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Publicação dos estudantes do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ OUT 02 2015

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Publicação dos estudantes do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ

OUT022015

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02 • 20152 PEPIANOS 02 • 20152 PEPIANOS

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302 • 2015 PEPIANOS

PEPIANOSPublicação dos estudantes do Programa de Pós-Graduação em Economia Política Internacional da UFRJ.

Jornalista responsável: Janaína Pinto, registro 2799/CE.

*Artigos assinados não correspondem necessariamente à opinião da revista PEPIANOS. [email protected]

CONSELHO EDITORIAL Emanuel Sebag • [email protected]élio Farias • [email protected]ína Pinto • [email protected] Messias • [email protected] Appel • [email protected]

COLAbORADORESArtigosPaulo Lira • [email protected] Curty • [email protected] Batista • [email protected] Osório • [email protected] Savarese • [email protected] Trein • [email protected] Pecequilo • [email protected] Sousa • [email protected] Serrano • [email protected] Lannes • [email protected]é Luís Fiori • [email protected] Rocha • [email protected]

Projeto gráficoYuri Leonardo • [email protected]

cAPADenise Nasser • [email protected]

Arte-finAlAparecido C. de Oliveira • [email protected]

fotos dA entrevistAVictor Dantas • [email protected]

OUT02 2015

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02 • 20154 PEPIANOS

EDITORIALPara atravessar os compartimentos disciplinares do saber

Eis a nova edição.Com um pouco mais de tempo, conversa, dissenso e esforço, o segundo número da Revista Pepianos se faz

presente. Reitera-se, a exemplo de nossa primeira empreitada, a vontade de promover novos diálogos e encontros com pessoas, ideias e instituições que se enveredam pela interdisciplinaridade da Economia Política Internacional. Um caminho tortuoso, mas necessário frente aos desafios teóricos do tempo presente.

Se a EPI, enquanto campo de pesquisa, ambiciona romper as barreiras rígidas que a compartimentação do saber produziu em nossas universidades, a Pepianos quer perenizar um canal de contribuição do corpo discente à comunidade acadêmica daqui e de acolá.

A revista está dividida em seis seções.A primeira, Diálogos, traz um breve resumo da produção

dos alunos. São apresentadas cinco pesquisas, todas concluídas em suas formalidades, e que demonstram a diversidade dos temas trabalhados no PEPI.

Em Primeira Pessoa, Franklin Serrano esclarece as hipóteses e pressupostos de sua perspectiva de economia política e de como, a partir desta, interpreta a ordem econômica do sistema internacional.

Convidados a refletir sobre a noção de “povo” nas relações internacionais, os professores Franklin Trein, Cristina Soreanu Pecequilo e Wagner Souza fizeram suas contribuições à Contracantos, a nossa seção temática.

Em Caminhos da Pesquisa, Suellen Lanes discorre sobre o passo a passo de seu doutorado, relatando-nos a instigante e difícil tarefa de compreender os fatores que favoreceram a formação e ascensão do império árabe-islâmico.

Em Visão de Mundo, José Luís Fiori, por meio de uma conversa franca, agradável e extremamente rica, relata a sua trajetória pessoal e acadêmica. Uma entrevista imperdível!

E, por fim, em Além da fronteira, seção dos intercambistas, Pedro Rocha fala sobre sua experiência no berço da Escola dos Annales: a EHESS de Paris.

Boa leitura!

Os [email protected]

02 • 20154 PEPIANOS

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502 • 2015 PEPIANOS

SUMÁRIO

6 Diálogos DA REINTERPRETAçãO GEOPOlíTICA DO DESENvOlvImENTO àS PATOlOGIAS DA UNIãO EUROPEIA E DO COmPlExO FARmACêUTICOCinco pesquisadores pepianos e o resumo de suas trajetórias recentes

8 Em PrimEira PEssoaCOmO O “NOvO NACIONAlISmO DE RECURSOS NATURAIS” E ESTRATéGIAS AGRESSIvAS DE ADmINISTRAçãO DO bAlANçO DE PAGAmENTOS PERmITIRAm O CRESCImENTO DO SUl GlObAl NESTE INíCIO DE SéCUlOFranklin Serrano resume os aspectos estruturais do grupo de pesquisa em Economia Política do Instituto de Economia da UFRJ

12 ContraCantos O SIGNIFICADO DA CATEGORIA “POvO” NAS SOCIEDADES “PóS-mODERNAS” E A DIFICUlDADE DE SUA REAlIzAçãO DEmOCRáTICAFranklin Trein, Cristina Pecequilo e Wagner Sousa mostram os desafios, em diferentes quadros geopolíticos, que os povos enfrentam para adquirir a sonhada legitimidade que o liberalismo nos legou

22 Caminhos Da PEsquisaOS bENEFíCIOS DA TECNOlOGIA NA CONSECUçãO DE UmA TESESuellen Lanes mostra como os bancos digitais de dados, journals e possibilidade de compra online de livros fazem o possível para substituir o nem sempre viável sanduíche

23 Visão DE munDoA TRAJETóRIA POlíTICO-INTElECTUAl DE JOSé lUíS FIORIO cientista político e professor do PEPI José Luís Fiori, que sempre se posicionou à frente do seu tempo, nos leva a uma verdadeira viagem pelo tempo e espaço e à trajetória da construção do seu pensamento “independente” de esquerda.

42 além Da FrontEiraINTERCâmbIO NO bERçO DA ESCOlA DE ANNAlESPedro Rocha fala de seu estágio de pesquisa na Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris)

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02 • 20156 PEPIANOS

DIÁLOGOS David Ricardo sob a ótica de Karl marx: apontamentos sobre história do pensamento econômico e ideologiacArlA curty

orientAdorA: MAriA Mello de MAltAA pesquisa que originou a dissertação

tinha como objetivo investigar as relações entre elementos ideológicos e a construção de formulações teóricas, em especial, no campo da economia. Seguiu-se como orientação o método materialista histórico dialético e, portanto, a noção de que as ideias não surgem de um ideário coletivo ou de um espírito geral, mas são as representações teóricas de processos sociais, econômicos, culturais e políticos, que não só refletem a realidade concreta que permeia o autor, mas que também influenciam esta realidade, transformando-a.

Nesse sentido, buscou-se analisar, primeiramente, como o conceito ideologia é permeado por ambiguidades e contrariedades, fazendo uma síntese do debate em torno da polissemia do conceito. O mapeamento não almejava esgotar o debate, mas organizá-lo de maneira a reconhecer a sua complexidade e expor como o caminho que evidencia a perspectiva histórico e socialmente condicionada do conceito e a sua materialidade inerente é o mais interessante para a compreensão do papel da ideologia na construção do método desenvolvido por Karl marx para analisar a história do pensamento econômico (HPE).

A questão do método em HPE utilizado por marx é analisada na dissertação tendo como referência as obras O Capital e Teorias da mais-valia e como foco de análise a economia política clássica, e um dos seus principais autores, David Ricardo.

O que foi analisado na dissertação não se esgotou enquanto questão, cabendo aprofundar a análise nas demais obras de marx, assim como em outros autores que trabalham a HPE de maneira crítica, analisando as formas de apreensão da realidade econômica estruturada em cada tempo histórico específico, substancialmente influenciada e determinada pelos valores sociais e políticos desta determinada época.

Carla é mestre em EPI pelo PEPI-UFRJ e pesquisadora do Laboratório de Estudos Marxistas José Ricardo Tauile (LEMA/IE/UFRJ).

Agenda de segurança brasileira: o dilema entre a ameaça interna e externaPAulo vitor sAnches lirA

orientAdor: rAPhAel PAdulA

A pesquisa buscou reconstruir a discussão acerca da agenda de Segurança Nacional brasileira, com fins a entender a origem efetiva do aparecimento da ameaça interna como foco dessa política nacional que possui em seus documentos atuais uma espécie de dilema entre ameaças. Constatamos que a importância da ameaça interna cresce na agenda a partir da Segunda Guerra mundial, quando a influência dos Estados Unidos se exacerba entre os militares brasileiros. A retórica de defesa do Ocidente e o entendimento de uma suposta relação privilegiada dos militares brasileiros com os Estados Unidos criou um movimento paulatino de inserção da ideia do inimigo interno como base da agenda nacional.

Nosso argumento é o de que a retórica anticomunista do início dos anos de 1950 tornou-se “guerra insurrecional” e mais adiante nas chamadas “novas ameaças”, que substituíram o comunismo como ameaça central. A aproximação com os Estados Unidos pautou o entendimento de inserção geopolítica do brasil no mundo e, paulatinamente, foi substituindo a ideia de Guerra Total pela Guerra Revolucionária. Se na primeira a ameaça externa tem prioridade, na segunda o inimigo encontra-se dentro da própria nação.

Nesse sentido é que entendemos a priorização das ameaças internas, além do dilema colocado na agenda mais recente do governo brasileiro já que, à luz da remontagem dessa história, percebemos que a tentativa de imputar a dissuasão externa como agenda vai de encontro à agenda hemisférica. Agenda que leva ao desvio de função das Forças Armadas, dando a estas missões específicas e criando vulnerabilidades ao Estado brasileiro.

Paulo é doutorando em EPI pelo PEPI-UFRJ e Professor Substituto no curso de Defesa e Gestão Estratégica (DGEI) na UFRJ.

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702 • 2015 PEPIANOS

Os Tratados de Methuen de 1703: guerra, portos, panos e vinhosfeliPe de AlvArengA BAtistA

orientAdor: MAurício Medici Metri

Firmado em lisboa, a 27 de dezembro de 1703, o Tratado de Methuen é composto de três artigos, dois deles estabelecendo taxas preferenciais de importação de têxteis ingleses e vinhos portugueses pelos mercados de uma e outra parte; o terceiro, estabelecendo seu prazo de ratificação. Apesar do limitado conteúdo comercial, Methuen tem a honra de ter para si uma historiografia.

Smith e Ricardo elevaram-no a patamar ímpar ao convocá-lo à representação de suas teorias de comércio internacional. Simplificação economicista que impregnou a própria historiografia portuguesa, que o culpa como um dos responsáveis à inépcia industrializante de Portugal.

A complexidade histórica da conjuntura que envolve o tratado não corresponde, todavia, à simplificação economicista com que parte da literatura tradicional tem-no interpretado. Então, o quadro internacional enfrentado por Portugal girava à volta da iminência da península ibérica ser lançada ao tabuleiro da Guerra de Sucessão Espanhola (1701-1715), a qual envolvia as principais potências europeias, divididas pela rivalidade das Dinastias Habsburgo e bourbon, em luta pela sucessão ao trono e domínios de Carlos II (1661-1700).

A dissertação “Os Tratados de Methuen de 1703: guerra, portos, panos e vinhos” pretende interpretação alternativa, conduzida por eixo de análise histórica e privilégio das relações de poder entre Estados. Os Tratados internacionais consistiram na principal fonte primária de uso.

A investigação buscou reinserir o documento à luz dos condicionantes históricos de Portugal. Recua aos pródromos da Guerra de Restauração (1640-1668) e ao fim da União Ibérica, perpassa a reinserção autônoma portuguesa no sistema político europeu e avança à questão imediata da sucessão de Carlos II.

Felipe é mestre em EPI pelo PEPI-UFRJ e atualmente doutorando no mesmo programa.

O direito e a economia política da União Europeialuiz feliPe BrAndão osórioorientAdor: frAnklin trein

A trajetória desta tese reflete minha experiência acumulada no meio acadêmico. Com graduação em Direito e pós-graduação em Relações Internacionais, o objeto de estudo do encerramento deste ciclo, com o doutorado, é uma simbiose dessas áreas. Após investigar o sentido estratégico das relações bilaterais entre Brasil e Alemanha na Dissertação de Mestrado, entendi que era o momento de ampliar o foco. Tendo em vista a experiência do regionalismo europeu, coube analisá-la para poder extrair eventuais lições para a nossa realidade.

Neste sentido, a União Europeia, que já serviu de modelo a outras iniciativas de integração regional, enfrenta atualmente uma crise sem precedentes, eclodida em seu vetor econômico, mais avançado institucionalmente. O exemplo exitoso de cooperação e governança, para o consenso liberal-institucionalista, amarga retrocessos em suas conquistas sociais que explicitam suas contradições. Por que ela passa por isso neste momento? Pela inter-relação de Economia Política Internacional e Direito Internacional é possível entender o processo europeu por uma ótica crítica inerente ao materialismo histórico-dialético.

A compreensão da totalidade concreta do fenômeno regionalista leva a uma investigação de construção histórica, contextualizada no panorama hegemônico, moldada pela interação da geopolítica dos capitais e dos Estados. A partir de seu arranjo político-econômico liberal, é imperioso dissecar sua arquitetura orgânica, enfatizando o prisma econômico e suas assimetrias. Após esta explanação, cabe um estudo aprofundado sobre a forma jurídica europeia, visto que esta foi a amálgama da integração e produto das transformações político-econômicas.

A razão da crise está, portanto, no seu aparente êxito: na forma da União Europeia, que legaliza a economia política liberal, acentuada pós-Maastricht, privilegiando o capital monopolista em detrimento das conquistas sociais e garantias trabalhistas, tornando os indivíduos e as nações periféricas reféns da integração regional voltada ao interesse dos mercados e dos países centrais. é isso que queremos?

Luiz Felipe é doutor em EPI pelo PEPI-UFRJ

e Professor Assistente de Direito e Relações Internacionais na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Patologias do Poder: comércio internacional, propriedade intelectual e acesso a medicamentos essenciaissAMAnthA sAvArese

orientAdor: Andrés ferrAri O ponto de partida para essa pesquisa

é a ideia de que a saúde não é determinada apenas pelas patologias biológicas, mas também pelas patologias de poder. Essas forças macro, moldadas pela economia política, contribuem juntas para uma experiência desigual da saúde global.

Em particular, esse trabalho investiga a questão de acesso a medicamentos no contexto do comércio internacional, propriedade intelectual e relações assimétricas de poder dentro do sistema mundial moderno.

Usamos a discussão do historiador francês Fernand Braudel sobre o capitalismo e o “anti-mercado” para analisar a indústria farmacêutica e entender seus altos lucros e preços. Observamos como ela conseguiu, com o apoio do Estado, “capturar” um mercado global e atingir lucros extraordinários, principalmente pelo fortalecimento de direitos de propriedade intelectual.

Focamos em particular no Acordo do TRIPS (Aspectos Relacionados ao Comércio e Direitos de Propriedade Intelectual da Organização mundial do Comércio), e o papel da Big Pharma em definir a agenda inicial. Assim, mostramos como o TRIPS criou um padrão neoliberal e homogeneizado de patentes, construído para privilegiar os interesses das grandes corporações farmacêuticas, bem como os interesses dos países desenvolvidos em que operam.

Finalmente, consideramos a epidemia de HIv/AIDS, e como essa crise delineou as estruturas principais desse “anti-mercado.” Destacamos as experiências do Brasil e da África do Sul, que refletem certos desafios, dinâmicas de poder e oportunidades para assegurar medicamentos a preços acessíveis.

Samantha é mestre em EPI pelo PEPI-UFRJ

e trabalha no escritório do Capital Master Plan da ONU em Nova Iorque.

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02 • 20158 PEPIANOS

Creio que, de início, seria útil esclarecer que a minha pesquisa, e a do grupo de economia política do IE-UFRJ do qual faço parte, não é multidisciplinar nem trata de relações internacionais. Não é multidisciplinar porque foca em apenas dois aspectos que para nós, como para qualquer variante de pensamento materialista, são estruturantes fundamentais: o poder político (inclusive militar) e a economia. Afinal, autores tão antigos como Petty ou tão recentes como Jared Diamond demonstram que o excedente econômico é uma pré-condição objetiva mínima para a existência de economias com complexa divisão do trabalho e de sociedades hierarquizadas em classes. Da mesma forma não estudamos relações internacionais em geral, mas apenas os aspectos políticos e econômicos estruturais dessas relações. Apesar de o objeto de estudo ser basicamente o mesmo, não creio que se possa classificar o que faço exatamente com o rótulo de economia política internacional. A chamada economia política internacional tradicional baseia sua análise, no que diz respeito aos aspectos econômicos, na abordagem neoclássica com sua visão idealizada do funcionamento do mecanismo de mercado, que considero pouco consistente em termos teóricos e totalmente irrealista em termos empíricos.

O meu trabalho não pertence exatamente nem mesmo à chamada economia política internacional crítica (de autores como Magnus Ryner, por exemplo), termo que significa basicamente a EPI que usa abordagens heterodoxas de economia. Aqui o problema é que, ao contrário dos pesquisadores de EPI (ortodoxa ou crítica), não tenho conhecimento

aprofundado (nem, confesso, grande interesse) por uma área do conhecimento onde, a despeito de notáveis contribuições concretas para a análise do mundo em que vivemos, a academia infelizmente parece perder um tempo e energia desproporcionais em debates sobre a definição do que seria EPI, qual é o seu método, objeto, status filosófico, etc.

