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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA O SACRIFÍCIO DO CARNEIRO UMA RADIOGRAFIA DA PRESENÇA ISLÂMICA EM SALVADOR Por Luiz Carlos Souza Orientador: Prof. Dr. Renato da Silveira Livro-reportagem apresentado para a conclusão do Curso de Graduação em Comunicação – Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

O SACRIFÍCIO DO CARNEIRO

UMA RADIOGRAFIA DA PRESENÇA ISLÂMICA EM SALVADOR

Por

Luiz Carlos Souza

Orientador: Prof. Dr. Renato da Silveira

Livro-reportagem apresentado para a conclusão do Curso de Graduação em Comunicação – Jornalismo, pela Universidade Federal da Bahia

SALVADOR-BAHIA

2004

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“Aquele que fala não sabe, mas aquele que não sabe fala”zen-budismo japonês, tradição oral

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“Quem sabe sabe, quem não sabe não precisa saber”

Candomblé baiano, tradição oral

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Para minha mãe e meu pai

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APRESENTAÇÃO

Os africanos islamizados que chegaram à Bahia nas primeiras três décadas do século XIX

precisaram do apoio de adeptos de outras religiões para lutar contra o poderio escravista.

Tanto na África quanto em “terra de branco”1, o mundo islâmico deixava de ser fechado

como uma ostra, e admitia conchavos com os Kafirs2. Mas o intercâmbio era alvo de

polêmica, tanto que fomentou guerras entre nações no continente negro e mesmo

desavenças entre escravos.

Há indícios de que o arco das alianças tenha ultrapassado a questão estratégica, e adentrado

ao campo ritual. As analogias e sincretismos entre o Islã e religiões tradicionais de

possessão espiritual estavam em curso na África durante a época da escravidão. Como

fragmentos de nações se reconstituíam deste lado do Atlântico, é obvio que o intercâmbio

simbólico continuava.

Foi este meu objetivo durante meses: localizar as evidências desta série de parentescos

estratégicos e rituais entre membros de etnias e religiões diferentes. A tarefa foi difícil,

dada a dificuldade de encontrar testemunhas vivas para dar depoimento. Além do que, ser

negro e muçulmano, após a Rebelião de 1835, era tido como coisa maligna, algo que

repercutiu no imaginário dos próprios escravos. O contra-ataque malê3 foi o silêncio. Não

legaram, mesmo a filhos e netos, a religião um dia revelada ao profeta.

Paralelamente à presença dos resquícios malês, formou-se, na Salvador do século XX, uma

pequena comunidade muçulmana. Eles não reivindicam uma herança dos irmãos de fé que

um dia lutaram na capital, mas é evidente a consagração dos antigos africanos como

mártires. Por outro lado, diversos segmentos do movimento negro se jactam a descendentes

da resistência malê. Mas, neste ínterim, as opiniões se dividem. Há os que supervalorizam a

combatividade de 1835, e outros que a diminuem, acusando o movimento de divisionista e

sectarista.

1 De acordo com os depoimentos colhidos pela repressão, após a rebliao de 1835, era desta maneira que os africanos se referiam a Bahia2 Poderia ser traduzido literalmente com “infiel”; ou seja, qualquer um que não seja muçulmano.3 O termo é de possível origem ioruba – uma corruptela de imále, que designa qualquer indivíduo de religião muçulmana, não podendo portanto ser considerado como nome de um povo ou grupo africano

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Além do mapeamento da lembrança malê, O Sacrifício do Carneiro; uma radiografia do

Islã em Salvador consta de um perfil dos muçulmanos de hoje em dia, através da descrição

de seus hábitos e costumes. Este livro-reportagem tem muitas frentes de embate, dada a

necessidade de agregar fatos ocorridos em séculos de história numas poucas páginas. É

tarefa para uma vida, não para meses ou semanas.

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INTRODUÇÃO

Na escravista “Cidade da Bahia” do século XIX, a morte espreita o negro revoltoso em

plena luz do dia. Por isso, os malês se acautelavam em sobrados mal iluminados. Eles

representavam o efeito colateral do crescimento econômico da Província no primeiro terço

do século XIX – a essa altura uma das mais prósperas regiões canavieiras das Américas.

Com a necessidade de mão-de-obra para mover os engenhos e fazer funcionar a dinâmica

urbana, foram importados indivíduos originários do chamado Sudão Central, atual noroeste

da Nigéria. Letrados na língua árabe e com hábitos e costumes que os separavam dos

demais escravos, foram os principais responsáveis pela Rebelião Malê, o mais sério levante

de escravos urbanos visto em todo país.

Estamos em Salvador, numa madrugada perdida na primeira metade do século XIX, mais

precisamente na virada de 24 para 25 de janeiro de 1835. Aquela foi uma noite de insônia.

Havia rumores de um iminente levante africano, que poderia redundar em assassinatos de

“todos os brancos” e uma revolução na estrutura de poder consolidada. Na capital da

Província, a luta entre opressores e oprimidos ganhara cunho racial. Os brancos levaram

vantagem.

A falta de armamentos e a inevitável dispersão dos negros por várias partes da cidade –

dada a precipitação dos planos, por conta de uma denúncia - facilitaram o trabalho da

repressão. Assim, com um saldo de 60 mortos na peleja, mais 70 africanos deportados e

pelo menos quatro executados pelo pelotão de fuzilamento, o Islamismo foi praticamente

erradicado da cultura baiana. Aparentemente, sobraram apenas “influências”, “analogias”

ou, como querem alguns pesquisadores, “resquícios”.

Quase 170 anos depois, os malês ainda parecem rondar a capital. A (re)inserção do Islã

enquanto prática religiosa na Salvador do século XX foi realizada por negros que vieram

principalmente da Nigéria, região de origem de grande parte dos antepassados malês e uma

das principais rotas escravistas do Golfo do Benin.

Mas presença do Islã entre os baianos vem de muito antes da chegada dos malês. O sheikh4

Mohamed Ragip Al-Jerrari, membro da Ordem Halveti Al-Jerrari, sediada na Turquia,

relembrou, durante o congresso “El Islam em las Orillas”, realizado ainda no ano passado

4 Optei por manter a palavra que designa o sacerdote muçulmano como sheikh. Em português, a grafia correta e xeque, mas optei pela maneira anterior por ser a mais encontrada em livros que tratam da doutrina islâmica.

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na cidade espanhola de Sevilha, que Pedro Álvares Cabral foi acompanhado em sua

expedição de 1.500 pelos muçulmanos Chuhabidin Bin Májid e o navegador Mussa Bin

Sáte. Ainda de acordo com o religioso, através da colonização, muçulmanos portugueses e

espanhóis, embora em número reduzido, também vieram à Província. “Sua presença é

denunciada já no final do século XVI, com a chegada da Inquisição. Processos e relatos do

Santo Ofício referem-se à presença destes muçulmanos, descrevendo práticas e costumes”5.

Aparentemente, a influência islâmica em Salvador poderia ser tida como reduzida, mas

ninguém sabe ao certo até que ponto o candomblé e diversos fatores cotidianos são

influenciados pela religião de origem árabe. O hábito de vestir-se de branco às sextas-

feiras, a ênfase baiana branca de Oxalá (que pode se vestir de vermelho em Cuba, ou

mesmo de preto, em algumas regiões da África), dentre outros aspectos culturais como a

lavagem do Bomfim, são indícios de conexões locais entre a mensagem revelada ao profeta

e tradicionais religiões africanas de possessão espiritual; chamadas algo arbitrariamente, de

candomblé, uma vez que este nome tende sintetizar, sob um único vocábulo, um amplo

leque de religiões africanas. Contudo, a convivência entre os islâmicos e devotos de

religiões tradicionais de possessão nem sempre foi amistosa. Guerras entre civilizações e

impérios serviram de principal elemento para azeitar as engrenagens da máquina escravista

da época.

Uma sucessão de guerras fez com que muçulmanos escravizassem e vendessem os próprios

“irmãos”, misturados com gentes de outros cultos, embora a lei islâmica o proibisse. Ao

final do século XVIII, mais precisamente em 1797, o Kakanfò (general) Afonjá do império

de Oyó, lidera uma rebelião contra o Alafin (Rei de Oyó). O império era de tradição

religiosa, legitimado por direito divino, e encarnava a religião tradicional dos Orixás. No

caso de Oyó, sobretudo o culto a Xangô. Apesar de não ser de origem muçulmana, o

guerreiro Afonjá contou, para o grosso das fileiras de seu exército rebelde, com escravos

islamizados, sendo a maioria de origem haussá, etnia que já de longa data havia assimilado

o Islã.

Assim, a revolta de Afonjá contra seu rei, antes estritamente política, ganhava uma

conotação religiosa. No início do século XIX, as forças do antigo império conseguiram dar

vazão ao impulso contra-revolucionário. Afonjá, temeroso, procurou unir forças com o

5 AL-JERRARI, Mohamed Ragip. Palestra proferida no Congresso El Islam em las Orillas. Disponível em: <www.halvetijeharri.org.br/jeharri>. Acessado em: 17 mar.2004, as 14:30.

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califado de Sokoto, um dos mais poderosos da África Ocidental. Seus aliados assassinaram

o chefe iorubá rebelde e se apossaram de suas hostes, dando início a um lento processo de

conquista em território iorubá.

Toda a região foi varrida por revoltas de pequenas milícias, formadas por chefes

esporádicos. Os perdedores destes conflitos se transformavam no despojo mais valioso da

época. Eram os prisioneiros de guerra, que, quando não resgatados pelos patrícios ou

mortos pelo inimigo, eram vendidos como escravos a traficantes africanos e europeus.

Esse foi, durante as primeiras três décadas do século XIX, um dos principais motivos do

predomínio de etnias de origem sudanesa na Bahia. Inicialmente, os haussás estiveram mais

diretamente ligados ao Islã, mas numerosos contingentes de nagôs-iorubás chegaram

islamizados por aqui, enquanto muitos outros aderiram à religião árabe já na Bahia. A

competitividade islâmica no mercado de almas era assegurada por dois fatores: a atuação

dos mestres malês (alufás, em iorubá) e o prestígio dos muçulmanos dentro da comunidade

africana.

Um fator inegável de atração era a escrita e um pretenso arcabouço cultural mais

sofisticado. Ficava a cargo do Alufá (o mesmo que sheikh, em ioruba) a transmissão da

doutrina islâmica, bem como o ensino da língua e escrita árabes. A chegada islâmica em

algumas regiões da África dinamizou a gestão pública, através da escrita, revolucionou o

comércio, através de uma contabilidade mais ajustada e, as cavalarias, tão imprescindíveis

ao império de Oyó, ganhavam renomados veterinários.6

Decorridos mais de dois séculos após a chegada dos muçulmanos escravizados em

Salvador, a doutrina islâmica atraiu alguns estudantes da Universidade Federal da Bahia

(UFBA). O professor de Inglês, Abdul Hakim, que freqüentava o Restaurante Universitário

(RU), ainda no início da década de 90, conheceu de perto a religião islâmica e acabou se

convertendo à doutrina cerca de um ano depois do primeiro contato com os preceitos

corânicos. O pequeno grupo era liderado por um estudante nigeriano. Ele esperava

encontrar na Bahia uma comunidade islâmica organizada, mas teve que começar o trabalho

de proselitismo da estaca zero.

6 SILVEIRA, Renato da. A queda do Império de Oyo e o novo pacto nagô-ioruba. In: Iya Nasso Oka, Baba Axipa e Bamboche Obitiko; uma narrativa sobre a fundação do Candomblé da Barroquinha, o mais antigo terreiro baiano de Ketu. Salvador: inédito, [S.d.]

