de Belo Monte, cotas raciais nas universidades, a inflao, o dlar, acerca do sucesso de Wesley Safado e Anitta, do Chico Buarque que gosta do PT tudo isso sinnimo do seu amor ptria. Sente-se injustiado quando ouve que ele reclama demais; afinal, ele foi a todos os protestos que pedem a sada da Dilma.

    Andava desgostoso mesmo com o futebol, sua paixo. No joga, mas ama ver. Policarpo nutria raiva contra a seleo, cujas glrias esportivas no so mais as do passado. A Copa foi um fiasco e tudo indica que as Olimpadas seguiro o mesmo caminho.

    No v melhoras, s pioras. E algumas mudanas que o deixam confuso.

    Quaresma, vez por outra, d roupas usadas diarista que ajuda Adelaide no servio domstico. da famlia, diz s visitas, enquanto a mulata de meia-idade volta para a cozinha. Ela, sempre de gestos comedidos e risada gostosa,

    como expurgos muito particulares de facetas especficas. Em apresentao edio de Clara dos Anjos da Penguin & Companhia das Letras, Beatriz Resende, escritora e professora da UFRJ, sintetiza: O funcionrio pblico produziu Triste fim...; a crena na possibilidade de ser reconhecido como escritor ainda em vida lhe d a coragem de publicar o sofisticado Vida e morte de M. J. Gonzaga de S; o jornalista produz Clara dos Anjos.

    Mesmo com marcaes mais definidas em cer-tos livros, importante ter em mente que o autor est sempre falando das mesmas questes nti-mas, sempre fazendo o mesmo combate social. um questionamento profundo do papel do intelectual no Brasil, levantando a possibilidade de uma intelectualidade independente em rela-o mentalidade dominante, complementa Luciana Hidalgo.

    Em entrevista revista poca, em 1916, sobre Triste fim, o ar de pensador independente caracte-rstico de Lima Barreto fica evidente:

    - um livro comum, em que pretendo mostrar a puerilidade de muitas das nossas pretenses brasileiras. Terei errado? No sei. Terei acertado? No sei.

    - Em que meio se passa? - Na classe mdia. No posso sair dela. Tinha

    mesmo vontade de sair, mas no me possvel. [...] Desde o meu [Recordaes do escrivo] Isaas Caminha, que s trato de obedecer regra do meu Taine: a obra de arte tem por fim dizer o que os simples fatos no dizem. este o meu escopo. Vim para a literatura com todo desinteresse e toda coragem. O fim da minha vida as letras. Eu no peo delas seno o que elas podem me dar: glria [...].

    Lima Barreto tentou entrar na Academia Brasi-leira de Letras por trs vezes. No teve qualquer sucesso. Ele era o oposto do intelectual que se desejava poca, mais prximo do perfil de Ma-chado de Assis (que se adequou s normas sociais), do que um rebelde sua independncia de pensamento se associava uma vida bomia mal vista pelas elites.

    Querer se manter independente, mas tentar entrar em uma instituio conservadora das elites apenas uma das muitas ambivalncias que Lima Barreto demonstra na vida e, consequentemente, em sua obra. O exemplo mais evidente so os subrbios que, mesmo paradisacos, tambm encerram pessoas de outra sorte: os fteis, os de mau carter e, principalmente, os sofridos (o subrbio o refgio dos infelizes, diz ele em Clara dos Anjos). Alm das contradies, ele tambm transparece reflexos de uma dificuldade em se institucionalizar, seja por questes individuais ou de famlia. Por conta dos problemas de sade do pai, ele no completou os estudos na Politcnica do Rio (ou seja, deixou de ganhar um diploma, ttulo distintivo); e o tempo que poderia passar como amanuense foi abreviado pela aposentadoria (incapacidade de se manter no servio pblico, o qual sempre criticou de forma irnica). Mesmo na morte: era cria da periferia, mas pediu para ser enterrado no bairro burgus de Botafogo.