O que eu faço é apenas a velha economia política clássica do excedente, na tradição que começou com Petty, Quesnay, Smith, Ricardo e Marx, devidamente

EM PRIMEIRA PESSOA

A Economia Política da ordem econômica internacional

A chamada economia política internacional tradicional baseia sua análise, no que diz respeito aos aspectos econômicos, na abordagem neoclássica com sua visão idealizada do funcionamento do mecanismo de mercado, que considero pouco consistente em termos teóricos e totalmente irrealista em termos empíricos.

Regimes de política econômica e o desacoplamento da tendência de crescimento dos países em desenvolvimento nos anos 2000Franklin Serrano

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902 • 2015 PEPIANOS

atualizada e aprofundada com as contribuições analíticas de Kalecki, Sraffa e seus seguidores. Em termos de método de pesquisa concreto faço uso do simples, porém útil, método da velha CEPAL de levar sempre em conta o marco histórico estrutural relevante, que permite perceber a economia e a política mundiais (e nacionais) como sendo ao mesmo tempo hierarquizadas e historicamente condicionadas. O que, afinal, é o mínimo que se espera de estudos estruturalistas ou materialistas que não pretendem deduzir a priori alguma “lei da história” (como o Materialismo Dialético da ortodoxia marxista), mas apenas entender os processos sociais.

Alguns temas de economia política que estudo dizem respeito a aspectos da economia mundial e das relações econômicas e de poder entre países e suas classes. Mas não configuram nem um novo objeto e muito menos a necessidade de se fundar uma nova disciplina ou ciência social. Nestes estudos é evidente que elementos geopolíticos são fundamentais, mas não me parece que as complexas relações econômicas e políticas entre os Estados nacionais de economia capitalista de hoje possam ser redutíveis a alguma lei geral de movimento da lógica do poder, dedutível a priori e válida em todas as épocas – seja neorrealista ou na nova visão de Fiori.

Além disso, a forma de organização capitalista das economias modernas gera certas regularidades e particularidades em seu funcionamento e nos impactos das políticas dos Estados sobre elas. Qualquer análise relevante, tanto da economia, quanto da própria política internacional, tem que levar em conta estas particularidades e, aí sim, o instrumental de teoria econômica da moderna abordagem do excedente (depois de Kalecki e Sraffa) é fundamental, especialmente para escapar seja do irrealismo dedutivista neoclássico – que tenta reduzir tudo a sua restritiva noção do que é o “econômico” (a racionalidade e as trocas) – seja de um velho (isto é, não neoclássico) institucionalismo que tenta reduzir tudo ao político e não compreende adequadamente a real operação dos mecanismos de mercado, o papel da concorrência, da demanda efetiva, da barganha salarial, a forma em que se determinam as variáveis econômicas a partir de dadas instituições. Por isto, pratico uma versão atual da velha economia política.

Mas chega de metodologia. Eu acho que a melhor forma de ilustrar o que foi dito acima é mostrando o que eu e meus colegas do grupo de economia política do IE-UFRJ fazemos. O grupo trabalha com muitos temas, mas escolhi um trabalho que Carlos Medeiros, Fabio Freitas e eu estamos preparando para dar uma ideia do tipo de pesquisas em andamento no grupo. O artigo, que ainda está em fase inicial de elaboração, enquadra-se no quadro de nossas pesquisas sobre elementos de continuidade e elementos de mudança na ordem econômica internacional nos anos 2000. O artigo tem um duplo objetivo. O primeiro deles é argumentar que, a despeito da recente

desaceleração da economia mundial e das turbulências ligadas a mudanças esperadas na política monetária dos EUA, de fato ocorreu a partir dos anos 2000 um desacoplamento da tendência do crescimento econômico do conjunto dos países em desenvolvimento em relação à tendência de crescimento dos países desenvolvidos. Este processo foi em parte obscurecido pela maior sincronização do ciclo econômico entre estes dois grupos de países, porém é discernível quando concentramos nossa análise nas tendências de crescimento observadas na economia mundial nos anos 2000. O segundo objetivo, por sua vez, será tentar mostrar que o melhor desempenho relativo dos países em desenvolvimento é explicado pelas melhores condições externas enfrentadas pelas economias em desenvolvimento no período em questão. Tal melhoria, por sua vez, foi ocasionada por mudanças nas políticas econômicas do conjunto das economias em desenvolvimento.

A ordem econômica internacional a partir dos anos 2000 contém elementos de continuidade e de mudança em relação ao que foi observado nos anos 1990. Nesse sentido, o trabalho ressalta três aspectos principais: um de continuidade e dois de mudança. Há continuidade na predominância do padrão dólar flexível e nos grandes fluxos de capital privado internacional. Porém, parece claro terem ocorrido duas importantes mudanças, a saber: 1) o desacoplamento da tendência de crescimento dos países em desenvolvimento e 2) o aumento dos preços relativos das commodities. Tanto o desacoplamento do crescimento quanto a mudança da tendência dos preços relativos das commodities têm importantes causas comuns nas mudanças verificadas nas políticas econômicas do conjunto dos países em desenvolvimento (e não apenas na China).

O processo de “catching-up” dos países em desenvolvimento no período resultou da grande melhoria das condições externas que determinam a restrição de

Não me parece que as complexas relações econômicas e políticas entre os Estados nacionais de economia capitalista de hoje possam ser redutíveis a alguma lei geral de movimento da lógica do poder, dedutível a priori e válida em todas as épocas – seja neorrealista ou na nova visão de Fiori.

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02 • 201510 PEPIANOS

de algumas commodities e/ou o uso de subsídios às importações de algumas commodities; 3) o pagamento antecipado da dívida externa pública, moratórias (e.g., Rússia) ou calotes (e.g., Argentina), assim como a criação de fundos soberanos; e 4) a imensa acumulação de reservas internacionais, mesmo em países com déficits em conta corrente (e.g., o Brasil).

Estes elementos combinados de diferentes formas e em diferentes graus em vários países em desenvolvimento tiveram como resultado global pelo menos dez anos sem crises de balanço de pagamentos originadas na periferia e uma rápida recuperação das economias em desenvolvimento por ocasião da crise mundial de 2008. O indicador mais marcante destas mudanças na administração do balanço de pagamentos foi, sem dúvida, a acumulação de reservas internacionais sem precedentes históricos nos países em desenvolvimento. De fato, em 2003 os países avançados detinham aproximadamente 1,8 trilhões de dólares em suas reservas internacionais e os países em desenvolvimento como um todo detinham 1,3 trilhões. Em 2012 a situação havia mudado drasticamente e as reservas internacionais dos países avançados somavam 3,7 trilhões de dólares, contra 7,2 trilhões de dólares nos países em desenvolvimento. Assim, pela primeira vez na história, os países em desenvolvimento detêm mais reservas internacionais que os países avançados, mesmo sem considerarmos a existência de aproximadamente um trilhão de dólares adicionais nos fundos soberanos de países em desenvolvimento.

Quanto ao descolamento da tendência de crescimento dos países em desenvolvimento em relação à tendência dos países desenvolvidos, o fator fundamental a ser ressaltado é o comportamento distinto do ciclo e da tendência. Nos anos 2000 o comportamento cíclico do crescimento do produto nos países em desenvolvimento e nos avançados ficou mais semelhante como resultado da maior integração financeira e comercial, esta última estreitamente ligada à difusão e aprofundamento das cadeias globais de valor.

Na década de 1990 a integração financeira internacional foi um elemento importante na explicação do desacoplamento temporário do crescimento das economias em desenvolvimento observado no período.

balanço de pagamentos da periferia nos anos 2000 em relação à difícil situação dos anos 1990 (cuja segunda metade foi chamada por alguns de “meia década perdida”). Depois da escassez absoluta de divisas da década perdida dos anos 1980, uma grande quantidade de capital externo fluiu intensamente para a periferia que passou por um processo de abertura financeira nos anos 1990. Ao mesmo tempo, foi observada uma baixa taxa de crescimento do valor das exportações em dólares, cujo valor foi em média inferior ao das taxas de juros internacionais, o que causou problemas de sustentabilidade nos processos de endividamento externo. Além disso, fluxos de capital de curto prazo foram importantes para a grande maioria dos países em desenvolvimento, incluindo alguns dos países mais dinâmicos do Leste Asiático, o que levou aos problemas de liquidez indutores de crises de balanço de pagamentos. A situação externa foi agravada ainda pelos regimes de câmbio fixo, pelo processo de liberalização comercial, pelas privatizações e outras reformas neoliberais que levaram a um rápido crescimento das importações e à piora da competitividade das exportações dos países em desenvolvimento. Depois da sequência de crises do Leste Asiático (1997), Rússia (1998) e Argentina (2002), a perspectiva para o resto dos anos 2000 parecia sombria para muitos analistas (inclusive eu mesmo).

Entretanto, estas previsões pessimistas não se confirmaram. Os fatos são bem conhecidos. Nos anos 2000 houve uma recuperação relativamente rápida da economia americana depois da crise da bolha “dot-com” e um forte aumento na demanda interna na China e em outros países Asiáticos. Essa década tampouco foi ruim para a maior parte das economias em desenvolvimento. Como isso foi possível?

Por de trás destas tendências estão dois grandes fatores de mudança na ordem econômica internacional, ambos mencionados acima: 1) a reversão da tendência de queda dos preços relativos das commodities e dos termos de troca da periferia que exporta commodities e 2) o desacoplamento da tendência das taxas de crescimento do produto dos países em desenvolvimento em relação aos países centrais. Aqui vamos destacar três causas importantes destas duas mudanças.

A primeira delas se relaciona com a política de baixas taxas de juros nos EUA e outros países avançados e também os grandes fluxos de capital privado que fluíram para os países em desenvolvimento. As outras duas causas estão relacionadas diretamente com as mudanças na política econômica dos países em desenvolvimento. De um lado, houve um rápido crescimento da demanda interna no conjunto dos países em desenvolvimento (e não apenas na China), bem como um elevado ritmo de expansão do comércio Sul-Sul. De outro lado, ocorreu uma grande melhoria nas políticas de administração do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento, apoiada em vários casos no retorno do chamado “nacionalismo de recursos naturais”.

Por sua vez, a grande melhoria nas políticas de administração do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento pode ser explicada por quatro fatores: 1) a adoção generalizada de regimes cambiais flexíveis e com a taxa de câmbio fortemente administrada (managed floating); 2) a tributação seletiva do valor das exportações

De outro lado, ocorreu uma grande melhoria nas políticas de administração do balanço de pagamentos nos países em desenvolvimento, apoiada em vários casos no retorno do chamado “nacionalismo de recursos naturais”.

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1102 • 2015 PEPIANOS

Mas, como já foi destacado, este mesmo processo de integração financeira levou às crises de balanço de pagamentos na segunda metade dos anos 1990, o que interrompeu o processo de crescimento diferenciado das economias em desenvolvimento. Nos anos 2000, porém, o desacoplamento do crescimento é bem diferente do observado na década anterior. Ele foi mais persistente, mais generalizado e mais intenso. As principais causas deste desacoplamento da tendência de crescimento foram: a mudança nos termos de troca, as mudanças verificadas nas políticas econômicas dos países em desenvolvimento, que viabilizaram o maior crescimento do mercado interno dos países em desenvolvimento (e o maior comércio sul-sul), e a melhoria geral na administração do balanço de pagamentos do conjunto dos países em desenvolvimento. Mas a própria melhoria dos termos de troca da periferia derivada do aumento dos preços relativos das commodities também parece ter sido, em boa medida, determinada por estas mesmas mudanças nas políticas econômicas dos países em desenvolvimento. A explicação tradicional da mudança dos preços relativos das commodities se resume basicamente à ideia de que houve um “superciclo” de preços de commodities puxado pelo efeito demanda da China. Todavia, existem pelo menos quatro problemas com esta explicação tradicional. Em primeiro lugar, o PIB mundial e o quantum de comércio não cresceram mais rápido nos anos 2000 do que nos anos 1990. E de fato, na segunda metade dos anos 1990 a economia e o comércio mundial cresceram mais rápido do que nos anos 2000, devido em boa parte ao efeito combinado de rápido crescimento nos EUA e na China. Em segundo lugar, as elasticidades-renda da demanda mundial são menores que um para a maior parte das commodities (com a exceção de minerais). Em terceiro lugar, o crescimento da demanda por importações de commodities da China foi rápido, mas começou de uma base muito baixa. Em quarto lugar, a única exceção muito importante à tendência de baixa elasticidade-renda mundial de commodities foi o impacto da demanda chinesa por metais e minerais na demanda mundial. Mas esta demanda cresce rápido desde meados dos anos 1990 e os preços dos metais só disparam em 2003.

Na nossa interpretação alternativa, o aumento de preços absolutos (em dólar) das commodities é explicado

por uma série de fatores interligados. Além do aumento da demanda por metais e minerais da China, temos o importante papel da OPEP e do novo “nacionalismo de recursos naturais” restringindo a oferta e também a forte valorização das taxas de câmbio (causada por variadas combinações de aumentos de salários nominais e valorizações nominais da taxa de câmbio, dependendo do país) do conjunto dos países produtores de commodities, o que aumenta os preços de oferta das commodities em dólares.

Além disso, ao contrário do que ocorreu nos anos 1970, o aumento dos preços em dólar das commodities nos anos 2000 não causou inflação alta nos países capitalistas avançados, como resultado do baixo poder de barganha dos trabalhadores nestes países. Este baixo poder de barganha parece estar relacionado em boa parte com a concorrência chinesa nos mercados globais de produtos industriais. Desta forma, a trajetória de aumento dos preços nominais em dólar das commodities não foi prematuramente interrompida nem por políticas monetárias contracionistas dos países avançados, nem por crises cambiais na periferia exportadora de commodities.

Vemos então que as politicas econômicas dos países em desenvolvimento como um todo tiveram importantes efeitos na melhoria das condições externas da periferia. O maior crescimento dos mercados internos e a melhoria geral na administração do balanço de pagamentos dos países em desenvolvimento são causas importantes tanto do desacoplamento da tendência de crescimento destes países quanto da melhoria dos termos de troca observada no período.

Eu creio que este panorama do que estamos fazendo neste trabalho específico ilustra bem o que havíamos dito acima sobre como o que tentamos fazer no grupo de pesquisa em economia política do IE-UFRJ. A caracterização adequada da ordem econômica internacional e de suas mudanças requer em primeiro lugar a rejeição das análises econômicas baseadas na abordagem ortodoxa neoclássica. Ao mesmo tempo, o esclarecimento destas questões à luz de uma visão alternativa do funcionamento da economia mundial é um insumo fundamental para o entendimento dos maiores graus de liberdade econômicos (e até geopolíticos) com que se deparam alguns países em desenvolvimento, por exemplo, nesta nova configuração internacional.

Finalmente, esta compreensão dos maiores graus de liberdade que a configuração atual da ordem econômica internacional permite a países como o Brasil, nos sugere que os obstáculos a uma postura mais agressiva do Estado brasileiro, tanto em termos de fomentar o desenvolvimento econômico quanto no que diz respeito a aspectos geopolíticos e de liderança regional, infelizmente tem causas políticas ligadas a conflitos internos (e não externos).

Os obstáculos a uma postura mais agressiva do Estado brasileiro, tanto em termos de fomentar o desenvolvimento econômico quanto no que diz respeito a aspectos geopolíticos e de liderança regional, infelizmente tem causas políticas ligadas a conflitos internos (e não externos).

Franklin Serrano é doutor em Economia pela Universidade de Cambridge e professor associado da UFRJ. Pertence ao grupo de Economia Política do Instituto de Economia da UFRJ.

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02 • 201512 PEPIANOS

CONTRACANTOS

ARTIGO 1 Franklin Trein

ARTIGO 2Cristina Pecequilo

ARTIGO 3Wagner Souza

Em nome do povo: estilhaços do liberalismo político no século XXI?

A Contracantos é uma seção temática em que o objeto em questão é desdobrado, para além desta introdução, em diferentes perspectivas trazidas pelos autores. O nome contracantos, embora evoque uma noção de contradição ou embate entre perspectivas distintas, surge de uma tentativa de harmonizar discursos e opiniões diversas, para gerar diálogo.

Nossa intenção, de fato, é compor melodias a partir de contracantos, de notas dissonantes, não para pasteurizar conceitos e leituras de conjuntura, mas para nos permitir, dentro do estudo da EPI, escutar novos sons. Essas vozes díspares são então postas em contato umas com as outras, e é o encontro com cada leitor que dará a nota final.