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Daquele primeiro “time” muçulmano, Hakim é o único remanescente. “Foi um colega

africano, que, se não me engano, hoje, está em São Paulo. Éramos um grupo pequeno, que

trocava informações durante o almoço, ainda quando o RU funcionava ali no Campus de

Ondina”7, relembra. O colega ao qual refere-se Abdul Hakim chama-se Misbah Akani, ex-

diretor do Centro Cultural da Nigéria na Bahia, e estudante de Letras8.

Apesar do Islã ter vocação universal, a simpatia dos estudantes negros deu-se quando

ficaram conscientes de que aquela era uma religião praticada por africanos, continente que

atualmente concentra cerca de 30% dos muçulmanos de todo o mundo, de acordo com o

centro de pesquisas International Population Center, vinculado à Universidade Estadual de

San Diego – Califórnia, Estados Unidos da América (EUA)9. Ainda de acordo com o centro

de pesquisas, são cerca de 1,3 bilhão de islâmicos em todo o mundo (um quinto da

população do planeta).

Os recentes adeptos, convertidos sobretudo na década passada, foram atraídas por aquilo

que poderia ser considerado o grande Satã da religião árabe em todo o mundo: a mídia.

Instigados pelo que viam na TV, gente que não tem ascendentes árabes na família acabou

se convertendo. Com sua mensagem de igualdade entre os homens, o Islã transformou-se

numa alternativa filosófica, para quem não está satisfeito com o modo de vida ocidental.

A religião parece ter vindo a preencher uma lacuna deixada pelo Comunismo, pois, para o

fiel, ser muçulmano não é apenas uma adotar uma religião, mas assumir na vida um

estimulante posicionamento político e existencial. Mesmo aquilo que, aos olhos dos

incrédulos, poderia ser tido por opressão, como por exemplo, o uso de véus pelas mulheres

ou a disciplina das orações diárias, para o crente são passos para uma comunhão íntima e

pessoal com Alah10.

* * *

7 Entrevista cedida por Abdul Hakim, um dos fundadores do Centro de Cultura Islâmica da Bahia. Em 04 dez.2003. 8 Não foi possível encontrar o articulador principal para a fundação do CCIBa, Misbah Akani, mesmo após contato com o CCIBa e a embaixada da Nigéria no Rio de Janeiro.9 BELT, Don(ed. Sênior da National Geographic).O mundo do Islã. In: National Geographic Brasil. São Paulo: Abril, 2001.P. 16-21.10 Embora a palavra aportuguesada seja Ala, resolvi manter a grafia mais usada pelos tradutores dos livros de cultura islâmica, usando Alah, ate para preservar a sonoridade.

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Como a investigação do assunto envolve muitas variáveis, optei por dividir o presente

estudo em duas partes. No primeiro capitulo, o tema é os muçulmanos africanos que

fizeram a rebelião de 1835, e os elos que formaram dentro da comunidade negra para fugir

da repressão subseqüente a insurreição. No segundo capítulo, descrevo a comunidade

islâmica da Salvador do século XXI. Praticamente os novos muçulmanos não têm nenhum

elo com os malês do século XIX, mas prosseguem numa resistência silenciosa. O mundo

tem uma visão deturpada do Islã. O senso comum, fomentado pela mídia, insiste em vê-los

como radicais e fundamentalistas, não conhecendo o Islã como religião da paz. Este

trabalho não pretende esgotar o assunto abordado, uma vez que a presença islâmica em

Salvador é composta por diversas nuances divergentes, que jamais poderiam ser abarcadas

em sua totalidade.

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PRIMEIRA PARTE:

Os afro-muçulmanos do século XIX o desafio de sobreviver e existir em meio à

perseguição.

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Pontes estratégicas

Durante as primeiras três décadas do século XIX, a Província da Bahia se viu assolada por uma série de rebeliões escravas. Negros africanos de diversas etnias e religiões se uniam para dar um basta à escravidão.

A tradição rebelde das primeiras três décadas do século XIX envolvia pontes estratégicas

entre escravos de diversos grupos étnicos. Uma mão mais leve segurava as rédeas da

província da Bahia naqueles anos entre 1810 e 1818. Trata-se do Conde dos Arcos, que

permitiu aos negros o lazer e integração, a partir dos chamados “batuques”, eventos que

poderiam ir da diversão até cultos tradicionais de possessão. Mesmo as celebrações afro-

católicas eram freqüentemente acompanhadas por atabaques e danças, além da inclusão da

coroação de reis, rainhas e demais membros de uma corte fictícia entre os negros.

Em 28 de fevereiro de 1814, cerca de 250 rebeldes atacaram armações de pesca em praias

situadas ao norte da capital, e marcharam para o Recôncavo, com a declarada intenção de

matar brancos e mulatos. Por onde passavam, destruíam e pilhavam as propriedades que

encontravam pela frente. O avanço dos insurrectos foi interrompido às margens do Rio

Joanes, na região de Santo Amaro. As autoridades encarregadas de reprimir a rebelião e

inquirir os revoltosos apuraram que a tentativa de tomar a Bahia foi comandada por um

certo mullá João, de nação haussá e um “Rei” de nome Francisco Cidade, uma espécie de

segundo em comando. Ambas as figuras, extremamente misteriosas, não foram capturadas

pelas forças policiais e militares.

Cidade foi caracterizado nos depoimentos dos prisioneiros como presidente das danças de

sua nação e da sua gente. De acordo com João Reis, a descrição poderia caber tanto a um

Sarkin Bori, uma espécie de líder espiritual da religião haussá, ou mesmo pertencente a

uma irmandade de leigos11, que à época somavam cerca de uma centena, apenas na

Província da Bahia. Apesar de serem invariavelmente sufocadas ao longo do tempo através

do “salutar efeito do exemplo”, o arco de alianças em torno das rebeliões não parava de

crescer.

Não era momento para ser sectário. Mais importante era enfrentar o inimigo comum: o

branco escravista e opressor. As sucessivas escaramuças ultrapassavam o limite de homens

11 REIS, João Jose. Rebelião Escrava no Brasil; a historia do levante dos males em 1835. Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 104.

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que aspiravam a liberdade pela força, e ganhava contornos de conflito racial. De um lado,

havia os brancos, de outro negros e, talvez, oprimidos entre os dois grupos, toda uma sorte

de mestiços, freqüentemente cogitados como prováveis escravos, em caso de vitória

africana nas guerras de libertação.

Já em 1809, uma rebelião foi barrada no seu nascedouro. A surpresa foi a ampliação sem

precedentes do número de nações envolvidas no plano do levante, predominantemente

comandado por tapas e haussás, vizinhos na África e tão islamizados quanto adeptos das

religiões tradicionais de possessão. A peculiaridade inédita nos planos desta revolta era a

presença de índios, que queriam reaver suas terras12.

Talvez a maior evidência do entrelaçamento entre os adeptos do Islã e do candomblé, ao

longo da tradição rebelde que marcou as primeiras três décadas do século XIX, seja dada

pelo jornalista e advogado Jehová de Carvalho, ogã do Zoogodo Bogum Malê Rundó,

terreiro situado no Engenho Velho da Federação. Carvalho atesta as apurações realizadas

por Antônio Monteiro no seu livro Notas Sobre Negros Males na Bahia, através da tradição

oral do terreiro. “O Bogum teve, de certo modo, não uma participação, mas uma presença

no terceiro movimento malê de 1826”, observa Carvalho; e conclui:

“Havia, próximo à Igreja dos Quinze Mistérios, uma dependência feita para guardar donativos. A dependência e o cofre que recebiam estes donativos tinham o nome de Bogum. Malograda uma insurreição, em 1826, um negro islâmico que fugia da perseguição policial levou o cofre para as matas, onde hoje é a Avenida Vasco da Gama, às encostas do Engenho Velho.E lá, certamente ao contato de um povo de uma certa aldeia de negros deixou este cofre, que foi trazido para o Bogum. O local então passou a se chamar Bogum, e o candomblé também, devido a que esta casa passou a ter uma ligação com esta aldeia, certamente devido à presença de líderes malês, que eram homens que falavam em árabe, que tinham inclusive papel social marcante na comunidade”.13

Acusados de divisionistas, ainda que estivessem no seio de uma comunidade africana

transplantada para este lado do Atlântico, era forçoso que os malês fizessem conexões

estratégicas com praticantes de outras religiões. “Foram encontrados patuás com orações

corânicas ao lado de ‘feitiços’, entre os objetos confiscados pela polícia em 1835.

12 REIS, João Jose. Rebelião Escrava no Brasil; a historia do levante dos males em 1835. Edição Revista e Ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p. 85-86.13 CARVALHO, Jehová de. Nação-Jeje. In Encontro de Nações de Candomblé. Salvador: Ianamá, 1984. p. 55 - 57

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Poderíamos dizer que o ‘núcleo duro’ da rebelião tenha sido formado por negros

muçulmanos, mas é evidente a participação de outros grupos religiosos no levante”,

considera o historiador João Reis14. Se as analogias entre religiões tradicionais de possessão

e o Islã já ocorriam na África, ganhava tônus dentre os escravos baianos.

Como os acordos eram tácitos, qualquer registro neste sentido fica no plano da tradição

oral. Esta parte da maçonaria negra sobreviveu aos inquéritos policiais, e mesmo os

descendentes diretos dos negros islamizados pouco sabem a respeito. Mas os conchavos

rituais e políticos não desapareceram com os guerrilheiros. Mesmo depois da rebelião de

1835, os afro-muçulmanos continuavam a ser caçados. A única forma de sobrevivência era

associar-se a instituições que possibilitavam a aquisição de prestígio dentro da sociedade

comandada pelos brancos, o que era possibilitado através das irmandades de leigos. Os

descendentes dos malês pouco sabem a respeito, mas dão pista em relação ao assunto.

O encontro com a neta do sheikh iorubano

Perdido com um caderno na mão e acossado por um calor já insuportável àquelas duas da

tarde, pedia informação a um e outro transeunte. Ninguém sabia onde era o número 39. Um

senhor de olhar paternal e com rugas no rosto estaca ao portão de uma das casas. Era

apenas uma questão de tempo. Ele sabia que poderia ajudar-me. Quando fui me

aproximando, ele sorriu, as rugas em volta dos olhos se tornaram mais evidentes. “O senhor

conhece a Dona Ivone, da casa 39?”. “Fica ali”, respondeu.

Como a senhora havia me indicado quando conversamos ao telefone, havia um muro

coberto de plantas. O que ela não me havia adiantado é que o próprio número da casa

também estava encoberto. Após nos termos apresentado, entrei na sala de estar, na qual fui

alegremente recebido por um poodle. Em cima da mesa, me esperava o tessubá, uma

espécie de rosário com uma série de contas de madeira, usado nas orações islâmicas.

Dizem que foi daí que os cristãos tiraram o terço. Eu contei cada peça. Estava completo.

Exatas 99. “Era do meu avô, José Maria, o Alufá Salú”, conta Dona Ivone. Neta de José

Maria dos Santos e Marcolina Constância da Silva (Satu), Ivone Silva da Paixão é um dos

últimos elos numa cadeia de origem nigeriana e ascendência muçulmana. A família é

14 Entrevista cedida pelo Profº João Reis em 7 de Mar. de 2004.

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originária de Lagos, na Nigéria, provavelmente de nação nagô. Os avós de dona Ivone

chegaram à Bahia nos idos de 1830. Não há informação da participação deles no levante de

1835.

