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A MULTIFATORIEDADE DA VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER E OS

TRAÇOS PERSONALÍSSIMOS DE VÍTIMA E AGRESSOR: A NECESSIDADE

DE POLÍTICAS PÚBLICAS TRANSDICIPLINARES PARA O REEQUILÍBRIO

DAS DIMENSÕES DE PODER

Josiane Petry Faria1

Lucas Silva de Oliveira2

Universidade de Passo Fundo, Brasil

RESUMO

O ciclo de poder e dominação da mulher, estimulado por uma sociedade patriarcal, e, há anos recorrente é o principal agente propulsor da violência contra a mulher. Isso posto, a presente investigação preocupou-se em analisar especificamente o fenômeno acima qualificado, no que tange ao traço de um perfil dos sujeitos – tanto ativo quanto passivo –, a fim de verificar a importância dessas supostas características no âmbito da reincidência, considerando os fatores que a impulsionam e as consequências que daí advém. Assim, utilizando-se do método dedutivo se pode visualizar a necessidade de combate à condição de submissão e invisibilidade que se associa a figura feminina e, para tanto, imperioso políticas públicas afirmativas e transdisciplinares para atender a complexidade do problema de modo a reequilibrar as dimensões do poder e proporcionar o empoderamento da mulher.

PALAVRAS-CHAVE: Dimensões de poder; políticas públicas transdisciplinares; multifatoriedade; reincidência; violência de gênero.

INTRODUÇÃO

A imutabilidade das relações de poder e dominação encontra-se encrustada na

história da sociedade desde as primeiras intervenções comunitárias registradas; assim,

durante a formação das mais primitivas civilizações, sabe-se que já existiam hierarquias

1 Doutora em Direito pela Universidade de Santa Cruz do Sul, com Bolsa Capes Prosup e PDSE na Universidade de Sevilha, Espanha; Professora adjunto, Coordenadora de Extensão e Coordenadora do Projur Mulher e Coordenadora do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, gênero e Diversidade da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; [email protected] Acadêmico da Faculdade de Direito, Estagiário do Projur Mulher e membro do Grupo de Pesquisa Dimensões do Poder, gênero e diversidade da Faculdade de Direito da Universidade de Passo Fundo; [email protected].

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obedecendo à lei da força, em tempo que a igualdade jamais fora estimulada. Mais

especificamente, as relações de gênero – nas quais o homem, branco e patriarca

assentava-se no topo da pirâmide social – foram as propulsoras de um método de

repressão e manutenção do poder, caracterizado pela violência.

O discurso contemporâneo, tendo a democracia como um dos seus corolários,

permanece reproduzindo desigualdades e disseminando estratégias de dominação pela

linguagem. A ótica feminina na análise das relações humanas e sociais ainda é escassa,

percebe-se a resistência masculina em dominar e a aceitação social desse fenômeno.

A literatura não nega a decisiva participação feminina, mas coloca na penumbra

a participação das mulheres, elemento esse que tem sido determinante para a obtenção e

sustentação de conquistas cidadãs, contudo não suficiente. Informação não basta,

conhecimento não basta, sensibilização e atitude são imprescindíveis.

Nesse ponto, importa verificar os fenômenos causadores da violência de gênero,

identidade os perfis e ainda entender os motivos da repetição das posições de agressor e

vítima para compreender o complexo universo e planejar mecanismos e estratégias de

ação e combate da violência por meio redistribuição das relações de força e dimensões

do poder.

A multifatoriedade da violência contra a mulher e os traços personalíssimos de

vítima e agressor

Visualiza-se que a desigualdade entre gêneros, advinda de fatores políticos,

econômicos e culturais e estimulada nas práticas de convívio social século após século,

ao lado da busca e manutenção do poder são as principais propulsoras da violência

doméstica. Na mesma linha, a mulher, tida como o ser mais vulnerável, é o indivíduo

que mais tem a perder com a estratificação do meio em que vive, isto é, ao sofrer com a

repressão e a imutabilidade de práticas violentas tão logo dentro do próprio lar – diga-se

seu local de refúgio –, tende a padecer com a reprodução das mesmas ações

externamente.