Dentro deste ambiente sinestésico, propomos para esta edição o tema “Em nome do povo: estilhaços do liberalismo político no século XXI?”. Franklin Trein, Cristina Pecequilo e Wagner Sousa contribuíram para esta segunda edição.

A nossa intenção é promover uma discussão de fundo sobre a legitimidade dos “movimentos populares” ou da própria “democracia de massas”. Por exemplo: o que empodera um movimento político? O que significa agir ou se pronunciar em nome do povo? Dessa forma, nossa busca é por um diálogo que venha desmistificar essa categoria que foi capaz de moldar as posições políticas nos últimos séculos e que vem ganhando força na atual conjuntura de instabilidades, seja no Leste Europeu seja no Oriente Médio. Afinal, o que é povo?

Franklin Trein nos remete ao caráter absolutamente conjuntural da categoria povo, querendo dizer diferentes coisas em diferentes tempos. No mundo pós-revolução francesa, povo geralmente significou os desprivilegiados, os despossuídos, dos sans-culottes na aurora deste novo mundo às massas heterogêneas dos descamisados da periferia capitalista, em pleno século

XXI. Povo, assim, é o grito de guerra dos não-iguais, daqueles que nos últimos 200 anos procuraram transformar seu capital econômico – os braços que construíram o mundo moderno – em vontade política real.

Já Cristina Pecequilo analisa as transformações por que passa a categoria povo frente às revoluções tecnológicas da “pós-modernidade”. Ela explica como a crescente complexidade das interações sociais, captada pelo aparente adensamento da participação popular que as redes sociais permitem, traz resultados ambíguos para a afirmação da vontade popular: por um lado, permite que um sem-número de pessoas antes “invisíveis” manifestem suas opiniões; por outro, “emancipa” os invisíveis através de um individualismo que amiúde revela o mais aberto hedonismo. Para Pecequilo, as manifestações brasileiras de junho de 2013 foram um bom exemplo das tendências contraditórias associadas aos conceitos de povo e ação política hodiernos.

Já Wagner Sousa explica como o sonho “liberal” de um povo autogovernado está sendo flagelado pelo ordo-liberalismo e pela “ditadura de mercado” das principais potências por trás do projeto de integração europeia. Wagner mostra como o projeto europeu de supranacionalidade nunca pôde consubstanciar-se em realidade: dentro dum sistema (mundial) competitivo de Estados Nacionais, o Euro e a UE são “apenas” mais duas esferas de projeção internacional das suas principais potências, principalmente a Alemanha, o Euro tendo sido uma europeização do marco germânico. Neste contexto, a UE não só não contribui para o aumento da legitimidade dos “povos”, como também é o principal alvo atual das populações (e partidos, à esquerda e à direita) afetadas pelos programas de austeridade.

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1302 • 2015 PEPIANOS

Em nome do povo I

frAnklin trein

Quem gritará mais forte? O povo? Quem é o povo?

Sempre desconfiei de alguns conceitos, e desconfiei tanto mais quanto mais eles apareciam nas discus-sões, fossem elas acadêmicas ou políticas. Povo era e continua sendo um deles. Mirabeau (1749 – 1791), um

contemporâneo da Revolução Francesa, que discutiu o que significava povo naquele momento, já alertava para as dificul-dades de seu emprego. Perguntado sobre o que é o povo, ob-servava: “O povo, ator coletivo, é difícil de definir. Nossa visão é de uma massa revoltada, às vezes incontrolável.”

O tempo não contribuiu muito para tornar o conceito de povo mais cristalino. Desde uma perspectiva jurídica, o povo está formado por um conjunto de cidadãos e, deste modo, é depositário de direitos políticos; ou seja, o povo faz parte do Estado. Por outro lado, o povo também pode ser entendido como os membros de uma nacionalidade que se identificam por seu passado comum e, talvez, por aspirar um mesmo por-vir.

Assim, sinônimo de povo para mirabeau, os sans-culottes foram os principais protagonistas da Revolução Francesa en-tre 1792 e 1794. Além das vestes, que os identificavam como pertencentes a uma mesma massa, tinham como característi-cas a unidade nas ações políticas, a defesa de justiça social e a luta contra qualquer forma de privilégio. Foram os sans-cu-lottes, mais do que qualquer outro grupo de revolucionários, os que carregaram as bandeiras da liberdade, da igualdade e da fraternidade.

Como se sabe, a Revolução cortou a cabeça da aristocra-cia, mas, ao invés do povo, quem tomou o poder foi o capital, carregado nos braços da classe burguesa. Desde então, como bem observou a ministra zélia Cardoso de melo a seu tempo, o povo foi só um mero detalhe. Com a burguesia no poder, ao longo dos últimos dois séculos a história serviu de palco para o desenvolvimento das relações de produção, ou, em outras palavras, só fez por realizar a lógica de acumulação capita-lista. Num processo de constante movimento de construção destrutiva, o capital não deixou de fazer a guerra, sempre que as sobras de mercadorias ou de força de trabalho, de algum modo, ameaçaram sua taxa de remuneração.

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02 • 201514 PEPIANOS

Em nome do povo I

CONTRACANTOS

Ao longo dos séculos XIX e XX, o povo não foi esquecido nas equações do desenvolvimento econômico, social e políti-co do liberalismo, ainda que muitas vezes não fosse possível se dizer exatamente quem era o povo. Nas atividades rurais, nas minas, nas fábricas, no comércio ou nos campos de ba-talha, nunca faltaram braços, mesmo que faltassem: casa, comida, escola e hospital. Muitos foram aqueles que caíram e viraram heróis mortos. Mesmo os sem nomes ganharam mo-numentos! Assim, o povo nunca pode dizer que esteve impedi-do no seu protagonismo histórico.

O que teria sido a história sem a participação do povo? Quantas cidades teriam deixado de ser construídas, e destruí-das, quantas crianças não teriam nascido e quantos soldados não teriam morrido?

Enganam-se os que pensam que o liberalismo político é fi-lho do século XXI, ou da Dama de Ferro. O liberalismo atraves-sou a história de mãos dadas com as revoluções industriais (1780, 1870 e 1970). Primeiro, pouco a pouco, o trabalhador passou a receber salário, medido pelo seu tempo de trabalho, o que significou libertar-se da inconstância da natureza para cair sob o controle rigoroso de um mecanismo de relógio. Uma segunda ruptura introduziu rígida hierarquia e disciplina no cumprimento das tarefas. Se a primeira revolução somou a força mecânica à força do braço, a segunda ordenou e sincro-nizou o movimento do braço com o movimento da máquina.

Aumentou a produção, aumentou a remuneração, aumen-tou o consumo. O mundo caminhava do quase-perfeito ao mais-que-perfeito. O condicional era o poder, mas esta conju-gação não estava disponível para todos. Nunca esteve.

Uma guerra, duas guerras no mesmo século xx, os im-périos disputaram os espaços geopolíticos homem a homem e as novas fronteiras poderiam ter sido demarcadas com os corpos dos soldados caídos de um lado e do outro nos cam-pos de batalha. Esgotados os recursos materiais e humanos, mais uma vez na história o povo saiu às ruas para comemorar o fim dos combates, mal sabendo que uma outra guerra já se iniciava. vitoriosas, as ideias liberais conseguiram empurrar o

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1502 • 2015 PEPIANOS

Em nome do povo I

barulho das armas para periferias distantes do eixo do Atlânti-co Norte. O calor da Guerra Fria só foi sentido no aquecimento da economia do complexo industrial-militar, da produção de bens de consumo, das autoestradas e, por fim, das infovias.

Foi um tempo em que o trabalho, parceiro indispensável do capital, percorreu ciclos de altos e baixos. O povo, seu repre-sentante por excelência, esvaziou fábricas e encheu ruas com seus gritos de protesto. Ganhou batalhas e perdeu a guerra. Na luta, muitos de seus líderes sumiram, alguns, cooptados, chegaram ao outro lado da trincheira. Seus sindicatos foram atravessados pelos ventos do individualismo, suas assem-bleias se esvaziaram. Pouco restou das históricas jornadas de luta, quando “o povo unido jamais seria vencido”. Quando não foi mais possível estender a jornada de trabalho, ou intensifi-car o ritmo da linha de montagem, o subprime se encarregou de resgatar para o capital a última ilusão burguesa. Outra vez o Estado, do qual o povo é parte, cobrou a conta apresenta-da pelo setor financeiro. Todos pagaram, mesmo aqueles da periferia do sistema capitalista, que nunca souberam o que é dormir em uma casa com água, luz e esgoto.

Em duzentos anos, muita coisa mudou. Porém, a dialéti-ca já assegurava que aquilo que parecia ser o domínio total deixou entreaberta a possibilidade de novas formas de luta. O mundo virtual não é só o do Big Brother que mora em Fort Meade, na 9800 Savage Rd. As redes sociais formam um novo tecido em que se articulam potenciais atores políticos. As consignas de luta já não se apoiam mais nos conteúdos ide-ológicos, como no passado, que traduziam visões de mundo recolhidas pelos partidos políticos tradicionais ou revolucio-nários. A ordem é a desordem, o discurso não tem diálogo, o presente não tem passado. Esta nova realidade tem futuro? Quem gritará mais alto? O povo? Quem é o povo?

Franklin Trein é doutor em Filosofia e pós-doutor em Relações Internacionais pela Universidade livre de berlim.

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02 • 201516 PEPIANOS

CONTRACANTOS

Em nome do povo II

cristinA soreAnu Pecequilo

O século XXI e os movimentos populares: Ainda somos os mesmos?

Ao longo da história, diversos conceitos complementa-res e sobrepostos foram sendo construídos por inú-meras áreas de estudo acadêmicas a partir da obser-vação das relações sociais, políticas e econômicas

estabelecidas. Dentre estes, as noções de povo, sociedade, participação, movimentos populares e democracia são alguns que permanecem interligados, assim como associados às concepções do público e do privado.

No século XXI, não são poucos os que aludem a tendên-cias contraditórias associadas a estes conceitos: enquanto alguns apontam o renascimento e o reavivamento da massa como ator político consciente, que empodera um povo na luta por seus direitos, outros sustentam que a corrente alienação e individualismo levam a um hedonismo e egoísmo exces-sivos. Estes fenômenos transformam as manifestações de vontade coletiva em explosões pontuais, das quais emergem vozes anônimas clamando a legitimidade de movimentos que se dizem sem líderes (ou mesmo sem agenda) e que apenas protestam “pelo direito de protestar”. Qual destas avaliações seria a mais representativa da realidade? Ambas? Nenhuma?

Frente ao mundo e ao brasil, e, no caso do brasil, pensan-do o arco 2013/2014 de movimentos populares e manifesta-ções políticas, a despeito do risco que nos traz a análise de conjuntura é possível dizer que ambos refletem o que somos e como nos comportamos como atores políticos na democracia contemporânea. Positivamente, há, de fato, um adensamento concreto da participação popular em vários segmentos, seja pela expansão da informação via tecnologia e redes sociais, pelo engajamento em partidos políticos e organizações go-vernamentais e pela consolidação de movimentos sociais que tem em sua pauta justamente a construção do povo, e do indivíduo, como cidadão político, ativo e propositivo. Há um empoderamento social, assim como o incremento da base educacional e acesso a meios tradicionais e novos de se fazer ouvido, e de pensar o outro como igual, mas também respei-tando suas diferenças.

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1702 • 2015 PEPIANOS

Em nome do povo II

Mas se há este lado positivo, há, ainda, o lado negativo que este próprio empoderamento de minorias e novas classes so-ciais gera, uma vez que afeta também a distribuição de poder, influência e renda. Toda e qualquer transformação estrutural provoca questionamentos, seja dos que desejam participar mais diretamente de processos que antes os excluíam, como dos que terão que lidar com a perda de espaço e maior demo-cratização da palavra e das demandas a toda sociedade. Assim, há o “renascimento” do movimento popular de massa que con-testa a própria democracia, a sua legitimidade, e pede, como se observou no Brasil no cenário pós-eleição presidencial de 2014, a volta da ditadura. Ou seja, uma contradição em termos.

Parte desta esquizofrenia político-social deriva da segun-da tendência dos movimentos sociais atuais, e da participa-ção do povo na política: a visão da democracia como instru-mental para a realização de interesses individuais, ainda que surja transformada em massa, como forma de ser validada. Este fenômeno deriva da confusão entre o que é público e pri-vado, somado à perspectiva de que o indivíduo deve buscar a todo momento sua realização, em detrimento do coletivo. Se a rede social interliga e informa, ela aliena, assim como eleva a superficialidade do conhecimento e do diálogo. Da mesma forma, há um desejo de sempre ganhar e a sensação de insa-tisfação permanente ao se perder, ou, simplesmente ao ser contrariado em suas vontades.

Desistir sem tentar, voltar-se para si mesmo como fracas-so, são derivados do hedonismo, e da velocidade de uma so-ciedade que busca não se identificar com o próximo ou com-preender o jogo político, apenas considerado como uma forma de realizar-se individualmente. Protestos tornam-se válvulas de escape até de frustrações pessoais, às quais se agregam ondas populares que nem mesmo questionam o porquê de estar nas ruas. Há raízes disto nos movimentos anarquistas? Talvez, mas pedir uma política “apolítica” é, apenas, deixar-se levar pelo momento, que é o mesmo que gerar quebra quebra, ou cobrir o rosto para ser um “black bloc”.

A democracia tem sua legitimidade condicionada à vitória desta ou daquela determinada visão, ainda que ela seja contra o público ou contra a vontade da maioria já divulgada. Nestes casos, surge apenas como ruído. voltando novamente à con-juntura, ao se questionar os R$ 0,20 na tarifa dos transportes públicos em 2013 (que foi apontada como a detonadora do “renascimento do Brasil”) e se pedir o fim da cobrança destas tarifas, não se pede o mesmo tipo de assistencialismo que estes mesmos atores questionam de programas como o bolsa Família?

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02 • 201518 PEPIANOS

Cristina Pecequilo é professora de Relações Internacionais da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP) e autora de “Os Estados Unidos e o Século XXI” e “A União Europeia”.

CONTRACANTOS

Em nome do povo II

Afinal, não há movimento político sem líder ou sem pauta, e os que afirmam isso, e por ele clamam sua preferência, como movimento de massa, na prática se revelam massa de mano-bra, o que já favoreceu muitos ditadores comprovadamente. Não estamos diante do “novo” no século xxI, somos ainda os mesmos, a despeito da tecnologia que nos transforma, da maior disponibilização de conhecimento e da maior complexi-dade das interações sociais. Ao sabermos quem somos como indivíduos, e desenvolver nosso olhar crítico, superaremos o risco deste vazio. O empoderamento do movimento vem do todo, mas parte inicialmente de cada um escapar da alienação e das soluções imediatas e fáceis. Mas, antes de mais nada, é preciso saber que somos indivíduos em sociedade, no público, e que a democracia e os movimentos populares se constroem a partir de nossa ação e consciência, com respeito e tolerân-cia. Caso contrário, trata-se de uma inversão de valores e do caráter da democracia, no qual não predominaria, como previa Tocqueville, a “ditadura da maioria”, mas da minoria.

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1902 • 2015 PEPIANOS

Em nome do povo III

WAgner WAtson de sousA

A crise da moeda e do projeto europeu

Como já explicado em muitos trabalhos acadêmicos e artigos de jornal, a gênese da crise da moeda comum está na “arquitetura institucional” da zona do euro ou, dito em outras palavras, na au-sência de um poder central, de um Estado. Um Estado europeu

teria centralidade administrativa e tributária e não permitiria a ocorrência de uma crise na qual beirasse a insolvência uma de suas partes, como no caso presente da Grécia, pois, em última instância, garantiria o pagamento de suas dívidas. Uma estrutura federativa europeia unificaria muitas de suas legislações nacionais (tributária, previdenciária, de mercado de ca-pitais, trabalhista, etc.) e proveria as regiões mais pobres de muito mais recursos para o seu desenvolvimento do que os hoje existentes.

A questão principal é que o projeto europeu de supranacionalidade nunca foi propriamente um projeto de uma federação continental que suplantasse os Estados Nacionais. Embora esta ideia tenha os seus de-fensores, os governos dos países líderes do processo – França e Alema-nha – em nenhum momento da história da integração cogitaram criar um poder central europeu. Na segunda metade década de 1970, tida como momento de avanço deste processo (o que, em boa medida, de fato foi), por exemplo, o “europeísmo” do presidente francês Giscard d’Estaing e do chanceler alemão Helmut Schmidt resultou na maior coordenação mone-tária do Sistema monetário Europeu e na criação do Parlamento Europeu, mas também na criação do Conselho Europeu, órgão que reúne chefes de Estado e de Governo da região. Na prática, instituir este colegiado no topo da hierarquia da Comunidade Econômica Europeia consagrou o princípio do intergovernamentalismo como condutor dos assuntos da região. Dife-rentemente das interpretações funcionalistas, o intergovernamentalismo entende que os Estados, em especial os mais poderosos, comandam as tratativas de integração de facto. O entendimento dos dois atores princi-pais quase sempre foi de que a Europa deveria ser governada por uma es-pécie de diretório formado por França e Alemanha. Quase porque quando da entrada da Grã-Bretanha, em 1973, franceses e alemães pensaram em uma espécie de “trilateralismo” no comando da CEE. O pouco compromis-so demonstrado pelos britânicos com o projeto europeu, já no primeiro ano como membro, enterrou esta ideia.

