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36 HISTÓRIA DA ARQUITETURA COMO FERRAMENTA DE PRESERVAÇÃO – O CASO DA RESTAURAÇÃO DO ANTIGO HOTEL SETE DE SETEMBRO – Maria Ângela Dias (*); Cláudia Nóbrega (**); Francyla Bousquet (***); (*) Universidade Federal do Rio de Janeiro – Diretora do Escritório Técnico da Universidade (ETU); (**)Universidade Federal do Rio de Janeiro – Diretora da Divisão de Projetos de Imóveis Tombados (DIPRIT); (***) Universidade Federal do Rio de Janeiro – Arquiteta-fiscal das obras de restauração do antigo Hotel Sete de Setembro. Introdução O presente artigo trata da restauração do Antigo Hotel Sete de Setembro, empreendida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, através de seu Escritório Técnico (ETU), especificamente de sua Divisão de Projetos de Imóveis Tombados (DIPRIT), com apoio da Petrobrás. Figura 1: Hotel Sete de Setembro em construção c.1921-1922. (AGRJ 1 Apud FERRAZ, HERMES, 2001). O conjunto arquitetônico é formado por duas edificações: o prédio principal e o anexo. Situa-se na Avenida Rui Barbosa n o . 762, Flamengo, Rio de Janeiro. Construído para ser o Hotel Sete de Setembro, entre 1921-22, foi cedido a Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade do Brasil (atual UFRJ), em 1926, para servir de internato para as alunas e professoras desta escola. Permaneceu como internato das enfermeiras até 1972, quando passa a sediar a Casa do Estudante Universitário. Em 1995, o imóvel é desocupado, iniciando-se os trabalhos de restauração no ano de 2002. Durante as obras de recuperação do complexo arquitetônico, houve uma série de impasses sobre decisões projetuais, evidenciando a carência de informações históricas sobre o sistema técnico- 1 ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO. construtivo dos imóveis, o programa original e as características físicas do terreno onde o Hotel foi implantado, bem como as transformações ocorridas na área e nas edificações ao longo do tempo. Dentre as questões que se colocaram, elegemos o caso da execução de uma nova cisterna, projetada para ser construída em um dos pátios internos da edificação principal. Métodos Com os serviços de execução da cisterna já contratados qual não foi a nossa surpresa ao verificarmos a existência de partes de uma edificação pré-existente ao prédio do Hotel. Figura 2: Escavações para construção da cisterna em julho/ 2005, (BOUSQUET). A primeira providência foi convocar o órgão responsável pela proteção do conjunto, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), para analisar o problema. O projeto antecedia a nossa gestão e havia sido aprovado pelo referido órgão. Na visita técnica realizada pelo INEPAC, que contou com a presença do professor Silva Teles, foi constatada a importância da descoberta, levando o Conselho do Inepac a solicitar a interrupção dos trabalhos de escavação. As obras foram paralisadas e, diante da necessidade de determinarmos um outro local para Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação. Vol.1, No.2, pp. 036 - 040 Copyright © 2007 AERPA Editora

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História da arte

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HISTÓRIA DA ARQUITETURA COMO FERRAMENTA DE PRESERVAÇÃO – O CASO DA RESTAURAÇÃO DO ANTIGO HOTEL SETE DE SETEMBRO –

Maria Ângela Dias (*); Cláudia Nóbrega (**); Francyla Bousquet (***);

(*) Universidade Federal do Rio de Janeiro – Diretora do Escritório Técnico da Universidade (ETU); (**)Universidade Federal do Rio de Janeiro – Diretora da Divisão de Projetos de Imóveis Tombados

(DIPRIT); (***) Universidade Federal do Rio de Janeiro – Arquiteta-fiscal das obras de restauração do antigo Hotel Sete de Setembro.

Introdução

O presente artigo trata da restauração do Antigo Hotel Sete de Setembro, empreendida pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, através de seu Escritório Técnico (ETU), especificamente de sua Divisão de Projetos de Imóveis Tombados (DIPRIT), com apoio da Petrobrás.