Em sede de definição, Azevedo e Guerra (2003) leciona que quando se refere

que o conceito de violência doméstica reflete uma relação assimétrica e hierárquica de

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poder com fins de dominação, exploração e opressão e designa dois polos de uma

relação interpessoal de poder, sendo de um lado um mais forte, e do outro, o mais fraco.

De acordo com Cesca (2004), pode-se pensar na violência intrafamiliar como

toda ação ou omissão que prejudique o bem-estar, a integridade física, psicológica ou a

liberdade e o direito ao pleno desenvolvimento de outro membro da família. Pode ser

cometida dentro ou fora de casa por algum membro da família, incluindo pessoas que

passam a assumir função parental, ainda que sem laços de consanguinidade, e em

relação de poder à outra. Portanto, quando se fala de violência intrafamiliar deve-se

considerar qualquer tipo de relação de abuso praticado no contexto privado da família

contra qualquer um de seus membros. Deve-se ainda ressaltar que o conceito de

violência intrafamiliar não se refere apenas ao espaço físico onde a violência ocorre,

mas também às relações em que se constrói e efetua.

Nessa senda, considerando que o sujeito tende a reproduzir o que visualiza, uma

vez que a criança cresce a par da violência praticada no ambiente doméstico, não

contando com práticas educativas que a estimulem ao contrário, terá grandes chances de

tornar o fato um hábito e reiniciá-lo em sua própria família, alimentando assim um ciclo

vicioso de criminalidade e dominação. Seguindo a mesma linha, o parceiro, ao agredir a

companheira, não sendo denunciado e recebendo a sanção adequada, desenvolverá

internamente um sentimento de impunidade, encorajado a executar o delito do mesmo

modo, caindo na reincidência. Ao iniciar com uma agressão psicológica e não ter seu

comportamento refreado, a atitude do ofensor poderá resultar em uma consequência

letal para a vítima, acarretando em danos para todos os que cercam o ambiente familiar.

Um levantamento realizado pelo Ministério Público do Amapá, a partir do Centro de

Apoio Operacional de Defesa da Mulher (2015), apontou que 1.342 mulheres foram vítimas

de violência em 2014, em Macapá. Dessas, 77% das vítimas são reincidentes e 15% fizeram

a ocorrência pela primeira vez. Ainda, relata a pesquisa que a violência geralmente ocorre

no turno da noite, sejam 35% dos casos, e ainda 91% na própria residência,

frequentemente motivada por razões passionais, ciúmes ou não aceitação da separação,

os quais juntos representam 66% das ocorrências. Em 21% dos casos os agressores

estavam sob efeito de álcool e em 4% sob efeito de drogas. O estudo, ao acompanhar a

estatística nacional, reflete a realidade brasileira em termos de violência doméstica, de modo

a questionarmos as causas principais de sua ocorrência.

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Passando a analisar a questão fatorial, tem-se, segundo o Banco Mundial (2012),

que o risco de violência doméstica diminui com o aumento de nível de renda do lar e

com os anos de educação da mulher, posto que, em tempo que adquire maior grau de

formação e independência, obtém significativamente representação e poder familiar,

passando a avaliar do ponto de vista instruído o contexto em que se insere.

Do contrário, se faz evidente que a grande maioria das vítimas de violência gênero

já possui um perfil pré-determinado: observa-se serem mulheres de baixa escolaridade, sem

expectativa de autonomia e autossuficiência; tal condição reflete na dependência financeira

do marido, fato que, consequentemente, resulta na permanência do convívio entre vítima e

agressor, estimulando a prática do medo e a progressão de ameaças, tanto pessoais quanto

familiares, em tempo que se eleva o grau de vulnerabilidade da mulher, passiva a sua própria

condição de subjugada.