O euro foi uma europeização do marco alemão e o Banco Central Eu-ropeu tem sua inspiração no Bundesbank, o Banco Central da Alemanha. Parte dos problemas da moeda comum está aí. Economias nacionais com características bastante distintas, entre estas suas produtividades, estão no mesmo espaço monetário. Uma economia industrial sofisticada de

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02 • 201520 PEPIANOS

CONTRACANTOS

Em nome do povo III

alta produtividade como a da Alemanha convive com outras menos de-senvolvidas e produtivas. Isto poderia ser em parte compensado por fun-dos regionais que investissem nas áreas menos desenvolvidas, mas estes, embora existam, são claramente insuficientes. A política monetária é anti--inflacionista como era a do Bundesbank, portanto com um viés contrário ao crescimento econômico, embora nos últimos anos, temendo a deflação, o BCE venha tentando, sem muito êxito, estimular a economia da região.

Com a adoção do euro, nos anos 2000, a região viveu um boom de crédito. Os países da periferia europeia como Portugal, Irlanda, Grécia e Espanha (os “PIGS” da sigla depreciativa em inglês) puderam tomar em-préstimos pagando taxas apenas um pouco superiores às da Alemanha, privilégio que não tinham no tempo de suas moedas nacionais. O mer-cado financeiro concedia tais empréstimos na crença de que a Alemanha seria o “garantidor de última instância” das dívidas contraídas por estes países, o que, deflagrada a crise, não ocorreu. Os países endividados tive-ram que aplicar duros programas de austeridade. Estas medidas elevaram o desemprego, reduziram a proteção social do Estado e tiveram efeitos deletérios no desempenho destas economias. O caso grego é o mais dra-mático de todos: o desemprego total ultrapassa um quarto da população economicamente ativa (mais da metade entre os jovens) e o PIB caiu 25% entre 2010 e 2015.

O quarto de século passado da queda do muro de berlim trouxe tam-bém uma importante mudança geopolítica: a ascensão da Alemanha como ator principal na cena europeia. O fim da Guerra Fria retirou os constran-gimentos políticos à ação da política externa alemã no continente. Os ale-mães transformaram o Leste Europeu, integrado à OTAN e à União Euro-peia, em sua periferia econômica e estreitaram as relações com a Rússia, seu principal fornecedor de energia, como também de vários outros países europeus, país que é ademais grande importador de seus produtos manu-faturados. Embora a França continue como parceiro privilegiado na União Europeia, claramente a balança de poder pendeu para o lado germânico, depois da reunificação, e o diktat alemão vem impondo políticas de auste-ridade fiscal que têm agravado a situação econômica e social dos países submetidos a estes “ajustes”.

O euro foi resultado de uma conjuntura histórica específica e de uma determinada correlação de forças. Foi parte do preço que os alemães acei-taram pagar pela reunificação. É muito pouco provável que tivessem dei-xado sua bem sucedida moeda nacional, o marco, se não estivessem pre-midos pelas circunstâncias com um objetivo a ser consolidado de primeira ordem para o seu establishment político. A moeda comum é também um projeto defensivo em relação à liberalização financeira promovida pelos EUA, como o foram a “Serpente Monetária”, de 1972, e o Sistema Monetá-rio Europeu, de 1979. Portanto, sempre foram ilusórias as perspectivas de quem enxergava no euro um candidato a disputar a hegemonia monetária global com o dólar. Como não está acompanhado de um projeto de poder mundial por um ente político que o promova o euro não poderá desempe-

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2102 • 2015 PEPIANOS

Wagner é doutor e pós-doutor pelo PEPI.

nhar esse papel. Os Estados europeus mais importantes continuam tendo seus próprios projetos nacionais de projeção internacional.

A criação dos Estados Nacionais europeus foi fruto de um longo pro-cesso histórico marcado por guerras e imposições aos vencidos. A União Europeia constituiu-se por acordos entre os países. A possibilidade de federalização esbarra na resistência dos membros, em especial os mais poderosos, em ceder soberania (ou seja, poder) em áreas vitais para o sucesso pleno da integração, como a econômica. A União Europeia tem um orçamento pequeno em relação ao tamanho da economia do bloco: portanto, pouca capacidade de ação para reduzir as assimetrias econômi-cas e sociais. Ao contrário do que diz o senso comum, comparada a uma federação como os EUA a UE é uma área de baixa integração econômica com instituições desenhadas para garantir a liberdade concorrencial em um mercado livre.

O limite que a União Europeia e o projeto do euro estão começando a vislumbrar é a resistência das populações afetadas pelos programas de austeridade. Em vários países, partidos e candidaturas fora do establish-ment político local despontam como alternativas, à esquerda e à direita: al-guns, como a direitista Frente Nacional, na França, francamente contrários ao euro e à União Europeia.

A Alemanha da chanceler Angela Merkel e do ministro das finanças Wolfgang Schäuble e sua política de imposição truculenta de cortes de gastos públicos que agravam a situação que supostamente pretendiam consertar pode estar pondo em risco o projeto europeu. Para a Alemanha a União Europeia é a área mais importante de projeção econômica e política e o risco de perder este privilégio parece não estar sendo devidamente considerado pelo governo alemão. Apesar da capitulação recente do es-querdista Syriza às pressões alemãs na renegociação da dívida grega, ou-tras forças, inclusive na própria Grécia, podem, a depender da evolução do quadro econômico e social (que não apresenta perspectivas de melhora), entender ser a ruptura com a UE o melhor para os seus destinos nacionais.

O projeto comunitário europeu foi sempre conduzido “pelo alto”, por suas elites políticas e sua tecnocracia. Fala-se muito, na linguagem econo-micista dos cientistas políticos, em “déficit democrático” nas instituições europeias. De fato, estas instituições carecem de legitimidade perante os cidadãos europeus. Como salientado nos parágrafos anteriores, são as democracias em nível nacional que podem desafiar o projeto europeu. O sonho da Europa “pós-nacional”, cosmopolita, do bem-estar social, coo-perativa e solidária deu lugar ao ultrafiscalismo da hegemonia alemã. O futuro dirá se haverá desintegração ou mudança de rumos e como ficará o balanço de forças entre o “nacional” e o “supranacional”. Mais uma vez na história o que se coloca é a “questão alemã”?

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02 • 201522 PEPIANOS

Desde a época da graduação, em Ciências Sociais, tinha como objeto de estudo o mundo árabe e islâmico. Infelizmente, na UFRJ, não havia um espaço para realizar essa pesquisa. Contei, apenas, com a ajuda do professor Antônio Celso que proporcionou os primeiros passos para a minha

investigação. Entrando no mestrado em Ciência Política, me deparei com uma realidade parecida. Fui aconselhada a não pesquisar sobre o mundo árabe e islâmico e optei por tangenciar o tema, pesquisando sobre a operação de paz em Suez.

Minha situação mudou quando tentei a vaga para o doutorado em Economia Política Internacional. Apresentei um projeto sobre a questão nacional e o mundo árabe e para a minha surpresa fui muito incentivada a pesquisar, desde a entrevista de seleção. Meu tema focava no surgimento do movimento nacional árabe, no século xIx, tentando compreender a relação desse surgimento com o colapso do Império Otomano e o aumento da presença britânica nessa região.

logo no início, notei que para pesquisar esse tema era necessário voltar na história e compreender o surgimento do Islã. Estudar sobre uma questão nacional envolve compreender a forma como uma identidade é criada, disseminada como algo nacional, criando um laço entre as pessoas que habitam um determinado território. Eu carecia de informações sobre a forma como essa identidade foi criada e qual a relação dela com a unidade política anterior.

É nesse contexto que a minha pesquisa passa a ter como objeto a formação do império árabe-islâmico, em especial, a compreensão dos fatores que favoreceram essa ascensão. Durante a pesquisa notei que por mais que as questões econômicas fossem importantes nesse contexto, elas não eram decisivas.

Nesse momento emerge a questão da identidade, com a formação de um laço islâmico acima dos laços nômades, as inovações militares e administrativas. Ao longo da pesquisa me deparei com visões opostas sobre o mesmo tema que colocaram em xeque a forma como as pesquisas estavam sendo feitas.

Nesse momento passei a pesquisar, também, sobre historiografia e perceber que um livro é composto por muito mais do que está escrito e que uma pesquisa, não necessariamente, segue o caminho planejado.

Entre o Brasil e o Oriente Médio: por uma historiografia do mundo árabe

Suellen lannes é mestra em Ciências Políticas pela UFF e doutora em EPI pela UFRJ. Defendeu a tese intitulada “A Formação do Império Árabe-Islâmico: História e Interpretações”, em 2013, com orientação de Daniel Barreiros.

A questão dA BiBliogrAfiADesde o início me deparei com a dificuldade de conseguir bibliografia. Pouco se escreve sobre o tema em português, a maior parte das publicações está em inglês e muitas são raras. Com o tempo descobri que muitos autores se baseavam em “autores-chave” como Montgomery Watt, o qual influenciou a maior parte dos escritos sobre o tema.

A questão do doutorAdo sAnduícheEssa escassez poderia ter sido driblada por meio de um doutorado sanduíche. Existiam duas opções: ir aos principais centros ocidentais, como Estados Unidos e Inglaterra ou ir para algum centro árabe, como Egito e Síria. Por questões pessoais essa saída do Brasil era inviável, mas uma outra questão também influenciou.

neutrAlidAde científicA?O grande problema era a minha tentativa de não ser influenciada pelas interpretações que existem sobre o mundo árabe e islâmico. As obras elaboradas nos Estados Unidos e Inglaterra apresentam um viés muito idealizado, influenciado pelo terrorismo e o imperialismo. Do lado árabe existia uma glorificação dessa história. Considero que, talvez, não seja uma característica geral, mas durante a pesquisa não tive acesso a pesquisadores que desmentissem isso.

iMPortânciA dA internetSem o doutorado sanduíche foi crucial o acesso às bases internacionais de artigos, como a JSTOR. Esse acesso só consegui por meio da disponibilidade do acesso remoto da UFRJ e de uma boa metodologia de pesquisa baseada na bibliografia dos artigos e livros lidos. Cada artigo e livro citado por algum autor era pesquisado.

MudAnçA de teMAEssas questões me fizeram ampliar um pouco o meu objeto de estudo e pesquisar, também, sobre historiografia, ou seja, estudar as escolas de pensamento e a forma como elas analisam o meu objeto de estudo. Considero esse o diferencial da minha pesquisa e que só foi possível pelos fatores descritos a seguir.

PesquisA no BrAsilO elitismo acadêmico considera que todos têm a possibilidade de ir ao exterior pesquisar. Nem sempre isso é possível, o que não torna a sua pesquisa inviável, muito menos significa que ela vai ficar ruim. Fiz toda a minha pesquisa pela internet e comprando livros no exterior. Sempre bom usar a tecnologia a nosso favor.

AfAstAMento do oBjetoO afastamento do meu objeto me proporcionou estudar a historiografia e perceber o quanto uma escola de pensamento pode ser influenciada por um único autor e pelo contexto social em que os pesquisadores escrevem.

iMPortânciA do orientAdorPor maior bagagem de pesquisa que um doutorando tenha é sempre importante que a pesquisa que está sendo realizada seja lida e conversada e nesse quesito um bom orientador é imprescindível. Eu tive esse privilégio com o professor Daniel Barreiros e o resultado foi um bom trabalho, realizado no tempo previsto, sem grandes problemas e com uma banca que avaliou e não julgou o meu trabalho.

incentivoComo afirmei no início, não foi fácil conseguir pesquisar esse tema dentro da academia. Só consegui esse apoio dentro da UFRJ e, agora, na UFSC. Ter um orientador que leia e corrija e um ambiente como o que tive no PEPI, que te proporcione os meios para fazer a pesquisa e altamente estimulador, é crucial.

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2302 • 2015 PEPIANOS

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

são que minha ligação e preocupação com a política - primeiro como militan-te e depois como objeto de estudo - veio inclusive de antes, de muito cedo, deve ter vindo do berço, da minha casa. Meu pai foi candidato à constituinte de 1946, em 1945, e eu desde muito cedo acompanhei a sua atividade política e a do país em geral. Ainda era uma criança e não tinha começado a estudar e me lembro da eleição do Getúlio, em 1950, assim como do seu suicídio e da eleição do Juscelino, em 1955. Por isto, quando eu entrei na militância estudantil, aos 15 anos, já tinha um fascínio prévio que vinha quase da infância.

Também não posso deixar de men-cionar a influência do meu pai no campo da filosofia, ele era filósofo e nasci e me criei no meio da sua biblioteca. Por isso o cheiro dos livros me encanta até hoje. Depois da casa, veio o colégio dos jesuítas e depoiscomecei a estudar filosofia e eco-nomia, ainda no RS, mas em seguida tive que sair do país. O golpe cortou minha rota e minha “vocação política” juvenil.

Fiori, tendo em vista o trânsito intelectual na sua casa, queremos saber: como que o Fiori pré-universidade começou a formar o pensamento dele? Quais foram as primei-ras influências que você teve antes da uni-versidade? Como você começou a se preo-cupar com o tema da política?Fiori: Com certeza a principal influ-ência foi do meu pai. Através dele tive acesso ao debate político e intelectual da geração do pós Segunda Guerra. Eu, particularmente, comecei a fazer mi-litância estudantil no colégio. Tenho a impressão de que a primeira palestra política que fiz foi aos 15 anos, sobre o sistema parlamentarista, e logo depois entrei para o movimento estudantil se-cundarista e passei a viajar e falar por todo o Rio Grande do Sul (RS), a favor das “reformas de base” que era o gran-de tema desta época: um conjunto de reformas que ia da universidade ao campo, passando pela reforma urbana e financeira, e cuja pedra angular era a reforma agrária.

Olhando para trás tenho a impres-

Fiori nasceu em 1945 e, portanto, tinha 16 anos

em 1961.

Ernani maria Fiori nasceu em 1914, em Porto Alegre,

e foi catedrático de história da Filosofia na UFRGS.

Exilou-se no Chile, após o golpe de 1964, onde atuou na Universidade Católica,

da qual foi vice-reitor.

Em 1961, houve um grande movimento de mobilização popular contra a tentativa

de Golpe do Estado dos ministros do Exército,

Marinha e Aeronáutica contra a posse de João Goulart na Presidência.

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02 • 201524 PEPIANOS

E os jesuítas, qual foi a influencia deles so-bre a sua formação?Fiori: É uma coisa muito distante, mas guardo algumas lembranças fundamen-tais. Era uma escola de formação extre-mamente sólida e hierárquica, mas com um forte viés e admiração pela ciência e pelo espírito, pela física e matemá-tica e pelos clássicos da filosofia e da literatura. Mas guardei também para sempre uma conversa com o diretor do colégio, no fim do meu curso secundá-rio. Eu deveria ter uns 16 anos e já es-tava militando na política secundarista e por isto perdia muitas aulas e fiquei sem frequência em algumas discipli-nas. Foi quando o diretor me chamou “asa falas” e me disse: “José Luís, pode ser o que quiser. Não é do nosso gosto, mas se quiser pode ser até comunis-ta, mas mesmo neste caso seja quem manda. Esta é uma escola que forma a elite para mandar, portanto se você for comunista, esteja entre os que mandam no partido”. Fantástico o realismo do diretor. Na época me soou de enorme cinismo, e eu fiquei irritadíssimo com o padre. Mas com os anos entendi que ele tinha dito a verdade. Eu nunca gos-tei de mandar e nunca mandei em lugar nenhum, até porque sempre me consi-derei anarquista, pelo menos no plano pessoal. Mas é provável que o colégio e os jesuítas tenham contribuído decisi-vamente para aprofundar minha paixão intelectual pelo poder.

Não posso deixar de mencionar a influência do meu pai no campo da filosofia, ele era filósofo e nasci e me criei no meio da sua biblioteca. Por isto o cheiro dos livros me encanta até hoje.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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Professor, você foi direto para o Chile quando foi exilado, correto?Fiori: Fui, passei rapidamente pelo Uru-guai e pela Argentina, mas desde que saí do Brasil meu destino era o Chile.