Apesar de sobrinha-neta de um dos últimos malês de vida religiosa ativa na cidade, Manoel

Nascimento Silva, o Gibirilo (Gabriel, numa referência direta ao arcanjo), do Islã a senhora

só lembra dos cultos a portas fechadas, da comida especial feita à base de inhame, que ia à

mesa ás sextas-feiras, e do modo fechado como se comportavam os malês da família. “Eles

não queriam ver crianças abusadas nas orações. A única coisa que tio Nascimento fazia

questão era que todos participássemos da Irmandade do Rosário dos Pretos”, relembra a

enfermeira e professora primária15. Dona Ivone da pistas, em relação ao tipo de Islã

praticado pelo tio-avô. Ela suspeita de que Gibirilo freqüentasse o terreiro Ile Axé Opo

Afonja, em São Gonçalo do Retiro, periferia de Salvador.

Não era apenas o fervor religioso que pesava na decisão da fazer parte das irmandades de

leigos. As agremiações funcionavam como verdadeiras agências de prestígio. O poderio

escravista e colonizador europeu lançara mão dos agrupamentos como forma de separar os

afrodescendentes por etnias e devoções a santos supostamente negros. A expectativa era

que a velha tática de dividir para governar viesse bem a calhar, no sentido de refrear as

ações rebeldes entre os escravos. A definição da hierarquia interna para os cargos

administrativos poderia gerar ódios, divisão por facções, mas respeito e projeção social para

aqueles que conseguiam ascender aos níveis mais destacados.

A contribuição mensal para os fundos das irmandades, religiosamente paga pelos

associados, não servia apenas para financiar as festas públicas das instituições, mas

funcionavam como previdência social, no sentido em que pagavam pensão à viúvas e

incapazes.

Fora isso, longe das vistas do inimigo comum, o branco escravista, redes de solidariedades

se criavam dentro das instituições. O fato das irmandades terem surgido com a aquiescência

da Igreja Católica não as impedia de aceitar, como membros efetivos, indivíduos que

professavam outras religiões, como foi o caso do Gibirilo, muçulmano, malê, mas

efetivamente ligado à Sociedade Protetora dos Desvalidos, instituição fundada em 183216.

15 Entrevista cedida por Dona Ivone Silva da Paixão em 23 de Mar de 200416 BRAGA, Júlio Santana. Sociedade Protetora dos Desvalidos; uma irmandade de cor. Salvador: Ed. Ianamá, 1987. p. 28

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A assembléia criativa da Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos

Desvalidos, nome que inicialmente batizou a agremiação, foi realizada na Capelinha dos

Quinze Mistérios17, reduto reconhecidamente muçulmano. A propriedade malê sobre a

Capela é algo não comprovado apenas pelos relatos e documentação reunidos por Antônio

Monteiro18, mas também numa instrução deixada pelo Manoel Nascimento à sobrinha-neta

Ivone da Paixão: “Cuidem bem daquilo ali. Aquilo é de vocês”.

Ainda de acordo com a documentação levantada por Monteiro, Luiz Teixeira Gomes e José

Nascimento, respectivamente escrivão definidor e conselheiro mor da Sociedade da

primeira mesa da Sociedade, em 1832, eram reconhecidamente malês, sem que isso os

afastasse do trabalho numa irmandade aparentemente Católica.

A Irmandade do Rosário dos Pretos das Portas do Carmo, da qual Dona Ivone foi priora por

dois biênios, tem em Santo Antônio de Catargeró seu santo de devoção. A fim de facilitar a

aproximação dos fiéis, a Igreja evocava o culto a santos supostamente negros, como este

Santo Antônio, que era islâmico na África, mas resgatado para fé cristã por missionários

europeus. A presença dos malês em instituições do gênero aparentemente passou

despercebida às autoridades, mas o fato e que sobrevivência e resistência cultural e

religiosa apareciam escondidas sob o manto protetor das irmandades de leigos. Por força da

situação, os afro-muçulmanos do século XIX não poderiam ser divisionistas. O momento

era de atar laços e unir forças, ainda que houvesse sacrifício dos princípios um dia

revelados ao profeta. Os conchavos estratégicos eram inevitavelmente legitimadas pelo

elemento ritual.

17 BRAGA, op. cit.,p.18.18 MONTEIRO, Antônio. Notas Sobre Negros Malês na Bahia. Salvador: Ianama, 1987. p 33 – 35.

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Paralelos rituais entre Islã e Candomblé

“É provável que ao longo da primeira metade do século XIX o universo ritual e simbólico das populações iorubanas já estivessem fabricando conexões significativas, entre os filhos de orixás e filhos de Alah. Estas conexões se tornariam mais evidentes num período posterior, quando os adeptos da religião tradicional passariam a reservar um lugar especial para os muçulmanos em sua mitologia, considerando-os associados aos orixás brancos (funfuns), especialmente o grande Orixalá (Oxalá no Brasil).”19

Uma vez ao ano, na estação do Haj, a porta da Caaba, de ouro e prata, é aberta para o ritual

sagrado de lavagem do interior. Segundo a tradição, no ano de 630 d.C, Maomé limpou a

Caaba de todos os ídolos, reafirmando o Islã como religião do Deus único, Alah. A limpeza

ritual, presente em todo o continente africano, talvez seja herdeira da celebração

muçulmana. Na esteira de tribos nômades do deserto, como os Tuaregues, e na força das

espadas dos conquistadores mouros, diversos fragmentos da religião islâmica encontraram

dentre as civilizações africanas campo fecundo.

Não pela primeira vez na história, o mundo muçulmano estava dividido: de um lado, os

adeptos de um Islã mais “relaxado”, sincrético; que admitia diálogo com as práticas

religiosas tradicionais da África, como a possessão espiritual e uso de atabaques. De um

outro, um movimento de efervescência religiosa fundamentalista, defensor de um Islã puro,

tal qual pregava Mohammad.

Ao longo da primeira metade do século XIX, o Islã ganhava fôlego como força político-

religiosa na África Ocidental, que corresponde, nos dias de hoje, a atual Nigéria, Níger,

Mali e Namíbia; o então chamado Sudão Central. Na região localizavam-se diversos reinos

ou estados haussás, como Kano, Gobir, Katsina, Zaria e Zamfara. Entre as últimas décadas

do século XVIII e início do século XIX, se avolumava, dentre os haussás, um movimento

de fundamentalismo, com a revisão dos valores que inspiravam os muçulmanos locais.

O líder maior deste movimento era o sheikh Usuman Dan Fodio de origem fulani, grupo

étnico que compreendia cerca de 20% da população haussá. Mais uma vez, a instabilidade

religiosa trazia convulsões sociais, o que atrapalhava o comércio e os lucros das classes

mais abastadas. Havia, inclusive, um clima milenarista, com a expectativa de aparecer em

breve um messias (mahdi), enviado por Alah para presidir o fim dos tempos daquele século

XIII do calendário muçulmano. 19 REIS, João Jose, Rebelião escrava no Brasil; A Historia do Levante Male em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. p 276.

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O líder espiritual e seus acólitos viviam em Degel, uma vila do reino haussá de Gobir, onde

a comunidade por ele regida passara a ser guiada por leis muçulmanas mais estritas, a

sharia. A comunidade guiada pelo líder espiritual Dan Fodio era um oásis de puritanismo,

esmagado por uma atmosfera onde reinavam as analogias religiosas entre o Islã e o Bori, a

religião tradicional dos haussás20.

O religioso já havia sido proibido de pregar em território Gobir e exigir da sua comunidade

o uso de turbantes pelos homens e véus pelas mulheres. O líder espiritual contra atacava,

acusando os chefes haussás de permitir a escravização de muçulmanos, contra os cânones

da tradição islâmica, que prega a igualdade entre os homens. Muitos destes escravos,

vítimas das convulsões internas dos povos haussás, eram vendidos a traficantes do império

de Oyó.

O destino aproximaria as trajetórias de dois homens, cada qual a seu tempo, mas com

adversários similares. Como o profeta, quase mil anos antes fora forçado a fazer, Dan Fodio

também realizou a sua hégira. Temeroso de ataques contra a sua gente, o religioso

transferiu-se para o território de Gudu. A nova geografia do Islã haussá serviria como

sustentáculo para o que ficou conhecido como uma revolução no pensamento islâmico, a

partir do momento em que é empenhada uma jihad contra os próprios muçulmanos, ou pelo

menos contra povos que encarnavam a tradição de culto a Alah, mas da maneira sincrética e

desviada das normas estabelecidas pelo profeta.

A guerra não se limitara a Gobir, que, depois de alguma resistência foi vencido. Em 1808, o

movimento já atraíra ou sobrepujara diversos estados haussás. Inspirados no mesmo

fundamentalismo religioso que lançara os árabes contra a Europa, África e Ásia, a

comunidade guiada por Dan Fodio acabou fundando, em meados de 1810 o poderoso

Califado de Sokoto, que mais tarde se dividiria em três grandes reinos Wurnô, Gandô e

Adamauhá.21

É no meio desta confusão onde política se misturava com religião, que data a imigração dos

haussás para o Brasil, por meio do tráfico negreiro. Os iorubanos, chamados pelo nome

genérico de nagôs, eram tradicionalmente importados para o Brasil. Estes, tradicionais

cultuadores de orixás, começaram a trocar influências com os haussás, inclusive aderindo 20 REIS, João Jose. Os filhos de Ala na Bahia. In: Rebelião Escrava no Brasil; A Historia do Levante Male em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 200321 RODRIGUES, Nina. Os negros mahometanos. In: Os Africanos no Brasil; revisão e prefacio Homero Pires; notas bibliográficas Fernando Sales. São Paulo: Companhia das Letras, 2003

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ao Islã. As guerras foram um dos vetores para a entrada do Islã no país Iorubá. Os haussás

assediaram o império, destruindo a capital do império de Oyó. Numa ousadia e falta de

respeito nunca vistas, os muçulmanos invadiram, na capital Oyó-ilê, centros onde se

cultuavam os ancestrais nagôs, os egunguns, destruíram roupas sagradas e profanaram

diversos santuários22.

O governador da província de Ilorin, então sob jugo Iorubá aspirou a independência,

aliando-se para isso aos haussás. Traído, o governador Áfonjá, sobrinho do rei, foi

queimado vivo em 1825. Ilorin caiu para tornar-se um emirato, uma pequena Meca africana

no território iorubá. O certo é que para a Bahia do século XIX vieram muçulmanos em

diversos níveis de conversão. Tanto os praticantes do chamado Islã culto, quanto aqueles

que promoviam uma série de analogias entre Alah e as divindades tradicionais africanas.

Aqui, eles tiveram que se unir contra o inimigo comum: o branco escravista. As alianças

podem ter ultrapassado a questão puramente militar, que está no cerne das rebeliões

escravas ocorridas ao longo das três primeiras décadas do século XIX, fazendo

considerações de ordem estratégica adentrarem no campo ritual.

Festividades como a lavagem do Bomfim, ou a cerimônia de Águas de Oxalá são índicos de

parentesco simbólico entre a religião árabe e cultos tradicionais de possessão. A cor branca

do abadá (também conhecido como agbadá e abayá), além das abluções diárias e a lavagem

dos cadáveres antes do sepultamento – tarefa realizada pelos sacerdotes muçulmanos; os

sheikhs – são outros indícios de parentesco simbólico com o pai de todos os orixás; a

divindade do branco, o Oxalá dos nagôs.

Um grande pano branco, coincidentemente denominado Alá, é o mais importante emblema

de Oxalá; e sua maior festa é conhecida como “Águas de Oxalá”23. “Durante a madrugada,

de maneira disciplinada, e em silêncio, cada qual entra na casa do santo e limpa tudo com

água perfumada”, descreve Josenice Brandão, a equédi Sinha do Ilê Axé Iyá Nassô Oka, a

Casa Branca, localizado na Vasco da Gama24. A equédi define o ritual como sendo de

purificação e limpeza.

