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DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO: IMPACTOS NAS FINALIDADES EDUCATIVAS ESCOLARES E NOS SABERES DISCIPLINARES Yves Lenoir Cap. 4 do livro: LENOIR, Y.; ADIGÜZEL, O.; LENOIR, A.; LIBÂNEO, JOSÉ C.;TUPIN, F.. (Org.). Les finalités éducatives scolaires Une étude critique des approches théoriques, philosophiques et idéologiques. Saint Lambert (Quebec, Canadá): ÉDITIONS CURSUS UNIVERSITAIRE, 2016. Introdução Há mais de 2000 anos, Salústio (41 a.C.) escrevia, em seu texto sobre a Conspiração de Catilina, Vimos crescer inicialmente a paixão pelo dinheiro, depois pela dominação; e essa foi a causa de tudo o que se fez de mal. A avareza arruinou a boa-fé, a probidade, todas as virtudes para substitui-las pelo orgulho, a crueldade, a impiedade, a venalidade. A ambição transformou uma multidão de homens em mentirosos; os sentimentos escondidos no fundo do coração não tinham nada em comum com aqueles que os lábios expressavam; amizades e ódios eram resolvidos não pelas pessoas, mas pelos interesses, e buscávamos ver mais a aparência que o caráter de um homem honesto. Esses males cresceram primeiro imperceptivelmente, e foram até mesmo castigados; depois, tornaram-se contagiosos; foi como uma peste; os princípios governamentais mudaram; e a autoridade, baseada até então na justiça e no bem, tornou-se cruel e intolerável (§ X). Essas frases fariam ainda hoje sentido? Pensamos que sim, mas a forma, o conteúdo e as metas outras que não individuais mudaram seguramente como vamos mostrar centrando-nos no que constitui, do nosso ponto de vista, os fundamentos das orientações atuais de nossos sistemas educativos escolares. Mais precisamente, vamos nos interrogar sobre a pertinência das disciplinas escolares no contexto neoliberal que domina e influencia profundamente as finalidades educativas escolares. Não se pode compreender, do nosso ponto de vista, o que está se produzindo no campo educativo escolar se esquecemos, desconhecemos ou ignoramos a contextualização sócio-histórica que conduziu à situação na qual encontram-se hoje a disciplinas escolares.

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DO LIBERALISMO AO NEOLIBERALISMO: IMPACTOS NAS FINALIDADES EDUCATIVAS ESCOLARES E NOS SABERES DISCIPLINARES

Yves Lenoir

Cap. 4 do livro: LENOIR, Y.; ADIGÜZEL, O.; LENOIR, A.; LIBÂNEO, JOSÉ C.;TUPIN, F.. (Org.). Les finalités éducatives scolaires Une étude critique des approches théoriques, philosophiques et idéologiques. Saint Lambert (Quebec, Canadá): ÉDITIONS CURSUS UNIVERSITAIRE, 2016.

Introdução

Há mais de 2000 anos, Salústio (41 a.C.) escrevia, em seu texto sobre a Conspiração de Catilina,

Vimos crescer inicialmente a paixão pelo dinheiro, depois pela dominação; e essa foi a causa de tudo o que se fez de mal. A avareza arruinou a boa-fé, a probidade, todas as virtudes para substitui-las pelo orgulho, a crueldade, a impiedade, a venalidade. A ambição transformou uma multidão de homens em mentirosos; os sentimentos escondidos no fundo do coração não tinham nada em comum com aqueles que os lábios expressavam; amizades e ódios eram resolvidos não pelas pessoas, mas pelos interesses, e buscávamos ver mais a aparência que o caráter de um homem honesto. Esses males cresceram primeiro imperceptivelmente, e foram até mesmo castigados; depois, tornaram-se contagiosos; foi como uma peste; os princípios governamentais mudaram; e a autoridade, baseada até então na justiça e no bem, tornou-se cruel e intolerável (§ X).

Essas frases fariam ainda hoje sentido? Pensamos que sim, mas a forma, o conteúdo e as metas outras que não individuais mudaram seguramente como vamos mostrar centrando-nos no que constitui, do nosso ponto de vista, os fundamentos das orientações atuais de nossos sistemas educativos escolares. Mais precisamente, vamos nos interrogar sobre a pertinência das disciplinas escolares no contexto neoliberal que domina e influencia profundamente as finalidades educativas escolares. Não se pode compreender, do nosso ponto de vista, o que está se produzindo no campo educativo escolar se esquecemos, desconhecemos ou ignoramos a contextualização sócio-histórica que conduziu à situação na qual encontram-se hoje a disciplinas escolares.

De fato, três constatações interligadas nos conduzem a redigir este capítulo. Por um lado, a questão do neoliberalismo e de seus desafios socioeducativos não parece ser objeto de uma conscientização ativa da parte dos formadores de futuros professores, como se esse modo de pensar e de agir fosse anedótico, quando não estranho aos problemas educativos. A ausência de reflexões filosóficas, econômicas, políticas e sociológicas nos parece flagrante e dramática. Por outro lado, enquanto numerosas publicações tendem para o neoliberalismo nas áreas econômica, política ou ainda organizacional, podemos constatar a quase ausência de obras no universo francófono sobre os elos entre essa realidade onipresente e a educação. Unicamente, de acordo com nosso conhecimento72, e talvez de modo menos direto, as obras de Broccolichi e Ben Ayed (2010), Careil (2002), del Rey (2013), Fabre e Gohier (2015), Jones (2011), Laval (2003), Laval, Vergne, Clément e Dreux (2012), Laval e Weber (2002), Le Goff (2003) e Maroy (2013) abordaram essa “nova razão do mundo” (Dardot e Laval, 2009) com uma preocupação para com o campo educativo. De nossa parte, já redigimos alguns textos sobre essa problemática (Lenoir, 2004, 2010, 2012a). Ora, o que acontece atualmente na educação não se pode compreender sem uma forte ancoragem sócio-histórica que leva em conta o “projeto social total” (Honneth, 2015). 72 Não trazemos aqui as publicações que trazem um olhar crítico sobre a escola atual por outras razões, sem se referirem ao neoliberalismo sob uma ou outra de suas formas.

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E para poder debater a situação das disciplinas na escola, não basta constatar seu questionamento, ou mesmo sua fragmentação, e a tendência a substituir ali as competências e outras formas de relações empíricas e operatórias com o conhecimento; devemos buscar a inserção desse “estado de fato” no contexto socioeducativo que é dominante hoje e que se expressa através do sistema neoliberal.

Em um primeiro tempo, para compreender o que é esse neoliberalismo, é imperativo que se faça uma apresentação do capitalismo – e suas especificidades – que ele subentende e dos liberalismos econômico e político que o precederam. Em sequência a esse esclarecimento, voltaremos ao neoliberalismo que se constituiu durante o Entre-Guerras, em luta antes de tudo contra os totalitarismos comunista e fascista, depois contra o pensamento da Escola de Frankfurt e o liberalismo social. Progressivamente difundido em todas as esferas de atividades de nossas sociedades – inclusive no seio da própria instituição escolar e do campo educativo – onde ele é apresentado como « uma evidência, uma fatalidade, um imperativo do qual nenhum ser racional pode se abster » (Laval, 2003, p. 40), o peso desse pensamento que não se reduz somente a uma ideologia, mas que induz a práticas sociais que visam uma modificação radical do ser humano – um “homem novo” – e modelos de governança73 copiados da empresa, está tornando-se a referência de toda gestão da vida humana e social. À perspectiva econômica se juntam então orientações teleológicas, ideológicas, ontológicas, culturais, políticas, que impregnam cada vez mais profundamente a concepção da escola e das finalidades educativas que esta deve buscar. Assim serão evidenciados seus efeitos sociais.

Em um segundo tempo, analisaremos mais especificamente seus impactos sobre as concepções da escola e de suas finalidades, depois sobre a constituição dos currículos escolares e sobre o lugar atribuído às disciplinas escolares baseando-nos mais especificamente nas publicações da OCDE, principal organismo portador dessa concepção neoliberal no campo escolar. Isso nos fará lembrar as características de base das disciplinas escolares distinguindo-as das disciplinas científicas, o que sua produção socio-histórica evidencia bem. Na sequência, em um terceiro tempo, chamaremos a atenção para os elos estreitos estabelecidos entre esse modelo dominante, neoliberal, e a cultura terapêutica, sem a qual esse modelo operacional encontraria dificuldade em subsistir. Na conclusão, refletiremos brevemente para as transformações (em um contexto de oposição a uma escola-empresa submissa às “leis do mercado”) que os processos educativos poderiam adotar evitando ao mesmo tempo a armadilha do discurso virtuoso defendido pelo neoliberalismo, o desaparecimento de qualquer utilidade das disciplinas escolares que ele defende em sua visão utilitarista e o sonho a um retorno ao reino do passado, sem compartilhamento das disciplinas escolares na formação elitista dos alunos do primário e do

73 Segundo Van Haecht (2008), « [a] “boa ou nova governança” designa um modo de regulação política onde o Estado perde sua centralidade em benefício de parcerias diversas, sobretudo com o setor privado. Seus promotores militam pela introdução de dispositivos de descentralização e de desconcentração, a transformação do Estado redistributivo e intervencionista em Estado regulador e avaliador, o deslocamento da gestão do serviço público para uma gestão submetida aos princípios do mercado, etc. A ação pública torna-se o produto de negociações entre vários atores cujas estratégias e interesses devem ser conciliados […]. A noção de governança advém da análise das políticas públicas e remete desde 1975 à hipótese de uma crise de governabilidade dos Estados-providência (em suas muitas variantes). […]Com a imposição de um modelo consensual “participativo”, a deslegitimação do conflito redistributivo sendo assegurada, a ideologia do Estado social proativo que individualiza os direitos sociais coletivos e culpabiliza os membros dos grupos sociais fragilizados pode concretizar-se. No interior do modelo da governança, os termos de integração e de exclusão substituem os de igualdade e de desigualdade: a integração é relacionada à cidadania, os direitos cívicos e políticos e, mais ainda, a deveres comuns a todos. O acesso ao trabalho e ao ensino são apresentados como oportunidades que é preciso sermos capazes de aproveitar. O Estado, que deve assegurar a passagem de uma gestão de serviço público a uma gestão segundo os princípios do mercado, deve garantir a existência de bens como a educação e a saúde, mas não é obrigado a fornecê-los. […] O esquema da governança supõe uma condução que exige a verificação ex post de que os objetivos atribuídos foram atingidos. Uma cultura da avaliação é implementada, baseada na produção de indicadores quantitativos por especialistas célebres, neutros e objetivos » (p. 1-2, 2, 3).

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secundário. Uma visão emancipatória do ser humano estará no centro dessa perspectiva que interpela diretamente os professores universitários encarregados da formação de professores.

« Que o homem não possa se conceber de outra forma, mas como vivendo em sociedade, é um lugar comum » escreveu Gramsci (1975)! Esta é uma das funções centrais da escola: apresentar aos alunos um pensamento distanciado, reflexivo, incarnado na realidade social que lhes permitirá construir e se “projetar” de maneira crítica, em pensamento e em ação, no mundo. Ora, trata-se aí da terceira constatação. Se uma abundância de trabalhos sobre o pensamento crítico é facilmente observável no campo educativo, devemos constatar que essa reflexividade é majoritariamente voltada para a dimensão operatória, para as modalidades de exercício a serem adotados a fim de melhorar as competências cognitivas ligadas aos objetos de saber contidos nos currículos74. São então essencialmente consideradas somente as dimensões epistemológicas, que remetem à relação com o saber, e as dimensões ontológicas que se referem ao status do sujeito no processo de aprendizagem. Uma preocupação com a performance, a eficácia, o sucesso escolar, estreitamente ligado a uma concepção instrumental e utilitarista da educação escolar, mas também a concepção individualista da formação, ocultam as dimensões sociais que permitiriam ancorar as aprendizagens cognitivas e atitudinais na realidade das relações sociais, isto é, nas tensões, nas contradições ou até mesmo na cotidianidade da vida em sociedade. A questão que se coloca então – questão talvez brutal – é de se perguntar se o desenvolvimento na escola do pensamento reflexivo não associado ao desenvolvimento de um pensamento social crítico não constituiria de alguma forma uma propedêutica que prepararia os jovens para desenvolverem atitudes e para a adesão aos valores de iniciativa e de autonomia exaltados pelo neoliberalismo e requeridos pelo mercado de trabalho.

1. O neoliberalismo : antecedentes históricos, atributos e impactos na escola

1.1 Antecedentes históricos

1.1.1 O Capitalismo

Numerosas publicações se dedicaram à emergência e ao processo de expansão do neoliberalismo (Anderson, 1996; Audier, 2012; Denord, 2002; Dostaler, Evans e Sewell, 2013; Harvey, 2005; Klein, Tremblay e Dionne, 1997; Laurent, 2006; Pasche e Peters,1997). Para querer pesquisar sobre suas raízes, seria preciso, todavia, remontar ao surgimento do capitalismo por volta do século XVII, na Grã-Bretanha75 e a sua conceituação com os primeiros economistas anglo-saxões. Estes associaram as dimensões econômicas e sociais, em um primeiro tempo num movimento emancipatório em relação aos poderes religiosos, reais e aristocráticos fundamentados nas concepções cristãs tradicionais da sociedade, da justiça e da lei natural. Outros autores como Gunder Frank (1977), Beaud (1981) e Braudel (1979b) trazem a luz, em uma perspectiva sócio-histórica, sobre o processo de formação do capitalismo, o primeiro ressaltando o acúmulo primitivo do capital de um ponto de vista imperialista; o segundo evidenciando de modo crítico as diferentes etapas que pontuam sua evolução hegemônica nas diferentes escalas local, nacional, regional e mundial; o terceiro, focando o desenvolvimento do mercado e do capital financeiro em uma perspectiva de desenvolvimento sucessivo de “sistemas-mundos”. Por sua vez, Weber76 (1964a/1947) insiste nas transformações comportamentais dos sujeitos humanos que aderem ao calvinismo e que consideram que o trabalho é o único capaz de obter graça diante de Deus e que a riqueza obtida com esse trabalho e reinvestida é o sinal de sua eleição divina (a predestinação). Baechler (1971) une-se a Adam Smith (1883/1776) para salientar a importância da “eficácia econômica através da libertação da sociedade civil do Estado”» (p. 181) e do mercado urbano. Na continuidade das análises de Marx, Dobb (1971) considera a transformação das relações de produção em acumulação 74 Certamente, há exceções. Como, Giddens (1994) de quem Lessard (2012b) apresenta a concepção de uma reflexividade enquanto « condição necessária à construção da experiência social quotidiana de todo sujeito » (p. 125).75 Alguns, como Sée (1926) que analisa o livro de Sombart, Le capitalisme moderne, e Braudel (1979b, 1985), consideram que o capitalismo nasce a partir da Idade Média com as grande cidade mercantis.76 Ver Besnard (1970) que revisa as diferentes críticas conduzidas por 16 autores à obra de Weber

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industrial, antes de tudo pelos artesãos77 e não inicialmente pelos senhores feudais, entre outras coisas pelas mudanças técnicas intensivas e a expansão da proletarização das camadas sociais78.

Dobb (Ibid.) tira três interpretações principais da noção de capitalismo que lembraremos suscintamente. A primeira, trazida por Sombart e Weber, remete ao espírito de empreendimento ou de aventura próprio ao pensamento burguês, « caracterizado pelo cálculo e a racionalidade » (p. 15). A esta concepção atitudinal responde uma segunda interpretação que se refere à ideia de um sistema comercial: o capitalismo, que neste sentido se caracteriza pelas trocas que se estabelecem entre os produtores e os intermediários (proprietários, atacadistas, financiadores, etc.) com base em transações financeiras79, isto é, com base em uma ruptura entre a atividade de produção e a venda do produto com o objetivo de obter um ganho financeiro. O problema destas duas primeiras concepções do capitalismo é que elas não permitem circunscrever a noção no tempo e no espaço; seria possível aplicar esta noção à Antiguidade por exemplo ou a qualquer período histórico. Quanto à terceira interpretação que permite circunscrever historicamente o fenômeno, esta identifica

a essência do capitalismo [...] em um modo de produção específico. Por modo de produção, ele [Marx] entendia não somente um certo estado da técnica – que ele designou como estado das forças produtivas – mas a maneira que os meios de produção eram apropriados, e as relações sociais que se estabeleciam entre os homens devidas às suas relações com o processo de produção. Assim, o capitalismo não era apenas um sistema de produção para o mercado [...], mas sobretudo um sistema no qual a força de trabalho tinha “ela própria se tornado uma mercadoria”, adquirida e vendida no mercado, como qualquer outro objeto de troca. Historicamente, a condição prévia para o estabelecimento do capitalismo foi a concentração da propriedade dos meios de produção nas mãos de uma classe composta de uma fração minoritária da sociedade e a emergência, consequentemente, de uma classe desprovida para a qual a venda de sua força de trabalho constituía o único meio de subsistência (p. 18)

Atualmente, a monetização da economia, no quadro do neocapitalismo (ou pós-capitalismo para alguns) neoliberal, não modificou essa relação sócio econômica inicial; ela a tornou mais complexa e muito mais abstrata e difícil de apreender.

Além das profundas dissensões que se observam nos autores que estudaram a questão da emergência e da expansão do capitalismo, é permitido, atualmente, cruzar os trabalhos que privilegiam os fatores internos (uma visão centrada na Europa) e os que evidenciam o aporte dos fatores externos (uma visão mais descentralizada, internacional) para circunscrever o capitalismo: uma acumulação exponencial do capital, uma apropriação dos meios de produção por estruturas com fins lucrativos, uma organização do trabalho baseada no proletariado, inovações técnicas fontes de mais-valia, um mercado generalizado e livre das pressões tradicionais, uma comercialização da economia, instituições estatais e um sistema jurídico favoráveis, uma classe social dominante (a burguesia) e uma tendência à expansão internacional.

Schumpeter (1969) usa considerações puramente econômicas para abordar o capitalismo do ponto de vista social e cultural. Ele ressalta uma longa lista de suas aplicações em todas as esferas da vida contemporânea (saúde, arte, política, democracia, etc.) e conclui que ele constitui uma civilização. Ele é portador, é a função do liberalismo, de uma certa visão das relações humanas e do próprio ser humano. Na forma clássica do pensamento político inglês, de

77 Meiksins Wood (2009) avança que o capitalismo é originalmente de natureza política e agrária e que ele aparece inicialmente nos campos ingleses dos séculos XVI-XVII, na confrontação entre senhores e camponeses em torno da enclosure (cercamento).78 Ver igualmente a rica controvérsia entre os pensadores marxistas sobre a transição do feudalismo para o capitalismo em Dobb e Sweezy (1977).79 Segundo esta interpretação, o artesão ou o agricultor que vende diretamente sua produção no mercado não pode ser considerado um capitalista.

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Hobbes (1651) a Locke (1725/1690), que Macpherson (2004/1962) disseca, extraem-se os fundamentos da corrente utilitarista individualista que o liberalismo defende. Ele evidencia sete propostas que o caracterizam, mencionadas no capítulo precedente, que são centradas no status de proprietário. A sociedade se define pelas relações de mercado e a política « é um meio destinado a proteger os direitos do indivíduo, sua pessoa e seus bens e […] a fazer reinar a ordem nas relações de troca que os indivíduos mantêm enquanto proprietários de sua própria pessoa » (p. 435-436).

Todavia, com o aumento do poder do proletariado nas sociedades industriais, por definição, proletários condenados à miséria, surge o que Castel e Haroche (2001) chamam a propriedade social, isto é, um sistema de proteção baseado no trabalho que assegura uma certa segurança sem por isso deter qualquer propriedade (proteção social, habitação social, serviços públicos, etc.). Esta propriedade social resultou no que estes autores chamam a “propriedade de si” que tinha se tornado possível pela inserção destes não proprietários em agrupamentos coletivos (associações, sindicatos, clubes, etc.), o que conduziu progressivamente, através de lutas trabalhistas, a ganhos sociais (condições de trabalho, dias de repouso e férias, salário, etc.) ao longo do século XIX e durante a primeira metade do XX. Se as relações de produção que caracterizam o capitalismo fundamentalmente não mudaram, as lutas nas quais a classe operária se engajou permitiram a introdução de condições de trabalho e de vida mais decentes.