Professor, hoje vemos o Chile da época como o epicentro do pensamento de uma teoria voltada para a periferia, sobretu-do na América Latina. Como você via isso quando chegou lá? Fiori: Quando eu cheguei ao Chile, mi-nha atenção intelectual estava posta nos temas associados com a reforma e a revolução, e acho que ainda não ti-nha muito ouvidos para as discussões econômicas sobre desenvolvimento.Lembro que saí do Brasil na véspera do Natal de 1965 e quando cheguei ao Chile acabava de ter sido eleito o presi-dente Eduardo Frei, que era democrata cristão e talvez tenha sido o único pre-sidente que levou à frente um governo consistentemente reformista. Inclusive muitos membros do seu governo vi-nham ou tinham se formado na CEPAL, e por isso sua agenda de reformas in-cluía as preocupações da CEPAL dos anos 1960, como era o caso da reforma agrária, da reforma urbana, do controle dos recursos estratégicos etc. Foi neste período que a democracia cristã incen-tivou uma extensa rede de organiza-ções e mobilização popular nos bairros e nas favelas, e foi também neste perí-odo que o Chile fez a nacionalização parcial das minas de cobre, o que se chamou de “chilenização do cobre”.

Eu assisti tudo isto desde a univer-sidade e um pouco a distância, porque, como estrangeiro, para obter o docu-mento de permanência no Chile você tinha que fazer um juramento de que não se meteria em política. O Chile era um país extraordinariamente politiza-do e neste sentido caiu para mim como uma luva, mas a partir daí sempre como observador e analista da política. Lem-bro bem da minha paixão instantânea pelo Chile, na hora que entrei (por ter-ra) no seu território e olhei para o seu céu e suas montanhas e tive uma pro-funda sensação de liberdade, como se a

liberdade estivesse no ar, na atmosfera escondida e preservada por aquelas montanhas sem fim. Eu tinha acaba-do de completar meus 20 anos e vinha saindo de uma ditadura, aquela terra parecia verdadeiramente fascinante do ponto de vista da liberdade, da expres-são de opinião, do debate e da mobiliza-ção social quase permanente e da luta de todos pelos seus direitos: em todos os lugares se discutia muito e esta foi a minha primeira impressão, uma impres-são muito forte e me marcou definitiva-mente para o resto da minha vida. Lem-bro-me que escrevi na primeira carta que mandei para minha família, com enorme entusiasmo: “esta terra fede a liberdade”. Depois as coisas mudaram e mudaram muito, mas este foi o meu pri-meiro sentimento e impressão do Chi-le, onde tantos brasileiros encontraram guarida e viveram anos que para mim foram de grande felicidade.

Lembro bem da minha paixão instantânea pelo Chile, na hora que entrei (por terra) no seu território e olhei para o seu céu e suas montanhas e tive uma profunda sensação de liberdade, como se a liberdade estivesse no ar, na atmosfera escondida e preservada por aquelas montanhas sem fim.

Como se concretizou lá o seu projeto aca-dêmico?Fiori: Daquela turma que chegou lá em meados dos anos 1960 eu talvez fosse dos poucos que chegou por razões polí-ticas próprias, e não levado pelas razões dos meus pais que também acabaram indo para o Chile. Eu recém tinha come-çado a universidade aqui no Brasil e es-tava estudando economia e filosofia, e no início tentei entrar diretamente para a pós-graduação da FLACSO, porque eu já tinha perdido dois anos no Brasil e me sentia um velho, não sei bem porquê, mas já me sentia velho e apressado para terminar meus estudos. Mas por sor-te eu não consegui entrar diretamente na FLACSO. Na verdade aquele foi um destes momentos em que o destino da vida da gente se define um pouco como se fosse numa roleta. Depois que estes momentos passam eles aparecem na nossa memória como momentos fas-cinantes, porque tudo poderia teria acontecido. São momentos de máxima e grande aleatoriedade e de máximo exercício da liberdade e do acaso. Mas quando a gente está vivendo estas ho-ras elas são muito difíceis.

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02 • 201526 PEPIANOS

Então você atribui ao acaso a sua escolha da sociologia, da filosofia e da economia?Fiori: A minha ideia inicial era fazer eco-nomia, para seguir o que estava fazendo no Brasil. Mas foi neste momento que conheci o professor Carlos Lessa, apre-sentado pelo José Serra, lá mesmo em Santiago. Carlos Lessa trabalhava no ILPES/CEPAL e me disse que o melhor curso de economia do Chile, naquele momento, estava na Universidade de Concepción. É uma cidade que fica no sul do país, com uns 300 mil habitantes talvez, mas eu pensei comigo mesmo: “ir pra Concepción, uma excelente fa-culdade de economia, segundo diz este professor, mas perdida no interior do país... cinco anos no interior desse país...não! nem pensar... não há a menor pos-sibilidade de eu me enfiar lá... pode ser a melhor faculdade de economia do mun-do que eu não vou.” Então ficou claro o quanto eu valorizava outras coisas na vida que não apenas aprender econo-mia, ou ser um bom economista.

Eu queria ficar em Santiago, pois era onde as coisas aconteciam, onde estava a CEPAL, a UNESCO, a OIT, a FLACSO, onde estava todo mundo, onde rolava a vida política do país. Daí, como lhes disse tentei entrar na FLACSO e não consegui. Primeiro me disseram que sim, que me dariam sete meses de teste, depois eles decidiriam

se eu poderia ou não continuar. Aceitei o desafio voltei pra casa, comprei uma pilha de livros de sociologia e pus-me a ler sociologia freneticamente. Aliás, foi durante essa imersão na sociologia que li pela primeira vez os textos que tinham acabado de ser escritos sobre o tema da “dependência”. Foi quando en-trei em contato também pela primeira vez com o nome do Enzo Faletto que acabou sendo meu professor e, diga-se de passagem, queridíssimo professor. Mas depois o pessoal da FLACSO me chamou e disse que não, que a minha entrada iria gerar precedentes e pro-blemas para eles mais tarde. E tive que tomar outro caminho... por sorte....

Acabei entrando na Faculdade de Sociologia da Universidade do Chile, onde o curso tinha uma duração de 5 anos. Foi quando tentei pela última vez apressar o tempo e convencer o Dire-tor para pular os dois primeiros anos do chamado propedêutico. O diretor chamava-se Clodomiro Almeyda e ele me convenceu a começar pelo início e esquecer a pressa. Como ele me disse, “a gente nunca sabe o tempo da vida da gente” e me deu o exemplo da sua pró-pria vida. Clodomiro foi meu primeiro professor de sociologia. Mais tarde foi Ministro das Relações Exteriores do Allende, e para mim, uma outra pessoa e um outro professor inesquecível...

O propedêutico era um período de um ou

dois anos em que você estudava diversas áreas

do conhecimento (por exemplo, matemática,

geografia, filosofia) para depois afunilar no terceiro.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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2702 • 2015 PEPIANOS

Dostoievski quase completo, o Tols-toi também, foi aí, aliás, que começou minha paixão pela Rússia que dura até hoje, pela sua história, sua música, sua literatura, e evidentemente, a sua revo-lução. Enquanto eu estava fechado na cela no quartel eu nunca sabia direito se estava em São Petersburgo ou em Porto Alegre (risos)!

Como era discutir política o tempo todo lá em Santiago?Fiori: Bem, as coisas não eram bem as-sim. A política tinha uma importância enorme no Chile e ainda mais na convi-vência universitária. Mas se fazia outras coisas também, é óbvio. Assim mesmo, costumo contar que na minha faculda-de de sociologia havia um 99% de mili-tantes de esquerda e uns 110 % de mar-xistas, e quase todo mundo militava no Partido Comunista, no Partido Socialis-ta ou no MIR que era um movimento de esquerda revolucionário que teve bas-tante importância no Chile, nos anos 60 e 70. Com isto, é verdade, a convivência na faculdade e em todo o campus onde estudei envolvia uma discussão quase permanente, no intervalo das aulas ou no bar da frente da faculdade onde pas-sávamos a maior parte do tempo, junto com os próprios professores.

Fiori, você falou em algum momento sobre a liberdade que o Chile lhe trouxe, depois você falou que tinha que assinar um termo de compromisso de que não participaria na política, e mais tarde disse que naquele momento da sua vida tinha outras priorida-des que não apenas a carreira acadêmica. Você pode falar um pouco sobre essas ou-tras prioridades, essas outras motivações?Fiori: Acho que naquele momento eu não tinha intenção de fazer “carreira acadêmica” ou pelo menos certamente não era minha “prioridade”. Por isso, olhando uma vez mais para trás, acho que acertei inteiramente ficando em Santigo até porque, sempre digo, pelo menos uns 60% do que aprendi no Chi-le, aprendi na “rua”, discutindo com os colegas e com as pessoas em geral, nos bares, nos comícios, nos seminários abertos, assistindo conferências, e não necessariamente na sala de aula. E isso a despeito de ter tido um bom curso de sociologia, e alguns excelentes pro-fessores, entre os quais o Clodomiro Almeyda e o Enzo Faletto, por quem eu sempre tive uma grande admiração e amizade. Foi ele que me ensinou a ler o Max Weber e foi a única pessoa que me fez voltar ao Chile, para falar numa mesa de homenagem a ele na Faculda-de de Sociologia muitos anos depois.

Para mim era impensável ir para o mato para virar um “grande economis-ta”. Eu tinha outros interesses que não seriam atendidos no mato, eu gostava também de história e filosofia, e fora da universidade, de cinema, música, li-teratura, conversa fiada e por que não, gastronomia... (risos). A propósito de li-teratura, por exemplo, lembro bem que completei meus 19 anos na cadeia, e naquele período de internação forçosa, tomei uma decisão – que durou pouco –de me afastar da política e ser escritor, romancista. Tudo não passou de um “so-nho de prisão”, mas naquele período eu passava da manhã à noite lendo roman-ces, e isto foi aliás o que me manteve a cabeça limpa e muito distante da minha própria cela... Eu fiquei incomunicável ali durante uns dois ou três meses. Por sorte, me foi permitido ler durante todo o tempo. Por isto, naquele período, a li-teratura se transformou na minha pró-pria vida diária, seus personagens, seus enredos, viraram meus companheiros do dia a dia. Lembro que li na cadeia o

A propósito de literatura, por exemplo, lembro bem que completei meus 19 anos na cadeia, e naquele período de internação forçosa, tomei uma decisão – que durou pouco – de me afastar da política e ser escritor, romancista.Tudo não passou de um “sonho de prisão”.

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02 • 201528 PEPIANOS

Fiori, olhando seu currículo Lattes, a gente viu que você teve participação em alguns grupos de pesquisa lá no Chile, que envol-vem campesinato, educação comunal, e es-sas utopias possíveis que eram discutidas na Santiago daquela época. Você tinha uma agenda política?Fiori: Não muitos, eu trabalhei primeiro no Instituto de Sociologia da Universi-dade do Chile e depois no Instituto de Capacitação em Reforma Agrária da FAO, na equipe de pesquisa camponesa do Paulo Freire. E quando veio o golpe militar chileno em 1973, eu estava tra-balhando no Centro Interdisciplinar de Desenvolvimento Urbano (CIDU) da Universidade Católica, junto com os es-panhóis Manuel Castells e Jordi Borja, entre outros especialistas em questões urbanas.

O que estava pesquisando com o Paulo Freire, naquele momento?Fiori: O que ele chamava de “universo temático” dos camponeses chilenos, um estudo que combinava antropo-logia e pedagogia, visando conhecer e desenvolver a consciência crítica da população que vivia nos “assentamen-tos” criados pela Reforma Agrária do governo de Eduardo Frei. Foi nesse pe-ríodo que trabalhei com ele e acabamos nos transformando em grandes amigos, grandes amigos mesmos, apesar da nossa diferença de idade. Mas depois ele saiu do Chile e foi para os Estados Unidos, para Harvard, e depois ainda para Genebra, na Suíça, onde trabalhou no Conselho Mundial das Igrejas, onde fui visitá-lo uma vez e ele me convidou também para fazer um par de conferên-cias. Por tudo isto foi muito emocionan-te para mim, muitos anos depois encon-trar numa rua de Sevilha, na Espanha, por acaso, um pequeno livrinho que continha três artigos e tinha na capa o nome do Paulo, do meu pai e o meu, um livro que a gente nem sabia que tinha sido publicado, uma espécie de peque-na edição “pirata”, que se não me falha a memória se chamava Educación Libera-dora. Já no CIDU, meu tema de pesquisa foram os movimentos sociais urbanos que lutavam pela terra e pela habitação.

E esses movimentos já eram conectados internacionalmente?Fiori: Não, pelo menos que eu soubes-se. Eles eram sim conectados com os partidos políticos. No Chile não havia nada que escapasse aos partidos polí-ticos. Era uma sociedade partidarizada, politizada, uma sociedade em que você tinha um número bem limitado de par-tidos, mas que cobriam o espectro ideo-lógico completo, da extrema direita até a extrema esquerda. Esses movimentos eram ligados aos partidos de esquer-da, mas também à democracia cristã. E em geral o partido que contribuía para a formação dos “acampamentos ur-banos” também exercia a liderança da organização das comunidades que iam nascendo depois que os terrenos eram tomados. Havia até um assentamento famoso que se chamava “Nueva la Ha-bana”, que era praticamente adminis-trado pelo MIR, com governo, justiça e tribunais locais... Era uma experiência de governo local muito associada aos partidos. Eu não lembro, no Chile, de movimentos desse tipo que tivessem a autonomia que depois eles vieram a ter com o passar das décadas.

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2902 • 2015 PEPIANOS

Então essa era uma época em que a intelec-tualidade se mostrava muito ativa e em que as utopias que se estudavam, que se liam e que se debatiam se mostravam possíveis na prática. Essa era a grande atmosfera?Fiori: Acho que era um pouco isto ou pelo menos era isto que a gente achava e acreditava. Mas a atmosfera era esta mesmo, de grande euforia utópica, à sombra da Revolução Cubana que exer-cia um enorme fascínio na juventude e que aparecia como a prova concreta de que a revolução era possível e que era possível tomar o poder e construir um mundo novo. No final dos anos 60 o tema dominante dentro da juventu-de militante no Chile era esse e não, de forma alguma, o desenvolvimento ou desenvolvimentismo. Esta era uma lin-guagem e uma retórica que não tinha muito espaço dentro debate ideológico chileno daquela época. Acho que só no Brasil foi que o tema do desenvolvimen-tismo teve uma grande centralidade naquela época. Eu não consigo me lem-brar, pelo menos, na minha faculdade de sociologia, e não me lembro de nin-guém que tivesse como seu ideal o “de-senvolvimento”, ou como sua ideologia o “desenvolvimentismo”.

É evidente que hoje você olha para trás e a leitura que se faz é de que aque-la foi a “década do desenvolvimento”, ou melhor: da “crise do desenvolvimento” e do que veio a se chamar de autocrítica da CEPAL. Mas o que fascinava a juven-tude chilena de esquerda era mesmo a Revolução Cubana, que estava no auge da sua imagem e da sua influência. Lem-bro-me como se fosse hoje do impacto e da tristeza que todos sentimos no dia em que soubemos da notícia da morte do Che Guevara, pelos jornais. A aura do romanticismo associada aos guerri-lheiros do Quartel Moncada e do Serra Maestra era muito forte, era como um sol que brilhava para a juventude de es-querda e lhe dava uma certeza de futu-ro melhor. Mais do que nunca se achava que [a revolução] era possível, palpável, que estava crescendo ali nos nossos olhos.

Lembro-me bem de quando que Salvador Allende e Clodomiro Almeyda voltaram da reunião de fundação da OLAS (Organização Latino-Americana de Solidariedade) e foram fazer uma palestra na nossa escola de sociologia, para falar sobre os objetivos da nova organização. E olha que os dois faziam parte da chamada “ala moderada” do P.S. E esta era também a referência de uma parte dos autores das chamadas teorias da dependência que nasceram e cresceram no Chile daqueles anos.

Eu lembro ainda de quando o André Gunder Frank chegou no Chile e ficou retido no aeroporto, era o governo do Eduardo Frei. Depois que ele foi libe-rado ele foi lá para o nosso campus da universidade, e foi recebido como um verdadeiro herói. Não porque fosse um teórico da dependência, mas por-que era associado à revolução cubana.Na medida em que avançava a década de 60, o caldeirão foi esquentando no Chile, até chegar a vitória da Unidade Popular, em 1970.

Mas a atmosfera era esta mesmo, de grande euforia utópica, à sombra da Revolução Cubana que exercia um enorme fascínio na juventude e que aparecia como a prova concreta de que a revolução era possível e que era possível tomar o poder e construir um mundo novo.