    Essa ambivalncia, entretanto, no se v no tratamento dado ao patriotismo. Em anotao ao rascunho da histria de Policarpo, Lima Bar-reto diz: Policarpo Quaresma, ideia que mata; a decepo; o pessimismo. Essa associao se mantm firme em toda a obra, principalmente porque o autor, para dar mais fora de morte ideia do nacionalismo, o associa insanidade. Mais uma de suas autofices: Lima foi duas vezes internado por problemas mentais, em 1914 e 1919. claro que [a conduo de Quaresma loucura] tambm fala de si mesmo, do prprio idealismo, de sua luta incansvel, em crnicas, romances, contos etc, para pensar e melhorar o Brasil, reduzindo a desigualdade social, combatendo o racismo, investindo contra o sistema de pistoles que no dava a mesma oportunidade para todos os brasileiros, complementa Luciana Hidalgo.

    CENA 4Policarpo lia com descrena uma notcia em um site duvidoso: SOCIALITE AGORA CONTRA IMPEACHMENT (assim, em maisculas, como quem grita, importuna). Os argumentos da mulher eram basicamente dois a presidncia sancionou a lei de delaes, que criou uma das maiores investigaes

    sobre corrupo no pas; e no havia interferncia do exe-cutivo nacional nas investigaes. at verdade, pensou Quaresma, mas com certeza tem caixa dois, tem dinheiro envolvido, no possvel que no tenha. Teve pedalada fiscal. No entendo quem defende... essa mulher.

    A entrevistada finalizava: No concordo em nada com esse governo, no voto em esquerdista, mas reconheo que preciso manter as coisas como esto e prosseguir as investigaes. preciso haver legitimidade. No vota na esquerda, mas fala como se fosse. Entrou no Facebook.

    ***Momentos de crise so momentos em que se produz, de forma acelerada, esse tipo de sensa-o: de esperana no porvir, de desesperana no presente, lembra Lilia Schwarcz, puxando pela histria a estratgia dos movimentos de patrio-tismo: O nacionalismo sempre, e desde o sculo 19, representou um discurso que usa de elementos

    impressionou Policarpo na semana passada, quando pediu licena para no trabalhar em maro Vai viajar. Comprara a passagem no dia anterior. Meu deus, exclamou mentalmente o patro, de avio?. Disfarou a surpresa. As coisas esto mudando... talvez j tenham mudado.

    ***A literatura de Lima Barreto, os expurgos sociais que ele faz, trazem consigo muito da vida do autor nos problemticos locais fsicos ou sociais que ocupou, de sua experincia como amanuense (escriturrio) da Secretaria de Guerra e como pes-soa clivada pela experincia da insanidade. Com disse Antonio Candido em A educao pela noite (p. 39), nosso autor em questo funde problemas pessoais com problemas sociais, preferindo os que so ao mesmo tempo uma coisa e outra como por exemplo a pobreza, que dilacera o indivduo, mas devida organizao defeituosa da socieda-de; ou o preconceito, traduzido em angstia, mas decorrendo das normas e interesses dos grupos.

    O dilogo entre esses vrios temas, que perpas-sam todas as suas obras (em maior ou menor grau) o que Luciana Hidalgo chamou, em sua tese de doutorado na UFRJ, de literatura de urgncia.

    Criei essa expresso para tentar dar conta dessa escrita mltipla que o Dirio do hospcio: uma srie de anotaes, registros, extratos poticos escritos por Lima Barreto durante sua internao no hospcio em 1919/20. Achei necessrio qualificar esse tipo de literatura como uma narrativa-limite produzida numa situao-limite, totalmente contaminada pela experincia pessoal do autor. Uma literatura feita na instituio que ao mesmo tempo servia de antdoto instituio. No entanto, aos poucos fui percebendo que toda a obra do Lima foi contaminada por sua vivncia de uma forma radical. Trata-se de uma escrita que parte de um eu premente, urgente, en-redado em questes ntimas que transbordavam e iam parar at mesmo na fico (o que era visto de forma negativa pelos crticos da poca).

    Algumas dessas obras podem ser encaradas

    KARINA FREITAS

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201617

    Triste fim oferta solues aos problemas que lana? No. O livro em si j a resposta: a prtica da reflexo crtica

    sentimentais para comover a populao e criar um sentido de conjunto: de ptria.

    Nos 21 anos de ditadura brasileira, o sentimento patritico era inflado pela publicidade oficial e, naturalmente, usado para fins de manuteno do estado de exceo a sntese maior desse clima talvez seja o slogan Brasil: ame-o ou deixe-o. O apelo a um amor cego pela coletividade serve a um projeto de nacionalidade que precisa ser olhado com desconfiana. No caso da ditadura, hoje possvel ver a obviedade dos usos de uma propaganda nacionalista. Ser que conseguimos enxergar esses projetos nos telejornais, discursos partidrios, nas respostas rpidas das discusses de bar?