O pesquisador Vivaldo da Costa Lima adverte que, apesar das evidências, não se pode

encontrar com segurança vestígios denunciativos da presença de nações muçulmanas nos 22 REIS, João Jose. Os filhos de Ala na Bahia. In: Rebelião Escrava no Brasil; A Historia do Levante Male em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 200323 Cf.Anexo 01:CARIBÉ; VERGER, Pierre Fatumbi. Lendas Africanas dos Orixás. São Paulo: Ed.Corrupio, S.d.24 entrevista cedida por Josenice Brandão, em 22 de Jan. de 2004.

Page 21: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - FACOM · Web viewHá os que supervalorizam a combatividade de 1835, e outros que a diminuem, acusando o movimento de divisionista e sectarista. Além

candomblés25. Ainda de acordo com Lima, as famílias que praticavam a religião islâmica

migraram convenientemente para o catolicismo, ou mesmo para o candomblé, mas tudo

fica no plano da tradição oral. Como estas tradições são vagas, o estudioso esquiva-se de

dar maiores declarações sobre o assunto, afirmando que somente uma investigação mais

apurada poderia trazer à tona vestígios de parentesco simbólico entre os candomblés e o

Islã.

Os caminhos que nos conduzem pelo labirinto semiológico das aproximações entre os

filhos de Alah e devotos do candomblé são mais tortuosos para serem estabelecidos aqui

nas plagas baianas. Navegar por estes meandros pode ser tão perigoso ao pesquisador

quanto guiar um barco pelo Rio Amazonas. Aqui, um remanso, acolá um novo braço do rio,

e, mais adiante, um tronco de árvore, ou mesmo um banco de pedras revestido por areia,

algo que pode levar a embarcação a pique.

O fato é que as religiões africanas tradicionais de possessão espiritual demonstraram o seu

poder de criar laços, associações, algo que talvez se tenha constituído numa tecnologia de

proteção ritual desenvolvida ao longo de séculos de confronto com os adeptos do chamado

“Islamismo culto”, quando ainda em solo africano. Por outro lado, a mensagem deixada

pelo profeta prega a união. Um único Deus, um último profeta, e a necessidade de uma vez

ao ano, ou pelo menos uma vez na vida, os muçulmanos visitarem Meca e prescreverem as

suas sete voltas em torno da Caaba, conforme manda a tradição.

A unificação espiritual traz uma perspectiva de união política, com a cidade natal de

Mohammad26, como centro do mundo islâmico. Talvez como tudo o que aspire a

universalidade, o Islã pretenda sufocar as especificidades.

Por outro lado, o Catolicismo parecia aprender com o poder analógico, ou mesmo

sincrético dos candomblés. As irmandades de leigos formadas por afrodescendentes

cultuavam santos supostamente negros, fator que facilitava identificações e fervores.

Paralelamente, ao longo do século XIX, o Islã na Bahia assistia a uma grande evasão de

adeptos. Colaboravam para isso o desaparecimento gradual da proteção isoladora das

línguas africanas, em geral desconhecidas mesmo da população crioula. Além do mais,

antigos mestres muçulmanos morriam com o conhecimento ritual, e novos alufás não

25 entrevista cedida por Vivaldo da Costa Lima em 11 de Dez. 2003.26 A palavra aportuguesada e Maomé, mas uso Mohammad, mais uma vez para preservar a sonoridade original do idioma árabe e para estar de acordo com os tradutores islâmicos.

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vinham mais da África, dada a extinção do tráfico. Estes podem ser alguns motivos da

extinção do Islã enquanto prática religiosa em Salvador ao longo do século XIX. Por outro

lado, reservados mesmo em família, os malês não transmitiram a filhos e netos e fé

muçulmana.

Embora o candomblé tenha sofrido perseguição talvez tão ferrenha quanto à observada

contra o Islã27, o diretor do Centro de Estudos Afro-orientais (CEAO), Jocélio Teles28,

fornece pista para a sobrevivência das religiões tradicionais africanas. “O candomblé

conseguia dialogar com o poder, através da concessão de cargos honoríficos. O exercício

destes postos não exigem maiores compromissos com a liturgia e ‘obrigações’ da casa.

Portanto, poderíamos dizer que tradicionalmente houve uma troca de prestígios entre os

cultos de possessão e o poder instituído” , observa.

Vivaldo Costa Lima catalogou cerca de 40 cargos honoríficos nos candomblés jejes-nagôs

da Bahia29. Já no Islã, não existem cargos de honra, ou assentos especais. Todos são iguais

perante a Alah. Nem mesmo o túmulo de Mohammad, na cidade sagrada de Meca, merece

qualquer adorno especial, embora o peregrino possa render homenagens ao profeta em seu

íntimo. Isto não é pecado aos olhos de Deus.

Mas se a aproximação entre o Islamismo e os orixás do branco já ocorria na África,

ganhava tônus na Bahia. Fragmentos de nações africanas se reconstituíam em “terra de

branco”, ao longo da transição dos séculos XVIII para o XIX. Oxalá não consome álcool,

se veste exclusivamente de branco e tem nas águas a sua fonte maior de purificação. Na

Bahia, talvez pela influência malê, o orixá só se veste de branco, enquanto em Cuba, ele

pode apresentar-se de vermelho e branco, ou mesmo de preto, como ocorre em algumas

regiões da África.

Em ambas as religiões, homens e mulheres participam das celebrações públicas separados,

com a diferença de que, no Candomblé, eles e elas oram lado a lado, enquanto no Islã, os

homens, na maioria das mesquitas ficam à frente. Jorge Barreto Santos, Taata N´Kese Mutá

27O candomblé baiano livrou-se do jugo policial apenas em 1976, através do decreto-lei n.º 25.095. Ainda hoje, os terreiros pagam Imposto Sobre Propriedade Territorial Urbana (IPTU), contra o determinado na Constituição Federal. De acordo com o código, templos religiosos estão livres da tributação. A ong Koinonia, que representa juridicamente 15 terreiros de candomblé na grande Salvador, conseguiu recentemente decisão administrativa que livra do tributo pelo menos três sedes religiosas. 28 Entrevista cedida por Jocélio Telles, diretor do CEAO, em 8 de Abr. 2004.29LIMA, Vivaldo Costa. A Família de Santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia; um estudo de relações intergrupais. Salvador: Ed.Corrupio, 2003.p. 101-102

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Ime30, do terreiro angola de Mutalambô, localizado no Alto de Coutos, considera como

“possível” o parentesco entre as duas religiões. Mutá avalia que a divisão entre homens e

mulheres, no culto dos candomblés de Angola, vem para assegurar a respeitabilidade,

durante o ritual, e servir para um “equilíbrio energético” do barracão, como no que

poderíamos nos referir, grosso modo, a uma (bi)polaridade Yin – Yang.

O supremo Deus do candomblé, Olorum, não tem elegúns, imagens ou cultos específicos,

nem sequer intervém nas disputas entre os orixás, encharcadas, às vezes, de sentimentos

humanos como a paixão, ciúme e a ambição. Este “supremo isolamento” de Olorum, teria

feito com que, em solo africano, tivesse sido construída uma ponte ritual que o aproximaria

a Alah, formando uma síntese; Olorumuluá, a suprema divindade male31.

Os sacerdotes de Ifá, o orixá regente do oráculo de nozes de cola, passaram a identificar os

muçulmanos da África com os devotos do santo pai da criação, inclusive encaminhando

pessoas a se iniciarem no Islã, caso achassem que o problema que acometia o consultante

era da alçada islâmica32. O sincretismo malê ainda está presentes no sistema divinatório dos

dezesseis búzios, mais simples que o oráculo tradicional, e, talvez por isso, mais divulgado.

Uma corrente de pesquisadores defende que a palavra Oxalá possa ter vindo de “Inshá

Allàh”, ou seja, “se Deus quiser”, em árabe. Assim, já em “terra de branco”, as religiões

africanas cumpriam um jogo de prestígio e se fortaleciam mutuamente, longe dos olhos dos

cruzados jihadistas de Dan Fodio.

30 Entrevista cedida por Jorge Barreto, o Muta, em 22 de Jan. 2004.31 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil; a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.p. 240 – 243.32 REIS, op. cit. p. 276.

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O mito da permissividade da cultura afro-baiana

A depender do nível de compromisso do adepto, as religiões tradicionais africanas de

possessão possuem sérios tabus sexuais, alimentares e de conduta. Como o senso comum

enxerga uma liberalidade excessiva nos candomblés, alguns pesquisadores justificaram por

este ponto de vista a migração de adeptos do Islã para as religiões de possessão. Como se os

escravos já estivessem cansados da rígida disciplina do cativeiro, e quisessem se libertar e

divertir-se, através dos “batuques”. Embora nem todos os batuques fossem necessariamente

sagrados, há engano na formulação de tal conceito.

Cada devoto de orixá têm as suas quizilas, proibições específicas, “o que vale para uma

pessoa nem sempre vale para outra”, conforme explica a equédi Sinha. Se o Islã pode se

mostrar por vezes tolerante quanto aos “maus modos” de alguns fiéis, que ainda insistem

em consumir álcool e carne de porco, o candomblé pode mostrar sua face intransigente. O

abiã torna-se muitas vezes um escravo dos orixás, ou mesmo do babalorixá ou ialorixá,

dado o rigor no cumprimento das obrigações.

Motivos que vão muito além do mito da permissividade da cultura afro-baiana e da

perseguição religiosa poderiam explicar o desaparecimento da religião árabe enquanto

prática religiosa em solo baiano. Jehová empata com Alah no critério da unicidade divina.33

Por outro lado, a mitologia negra constituía um dos fatores de aproximação com os santos

católicos e as pompas de seus cultos externos.

Do outro lado do Atlântico, começaria a constituir-se uma sociedade brasileira em algumas

cidades do Golfo do Benin, ao longo da segunda metade do século XIX. A comunidade era

formada sobretudo por africanos libertos retornados do Brasil, além de antigos servidores e

capitães de navios negreiros. Dentre estes, muitos eram malês baianos. Apesar da religião

que professavam, tornavam-se apenas um grupo a mais, no meio das levas de retornados.

Eles se encontravam muito mais próximos, pelos hábitos e modos de vida dos católicos do

que necessariamente dos muçulmanos da África34.

33 De acordo com alguns pesquisadores, o Catolicismo só seria monoteísta na teologia, mas a prática religiosa seria politeísta.34 VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e Refluxo; do trafico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos do século XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. São Paulo: Currupio, 1987. p. 684 - 685.

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No Benin, havia um certo preconceito contra os convertidos nas Américas. Os muçulmanos

da África criticavam o sincretismo religioso dos retornados e seu parco conhecimento do

Alcorão. Tanto em Cuba quanto no Brasil, muitas conversões haviam sido feitas no calor da

hora, no ápice do ódio contra os senhores. Mas, uma nova identidade que surgia no

cativeiro da escravidão foi o sustentáculo das rebeliões que assolaram a Bahia nas primeiras

três décadas do século XIX, com a explosão maior em 1835: a guerrilha urbana.

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O dia do Juízo

Que combatam pela causa de Deus aqueles dispostos a sacrificar a vida terrena pela futura, porque a quem combater pela causa de Deus, quer sucumba, quer vença, concederemos magnífica recompensa. E o que vos impede de combater pela causa de Deus e dos indefesos(277), homens, mulheres e crianças? que dizem: Ó Senhor nosso, tira-nos desta cidade (Makka), cujos habitantes são opressores(278)!