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02 • 201530 PEPIANOS

Qual era o seu contato pessoal com a CE-PAL e com o pessoal brasileiro que traba-lhava lá naquele tempo?

Fiori: Para começar, logo que che-guei ao Chile vivi durante um tempo num prédio que ficava ao lado do edifí-cio da CEPAL, e encontrava quase dia-riamente com seus técnicos e pesqui-sadores aí pelas calçadas. Da janela da minha casa eu podia acompanhar o dia a dia dos cepalinos... Depois com o pas-sar do tempo fui conhecendo quase to-dos os brasileiros que trabalhavam ali, e mais tarde fui aluno e me fiz amigo de alguns cepalinos chilenos como Aníbal Pinto, Enzo Faletto e outros. É lógico que a Cepal era importante, mas naque-le momento ela não estava no epicentro dos debates chilenos nem orientava ou pautava a agenda de discussão dos seus partidos políticos, a despeito que tives-se exercido uma forte influência indire-ta sobre o reformismo da democracia cristã de Eduardo Frei. Mas a própria experiência reformista de Frei e depois a tentativa frustrada de construção de um socialismo democrático com Salva-dor Allende atraíram um número cada vez maior de intelectuais de todo o mundo e de todos os matizes teóricos e ideológicos que foram transforman-do Santiago de Chile numa verdadeira universidade aberta e pública, um ver-dadeiro caldeirão de ideias, uma expe-riência intelectual única, que talvez já tivesse ocorrido em algumas cidades europeias dos séculos XIX e XX, mas que não tinha havido nem nunca mais ocorreu na América do Sul.

Lembro por exemplo de um dia em que vinha passando na frente de um prédio em que havia um burburinho na porta. Aí entrei para ver o que era e de repente vi um velhinho vestido como um lorde inglês e lendo uma conferên-cia. Perguntei quem era e soube que era o Arnold Toynbee. Era assim: hoje tem Toynbee, ia todo mundo ver. No ou-tro dia tinha Norberto Bobbio, e todo mundo também ia assistir. E depois da vitória do Allende multiplicaram-se os seminários e as conferências sobre a “transição para o socialismo”, sobre “socialismo e democracia”, “revolução e reforma”, “literatura e revolução”... isso tinha em toda esquina.

E a Conceição, você conheceu onde?Fiori: Eu conheci a Maria Conceição Tava-res em Santiago, deve ter sido em 1968, não tenho certeza. Ela tinha trabalhado no escritório da Cepal aqui do Rio, mas acho que em 1968 ela se mudou para o escritório de Santiago. Naquele momen-to, aliás, acho que o Carlos Lessa já estava voltando para o Rio. Outro que era daqui e foi para o Chile era o Antônio Barros de Castro. Os três vinham do Rio, trabalha-ram no ILPES em Santiago, e depois se transformaram, na UNICAMP, e aqui no Instituto de Economia Industrial/ IEI, em grandes representantes do pensamen-to estruturalista e cepalino no Brasil. No Chile eles reuniram a outros intelectuais brasileiros que vinham de outros estados, como foi o caso do Francisco Weffort, Fernando Henrique Cardoso, Leôncio Rodriguez, Juarez Brandão, Theotonio dos Santos, Rui Mauro Marini, entre tan-tos outros. E quase todos eles acabaram tendo algum papel na origem da chamada “teoria da dependência”.

Professor, neste período dos anos 1970 o seu pai, Ernani, dava um seminário sobre Hegel no Chile. Há essa referência no livro Poder Global. Quais foram as influências desse seminário?Fiori: Em 1968 houve uma rebelião na universidade católica: os alunos tomaram a direção, num movimento similar àquilo que aconteceu em quase todo o mundo. E o meu pai foi chamado para ser vice-rei-tor, para fazer a reforma da universidade. Mas antes disso, ele foi professor de filo-sofia. Em algum momento, nos anos 60 pude frequentar alguns cursos dele que ainda lembro sobre Michel Foucault, Max Weber, e esse que vocês se referiram, de leitura da Filosofia da História do Hegel. Durou uns dois ou três anos, e avançáva-mos uma página a cada dois meses (risos), e assim mesmo acho que nunca saímos do prefácio, e não há duvida que este se-minário teve influência decisiva no meu desenvolvimento intelectual posterior. Neste mesmo período, eu estava fazendo um curso de mestrado em economia, na Escolatina, que era uma excelente escola de pós-graduação do Instituto de Eco-nomia. Foi neste momento que eu pude estudar economia de forma mais regular e sistemática, porque o curso era presen-cial e durou três anos, quase um curso de graduação inteiro.

A própria experiência reformista de Frei e depois a tentativa frustrada de construção de um socialismo democrático com Salvador Allende atraíram um número cada vez maior de intelectuais de todo o mundo e de todos os matizes teóricos e ideológicos que foram transformando Santiago de Chile numa verdadeira universidade aberta e pública, um verdadeiro caldeirão de ideias, uma experiência intelectual única.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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E como foi sua volta do Chile?Fiori: Na verdade não foi uma “volta”, para mim, foi um segundo exílio. Não porque eu tivesse deixado de ser bra-sileiro, mas porque ao sair de Santia-go tive que deixar para trás toda “uma vida”, meus grandes amigos de universi-dade e de trabalho, minha geração. Com o tempo eu tinha me tornado quase chileno e já não sei mais avaliar se teria saído do Chile se não fosse pelo golpe do Pinochet. E mesmo depois que optei pelo Brasil e pelo Rio, a verdade é que eu não era carioca e não conhecia quase ninguém no Rio. Por isto tive que come-çar minha vida de novo... O que eu sei é que para mim foi muito triste deixar o Chile. Eu tinha acabado de completar 28 anos e na verdade, ao sair de Santia-go deixei para trás a minha juventude e a minha segunda pátria.

Ao chegar você foi preso de novo?Fiori: Não, mas tive que responder um interrogatório que durou uns dois ou três dias, em que permaneci em liber-dade. Aliás, o interrogatório acabou chegando a um impasse porque as per-guntas não encaixavam com a vida que eu tinha vivido no Chile, durante quase 10 anos. Como eu tinha saído do Bra-sil no final da adolescência e início da juventude, eu acabei ficando sem sa-ber quase nada sobre o Brasil. E o que sabia do colégio fui esquecendo com o tempo e talvez pelo próprio trauma da separação do país muito jovem. Esse

estranhamento com relação ao Brasil ficou muito claro nos interrogatórios que se seguiram à minha volta. As per-guntas me soavam completamente absurdas, porque supunham que havia vivido clandestinamente num país que eu considerava minha segunda pátria, onde tinha feito a universidade. Então o desencontro foi total e em algum mo-mento eu tive que dizer ao major que eu achava que nossa conversa não tinha muito objetivo porque havia um “erro de pessoa”. O surpreendente foi que ele aceitou meu argumento e me pediu que eu respondesse então por escrito as perguntas que considerasse pertinen-tes de uma lista de umas 200 perguntas que me foram passadas. Respondi mui-to poucas, porque na verdade eu já nem lembrava muito da nossa própria histó-ria, quando mais da conjuntura brasilei-ra daquele momento.

Depois do Chile, você foi direto para o insti-tuto de Medicina Social?Fiori: Não, o caminho foi mais tortuo-so e complicado. De novo funcionou a roleta de que falamos antes. Ao sair de Santiago tinha um convite engatilhado para trabalhar na Unesco e que havia sido intermediado pelo Paulo Freire, e se não fosse isto minha primeira opção era viver em Buenos Aires. Mas quando passei pelo Brasil para regularizar mi-nha documentação (eu não tinha nem passaporte nem carteira de reservista, CPF...) fui convidado e fiz um concur-so preventivo para professor da USP, e ao passar meu último fim de semana no Rio, um amigo me perguntou se não queria trabalhar no IMS e eu disse que não. Mas depois de me convencer em Buenos Aires de que na Argentina eu acabaria tendo que sair mais uma vez, e como o convite da Unesco só veio a se confirmar muito mais tarde, decidi vol-tar para o Brasil. Como havia ganho o concurso da USP fui professor lá no de-partamento de ciência política durante um ano. Mas entre umas coisas e ou-tras, incluindo o interrogatório a que fui submetido na minha volta, decidi pelo Rio de Janeiro. Queria mudar de assun-to, queria descansar um pouco dos gol-pes, da política, e achei que a Medicina Social seria uma oportunidade. Pouco depois chegou a passagem da Unesco e eu declinei do convite, e um ano depois abandonei também a USP e decidi me concentrar na Medicina Social.

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Professor, você então acabou ficando no ins-tituto de Medicina Social por muito tempo? Fiori: Com certeza, 30 anos. Quem afi-nal me trouxe e me contratou foi o Dr. Hésio Cordeiro e a Dra. Nina Pereira Nunes, ambos médicos idealistas e in-teiramente dedicados à saúde pública. E me pediram que eu os ajudasse a pen-sar e conceber uma pós-graduação em Medicina Social. Eu não tinha ideia do que fosse, mas passei uns dois meses fe-chados lendo sobre o assunto e depois comecei a trabalhar com eles. Meio ano depois o mestrado começou, e o próprio Hésio foi meu aluno na primeira turma. Formou-se ali um grupo fantástico, ide-alista, estudioso, multidisciplinar, com sociólogos, psicanalistas, demógrafos, médicos epidemiólogos etc. etc.. E ali se formou o grupo que iria liderar a grande revolução da saúde pública no Brasil, que começou em 1986/7. Acho até que foi o único grupo que quando chegou a hora da “Nova República” tinha uma pro-posta pronta na mão e que contava com o apoio de um amplíssimo movimento sanitarista distribuído por todo o país. Por este caminho acabei participando da concepção intelectual do SUS na segun-da metade dos anos 70, junto com Hésio Cordeiro, José Noronha, Reinaldo Gui-marães, entre outros, e depois ainda es-tive ao lado deles nos anos 1980, quan-do o novo sistema nacional de saúde começou a ser montado, ainda durante a gestão de Hésio Cordeiro na presidência do INAMPS, e antes de se transformar numa peça central da Constituição de 1988. Nós começamos a pensar o sis-tema em 1975/76, e com todas as suas dificuldades é fantástico vê-lo depois de pé e funcionando como o maior sistema de atenção médica universal e gratuita do mundo. Depois fui para o Instituto de Economia Industrial da UFRJ, mas fiquei ligado para sempre àquela turma fantás-tica, amiga, idealista, e com um sentido de participação coletiva muito difícil de encontrar em outro lugar.

Já saí de lá faz uns 10 anos, mas an-teontem, por coincidência, recebi um e-mail me convidando para a comemo-ração dos 40 anos do início da pós-gra-duação. O que é verdade, porque o pri-meiro curso foi exatamente em Agosto de 1974 e foi ministrado por mim e pelo psicanalista Jurandir Freire que havia

chegado da França e entrou no IMS pou-co depois. A ideia é fazer uma reconstru-ção das origens intelectuais do Instituto de Medicina Social, que remontam a três grandes linhas de pensamento que sem-pre conviveram de forma extremamente harmoniosa e criativa: a do Foucault, a do Ivan Illich, e a da medicina social ale-mã do século XIX, do sistema de saúde inglês, da reforma sanitária italiana, etc. Era isso o que a gente tinha na cabeça. Quando esteve conosco, o Foucault fez cinco conferências no Hospital Pedro Ernesto, que até hoje marcam a história da medicina social.

Fiori, foi maravilhosa essa sua recapitu-lação, porque a gente estava justamente perguntando sobre esses momentos, o mo-mento de volta do Chile, para poder chegar no rio. Mas ainda antes disto, como foi sua passagem pela USP?Fiori: Na verdade foi muito rápida, acho que não mais do que um ano e de-pois saí, optei pelo Rio. Se não me falha a memória naquele ano dei um curso sobre o conceito e a análise de conjun-tura do Marx, fazendo uma discussão da origem do conceito de “ditadura do proletariado” fazendo uma reconstru-ção histórica e uma discussão analítica da conjuntura da história francesa que deu origem ao “18 Brumário”, e ao con-ceito da “ditadura do proletariado”. Foi quando comecei a trabalhar conceitu-almente a questão do “tempo conjuntu-ral” que deu origem a um texto que es-crevi bem depois, no início dos anos 80 e que se chamou Por uma economia po-lítica do tempo conjuntural. Neste texto, eu mostrava uma admiração profunda pelo Marx como iniciador da tentativa de uma análise de conjuntura, fundada teoricamente numa visão de longo pra-zo da história. Mas ao mesmo tempo foi uma espécie de progressiva descons-trução de todas as tentativas – tanto a do Marx como de Lenin, passando por-Gramsci, até chegar no Poulantzas – de propor o objeto da análise conjuntural porque elas chegavam numa espécie de cul-de-sac, em que não se dava o salto do gato e onde se voltava sempre para a questão do interesse, para o conceito de interesse de classe. Essa passagem me parecia absolutamente sui generise no limite impossível teoricamente.

Esta entrevista com Fiori foi feita em Setembro

de 2014. Em Novembro, ocorreu o evento de

comemoração dos 40 anos do Programa de

Pós-Graduação em Saúde Coletiva, do

ImS. Fiori acabou não podendo participar.

Por uma economia política do tempo conjuntural

foi publicado em Textos para Discussão, n. 44, do

Instituto de Economia da UFRJ.

Eu mostrava uma admiração profunda pelo Marx como iniciador da tentativa de uma análise de conjuntura, fundada teoricamente numa visão de longo prazo da história.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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E seus estudos sobre estado e desenvolvi-mento, onde começaram?Fiori: Eu fui para o Instituto de Econo-mia Industrial da UFRJ, para fazer uma pesquisa conjuntural com o Carlos Les-sa, sobre o segundo governo Vargas. Mas era uma pesquisa também sobre política econômica e desenvolvimento no Brasil. Essa pesquisa durou uns dois ou três anos e foi aí que comecei a jun-tar minha preocupação com a conjuntu-ra e a política, com a análise histórica e econômica. Nesses anos de convivência com o Lessa eu aprendi tudo o que sei até hoje de política econômica. O Les-sa, de fato, me ensinou a usar a política econômica como um instrumento de análise ou, digamos de reconstrução anatômica de uma conjuntura política. Isso para mim foi o grande salto do gato, mesmo porque foi quando comecei a estudar e conhecer de fato a história do Brasil que eu não havia estudado na universidade.

A pergunta era: como é que se expli-ca a trajetória e o fim trágico do Segun-do Governo Vargas? Foi aí que descobri duas coisas fundamentais: que a políti-ca econômica não explicava de jeito ne-nhum o que aconteceu e que ademais nunca existiu uma política macroeco-nômica original que se pudesse chamar de nacional-populista. A política macro do Vargas foi basicamente ortodoxa. A heterodoxia ficou por conta do câmbio múltiplo do Oswaldo Aranha que já ha-via sido utilizada pelo Raul Prebish na

Argentina, e do “choque salarial” provo-cado pelo aumento de 100% do salário mínimo que levou à queda do Jango do Ministério do Trabalho. Por outro lado, revirei a história do período ao avesso: até o dia de sua morte Vargas era consi-derado pela esquerda como um homem do imperialismo americano e de repen-te depois do seu suicídio virou um herói nacionalista, para esta mesma esquer-da. Como é que se decifra esse mistério, essa inflexão, essa mudança de opinião e da própria história? Para explicar isso, eu fiz um trabalho único – que nunca mais se repetiu, pelo menos não siste-maticamente. Eu me enfiei na Bibliote-ca Nacional e reli dia atrás dia todos os jornais de 1949 a 1954. Tinha o Diário de Notícias, o Correio da Manhã e, tal-vez, o Jornal do Brasil. Eram três jornais e eu reli todos os cinco anos, dia após dia. Aquilo tudo era novo para mim, eu não havia estudado história do Brasil, não havia feito universidade aqui. Eu lia tudo e, de certa maneira, foi como se eu tivesse revivido a história da mi-nha infância naquela sala da Biblioteca. Quando cheguei ao final, lembro que falei para o Lessa: “li e tresli os jornais e não dá para explicar o suicídio do Var-gas a partir dessas historinhas”. Como também não dá para explicar pela po-lítica econômica, teremos que buscar outra coisa... (risos). Foi aí que eu co-mecei a me debruçar sobre aquilo que alguns chamariam de “determinações externas” ou de peso dos fatores inter-nacionais na dinâmica política interna brasileira.