Figura 1: Hotel Sete de Setembro em construção

c.1921-1922. (AGRJ 1Apud FERRAZ, HERMES, 2001).

O conjunto arquitetônico é formado por duas

edificações: o prédio principal e o anexo. Situa-se na Avenida Rui Barbosa no. 762, Flamengo, Rio de Janeiro. Construído para ser o Hotel Sete de Setembro, entre 1921-22, foi cedido a Escola de Enfermagem Anna Nery da Universidade do Brasil (atual UFRJ), em 1926, para servir de internato para as alunas e professoras desta escola. Permaneceu como internato das enfermeiras até 1972, quando passa a sediar a Casa do Estudante Universitário. Em 1995, o imóvel é desocupado, iniciando-se os trabalhos de restauração no ano de 2002.

Durante as obras de recuperação do complexo arquitetônico, houve uma série de impasses sobre decisões projetuais, evidenciando a carência de informações históricas sobre o sistema técnico- 1 ARQUIVO GERAL DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO.

construtivo dos imóveis, o programa original e as características físicas do terreno onde o Hotel foi implantado, bem como as transformações ocorridas na área e nas edificações ao longo do tempo. Dentre as questões que se colocaram, elegemos o caso da execução de uma nova cisterna, projetada para ser construída em um dos pátios internos da edificação principal. Métodos

Com os serviços de execução da cisterna já contratados qual não foi a nossa surpresa ao verificarmos a existência de partes de uma edificação pré-existente ao prédio do Hotel.

Figura 2: Escavações para construção da cisterna

em julho/ 2005, (BOUSQUET).

A primeira providência foi convocar o órgão responsável pela proteção do conjunto, o Instituto Estadual do Patrimônio Cultural (Inepac), para analisar o problema. O projeto antecedia a nossa gestão e havia sido aprovado pelo referido órgão.

Na visita técnica realizada pelo INEPAC, que contou com a presença do professor Silva Teles, foi constatada a importância da descoberta, levando o Conselho do Inepac a solicitar a interrupção dos trabalhos de escavação.

As obras foram paralisadas e, diante da necessidade de determinarmos um outro local para

Revista Brasileira de Arqueometria, Restauração e Conservação. Vol.1, No.2, pp. 036 - 040 Copyright © 2007 AERPA Editora

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construção da cisterna desenvolvemos um plano de ação com as seguintes etapas: • Levantamento de dados sobre a história da

área na qual o Hotel está inserido; • Levantamento de dados sobre a edificação

anterior ao Hotel; • Levantamento de dados sobre a construção do

Hotel; • Pesquisa iconográfica do Hotel e da

edificação que o precedia; • Adequação dos pontos de fuga de fotografias

antigas de ambas as construções, de forma a possibilitar a superposição das mesmas;

• Realização de sondagens para a pesquisa de subsolo no segundo local destinado à cisterna.

Resultados Cada etapa acima mencionada conduziu aos seguintes resultados: • Identificação das ruínas da edificação pré-

existente ao Hotel A pesquisa sobre a área na qual o Hotel foi

construído mostrou que as ruínas encontradas sob o pátio interno, onde construiríamos a nova cisterna, eram vestígios das antigas oficinas, que pertenciam a Antonio Jannuzzi, no morro da Viúva.

Figura 3: Oficinas e depósitos da empresa de

Jannuzzi, no morro da Viúva, ao fundo à esquerda, s/data VIANNA, 2001, p.79).

Antonio Jannuzzi foi um construtor italiano

que atuou no Rio de Janeiro, nas últimas décadas do século XIX e nas primeiras do século XX. Trata-se de um dos grandes personagens no cenário da arquitetura carioca da época, pois esteve envolvido em projetos e obras de grande

vulto, tais como os edifícios da antiga Avenida Central e suntuosos palacetes em bairros nobres da cidade do Rio de Janeiro e outras cidades do Estado como Petrópolis e Valença2.