Paralelamente, verificam-se no sujeito ativo traços que permitem estabelecer um

padrão característico. Posto que o indivíduo, ao crescer em um ambiente violento, tomará

para si o hábito da prática, desenvolvendo psicologicamente certa passividade frente ao

assunto. Aliado a isso, a maioria dos ofensores – assim como as vítimas – possui baixa

escolaridade, nível ocupacional reduzido e pouco acesso à informação.

Torna a relação ainda mais insustentável o uso frequente de álcool, que, de acordo

com Myers (2000), reduz a autopercepção e a capacidade de avaliar consequências; ao

mesmo tempo, eleva-se a agressividade do ofensor e o torna ainda mais impulsivo,

estimulando a prática delituosa. Em concomitância, segundo estudos, o uso de drogas reduz

a capacidade de controle e aumentam no indivíduo a sensação de persecutoriedade. Os

motivos passionais – como a não aceitação do fim do relacionamento – também são

rotineiros, caracterizados principalmente pelo sentimento de posse do homem sobre a

mulher, que sabe-se historicamente recorrente.

Tratando o assunto de forma técnica, no Brasil, reincidente apenas é o sujeito que

comete nova prática delituosa após condenação transitada em julgado; no entanto,

considerar-se-á o termo como reincidente o indivíduo que comete infrações de forma

contínua. Desse modo, conforme divulgação do Mapa da Violência (2012), por Waiselfisz, a

reincidência da violência contra a mulher possui um percentual consideravelmente elevado,

de forma mais recorrente a partir dos trinta anos de idade da vítima.

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Assim, tendo em vista os dados antes apresentados, bem como os fatores que

emanam na maior parte dos casos, não se torna difícil analisar a causa da reincidência nos

casos de violência doméstica. Ao encontrar-se nas condições descritas, a mulher se insere no

submundo da violência, e acaba não visualizando para si mesma uma possibilidade de

empoderamento e independência. Ao conviver com as condições personalíssimas do

companheiro e sofrer com abusos e ameaças, teme por um perigo vital, não restando-lhe

opções se não aceitar a situação como parte de sua realidade. Adequado, portanto, torna-se o

ensinamento de Miranda (1998), ao dizer que o campo da violência doméstica é um

"terreno movediço", em que se mesclam fantasia e realidade, cena que causa horror e

curiosidade.

Buscando certa exemplificação aliada à temas da realidade, torna-se válida a

união entre o presente estudo e a literatura, visualizada no texto de Clarice Lispector

(1998), que, ao tratar das perspectivas de gênero e sua importância no convívio social,

aduz a necessidade de proteção da figura feminina. Veja-se: "Como a nordestina, há

milhares de moças espalhadas por cortiços, vagas de cama num quarto, atrás de balcões

trabalhando até a estafa. Não notam sequer que são facilmente substituíveis e que tanto

existiriam como não existiriam. Poucas se queixam e ao que eu saiba nenhuma reclama

por não saber a quem. Esse quem será que existe?". O alguém a quem reclamar,

instituição a quem se refere a autora, é o Estado, incumbido da representação da mulher

em casos de violência. Assim, verifica-se o grau considerável de reincidência na quantidade

evidente de boletins de ocorrência registrados pelas vítimas, muitos em um curtíssimo

espaço de tempo; tal situação realça a necessidade da busca pela efetiva tutela jurisdicional

do Estado, ora responsável pelo garante da dignidade da pessoa humana. A demanda, dada

após o rompimento das barreiras criadas pelo medo e caracterizadas pela vergonha de

admitir os abusos e esclarecer o contexto em que se encontra, demonstra a procura da vítima

pela proteção pessoal e familiar, cumulada com a primordialidade de um auxílio para

vencer a etapa de dominação e opressão, da qual não merece fazer parte.

A presente análise recorre diretamente à necessidade de fortalecimento das

políticas públicas de proteção à mulher vítima de violência, buscando atendimento

assistencial em diversas áreas, visando a não recondução desta ao ciclo reincidente e

humilhante do qual se associa, possibilitando assim a resolução dos conflitos e

consolidando a igualdade de gênero, ao mesmo tempo em que se busca seu

empoderamento e se fomente sua dignidade.