Isto é, foi aí que eu comecei a in-troduzir na análise de conjuntura a di-mensão internacional. E não cheguei a essa conclusão por causa da teoria da dependência nem da teoria do im-perialismo, foi olhando e procurando entender a coerência dos fatos. Foi per-guntando por que alguns atores funda-mentais haviam mudado suas posições no início dos anos 50. O que tudo isto tinha a ver com um artigo clássico que o General Golbery publicou em 1952 na Revista do Clube Militar, defendendo o alinhamento incondicional do Brasil ao lado dos EUA, na nova Guerra Fria que estava no seu auge naquele momento. Foi aí também que comecei e entender melhor o papel decisivo que os milita-res haviam tido em toda a história do desenvolvimentismo brasileiro, entre

Golbery do Couto e Silva publicou Aspectos

geopolíticos do Brasil, em 1952, onde formulou o conceito de segurança

nacional.

Conforme relata Elio Gaspari, no livro A

ditadura derrotada, Golbery foi o redator do

“Memorial dos coronéis” e do “Manifesto dos

generais”, documentos que influenciam na crise política que culminou no

suicídio de Getúlio Vargas.

Eu comecei a introduzir na análise de conjuntura a dimensão internacional. E não cheguei a essa conclusão por causa da teoria da dependência nem da teoria do imperialismo, foi olhando e procurando entender a coerência dos fatos.

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Não dá para entender uma conjuntura fechada seja sobre si mesma e determinada apenas pelo interesse de classe, isto é, endogenamente. Todas as conjunturas são sempre e simultaneamente nacionais e internacionais, e a relação entre as nações é tão importante quanto a relação entre as classe. É necessário aprender a pensar assim.

1930 e 1985. E a descobrir a simulta-neidade dos acontecimentos no Brasil e no Chile. E como eu conhecia a história chilena melhor que a nossa, comecei a articular os fatos.

Não dá para entender uma con-juntura fechada seja sobre si mesma e determinada apenas pelo interesse de classe, isto é, endogenamente. Todas as conjunturas são sempre e simulta-neamente nacionais e internacionais, e a relação entre as nações é tão impor-tante quanto a relação entre as classe. É necessário aprender a pensar assim. E foi exatamente isso que tentei dizer no meu artigo Por uma economia política do tempo conjuntural. Era uma leitura críti-ca do Marx, do conceito de interesse de classe como instrumento de análise, e como chave da explicação histórica de longo prazo. Para mim, essa pesquisa com o Carlos Lessa, e as nossas discus-sões conjuntas com a Maria Conceição Tavares tiveram uma importância tão grande quanto havia tido o meu tra-balho com o Paulo Freire lá no Chile. Conversamos e discutimos durante muitas e muitas horas. Com o Paulo Freire também era assim. Com o Lessa e a Conceição, eu aprendi muito, pra mim foi fundamentalíssimo porque eu aprendi economia de fato. Até aí o que eu sabia é o que eu tinha estudado no meu curso de mestrado na Escolatina lá no Chile: muito modelo, teoria. Foi só aí que eu aprendi como que é que se jun-tava a economia com a análise política sem cair no economicismo.

Daí veio sua tese de doutoramento?Fiori: A pesquisa com o Carlos Lessa du-rou entre 1980 e 1983 e nossas conclu-sões apareceram num texto que creio que se chamou “E houve uma politica econômica nacional desenvolvimentis-ta” e que foi o precursor imediato da mi-nha tese de doutoramento que escrevi em 1984 e defendi no Departamento de Ciências Sociais da USP, com o título “Ciclo e crise na dinâmica de um estado periférico: uma reflexão sobre a crise do estado brasileiro”. Muitos anos de-pois, na década de 90 ela saiu publicada como o título O Voo da Coruja, título que me foi sugerido pelo editor como cita-ção da última frase da tese que era uma referência e uma homenagem a Hegel.

Mas depois do encontro com a conjuntura veio outra virada, com o Fernand braudel...Fiori: É verdade. O estudo do Vargas já me havia levado de volta aos meus estudos sobre o Hegel e a questão do tempo, do início dos anos 1970. Mas foi neste mesmo período, acho que em 1982, que li pela primeira vez o livro do Braudel (na versão inglesa que a Con-ceição havia trazido da Europa) Civili-zação Material e o Capitalismo. Do Brau-del eu já tinha lido o História e Ciências Sociais, uma série de conferências onde ele introduz e desenvolve o conceito de longue durée. Mas foi quando li o novo e extraordinário livro de Braudel que pensei comigo mesmo “caramba, esse é o cara”; ele me ajudou a juntar as pon-tas e os tempos históricos numa mesma análise concreta.

E foi esta tentativa de juntar os dois tempos que me levou à minha tese de doutorado. Se você olha a tese, ela co-meça com um artigo sobre a crise da América Latina, depois vem um capítu-lo sobre o tempo conjuntural, e daí uma tentativa certamente um pouco bruta de introduzir a questão do tempo longo na análise da história brasileira. A ideia era então sair da conjuntura: entender que não era possível compreender o Vargas só pelo Vargas. Você tinha que alargar seu ângulo de visão e olhar para a história mais longa do desenvolvi-mento brasileiro.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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Acho que o ficou daquela tese é menos sua análise da crise do estado desenvolvimentista brasileiro e mais a questão do método, a combinação do tempo conjuntural com o tempo estru-tural, a combinação da dimensão nacio-nal com a internacional, e finalmente, de política com a economia, sem cair em nenhum tipo de economicismo ou politicismo.

Esse “novo olhar” me permitiu rein-terpretar a crise do desenvolvimen-tismo dos anos 1980 e perceber que o desenvolvimentismo militar e conser-vador tinha se esgotado antes mesmo do fim da Guerra Fria, que havia tido um papel decisivo para o seu sucesso eco-nômico. Ele tinha se esgotado porque tinha se esgotado o pacto conservador interno e havia mudado radicalmente a estratégia econômica internacional e a geopolítica dos EUA. Estes dois últi-mos pontos, entretanto, eu só fui com-preender melhor depois que comecei meus estudos no campo da economia política internacional. Debruçando-me simultaneamente sobre a crise terminal do desenvolvimentismo e o que se cha-mou de “crise internacional ou “crise da hegemonia norte-americana”. E que na verdade envolveu uma mudança radical da estratégia internacional dos EUA, mas eu só vi isto mais claramente muito depois, no meu trabalho de 1997, “Glo-balização, hegemonia e império”.

É óbvio que quando escrevi a tese de doutoramento e mesmo depois quando escrevi minha tese de titular Instabilidade e crise do estado na indus-trialização brasileira, que eu defendi em 1989, eu ainda não tinha a convicção que eu tenho hoje de que o sucesso do desenvolvimentismo brasileiro se de-veu muitíssimo à “oportunidade” inter-nacional criada pela Guerra Fria e que foi aproveitada pela coalisão conserva-dora liderada pelos militares, dentro do Brasil, a mesma coalisão que se esface-lou no final dos anos 70 início dos anos 80, à sombra da crise internacional e da mudança da estratégia geopolítica e econômica dos EUA, nas mesmas déca-das de 70 e 80.

Então lá na tese você já estava pensando que não era a política econômica que expli-cava a história do desenvolvimento?Fiori: Em parte, o que posso dizer é que já tinha na cabeça uma convicção que me tomou muitos anos para desenvol-ver. Isto me tomou uns 30 anos de es-tudo, de pesquisa teórica e histórica. Mas na defesa do meu doutoramento apanhei bastante porque havia a crença de que o fim da ditadura não significava o fim do desenvolvimentismo, ou pelo menos, como defendi naquela ocasião, do desenvolvimentismo conservador de forte liderança estratégica militar.

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Sobre esse contexto. No fim da ditadura, momento de democratização e fim do pe-ríodo desenvolvimentista, ou melhor, no fim dos anos 1980 e 1990, dá pra dizer que havia, por razões óbvias, um pensamento dominante de que a solução para os pro-blemas sociais brasileiros passava por um Estado liberal. A própria esquerda também, por associar Estado forte com ditadura, autoritarismo, foi engambelada por esse discurso. Você já havia pontuado que isso não era verdadeiro, que o problema não passava por ter um Estado liberal, e que um Estado forte era necessário mesmo após a ditadura. A esquerda tinha dificuldade de entender isso. A esquerda, por ter se for-mado na batalha contra a ditadura (no caso, por exemplo, o próprio Fernando Henrique, que depois ganhou o governo), olhava com ressalvas o Estado e acabou abraçando o mito da globalização. Como você se posi-cionava politicamente neste contexto?Fiori: Primeiro, há que destacar que a verdadeira virada ocorreu depois da Constituinte de 1988. Até ali o grupo de Mario Covas e Fernando Henrique votava quase sempre a favor dos itens e das posições mais nacionalistas ou mesmo estatistas. A mudança ocorreu quando este grupo sai do PMDB e cria o PSDB. Mas neste primeiro momento o PSDB ainda tinha uma forte influência dos democratas-cristão como Franco Montoro, José Richa etc., e de naciona-listas, como Mario Covas, Hélio Jagua-ribe. Foi pouco a pouco, e em particular depois de 1990, que o PSDB adernou inteiramente na direção neoliberal, já sob a liderança de FHC e os seus eco-nomistas aqui do Rio. Hoje, se você olha para trás e lê, por exemplo, o livro Au-toritarismo e Democratização (1975) de FHC, você consegue perceber que ele já tinha um pensamento fortemente “paulista-liberal” e anti-estatal. Mas a diáspora da frente democrática ocorre mesmo nos anos 90, a partir do governo Collor.

Ainda durante o governo de Fer-nando Collor de Mello, o PSDB se di-vidiu e uma ala mais próxima de Fer-nando Henrique Cardoso entrou no governo com Hélio Jaguaribe, e com o apoio aberto de Pedro Malan ao mi-nistro da Fazenda Marcilio Marques Moreira, que tentou exatamente rever-ter a heterodoxia do plano econômico concebido pela equipe da ministra Zélia Cardoso de Mello. A verdadeira origem intelectual daquele plano ainda precisa ser estudada com mais cuidado, porque o “Plano Collor” foi de fato heterodoxo a despeito de que a proposta de Fernan-do Collor de Mello fosse radicalmente neoliberal. Aliás, foi ele que introduziu a “nova hegemonia neoliberal” no Bra-sil, a mesma que depois FHC levou até o limite das suas possibilidades com as privatizações e abertura e integração internacional do sistema financeiro brasileiro. No caso do Fernando Collor de Mello, entretanto, o que houve foi um plano econômico heterodoxo num governo com uma proposta neoliberal. Isso confundiu muita gente mesmo do lado dos economistas heterodoxos de esquerda.

A verdadeira origem intelectual daquele plano ainda precisa ser estudada com mais cuidado, porque o “Plano Collor” foi de fato heterodoxo a despeito de que a proposta de Fernando Collor de Mello fosse radicalmente neoliberal.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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Foi neste momento que o senhor escreveu nos jornais pela primeira vez, criticando o Plano Collor?Fiori: A verdade que até a década de 90 eu era quase inteiramente ágrafo, mas assim mesmo havia publicado uns dois ou três artigos de jornal fazendo aná-lises da conjuntura política brasileira. Mas de fato, foi uns dez dias depois do lançamento do Plano Collor que me ini-ciei como publicista, ou seja, como inte-lectual que participa do debate público através dos jornais. Talvez tenha sido mesmo a primeira crítica aberta feita ao plano, num artigo que foi publicado com grande destaque pelo Jornal do Brasil, com o título “A esquerda con-tra Bonaparte”. Este gênero publicísti-co acabou se transformando num dos meus campos de trabalho e reflexão a partir daquele momento, e onde me posicionei sempre contra a onda neo-liberal que havia se transformado num pensamento hegemônico ou único em quase todo o ocidente, e que chegou ao Brasil exatamente na década de 90, com os governos de Collor e depois de FHC. Comecei escrevendo sem maio-res pretensões de regularidade, mas a verdade é que a partir daí e até hoje já devo ter publicado mais de 300 artigos deste tipo, o que para uma pessoa que foi ágrafa é realmente um espanto... (risos). Essas intervenções por jornal só foram possíveis porque já vínhamos pesquisando as transformações inter-nacionais desde a segunda metade dos anos 80. Nossa pesquisa no campo da economia política internacional come-çou em 1986, e foi esta pesquisa que acabou levando à criação do PEPI duas décadas depois. Um programa de pós--graduação que nós criamos com o ob-jetivo de difundir e estimular as linhas de pesquisa e as conjecturas históricas com as quais já vínhamos trabalhando durante 25 anos, na hora em que o PEPI foi criado academicamente, em associa-ção com o Instituto de Economia e com o Núcleo de Estudos Internacionais da UFRJ. Depois o NEI passou por uma cri-se institucional e foi desativado.

Mas voltando ao nosso assunto do Plano Collor, quando eu ouvi sua apre-sentação na televisão, o quadro ficou imediatamente claro na minha cabe-ça, peguei a “máquina” e escrevi aque-

le artigo de que falamos, procurando mostrar qual era o significado de longo prazo daquele plano heterodoxo, que deveria funcionar como porta de en-trada das políticas neoliberais preco-nizadas pelo que se chamou na época de Consenso de Washington. Neste primeiro artigo de 1990, eu ainda não falava explicitamente do Consenso, coisa que fiz num artigo posterior que também foi publicado pelo JB e que se chamou a Sonolência da Razão. E foi as-sim que quando a equipe econômica da ministra Zélia Cardoso de Mello caiu o próprio jornal me pediu que escrevesse um novo artigo que saiu publicado com o título O triste fim do jacobinismo liberal.

Em 1992 eu passei um breve perí-odo de tempo pesquisando no BID, em

Washington, e aí sim pude ver a articu-lação brasileira com o governo Clinton e a discussão aberta do Consenso de Washington no próprio thinktank onde trabalhava John Williamson, o eco-nomista que cunhou a expressão. Por isto também pude escrever um artigo crítico do Plano Real que saiu publica-do no Caderno Mais da Folha de São Paulo, no dia 3 de julho de 1994, acho que uns quatro ou cinco dias depois do seu lançamento (com a criação do sistema de conversão da URV), com o título Os Moedeiros Falsos. A partir daí escrevi uma série de artigos críticos ao neoliberalismo do governo FHC e que foram publicados quase todos no próprio Caderno Mais, da Folha de São Paulo.

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outra guinada, né? Você estava discutindo ainda com eles e se prontificou a dizer que não era por aí, era por outro lado. Quando a gente entra na história do PEPi é mais uma...tudo bem então, fiquem vocês discu-tindo aí e eu vou seguir a minha longa du-ração, ou pelo menos, pela maneira como a gente compreende. Como foi a formação deste programa com tanta gente de for-mações políticas e acadêmicas distintas, e você já com este pensamento de que as continuidades valiam mais para uma análi-se internacional do que as rupturas? Como foi esta convicção?Fiori: Como eu disse, formou-se um gru-po de economia política no IEI que co-meçou a trabalhar sistematicamente no campo da economia política internacio-nal, instigados por um artigo da Concei-ção sobre A retomada da hegemonia ame-ricana. Este artigo saiu publicado no livro O Poder e o Dinheiro, publicado em 1997. Conceição contestava a tese dominan-te de que os EUA estivessem vivendo uma crise terminal de sua hegemonia mundial, e este artigo se transformou no ponto de partida de nossa pesquisa internacional que começou em 1986 e que se prolongou até o início da publica-ção da série dos Livros Vermelhos, publi-cados pela Editora Vozes, e onde foram sendo expostas as principais conclusões e análise sugerida pela nossa pesquisa. A pesquisa segue até hoje, mas em 2007 surgiu a possibilidade de criação de um programa de pós-graduação em econo-mia política internacional, que nos apro-veitamos e que resultou na criação do PEPI, a partir de 2008/09.

A pesquisa propriamente dita contou com financiamento do PNUD e da Ford e permitiu que nossa equipe viajasse pela Europa e pela Ásia, estudando em vários países a forma como cada um destes pa-íses estava enfrentando e respondendo a crise gerada pela mudança da política econômica internacional dos EUA, depois do fim do Sistema de Bretton Woods e da abertura e desregulação dos mercados financeiros nacionais, liderada e patro-cinada pelos EUA e pela Grã Bretanha. Não se falava ainda de “globalização”. Naquele momento a palavra chave era “ajuste”, ajuste à nova ordem econômi-ca e geopolítica internacional iniciada e patrocinada pelo eixo anglo-americano. Nosso grupo de pesquisa reunia profes-

sores do IEI/UFRJ e do IE/UNICAMP, e depois que terminou o nosso financia-mento seguimos trabalhando em cima do tema da “crise internacional” e das novas estratégias de desenvolvimento, articula-dos pelo nosso projeto editorial. Ou seja: íamos trabalhando e pesquisando a partir do projeto de edição sempre de um novo livro que servia de estímulo e da pauta de nossas discussões conjunturais que iam ocorrendo em seminários, ou mesmo nas mesas dos bares...