1.1.2 O liberalismo clássico

Mas, de fato, de onde vem e como surge o neoliberalismo? Seria oportuno inicialmente precisar o que é necessário entender por liberalismo e trazer à luz a evolução das diversas correntes que o atravessam. Aqui podemos apenas remeter a diferentes autores, entre os quais Audard (2009), Caillé, Lazzeri e Senellart (2001), Lacroix (2003), Macpherson (2004/ 1962), Moreau (1978), Vachet (1988). Notemos aqui que o liberalismo surge na Inglaterra nos séculos XVII e XVIII no contexto da revolução industrial80 e apoiando-se no racionalismo desenvolvido pela filosofia do Iluminismo. Ele se desenvolve enquanto movimento de libertação da atividade humana81. Macpherson (2004/1962) mostra quanto o individualismo possessivo possui um impacto emancipatório na Inglaterra do século XVII. Ao se referir a deste último, Delmotte (2013) observa que ele constitui uma « afirmação da dimensão econômica e sua constituição em domínio autônomo […] uma libertação de uma ordem social e política […] uma emancipação da moral tradicional e o surgimento de um novo tipo de personalidade » (p. 113). Mas é importante lembrar ao mesmo tempo que este movimento de grilagem das terras, até então um bem comum, e de sua acumulação potencial ilimitada teve um impacto nefasto – pauperização, marginalização, sujeição, expulsão, proletarização, etc. – sobre o campesinato que constituía a maioria da população.

Bihr (1999) chama a atenção para a ruptura que se opera com a instauração progressiva do capitalismo e do pensamento liberal82. Nas sociedades pré-capitalistas, dominava uma visão

80 Ver por exemplo Laslett (1969) que compara as estruturas sociais da Inglaterra pré-industrial às desse país no século XX de modo a mostrar o abismo entre a sociedade industrial, individualista e expansionista e a do tempo de Cromwell durante a primeira metade do século XVII. Durante a revolução (English Civil War) que levou à imposição « dos direitos sagrados da propriedade (abolição das posses feudais, desaparecimento dos impostos arbitrários), que deu poder político aos possuidores (soberania do Parlamento e do direito comum, abolição da jurisdição eclesiástica), e suprimiu tudo o que podia constituir um obstáculo ao triunfo de sua ideologia, isto é, da ética protestante », Hill (1977, p. 15) lista as ideias que expressavam os Levellers (Niveladores), os Diggers (Escavadores) e os Ranters (Hereges) no seio da revolta que se desenvolveu do decorrer da revolução. Essas ideais defendiam a propriedade coletiva, uma democracia mais abrangente nos planos jurídico e político, a rejeição da ética protestante, etc. Várias dessas ideias foram retomadas pelo socialismo.81 Para uma discussão das concepções da escola e de suas finalidades pelo liberalismo, ver entre outros Halstead (1996) que opõe a tradição liberal aos objetivos utilitaristas atuais e Marples (1978) que apresenta diversos pontos de vista liberais sobre as FES.82 Ver por exemplo Muchembled (1978) que apresenta a revolução cultural no norte da França. Revolução que reprimiu e desvalorizou progressivamente, do século XV ao XVIII, a visão de mundo, os modos de

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unitária da sociedade83 baseada na referência à transcendência divina, nas relações pessoais de dependência em todos os níveis84, um enraizamento na reprodução do idêntico assumida pelas tradições e a autoridade dos antigos, etc. Ora, « O desenvolvimento do capitalismo vai arruinar completamente esse universo feito de tradições e de sacralização do passado » (p. 130).

Notemos igualmente que é comum – discutivelmente – distinguir entre os liberalismos clássicos políticos e econômicos. Essencialmente, e correndo o risco de uma simplificação ultrajante, o liberalismo econômico – que se pode associar ao capitalismo – é baseado no direito à propriedade e à liberdade individual que se expressa nas atividades da vida econômica: o livre-comércio, a liberdade de empreender, de vender e de comprar os meios, serviços e bens de produção bem como a força de trabalho e capitais, de consumir segundo suas escolhas. O liberalismo político, mais frequente e estreitamente associado ao liberalismo econômico, caracteriza-se, por sua vez, por uma autonomia coletiva, isto é, democrática, que exige uma regulação do agir em sociedade pela produção de leis de caráter universal 85. Essas leis asseguram uma ordem social partilhada nas relações de troca; em um Estado de direito a serviço de seus cidadãos protegendo as liberdades individuais e fazendo respeitar seus direitos; o pluralismo que assegura a autonomia dos indivíduos, o que requer a separação entre a religião e o político. Quanto à noção de direito natural86, esta concede a cada ser humano o domínio de si (a propriedade de si e de suas capacidades), a liberdade individual de pensamento (liberdade de expressão) e de independência na ação (liberdade de associação, de comércio, etc.) 87 e – fundamentalmente – o direito de propriedade.

Em síntese, o liberalismo clássico, ao lado de uma perspectiva moral de conotação coletiva, subentende que a busca de seus próprios interesses (egoístas)88 garantirá o interesse geral e assegurará minimamente o bom funcionamento da economia de mercado, favorecendo o laisser-faire e uma intervenção mínima do governo. Ele pressupõe fundamentos individualistas89 e utilitaristas90 relativos. Halstead (2008) ressalta, além das diferentes versões do liberalismo em conflito, três valores fundamentais que o caracterizam:

1. a liberdade individual (isto é, a liberdade de ação e a ausência de pressões na busca de suas próprias necessidades e interesses);

pensamento e de ação da população que se expressava através do que se convencionou chamar cultura popular.83 Natureza, sociedade e indivíduo dissolvem-se em uma totalidade indistinta, como exemplifica bem a igreja romana na qual o quadro material e arquitetural, assim como a pintura e a escultura – dentre elas os tímpanos – testemunham essa fusão e os elos de dependência a uma transcendental que está acima delas (Scobeltzine, 1973)84 As relações sociais interpessoais caracterizam-se pela dependência entre as três ordens (Duby, 1978): a eu ora, a que combate e a que trabalha. Essas relações de dependência encontram-se em toda parte, entre suseranos, vassalos e servos, entre mestres e escravos, entre mestres e companheiros nas corporações de ofícios como Barret e Gurgand (1980) mostram com o Compagnons du Tour de France, etc. 85 Ou de pretensão universal, de acordo com o ponto de vista adotado!86 Esta noção, destacada por Locke (1797/1690), mas já anteriormente rejeitada por Hobbes (Moreau, 1978), será vivamente contestada, em nome do utilitarismo, por Bentham (Cléro, 2001c) e Mill (1859) – que rejeita sua concepção dom utilitarismo (Cléro, 2001d) – para quem os direitos naturais não existem, mas os princípios de liberdade e de propriedade são necessários para assegurar a alegria e uma vida feliz.87 Ver nossos comentários sobre as concepções da liberdade para Pettit (1997) e Honneth (2015).88 Ver a bela ilustração do egoismo individual como fonte de prosperidade e da felicidade em La Fable des Abeilles (A Fábula das Abelhas) de Mandeville (2011/ 1705). A maioria dos autores liberais clássicos da época se opuseram à visão unívoca de Mandeville em nome da moral.89 Como ressalta (2003), « se nos dermos ao trabalho de passar os olhos nos grandes autores liberais, constataremos que apenas recentemente – com Hayek ou com Rawls – fomos confrontados de maneira clara e unívoca a uma filosofia política resolutamente individualista» (p. 21). É precisamente o que revelamos no capítulo 3.90 Se excluirmos o utilitarismo radical de Bentham, o utilitarismo clássico é atravessado por uma preocupação ética em relação ao bem comum. Ver Caillé, Lazzeri e Senellart (201).

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2. a igualdade no respeito por todos os indivíduos nas estruturas e nas práticas sociais (isto é, a não discriminação por motivos inaceitáveis);

3. uma racionalidade consequente (isto é, quando as decisões e as ações são baseadas em justificativas racional e logicamente consistentes) (p. 112).

Halstead ressalta igualmente a existência de uma forte tensão entre os dois primeiros valores. O primeiro remetendo ao utilitarismo, o segundo aos debates sobre as questões relativas à justiça distributiva, seja em uma perspectiva libertadora (Hayek, Friedman, Nozick), seja em uma perspectiva igualitária centrada nos direitos cívicos, no bem-estar social e na distribuição dos bens para os menos favorecidos (Rawls, Dworkin). Quanto ao terceiro valor, ele vem enriquecer os dois outros e pode ser associado tanto ao utilitarismo, quanto ao pensamento kantiano ou aos debates sobre a justiça distributiva. Mas o que preocupa sobretudo este autor é mostrar no que o liberalismo se opõe aos totalitarismos e às práticas escravagistas de todo tipo, amalgamando, por exemplo, o nazismo e o marxismo.

Um dos aspectos interessante que evidenciam o pensamento liberal, ilustrado por exemplo por White (2008), é a ideia de que os seres humanos são perfeitamente racionais e agem em função de escolhas maduras e refletidas segundo o modelo weberiano: « em uma sociedade liberal, podemos assumir que os indivíduos vão efetuar eles mesmos as escolhas, a partir das preferências predominantes que possuem, que eles desejam satisfazer » (p. 99). Por essa razão, acrescenta White, « uma finalidade chave da educação é equipá-los para fazerem tais escolhas » (Ibid.). A concepção da racionalidade é aqui essencialmente aquela proposta por Weber (1964a/1947, 1964b/1936). Ressaltamos (Lenoir e Vanhulle, 2008) que a concepção da ação adotada pela economia – a atividade racional em relação a um fim – mostrava-se inapropriada, senão ilusória, pois a ação humana escapa aos quadros categóricos estabelecidos a priori que negligenciam várias dimensões das relações sociais e do pensamento humano: « todo agir não é determinado teleologicamente, outros tipos de ações (afetivas ou tradicionais, para retomar as categorias weberianas) podem ser selecionadas e outros fatores podem influenciar os fins e os meios adotados pelo sujeito » (p. 219), entre outros os afetos extensamente tratados por Lordon (2010, 2013).

1.1.3 O liberalismo clássico questionado e o surgimento do neoliberalismo

Em suma, vemos a existência de um conflito contínuo no liberalismo clássico, com raras exceções, entre uma visão centrada nos interesses individuais, que Caillé (2003) qualificou de utilitarismo vulgar, e uma preocupação com o bem comum, a do utilitarismo distinto, de caráter normativo91. Passet (2003) lembra a esse respeito, assim como vimos no capítulo anterior, que ao contrário da corrente liberal tradicional, de Smith a Keynes, passando por Stuart Mill, Jevons, Walras ou Marshall, para os quais, de uma maneira ou de outra « a finalidade é a satisfação das necessidades humanas e o mercado é considerado o seu melhor instrumento » (p. 9), a corrente neoliberal, da qual trataremos agora, inverte a relação entre os meios e os fins: o neoliberalismo « finaliza o instrumento e instrumentaliza a finalidade. A performance financeira colocada como objetivo supremo justifica todos os sacrifícios humanos: flexibilidade dos salários e do emprego, regressão da proteção social » (p. 10).

91 Poderíamos também lembrar, unindo-nos a Freitag (2006), a distinção estabelecida por Aristóteles entre oikonomia, que « designa a sã gestão ou a boa intendência de todos os aspectos materiais da vida comum » (p. 120) em um contexto de solidariedade e o que ele chama de crematística. Esta última, segundo a qual os sujeitos são movidos por seus interesses, « designava [...] o mundo das trocas comerciais reguladas pelo dinheiro, e subtraía através dele o controle direto das normas comuns, assim como o princípio de um pertencimento comum social (geralmente hierárquico ou patriarcal) dos protagonistas » (Ibid.).

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Audier (2012) acompanha detalhadamente o nascimento e a evolução do neoliberalismo que se impõe nos anos 1980, sob o governo de Margaret Tatcher no Reino Unido e de Ronald Reagan nos Estados Unidos. Mas essa noção, que existe desde o século XIX e que adotou diferentes significados, surge progressivamente em seu sentido atual nos anos 1930 enquanto operam ao mesmo tempo uma crise econômica maior e movimentos de contestação fascista e comunista que pedem o seu fim; quando ela não vem dos próprios liberais, pois instala-se « uma crise intelectual, doutrinal e programática do liberalismo » (p. 62). Essa crise está ligada, antes de tudo, segundo Dardot e Laval (2009), à « insuficiência do princípio dogmático do laissser-faire na conduta dos assuntos governamentais » (p. 152). A ideia de que era preciso basear-se nas “leis naturais” era um obstáculo intransponível para um Estado cujo objetivo era favorecer a prosperidade ao máximo. Esses dois autores ressaltam o quanto Spencer atém-se àqueles que o precederam, por exemplo a Hobbes que se baseia no direito divino e especificamente na « interpretação que consiste em fazer do bem-estar do povo o fim supremo da intervenção do Estado » (p. 134).

Dardot e Laval (Ibid.) evidenciam que o evolucionismo biológico de Spencer constitui um ponto decisivo na concepção do liberalismo clássico. Baseando-se nas teorias de Darwin e de Malthus, Spencer sustenta « a ideia de que a competição entre os indivíduos constituía para a espécie humana, e nisso análoga às outras espécies, o próprio princípio dos progressos da humanidade » (p. 137). Essa postura era tão defensável que outros economistas (Say, Walras pai e filho) dessacralizaram completamente a noção de utilidade e lhe deram uma extensão máxima. Goux (2001) cita Walras-fils que declara que « as coisas são úteis desde que elas possam servir a um uso qualquer que permita a satisfação » (p. 605), não importa, portanto, nem o grau de satisfação ou de necessidade, nem o caráter moral ou não da necessidade92.

É então fácil fazer da concorrência econômica uma luta vital, na qual os mais fortes dentre os rivais ganham. Trata-se de uma inversão de perspectiva maior: o pensamento liberal vai passar do modelo da divisão do trabalho, que postula o progresso por meio da especialização « para o da concorrência como necessidade vital » (Dardot e Laval, 2009, p. 137). Este modelo competitivo, que se torna a « norma geral da existência individual e coletiva, da vida nacional como da vida internacional » (Ibid., p. 139), repousa na ideia de progresso através de um processo de seleção.

Uma tal concepção não existe sem provocar, do fim do século XIX até os anos 1930, intensos debates internos, ligados particularmente à incapacidade de justificar o dogmatismo de um equilíbrio espontâneo dos mercados que impede toda medida legislativa relativas às dinâmicas econômicas e sociais em profunda transformação. Ao contrário do laisser-faire que promove uma liberdade individual sem controle, certos liberais, influenciados pelo socialismo em expansão, fazem a promoção de um liberalismo social centrado na defesa do bem comum. Aa Primeira Guerra Mundial e as diferentes crises políticas e econômicas que se seguiram conduziram ao questionamento do laisser-faire e à necessidade da intervenção do Estado nos processos de regulação da vida das sociedades, dos quais o keynesianismo é o representante de maior visibilidade. Mas uma tal orientação estava longe de ser partilhada, alguns defendendo o liberalismo clássico, outros um “novo liberalismo”, outros ainda, como vamos ver, um “neoliberalismo”.

A renovação do liberalismo pareceu uma exigência diante das desordens econômicas, políticas e sociais advindas da “Grande Depressão”. Ela começa realmente com o Colóquio Lippmann de 1938 em Paris, que toma o nome de um autor, anteriormente jornalista, que se tornou de alguma forma o pai espiritual dessa corrente. Este tinha denunciado em dois livros que se tornaram célebres (Lippmann, 1922, 2008/1925) a incapacidade da população de tomar decisões esclarecidas, pois estas são manipuladas pela propaganda e a mídia, e critica em La Cité Libre (A cidade livre) (1946/1937) tanto o “despotismo coletivista” do Estado-providência quanto as “ilusões dogmáticas” do liberalismo econômico do laisser-faire. Diante da falência do

92 O exemplo dado é que uma substância que serve para tratar um doente ou envenenar alguém é vista como útil na lógica econômica, e talvez até mesmo mais útil no segundo caso.

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liberalismo clássico do século XIX que celebrava « a competição e o egoísmo desenfreado » (Audier, 2012, p. 136), ele propõe « ultrapassar a oposição entre laisser-faire e programação econômica » (p. 76) a fim de construir um “liberalismo renovado”. Ele adianta igualmente que as responsabilidades deveriam ser assumidas pelas elites (tecnocratas, cientistas, especialistas, etc.)93. O colóquio Lippmann, cuja preocupação primeira era uma oposição aos totalitarismos – o planismo nazista, fascista e comunista – viu enfrentarem-se concepções de diferentes escolas: o ordoliberalismo alemão (com Walter Eucken, Franz Böhm, Wilhelm Röpke, Alexander Rustow e Hans Grossmann-Doerth); a corrente austro-americana (com Ludwig von Mises e Friedrich A. Hayek), ainda que os americanos94 estivessem praticamente ausentes sobretudo devido ao contexto político; e diversas correntes francesas (Audier, 2008).

Os resultados mitigados desse colóquio evidenciaram a existência de um liberalismo de esquerda que condenava o laisser-faire e que concebia a necessidade de uma regulação social do mercado pelos Estados cuja responsabilidade deveria incidir sobre a redução das desigualdades. A esse liberalismo de esquerda opôs-se um liberalismo de direita, hoje hegemônico do qual apropriou-se inicialmente Hayek, depois a Escola de Chicago, confinando o liberalismo à direita da cena política. Os desacordos profundos entre os participantes e os acontecimentos ligados à guerra de 1939-1945 reduziram substancialmente os impactos desse colóquio.

Em 1947 foi criada, perto de Vevey e de Davos na suissa, sob a égide de Hayek95, Röpke e Mises, a Sociedade do Mont-Pèlerin que reuniu 36 personalidades membros da corrente austro-americana, a mais radical, e alguns representantes do ordoliberalismo alemão. Entre os filiados desse clube de reflexão tão seleto que reunia economistas e cujos membros – patrões e políticos – eram cooptados secretamente, encontramos outros: além de Hayek e Mises, Luigi Einaudi, futuro presidente da República italiana, o futuro chanceler alemão Ludwig Erhard, Lionel Robbins, futuro diretor da London School of Economics, o secretário de Estado americano George Shultz, primeiros ministros de países, oito futuros prêmios Nobel de economia, entre os quais Hayek, Milton Friedman, Georg Joseph Stigler, Maurice Allais, mas também os economistas Karl Popper, Michaël Polanyi, Jacques Rueff96, o filósofo libertário Robert Nozick, numerosos ministros de finanças do Brasil, da Áustria, do Chile, da Nova Zelândia, etc. Esse think tank internacional, que se reunia todos os anos, constitui desde os anos 1970 um vetor extremamente eficaz de difusão das concepções neoliberais, não por meio de publicações em seu nome – elas são proibidas – mas pela poderosa rede que é tecida nos diferentes países, com alguns 200 outros think tanks dispersos no mundo (entre os quais o Institute of Economic Affairs na Grã-Bretanha e o Heritage Foundation nos Estado Unidos) e com as organizações internacionais.

93 O que atualmente está muito bem estabelecido, segundo nos mostra Freitag (2011a).94 A escola de Chicago fundada por Frank Knight, é hoje a mais célebre, por ter sido a incubadora de numerosos Prêmios Nobel. O Chile do general Pinochet se tornaria um terreno experimental privilegiado para os Chicago Boys, um grupo de economistas chilenos dos anos 1970 formados pela Universidade de Chicago e influenciados pela concepção libertária de Milton Friedman (Friedman e Friedman, 1971/1962) e de Arnold Harberger. Eles ocuparam cargos-chave no governo e nas organizações financeiras. Hayek (1985/1943, 1994/1960), que era adepto da desregulamentação da economia e que sustentava que o abandono do individualismo e do liberalismo clássicos conduziria inevitavelmente a uma perda da liberdade e à criação de uma sociedade opressiva, não o impediu de enaltecer o regime ditatorial de Augusto Pinochet.95 Ver seus dois célebres livros: Hayek (1985/1943, 1994/1960). Ele exclui qualquer possibilidade de redistribuição social e defende a aplicação rigorosa da economia de mercado96 Alguns desses membros se dissociaram posteriormente do clube. Foi o caso de Raymond Aron e de Bertrand de Jouvenel no início dos anos 1960, ou ainda de Maurice Allais que tinha, em 1947, se recusado a « assinar o Statement of aims (Declaração de objetivos) da organização, pois ela formula que a propriedade privada é superior à propriedade coletiva » (Denord, 2005, p. 407). Em um artigo que não está mais disponível, publicado na Réalités industrielles, revista do ministério das Finanças da França, Allais considera que o neoliberalismo engana o mundo e o conduz em direção a um abismo econômico no qual as injustiças sociais se tornarão insuportáveis.