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Para que se evite a propagação da violência é ímpar também que se trabalhe com

o sujeito ativo, incluindo-o no protagonismo da resolução do problema. É indispensável

que se vá além das medidas judiciais, organizando a participação do agressor em

programas sócio-educativos articulados a diversas áreas, buscando sua reeducação e

recuperação. Ao mesmo tempo, imprescindíveis são as campanhas contra a violência, as

quais veiculadas e estimuladas desde a infância até a fase adulta, visem reformar o

cenário delinquente que se constrói dentro dos lares. Nessa senda, adequada é a lição de

Ana Lúcia Sabadell, quando noticia que "a melhor forma para combater a violência

contra a mulher é ensinar a todos, e sobretudo aos que estão em formação, que homens e

mulheres merecem igual respeito e consideração. Só a mudança de mentalidade, isto é,

o distanciamento da cultura patriarcal, permitirá erradicar a violência contra as

mulheres." 

Haja vista que a inserção da mulher na gerência do poder – tanto intra quanto

extra-familiar – é condição fundamental para a democratização de um sistema de justiça

social sério e eficaz, não haveria do que se falar em violência promovendo desigualdade

de gênero simplesmente pela promoção de uma estratificação social. No entanto, a

prática contínua e reiterada de atos eminentemente patriarcais ainda serve de estímulo à

propagação de tamanhas disparidades, impedindo a retirada da condição de

invisibilidade e subordinação que recai sobre a mulher.

Dado o exposto, concebe-se hoje um conceito multifatorial de violência, que

engloba questões sociais, raciais, econômicas e de geração, isso considerando todos os

estimulantes antes apresentados. O combate específico a cada um deles, a partir de

ações interdisciplinares e transversais conduzidas na sociedade, torna-se substancial

para a erradicação da reincidência e consequente redução dos índices de criminalidade,

em direção à igualdade de gênero. Fundamentos que emanam abertura para a

continuidade da hierarquia vigente, os quais empreendem que a figura feminina

continue a ver a condição inferior como parte natural de sua identidade, devem,

substancialmente, ser extintos, para que se alcance um conceito prático de sociedade

harmônica e ideal.

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Políticas públicas transdisciplinares para o reequilíbro das dimensões de poder

De acordo com Organização Mundial de Saúde a violência demanda estudos

constantes para que ponderações possam ser feitas e a partir de então formuladas

estratégias de entendimento e enfrentamento. Trata-se de fenômeno que deita suas

raízes sobre múltiplos fatores como biológicos, sociais, culturais, econômicos e

políticos, sendo inviável a pretensão de um conceito único e de ordem científica. Essa

impossibilidade é fruto do entendimento de que se trata de fenômeno que se apresenta

em variadas formas e é baseada no parâmetro social vigente para comportamentos

aceitáveis e inaceitáveis. Portanto, passa pelo filtro da cultura e dos valores morais

presentes. Divulga a Organização Mundial de Saúde (2012):

A violência é um fenômeno extremamente difuso e complexo cuja definição não pode ter exatidão científica, já que é uma questão de apreciação. A noção do que são comportamentos aceitáveis e inaceitáveis, ou do que constitui um dano, está influenciada pela cultura e submetida a uma contínua revisão à medida que os valores e as normas sociais evoluem.

A complexidade da violência se multiplica diante das diversas nuances e

formatos que poderá atingir, mais intensamente sentidas no caso da vítima feminina.