E como foi que acabou sua agrafia, se é que existe esta palavra?Fiori: Não sei, realmente não sei. Em 2001 uma jornalista me fez a mesma pergunta numa entrevista a propósito de uma homenagem que o Jornal do Brasil me fez dando-me o título de “ho-mem de ideias do ano”. Eu havia publi-cado 2 livros naquele ano e ela queria saber porque até ali eu não havia publi-cado nada ou muito pouco. Respondi o mesmo, que não saberia lhe dizer. Mas a verdade é que meu primeiro artigo para o jornal, como contei só foi em 1990, e o meu primeiro livro em 1995. Depois pa-rece que a mão se soltou... (risos) e hoje acho que já publiquei uns quinze livros além daqueles artigos que já mencio-nei. Na vida a gente nunca sabe quando chega a hora da inspiração, talvez por-que a gente tem uma exigência muito grande com relação à gente mesma, talvez porque a gente tenha medo de se expor e deixar que as nossas ideias se independentizem de nós mesmos, porque depois que a gente escreve e publica as ideias já não nos pertencem e saem a caminhar pelo mundo sozinhas. E isto dá muito medo...

Em 1985 foi publicado o artigo A retomada

da hegemonia norte-americana pela Revista de Economia

Política, n. 2, v. 5.

Na vida a gente nunca sabe quando chega a hora da inspiração, talvez porque a gente tem uma exigência muito grande com relação à gente mesma, talvez porque a gente tenha medo de se expor e deixar que as nossas ideias se independentizem de nós mesmos, porque depois que a gente escreve e publica as ideias já não nos pertencem e saem a caminhar pelo mundo sozinhas.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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E como nasceu esta coleção editorial de que o senhor fala, e a série dos “livros ver-melhos” onde vocês publicaram as ideias do grupo e economia política internacio-nal?Fiori: O nome da coleção Zero à Es-querda nasceu de uma conversa e de uma expressão utilizada por um jor-nalista carioca, mas a coleção propria-mente dita foi uma inciativa de um gru-po de professores paulistas lideradas pelo professor Paulo Eduardo Arantes, que lecionava na faculdade de filosofia da USP e que estabeleceu o acordo com a Editora Vozes. Foi uma bela inciativa e que teve uma importância intelectual extraordinária na década de 1990. Era uma coleção que remava na contramão da onda liberal e que contribuiu para sustentar e manter vivo o pensamento de esquerda numa época muito difícil.

Professor, a impressão que passa é que no início dos anos 90, como resposta a con-vergência política liberal, se criou um pro-grama bastante consistente para se pensar a economia política internacional. Já en-trando no caso do PEPI, tem todo um es-forço de uma geração para criar aquilo que a gente chama do programa de pesquisa do poder global. Neste sentido, com quais interlocutores você diria que se estabelece um diálogo? No momento anterior, havia o diálogo com Campinas, USP, e hoje? Com quem se estabelece o diálogo?Fiori: Olha só, no lançamento da (pri-meira) edição da revista Pepianos, eu contei para vocês como foi que o PEPI nasceu do grupo de economia políti-ca do Instituto de Economia da UFRJ. Eram todos economistas menos eu, e apesar de nossas divergências teóricas eventuais, nos mantivemos juntos pela nossa preocupação comum, pelo nosso objeto de estudo comum e por nossa crítica comum ao neoliberalismo.Foi essa convergência o que nos permitiu fazer vários livros juntos, porque se você ler em detalhes os livros verá que as pessoas não tinham exatamente a mesma posição e que isso também nun-ca foi necessário.

O nosso último livro comum foi o Poder Americano, publicado em 2004.

E foi neste livro que eu comecei a de-senvolver de forma mais clara o meu novo programa de pesquisa, que tinha um novo objeto, mas que não era an-tagônico com o programa anterior. Foi aí que começou, de maneira autônoma, a minha pesquisa sobre o Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo. O Paulo Arantes e o grupo de SP saiu da Vozes e o próprio Paulo criou uma nova coleção na Editora Boitempo, chamada Estado de Sítio, e onde vim a publicar em 2007, o meu livro sobre o Poder Global e a Nova Geopolítica das Nações. Logo depois, em 2008, o Carlos Medeiros, o Franklin Serrano e eu ainda publicamos juntos na Editora Record, o livro O Mito do Co-lapso do Poder Americano, reafirmando e atualizando a velha tese da Conceição, dos anos 80.

Talvez se possa dizer que ocorreu uma espécie de bifurcação: o grupo tradicional de economia política (Con-ceição, Medeiros, Serrano, Ernani etc.) seguiu trabalhando e desenvolvendo a visão clássica estruturalista e sraffia-na do desenvolvimento visto sempre dentro do contexto internacional; e formou-se outro programa de pesquisa que foi se estruturando a partir do meu artigo Formação, Expansão, e Limites do Poder Global, que saiu publicado no livro O Poder Americano, de 2004; e de forma ainda mais clara, depois do meu livro seguinte, sobre O Poder Global, publi-cado em 2008. Por fim estou fechando um novo livro que se chamará História, Estratégia e Desenvolvimento. Para uma Geopolítica do Capitalismo, que será pu-blicado pela Editora Boitempo, e que procura articular e sintetizar a minha visão sobre a velha “questão do desen-volvimento”, vista da ótica da economia política internacional e do programa de pesquisa sobre o “poder global”.

Por isto hoje se pode dizer que existem no PEPI dois programas de pesquisa fundamentais, o da economia política, e o do poder global. Dois ângu-los que me parecem ser perfeitamente compatíveis, duas maneiras de olhar te-oricamente para o mesmo objeto, duas maneiras de responder às mesmas per-guntas.

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02 • 201540 PEPIANOS

Fiori, você escreveu o seu Prefácio ao Po-der Global na inglaterra, não foi? Conte--nos um pouco por que foi lá...Fiori: É verdade, eu escrevi o Prefá-cio no final do meu pós-doutoramento na Faculdade de Economia e Política da Universidade de Cambridge. Foi um período magnífico em que eu me enterrei na British Library e me dedi-quei a pesquisar dia e noite sobre dois temas fundamentais: o das guerras na construção da civilização europeia e do capitalismo; e a civilização chinesa. Foi no final deste período que eu consegui formular melhor para mim mesmo o que se poderia chamar de “paradoxo de Petty”. Foi naquele momento que eu descolei da economia e da história e co-mecei a trabalhar no que às vezes cha-mo de “fenomenologia do poder’ ou de “lógica metafisica do poder”. As ideias já vinham amadurecendo fazia tempo, mas foi ali que eu mudei efetivamente de paradigma e comecei a trabalhar no meu novo programa de pesquisa, que partia de três premissas fundamentais: o poder se define por si mesmo, porque ele está no princípio e não existe nada antes nem depois dele; o poder é uma “energia” que se expande a partir de si mesma sem necessitar de nenhuma materialidade específica: e terceiro, que o poder é triangular e sistêmico, constituindo um sistema que não tem limite e se expande continuamente. Depois eu voltei para a história e a eco-nomia, mas meu olhar era inteiramen-te diferente. E é esta nova perspectiva que eu apresento e desenvolvo neste novo livro de que falei, História, Estra-tégia e Desenvolvimento, onde retomo o tema e a questão do desenvolvimento a partir da minha visão do poder, e dou uma grande importância às mediações geopolíticas e ao processo de constru-ção da “vontade estratégica”.

E quais os seus novos planos e projetos de-pois deste livro?Fiori: Seguir pesquisando e escreven-do, mas acho que agora vou me afastar um pouco da economia e dedicar-me mais ao tema das relações entre o po-der e a ética no campo internacional. Ética, religiões e civilizações... Talvez mais conectado com a filosofia e a psi-cologia do que com a economia.

Foi no final deste período que eu consegui formular melhor para mim mesmo o que se poderia chamar de “paradoxo de Petty”. Foi naquele momento que eu descolei da economia e da história e comecei a trabalhar no que às vezes chamo de “fenomenologia do poder’ ou de “lógica metafisica do poder”.

VISÃO DE MUNDO José luís Fiori

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Então, a gente queria terminar com uma espécie de provocação. Assim, se a gente fosse resumir esta entrevista e a sua tra-jetória intelectual, diria mais ou menos assim: que o jovem estudante Fiori, quiçá anarquista nos tempos do Chile, passou por várias transformações intelectuais, e chegou hoje, ou talvez já há alguns anos, ao teórico que discute o poder como organi-zador do sistema internacional. Você acha que aquele Fiori que tinha pressa e que es-tava chegando no Chile já estava querendo resolver a vida e voltar? Como é que você acha que ele veria a figura do Fiori de hoje?Fiori: Eu acho que ele ficaria um pou-co chateado comigo. E eu compreen-do perfeitamente sua chateação. Mas do meu ponto vista de hoje existe uma grande continuidade que atravessa mi-nha vida e que une os dois Fiori de que vocês falam: a rebeldia e uma curiosi-dade intelectual infinitamente elástica. Naquela época eu era um rebelde utó-pico e hoje me sinto um rebelde otimis-ta; naquela época eu era um rebelde romântico e hoje me sinto um rebelde realista. Minha forma de ler e interpre-tar a história mudou, mas eu sigo me sentindo um inconformista.

Eu lembro, como se fosse hoje, eu tinha 17 anos e fui falar num seminário secundarista, em São Borja, na cidade

de Getúlio e do Jango. Naquela época era uma espécie de capital do latifúndio gaúcho. Pois lá naquela terra eu resol-vi falar e defender entusiasticamente a Reforma Agrária, falando para meninos e meninas muito jovens. Mas estavam presentes também vários pais destes estudantes, e um deles pediu a palavra e me acusou de estar “pervertendo os colegiais da cidade com minhas ideias revolucionárias...” Na mesma hora eu me levantei e repliquei ao cavalheiro dizendo que eu estava defendo a jus-tiça e que jamais me amedrontaria ou deixaria de ser um rebelde, etc. etc., e por essa linha afora... Logo em seguida os meus colegas estudantes me tira-ram da sala e me pediram que eu fosse imediatamente embora da cidade, que estava correndo risco de vida. Todos di-ziam: “Fiori, pega um ônibus, vai embo-ra, esses caras vão te dar um tiro”. E na verdade pequei o ônibus e fui embora de São Borja, e dois anos depois peguei de novo um ônibus e fui embora do Bra-sil, e depois o mundo e as minhas ideias giraram e giraram, mas acho que nunca deixei de ser um rebelde e um anarquis-ta, no plano pessoal... (risos). E pretendo seguir sendo até o fim da vida, uma pes-soa movida pelo meu “inconformista in-telectual” radical!!!

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02 • 201542 PEPIANOS

Pedro Rocha

ALÉM DA FRONTEIRA

frAnçAA República Francesa é uma República Unitária Semi-presidencialista e é a segunda maior economia da Europa.

A École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), situada em Paris, é uma instituição acadêmica de pesquisa e pós--graduação orientada para o estudo das ciências humanas. História, economia, po-lítica, sociologia, antropologia, linguística, direito, arqueologia, filologia, demografia, geografia, psicologia e filosofia são os cur-sos oferecidos.

Possui o status de grand établissement, que a distingue como um dos principais centros de excelência acadêmica da Fran-ça. O instituto engloba 47 diferentes cen-tros de estudos, contendo cerca de 800 pro-fessores-pesquisadores e 3000 estudantes de mestrado ou doutorado. As atividades principais são organizadas em torno dos seminários, dos programas de pesquisa, dos ciclos de conferências e de atividades editoriais.

École des Hautes Études en Sciences Sociales - EHESS

origeM MArcAdA Por coMBAtes AcAdêMicosA origem da EHESS remete ao programa de pesquisa do grupo de historiadores funda-dores da escola dos Annales, como Marc Bloch, Lucien Febvre e, num momento pos-terior, Fernand Braudel. No contexto do entreguerras, a revista Annales, économies, sociétés, civilisations (1929) reunia pesquisadores de di-ferentes áreas das ciências sociais com a proposta de discutir questões metodoló-gicas e defender a interdis-ciplinaridade nas ciências humanas.A abordagem acadêmica dos artigos buscava responder às questões econômicas, políticas e sociais próprias de seu período, servindo assim como contraponto à perspec-tiva positivista francesa e ao historicismo factualista da escola alemã.No pós-Segunda Guerra, Lu-cien Febvre e Fernand Brau-del se apoiaram na influência internacional alcançada pela revista para reivindicar a fun-dação de uma seção na École Pratique des Hautes Études

(EPHE), de maneira a obter com isso uma estrutura insti-tucional, com espaço físico e meios materiais - bibliotecas, salas para seminários etc. A EPHE, fundada em 1868, já possuía uma consistente estrutura administrativa e reunia então cinco seções organizadas em torno de es-tudos em matemática, física e química, ciências naturais e fisiologia, ciências históri-cas e filológicas e ciências religiosas.Em 1947, com apoio político do governo francês e parcial suporte financeiro da Funda-ção Rockfeller, uma VI seção orientada para as “ciências econômicas e sociais” foi criada sob a direção de Lu-cien Febvre. O projeto dos Annales com isso obtinha um guarda-chuva institucional próprio.Em 1956, será Fernand Brau-del quem irá assumir a dire-ção. Considerado maior expo-ente da segunda geração dos Annales, Braudel irá fazer da abordagem estruturalista e de longa duração a principal característica dos estudos historiográficos produzidos pelos pesquisadores da VI

seção da EPHE durante as décadas de 1950 e 1960. Nos anos 1970, já sob a influên-cia dos trabalhos de autores como Jacques Le Goff e Pier-re Nora, a instituição se trans-forma no principal centro da chamada “nouvelle histoire”, na qual serão privilegiadas abordagens sobre a história das mentalidades e a história das representações.Será em 1975 que a VI se-ção da EPHE irá se tornar autônoma, transformando--se assim na École des Hautes Études en Sciences Sociales(EHESS). A emanci-pação administrativa permi-tiu que a nova instituição emi-tisse diplomas de doutorado e mestrado, além de viabilizar a ampliação do quadro de pesquisadores e centros de estudos.

PercePção internAcionAlA influência dos trabalhos produzidos por autores asso-ciados à EHESS é particular-mente percebida na Europa e na América Latina, e se estende aos diferentes domí-nios das ciências humanas. Um fator que contribui para

Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (Paris)

a considerável internacionali-zação de sua produção cientí-fica é uma declarada vocação para receber estudantes de outros países em seus cursos de mestrado e doutorado.

hoje: recortes trAnsversAis e interdisciPli-nAridAdePara além dos centros de estudos e numerosos se-minários nas áreas de eco-nomia, história, sociologia, antropologia e filosofia, é interessante mencionar para os estudantes de relações internacionais os centros de estudos em “áreas culturais”. Neles, o objetivo é reunir através de seminários e con-ferências pesquisadores de diferentes formações das ciências humanas para tratar de assuntos associados a uma determinada região do mundo.Disso resulta um recorte transversal que visa ex-por diferentes dimensões correlatas sobre determi-nados fenômenos sociais localizados. Neste aspecto, verifica-se algo da concepção original dos Annales que per-

siste, referente à abordagem interdisciplinar dos assuntos associados ao homem e à sociedade, assim como a transversalidade dos questio-namentos e das linhas meto-dológicas.O programa de pesquisa origi-nal que fundou a revista dos Annales certamente passou por diversas modificações. Hoje não é possível apontar uma vertente hegemônica que oriente os estudos. Entre seus centros de pesquisas, encontramos orientações associadas às mais variadas vertentes de estudos so-ciais, do marxismo ao pós--modernismo, da economia heterodoxa à neoclássica. Existem igualmente grupos de trabalho em história orien-tados pelo método da longa duração e para a formação das “economias-mundo”.Aos que se interessam por um estágio de pós-gradua-ção, a EHESS dispõe da op-ção “recherches doctorales libres”, com acesso a toda a estrutura da instituição, inclusive cursos de línguas. É necessário, para tanto, ter um professor local que aceite supervisionar a estadia. Para

aqueles interessados em obter também o diploma da EHESS, é possível empreen-der um sistema de “co-tutel-le”, no qual o supervisor no exterior assume o status de co-orientador. Neste caso, ao final do doutorado, a mesma Tese deverá ser defendida em duas bancas, na instituição de origem e na EHESS.

links úteisPágina eletrônica da EHESS: www.ehess.fr/fr/Os centros de pesquisa associados à EHESS: www.ehess.fr/fr/recherche/centres/Informações sobre as formas de estágio na instituição: www.ehess.fr/fr/international/bureau-cooperations/Pedro Rocha foi Intercambista do PEPI na EHESS em 2012/2013:Pedro Rocha – [email protected]

Capital: ParisÁrea: 543.965 metros quadradosPopulação: 66 milhões (2014)PiB (dólares comerciais): 2,846 trilhões (2014)

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