Alcorão Sagrado

Aquela manhã de 1830 seria o ponto de mutação. Aparentemente, eles agiram no calor da

hora, mas as autoridades descobriram, através de interrogatórios, que a coisa era mais

sofisticada. Aproximadamente às 7 horas da manhã de 11 de abril de 1830, um grupo de

aproximadamente 20 negros africanos invadiram um armazém na região da Cidade Baixa

da capital. A ação resultou no ferimento no peito do proprietário do lugar, além de um

funcionário atingido nas nádegas – evidentemente tentando fugir da fúria dos insurrectos.

Mas a principal vitória do movimento foi a apropriação de cinco facões e 12 espadas.

A ousadia do grupo não parou por aí. De posse das poucas armas que conseguiram,

tentaram repetir a façanha numa loja vizinha. Houve resistência. Desta vez, eles levaram

apenas um facão. Feito isso, se dirigiram para a Rua Fonte dos Padres, também na cidade

baixa. Lá funcionava um depósito de escravos recém chegados da África. Ao invadirem o

lugar, conseguiram libertar uns 100 patrícios, fora alguns outros que não quiseram se juntar

ao grupo. Estes, que contabilizavam uma incômoda minoria de 18, foram feridos

gravemente, por se recusarem a fazer a guerra em terra de branco.

Os insurrectos seguiram na direção da Soledade, onde encontraram um grupo policial

composto por um sargento e sete soldados. Dada a desigualdade de forças entre o número

de africanos e policiais, pelo menos um dos “homens da lei” foi ferido e as suas armas

apreendidas. Mas a aventura rebelde duraria pouco. Depararam-se com reforços policiais e

tropas regulares, além de populares, que se juntaram às forças repressivas. Morreram na

peleja 50 africanos, mais 40 feitos prisioneiros, fora outros tantos que conseguiram fugir

para as matas, aquartelando-se em quilombos que margeavam a cidade35.

35 VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e Refluxo; do trafico de escravos entre o golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos do século XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. São Paulo: Currupio, 1987. p 530 - 534

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Mas o fato era que o coração da capital estava mais exposto do que se pensava, apesar da

violência que marcou a repressão do maior levante que antecedeu a 1835. A constatação

faria com que os rebeldes calculassem melhor a próxima empreitada. Não que houvesse um

centro que tomasse decisões, e organizasse as manobras, mas à experiência guerrilheira ia

se somando a cada nova tentativa de inverter a lógica do poder na escravista Salvador do

século XIX. Por outro lado, a (re)atualização, em relação ao que ocorria na África era

constante, tendo em vista a chegada de escravos vindos daquele continente.

As notícias dos avanços do Islã no continente negro dava novo ânimo aos rebeldes. O certo

é que o levante de 1835 teve hegemonia nagô e haussá – separados pelas etnias, e por ódios

ancestrais, mas unidos pela fé em Alah. O que parece ficar claro, a partir da leitura de

documentação da época, era que os haussás, islamizados no continente negro, formaram o

núcleo intelectual da Revolta Malê. Os nagôs eram seus principais prosélitos, tanto em

“terra de branco” quanto na África. Não se sabe ao certo qual versão do Islã os africanos de

então pregavam, mas os tipos deveriam variar desde os adeptos jihadistas, alinhados a Dan

Fodio, até àqueles que faziam a ponte entre as religiões tradicionais africanas e a fé árabe.

A mãe de todas as batalhas

O movimento de saveiros vindos do Recôncavo era intenso naquele fim de tarde, 24 de

janeiro de 1835. Havia um clima de expectativa. Muitos negros, escravos ou alforriados,

chegavam para juntar-se a um tal Ahuna, um clérigo muçulmano de origem nagô. Este é

um dos personagens centrais da Revolta Malê, e dos mais misteriosos. A rebelião estava

planejada para acontecer no amanhecer do dia seguinte, o domingo, dia da Nossa Senhora

da Guia, uma das festividades componentes do ciclo de festas do Bomfim. O plano parecia

ir de encontro às estratégias anteriormente traçadas, nas quais esperava-se usar a geografia

da capital para esmagá-la.

O Recôncavo praticamente abraça Salvador, o que colocava o centro do poder numa

espécie de anel. Assim, os insurrectos anteriormente esperavam espremer a cidade a partir

da zona rural, com escravos dominando os engenhos e cercando a Cidade da Bahia. Em

1835, esta lógica se inverteria. O movimento rebelde esperava implodir o sistema

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escravista, a partir de um ataque originário do seu núcleo, com a conseqüente contaminação

de todo eixo que o circunda.

O plano a ser executado tinha que funcionar perfeitamente. Se no recôncavo eles teriam as

matas para refugiar-se das perseguições policiais, no âmbito urbano, a possibilidade de fuga

era praticamente nula. A capital já tinha se mostrado bastante eficiente na repressão a

escaramuças do gênero, como ficou claro em 1830, quando 50 negros foram mortos

praticamente a cacetadas.

O destino, como se pode ver, não deixa de ter a sua dose de ironia. Talvez algo que remeta

ao fatalismo islâmico. Maktub. Está escrito. A companheira de um dos líderes da rebelião

seria aquela que levaria aos ouvidos brancos a notícia do levante rebelde. A liberta nagô

Sabina da Cruz, amigada com Victorio Sule (Salomão) tivera uma briga feia com o parceiro

naquela manhã. Provavelmente, a tensão do guerrilheiro, e o voto de silêncio que os

amotinados fizeram o impediam de contar o que quer que fosse à “esposa”, que

provavelmente deve ter passado a conjecturar. Teria o “pai dos seus filhos” resolvido

abandoná-la?

Acossada pela dúvida, a mulher foi trabalhar. Ao retornar à noite, depois de um dia de

trabalho, (vendia comida na Cidade Baixa) encontrou a casa de pernas para o ar. Victorio,

não estava. Fora embora levando as suas roupas. A mulher saiu desesperada na busca de

Sule, e o localizou na casa de uns pretos de Santo Amaro à rua do Guadalupe. Ela parece

ter chegado à casa de Manoel Calafate, quase ao pé da Ladeira da Praça. Victorio estava ali,

jantando com o maioral Ahuna, provavelmente na preparação dos últimos detalhes para a

guerra prestes a acontecer.

Sabina não chegou a ver o companheiro naquela noite, mas tivera um áspero diálogo com

uma negra de nome Edum:

- Só vai ver teu homem quando os africanos forem senhores desta terra! – falou Edum, barrando a entrada de Sabina na casa.- No outro dia eles vão ser senhores de surra, não da terra – respondera a desafiadora companheira de Sule.

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Aparentemente, não há explicação para a atitude de Sabina. Sabedora do prestígio que uma amiga, Guilhermina Roza de Souza, gozava entre os brancos foi procurá-la, para que esta prestasse serviço à ordem senhorial. Munida das informações, Roza, segundo João Reis36:

dirigiu-se a André Pinto Silveira, seu vizinho branco, e lhe contou o que sabia. Na casa de Silveira, também estavam Antônio de Souza Guimarães e Francisco Antônio Medeiros, que se encarregaram de informar as novidades ao juiz de paz do 1.º Distrito da freguesia da Sé, José Mendes da Costa Coelho. Este imediatamente correu ao palácio para denunciar os fatos ao presidente, e lá chegou acompanhado do Comandante da Guarda Municipal Permanente, coronel Manoel Coelho de Almeida Sande, e do comendador José Gonçalves Galião, um rico proprietário. Estes acontecimentos tiveram lugar aproximadamente entre 9 e 10 horas da noite de sábado, 24 de janeiro. Precisamente às 11 horas e ‘um quarto de noite’, por exemplo, o juiz de paz da freguesia da Conceição da Praia recebia um aviso do presidente da província ordenando-lhe que rondasse seu distrito com patrulhas dobradas, em razão da denúncia

Após várias devassas em vão, os juízes de paz da Sé e suas patrulhas chegaram ao sobrado

de dois andares na Ladeira da Praça. Tratava-se da casa de número dois, na qual os

insurrectos davam os últimos retoques no plano. Numa das janelas do andar térreo estava

Domingos Marinho de Sá, que havia sublocado o lugar a dois africanos libertos – Manoel

Calafate, de origem nagô, chamado pelos demais de “Pai Manoel”, o que evidenciava

prestígio de mestre malê na maçonaria negra. O outro era Aprígio, um dos prosélitos de

Calafate, carregador de cadeira e vendedor de pão.

Naquela madrugada, Domingos foi encontrado por uma patrulha sentado à uma das janelas

do sobrado. O grupo, formado pelos juízes de paz da Sé e soldados, exigiram revistar a

casa, mas nervosamente, Domingos dissera que os únicos africanos presentes eram seus

inquilinos. Insistia no bom comportamento de ambos, mas não convenceu às autoridades. O

alfaiate mulato não estava colaborando com o centro nervoso da rebelião por livre e

espontânea vontade. Tentava salvar a vida da mulher e filha, e a dele próprio, tendo sido

ameaçado pelos guerrilheiros.

Apesar da resistência de Domingos, os soldados tiveram acesso ao interior do prédio, de

onde saíram cerca de 60 pretos gritando em bom português: “Mata soldado”, além de

36 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil; a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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palavras de ordem gritadas à maneira de sua terra. A invasão à casa de Calafate ocorreu à

uma hora da manhã, quando os rebeldes contavam com pelo menos com mais três ou quatro

horas até o início do levante. “Agora vamos nos levantar, por que não tem remédio”, esta

foi a frase ouvida pelo escravo Pompeu, que viera do Recôncavo para se juntar ao grupo.

A guerra começara em frente ao sobrado. Embora alguns rebeldes tivessem morrido ali

mesmo, conseguiram desbaratar os surpresos adversários. Os insurgentes feriram cinco

pessoas, entre os quais um tenente e um soldado, o último mortalmente ferido. Um africano

foi morto a cacetadas, e o outro com uma bala na cabeça. Um deles era o companheiro de

Sabina da Cruz, Vitório Sule, “que morrera fazendo a guerra em Guadalupe”. Maktub.

O plano original era atacar a cidade nas últimas horas invisíveis da madrugada. A

precipitação nos planos, causada pela denúncia, fez com que os grupos se dividissem e

fossem bater às portas das casas, avisando aos companheiros que a rebelião estava em

curso. Parte do grupo seguiu para a Rua da Ajuda, onde fez repetidas tentativas de

arrombamento da cadeia. A intenção era libertar o mestre malê Pacífico Licutan. De nação

nagô, Licutan estava preso como garantia de uma dívida, contraída pelo seu senhor.

Como não havia cometido nenhum crime, podia receber visitas, sem maiores restrições, o

que deve ter facilitado a sua participação na organização do levante. Estimado pela

comunidade muçulmana da época, a libertação do alufá era um dos objetivos do levante,

por isso o ataque à cadeia.

O insucesso no assédio à prisão fez com que saíssem ao Largo do Teatro, onde puseram a

correr uma pequena força formada por oito soldados regulares. A capital ainda estava

aparvalhada com a ousadia dos guerrilheiros. Apesar da incompleta surpresa, as forças

repressivas não esperavam estratégia similar a de 1830. Tanto é que no início da batalha, na

casa de Calafate, apenas dois soldados tinham armas carregadas e prontas para atirar.

O próximo objetivo seria juntar-se ao grupo de revolucionários da Vitória, mas para isso,

teriam que passar pelo Forte de São Pedro. Como a meta não era atacar o quartel, não

conseguindo passar pela artilharia, protegida pelos muros do prédio, tiveram que recuar.

Foi a vez dos rebeldes da Vitória darem continuidade ao plano, vindo encontrar a primeira

onda de rebeldes em frente ao Forte.