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Tendo por objetivo central declarado a reafirmação e a preservação dos direitos da propriedade privada, a Sociedade entendia combater à esquerda a Escola de Frankfurt97 que retomava o pensamento marxista, a influência crescente do socialismo sobre os intelectuais e à direita o keynesianismo (Keynes, 1942) que sustentava a instauração do Estado intervencionista – Estado-providência – advindo de reformas políticas que possibilitaram a saída da “Grande Depressão” dos anos 1930 e o lançamento das bases institucionais das “Trinta Gloriosos” após 1945. Em suma, aos olhos desses ultraliberais, era preciso renovar intelectualmente e praticamente o pensamento liberal, o que não se pôde concretamente se produzir senão quando o “crescimento socialdemocrata autocentrado” (Giraud, 1996) entrou em colapso no ocidente.

Assim como mostra Husson (2013), o processo de racionalização da vida econômica e social sob a governança do capitalismo liberal foi buscado até os meados dos anos 1970 redefinindo-se periodicamente, isto é, « após a idade de ouro do capitalismo “fordista” que vai da Segunda Guerra Mundial à recessão generalizada do meio dos anos 1970 » (p. 48). A vitória do neoliberalismo atual, hoje difundido no mundo inteiro ou quase isso, está essencialmente relacionada a três fatores: a potente rede tecida e sustentada por um discurso racional cada vez mais sistematizado que fez crer que há um elo indissociável entre liberalismo econômico e liberalismo político98. A globalização econômica99, segundo fator, é doravante permitida graças aos avanços tecnológicos espetaculares e particularmente à revolução informática. O terceiro fator reside na crise econômico-social dos anos 1970:

Essa crise conduz à ruptura do compromisso entre capital e trabalho no qual eles eram baseados e, mais largamente, ao abandono pela burguesia do modelo de um capitalismo regulado no e pelo contexto reforçado dos Estados-nação. O capital empreende então sua « libertação » deste contexto, sem totalmente consegui-lo, começando assim um processo impropriamente chamado de « mundialização » (ou « globalização ») e que é bem mais apropriado chamar de transnacionalização (Bihr, 2011, p. 21).

Em uma brilhante síntese, Chesnais (1997) evidencia que a fração financeira do capital se tornou o pivô da globalização neoliberal desvinculando-se dos elos nacionais e impondo sua hegemonia100 e seus interesses industriais e comerciais. Além disso, o processo de imposição planetária do neoliberalismo foi facilitado pelas vitórias políticas de Tatcher no Reino Unido em

97 Ladeadas pelos trabalhos de Horkheimer, de Adorno ou de Marcuse, para citar somente alguns dos autores mais conhecidos da Escola de Frankfurt, várias obras analisam seu trabalho, dentre elas as de Jay (1977), Rioux (1978) e Vincent (1976).98 Segundo Perrin (2014), « a contenção keynesiana intimou nossos sistemas políticos a substituir a ideologia socialdemocrata, no exato momento em que o inconsciente coletivo ocidental adquiria ares de um certo « snobismo de massa », sonhando tanto com liberdade quanto com desigualdade. Essa coincidência pôde favorecer o enraizamento das concepções neoliberais: elas ofereciam um quadro teórico ad hoc ao reinado dessa liberdade elitista reclamada pelas novas classes emergentes, em detrimento de todas as ideologias igualitárias ou autoritárias, dentre as quais a simples renovação das ideias keynesianas. Em contrapartida, essa nova ideologia pôde fortalecer a ruptura econômica na origem de seu poder, favorecendo respostas políticas anômicas e desiguais, como o desmantelamento das regulações monetárias e a acentuação do livre-comércio, duas medidas que expõem ainda mais as classes operárias ocidentais às turbulências do mercado mundial, e que acabam por tornar os métodos keynesianos inoperantes ».99 Adotamos o termo “globalização” no lugar de mundialização. Esta última expressa um fenômeno global que existe há muito tempo, como mostram Boyer (2000), Braudel (1979a) e Le Goff (2002). Tal não é o caso da globalização, tornada possível pelas mudanças tecnológicas que conduziram a um “encolhimento” do mundo (Barrow, Didou-Aupetit e Mallea, 2003; Lacoste, 2002). Ela remete antes de tudo à primazia da economia e da livre circulação dos capitais financeiros; ela « se refere inicialmente ao processo de crescimento da interdependência e, finalmente, ao processo de convergência das economias dos Estados, e de liberação das trocas e dos mercados » (Enders, 2004, p. 367). Trata-se de uma opção do capitalismo a serviço exclusivamente dos interesses financeiros, sustentada pelo neoliberalismo. A este respeito, Freitag (1999b) observa que a globalização não tem por meta assegurar o « desenvolvimento de uma solidariedade política ampla a nível mundial, mas [...] um processo autorregulado e autoreferencial de expansão da lógica mercantil » (p. 10)

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1979 e de Reagan nos Estados Unidos em 1980 e pelos rigorosos planos de ação impostos no ocidente. Essas políticas alimentaram-se diretamente do neoliberalismo triunfante, a partir dos anos 1980 e 1990, que se inscreveu em uma « franca ruptura » com o liberalismo clássico (Dardot e Laval, 2009, p. 20). Haber (2013) nota igualmente que o neoliberalismo « difere essencialmente do liberalismo clássico (do laisser-faire) na medida em que ele é animado pelo projeto voluntarista de abordar o social em função das exigências do “mercado”, de dispor da sociedade em função do princípio da eficácia concorrencial » (p. 160).

Em seu ensaio Le néolibéralisme et la fin de la démocratie (O neoliberalismo e o fim da democracia), Brown (2004) identifica que

Diferentemente do liberalismo econômico clássico, portador do laisser-faire, o neoliberalismo não considera o mercado e o comportamento econômico racional como puramente naturais. Ambos são construídos – moldados pela lei e as instituições e exigem uma intervenção e uma orquestração políticas. Longe de prosperar quando deixada em liberdade, a economia deve ser dirigida, sustentada e protegida tanto pela lei e pelo governo, quanto pela difusão de normas sociais elaboradas para facilitar a concorrência, o livre-mercado e todas as instituições sociais.

O mercado não provém mais, como nas concepções liberais anteriores, de alguma causa natural ou transcendental; doravante ele é percebido enquanto uma produção de qualquer parte da sociedade, daí o qualificativo de “construtivista” que lhe é atribuído (Foucault, 2004; Haber, 2013; Honneth, 2015). Ao se referir a Brown, Laval (2011) insiste no fato de que

a racionalidade neoliberal não se define de início pela pressão do mundo econômico na esfera privada, nem mesmo pela intrusão dos interesses mercadológicos no setor público. Ela não se reduz à implementação sistemática de uma política sempre favorável aos mais ricos que destrói as instituições e os dispositivos de solidariedade e de redistribuição instaurados no período pós Segunda Guerra Mundial. Esses aspectos estão longe de serem negligenciáveis, mais estão subordinados à uma visão mais fundamental. A política neoliberal entende implementar uma universalização prática do raciocínio econômico tendo como referência normativa o sujeito racional calculador (p. 23).

Por conseguinte, liberadas de qualquer entrave, as finanças globalizadas e internacionalizadas podem então planar acima das normas e regras governamentais, assumirem sem limites seus jogos concorrenciais na busca do lucro que chega à deriva (por exemplo, as surprimes), mas também imporem aos próprios governos medidas políticas, econômicas e sociais que lhes convêm (por exemplo, a austeridade).

Se nos referirmos a Freitag (Freitag, 1986a, 1986b; Freitag e Bonny, 2002), este identifica, de modo geral e relativamente abstrato, três formas societárias históricas. Ele estima que nossas sociedades são hoje dominadas concomitantemente pelo economismo e o tecnocratismo. Ele caracteriza uma terceira forma societária histórica pela aplicação do modo de “reprodução decisional-operacional”101 pois este

enfatiza uma dupla dimensão fundamental : a substituição da decisão e da influência pela produção refletida, dedutiva de regras a partir de princípios e

100 Para o pensamento gramsciano, a hegemonia remete a medias repressivas combinadas à ideologia para impor uma relação de dominação entre as classes dominantes e as classes dominadas.

101 As duas outras formas societárias históricas remetem primeiramente ao « modo de produção “cultural simbólica” [que] corresponde ao tipo limite das “comunidades primitivas” que se caracterizam por uma regulação das práticas sociais baseada no sentido mediante a interiorização de uma cultura comum partilhada que desempenha função de “segunda natureza” e que provê aos diferentes membros da coletividade recursos simbólicos para se orientarem significativamente (Freitag et Bonny, p. 39). Em segundo lugar, ao modo “político-institucional” que corresponde à modernidade (Freitag, 1986b, p. 161-310).

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de finalidades; o triunfo de uma lógica organizacional e sistêmica, centrada na eficiência, na eficácia, no controle do meio, o desencadeamento de operações tendo um fundamento puramente utilitário ou estratégico, sem nenhuma preocupação com suas repercussões distantes ou coletivas (p. 43).

Freitag detecta assim, a través do horizonte de uma pós-modernidade em vias de constituição, uma ruptura maior que está se produzindo, sob a ação do neoliberalismo, na concepção das relações sociais e dos processos de sua regulação.

1.2 Os atributos do neoliberalismo atual e seus custos sociais

Após essa relativamente curta reconstrução sócio-histórica que conduziu o mundo à globalização sustentada por uma concepção neoliberal, o que não tem nada de fatídico, de inelutável, como ao contrário gostava Margareth Tatcher de repetir – « There is no alternative » (TINA)102 –, e antes de destacar os elos que se teceram entre o neoliberalismo e a escola, devemos lembrar quais são os atributos do neoliberalismo atual e seus efeitos sociais. Lembremos de início que o neoliberalismo teve que enfrentar, a partir dos anos 2000, um conjunto de novas contradições consecutivas em sua implantação hegemônica (Husson, 2013):

- uma crise de regulação do capitalismo testemunhada por uma bateria de indicadores de efeitos destrutivos103;

- uma inversão na economia mundial: o restabelecimento da taxa de lucro graças a um “efeito boomerang”, isto é, devido ao dinamismo do capitalismo que emana atualmente dos países ditos emergentes – o offshoring está na raiz dos desequilíbrios geopolíticos – e não dos velhos países capitalistas nos quais os ganhos com a produtividade entraram com colapso;

- uma contradição entre o modelo energético e os desafios climáticos: a produtividade do trabalho estando estreitamente ligada às emissões de CO2 e paradoxalmente contrária aos objetivos de redução da emissão de gazes com efeito estufa.

A crise atual, longe de terminar, conduziu o neoliberalismo a « uma ofensiva sem precedente contra as conquistas sociais » (Husson, 2013, p. 47) e o que Klein (2008) qualifica de crescimento de um “capitalismo do desastre”. Voltaremos a isso, mas antes, ressaltemos suas características.

1.2.1 Os atributos do neoliberalismo atual

Vários autores apreendem o neoliberalismo enquanto uma ideologia (par exemple Audier, 2012; Bihr, 2011; Denord, 2002, 2005). Eles não estão errados, pois ele responde perfeitamente à análise da sociologia política desse conceito feita por Ansart (1974, 1977): além de pretender expressar a vontade comum, de traduzir a realidade em todo seu rigor e de confundir quando não de ocultar os desafios sociais reais, o discurso ideológico tem por meta legitimar as finalidades buscadas e os meios adotados para chegar a seus fins. Trata-se de « um sistema integrador, que distribui manipuladores e receptores, onde se exerce a ação específica da persuasão, ação simbólica, pelas vias semiológicas, sem utilização imediata da sanção física » (1974, p. 56).

102 A naturalização da economia, própria aos primeiros economistas clássicos, é retomada para fazer da globalização econômica um fato de natureza, de corolário inevitável das novas tecnologias da informação, assim como declara, por exemplo, Alain Minc: « A mundialização é para a economia o que o ar é para o indivíduo o a maçã para a gravitação universal » (citado por Perrin, 2014). Como lembra Hunyadi (2000), Hayek dava igualmente às regras sociais uma autonomia – a ordem social vale por si só – diante da qual os atores sociais podem apenas se submeter. 103 Ver as páginas 55 a 58 em Husson (2013) que explica essa « crise do conjunto do modelo neoliberal que vem se chocar contra a impossibilidade de extrair toda mais-valia que o capital financeiro exige » (p. 55).

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Dessa forma, Haber (2013) o caracteriza como « uma doutrina política, como uma utopia, até mesmo como uma religião secular » (p. 127)104. Se esta utopia se impôs finalmente, graças a um conjunto de fatores já esboçados, é também porque a racionalidade que a subentende soube adotar uma forma mais prosaica, perfeitamente testemunhada pelo “consenso de Washington”. Esta expressão emana do economista John Williamson, posteriormente economista chefe do Banco Mundial, que qualifica assim a política definida pelo G7 em 1989. Ele sintetiza esse consenso ideológico em dez pontos que traduzem o cerne das concepções neoliberais defendidas por von Hayek (1985/1944), Milton Friedman (Friedman e Friedman, 1971/1962) e a Escola de Chicago, entre outros:

1) Manter um orçamento austero que limite as despesas públicas a fim de evitar desequilíbrios e inflação (austeridade orçamentária).

2) Estabelecer uma fiscalização que favoreça as rendas elevadas, os mais aptos a investir; reduzir as isenções de base e generalizar as taxas sobre o valor agregado (controle de despesas públicas através de uma redução das subvenções).

3) Adotar uma política monetária que assegure taxas de juros favoráveis à poupança e à importação de capitais (política monetária ortodoxa).

4) Manter uma taxa de câmbio baixa para favorecer a competitividade nos mercados e, daí, as exportações (taxas de câmbio competitivas).

5) Garantir a liberdade das trocas eliminando ou reduzindo as barreiras alfandegárias e assegurando a livre circulação do capital no mundo inteiro através de uma abertura das fronteiras (descompartimentação) (liberalização)

6) Favorecer os investimentos estrangeiros oferecendo-lhes as mesmas vantagens dos capitais nacionais (competitividade).

7) Privatizar os serviços públicos e apoiar a criação de empresas privadas (privatização).

8) Apoiar a concorrência eliminando as subvenções do Estado e deixando o mercado estabelecer o justo preço (desregulamentação).

9) Assegurar a desregulamentação abolindo qualquer freio ou obstáculo à iniciativa econômica e à livre concorrência (reforma fiscal).

10) Reforçar os direitos de propriedade para encorajar a geração privada da riqueza (direitos de propriedade).

Se os quatro primeiros objetivos remetem a medidas de estabilização, os seguintes requerem medidas estruturais.

Um tal programa, que constitui a primeira geração105 das reformas conduzidas sob a égide do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, propõe desregulamentar, privatizar, liberar as trocas, impor uma disciplina orçamentária e monetária, fazer respeitar o direito de propriedade e reduzir drasticamente o campo de intervenção da lei e do Estado em benefício do contrato e da autocoordenação por uma livre concorrência regulada pelo direito (Laurent, 2006).

104 De certa forma, Bihr (2011) concorda com essa estruturação triádica, mas considerando-a apenas do ponto de vista ideológico. Ela compreende os momentos teórico, axiológico (prático ou pragmático) e apologético.105 É importante ressaltar que o consenso de Washington foi seguido por numerosos outros encontros internacionais que o apoiaram, criticaram, fortaleceram, às vezes. O consenso de São Paulo, em 2004, por exemplo, onde se deu a 11ª Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (CNUCEDXI) retoma a maioria de seus objetivos – dos quais os três primeiros ou ainda a boa governança – mas ele difere um pouco considerando que não pode haver políticas prescritivas universais com relação a países em desenvolvimento e que deve haver, consequentemente, “margens de manobra nacionais”, o que requer intervenções da parte dos Estados (Abbas, 2004).

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Se Berr e Combarnous (2004) constatam sob análise que o consenso de Washington não atingiu seus objetivos após 20 anos de aplicação106, ele, entretanto, levou ao enfraquecimento dos Estados-nação e de suas políticas nacionais (Evans, 1997, in Carnoy, 1999), conduziu ao « isolamento da “esfera econômica” em sua própria lógica » (Passet, 2003, p. 9) e reforçou « sua capacidade de impor sua própria lógica a todos os níveis da vida econômica » (Ibid., p. 9). Berr e Combarnous (2004) costatam que

a crise da dívida retira além disso toda veleidade de contestação dos PED [países em desenvolvimento], uma vez que os devedores, se quiserem obter uma reestruturação de sua dívida, devem previamente ter concluído com o FMI um acordo referente a um programa de ajustamento estrutural, o que se traduz de fato em uma colocação sob tutela de suas economias (p. 2).

É importante ressaltar que o neoliberalismo em seu teor atual não tem por meta o retorno ao laisser-faire do século XIX107 que postulava um equilíbrio espontâneo dos mercados108, e ainda menos o desaparecimento do Estado ou sua redução a uma estrutura mínima. Bem ao contrário, ele se inscreve em uma linha de ruptura com essas metas. A questão doravante colocada consiste em definir a natureza e as modalidades de intervenção do Estado. Se este realmente intervir, isso seria, entretanto, aos olhos de Hayek (1967), no plano social: noção que ele combate com o maior vigor, pois ela é para ele fonte de poderes irracionais. Desafiando assim todas as correntes do liberalismo preocupadas com a dimensão social, que se trate de justiça social, de economia social do mercado, de liberalismo social, etc., ele considera que essa palavra é « vazia de sentido » (p. 238) porque sua utilização como adjetivo é tão « elástica quanto suas implicações podem ser deformadas senão inaceitáveis » (Ibid.). Slogan político, « “social” vem significar o fato de tomar conta daqueles que são incapazes de tomar com suas próprias mãos seus interesses onde quer que eles se encontrem » (p. 239). A ação governamental deve, consequentemente, sempre segundo Hayek, garantir a liberdade espontânea da ação individual. No neoliberalismo atual,

[o] Estado foi reestruturado de duas maneiras que tendem ao confronto: pelo exterior, com as privatizações maciças das empresas públicas que colocam fim ao « Estado produtor », mas também do interior, com a criação de um

106 Berr e Combarnous (2004) escrevem que « os resultados positivos registrados em matéria de pobreza limitam-se à Ásia e que a pobreza não diminuiu na América Latina e até mesmo explodiu na África. […] estudos mostraram a ineficácia de certas medidas do consenso de Washington » (p. 10). Sua análise evidencia que « os países que aplicaram fielmente as recomendações do consenso de Washington, fossem eles Estados fortes ou não, não tiveram melhores resultados que os outros, quer seja em termos de crescimento [...] de desenvolvimento (IDH) ou de redução da dívida. Pior, evidencia-se que a aplicação do consenso de Washington foi acompanhada de um aumento das desigualdades e que ela não permitiu aos PED [países em desenvolvimento] melhor se integrarem no grande mercado mundial em construção » (p. 13). « Em resumo, concluem eles, o fracasso do consenso de Washington é imputável a uma demasiado grande confiança dada ao funcionamento dos mercados [...] e é globalmente censurado ao consenso de Washington de ter enfatizado a competição e a eficácia em detrimentos da igualdade e da solidariedade. [...] vemos que a crise do consenso de Washington se expressa através de uma instabilidade crescente das economias dos PED e uma maior dependência em relação aos países do Norte, pelo aumento das desigualdades, pela fragilidade das instituições que é o resultado do destaque dado aos ajustes de mercado » (p. 13, 14, 16).107 Tal é a opção defendida pelo liberalismo de Nozick(2008/1974) que promove a existência de um Estado mínimo.108 Dardot e Laval (2009) mostram que a noção de mercado, no quadro do neoliberalismo, não tem nada a ver com a concepção veiculada por Smith e o liberalismo clássico. Ele se tornou um processo subjetivo, « um processo de descoberta e de aprendizagem que modifica os sujeitos ajustando-os uns aos outros. A coordenação não é estática, ela não liga sempre os seres semelhantes a si próprios; ela é produtora de uma realidade sempre modificada, de um movimento de afeta os meios nos quais evoluem os sujeitos e os transforma também » (p. 225). O mercado não depende mais de nenhuma “lei natural” onde circulariam os bens sem restrição; ele depende de uma construção que, por sua dinâmica, entende implementar um « processo subjetivo autoeducador e autodisciplinar pelo qual o indivíduo aprende a se conduzir. O processo de mercado constrói seu próprio sujeito » (p. 226).