    Triste fim oferta solues aos problemas que lan-a? No diretamente. O livro em si, na verdade, a resposta: a prtica da reflexo crtica. Dos pro-blemas polticos aos raciais, de gnero, o olhar

    sobre a burocracia e o servio pblico, o ceticismo quanto legitimidade prtica dos ttulos distinti-vos, preciso lanar tudo ao crivo das ideias, como fez Lima Barreto. As ideias, elas tambm esto a servio de projetos. O autor deixou disponvel s elites um mundo o dos subrbios e de todas as questes citadas que era negligenciado propo-sitalmente, mas que precisava ser conhecido para satisfazer seu senso de justia social. A ns, legou a dura concluso de que pouco mudou em 100 anos. A honestidade de Lima Barreto, transposta em uma escrita sem grandes pretenses estticas, um caminho possvel para correr o olhar sobre a coletividade e sobre como histrias individuais so (ou podem ser) histrias sociais.

    As manias de Policarpo, que sua irm Adelaide enxergava com alguma estranheza e indulgncia, nos apontam possibilidades para pensar, estar e agir. Deixemo-lo com elas.

  • DO MEU TAMANHODaniel Lima

    Coletnea de pensamentos soltos, poemas e pequenos ensaios escritos por Daniel Lima. Esta a quinta obra do poeta publicada pela Cepe Editora, que revelou seu talento em 2011, quando publicou o livro Poemas. Do meu tamanho traz criaes que transmitem emoo sem deixar de lado a reflexo filosfica.

    R$ 25,00

    BUS, SIMPLESMENTE DIFERENTEJorginho Quadros

    Bus um nibus construdo com peas de outros carros, mas que nunca ganhou um motor. Vivendo em um salo com outros nibus, ele sonha com aventuras, estradas, viagens... At que um dia ele mandado para um ferro-velho. Mas o que parecia ser o fim de Bus o comeo das realizaes dos seus sonhos.

    R$ 25,00

    COMO POLPA DE ING MADURO: POESIA REUNIDA DE ASCENSO FERREIRA Valria T. Costa e Silva (Org.)

    A publicao acontece no 120 aniversrio de nascimento do poeta Ascenso Ferreira, reconhecido por sua figura, seu vozeiro e suas referncias populares. Ascenso consegue mesclar o erudito com o popular em suas criaes modernistas, abusando de referncias ao Nordeste com crticas, reflexes e metforas.

    R$ 20,00

    FRANCESA: A BELLE POQUE DO COMER E DO BEBER NO RECIFEFrederico de Oliveira Toscano

    Um mergulho histrico no sculo 20, quando a Frana era o centro de irradiao da cultura para o mundo. Recife tambm se deixou influenciar pelos francesismos, com destaque para a gastronomia, na elaborao dos pratos, confeco de cardpios, criaes de armazns importadores de ingredientes e restaurantes.

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    A DCADA 20 EM PERNAMBUCOSouza Barros

    O livro explora aspectos polticos, socioeconmicos e culturais da dcada de 1920 em Pernambuco. A partir da experincia do autor e de pesquisas, o leitor mergulha no cenrio da era que precede a Revoluo de 1930, passeia pelas grandes obras, sente a influncia da crise de 1929.

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    O FUTURO PROFISSIONAL DE SEU FILHO: UMA CONVERSA COM OS PAISSlvia Gusmo (Org.)

    Uma preocupao dos pais durante o perodo da adolescncia a escolha profissional dos filhos. Escrito por psiclogas e psicanalistas consultores desta rea, o livro prioriza indagaes dos pais e fatores que interferem na escolha profissional, como a dinmica da famlia, entre outros temas relacionados.

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    ESCULTURAS FLUIDASJoo Paulo Parisio

    Tomando como inspirao temas de variadas naturezas, como a fome e o tdio, Joo Paulo Parisio utiliza seu olhar criador em poemas que transmitem as diversas propores das coisas. Os versos uma hora expandem e em outra introjetam. So esculturas fluidas carregadas da essncia do autor.