O chefe de polícia, que tinha seguido para o Bomfim, recebeu aviso de que os insurrectos

estavam atacando a cidade e marchavam para Água de Meninos, em direção ao quartel da

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cavalaria. O militar providenciou para que as famílias fossem recolhidas à Igreja do

Bomfim, retrocedendo para o quartel. Após estender a cavalaria em linha de combate e

aquartelado soldados armados, para fazer fogo aos insurgentes, era apenas uma questão de

espera. Minutos depois, ali chegavam os guerrilheiros. A estratégia dera certo. O combate

fora desigual.

Armas de fogo disparadas por soldados de dentro do quartel, contra espadas e uma ou outra

garrucha, além de cavaleiros hábeis contra uma infantaria a pé e destreinada. Cerca de 40

africanos morreram no embate, ficando outros tantos feridos. Houve quem tentasse fugir a

nado, muitos aparecendo depois afogados. Estava debelada a insurreição.

Os malês optaram por uma guerra contra o poderio oficial estabelecido. Não consta que

matassem senhores ocultamente ou lançassem mão de artifícios como incêndios ou

assassinatos da população civil, medidas desumanas, mas que talvez contribuíssem para

lançar o caos sobre a cidade. Parece que a mão de Alah se estendera sobre mulheres e

crianças brancas daquela Cidade da Bahia, em 1835. A harb, a autodefesa islâmica

legitimada no livro sagrado, impede o ataque a indefesos.

A única notícia de incêndio é fornecida por Nina Rodrigues. “Assim, das seis para as sete

horas da manhã, saíram seis negros, armados e vestidos em trajes de guerra, os quais

lançaram fogo à casa do senhor e tentaram rumar para Água de Meninos, onde para logo

foram mortos”. Evidentemente, tratavam-se de retardatários, que saíram às ruas ignorando

o levante já sufocado. Estes últimos foram para o massacre.

Os vários segmentos do movimento negro reivindicam a herança guerreira dos que

tombaram naquela escravista Cidade da Bahia. Os lideres destes movimentos são unânimes

em dizer que o espírito aguerrido continua vivo, mas o critério no estabelecimento das

alianças mudou. Eles dialogam com o poder estabelecido, no âmbito estratégico, enquanto

no campo ritual, há uma verdadeira profusão de mensagens, onde os significados

freqüentemente se perdem.

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Aqueles que se arrogam herança malê

“Esta cidade é nossa. Vamos tomá-la”

Raimundo Gonçalves, Bujão

A moça parece ter ensaiado meses para aquele momento. A consagração chegou no início

da madrugada, quando a 13.ª candidata a Deusa do Ébano subiu ao palco para fazer uma

série de evoluções para uma platéia extasiada, que esperava a escolha da rainha Ilê do

carnaval de 2004. As lágrimas, longe de desmerecer a apresentação, lhe trouxeram

aplausos. A breve referência ao historiador João Reis apareceu logo após ela ter-se

despedido da platéia. O pesquisador lançou recentemente uma nova edição de Rebelião

Escrava no Brasil37, livro no qual trata da revolta de escravos muçulmanos em 1835. O

título conseguiu uma proeza rara nas publicações do gênero: romper as fronteiras do mundo

acadêmico.

A citação não foi gratuita. O resgate histórico do levante dos malês parece aproximar-se do

discurso do movimento negro, que vê uma possibilidade de arregimentar novos militantes

para engrossarem as fileiras de alguns dos seus diversos segmentos. O uso político da

resistência malê atravessa as fronteiras do questionamento político e social para adentrar à

questão religiosa. “É preciso entender por que eles lutaram. O Islã prega a igualdade entre

os homens”, afirma o Sheikh Armhad, dirigente do Centro de Cultura Islâmica da Bahia

(CCIBa). O religioso esquece que os próprios muçulmanos na África não eram inocentes,

em relação ao comercio humano, inclusive com seqüestro e venda dos irmãos de fé. Há

possibilidades de que a cultura escravista tenha atravessado o Atlântico.

Documentos do Arquivo Público registram passagens sobre a escravização de cabras e

mulatos, caso a rebelião tivesse saído vitoriosa. Como homens limitados a seu tempo e sua

época, e não conhecendo outro tipo de produção, os malês não tiveram outra opção, além

de idealizar uma sociedade onde o trabalho forçado ainda seria o principal veículo para a

produção de bens materiais. Ainda assim, não é possível conjeturar, com certeza, se este era

o plano dos rebeldes, ou algo que não passava de aspirações pessoais de alguns envolvidos

isolados.

37 REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil; a história do levante dos Malês em 1835. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

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Mas é preciso observar que a escravidão, em algumas regiões da África, não tinha a face

cruel imposta pelos europeus. No seu continente de origem, os escravos africanos tinham

liberdade suficiente para – através de casamento ou mérito individual – superarem a

condição de menos favorecidos. A situação talvez se repetisse, num provável “Califado

baiano”.

O grito dos rebeldes ecoa até hoje na atuação das organizações que procuram proporcionar

a inserção social do negro na sociedade. Aline Farias38, estudante de história da UFBA e

componente da Coletiva de Estudantes Negras e Negros Universitários da Bahia

(Cenumba), observa que o resgate histórico vem para derrubar o mito de que o negro teria

aceitado a escravidão de maneira passiva.

A estudante avalia que, a partir da necessidade de espelhos que gerem uma motivação

positiva aos militantes negros, o livro de João Reis se constitui numa “contribuição sem

tamanho; uma informação que vai além da função acadêmica, no sentido de que saiu do

espaço exclusivo da academia e reforçou a auto-estima do negro, ao trazer a público que

não houve uma simples aceitação da escravidão”.

“Os malês continuam ativos na vida da cidade”, adverte um dos fundadores do Movimento

Negro Unificado (MNU), Ivan Carvalho. Mas é preciso fazer uma ressalva. Os “malês” de

hoje podem ser assim considerados lato sensu, tendo em vista que se jactam herdeiros da

combatividade ancestral, mas não professam a fé islâmica e nem pode-se assegurar uma

linhagem genética com aqueles que pelejaram nas ruas de Salvador, naquele domingo

fatídico de 1835. Caracterizadas como ações rápidas e surpreendentes, Carvalho relembra

uma “ação male” ainda na década de 80, com o movimento Pretos/82.

Idealizada pelo militante, a iniciativa tinha como objetivo o lançamento de políticos negros

como candidatos a cargos executivos e legislativos, através do Partido dos Trabalhadores

(PT). “Havia umas cinco ou seis linhas ideológicas dentro do partido na época, e esta era

uma ação rápida, para viabilizar candidaturas de negros”, relata. De acordo com outras

fontes ligadas ao movimento negro, a iniciativa não deu certo, fazendo com que o autor do

projeto arcasse com conseqüências nocivas para a sua imagem, como ser rotulado de racista

e sectarista.

38 Entrevista cedida em 18 de nov. de 2003.

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O resgate histórico do levante também ecoou entre as organizações não governamentais

(ongs) dedicadas a levar direitos civis, como educação, para os afrodescendentes. De

acordo com Sílvio Cunha, diretor de comunicação da ong Stive Biko, é preciso entender

que o racismo não foi apenas um efeito colateral na formação da sociedade brasileira, mas

um dos fatores que ajudou a organizá-la. Ele avalia que este é o grande débito que o país

tem com os negros. A Stive Biko, instituição que leva o nome do líder sul-africano

assassinado pelo sistema apartheid em 1977, leva cursos pré-vestibulares para adolescentes

negros carentes e oficinas de formações profissional. “O relato oficial cumpre um

desserviço ao país, na medida em que coloca o negro como sujeito na história, não como

ator. Isso diminui a auto-estima de grande parte da população. Portanto, é preciso haver o

resgate cultural; uma história que precisa ser recontada”, observa.

O Islã vai á farra

Na sala Luísa Mahin do Bloco Afro Olodum, um senhor negro com cabelos trançados

atende telefones e parece exasperado. Trata-se de João Jorge, presidente da instituição. Mal

acabou o Carnaval 2004, a direção do Bloco ajusta as contas do período pós-folia e prepara-

se para o ano que vem. De acordo com o advogado, que mora na capital do país e cursa

pós-graduação na Universidade de Brasília (UNB), o nome na entrada da sua sala de

trabalho vem para homenagear a mulher negra na personagem histórica. Mas não existem

evidências da existência concreta de Mahin, em verdade, personagem de um romance de

Pedro Calmon.

Ainda no Carnaval de 2004, o Olodum homenageou os Tuaregues, povo que praticava o

islamismo sincrético no norte da África, sem dúvida um dos vetores de entrada da religião

árabe no continente. Questionado a respeito da homenagem a um povo que não formou a

atual configuração afrodescendente em Salvador, o executivo do bloco ressaltou a

característica sincrética dos Tuaregues.

Responsáveis por saques e assassinatos, apavorando as populações vizinhas nas regiões por

onde passavam há dois séculos atrás, os Tuaregues são hoje apenas sombras (ou

escombros) dos antepassados “senhores do deserto”. Os turbantes não perderam o azul, mas

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o povo de origem provavelmente fenícia e sem características físicas comuns – algo

surpreendente para uma sociedade fechada em castas – hoje tira fotos com turistas,

vendem-lhes quinquilharias e ainda continuam vagando pelas estradas.

Os tuaregues, nome que os europeus valendo-se das línguas locais, usaram para identificá-

los, significando “Abandonados por Deus”, são hoje uma incômoda minoria no Níger, país

do centro-oeste africano, um dos mais pobres do mundo. Os Kel talmashek, ou seja, aqueles

que falam a língua talmashek, como são chamados entre si os tuaregues, reivindicam o

norte do país, fator que provoca uma série de comoções internas. O Níger, com maioria da

população muçulmana e de origem haussá, vive um passado recente de colonização e golpe

militar, com o agravante de ainda não ter conseguido se levantar da crise econômica

ocasionada pela queda do preço do urânio no mercado internacional, um dos principais

produtos de exportação do país.

“Não está nos planos do Olodum homenagear o movimento Malê, tendo em vista a tradição

sectária do islamismo”, observa João Jorge. Ainda de acordo com o executivo, o mais

próximo que o Olodum chegou de homenagear a insurreição de 1835 foi quando a rebelião

completou 150 anos. Na casa número 2 da Ladeira da Praça, reconhecido reduto male, foi

colocada uma placa, numa referência ao movimento.

As incoerências nas homenagens dos blocos afros em prol do turismo incomoda há anos o

professor Cid Teixeira. Em alguns dos pontos mais controversos da entrevista39, o professor

solicitava que o dialogo fosse interrompido (fazendo declarações em off), por “não querer

arrumar mais briga”. “Ao invés de prestar um serviço à cultura popular, os blocos

confundem ainda mais uma população sem instrução. Promovem uma verdadeira salada

cultural, e um novo mercado de escravos, onde o corpo não é mais cativo, mas a mente”,

dispara Teixeira.

Na parede da sala da presidência do Bloco Male Debalê40, em Itapoan, pendem um

calendário com a foto de Antônio Carlos Magalhães Neto, e uma homenagem ao prefeito

Antônio Imbassahy, que aparece numa moldura usando a camisa do bloco num camarote do

Campo Grande, durante a folia de Momo. Os malês de hoje em dia parecem muito mais

39 Entrevista cedida em 17 de Dez. de 2003.40 Na época de fundação do bloco Malê Debalê, a população de Itapoan tinha poucas opções de lazer. Era apenas uma discoteca, chamada Castelinho, e outra casa de shows, na Sereia de Itapoan. Os ensaios do bloco lotavam quase todo fim de semana, sempre sob os olhos atentos da polícia. “Debalê” é uma variedade da orixá iorubana Yasã. Mais uma vez, o hibridismo religioso.