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Estado avaliador e regulador que mobiliza novos instrumentos de poder e que estrutura, com eles, novas relações entre governo e sujeitos sociais (Dardot et Laval, 2009, p. 355).

Nos unimos a Dardot e Laval (Ibid.) que consideram que o neoliberalismo de hoje privilegia uma governabilidade109 – noção re-tomada de Foucault (2004) – cuja característica principal é sua generalização no conjunto das esferas da vida institucional, pública e privada, incluindo o próprio governo de si. E esse autogoverno tem um nome: entrepreneurship (empreendedorismo), cada um devendo se inscrever em uma lógica de produtor por si mesmo e de si mesmo, explorando em função de seus interesses pessoais as oportunidades do mercado em um contexto concorrencial.

A questão fundamental que o neoliberalismo formula não incide mais sobre os limites a serem atribuídos a um governo, mas antes « como fazer do mercado tanto o princípio do governo dos homens quanto do governo de si » (Dardot e Laval, 2009, p. 21). O objetivo buscado é então fazer do mercado uma « lógica normativa, desde o Estado até a mais íntima subjetividade » (Ibid.). Haber (2013) vê nessa orientação política racional « uma tecnologia de poder que se expressa sob a forma de discursos prescritivos e legitimadores que o Estado ajuda a difundir » (p. 132)110. Trata-se, « através de uma política de sociedade » (p. 220), de implementar o modelo do homem econômico empreendedor nas situações humanas e sociais de caráter não mercantilista (Audier, 2012). Entretanto, o intervencionismo estatal requerido é definido em um sentido que se opõe

a qualquer ação que venha entravar o jogo da concorrência entre interesses privados. A intervenção do Estado tem até um sentido contrário: trata-se de não limitar o mercado por uma ação corretiva ou compensatória de sua parte, mas de desenvolver e de purificar o mercado concorrencial através de um enquadramento jurídico cuidadosamente adaptado. […] o neoliberalismo combina a reabilitação da intervenção pública e uma concepção do mercado centrada na concorrência (Dardot e Laval, 2009, p. 153).

Enfim, Haber (2013) apresenta uma terceira abordagem do neoliberalismo, como uma forma social global, um período histórico do capitalismo. Nessa ótica, ele expressa uma forma original contemporânea e dominante do capitalismo que se impõe no mundo através da inculcação de normas, regras e valores, e que intervém em todas as esferas da vida institucional, humana e social, sustentada por políticas públicas refletidas. Encontramos aqui a concepção do neoliberalismo de Honneth (2015) que o vê como um projeto social global que influencia as práticas individuais e sociais.

O prêmio Nobel de economia, Joseph E. Stiglitz (2002, 2006), que foi conselheiro de Bill Clinton, economista chefe e vice-presidente do Banco Mundial, mostra a ilusão da capacidade dos mercados de se autorregular; ele demonstra os mecanismos internacionais destruidores que criam os desequilíbrios e as desigualdades e que têm como objetivos tangíveis apenas os interesses econômicos dos países industrializados avançados e os interesses privados de alguns privilegiados111. É assim que Harribey (2004) adianta que a Humanidade está engajada em uma

109 Por “governabilidade”, Foucault entende um modo de governo baseado na “ciência” e na economia política, que atesta a emergência de diferentes tipos de medidas (segurança, gestão, racionalidade instrumental, etc.) que subentendem as políticas neoliberais atuais e diferentes tecnologias de dominação, do self, da produção e dos sistemas simbólicos. Ver igualmente a seção intitulada “Quando o governo cede o passo à governança” no livro de J.-P. Lebrun (2007).110 Do ponto de vista político, « [o] neoliberalismo [...], são inicialmente relações sociais, modalidades de coerção, estilos de dominação e de organização das condutas » (Haber, 2013, p. 132). Não é por acaso que muitos políticos e sobretudo aqueles de formação econômica, eram membros da Sociedade do Mont-Pèlerin.111 Honneth (2015) indica que sob a pressão da globalização, « seria melhor incitar as empresas, através de isenções fiscais e medidas de apoio ao mercado financeiro, a visar prioritariamente a realização de ganhos financeiros » (p. 380), ao mesmo tempo que os grandes investidores, « marginalizando os pequenos acionários [... buscavam] um rápido retorno do investimento » (Ibid.).

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corrida louca, « a da acumulação do capital que não tem outra finalidade senão ela mesma e que destrói tudo por onde passa » (p. 17). Para esse autor « o capitalismo está a um passo de realizar seu sonho mais demente: transformar totalmente as relações de propriedade no planeta, de tal forma que a menor atividade humana presente e futura, o menor recurso material ou intelectual [incluindo a educação, evidentemente], tornem-se mercadorias, isto é, oportunidades de lucro » (p. 17-18).

Na prática, Dardot e Laval (2009) mantêm quatro atributos maiores que caracterizam a racionalidade neoliberal do mercado em prática:

1º O mercado não é mais legitimado, como no liberalismo clássico, como um dado natural, mas trata-se de um “projeto construtivista”, de uma realidade construída que exige uma intervenção ativa do Estado sustentada por um sistema jurídico apropriado que garanta as liberdades individuais e a propriedade privada.

2º No contexto neoliberal, a liberdade econômica e o individualismo encontram-se encarnados na concorrência pelo mercado. Não é mais a troca, mas a concorrência, entendida « como relação de desigualdade entre diferentes unidades de produção ou “empresas” » (p. 457), que age como norma geral das práticas econômicas. A concorrência requer eficácia, eficiência 112, rentabilidade, performance113, flexibilidade, prestação de contas, iniciativa, etc. Cabe ao Estado instaurar um quadro geral de ação – através de medidas de desregulamentação, sociais, etc. – que assegurem a supervisão e o bom funcionamento dos jogos da concorrência. Assim como salienta Fischbach (2012), o neoliberalismo « concebe utilizar ativamente o Estado e o direito a fim de reintroduzir a concorrência onde ela desapareceu ou a fim de introduzi-la e promove-la onde ela não existia, inclusive no próprio interior do Estado » (p. 107).

3º O Estado se reduz a ser apenas o guardião da “regra da lei”, norma universal que repousa ela própria nos princípios do neoliberalismo. O Estado não é mais uma instituição independente, mas está submetido como todas as organizações da sociedade ao jogo da concorrência. Ele deve a partir de então comportar-se segundo o modelo empresarial. Compete-lhe dar sustentação à

112 Se a eficácia « se mede no alcance dos objetivos visados ou pela adequação entre os resultados esperados e os resultados realmente obtidos » (Demeuse, Matoul, Schillings e Denooz, 2005, p. 18), entendemos por eficiência o deslocamento da questão da qualidade educativa do ensino para a dos desafios econômicos (Ibid.). Paul (2005) define a eficiência como a consideração dos fatores de produção medidos de modo monetário a partir dos pontos de vista custo-eficácia ou custo-benefício.113 A performance que remete ao resultado na execução de uma tarefa. Ela se impõe enquanto medida dos dados brutos (quer se trate, por exemplo, de uma visão contábil da qualidade do ensino, quer das aprendizagens) e legitima então os processos de triagem, de acessibilidade aos estudos e de segregação social.

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construção do mercado por uma gestão empresarial e agir segundo as normas desse mercado 114. Zarka (2012b) nota a esse respeito que

O Estado democrático […] não parece mais crer nele mesmo. Ele parece ter integrado em seu próprio funcionamento o modelo gerencial: o Estado se vê como uma empresa e se submete então às regulações impostas às empresas pelos mercados financeiros, as agências de classificação de riscos, etc. Não é de se surpreender que, a nível internacional, ele se veja como uma empresa dentre outras. O Estado não é mais político, ele é empresarial (p. 157).

4º A norma da concorrência, tornada universal, chega a todos os membros da sociedade « considerados na relação que eles têm com eles mesmos » (p. 458). A governabilidade empreendedorial é portadora de uma orientação individualista do ser humano que deve se conduzir enquanto empreendedor de si mesmo. A hegemonia da razão do mercado em todas as esferas da sociedade inclui o próprio indivíduo em seu ser íntimo. É para Audier (2012) um modelo imperialista de pretensões científicas, do homo oeconomicus que marcaria o triunfo de um economicismo e de uma vulgata utilitarista generalizada » (p. 589).

Dardot e Laval (2009) apresentam então a ideia da instauração de uma racionalidade neoliberal a-democrática:

Da construção do mercado à concorrência como norma dessa construção, e depois, da concorrência como norma da atividade dos agentes econômicos à concorrência como norma da construção do Estado e de sua ação, e enfim, da concorrência como norma do Estado-empresa à concorrência como norma da conduta do sujeito-empresa: tais são os momentos pelos quais se opera a ampliação da racionalidade empresarial em todas as esferas da existência humana e que fazem da razão neoliberal uma verdadeira razão-mundo (p. 459).

1.2.2 Os efeitos sociais do neoliberalismo

Stiglitz (2002) considera que « os que vilipendiam a mundialização [isto é, a globalização] negligenciam muito frequentemente suas vantagens. Mas os que cantam louvores a ela são ainda mais injustos » (p. 12). Ele constata que os benefícios anunciados não são compreendidos pela maioria das pessoas no planeta, que « a lacuna entre os ricos e os pobres se alarga » (p. 12), que o desemprego e as injustiças sociais aumentaram, etc. O autor estigmatiza particularmente 114 Uma tal concepção da governança tem efeitos negativos consideráveis na adoção dos princípios democráticos. Ver a esse respeito o livro de Zarka (2012a) e mais especificamente os três capítulos escritos por Fischbach, Lazzeri e Zarka. Porque o Estado não nada mais que uma empresa submetida ao modelo gerencial, ele pode ser processado por outras empresas. É o caso, por exemplo, do grupo francês Viola que denunciou em 2012 junto ao Centro Internacional para a regulação dos litígios relativos aos investimentos (CIRDI) – um laboratório do Banco Mundial – contra o governo egípcio que acabara de aumentar o salário mínimo mensal de 41 para 72 euros, aumento julgado inaceitável pela multinacional nos termos do tratado de investimento assinado entre os dois países. Bréville e Bulard (2015) apresentam várias queixas desse tipo como o processo aberto em 2009 pelo grupo público sueco Vattenfall contra a Alemanha porque « as exigências relativas ao meio ambiente das autoridades de Hamburgo tornavam seu projeto “antieconômico”» (p. 20). Ver também Freitag e Pineault (1999) e sua análise do projeto do Acordo Multilateral sobre o Investimento (AMI) que tinha sido preparado secretamente sob a direção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômicos (OCDE) e retirado após sua descoberta em 1997 pela organização americana Citizen Watch. O objetivo buscado era « a criação de um novo espaço econômico supranacional no interior do qual os direitos econômicos dos “investidores” seriam protegidos de qualquer ingerência política [...] [o que permitia] a atribuição de um conjunto de direitos inalienáveis às corporações multinacionais » (Pineault, 1999, p. 35). É preciso constatar que os princípios de rejeição de qualquer ingerência política nos assuntos econômicos das corporações multinacionais foram progressivamente adotados. Enfim, Rosanvallon (2015), em uma abordagem histórica, observa que nossos sistemas de governo são democráticos em sua forma, mas que os cidadãos não são governados democraticamente porque não são respeitados o direito de saber e a transparência (a legibilidade), a responsabilização dos eleitos, a escuta da sociedade (a reatividade), o “falar a verdade” e a integridade.

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as ações do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial. Freitag (1999b) ressaltava que a globalização não tinha por meta assegurar o « desenvolvimento de uma solidariedade política ampliada a nível mundial, mas […] um processo autorregulado e autorreferencial de expansão da lógica mercantil » (p. 10).

Se benefícios há, importa perguntar para quem, além dos grandes acionários e das corporações financeiras, e sobretudo constatar que o neoliberalismo trouxe sobretudo incertezas, sofrimentos individuais, males sociais, tensões, alienações, depressões, etc., enfim, um conjunto de patologias sociais e individuais (por exemplo, Ehrenberg, 2000, 2012; Honneth, 2006; Lenoir, 2012c). Seus efeitos destrutivos são bem reais, o que atestam os breves exemplos a seguir:

- Aumento dos desequilíbrios financeiros mundiais: uma desindustrialização através dos offshoring maciços visando a exploração de uma mão de obra de baixo custo. A perspectiva moral que impulsionava o liberalismo clássico, como vimos, não está mais na ordem do dia, e os impactos humanos não são considerados.

- A desregulação do mercado de trabalho, fonte de « desclassificação coletiva », em meio a qual se desenvolveu uma clivagem entre os empregos altamente qualificados, com « um alto grau de responsabilidade », e empregos « que supõem apenas uma qualificação mínima, e até mesmo nenhuma qualificação, e quase sempre não exigem nada mais que a utilização rápida das capacidades elementares » (Honneth, 2015, p. 378)115. Como observam Evans e Sewell (2013), o neoliberalismo « reduziu, em muitos países do mundo, o poder das organizações sindicais e aumentou o do capital » (p. 62). Ele reduz os ganhos e vantagens sociais adquiridos às custas da luta dos trabalhadores do século XIX até a metade do XX. Segue-se o desaparecimento progressivo, sobretudo a partir dos anos 1990, das liberdades sociais e das vantagens sociais que tinham sido conquistadas pelas classes operárias. Castel (2009) mostrou como o que ele qualificou de “propriedade social dos recursos” ligada às atividades de trabalho (seguridade social, direito ao trabalho, vantagens sociais, férias, etc.) – que dependem de alguma maneira da propriedade privada liberal e que tinham sido adquiridas pela luta dos trabalhadores – fragmentaram-se progressivamente desde os anos 1970.

- O crescimento do empobrecimento, do desemprego e da precariedade das condições de vida, mas também uma lacuna crescente entre os pobres e ricos devido a uma distribuição desigual da renda (Stiglitz, 2002) e a um aumento das taxas de juros que desencadearam um desequilíbrio maior entre salário e endividamento dos lares levados ao excesso de consumo – que assegura a manutenção do funcionamento capitalista através satisfação das populações e do crescimento contínuo da produção. Em um coletivo (Hall et Lamont, 2013) que analisa diversos aspectos da resiliência social face ao neoliberalismo e que está longe de trazer um olhar negativo sobre ele, ao querer chegar a um ponto de equilíbrio, Barnes et Hall (2013), como vários colaboradores, são levados à constatação de que o bem-estar que tinha sido anunciado « aumentou apenas para aqueles que pertencem aos estratos mais privilegiados da sociedade. Os frutos do capitalismo pós-industrial são distribuídos menos igualitariamente hoje em dia que durante os trinta anos que nos precederam [sob o governo do Estado-providência e do keynesianismo], e a degradação da vida cotidiana aumentou para muitas pessoas » (p. 230). Evans e Sewell (2013), ressaltam os efeitos negativos do neoliberalismo, entre outros a redução do poder dos sindicatos, e consequentemente da defesa dos operários, o aumento do desemprego, das desigualdades de renda e do poder do capital, bem como a “financeirização” da economia, fonte de crises nacionais, regionais e globais. Em consequência, vemos uma instabilidade que aumenta a insegurança do mundo comum, sem esquecer uma recrudescência dos radicalismos de direita – sustentado por um populismo político em expansão (Godin, 2012) – em um grande número de países que se voltam contra os mais vulneráveis, para os quais os efeitos de uma discriminação acentuada e um racismo quase sempre crescente adquiriram formas sutis. Evans et Sewell (2013) concluem que

115 Como ressalta com justeza Honneth (2015), a noção de “proletário” não remete mais à classe trabalhadora e potencialmente revolucionária dos séculos XIX e XX, mais « ao nível mais baixo das cadeias de produção e de serviços » (p. 378-379).

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O neoliberalismo não só expôs as famílias e as comunidades à volatilidade e à irracionalidade do mercado, mas ele também permitiu aos ricos utilizarem as políticas públicas para apoderarem-se dos recursos em seu favor enfraquecendo as instituições públicas que apoiam os esforços dos cidadãos comuns para conhecerem uma vida frutuosa e produtiva. (Ibid., p. 64).

- O colapso do poder de compra das classes médias causado por uma hiperinflação camuflada e por medidas ditas de austeridade.

- A adoção, em nome do equilíbrio orçamentário, de planos de austeridade calcados no modelo empreendedor, que reduzem a renda, os serviços e as prestações sociais (aposentadoria, seguro desemprego, sistemas de seguro-doença, etc.) aumentando os impostos e as taxas.

- A « autonomização crescente dos imperativos financeiros e capitalísticos » (Honneth, 2015, p. 380) conduziu a um mercado não regulado dos “produtos derivados” – entre os quais os surprimes – na bolsa116, o que originou uma crise financeira que afetou profundamente as populações que tiveram que enfrentar a instabilidade e, consequentemente, a insegurança em todos os níveis, seja no plano individual, familiar, nacional e global.

- A busca do desmantelamento do Estado social e da privatização das empresas públicas. A um Estado-empresa de governabilidade gerencial associa-se uma tendência a acabar de privatizar o que pode ainda ser privatizado, principalmente nos setores ainda públicos e semipúblicos (energia, correios, saúde, educação, justiça, polícia, forças armadas, etc.).

- Pior ainda, bem como ressaltam vários autores (Dardot e Laval, 2009; Haber, 2013; Honneth, 2015) e Fischbach (2012), o neoliberalismo está na origem de uma apatia da população, « primeiro momento de uma des-democratização. O segundo momento, é a introdução de um componente autoritário, um componente que faz passar sensivelmente de uma des-democratização para a antidemocracia » (p. 105), do que se satisfaz muito bem « um capitalismo mais liberalizado e mais desregulado que nunca » (p. 105) e que tem como preocupação primeira « utilizar ativamente o Estado e o direito a fim de reintroduzir a concorrência onde ela desapareceu ou a fim de introduzi-la de promove-la onde ela não existia, inclusive dentro do próprio Estado » (p. 107). Para Dardot e Laval (2009), o neoliberalismo « opera uma desativação sem precedente » (p. 459) dos princípios democráticos:

Diluição do direito público em benefício do direito privado, conformação da ação pública aos critérios da rentabilidade e da produtividade, desvalorização simbólica da lei como ato próprio do legislativo, fortalecimento do executivo, valorização do procedimento, tendência dos poderes de polícia a emanciparem-se de qualquer controle judiciário, promoção do « cidadão-consumidor » encarregado de arbitrar entre das « ofertas políticas » concorrentes, e tantas tendências manifestas que testemunham o esgotamento da democracia liberal como norma política (p. 459-460).