Sinteticamente: a) violência física, qualquer conduta que ofenda o corpo da mulher

provocando-lhe lesão corporal; b) violência psicológica, conduta que cause dano de

ordem emocional com diminuição ou inibição – total ou incompleta – da autoestima, ou

prejudique de qualquer maneira o desenvolvimento da saúde psicológica e

autodeterminação. Resumindo, toda ação ou omissão que dela decorra humilhação,

ridicularização, sofrimento e/ou medo; c) violência sexual, qualquer conduta que

obrigue a mulher a participar, assistir ou manter relação sexual de qualquer ordem não

desejada. Quaisquer atos referentes ao uso da força ou da intimidação que possam dar

causa a casamentos, prostituição, aborto, comercialização da sexualidade não queridos

pela mulher; d) violência patrimonial, quando se configuram retenção, subtração,

destruição, violação de bens, sejam eles objetos, valores, instrumentos, ferramentas de

trabalho e documentos; e) violência moral, é aquela que se configura em calúnia, injúria

e difamação. Ferem a honra o sentimento da mulher, na maneira como ela se observa e

na modo como os demais componentes do corpo social a entendem, isto é, ofende sua

imagem.

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As diferentes nuances da violência contra a mulher podem ocorrer isoladamente

ou em associação, por atos ou omissões, por palavras ou gestos, ao vivo, por meio de

terceiros ou ainda se utilizando dos recursos da tecnologia da informação e da

comunicação. Observe-se que foram descritas as formas de violência identificadas e

catalogadas para efeitos de estudos e formatação de normas jurídicas, no entanto

importante não olvidar os aspectos clandestinos e invisíveis da violência simbólica

presente nos rótulos e estigmas. Pensar que estar em situação de violência é escolha

pessoal, covardia ou fraqueza é discriminação e portanto grave violência.

Nesse sentido há, portanto

uma intimidade indisfarçável entre história, violência e poder. No sentido analítico, podemos falar em cultura da violência e na violência intrínseca de sua própria banalização, especialmente quando ouvimos ou lemos afirmações como “não adianta”, “isso faz parte da política”. Mas chega de lamentações, pois não queremos nos tornar a voz das carpideiras, que choram por encomenda a desgraça da humanidade alheia. (COLUSSI; DIHEL 2008, p. 13)

Outro fator interessante é que no caso da violência contra a mulher, sobretudo na

doméstica ou familiar o estigma atinge principalmente e com mais severidade a vítima

ao contrário das demais condutas violentas, onde a rotulagem adere somente ao

agressor. Todavia, essa cultura está se modificando por meio do comportamento

feminino, evidenciado nas práticas sociais, movimentos de luta, politicas públicas e

apoio midiático.

Na análise da violência contra mulher é crucial não se contaminar pela ideia

mecanicista de que as mulheres são simplesmente dominadas pelos homens e

unicamente vitimadas por seus companheiros. “Uma democracia com pilares na cultura

patriarcal é inoperante, vazia ou inexistente, o que consequentemente faz do direito um

mero instrumento de estratégias de grupos dominantes.” (COSTA, 2010, p. 391)

A ultrapassada percepção dual deve ser substituída pela interação dinâmica. O

mesmo acontece com a vida doméstica/privada, a qual se institucionaliza abrindo o

espaço destinado ao afeto e as individualidades para a burocracia presente no ambiente

público, de maneira que a subjetividade passa a estar sob o crivo das relações

interpessoais. Ao invés de desnaturar ou desqualificar a vida privada o movimento

promove a interação, a harmonia de valores e princípios, fazendo com que o espaço

privado deixe de ter uma soberania particular impenetrável. Deixou de ser temática de

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ordem unicamente privada para se converter em problema social com repercussão na

saúde pública.

A Lei n. 11.340/06 – Lei Maria da Penha - é resultado, em grande medida, da

consciência de que não basta acesso à Justiça, é preciso acesso à Justiça qualificada.

Qualificação essa desviada no cenário dos Juizados Especiais Criminais, onde o palco

do diálogo e da mediação cedeu à pressa, ao imediatismo e a desvalorização das dores

humanas, sobretudo quando se fala em relações de gênero envoltas pela domesticidade,

onde os amores e os rancores se amplificam.