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integrados à lógica do poder que os antepassados de 1835. Fundada há 25 anos, a

instituição ultrapassa o discurso carnavalesco e adentra a área social, com oficinas de

percussão e dança afro. Um dos fundadores do bloco e antigo militante do movimento

negro, Miguel Archanjo, observa que, para este ano, há previsão de ampliação das

atividades sociais, com a participação da Prefeitura, uma das principais parceiras da

iniciativa.

Apesar das dificuldades, em grande parte ocasionadas pela falta de recursos, o bloco foi às

ruas no Carnaval 2004 com o tema “Odudua na criação do Mundo”, com cerca de quatro

mil componentes subdivididos em alas temáticas. Archanjo observa que a operadora de

telefonia celular Claro, recém instalada no mercado baiano, entrou em contato com a

diretoria do bloco a fim de patrocinar a instituição durante o evento, que tem transmissão

praticamente para o mundo inteiro. “Mas eles queriam trocar o patrocínio por celulares aqui

para o pessoal, o que para nós seria uma proposta ridícula”, observa Archanjo. Na mesma

edição da folia, a operadora patrocinou os blocos Ilê Ayê e Filhos de Ghandi.

Os critérios no estabelecimento das alianças dos “males” contemporâneos rompem com o

tradicional posicionamento político de oposição dos antigos males, ampliando o dialogo

com o poder instituído. Os tempos mudaram, e também as bandeiras dos movimentos que

pretendem concretizar direitos civis para os afro-descendentes. Muitas vezes a referencia

indiscriminada e o uso do nome “male” de maneira excessiva contribui para a perda do

significado histórico do que foi o movimento. O fato e que a lembrança dos guerrilheiros

de 1835 persiste, seja para supervaloriza-la, adequando-a a diversos discursos, dentro do

fragmentado movimento negro, ou mesmo diminui-la, lembrando a vocação sectarista do

Islã.

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SEGUNDA PARTE:

O mundo árabe na Salvador dos dias atuais; um modo de vida muito diferente, inserido

numa cultura de valores ocidentais

Os filhos de Alah na Salvador do século XXI

O mundo islâmico vem sendo rotineiramente devassado nos meios acadêmicos há muito tempo. Contudo, até 11 de setembro de 2001, quando dezenove muçulmanos praticaram o maior atentado terrorista da História, as multidões nos países ocidentais não sabiam que o universo dos turbantes era muito mais complexo do que parecia. Depois do fim do comunismo, os Estados Unidos e seus aliados - os países industrializados da Ásia e da

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Europa - convenceram-se de que a modernidade, a democracia e a economia de mercado são desejadas em todo o mundo. Devido a outra escala de valores, porém, tais novidades não são bem-vindas para um número significativo de muçulmanos. (Revista Veja on-line. Acessado em 15 dez. 2003)

O professor de história Benedito Lima41 ainda não entende tudo o que se fala nas orações

em árabe. Mas seus olhos e ouvidos estão atentos. Do lado esquerdo da sala de orações, ele

ouve a preleção do sheikh, e murmura o trecho de uma ou outra surata lida durante o culto.

“Ainda não me converti, mas já freqüento aqui há um ano”, observa.

O processo de conversão é gradual. Há uma fase de estudos que o neófito realiza antes de

fazer a charada (pronuncia-se ‘charrada’), a profissão de fé, onde o então crente recita em

árabe: “Não há outro Deus que não Alah”. Nas orações das sextas-feiras, o músico Abu

Bakr, auxilia o sheikh no chamado á oração, recitando a convocação para os fiéis na língua

do profeta. “Não existe uma hierarquia, apenas eu estudei um pouco mais com o sheikh,

passei a fazer o chamado e auxiliar aqui nas atividades do Centro”. Adriano Almeida42

depois de dois anos e meio de estudos declarou a charada, num total de quatro anos que

freqüenta o CCIB. Como se deixasse toda uma vida mundana para trás, o adepto recém

convertido recebe um nome de iniciado, com a opção de poder usá-lo no cotidiano extra-

mesquita.

Abu Bakr tem mais em comum com o professor ainda sem nome de iniciado do que a fé na

unicidade divina. Ambos, em momentos diferentes, travaram contato com a religião através

da TV. Ainda em Pernambuco, a sua terra natal, Lima viu uma breve reportagem, na qual o

sheikh Armhad era entrevistado. Meses depois, por força da profissão, mudou-se para

Salvador. A anotação mental levou-o a uma curta investigação, na qual descobriu onde

ficava o CCIBa.

Alah se fez presente na vida do músico Abu Bakr quando, numa madrugada de insônia,

acompanhou o depoimento de um sacerdote islâmico fechando a programação de uma rede

de TV. Era uma mensagem de paz e união entre os povos. Até então, o percussionista tinha

outra visão do Islã, diametralmente oposta ao que pregava aquele sheikh paulista. Após ter

comentado com um amigo, que tinha ouvido falar vagamente da mesquita soteropolitana, 41 c.f. Anexo 02: Entrevista com Benedito Lima, em 12 de Dez. de 2003.42 c.f. Anexo 06: Entrevista com Adriano Almeida, musico convertido ao Islamismo. Entrevista concedida em 12 de Dez. de 2003.

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ligou para o serviço de informações da operadora de telefonia fixa, no qual descobriu o

telefone do CCIBa. “Para mim não foi difícil adaptar-me ao islamismo. Pois já era casado,

quanto a beber, por exemplo, era coisa que eu já não gostava de fazer”, avalia.

“Ainda assim, como sou músico e toco com certas Companhias de Musica, das quais não

importa falar o nome, sei que participo de shows, onde as pessoas bebem, onde (sic) parte

do dinheiro que ganho vem disso. Alah não gosta disso, mas, até que ele me dê outra

alternativa de vida, vivo assim”, justifica.

A estudante de comunicação Agnes Bezerra43 não é descendente de africanos ou orientais.

A sua família não é religiosa, nem registra nenhum adepto do islamismo. Apesar de tantas

negativas, “por uma série de coincidências” acabou tornando-se adepta do Islã. Ela faz

parte de um grupo que cresce no mundo inteiro. São mulheres que, apesar de toda a

publicidade negativa em torno da religião de origem árabe, acabam por reforçar as

trincheiras ocidentais do profeta.

“Ao contrário do que muita gente pensa, o Islã tem uma postura de liberdade e justiça, em

relação à mulher”, explica. Mas reconhece que há diferenças: “Eu, como mulher

muçulmana, só posso me casar com um muçulmano, mas o homem pode casar-se com

qualquer parceira que pratique as religiões dos livros sagrados: cristianismo, judaísmo e o

islamismo”.

Filha de mãe adventista e de pai que “gosta de Sai Baba”, a estudante de Relações

Internacionais Ana Paula Chagas caminha sexta-feira pelo bairro de Nazaré até o CCIBa,

com a cabeça protegida contra o sol pelo véu. Ato de coragem. Tem quem grite na rua o

nome de Jade (personagem da novela O Clone, da Rede Globo), ou que ele é da “turma de

Bin Laden”. As agressões, até agora, não passaram da maneira verbal, mas as muçulmanas

de Salvador não querem arriscar; na maioria das vezes só saem na rua com o acessório -

exigido no Alcorão - em grupos, principalmente na companhia dos homens do CCIBa.

“Nada me impede de namorar um rapaz de outra religião, mas teria que ser um namoro à

moda dos anos 20”, sentencia Ana Paula, que adotou Aisha como nome árabe. Ou seja,

nada do casal ficar sozinho, sem a censura da família da moça. “O que vale para o homem

vale para a mulher. Esta forma de namoro vem para proteger a ambos”, explica. A jovem,

43 c.f. Anexo 04: Entrevista com Agnes Bezerra, convertida ao Islamismo. Entrevista concedida em 21 de Nov. de 2003.

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que traz o nome da esposa predileta do profeta, observa que a precaução se faz necessária,

para não macular a imagem do casal, e prevenir de que aconteça algo “fora da hora”.

A advogada Adriana Fernandes44 converteu-se em São Paulo com um sheikh sufi – o Islã

esotérico, que muitos afirmam ser próximo ao Zen-Budismo japonês. Ela e o marido

aderiram à religião simultaneamente e estão casados, desde então. Fernandes não admitiria

uma segunda esposa, como deixou claro ao marido antes de contrair matrimônio. “O Islã dá

este direito à mulher. A partir do momento em que ele esteja apaixonado por outra pessoa, a

única opção que teríamos era nos separar”, observa. Questionada a respeito das mulheres

orarem num espaço atrás dos homens, ela afirma que, pelo fato de se prostarem na direção

de Meca com a testa voltada para o chão, poderia haver constrangimentos, por estarem no

meio dos homens. Assim, quando não têm um lugar reservado para fazerem as orações, elas

estão liberadas da obrigação.

A advogada ainda explica que, a depender do templo, elas podem orar acima, numa espécie

de segundo andar, mas sempre afastadas dos olhos masculinos. “É preciso entender que

oração é muito séria para islâmico. Não pode haver qualquer desvio de atenção. Além do

que, eu me sentiria constrangida, se tivesse que orar entre os homens”, observa. Dentre os

muçulmanos da Bahia, ainda não existem casais poligâmicos. Como em toda religião, os

tabus islâmicos não são levados à risca por todos. “Ora, sou islâmico. Não roubo, não mato,

não como carne de porco, mas também não sou santo”, admite um outro fiel. Mas

acrescenta: “namorada séria, andando de biquíni no Porto da Barra? – Nem pensar”.

Na contramão dos valores ocidentais, divulgados pela mídia em torno do globo, milhares de

pessoas rejeitam o que vêem todos os dias na TV e cinema, para levarem adiante a crença

na unicidade divina, com seus tabus morais, sexuais e alimentares. A diferença é que, até

algumas décadas passadas, eles estavam do lado de lá de Greenwich. Mas no presente

período, o Islã rompe fronteiras.

Pesquisas realizadas ao redor do globo mostraram que o Islamismo é a religião que mais

cresceu nas últimas décadas, e que essa tendência não mudou depois do 11 de setembro.

Em 1973, havia 36 países com maioria muçulmana no planeta; exatos trinta anos depois,

eles já eram 47. Também no início dos anos 70, o Islamismo reunia cerca de 370 milhões

de fiéis. Três décadas depois, eles chegaram a 1,3 bilhão. Hoje, quase 20% da população do

44 Entrevistada em 31 de Out. de 2003

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mundo é muçulmana, e estima-se que, em 2020, de cada quatro habitantes do planeta, pelo

menos um irá seguir o profeta45. No Brasil, organizados em torno da Jihad, os muçulmanos

expandem seus tentáculos por todo o país, inclusive pela região Nordeste.

Salvador (BA), Recife (PE), Fortaleza (CE), Campo Grande (RN) e Teresina (PI); cada

qual tem seu centro de cultura voltado para a religião árabe. Há mesquitas ainda nas cidades

de Belo Jardim, em Pernambuco, e Crateús, no Ceará. “São unidades mais simples, salas de

orações adaptadas até mesmo na casa dos muçulmanos”, observa o sheikh Zaid

Mohammad46, membro da comissão de divulgação do Islã para a América Latina, um dos

braços CDIAL que leva adiante a expansão da religião para a América abaixo dos trópicos.

A instituição, através do Zacat – uma espécie de tributo, fixado numa alíquota de 2,5% dos

rendimentos anuais dos muçulmanos – financia a expansão da religião. Comissões

específicas escolhem onde e quando devem ser implantadas novas unidades de centros e o

valor estratégico de cada um. O número de pessoas que professam a religião, e o porte da

cidade onde residem são os principais itens avaliados na decisão. Entre centros e mesquitas,

são 60 em todo o país, 30 só na região sudeste.