Em suma, « o neoliberalismo não somente expôs as famílias e as comunidades à volatilidade e à irracionalidade do mercado, mas ele também permitiu aos ricos recorrer às políticas públicas para desviar os recursos a seu favor subvertendo as instituições públicas que apoiavam os esforços dos cidadãos em busca de uma vida frutuosa e produtiva » (Evans e Sewell, 2013, p. 64). É a ruptura com o social, quando não a sua rejeição, que traz a eficácia concorrencial neoliberal na qual os seres humanos são percebidos apenas sob uma ótica utilitarista, enquanto “capital humano” e enquanto indivíduos isolados, empreendedores deles mesmos, em concorrência com os outros. Brown (s.d.), que adianta a noção de des-democratização em seu 116 Ver Stiglitz (2010) que analisa as causas da crise financeira de 2008. Ele mostra entre outras coisas como as perdas na bolsa foram transferidas para os Estados, segundo o princípio do liberalismo que consiste em privatizar os lucros e nacionalizar as perdas. Isso provocou a explosão da dívida pública e a transferência das perdas bancárias para os cidadãos de base que devem hoje pagá-las. Por essa razão, Zarka (2012a) menciona que « as dívidas ditas soberanas (mas que deveriam ser de servidão) dos Estados, pelas quais elas não são, de modo algum, responsáveis » (p. 12) recaem sobre as populações sob a forma de impostos.

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livro Les habits neufs de la politique mondiale : néolibéralisme et néo-conservatisme (2007) (A nova roupagem da política mundial: neoliberalismo e neoconservadorismo), realça bem a extensão do impacto político e social do neoliberalismo:

No imaginário propriamente político do neoliberalismo, os indivíduos transformados em capital humano deixam de ser mestres da escolha de seus meios de seus fins. Eles deixam igualmente de participar de pleno direito da soberania popular e de suas promessas democráticas: sufrágio universal, liberdade e igualdade garantidas por e através do Estado. A versão moderna do homo politicus estava enraizada na soberania individual e coletiva, a saber o status de seres soberanos que gozavam do direito de se autogovernar no seio de um Estado soberano. A razão neoliberal coloca fim a esse privilégio.

Quando a promessa da liberdade passa da esfera do Estado à da economia, ela é regida pela desigualdade inerente a esse último âmbito e participa da promoção dessa desigualdade. Simultaneamente, ela é reduzida à função de autoinvestimento racional objetivando a valorização do capital (humano); não é então mais o caso para o sujeito de exercer qualquer autonomia moral, de escolher seus fins e seus meios, até mesmo de controlar suas próprias condições de vida. […] O neoliberalismo promove […] uma aceitação e uma celebração explícitas dessa versão mercantil da liberdade e da desigualdade.

1.2.3 A cultura terapêutica como complementaridade necessária ao neoliberalismo

Assim, Dardot e Laval (2009) mostram que « a empresa é promovida à posição de modelo de subjetivação: cada um é uma empresa que se deve gerir e um capital que se deve fazer frutificar » (p. 458). Essa ideia de trabalho de subjetivação que esses autores observam também foi evidenciada com força por Haber (2013) e par Hambye, Mariscal e Siroux (2013), entre outros. Quanto a Honneth (2015), ele observa um processo de privatização do descontentamento diante dos efeitos da desregulação dos mercados, « como se fôssemos nós mesmos responsáveis por nossa demissão iminente ou nossa transferência anunciada » (p. 385). O sentimento de responsabilidade coletiva e de solidariedade social desapareceu; só resta uma visão individual de nossa própria trajetória profissional, interpretada em termos de sucesso ou de fracasso devido a nossos próprios esforços, nossas próprias “competências”.

De nossa parte, nos baseamos em numerosos trabalhos, examinamos o processo de psicologização da vida humana que age enquanto contrapeso do utilitarismo individualista economicista (Lenoir, 2012b, 2014)117. Se voltarmos aos quatro fundamentos filosóficos do capítulo anterior, devemos constatar com (2011c) que as concepções opostas da liberdade, o republicanismo político e o individualismo liberal não puderam ser conciliadas historicamente e sintetizadas. Totalmente incompatíveis, elas não puderam ser trabalhadas pela cultura humanista. Freitag (2011c) constada, na sequência de sua análise, que esta última

Foi absorvida no desenvolvimento das mídias de massa e na instrumentalização da educação para tornar-se uma especialidade universitária ou um refúgio cultural da vida pessoal. É a dinâmica utilitarista individualista que acabou por se impor de modo unilateral através da objetivação da lógica do capitalismo, à medida em que esta estendia na prática seu controle sobre o conjunto dos mecanismos de regulação da vida social e das dinâmicas de transformação da vida coletiva. (p. 401).

Evidentemente, a perspectiva humanista não podia sobreviver e ela não sobreviveu nem em sua forma nem nos valores que ela sustentava quando do Renascimento. Estagnada e sob o controle hegemônico da Igreja católica no contexto das “Humanidades” que privilegiavam somente os estudos do grego, do latim e da literatura clássica, ele vivia em profunda defasagem com uma realidade social que se tornou radicalmente diferente. Mas ela não podia desaparecer, tornara-se

117 Insistimos especialmente na concepção de sujeitos frágeis que têm necessidade de ajuda psicológica externa e na irresponsabilidade social, nos problemas sociais que são agora apresentados como problemas individuais.

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absolutamente necessário oferecer um paliativo aos indivíduos isolados e submissos ao que se chama de “leis do mercado” – que bela reminiscência universalista! –, quando não – ainda melhor – à “mão invisível”118. O aumento a partir do século XIX do isolamento dos seres humanos, preocupados e cada vez mais sensíveis às injustiças sociais, à busca cada vez maior de sua identidade, de seu “eu” interior (Dineen, 1999; Ehrenberg, 2000; Furedi, 2004; Lasch, 1984), levou ao aparecimento de uma psicologização da natureza humana e de uma cultura terapêutica antes de tudo nos países anglo-saxões (Lenoir, 2012c), mais compatíveis com as concepções veiculadas pelo protestantismo. Nossa hipótese é que o humanismo se viu assim desviado de seus fundamentos e de suas intenções emancipatórias e civilizacionais; ele foi travestido e reciclado para dar suporte às orientações sociais que lhe foram conferidas pelo utilitarismo individualista e que manipulam psicologicamente as dimensões íntimas dos seres humanos. Surgiu assim um “humanismo” norte-americano, com Maslow e Rogers, que se volta para o íntimo e que está nas mãos de interventores de todo tipo (psicólogos, psicanalistas, psicoterapeutas, psiquiatras, coaches, gurus, astrólogos, etc.) mais compatíveis com as orientações utilitaristas e individualistas, e radicalmente distinto do humanismo de origem europeia.

O florescimento dessa cultura psicoterapêutica que veiculava esse “humanismo” nos parece ser a contrapartida indispensável do utilitarismo individualista reinante que progressivamente se instalou no ocidente e que recorre a um discurso legitimador universalista doravante naturalizado: o das leis do mercado. E essa cultura invadiu o conjunto das instituições e da vida social. Em um primeiro tempo, Goffman (1968) e Foucault (1975) descreveram a imposição de uma ordem social e moral por uma psicologização das relações sociais a partir do encarceramento, no decorrer do século XIX, dos doentes mentais em asilos e dos delinquentes de todo tipo nas prisões. Em um segundo tempo, Foucault (2003) e Castel (1976) mostram que se sucederam ao asilo e à prisão – isto é, aos processos de repressão e de exclusão sociais com base na interiorização do controle social, ou seja, de uma “ordenação” da sociedade – novos modos de regulação social que recorrem a medidas assistencialistas: os serviços das comunidades religiosas e o trabalho social são dois fortes exemplos disso. Em um terceiro tempo, Castel (1981) ressalta que aos dois principais dispositivos que visavam tradicionalmente atenuar as “disfunções” sociais – o modelo segregacionista e o modelo assistencialista – soma-se atualmente (pois ele não suprime os dois modelos precedentes) um terceiro modelo de vocação global, senão hegemônica:

não se trata somente, mesmo que ainda se trate, de manter a ordem psicológica ou social corrigindo seus desvios, mas de construir um mundo psicológico ou social ordenado trabalhando o material humano; não somente de reparar ou compensar suas deficiências, mas de programar a eficiência (p. 210).

E Castel ainda precisa que o objetivo não é mais impor limitações, mas assegurar « o planejamento e a gestão (management) do fator humano em função das novas imagens sob as quais se apresenta a necessidade social » (Ibid.). Marzano (2008) mostra como,

118 Essa ideia de “mão invisível” atribuída a Adam Smith é constituída apenas de uma metáfora anedótica em sua obra, pois ela é mencionada somente três vezes: uma em relação com a incapacidade dos homens primitivos de dar explicações científicas aos fenômenos observados; as duas outras ocorrências para mostrar que as ações dos mercadores e dos proprietários de terras têm efeitos socioeconômicos dos quais eles não têm consciência. Assim, em seu livro Recherches sur la nature e les causes de la richesse des nations (1883/1776) (A Riqueza das Nações), ele escreve que « sua intenção em geral [de um indivíduo] não é a de servir o interesse público, e ele nem sabe até que ponto pode ser útil à sociedade. Ao preferir o sucesso da indústria nacional ao da indústria estrangeira, ele só pensa em assegurar-se pessoalmente de ter uma maior segurança; ao dirigir essa indústria de modo que seu produto tenha o maior valor possível, ele só pensa em seu próprio ganho; nisso, como em muitos outros casos, ele é conduzido por uma mão invisível a atender um fim que não entra de forma alguma em suas intenções; e isso não é sempre o que há de pior para a sociedade, que esse fim não entre por nada em suas intenções » (p. 141-142).

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Diante dos discursos da nova gestão, que fala de autocontrole e de gestão de si, os indivíduos aceitam livremente seguir regras de boa conduta que lhes apresentam os coaches. Acreditando agir por si só e trabalhar por seu bem-estar, o homem contemporâneo torna-se assim ele próprio responsável por sua servidão. (p. 210).

Em suma, menos coerção e eliminação das veleidades de resistência e mais manipulação do íntimo para assegurar a submissão, a adesão e a mobilização voluntárias ao serviço das tarefas a cumprir. É, ressalta Castel (1981), « uma nova imagem da morte social [que] se desenha » (p. 208) e que exige « uma recomposição profunda da função sujeito » (p. 209). Trata-se para a cultura terapêutica de ocultar as condições sociais e as dificuldades e injustiças da vida, mas também de criar, através de suas intervenções, as condições de aceitação de sua sorte e a adaptabilidade às situações, às mudanças e às exigências do mundo econômico. Castel ( Ibid.) recorre a esta bela metáfora: « A psicologia tem um papel homólogo ao da cirurgia estética, cuja finalidade é menos reparar o corpo que dar-lhe uma mais-valia de harmonia e de beleza » (p. 186).

Diferentes noções acompanham esse processo de subjetivação, pois a “nova governança” do Estado, baseada no modo mercantil (Van Haecht, 2005), recorre a « uma retórica moralizadora da participação autônoma e da responsabilização » (Lenoir, 2014, p. 383). Mas essa interiorização das expectativas sociais não tem por objetivo favorecer o estabelecimento das normas e das regras de pensamento e de ação pelos próprios seres humanos; ela visa antes uma aplicação da autonomia « que se quer lhe atribuir […] no respeito dos desafios da empresa » (Hambye, Mariscal e Siroux, 2013, p. 95). O indivíduo, de quem a empresa119 de agora em diante toma conta, através de medidas gerenciais, enquanto “capital humano”120 é assim chamado a agir de maneira eficaz, inovadora, ética e responsável para aplicar as “boas práticas” que beneficiarão a empresa. Em substância, a eficácia concorrencial exige uma interiorização das normas e valores neoliberais e comportamentais. Por um lado, uma perspectiva de forte competição e de exigências de performance de alto nível, por outro, em uma vontade de total integração na promessa de uma realização de si no trabalho e de satisfações consumistas, enfim, o que Lordon (2010, 2011, 2013) chama de desenvolvimento de “paixões alegres”. Lordon mostra, entretanto, que o consentimento obtido, isto é, o alinhamento dos desejos dos sujeitos humanos com os do capital (Lordon, 2010), é finalmente apenas o resultado de uma manipulação psicologizante das paixões que conduz à alienação do humano e a múltiplos sofrimentos. Assim, para « tornar relativamente tolerável uma ordem social intrinsicamente desigual e contrária ao imaginário democrático supostamente baseado nos sistemas políticos » (Hambye, Mariscal e Siroux, 2013, p. 89) e convencer que o sistema em questão é a única alternativa possível, o neoliberalismo deve recorrer a modalidades ideológicas de manipulação da intimidade individual que acompanha uma valorização do empreendedor de si e do consumidor solidamente firmado na concorrência.

Concordamos com Lordon (2010, 2013) que disseca o processo adotado pelo projeto neoliberal pelo qual ele aplica o que Spinoza escrevera em seu Tratado Político: « É preciso conduzir os homens de modo tal que eles tenham o sentimento, não de serem conduzidos, mas de viver segundo seu caráter e seu livre arbítrio » (2013, p. 231). Ele rejeita a ideia da “servidão voluntária” de de La Boétie (1549) referindo-se novamente à ética de Spinoza (1677): « Os homens enganam-se quanto a isso, ao pensar que são livres. Ora, em que consiste uma tal opinião? Apenas em que eles têm consciência de suas ações e ignoram as causas que as 119 Por “empresa”, e de acordo com o que foi dito antes, entendemos tanto as organizações produtoras quanto os serviços, incluindo o governo, a escola, a saúde, os serviços sociais, etc. 120 Laval (2003) se refere aos economistas para definir o capital humano enquanto « o estoque de conhecimentos valorizáveis economicamente e incorporados aos indivíduos » (p. 44). Temos na memória a apresentação na TV5 Monde International pelo presidente de Deloitte, de suas instalações na França. Ele mostra com orgulho os diferentes locais de trabalho, de reuniões, de descanso e de esporte, a creche, etc., colocados à disposição de seus empregados para concluir a entrevista mencionando o quanto é importante cuidar de seu “capital humano”! O bem-estar de seus empregados é apreendido apenas do ponto de vista da rentabilidade esperada...

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determinam » (p. 64). Encontramos aqui a noção de violência simbólica exposta por Bourdieu (1980) para descrever os processos sociais pelos quais os dominados aceitam sua situação. Lordon mostra que o consentimento não é mais do que o resultado de uma manipulação psicologizante dos afetos que conduz à alienação, isto é, explica Haber (2013) a « uma segunda reflexividade que se traduz por um comprometimento psicológico daqueles que já estão expostos ao comprometimento objetivo [do] fetichismo » da mercadoria (p. 256). Haber concorda com Baudrillard (1968, 1972) e sua noção de troca/signo: « a coisa comprada (um bem ideologicamente enquanto código social, porque isso “aparece” socialmente » (1972, p. 49-50). A um “fetichismo” primeiro – pelo qual um ser humano que consome um bem material ou não, que atribui a esse bem valor e atributos que advêm de fato das atividades humanas de produção, isto é, que reifica as relações sociais – acrescenta-se, com o neoliberalismo, um segundo nível: o da manipulação psicologizante do íntimo onde o bem qualquer não é comprado somente para o possuir ou para responder a uma necessidade, mas pelo código social, o signo simbólico que emana dele. Por sua vez, Honneth (2007) extrai das práticas de subjetivação gerenciais um processo de reificação pelo qual os seres humanos se tratam como coisas (autoreificação) e negam aos outros toda a dimensão humana (não-reconhecimento), o que leva a perceber-se e a perceber o outro unicamente de um ponto de vista instrumental.

2. O neoliberalismo e a escola

2.1 Impactos do neolibaralismo na escola

À luz dos desenvolvimentos precedentes, afigura-se que a escola é uma instituição que não foi poupada pelo neoliberalismo. Em um estudo comparativo das transformações contemporâneas de vários sistemas educativos, Green (1997) mostra que a tendência neoliberal – na Grã-Bretanha como em outros países, sobretudo os anglo-saxões – de considerar a escola como um novo mercado « é acompanhada de toda uma nova cultura comercial – a cultura das relações públicas, da promoção, das unidades de custos e do controle de qualidade, onde os alunos são clientes; os pais, consumidores; os professores, gestores e o aprendizado, um valor agregado » (p. 21).

O neoliberalismo, enquanto “racionalidade política geral” (Foucault, 2004), intervém em todas as esferas da atividade pública, toda instituição estando identificada como uma empresa, incluindo a da educação, em nome da liberdade individual e das normas e regras que regem a eficácia concorrencial em uma economia de mercado. Como mostrava Pierre Bourdieu desde 1967, as perspectivas econômicas atuais ignoram sistematicamente os custos sociais das políticas adotadas e, consequentemente, os desgastes a longo prazo que elas suscitam na vida cotidiana dos seres humanos. Não é de outra forma com os sistemas de ensino atuais que são regidos como “empresas de serviços” que devem funcionar segundo as “regras” econômicas do mercado: competitividade, desregulamentação e privatização, descentralização com controle elevado (imputabilidade, responsabilidade, prestação de contas), redução das despesas públicas e dos custos por aluno, gestão racionalizada dos meios educativos, rendimento, performance, eficiência121, flexibilidade e adaptabilidade, mercantilização do saber, etc122. Eles devem assim introduzir mecanismos mercantis na produção de um “capital humano” e a troca dos “produtos” educativos, e fazer dos estabelecimentos escolares empresas concorrenciais. O processo de globalização, através do controle hegemônico que opera sobre ele a ideologia neoliberal, associado a uma perda de responsabilidades da parte da instância política em benefício das parcerias com o privado, conduz a uma “nova governança” do Estado, baseada no modo

121 Assim como definimos anteriormente, a eficiência requer considerar a educação na lógica de uma quase-mercado. A escola, transformada em empresa, tende efetivamente a gerir uma clientela escolar que vem consumir saber e que ela deve transformar em “capital humano” pronto para funcionar ao sair dali: « os homens são geridos, tratados [...] como estoques dos quais é preciso assegurar a rentabilidade, como uma mercadoria [...] que preciso utilizar convenientemente ou da qual é preciso de livrar » (Enriquez, 1993, p. 30).122 Trata-se aqui essencialmente de uma declinação das orientações expostas precedentemente e adaptadas à realidade escolar.

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mercantilista e em uma retórica moralizadora da participação e da responsabilização. E essa ideologia não apenas constitui os princípios democráticos que impulsionaram a vida social e política dos dois últimos séculos. Ela é a fonte de múltiplos processos de exclusão social que sustentam entre outros os movimentos de privatização, a mercantilização da escola, desenvolvendo com ela o indivíduo que, em contrapartida, se refugia em um individualismo exacerbado e em uma cidadania particularista.

Apple (2005) expressa bem a lógica neoliberal que prevalece em relação à formação dos alunos enquanto capital humano: « o mundo está intensamente competitivo economicamente, e os alunos – enquanto futuros trabalhadores – devem adquirir as habilidades e os dispositivos necessários para competir eficazmente e efetivamente » (p. 214). Porque não pode ser de outra forma, todas as políticas e todas as medidas tomadas, sejam financeiras, pedagógicas, etc., devem ser concebidas em função da busca e da expectativa dessa finalidade concorrencial. Hambye, Mariscal e Siroux (2013) enfatizam que a escola deve aderir aos princípios neoliberais da concorrência e da formação do capital humano, com todas as características que são a eles associadas (adaptabilidade, flexibilidade, performance, autonomia, responsabilidade, reatividade, etc.) porque as pretensas necessidades econômicas o exigem. « De maneira geral, acrescentam eles, as exigências da gestão não são além disso apresentadas como orientações estratégicas concebidas no interesse do patronato, mas como a resposta apropriada e necessária para as evoluções do “mundo” ou da “civilização” » (p. 101). Esse é, aparentemente, o preço da felicidade e da liberdade. Um trabalho sobre as afeições, na escola e nas mass media, das quais já tratamos, visa por sua vez « atenuar toda veleidade de resistência » (Ibid.). Além disso, como vamos ver, « a escola e a universidade estão convidadas a desenvolverem nos estudantes o espírito de empresa, respondendo assim às expectativas da literatura gerencial » (Ibid., p. 104).