Os problemas decorrentes da violência de gênero exigiam e exigem trato

diferenciado respeitando as peculiaridades de uma cultura masculinizada penetrada na

sociedade ao longo de séculos e gozando de ares de normalidade. O problema privado,

depois social assumiu a face de problema normativo, de incapacidade do modelo

tradicional. Era premente a necessidade e a urgência de um novo modelo, haja vista o

assentimento social do discurso feminista de crítica feroz e genuína aos Juizados

Especiais, acusados de banalizar a violência e fragilizar a figura feminina. Inadmissível

que o desrespeito à mulher terminasse com pagamento de cestas básicas ou outra

medida alternativa.

Assim, o fundamento e a prática do controle social passam a se ater diretamente

aos problemas da dominação cultural, política e econômica de certos grupos sobre

outros. A resposta social ao desvio nas sociedades modernas e pós-modernas se focam

em formas de controle formal e institucional e ao mesmo tempo na procura de técnicas

fundadas mais na persuasão e menos na coerção, utilizando para tanto meios de

comunicação de massa. (AZEVEDO, 2010)

Pela simplificação que introduz na realidade, a violência viola a complexidade dos elos existentes entre as coisas e os homens. Uma situação conflituosa resulta sempre de uma amálgama, de uma imbricação muito complexa de inúmeras causas. Para resolver o conflito, é preciso tentar agir ao mesmo tempo sobre todas as causas que o criaram. A violência é incapaz de elevar a cabo essas diferentes acções. Devido ao seu mecanismo simplificador, ela retém apenas uma causa e só age numa direcção. (MULLER, 1995, p. 165)

Quando se pretende enfatizar a não-violência, geralmente é no sentido de opção,

de escolha dos indivíduos para a condução da sua vida, mas não se admite como regra,

sobretudo na pauta política, uma vez que se afirma a inerência da ação violenta como

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recurso necessário. Viver em ambiente de respeito aos direitos humanos não significa

ausência de conflitos, mas o tratamento dos mesmos de forma não violenta. Enfim, se

deve buscar o alinhamento entre meios e fins, pois se o objetivo é a conciliação ilógica,

despropositado é tentar atingi-la por meio da violência e da repressão. “O processo de

implementação de políticas públicas com a transversalidade de gênero, no entanto,

encontra-se limitado pela fragilidade política dos mecanismos institucionais de defesa

dos direitos da mulher.” (PRÁ, 2001, p. 201)

O discurso feminista mantém-se preso ao excessivo recurso do sistema penal,

exigindo a criminalização de novas condutas, a redefinição e novas nomenclaturas para

os tipos penais existentes e ainda o agravamento de penas e a descriminalização do

aborto. Esse excesso promove uma elevação exagerada das expectativas quanto ao

próprio poder do sistema penal e ainda da estrutura punitiva. Isso, por si só, conduz a

um processo de perda de legitimidade e de descrédito do mecanismo punitivo do

Estado, uma vez que, ao contrário do discurso, a vida das mulheres não se resolve com

uma sentença penal condenatória. A estrutura penal foi construída para o protagonismo

do réu, o qual é acusado e ao mesmo tempo recebe proteção enquanto a vítima ocupa a

postura de meio de prova somente. O direito penal age sobre o passado e não possui

essa pretensão de transformador da realidade social, o que incumbe às políticas

públicas.

Veja-se:

A natureza jurídica do direito penal é por excelência da negatividade e da repressividade. O poder nele inscrito, contudo, não é somente repressivo, pois traduz discurso, o qual de uma parte, legitima a lógica seletiva com que opera o sistema penal e, de outra, dá sustentabilidade a um paradigma patriarcal que, de sua manifesta função de proteção à sua função latente e efetiva de subordinação e inferiorização da mulher, funciona como um suporte e dispositivo institucional agindo na (re)produção discursiva de gênero, operando, ainda, na construção discursiva de categorias (tipos de mulheres).3

Necessário se faz assimilar a complexidade das relações de poder, das

dimensões do gênero e as nuances da violência contra a mulher, a fim de se

fundamentar o discurso na máxima eficácia dos direitos humanos fundamentais, tendo

como objetivo a proteção e a emancipação da mulher, por meio do investimento maciço

3 WERLE, Vera Maria. O direito penal sob uma perspectiva de gênero. In: BOFF, Salete Oro. (org.) Gênero: discriminações e reconhecimento. Passo Fundo: Imed, 2011, p. 133.