Jannuzzi possuía uma empresa, a Antonio Jannuzzi & Cia, criada em 1875, que atuava como um escritório de arquitetura e construtora, incluindo oficinas e depósitos de materiais de construção. Através de um anúncio, publicado na revista Architectura no Brasil em 1923, percebe-se a variedade de serviços oferecidos pela Antonio Jannuzzi & Cia. Verifica-se neste anúncio a menção às oficinas:

Figura 4: Anúncio da empresa de Jannuzzi

(ARCHITECTURA NO BRASIL, nov., 1921)

• Dados sobre as oficinas, edificações que

existiam no local, antes da construção do Hotel As oficinas que Antônio Jannuzzi possuía no

Morro da Viúva compunham um verdadeiro complexo formado pelas pedreiras de granito, oficinas a vapor de serraria, carpintaria e serralherias, depósitos de madeiras, pedras e toda espécie de materiais de construção, além da seção de transportes. Possuía cerca de 11000 m2, com um cais de cerca de 120 metros, ao longo da costa, provido de um “possante” guindaste movido à eletricidade (JANNUZZI Apud GRIECO, 2005, p.4).

2 Segundo Bettina Zellner Grieco (2005), Antonio Jannuzzi também foi responsável por projetos de casas operárias, sugeridas como solução para o problema habitacional, pelo qual o Rio passava naquela época.

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Figura 5: Área externa das oficinas e depósitos.

(GRIECO, 2005, p.5)

Figura 6: Área interna de uma das oficinas

(GRIECO, 2005, p.5).

Nos vestígios encontrados foi possível identificar, uma rampa e bases de pedra, talhadas na forma de grandes paralelepípedos com ganchos de ferro.

Figura 7: Vista das bases, julho/2005 (BOUSQUET).

Figura 8: Vista das bases, julho/2005 (BOUSQUET).

Figura 9: Vista da área de escavações, ago. 2005

(BOUSQUET). • Informações sobre a construção do Hotel

O Hotel Sete de Setembro foi construído em apenas 14 meses (FERRAZ, HERMES, 2001, p.23), nos terrenos da oficina de Jannuzzi, para acomodar os hóspedes ilustres que viriam para a Exposição do Centenário da Independência. Foi construído de forma apressada apesar de não ter sido concluído a tempo para Exposição.

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O fato de a construção ter sido efetuada às pressas e no local da oficina de Jannuzzi abre a possibilidade de compreendermos algumas peculiaridades dos aspectos construtivos do Hotel, que vêm sendo observadas no decorrer dos trabalhos de restauração, tais como: a variedade de materiais construtivos utilizados, a ausência de certos acabamentos da construção, a quebra da simetria absoluta e a ausência de vão central, tão comum em edifícios que seguem princípios da arquitetura clássica como o Hotel3. • As coincidências estruturais entre as oficinas

e a edificação principal e o anexo do Hotel

Elaboramos uma pesquisa iconográfica sobre o Hotel e sobre o complexo de oficinas do Jannuzzi. Durante os trabalhos de investigação encontramos fotografias dos dois conjuntos, praticamente obtidas a partir do mesmo ângulo. Logo, adequamos os pontos de fuga das imagens a fim de possibilitar a superposição das mesmas. Esta operação revelou a coincidência nas formas do perímetro dos volumes das edificações das oficinas com as do Hotel4. Logo, levantamos a hipótese de que grande parte do baldrame de pedra, que compõe a estrutura do Hotel pode ter sido aproveitada da estrutura das edificações das oficinas.

Figura 10: Esquema comparativo foto

(VIANNA,2001, p.79).

3 “O edifício é um exemplo raro de arquitetura neogrega no Brasil. A referência, entretanto é muito sutil e restrita. Contrariamente à boa regra acadêmica, não tem vão central, o que confere à fachada uma aparência canhestra.”(ROCHA-PEIXOTO In:CZAJKOWSKI, 2000) 4 A coincidência dos formatos dos perímetros verifica-se, inclusive na forma de um dos volumes do Hospital Fernandes Figueira, situado em lote vizinho ao Hotel.