É importante lembrar que as reformas dos sistemas educativos escolares ocidentais, a partir dos anos 1990 – e essa reforma continua atualmente – pretendiam aumentar a qualidade do ensino recorrendo a um conjunto de dispositivos variados complementares no contexto do desenvolvimento de uma economia do saber: a descentralização das responsabilidades educativas dos estabelecimentos escolares e uma tendência a sua privatização, atribuindo mais poder aos atores sociais em uma perspectiva competitiva individualista e de acordo com a lógica gerencial123; uma obrigação de resultados124 pela adoção de medidas diversas visando a busca da eficácia e da eficiência, a avaliação da performance através das “boas práticas”, entre as quais a Evidence-Base-Policy (EBP) – na educação a Evidence-Base-Education –, o recurso a sistemas de prestação de contas (accountability) que requer medidas de avaliação do rendimento e de regulação externas (os testes nacionais e internacionais [PISA, TIMMS, etc.], os contratos de performance, os planos de sucesso, a classificação das instituições escolares, etc.); uma reforma dos currículos fundamentada em uma padronização dos conteúdos e uma visão utilitarista, com uma abordagem por competências; etc. Assim como ressaltam na conclusão Lessard e Carpentier (2015), no que diz respeito à governança neoliberal « os responsáveis pela tomada de decisões tentaram transformar as políticas públicas em verdadeiras tecnologias da mudança » (p. 190)125.

123 Trata-se, escrevem Duru-Bellat e Meuret (2001), de« um contexto político liberal que valoriza o mercado como modo de regulação, e que denuncia os limites das instituições estatais em matéria de educação » (p. 196).124 Ver o livro de Lessard e Meirieu (2004) sobre a obrigação de resultados na educação. Notemos nesse livro de reflexões bastante interessantes e no qual a maioria dos capítulos apresentam uma perspectiva crítica, as poucas referências ao neoliberalismo como se a questão da obrigação de resultados fosse uma prática antes de tudo realizada no interior do sistema escolar ou como se ela fosse vista como uma fatalidade incontornável devida a imperativos todos mais virtuosos uns que os outros!125 Trata-se de uma obra de síntese importante e esclarecedora sobre as políticas educativas atuais e sobre sua produção histórica. Divergimos quanto a interpretação dos fatores explicativos dessas novas políticas educativas. Se podemos observar, e nisso não discordamos, sérias lacunas nos sistemas escolares, na imperícia dos dirigentes políticos, na inadequação da ação educativa de seus interventores, no « impossível consenso sobre suas finalidades » (Lessard et Carpentier, p. 188), etc., não podemos justificar essas mudanças pelas pressões da “demanda social”. Isso seria ocultar o fato de que essa demanda sofreu

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Uma vez que ela assegura através de suas políticas uma transformação das normas anteriormente em uso, e até mesmo uma transformação do fundamento dessas normas pela dissolução das fronteiras entre as instituições políticas e a lógica do mercado, entre os princípios morais e os critérios de interesse, a governabilidade neoliberal pretende que todas as instituições ajam como se tratassem de mercados ou de quase-mercados cuja razão de ser é gerir os indivíduos e as comunidades humanas segundo os princípios de funcionamento de um mercado onde cada um busca finalidades privadas, em concorrência com todos os outros, sem nenhum outro vínculo senão o acordo entre os interesses privados. A finalidade buscada é produzir um homo oeconomicus inteiramente dedicado às expectativas do mercado, isto é, um ator do sistema apto à empregabilidade e, consequentemente, armado com uma bagagem de competências instrumentais, flexível, adaptável, fluido, reativo, antes de tudo competitivo e performático, eticamente devotado (a seu empregador, evidentemente), autônomo, responsável, inovador, mobilizador e modulável, etc. Ao reconhecer que os sistemas educativos não estão totalmente invadidos pelas concepções neoliberais, Laval (2003) identifica cinco polos onde o neoliberalismo escolar, trazido pelas organizações internacionais, a OCDE126 especialmente, impôs modelos bem enraizados e rigorosos.

Primeiramente, assistimos a uma nova regulação dos sistemas de ensino que passa pela lógica geral da concorrência, pela privatização127 e pela livre escolha dos usuários, o que leva a fenômenos de polarizações sociais e étnicas, a formas de guetização física e social. Uma forte tendência à privatização da escola e as medidas de austeridade em relação à escola pública – em nome da crise nas receitas fiscais e da disciplina orçamentária – são aplicadas em função dos princípios de desvinculação do Estado e da livre concorrência entre as empresas das quais as instituições escolares fazem agora parte enquanto “empresas de serviços”.

Em segundo lugar, a formação de um “mercado mundial da educação” (a globalização) 128 repousa sobre mecanismos de concorrência que visam a engendrar um aumento do crescimento potencial dos países e dos grandes blocos econômicos que foram constituídos sob essa ótica (MERCOSUR, ASEAN, APEC, ALENA, Comunidade Europeia, etc.) e uma maior competitividade mundial. A partir daí, é importante, por exemplo, selecionar os cérebros mais eficazes e rentáveis para sustentar as orientações inovadores de acordo com os valores e as expectativas econômicas das empresas129. Os sistemas escolares tornaram-se mercados nos planos nacional e internacional, nos quais as instituições-empresas concorrem no contexto de uma “economia do conhecimento”, do que dão testemunho as várias classificações das

manipulações socioideológicas maiores. Não basta também considerar que não é o caso da « aplicação de algo decidido pelo topo do sistema, mas o produto de uma resposta do meio e da base da pirâmide a uma injunção de mudança vinda da cúpula do sistema e da sociedade » (Ibid., p. 189). Bem ao contrário, as políticas educativas neoliberais não se reduzem a uma injunção; elas são sobretudo o fruto de uma intervenção maciça, sistemática e coordenada, das instituições internacionais e dos interesses financeiros para impor, através do controle dos Estados-empresas e de uma população insegura e maciçamente intoxicada pela mídia (Haber, 2013; Honneth, 2015), um modelo dominante prescritivo, inclusive no plano das finalidades escolares.126 Ver os numerosos exemplos da concepção neoliberal da OCDE em relação à escola em Fabre e Gohier (2015) e em Laval e Weber (2003).127 Sobre os efeitos da privatização na educação, ver, entre outros, Carnoy (2000), Saltman (2000) e Whitty e Edwards (1998).128 Ver, entre outros, as análises críticas de Burbules e Torres (200a). Para eles, « a versão neoliberal da globalização [...] reflete-se na educação privilegiando – senão impondo – políticas específicas no plano da avaliação, do financiamento, das normas, da formação dos professores, do currículo, da instrução e dos exames » (p. 15). Lembremos novamente que a globalização não é sinônimo de mundialização, tanto quanto não é de internacionalização, visto que essa última repousa no processo de cooperação recíproca entre os Estados – e, por extensão, entre as organizações, como as universidades – a partir de atividades que se realizam levando em conta suas especificidades, seus campos de competências e seus limites, incluindo o respeito às fronteiras. Ela está mais frequentemente associada à mobilidade física das pessoas, à cooperação acadêmica e à transferência de conhecimentos (Enders, 2004).129 Um exemplo consistente remete à vinda de vários matemáticos franceses para as companhias financeiras norte-americanas.

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universidades e das escolas primárias e secundárias. O modelo capitalista dominante progressivamente impôs uma mercantilização (marketisation) da educação (Raduntz, 2005) na qual o saber ministrado tornou-se um produto de consumo submetido ao valor monetário do mercado e à rentabilidade antecipada.

Consequentemente, em terceiro lugar, um comando gerencial da escola repousa sobre princípios e procedimentos de gestão modelados sobre os da empresa privada, e cujo critério é o da eficácia diretamente mesurável através de ferramentas de avaliação supostamente inatacáveis, de modo a orientar as estratégias dos atores (famílias, estudantes, professores, empresas, etc.). Ernst e Clignet (1996) ressaltam que « os indicadores da qualidade do ensino refletem a assimilação da noção de escola como a da fábrica ou da empresa » (p. 77): eles tratam essencialmente do rendimento interno, ignorando assim um conjunto de fatores sociais de contexto cuja influência pede ser preponderante. As pesquisas TIMSS e PISA130 são bons exemplos disso, além de provocar pressões competitivas de acordo com a lógica neoliberal. Um outro exemplo é o do futuro papel dos profissionais da orientação e do conselho que o Mémorandum sur l’éducation et la formation (Memorando sobre a educação e a formação) (Commissão das comunidades europeias, 2000) descreve como « um papel de “corretagem” » (p. 20). Como salienta Guigou (1972) que estabelece uma aproximação com a racionalidade empresarial131

Racionalizando a formação como gestão, racionaliza-se a realidade contraditória da empresa. A avaliação por objetivos [pois a obrigação de resultados impõe uma tal prática] limita o projeto educativo a um mecanismo que se move em um universo unidimensional, o da eficácia pedagógica onde os únicos resultados válidos são os que estavam previstos nos objetivos. Isso feito, uma tal decisão tende a fazer com que a racionalidade que ela constituiu passe por realidade da ação educativa (p. 106-107).

Um outro efeito dessas reformas organizacionais reside na diminuição da autonomia do trabalho dos professores132 e dos pesquisadores desenvolvendo dependências novas em relação aos usuários, clientes, financiadores, etc. Quanto a Peters, Marshall e Fitzsimons (2000), estes mostram que a gestão empresarial das escolas não tem somente um impacto na administração da instituição, mas também nos alunos e nos professores (a gestão de si) e nos programas de estudos (a promoção explícita das metas de autogestão) a fim de produzir indivíduos flexíveis que possam aderir por si só aos imperativos do mercado quando dele fizerem parte. Um passo a mais poderia conduzir à saída da escola do espaço político, onde ela foi criada, da cena pública e do debate público, para reduzi-la a uma ferramenta de inculcação instrumental a serviço de uma visão econômica individualista e utilitarista. Se o passo não foi dado e se não o for totalmente, um aumento da privatização – cujos sinais de alerta já são percebidos no mundo universitário – poderia deixar enfraquecida uma escola pública desprovida de qualquer autonomia.

130 Ver a análise crítica de PISA feita por Trouvé (2015) que evidencia particularmente a orientação neoliberal da OCDE na educação. Ver igualmente Laval e Weber (2002).131 A escola, transformada em empresa, tende efetivamente a gerir uma clientela escolar que vem consumir saber e que ela deve transformar em “capital humano” pronto para funcionar ao sair dali: « os homens são geridos, tratados [...] como estoques dos quais é preciso assegurar a rentabilidade, como uma mercadoria [...] que preciso utilizar convenientemente ou da qual é preciso de livrar » (Enriquez, 1993, p. 30).132 Ball (1990) cita Apple que escreve em 1986: « Pressões consideráveis são feitas comumente para se ter um ensino dos currículos escolares totalmente prescritos e estreitamente controlados pelos objetivos de “eficiência”, e “eficácia financeira” e de prestação de contas. De diferentes maneiras, a desqualificação dos empregos em geral está tendo um impacto sobre os professores de tal forma que as decisões são cada vez mais independentes de sua responsabilidade e seu trabalho torna-se igualmente mais difícil de ser executado. Isso está mais presente em alguns países do que em outros, mas está claro que o movimento de racionalização e de controle da tarefa do ensino, do conteúdo e da avaliação do currículo é bem real » (p. 155).

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Em quarto lugar, as orientações utilitaristas e individualistas invadiram a escola. Sob a ação do Estado, empresa como qualquer outra, e porque todas as instituições devem de agora em diante funcionar em uma lógica concorrencial de mercado, a escola, aberta para a empresa e transformada ela mesma em empresa, perdeu sua autonomia e suas finalidades específicas, suas especificidades culturais e cognitivas antes de tudo. Ela tem agora e como função primeira produzir recursos humanos do “capital humano” em função das normas mercantilistas, o que Bourdieu já tinha evidenciado em 1967. A educação se inscreve em uma economia do saber onde « o capital humano é o saber que os indivíduos adquirem ao longo da vida e que é utilizado para produzir bens, serviços ou ideias em um contexto de mercado » (Barrow, Didou-Aupetit e Mallea, 2003, p. 3). A educação é, agora, um bem privado, soma de competências individuais adquiridas, cujo rendimento essencialmente individual é importante maximizar. Além disso, a educação escolar não é mais um direito; ela se torna cada vez mais um bem comercializado, reduzida a um valor comercial pela economia do saber. O estudante, consequentemente, não vem mais à escola para aprender, ele vem consumir e comprar um “bem educativo” útil133 cuja prova é o diploma. Por sua vez, a visão individualista faz do aluno o sujeito de seu próprio aprendizado: ele é levado a « responsabilizar-se » e a calcular as vantagens e os custos de seu aprendizado visto como um investimento mais ou menos rentável. Responsável134 e autônomo, cabe a ele a escolha dos conteúdos de sua formação, mas idealmente em contexto concorrencial profissionalizante de acordo com as necessidades econômicas, o que prova a mundialização das “bases de competências” (del Rey, 2013).

Em quinto lugar, em harmonia com a concepção utilitarista do saber, este só vale por sua utilidade econômica; a formação só tem valor e legitimidade pelo cargo que ela permite ocupar135. O saber é a partir de então válido apenas em função dos critérios de empregabilidade e de rentabilidade, o que leva a sua instrumentalização radical. Por essa razão, vários trabalhos fundamentados no neoliberalismo exaltam uma escola centrada exclusivamente no desenvolvimento das habilidades instrumentais (as competências-skills) e comportamentais úteis para a economia de mercado. É, além disso, legítimo perguntar-se se é por simples acaso que vários termos em uso saíram do universo empresarial: projeto, contrato, gestão, serviço, competência, etc. Resumindo, as finalidades da educação mudaram (Laval, 2003), transformando radicalmente a estrutura dos currículos e dos programas de estudo.

Enfim, em sexto lugar, a psicologização da vida humana – que encontramos claramente nas escolas (Lenoir, 2012c) sob o disfarce de uma socialização que permanece profundamente individualista e competitiva, que repousa sobre a manipulação psicoafetiva dos alunos, sobre o reconhecimento e a promoção individual de cada aluno, e que recorre à necessidade de uma medicamentação psiconeurológica cada vez mais frequente (Borch-Jacobsen, 2013; Monzée, 2010) – permite aceitar e integrar essa tendência a um individualismo utilitarista. O meio escolar faz igualmente um apelo sistemático à autonomia, à responsabilização e a outras noções como a autoestima. Em um capítulo do livro que dirigimos com Frédéric Tupin (Lenoir, 2012c), mostramos que muitos autores anglófonos do Reino Unido, dos Estados Unidos e do Canada evidenciaram a extensão e a ancoragem dessa cultura terapêutica em todas as esferas da vida, na educação especialmente, enquanto educação terapêutica.

No que diz respeito ao Quebec, no plano educativo, a corrente norte-americana da “pedagogia humanista” foi reconhecida por Angers e Bouchard (1986a, 1986b) especificamente. Em sua origem, encontra-se um conjunto de psicólogos que possuem em comum apenas sua repulsa pelo behaviorismo e o pensamento educativo skineriano. É, como observa Piveteau (1976), « sobre esse pano de fundo de behaviorismo imperialista e intransigente, e de psicanálise fundida

133 O jornal Le Monde de 17 de setembro de 2015 mostrava a intenção das universidades japonesas de fecharem 26 faculdades de ciências humanas e sociais julgadas inúteis.134 O desenvolvimento de uma ética da responsabilidade individual (self-management das escolas) fundamentada nos valores empreendedoriais apresenta a socialização escolar enquanto inserção “harmoniosa” na sociedade (Lenoir, 2004).135 Essa constatação se aplica igualmente à pesquisa onde a produção do saber é cada vez mais avaliada apenas em função de seu rendimento econômico.

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em uma multiplicidade de movimentos e escolas de terapia diferentes [...] que se definiu a terceira força na psicologia, após Maslow nos anos 1960, ele próprio dissidente do behaviorismo e da análise » (p. 474). Muito mais centrados na prática que na teorização de suas práticas, esses psicólogos entendem levar seus esforços educativos em direção à implementação de condições que permitam a cada ser humano desenvolver-se como pessoa: « Reconhecemos aí o conceito de “individuação” caro a Jung, ou de selfactualization lançado por Maslow, ou de fully-functionning person ligado a Rogers » (Ibid.). A pedagogia humanista projeta assim « uma visão que se pode qualificar de otimista, no que ela tende a dissipar as oposições entre o social e a individual ou a crer que a resolução desses conflitos se situa no seio da própria pessoa. É uma visão além de tudo anti-institucional que faz do indivíduo, e não das estruturas, o motor da mudança » (Ibid., p. 474-475).

Mas trata-se de um indivíduo dependente, pois a psicologização da vida social e dos processos educativos mostra-se necessária tanto para acompanhar os processos de exploração econômica atualmente adotados quanto para dar acesso às novas gerações. Ela serve ainda para sustentar o conservadorismo político que considera apenas o indivíduo isolado, para agir como instrumento de controle social pelo fortalecimento da manipulação individual dos seres humanos, e para lhes fazer aceitar seu status de “capital humano” e sua formação essencialmente utilitarista, tecno-instrumental, que oculta os problemas sociais que emanam de relações sociais nocivas, do não-reconhecimento da dimensão humana; problemas sociais que são apresentados como problemas psíquicos individuais pelos quais essas relações seriam fatalmente responsáveis.

Em suma, sob a influência do neoliberalismo, a educação escolar, que é « um bem essencialmente privado e cujo valor é antes de tudo econômico » (Laval, 2003, p. 7), assume igualmente, mais ou menos bem, a formação de um “novo homem” centrado nele mesmo, mas finalmente bastante só.

2.2 O neoliberalismo e as disciplinas escolares

2.2.1 As finalidades educativas escolares

Assim como nota Trouvé (2015), « hoje a finalidade [da escola] é completamente diferente visto que ela não é mais o ideal visado de uma cultura comum, ou ainda, o de uma “cultura integral”136 [...], mas a cultura de um domínio das competências adaptadas « à evolução da demanda » do « mercado de trabalho » de tal forma que ela oferece « a possibilidade de se reciclar ao longo de toda a vida adulta » (OCDE, 2011a, p. 3), de « ter mais mobilidade em diferentes setores e segmentos do mercado de trabalho ao longo da vida » (OCDE, 2011b, p. 23) » (p. 25). Pachod (2015), retomando Laval et al. (2012), no que, no contexto de um mercado escolar que « busca menos transmitir uma cultura e saberes que valem por si sós que fabricar indivíduos aptos a incorporarem-se na máquina econômica » (p. 27), as novas designações da escola – « escola-fábrica de excelência, escola-serviço, escola-instituição, escola-empresa, escola-preparação para a vida- escola parceria » (p. 27) – são opostas às finalidades que valorizam a aquisição de uma cultura e o desenvolvimento de um pensamento crítico e de uma consciência cidadã coletiva.

De modo operacional, as novas finalidades da escola podem ser sintetizadas em torno de três visões fundamentais: inicialmente, preparar uma mão de obra a fim de que ela possa responder às expectativas e às necessidades do sistema empresarial, que se trate de uma empresa, dos serviços governamentais públicos e para-públicos ou dos serviços privados. Em seguida, transformar profundamente as concepções da cultura e de seus referentes (a razão, a tradição, as heranças intelectuais, etc.) para expor o papel primordial que devem ter a busca dos interesses privados (o utilitarismo “vulgar” e o individualismo) e o princípio da concorrência. Enfim,

136 Gohier (2015) faz a mesma constatação ao referir-se à « formação fundamental » progressivamente abandonada a partir dos anos 1980 e que designava « a aquisição das ferramentas necessárias ao exercício do pensamento, tanto quanto a aquisição dos saberes disciplinares essenciais e culturalmente situados, favorecedores do desenvolvimento integral da pessoa nos planos intelectual, afetivo, social e físico, para adotar, na virada dos anos 2000, a aquisição de competências » (p. 115).

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formar cidadãos “abertos” à heterogeneidade e trabalhadores disciplinados, autônomos e responsáveis, eticamente conforme às realidades do mundo econômico.137

Molnar (1996) identifica um crescimento sem precedente da cultura submissa à ideologia do mercado e às expectativas das corporações econômicas nas escolas primárias norte-americanas: « a escola é [...] o período ideal para influenciar as atitudes, construir as lealdades de longa duração, introduzir novos produtos, testar os mercados, promover testes e experiências e, acima de tudo, para gerar vendas imediatas » (p. 110). Para Giroux (2003), como observa Grace (1997),

a cultura comercial substitui a cultura popular, a linguagem do mercado se substitui à da democracia. Ao mesmo tempo, a cultura comercial corrói a estrutura da sociedade civil e a função da escola se transforma para substituir a democracia de cidadãos por uma democracia de consumidores [...]. Esse consumismo tem entre outras consequências oferecer apenas esse tipo de cidadania às crianças e aos adultos (p. 120).