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em políticas públicas de incentivo e promoção do empoderamento de base. Importa

construir estruturas e mecanismos de diálogo utilizando-se do empoderamento feminino

para ocupação do espaço público e intensificação dos processos de fortalecimento da

cidadania de gênero em busca da manutenção da igual dignidade.

CONCLUSÃO

Evidencia-se com isso que, sem esquecer a importância do aspecto político - um

dos maiores entraves para se conseguir a igualdade de gênero – exige ênfase a

necessidade do empoderamento feminino na base, ou seja, na consciência e na atitude

não discriminatória e prol da cidadania de gênero. Meritório potencializar dimensões

formais de atuação, mas sem olvidar que o maior desafio democrático reside primeiro

nas instâncias mais elementares da vida.

Gize-se que o reconhecimento das lutas femininas se deve, fundamentalmente,

ao esforço das próprias mulheres, as quais além de esclarecer as demandas específicas

foram a campo na busca de estratégias e construção de atividades para elaboração de

políticas públicas de gênero e ainda todas aqueles vinculadas aos direitos humanos.

Porém, a luta por igualdade de gênero e redução dos índices de violência não se trata

somente de um encargo das mulheres, mas sim de toda a sociedade.

Ao mesmo tempo importante frisar que em se tratando de Estados ocidentais e

de discursos democráticos a missão não cabe exclusivamente à mobilização social

espontânea e genuína. Enfim, a violência de gênero e repetição da figura de vítima e

agressor demonstra que o problema ultrapassa o asilo inviolável do lar e a

intimidade/privacidade das relações afetivas, eis que reflete em outras camadas e setores

do poder a demandar a atuação estatal, por de um complexo de políticas públicas

afirmativas sedimentadas no objetivo da igualdade de gênero e na metodologia do

reequilíbrio das relações de poder.

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REFERÊNCIAS

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AZEVEDO, Maria Amélia, & GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Infância e violência doméstica: guia prático para compreender o fenômeno. Telecurso de Especialização. Módulos 1 A/B – 2 A/B. São Paulo: LACRI – Laboratório de Estudos da Criança, 2003.

AZEVEDO, Rodrigo Ghiringhelli de. Sociologia e justiça penal: Teoria e prática da pesquisa sociocriminológica. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.

BANCO MUNDIAL (2012). Igualdade de gênero e desenvolvimento. Disponível em <http://siteresources.worldbank.org/INTWDR2012/Resources/7778105-1299699968583/7786210-1315936231894/Overview-Portuguese.pdf> Acesso em 17 fevereiro 2016.

CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO DA COMUNIDADE VIRTUAL DE TRABALHO MULTIDISCIPLINAR PARA O ESTUDO DA VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA. http://cvv-psi.info. Acesso em 15 de março de 2012.

CESCA, Tais Burin. O papel do psicólogo jurídico na violência intrafamilar: possíveis articulações. Disponivel em <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-71822004000300006&lang=pt> Acesso em 4 fevereiro 2016. COLUSSI, Eliane Lucia; DIEHL, Astor Antônio. Cultura e pedagogia da violência: o caso dos Vargas. Passo Fundo: UPF, 2008.

COSTA, Marli M.M. da. Justiça restaurativa e alienação social. In: LEAL, Rogerio Gesta; REIS, Jorge Renato dos. (orgs.) Direitos sociais e políticas públicas: Desafios contemporâneos. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2010LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.

MIRANDA, H. C. J. Psicologia e Justiça: a Psicologia e as Práticas Judiciárias na Construção do Ideal de Justiça. Revista Ciência e Profissão, São Paulo, n.18, p. 28-37, 1998. 

MYERS, D.G. Psicologia Social. 6 ed. Rio de Janeiro, 2000: LTC.

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