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    CONSPIRAO NO GUADALUPEMarco Albertim

    A histria acompanha um grupo de revolucionrios guiados pelos pensamentos marxistas, que se renem em Olinda. Misturando religio e romance o livro traz lugares pitorescos, como o Maconho, bar em que os companheiros vo comemorar. A crena nos orixs se confunde com a idolatria a Marx, em comparaes constantes.

    R$ 30,00

    A MENINA E O GAVIO 200 CRNICAS ESCOLHIDASArthur Carvalho

    Arthur Carvalho conversa com o leitor de mltiplas maneiras atravs de suas crnicas. Dominadas pela oralidade e por imagens sutis da vida, tudo tema para suas reflexes, das partidas de futebol s grandes e improvveis amizades, aliando o gosto pelas coisas populares e a literatura mais erudita.

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    MAGDALENA ARRAES: A DAMA DA HISTRIA Lailson de Holanda Cavalcanti e Valda Colares

    Primeiro volume da Coleo Memria, o livro escrito pelo cartunista Lailson de Holanda Cavalcanti e a historiadora Valda Colares aborda passagens polticas e pessoais daquela que foi por trs vezes primeira-dama de Pernambuco. Magdalena Arraes concedeu depoimentos que trazem uma viso indita sobre ela.

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    FAA SEU PEDIDO 0800 081 1201 [email protected]

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    PERNAMBUCNIA: O QUE H NOS NOMES DAS NOSSAS CIDADES?Homero Fonseca

    Verso infantojuvenil do livro Pernambucnia: o que h nos nomes das nossas cidades, trazendo os significados dos nomes das cidades que fazem parte do estado de Pernambuco. O formato didtico e a linguagem clara so acompanhados por ilustraes, alm dos dados informativos das regies e algumas curiosidades.

    R$ 40,00

  • PERNAMBUCO, FEVEREIRO 201619

    Ele acaba de se levantar, Teresa. E o observo em jeitos bruscos depois de tantos anos, ele, que reapareceu sem anncios ou advertncias para me devastar em despropsitos e nenhum pedido de desculpa, nada. Admito que gostaria de no compreender a razo pela qual se levantou contrariado e to obtuso, mas inevitvel. Alis, Teresa, acredite que sou eu quem deveria estar em p com modos grosseiros, um olhar atravessado a ele que, sentado e cabisbaixo, teria de aceitar o imprprio da minha reao. Mas sequer -consegui articular resposta: ele se levantou inter-rompendo com brutalidade o curto silncio em que tentava aceitar o que de fato estava acontecendo, as coisas que me disse. Que direito tenho eu, afinal?

    Ele est parado minha frente num olhar que persiste em desdm enquanto joga algumas notas sobre a mesa, vira as costas e caminha sobre as andorinhas desenhadas em pedras na calada am-bicionando desaparecer na esquina que o engolir num truque fajuto cheio de abracadabras que j vi antes, Teresa, h tantos anos. Lembra-se?

    E mais uma vez estou sozinho.

    ...Definitivamente sozinho, mas no sem lutar, Te-

    resa. Corri antes que ele sumisse para afront-lo em questionamentos e assertivas, encar-lo com os olhos em riste, a boca em palavras duras que o impediriam da sada fcil de me culpar por suas loucuras. Em vo. Ou pior: volto agora com o peito sobressaltado e a cabea mais embaraada pelos disparates que ele disse

    (voc no acreditaria, Teresa)Aquela voz de tanto tempo colocando meus pen-

    samentos em desencontros como desencontrada minha vida. Pouco adiantou interpel-lo, eu no poderia evitar que ele desaparecesse

    (abracadabra)Naquela esquina que agora observo atordoado e

    des-crente, aquela esquina. E, irremediavelmente sozinho como sempre es-

    tive, resigno-me a um gole da cerveja quente. Por um instante parece que nada aconteceu. Deliro? Como viemos a esse lugar?, esse bar que conheo de outros sbados em que muitas pessoas minha volta arrotam redundncias at comemorarmos embria-gados a derrota de mais um dia to logo a madrugada suspende-se sobre ns anunciando o domingo.

    No sei como viemos parar aqui. Entretanto, esta garrafa de cerveja e os dois copos(o dele com um gole por tomar)No me deixam acreditar que alucino, assim como

    o garom que se aproxima, passa uma flanela mo-lhada cheirando a lcool sobre a mesa, suspen-de a garrafa altura dos olhos em perpendicular e pergunta

    mais uma?E