Para dizê-lo de outra forma, o que importa é a aculturação da escola e de seus atores por uma economia de mercado na qual o ser humano se submete a suas exigências, a suas pressões, a sua ética; na qual o saber é monetizado, a cultura é materializada138, comprada ou vendida, onde a cidadania seria ensinada como qualquer outra matéria escolar; o que importa, é o processo de socialização impositiva dos futuros adultos. West (1994) observa que « a cultura de mercado, as dimensões morais trazidas pelo mercado e as mentalidades que ele condiciona provocam a ruptura das estruturas comunitárias, corroem as da sociedade civil e subvertem o sistema de educação concebido para as crianças » (p. 42). Em último caso, a função do sistema escolar é fornecer o capital humano necessário para as empresas (Laval et Weber, 2002), visar desde a mais tenra idade a inserção individual, enquanto capital humano, na lógica economicista do mercado. Raduntz (2005) descreve e demonstra o processo de marketization da educação, que ele apresenta como um processo de despossessão da educação opera com a precisão de uma blitzkrieg, no contexto da economia neocapitalista global.

2.2.2 Os currículos e os conteúdos disciplinares

A visão utilitarista (a se diferenciar do útil139) individualista (a se diferenciar da individualização, resultado de um processo sócio-histórico140) evidencia a produção de um capital humano que não tem mais necessidade de se referir a um conjunto de disciplinas escolares, julgadas “inúteis”, senão obsoletas, mas unicamente a conteúdos que respondam às exigências econômicas. O objetivo é então produzir currículos de ensino mais práticos, mais profissionais, mais úteis. É importante transformar profundamente os currículos existentes através da eliminação, de toda forma possível, das disciplinas escolares e sobretudo daquelas julgadas inúteis, de modo a reestruturá-los segundo os modelos propostos por instituições

137 As noções de autonomia, de responsabilidade, de cidadania e de reflexibilidade serão abordadas na segunda parte desse livro.138 Em um documento de trabalho que pretende ser referência destinado ao quadro de professores sobre a integração da dimensão cultural na escola e que visa a revalorização cultural da formação escolar, o ministério da Educação do Quebec (Governo do Quebec, 2001b), ressalta inicialmente a impossibilidade de « enunciar uma definição da cultura que seja unânime » (p. 2) antes de apresentar três interpretações que ele qualifica de comuns e de concluir que « outros modos de ver podem seguramente ser tão válidos quanto esses » (p. 2). Ele cita em seguida três meios, na sequência explicitados, para assegurar essa revalorização cultural – « reservar um lugar melhor para as disciplinas mais naturalmente portadoras de cultura; favorecer uma abordagem cultural para ensinar certas disciplinas; prever explicitamente a integração da dimensão cultural nas disciplinas » (p. 3) – que expressam essa apreensão da cultura enquanto bem materializado.139 Ver em Caillé (2003, 2009), no capítulo anterior, as diferentes concepções da noção de utilidade. Ele distingue, entre outros, o utilitarismo prático “vulgar”, empírico, individualista e autonomizado, opostamente ao utilitarismo prático “distinto” que caracterizaria o liberalismo econômico primitivo e que, no plano ideológico pelo menos, visava a felicidade da maioria.140 Ver igualmente essas distinções no capítulo anterior.

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internacionais ligados à lógica e aos princípios neoliberais. Se é possível observar essas transformações curriculares através de diversas tentativas atuais internas (abordagem por competência, reagrupamento das disciplinas escolares em áreas, introdução das “educaões para”141, tecnologia142, promoção do empresariado, etc.), mas também externas (os efeitos de PISA, por exemplo, sobre as escolhas governamentais), é porque, como pano de fundo, desenha-se um outro modelo de racionalização humana portadora de valores143 que se opõem aos valores que defendiam a emancipação humana, a dignidade humana, a igualdade de chances, o respeito às diferenças, as relações sociais coletivas, o desenvolvimento cultural, etc.

Bottani, Magnin e Zottos (2005) ressaltam os indicadores da educação adotados pela OCDE, já mencionados no capítulo 1: « capacidade de comunicar, de encontrar a informação, de cooperar com os outros, de agir de maneira autônoma, de utilizar novas tecnologias de maneira interativa, de trabalhar em grupos culturalmente heterogêneos » (p. 68-69). Em uma recente publicação, a OCDE (2014) desenvolve um conjunto de características e de abordagens pedagógicas “inovadoras”144 que incluem « o desenvolvimento das competências do século XXI, tais como a aprendizagem social, o estabelecimento dos vínculos entre as matérias tradicionais por meio de abordagens interdisciplinares e o destaque de áreas de conhecimento específicas, como a linguagem ou o desenvolvimento sustentável » (p. 11). É dizer que a perspectiva é bem de tipo curricular, no sentido em que a atenção está voltada não somente para os conteúdos e sua estruturação, mas também, senão principalmente, para as modalidades pedagógicas.

Na ocasião de um colóquio organizado conjuntamente pelo Center of curriculum redesign (CCR), o Centre pour la recherche et l’innovation dans l’enseignement (CREI) e o Business and industry advisory committee (BIAC) para o qual fomos convidados pela OCDE em outubro de 2013 para tratar da interdisciplinaridade escolar, foi-nos dado constatar, após a apresentação de Charles K. Fadel, fundador e diretor do CCR145, e das conversas que se seguiram, que a estrutura curricular proposta era centrada em um conjunto de situações empíricas e operatórias de vários tipos vinculadas às mídias, às tecnologias, ao meio ambiente, ao empresariado, etc., e de dimensões comportamentais (colaboração, competição, curiosidade, liderança, etc.). À questão do lugar e da importância das disciplinas que não foram de forma alguma mencionadas, a resposta foi que elas eram recursos aos quais se poderia “recorrer”. Cessa concepção do lugar das disciplinas escolares une-se aos resultados da pesquisa INES da Organização de cooperação e de desenvolvimento econômicos (OCDE, 1995) conduzida em doze países a fim de avaliar as expectativas do público em relação ao ensino. Esses resultados mostravam que se o ensino das matérias escolares era sempre considerado na época, mas uma importância maior ainda era dada à inculcação de qualidades como a confiança em si, as qualificações e os conhecimentos necessários para a obtenção de um emprego, bem como a aptidão de viver em uma sociedade

141 O novo currículo quebequense do ensino primário (Governo do Quebec, 2001a) mostra claramente essa responsabilização que lhe foi confiada pelo poder político. Notemos, por exemplo, a introdução da dimensão empreendedora enquanto uma das áreas gerais de formação no novo programa do primário (Ibid.) e que deve ter consequentemente uma presença transversal nos processos de ensino-aprendizagem. Ver nossa crítica das “educações para” em Lenoir (2016). Derouet (2003) observa que « [a] organização do currículo em disciplinas recua diante das exigências da formação para grandes competências sociais: a educação do consumidor, a educação não racista e não sexista, a educação para a cidadania, etc. a força principal desse modelo é responder à demanda da sociedade, das empresas, mas também das classes médias » (p. 78).142 Perrenoud (2011) faz da tecnologia uma “educação para”. Do nosso ponto de vista, acontece o mesmo, por exemplo, com a informática. Trata-se de uma preparação imediata ao exercício de atividades tanto do cotidiano da vida profissional quanto do dia a dia.143 Essa racionalização, baseada no cálculo da rentabilidade financeira, evidencia os valores da performance, da competitividade, da eficácia, da flexibilidade, etc. 144 É assim que o Centre pour la recherche et l’innovation dans l’enseignement (CERI) – Centro para a pesquisa e a inovação no ensino – da OCDE sustenta e promove a abordagem “inovadora” da La main dans la pâte (A mão na massa) que Lebeaume, Magneron e Martinand (2009) veem como uma abordagem « pragmática […] bastante repetitiva e redutora » (p. 206-207) do saber. 145 http://curriculumredesign.org

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multiétnica e multicultural. As dimensões comportamentais relativas à socialização sobrepujavam as dimensões ligadas à instrução. Isso faz pensar que a aquisição de saberes disciplinares é pouco importante, comparativamente àquela outorgada ao comprometimento dos alunos nas atividades e no desenvolvimento da experiência146. É também o que aparece em uma figura recente (figura 1) introduzida pelo CCR (2015), figura que identifica o que os alunos deveriam aprender no século XXI.

Figura 1 – What should students learn for the 21st century? (O que os estudantes deveriam aprender no século XXI?)

Além das skills147, do character 148 et do meta-learning (competências, caráter e meta-aprendizagem) que encabeçam essa estruturação curricular, a figura mantém quatro 146 Ver Lenoir (2014) nas páginas 267 a 271 onde a noção de experiência é tratada com dois significados: o do acúmulo de atividades (pragmática e positivista) e o de formação identitária do ser humano (hermenêutica e crítica).147 As skills remetem às competências instrumentais e não a outras concepções das quais trata por exemplo Rey (1996).148 Por character, o CCR entende qualidades, valores e capacidades de fazer escolhas, enfim, os comportamentos esperados.

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componentes do saber a serem ensinados149: saberes tradicionais (as disciplinas escolares) e saberes modernos, isto é, contemporâneos (tecnologia, engenharia, mídia, empreendedorismo, finanças pessoais, bem-estar, etc.) que estão inscritos nos saberes temáticos ligados à alfabetização e ao pensamento e que são abordados de modo interdisciplinar. Trata-se aqui de pensar o ensino da língua, por exemplo, como uma ferramenta de comunicação, mas não como a expressão de uma cultura, de uma maneira de pensar o mundo.

Nessa lógica partilhada pela OCDE – porque o saber advém do capital humano – os investimentos deveriam ser modulados em função do grau de rentabilidade econômica e dos ganhos por produtividade que eles permitem. Tiramos daí que os saberes ensinados devem ser eminentemente úteis. As avaliações do PISA (Program for International Students Assessment) são sintomáticas dessa orientação instrumental das aprendizagens, pelo fato de que elas apenas concernem a escrita, a cultura matemática e a cultura científica. Consequentemente, é importante reduzir os « conhecimentos julgados inúteis e [ditos] enfadonhos quando estes não têm um vínculo evidente com uma prática ou um “interesse” » (Laval, 2003, p. 43). Essa visão produtivista levou os governos a reivindicar um retorno aos “fundamentos”150, isto é, às aprendizagens que se estima agora serem benéficas para a formação das mulheres e homens “novos”. A obra dirigida por Benavot et Braslavsky (2007) evidencia, em muitos capítulos, as transformações curriculares realizadas em diferentes países do mundo, dentre as quais a marginalização da educação artística (Oeklers et archer Klee, 2007) ou ainda as diferentes razões dadas pelos discursos institucionais, da política nacional e da política global (Rosenmund, 2007)151.

2.2.3 O aporte das disciplinas escolares

Na lógica atualmente dominante, as disciplinas escolares não gozam de boa reputação por inúmeras razões: sua obsolescência; sua ausência de vínculos com a realidade atual; sua incapacidade de responder às problemáticas pungentes do mundo contemporâneo; o pouco interesse suscitado nos alunos por falta de relações com o vivido; seu grau de abstração extremamente elevado; etc. Além disso, o discurso neoliberal insiste na acessibilidade aos conhecimentos por meio das novas tecnologias, ignorando ou querendo ignorar o destino da dimensão estruturante do saber em benefício de um ecletismo essencialmente, cognitivo, quando não informativo.

O que está aqui fundamentalmente em jogo não é tanto a existência das disciplinas escolares, ainda menos a ideia de sua existência estável e imutável, mas o que elas veiculam e estão aptas a expressar e a sustentar. As disciplinas escolares constituíram-se a partir de diferentes influências. Qualquer disciplina escolar tem assim sua própria gênese e sua própria história evolutiva que rementem a situações específicas, a influências, expectativas e necessidades sociais, a interações com as disciplinas científicas, mas também a sua própria dinâmica interna. A partir de uma revisão rigorosa que se refere a filósofos, sociólogos, didatas e historiadores das disciplinas, Lenoir e Hasni (2006) identificaram quatro principais concepções dessas disciplinas escolares levando em conta três polos constitutivos: « a escola com suas realidades e suas exigências, a sociedades com suas influências e suas expectativas e as disciplinas científicas

149 http://curriculumredesign.org/wp-content/uploads/CCR-Knowledge-Framework-December-2015.pdf150 Não se pode confundir essa noção de « fundamentos » ou « aprendizagem útil de base” com a noção de educação fundamental trabalhada por Gohier (1990) e Gohier e Laurin (2001).151 Ver as páginas 189 a 192, e o quadro síntese comparativo entre as diferentes regiões do mundo e em função dos níveis de renda, do caráter emergente economicamente e do pertencimento à OCDE. Encontramos aqui e lá, nos autores, diferentes argumentos que são apresentados para justificar essa transformação dos currículos, dentre os quais, a obrigação de se adaptarem às exigências atuais, a necessidade do bom funcionamento econômico concorrencial da sociedade, a constatação do desinteresse dos alunos, a obsolescência das práticas pedagógicas, a urgência de formar mentes inovadoras, a prioridade em concordar com o savoir-faire (experiência) e não com o saber que seria hoje facilmente acessível, etc. mas, por exemplo, o que vale um “fazer” sem fundamentos cognitivos que possam guia-lo? Não há também uma grave confusão entre saber e informação, entre saber e tecnicidade, entre saber e conhecimento? Etc.

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como fonte de saber confirmado » (p. 138). A saber, as disciplinas escolares formadas antes de tudo enquanto prolongamento da disciplina científica (dimensão disciplinar – exemplo: matemática); a disciplinas escolares concebidas originalmente enquanto produto e desafio social (dimensão sociológica – exemplo: geografia); as disciplinas escolares enquanto produto histórico da escola (dimensão institucional – exemplo: gramática); as disciplinas escolares enquanto produto de uma interação entre a sociedade, a escola e os saberes científicos (exemplo: francês / português).

Esta categorização mostra, por um lado, a dimensão funcional das disciplinas escolares. Por outro, não pode ser possível confundir disciplinas científicas e escolares, o que não exclui, entretanto, a existência de relações mais ou menos fortes entre as duas. Sachot (1998), mostra a este respeito, que se há uma ruptura epistemológica entre a disciplina escolar e a disciplina na qual o professor foi formado, não há, entretanto, ruptura de lógica de cientificidade. O que caracteriza então a disciplina escolar além dos problemas ligados ao debate entre a(s) matriz(es) constitutiva(s) (Develay, 1992; Sachot, 1998), é a « estrutura estruturante » de uma disciplina pela coerência interna de seus conceitos, métodos e técnicas (Develay, 1992), pelas articulações cognitivas das quais ela está investida.

Consciente da existência de numerosas interpretações152 da noção de disciplina escolar, retomamos apenas aquela dada por Reuter (2010) que a define como uma construção social153 submissa a variações sincrônicas e diacrônicas (uma configuração disciplinar) que inclui componente estruturais: conteúdos (saberes, habilidades, relações) que são organizados (por subdomínios, por temas, por períodos, etc.), exercícios, ferramentas, dispositivos de implementação e de controle, etc. além disso, coisa capital, « toda disciplina escolar se organiza [...] mais ou menos explicitamente em torno de finalidades, de visões [...] próprias à disciplina, [...] à escola e ao conjunto das disciplinas [...] ou que ultrapassam o contexto escolar » (p. 85-86). É importante realçar o vínculo obrigatório entre os conteúdos disciplinares e as finalidades que os determinam. Por outro lado, quaisquer que sejam o tipo e a configuração da disciplina, esta não pode pretender à “suposta” pureza das disciplinas científicas. Toda disciplina escolar está investida, carregada em diferentes níveis de outros conteúdos que não são diretamente advindos das disciplinas científicas154. Ela veicula de modo frequentemente implícito – o que não pode ser ignorado – valores, normas, preocupações políticas, opiniões ideológicas, desafios sociais, conhecimentos de usos, práticas sociais de referência, etc., sem contar desvios e ocultações cognitivas155.

Por que, então, preocuparmo-nos com o esvaziamento das disciplinas escolares que o neoliberalismo tente a impulsionar? Se sem dúvida alguma os currículos e as disciplinas escolares são portadores de opções sócio-ideológicas a serviço de uma certa concepção das relações de poder em uma dada sociedade (Bernstein, 1971; Chervel, 1988; Sachot, 1993), não é menos verdade que as disciplinas escolares assumem funções cruciais na formação dos alunos do primário e do secundário. Poderíamos colocar a questão de outra forma: na ausência das disciplinas escolares ou de algumas delas julgadas inúteis – antes de tudo as ciências humanas e sociais e a arte – ou na medida em que seu conteúdo é reduzido a aprendizagens instrumentalizadas, qual seria o impacto disso sobre a educação escolar? A questão posta aqui

152 Por exemplo, Forquin (1989) apresenta várias delas em seu livro École et culture. Le point de vue des sociologues britanniques (Escola e cultura. O ponto de vista dos sociólogos britânicos).153 Cooper (1997) mostra que Musgrove já definia desde 1968 « as disciplinas de ensino como sistemas sociais » (p. 203).154 Não podemos aqui desenvolver uma comparação entre a formação das disciplinas escolares e seu surgimento. Sobre esse ponto, nos remetemos a Dinh (1997), Lemaine, Macleod, Mulkay e Weingart (1976), Messer-Davidow, Shumway e Sylvan (1993), Rossi (1999) e Stichweh (1991, 1994).155 Um exemplo entre mil: ensina-se sempre nas escolas a gravidade a patir da mecânica newtoniana e não da relatividade restrita de Einstein, ainda que se trate de uma explicação aproximativa (aceitável?) de diversos fenômenos (a queda dos corpos, o movimento dos veículos, etc.).

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não trata de modo algum das modalidades didáticas e pedagógicas156 que servem às vezes para justificar seu desaparecimento, mas da própria essência, o cerne, poderíamos dizer, dos conteúdos que são objeto de processos de ensino-aprendizagem. Este cerne não pode ser constituído, na escola primária tanto quanto na secundária, nem de conteúdos enciclopédicos, nem fragmentados, nem especializados (tecnicistas), mas de estruturas conceituais estruturantes do pensamento, de referentes cognitivos articulados.

Suprimir, ocultar, diluir, e mesmo dissolver esse cerne cognitivo através da fragmentação de seus componentes elementares constitutivos, fonte de um « contrassenso dos saberes atomizados e dispersos » (Trouvé, 2010, p. 201) frequentemente reduzidos à « simples informação » (Ibid.), suscita, a nosso ver, derivas educativas graves. A visão destrutiva da cultura estigmatizada por Trouvé, faz do saber um bem de consumo que se confunde com a simples informação dada pela mídia. Diante de uma cultura superficial, feita de migalhas colhidas aqui e ali e que se expressa através de relações comunicacionais fictícias e ilusórias (Wikipedia, Facebook, etc.), o objetivo da escola – e a partir daí, o das disciplinas escolares – seria, em contrapartida, compreender e reconstruir teoricamente o real157 » (Dorier, Leutenegger e Schneuwly, 2013, p. 15), o que significa que a escola é o lugar privilegiado no qual se desenvolvem as capacidades de reflexão, de análise e de sintetização, de sustentação do pensamento crítico, de estruturação dos modos de apreensão e de comunicação e suas relações consigo, com os outros e com o mundo a fim de tornar aptos a agir de modo claro os indivíduos. Uma prioridade indispensável deve então ser dada ao desenvolvimento da conceituação das realidades naturais, humanas e sociais, a fim de que ela possa ser acompanhada de decisões para a solução de problemas, experimentais, comunicacionais, etc. (Lenoir, 2014). Por conseguinte, no lugar de uma formação centrada na aquisição de saberes e de habilidades instrumentalizados, impõe-se, quaisquer que sejam tanto a forma do currículo quanto as modalidades operatórias (didáticas, pedagógicas e organizacionais) adotadas, o desenvolvimento de “estruturas cognitivas estruturantes”, isto é, processos mediadores que Beane (1997) chama de integradores no sentido em que favorecem e sustentam abordagens de aprendizagem rigorosas e sistematizadas e, in fine, a produção de saberes articulados e integrados a sistemas de apreensão de si, do outro e do mundo.