Figura 11:Esquema comparativo antigas instalações

da Antônio Jannuzzi & Cia , foto (VIANNA, 2001, p.75).

• Obtenção de dados mais completos sobre a

estrutura da edificação que está sendo restaurada;

Os dados obtidos a partir da operação citada

acima contribuíram para melhor compreensão da estrutura do Hotel, o que por sua vez também contribui para ampliar as informações que fundamentam o projeto da construção de novas estruturas, previsto no projeto de restauração do imóvel em questão. • Possibilidade de construção da nova cisterna

sem “refazimentos” de trabalhos;

A informação gerada pela iconografia possibilitou a indicação de um novo local para construção da cisterna. Escolhemos uma área do terreno que não havia registro de edificações na época em que o mesmo era ocupado pelas oficinas. Supomos que provavelmente a área do subsolo estaria livre de impedimentos, o que foi confirmado pelas sondagens5.

5 A sondagem foi elaborada no trecho do terreno situado entre a edificação principal e o anexo do Hotel. Foram feitos 5 furos, um em cada vértice e um no centro do retângulo do perímetro da cisterna projetada.

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Figura 12: Nova área para instalação da cisterna, janeiro/ 2006.

Conclusões Como considerações finais do presente trabalho, destacamos as seguintes conclusões: • A constatação da importância da elaboração

de uma pesquisa histórica criteriosa sobre a construção da edificação histórica para nortear os projetos de intervenção e restauração. A pesquisa histórica aliada a prospecções arqueológicas deve ser considerada como a primeira etapa de um projeto de restauração;

• A comprovação de que a pesquisa histórica

pode definir caminhos de atuação que evitem o “retrabalhar” e o dispêndio de recursos, ou seja, a economia destes recursos que, de um modo geral, são tão parcos em obras de restauração.

No estudo de caso apresentado, o conhecimento da história da arquitetura teria influenciado diretamente nas decisões do projeto de restauração e teríamos poupado tempo e recursos. Por fim, • A possibilidade da pesquisa histórica criar

novas frentes de investigação e de elucidar outras questões sobre o objeto de estudo. Uma determinada investigação sempre fornece novos desdobramentos, que ampliam o universo de conhecimento sobre determinado assunto. A investigação incitada, a partir da necessidade de solucionar a questão da construção da nova cisterna, forneceu subsídios para novas pesquisas tais como: dados sobre o contexto no qual o Hotel foi construído, especificações dos materiais e

técnicas construtivas aplicadas na construção do Hotel, dados sobre o construtor Antônio Jannuzzi e sua empresa, referências sobre outras edificações construídas no entorno e informações sobre as modificações ocorridas no próprio espaço urbano daquela região do Morro da Viúva.

Referências (1) ARCHITECTURA NO BRASIL, ano 1, n.2, nov.1921. (2) CZAJKOWSKI, Jorge (Coord.) Guia da arquitetura eclética no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Centro de Arquitetura e Urbanismo, 2000. (3) FERRAZ, João; HERMES, Maria Helena. Projeto de restauração e uso do Hotel Sete de setembro. Rio de Janeiro: UFRJ, 2001. (4) GRIECO, B. Z. Arquitetura Residencial de Antonio Jannuzzi. 2005. 310 f. (Mestrado em Arquitetura ) – PROARQ , UFRJ, Rio de Janeiro. (5) VIANNA, L. F. Rio de Janeiro – Imagens da Aviação Naval 1916 – 1923. Rio de Janeiro: Argumento, 2001. E-mail dos autores 1. Professora Dra. FAU/UFRJ Maria Angela Dias –

[email protected] 2. Professora Dra. FAU/UFRJ Cláudia Nóbrega –

[email protected] 3. Mestranda PROARQ/FAU/UFRJ Arquiteta Francyla

Bousquet – [email protected]