Como escreve Meirieu (1991), a escola deve educar para os grandes problemas, para as questões essenciais, o que exige recorrer ao « conjunto de ferramentas intelectuais susceptíveis de dar ao sujeito a compreensão dele mesmo, a capacidade de viver um pouco mais plenamente todas as dimensões de sua existência, suas tensões afetivas e sua vida profissional, suas relações com o outro e suas relações com o mundo » (p. 126). É o que leva Trouvé (2010) a citar Meirieu, para quem « devemos militar por um « tronco comum » de conhecimentos teóricos e abstratos158 que permitam circunscrever [um] referente cultural comum » (p. 109). Aderindo a essa perspectiva, afirmamos, opostamente à visão neoliberal,

a indispensabilidade da dimensão teórica, imprescindível para pensar e produzir a realidade, para apreendê-la e desenvolver a capacidade de agir sobre ela. Unimo-nos assim a Freire (1971), entre outros, que escreveu: « Diz-se que o pecado capital de nossa educação é seu caráter teórico. Assimila-se assim, absurdamente, a teoria e o verbalismo. A teoria,

156 Quaisquer que sejam a importância e os desafios educativos que elas levantam, essas modalidades não podem ser debatidas nesse texto, ainda que estimemos que elas devem ser discutidas profundamente.157 Falaremos antes de reconstrução da realidade (natural, humana e social) e não de real, apoiando-nos na distinção feita por Lacan (1966), com a realidade se definindo como o produto social e simbólico resultante de um processo de produção humana e social.158 Ainda ressaltamos (Lenoir, 2014), de um ponto de vista praxiológico, a relação indissociável entre teoria e prática retomando o que Lenoir e Vanhulle já tinham escrito em 2006 : « [esta] oposição “teoria-prática” remete então a uma concepção que faz, através de um processo de reificação, da teoria uma entidade distinta e autônoma do agir humano, enquanto ele é inseparável das construções sociais e individuais que o animam (ver Bronckart, 2001). Para Latour (1996) que rejeita radicalmente essa oposição, « a prática é […] um termo sem contrário que designa a totalidade das atividades humanas » (p. 133), a teoria sendo apenas o produto de uma prática e sendo ela mesma uma prática » (p. 215).

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realmente, nos é necessária. Precisamos de uma teoria baseada no real, em um contato analítico com ele, para fazer dele uma experiência, vive-lo e vive-lo plenamente, concretamente. [...] Nossa educação não é teórica porque lhe falta o gosto do experimento, da invenção, da pesquisa aplicada. Ela é prolixa, loquaz, eloquente. Ela é assistencialista. Ela não comunica, ela dita, o que é bem diferente » (p. 97- 98). Miguelez (1973) não o diz de outra forma quando escreve que « o objeto do conhecimento não pode ser conhecido senão na medida em que o produzimos » (p. 41), o que é fundamentalmente um ato de teorização. A concepção que apresentamos repousa sobre essa ideia simples de que o saber é o resultado de um processo de produção do sujeito aprendiz, mas esse processo demanda sustentação e regulação pelo professor (Lenoir, 2014, p. 13).

O que faz desaparecer o neoliberalismo no plano educativo é precisamente o processo de objetivação « que é constitutivo do saber » (Freitag, 1986a, p. 86) e, por conseguinte, a questão do sentido nos planos ontológico, epistemológico e particularmente social. Esse desafio é maior porque evidencia, assim como já lembramos (Lenoir, 2014), com base em Freitag, que

essa relação é indissoluvelmente um processo ao mesmo tempo de constituição do sujeito – que implica então “constitutivamente a dimensão ontológica da subjetividade” (Freitag, 2011b, p. 17), relação que o inscreve por conseguinte em uma relação sócia – e da realidade objetivada que ele produz, que ele estrutura e cujo pertencimento ele reconhece, a partir da qual ele assegura seu reconhecimento enquanto sujeito humano. (Lenoir, 2014, p. 142).

O autor atesta especificamente que o aluno, como todo ser humano, é o « sujeito produtor do conhecimento do real e [é] transformado na volta do processo cognitivo que ele realiza » (p. 142). Consequentemente, as dimensões instrumentais requeridas não são concebidas como fins nelas mesmas, mas unicamente como ferramentas, dispositivos, meios que vêm sustentar as aprendizagens cognitivas.

Essas orientações permitiriam, pensamos, evitar quatro derivas interligadas que são trazidas pelo pensamento educativo neoliberal:

- A primeira e a mais visível é a redução da formação a aprendizagens instrumentais e o crescimento de uma racionalidade individualista e utilitarista. Ora, Bodin (2009) mostra o quanto a racionalidade socioeducativa se opõe à racionalidade econômica e lhe é incompatível:

1) « se a racionalidade econômica se caracteriza pelo cálculo, a pesquisa do perfil e a compatibilidade [… e] pela possiblidade de uma comparação entre o investimento realizado e o resultado obtido » (p. 244-245), a racionalidade socioeducativa não pode em nenhum caso prever ou mesmo avaliar a relação entre seus investimentos educativos e seus efeitos nos alunos;

2) « se a relação comercial enquanto transação é […] pontual » (p. 245), a relação socioeducativa estabelece-se progressivamente, no tempo;

3) para a racionalidade econômica, « o mercado funciona de modo anônimo » (Ibid.) enquanto que a relação socioeducativa é fundamentalmente intersubjetiva.

- A segunda é a desqualificação da distanciação crítica e dos saberes conceituados e codificados – e por conseguinte a extinção de um patrimônio cultural e de grandes obras da Humanidade - à qual se substitui a promoção de um ecletismo cognitivo fundamentado na opinião, no senso comum e no imediatismo de uma informação heteróclita e fragmentada.

- A terceira reside na redução dos saberes e dos seres humanos a ferramentas a serviço do capital e, por conseguinte, na desestruturação do pensamento em nome da valorização de uma subjetivação cuja autonomia e responsabilidade estão submetidas aos imperativos econômicos do mercado.

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- A quarta, mais sutil, é de ordem semântica. À primeira vista, vários termos utilizados pelo discurso neoliberal em geral e em relação com a educação parecem positivos, senão virtuosos. E eles fazem consenso. De fato, e fizemos a mesma constatação no que diz respeito aos novos currículos do ensino no Quebec e às “educações para” (Lenoir, 2016), Laval e Weber (2002) mencionam, referindo-se ao discurso da OCDE, que

[se] tomamos as palavras importantes da atualidade (tecnologias da informação e da comunicação, globalização, sociedade da informação, empregabilidade, autonomia, trabalho em equipe, flexibilidade, exclusão social, envelhecimento, família, concorrência, coesão social, capital humano, etc.) e se clicamos em uma dessas noções que proliferam nas relações da organização, a lógica do hipertexto remete imediatamente a todos os outros. Clicando, por exemplo, em “concorrência” e em seguida em “coesão social”, nenhuma contradição aparece, nenhum conflito é visível, pois um clique automático é programado e encaminha para outros links que vão progressivamente desprover o clique inicial de qualquer energia conflituosa. Desse ponto de vista, e pelas novas vias da tecnologia, uma noção central da OCDE como « a formação ao longo da vida » desempenha hoje uma dupla função. Por um lado, ela dá sentido construindo as coerências. Mas por outro, ela engendra um discurso fechado em si mesmo, generosamente recitativo, sempre normativo (p. 77).

Conclusão

Acreditamos ser absolutamente necessário retraçar a traços largos a gênese e a expansão do neoliberalismo contemporâneo e, sobre essa base, lembrar seus efeitos desestruturantes no plano social – uma “doce barbárie” para Le Goff (2003) –, e depois seus impactos sobre a educação e sobre os próprios fundamentos do desenvolvimento de um pensamento crítico e emancipatório: as estruturas cognitivas disciplinares. Se tomarmos as propostas educativas apresentadas pelo neoliberalismo, proposta por proposta e sem as reinscrever na globalidade do contexto no qual elas foram concebidas ou aliás frequentemente emprestadas de diferentes pensamentos, podemos apenas encontrar o que nos agrada e aderir a isso. Quem, de fato, se oporia ao uso das novas tecnologias, ao desenvolvimento da capacidade de comunicar, de interagir com o outro, de refletir, etc.? Quem hoje não reconheceria a necessidade de uma ancoragem das situações de ensino-aprendizagem em um contexto social ou, ainda, a importância de recorrer aos conhecimentos obtidos com a experiência, com as práticas sociais de referência? Quem negaria a necessidade de aprender ao longo da vida? Pois, compreendamos bem, a escola neoliberal não faz oposição ao saber; ela quer somente que o saber seja domesticado, sujeitado, reduzido, instrumentalizado, para ser útil ao mundo econômico.

Entretanto, somente quando essas visões são reinseridas na perspectiva social de conjunto, quando os conteúdos são identificados e quando esses objetivos e seu teor são esclarecidos pela gênese sócio-histórica das orientações políticas, econômicas e ideológicas atualmente dominantes bem como por seus fundamentos é que é permitido evidenciar os objetivos buscados e seus impactos no campo educativo. Exit os ideiais de formação do “homem honesto” que prevaleciam na Modernidade, do cidadão preocupado com o bem comum no contexto dos Estados democráticos, da educação integral do ser humano preocupado com os desafios coletivos, sociais e culturais, de um processo emancipatório que possa libertar os seres humanos da exploração e da dominação, mesmo que elas sejam brandas e sutis ! Nada disso na escola, hoje, visa formar um assalariado, um indivíduo produtivo, submisso e avassalado, guiado por seus próprios interesses antes de tudo econômicos, um “homem para toda obra”, um técnico e, em um nível superior, um tecnocrata (Freitag, 2011c). Em suma, não um sujeito humano, mas um ator « “ativo” cuja existência parece se reduzir à aplicação de conhecimentos operacionais no exercício de uma profissão especializada ou de uma atividade julgada socialmente útil » (Laval, 2003, p. 60). A escola, nota Tosel (1999), tornou-se ‘desemancipatória’, o molde que prepara para a adesão às normas, aos valores, às prescrições de um sistema social dominado pela concorrência neoliberal.

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Estamos conscientes de andar sobre o fio da navalha, rejeitando ao mesmo tempo a rigidez atual que, por um lado, defende as concepções elitistas e saudosistas da educação escolar e, por outro, a mercantilização da escola e da educação defendida pelo neoliberalismo159. Sem expor as pistas que propõem alternativas – elas são ao mesmo tempo numerosas e diversificadas – queremos chamar a atenção unicamente para a responsabilidade dos professores universitários que assumem a formação inicial – e mesmo contínua – dos professores. Para citar Nizan (1969), « o que fazem aqui […] os homens que têm como profissão falar em nome da inteligência e do pensamento? O que fazem aqui os pensadores de ofícios em meio a essas perturbações? » (p.109). O papel de um intelectual não pode se reduzir à ação única de formação pedagógica e didática, a este trabalho de instrumentalização das mulheres e dos homens que têm a responsabilidade de formar os outros. Quando o horizonte que o guia é o da tecnicidade, mesmo que ela seja progressiva, a visão aplicacional, alimentada por aportes científicos consegue apenas se inscrever na conformação condicionante das concepções dominantes. Baran (1961) nota que essa concepção técnica do “trabalhador intelectual” visa essencialmente apenas a aplicação e o aperfeiçoamento dos meios previstos pelos objetivos e as políticas definidas pelos poderes capitalistas. Ao contrário, a responsabilidade do intelectual, que é a responsabilidade de participar da formação dos futuros formadores, é não passar diretamente a « uma denúncia de todas as ilusões, de todas as falsas percepções propiciadas aos homens ». Assim como pensava Nizan (1969, p. 123), mas no sentido apresentado por Freire (Lenoir, 2014), de implementar, no contexto dos processos de formação, as condições que permitissem aos futuros professores em exercício, através de processos dialógicos, a conscientização das condições efetivas nas quais vivem os seres humanos e se atualizam as relações sociais, de modo a que eles possam escolher libertarem-se das sujeições intelectuais e outras nas quais eles são hoje mantidos e assim, assegurar a liberdade de pensamento e de ação, tão frágil e tão ameaçada atualmente. O verdadeiro desafio, segundo Berl (1970/1929), seria para o intelectual e, portanto, para os formadores de professores, « manter, nas condições cada vez mais deploráveis que lhes dá o mundo moderno, indivíduos fortes o bastante para agir e para pensar » (p. 134-135).

A partir disso, impõe-se uma reconceituação do projeto emancipatório – que produzia efeito tanto nos modelos anteriores quanto no atual – e, por conseguinte, da liberdade e da autonomia individuais. Ora, essa ideia emancipatória enfrenta uma profusão de significados e usos, em particular através de « seu reinvestimento nos discursos neoliberais e gerenciais [o que] poderia contribuir para a lançar a suspeita sobre seu real alcance de transformação social. Estes fazem da emancipação um vetor de desenvolvimento de si na empresa e no mercado » (Cukier, Delmotte e Lavergne, 2013, p. 8). Tradicionalmente, a noção de emancipação era estreitamente ligada à da cultura, a partir do Iluminismo (Voirol, 2013), pois sua associação devia permitir a rejeição das antigas dominações (religiosas, aristocráticas e aristocráticas) e, consequentemente, a libertação dos seres humanos enquanto cidadãos. Atualmente, a noção de cultura foi esvaziada da perspectiva emancipatória que evocavam, como veremos no próximo capítulo, vários filósofos alemães. Ele remete à ideia de « uma implicação crescente dos usuários, transformados enquanto isso em “produtores” e “atores” e a « usos ativos » et a « modos banais de participação » (Ibid., p. 286)160.

No entanto, a escola deveria ter como finalidade primeira apenas a emancipação dos seres humanos que ela forma ou, mais precisamente, segundo Freire (2006), o desenvolvimento de um pensamento crítico, de visão humana emancipatória e social democrática, a busca da

159 Ver entre outros Hofstetter e Schneuwly (2009) que identificam dois polos relativos aos saberes ministrados na formação para o ensino e que encontramos nas representações sociais: um polo “instrumentalista” ao qual associamos a perspectiva educativa neoliberal e o « polo “neoconservador” [que], le pôle “néoconservateur” [qui], sob o pretexto da defesa dos saberes, sustenta uma forma inutável e objetivamente elitista » (p. 20). Vários capítulos do livro de Apple, Kenway e Singh (2005) mostram como os interesses do neoliberalismo unem-se àqueles dos neoconservadores nos Estados Unidos.

160 De nossa parte, definimos a cultura enquanto práticas sociais de base, de alto teor simbólico, representacional e expressivo, que caracterizam a infraestrutura de uma coletividade, que influenciam os modos de fazer e de pensar de seus membros.

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autonomia cujo significado é importante esclarecer161. Se a emancipação é uma ação de libertação de uma alienação, de uma dominação ou de uma servidão (essencialmente da relação com o adulto), ela requer um sólido aparelhamento conceitual de análise que liga assim tecnicidade e elucidação cognitiva de maneira inseparável no quadro de experiências democráticas, sabendo que a emancipação humana é um processo e não um produto; ela não tem, portanto, um fim. Todavia, assim como mostra Go (2014), no contexto escolar a ação emancipatória do professor, que requer o recurso a processos cooperativos, « consiste na recusa em converter os determinismos em destino » (p. 38). Mas

[a] principal dificuldade que encontramos baseia-se no fato que a intenção do professor de favorecer a emancipação dos alunos pela autonomia pode muito bem provocar o efeito contrário. Se a prática do professor (cujo objetivo é a transmissão dos saberes) visa um ideal de emancipação, a atividade de aprendizagem é muito frequentemente vivida pelos alunos, certo ou errado, como uma prova de alienação. É em grande parte nessa ruptura comumente constatada entre a obrigação de estudar e o desejo de aprender que os ideais mais sinceros acabam fracassando (p. 36).

Mesmo a ambição de “sucesso escolar” entre os alunos poderia ter efeitos adversos, pergunta-se Go (Ibid.), suscitando processos de alienação? Hétier (2014) lembra que a alienação é a « perda do sentido e do valor de sua própria atividade » (p. 88) produtora, isso é o que espera muitos alunos do primário e do secundário.

A exigência de reconceituação concerne seguramente as relações sociais que agem no seio das instituições educativas nos processos de ensino-aprendizagem. Freitag (2011a) escreve a esse respeito que « a totalidade do universo normativo que a modernidade tinha polarizado em torno do ideal de emancipação deve ser rearticulado agora em torno do conceito de responsabilidade, um conceito que existe em si mesmo inicialmente apenas como sentimento » (p. 489). Ele acrescenta que a exigência de responsabilidade, ao mesmo tempo individual e coletiva, não pode repousar somente no medo do futuro, sentimento negativo, ainda menos na única oposição à servidão ou no recurso a qualquer princípio universal. A responsabilidade deve sobretudo repousar na busca das relações que os seres humanos estabelecem com a natureza entre eles e com a sociedade, na busca de finalidades ontológicas e de valores positivos da vida humana para assegurar a realização de uma “vida boa”, pois o que importa finalmente para todo ser humano não é ter sucesso na vida – o que é a finalidade utilitarista privilegiada atualmente – mas sim viver bem a sua vida.

De fato, se os modelos científico e liberal de universidade e, mais amplamente, os sistemas de ensino ditos tradicionais trazem em si – ninguém discordaria – uma forte opção elitista, é preciso se perguntar se o modelo dominante atual da Universidade da excelência – da qual será questão – e da escola utilitarista não trazem em si os fundamentos de processos de exclusão e de alienação sociais. Lasch (1978) observava a esse respeito que a cultura terapêutica que valoriza a preocupação de um si individual, qualificada por ele de narcisista, prova o colapso da dimensão humana em benefício de substitutos advindos da sociedade de consumo e do isolamento crescente sob a aparência de processos relacionais sem real valor simbólico. Se o fenômeno se inverteu, o resultado não mudou, senão para pior. Podemos conceber o ser humano como um simples elemento de um agregado, um ator isolado tendo por únicas motivações o interesse instrumental, como únicas perspectivas humanas e sociais as relações utilitárias de tipo comercial?

Por que isso é assim? Por que essa ideia de emancipação está presente na implementação dos sistemas modernos de educação? Porque a finalidade primeira de qualquer sistema educacional concebido no contexto de um Estado-nação é formar seres humanos emancipados, indivíduos iguais, libres e autônomos, como defende todo Estado-nação. Sua especificidade é integrar « as populações em uma comunidade de cidadãos » (Schnapper, 1994, p. 28) e lhes garantir o exercício de práticas democráticas, o que requer a implementação de uma « escola democrática

161 Ver capítulo 8.

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[que] deve dar a todos as capacidades intelectuais necessárias à participação ativa na vida pública » (Ibid., p. 95). Hoje, não é mais permitido conceber a emancipação de um ponto de vista universalista, senão como princípio genérico; é importante ao contrário inscrevê-la em diferentes contextos históricos, sociais e educativos nos quais os processos de emancipação podem de desenvolver, pois a situação e os desafios podem diferir substancialmente. Por conseguinte, as noções de liberdade, de autonomia, por exemplo, são convidadas a cobrir eventuais significações distintas (estabelecimento da igualdade entre meninas e meninos; processos de reconhecimento recíproco da dimensão humana; luta contra a discriminação étnica, contra a violência simbólica ou física na escola ou fora dela; adoção de processos de ensino de qualidade, de processos igualitários quando da avaliação do aprendizado, regras de funcionamento justas e igualitárias, de processos participativos; etc.). Mas, o que quer que seja, todo processo de ordem emancipatória repousa na capacidade de uma responsabilização de seu agir baseada na relação com o coletivo. Retornaremos a isso ao tratar das noções de autonomia e de responsabilidade.