Apesar da falta de um projeto específico de comunicação e marketing – fator detectado por

este trabalho, dada a ausência de página gráfica na Internet, com endereços e telefones dos

centros de cultura e mesquitas brasileiras, bem como a falta de um veículo de comunicação

específico – os muçulmanos investigam as principais áreas onde a sabedoria do deserto

pode se infiltrar, através dos chamados acampamentos islâmicos (ciclos de palestras e

orações).

O perfil de adepto da religião árabe na Salvador do século XXI mudou, em relação aos

males do passado, mas a presença de africanos entre os prosélitos continua. Com a sua

mensagem de igualdade entre os homens, e a superioridade de Alah nos assuntos deste

mundo e do alem, a religião revelada um dia a Mohammad continua com seu aspecto

revolucionário, a partir da idealização de um mundo onde não haja opressores e oprimidos.

A comunidade muçulmana centrada no bairro de Nazaré continua avaliando o Islã como

dotado de um arcabouço cultural extremamente sofisticado, o que fica evidenciado a partir

da tradição oral islâmica e das leituras do Alcorão, carregadas de poesia e dramaticidade. 45 c.f. BELT, Don(ed. Senior da National Geographic).O mundo do Islã. In: National Geographic Brasil. São Paulo:Abril,2001.p.16-21.46 As informações sobre o Islã no pais foram obtidass através de entrevista concedida via telefone pelo sheikh Zaid Mohammad em 12 de Nov. de 2003.

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A mesquita soteropolitana

A casa fica no centro de Salvador, numa das ruas atrás do jornal Tribuna da Bahia, no

bairro de Nazaré47. Na sexta-feira, a partir do meio dia, para lá segue uma série de pessoas.

É difícil discernir o perfil de freqüentador. São brasileiros, africanos e descendentes de

orientais (gente que traz no rosto e na fala as marcas da ascendência). O grupo pode ser

ainda mais heterogêneo, dada a chegada de turistas de várias partes do mundo, que querem

ficar em dia com a obrigação de orar em comunidade toda sexta-feira, em qualquer lugar

que estejam. O que os une é a fé em Alah. A casa é o CCIBa.

Após uma série de prostrações, nas quais os crentes se curvam na direção de Meca, são

lidos trechos do Alcorão. O sheikh faz uma preleção aos fiéis, na qual enfatiza a

importância da oração na purificação intelectual e espiritual. O religioso deixa claro que ser

islâmico é mais que rezar as cinco vezes por dia, ou mesmo viajar à Meca e fazer as sete

voltas em torno da Caaba: “Meus irmãos, muçulmanos não podem ser maus. Vocês têm que

ter solidariedade com seus amigos e vizinhos”. Outro tema recorrente nas palestras é a

difícil missão de diferençar islâmico de terrorista. E como na Nigéria, terra natal do sheikh,

se falam iorubá e inglês como línguas oficiais, ele repete, sempre que solicitado, com

algum sotaque: “Islã religião de paz. Islã não é religião de terror”.

O CCIBa se propõe a ser mais que uma mesquita, mas uma célula divulgadora da cultura

islâmica, inclusive funcionando como uma ponta de lança para outras metrópoles da Região

Nordeste, que ainda não seguiram o exemplo da capital baiana – ou seja, não têm centros

como o de Nazaré. Com computador conectado à Internet, sala de estudos, biblioteca, além

do fornecimento periódico de cursos sobre a doutrina corânica e língua árabe, a unidade

agrega uma comunidade, da qual participam (direta ou indiretamente) cerca de 300 pessoas.

Porém, aproximadamente 30 pessoas freqüentam o centro com regularidade às sextas-

feiras, inclusive sem muita rotatividade. Como formam uma irmandade global, mesquitas

do mundo inteiro recebem visitantes, que podem participar do culto por conta da língua

árabe usada nas orações.

47 Rua Dom Bosco, 190 Nazaré

Page 43: UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA - FACOM · Web viewHá os que supervalorizam a combatividade de 1835, e outros que a diminuem, acusando o movimento de divisionista e sectarista. Além

Além da oração, jejum no mês do Ramadan, fé na unicidade divina e a peregrinação que os

muçulmanos devem fazer pelo menos uma vez à Meca, ergue-se o quinto pilar que sustenta

a fé islâmica: o chamado zacat, caridade. Mais do que caridade, o zacat funciona como uma

caderneta de poupança para o financiamento da Jihad, no sentido de empenho pela

propagação da fé em Alah. Foram estes recursos que possibilitaram a criação do CCIBa.

São doações anônimas, que podem variar de alguns níqueis até mesquitas inteiras – e com

tudo dentro - fornecidas de uma só vez, claro que algo observado apenas na Arábia Saudita.

“Isso demonstra que o zacat não é esmola”, observa Abdul Hakim. A primeira mesquita

baiana do século XX começou a funcionar em 1991 numa pequena casa alugada, no bairro

do Tororó. As verbas para o aluguel, provenientes da Junta de Assistência Social Islâmica

(JASI) e do Centro de Divulgação do Islã para a América Latina (CDIAL) se avolumaram o

suficiente para comprar a sede própria, em Nazaré. As duas instituições se localizam em

São Paulo. Para lá viajou o então estudante da UFBA, o africano Misbah Akani, trazendo

de volta uma carta que continha a boa nova: conta no banco com dinheiro destinado à

compra de um lugar específico para as orações e cursos sobre o Alcorão e a língua árabe.

Numa tarde de dezembro, durante uma das minhas visitas ao centro islâmico, um visitante

sudanês fez questão de conversar comigo a respeito da sua fé. Num inglês claudicante,

consegui dar continuidade ao diálogo. “Qualquer mesquita do mundo é a casa do

muçulmano”, começou ele. “As nossas orações são todas em árabe, a língua escolhida por

Deus para revelar a sua palavra. Oramos cinco vezes todos os dias. É um momento de

purificação física, mental e espiritual”, prosseguiu. (a maior parte do culto é na língua do

profeta, mas há espaço para que o fiel faça as suas súplicas a Alah no seu idioma de

origem).

O encontro com o sheikh

E como não ventava naquela manhã, a fumaça do incenso não encontrava adversário em

seu caminho. Começava numa linha aparentemente reta, até perder-se numa espiral,

espalhando um cheiro de sândalo no ambiente. Vindo da sala contígua, uma voz feminina

lia o Alcorão. O livro tem uma linguagem poética e uma melodia inconfundível. Há notícia

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de gente que se converteu só de ouvir a leitura das suratas. Não é para menos. Ouvir a

palavra de Alah, ainda que via som mecânico, é de dar nó na garganta.

A entrevista com o sheikh Abdul Armahad se deu sob a companhia desta voz feminina e

seu clamor à única divindade. Por um momento, a Salvador da conturbada Avenida Sete e

do Carnaval foi esquecida. Poderia-se estar em qualquer cidade muçulmana. Através de

seus sermões (Khutba), religiosos como Armhad pregam a obediência a Deus no mundo

inteiro. Eles têm também a responsabilidade de realizar casamentos e serviço fúnebre. E

como o Islã não prega o celibato, podem casar-se, inclusive com mais de uma esposa.

Armhad tem um aspecto de tranqüilidade, mas sua missão é difícil. “Existe uma campanha

de difamação contra o Islã. Eles dizem que elegemos Bin Laden como nosso herói. Nada

disso. Bin Laden criminoso. Alah não aprova o que ele fez. O candomblé sofre intolerância

religiosa aqui na Bahia, mas a maior vítima da intolerância no mundo inteiro somos nós

islâmicos”.

O Islã forma um sistema de vida completo, o que abrange as esferas social, moral, e mesmo

política. Não há divisão entre religião e estado. “O governante que crê em Deus não vai ser

injusto com seu povo”, observa Armhad. Mas a realidade contrasta com o discurso

religioso. O Islã é multifacetado por várias nações, mas tem uma característica curiosa: não

produziu um só país democrático e desenvolvido.

Nem mesmo os petrodólares ajudaram na distribuição da riqueza. Entre os cinco maiores

produtores de óleo do Oriente Médio, o PIB conjunto quadruplicou nos últimos trinta anos,

enquanto o PIB mundial apenas dobrou de tamanho. A maioria da população dos países

islâmicos não viu a cor deste dinheiro, que poderia ser empregado no fornecimento de

direitos civis. O que a sociedade dos turbantes conferiu de perto foi o fomento a ditaduras

teocráticas em nome do Pai.

Mas discurso do sheikh nigeriano vai ao encontro da opinião dos especialistas. Nas

escrituras sagradas, Alah é aclamado como “o clemente, o misericordioso”. Uma imagem

de um Deus tolerante, piedoso, mas que não manda ninguém oferecer a segunda face. É

direito do muçulmano defender-se, quando tem família, propriedade, ou mesmo a própria

vida em perigo. O fundador do islamismo, o profeta Mohammad, dedicou sua vida à

tentativa de promover a paz em sua terra. Antes do Islã, as tribos árabes estavam presas

num círculo vicioso de ataques, revides e vinganças.

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O próprio Mohammad e seus primeiros seguidores escaparam de dezenas de tentativas de

assassinato e de uma grande ofensiva para exterminá-los em Meca. O profeta teve de lutar,

mas em nome da própria sobrevivência - quando acreditou estar a salvo, passou a dedicar-

se exclusivamente à reconciliação das tribos, através de uma grande campanha ideológica

de não-violência.

O terror é uma incômoda exceção no mundo islâmico. São muçulmanos que integram

ramificações extremistas da religião, como os sunitas do Afeganistão e os xiitas do Líbano,

para os quais o suicídio em nome de Alah, normalmente cometido aos gritos de "Deus é

grande", é uma forma suprema de entrega ao amor divino. A maioria dos muçulmanos, no

entanto, repudia os ataques suicidas e os considera pecado extremo, uma ofensa contra

Alah, na medida em que atenta contra o dom da vida.

Armhad avalia que a campanha contra o Islã é uma medida para conter o crescimento da

religião árabe no Ocidente. Ele cita como exemplo que, na década de 70, eram apenas dez

mesquitas na capital francesa. Decorridos 30 anos, são quase mil. Só na Europa, berço da

civilização cristã, existem 20 milhões de muçulmanos, metade deles instalada na Europa

Ocidental. Há mesquitas até na Roma dos papas. A exemplo do que aconteceu há séculos

atrás, quando da expansão do império mouro, nada parece deter o Islã. Na capital baiana, a

historia criou uma esquizofrenia; uma comunidade islâmica que vive na cidade, mas não

tem qualquer vinculo com os primeiros afro-muçulmanos, vindos para Salvador entre os

séculos XVIII e XIX. Preocupações globais, como a violência no mundo islâmico e as

lembranças locais de um Islã esquecido são os temas da entrevista com o sheikh nigeriano

Abdul Armahad, a seguir:

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O terrorismo seria o grande desafio para a religião islâmica, neste século XXI?

O que a mídia está fazendo com o Islã é dizer que a nossa religião é de terror, que muçulmano um povo violento. Tudo mentira; não tem nada de verdade nisso. Islã é paz, amor e justiça. Desde que o nosso profeta nos revelou a religião, não temos nada para esconder. Islã é conviver livre consigo mesmo e em paz. Não fazer nada que prejudique a sua vida. A mesma coisa com o semelhante. Ser muçulmano é ter como valores justiça, carinho, amor e respeito aos pais. Atitudes violentas são isoladas. Se uma pessoa faz algo de mau que julgue a ele, não a religião. O que Bush faz com o Islã é um crime. Ele poderia queimar todas as mesquitas do mundo, mas a fé persistiria no coração do muçulmano.

Apesar de toda uma campanha negativa relacionada à religião, o número de muçulmanos não pára de crescer em todo o mundo. Não parece um paradoxo?

Realmente o Islã não para de crescer. Estaríamos forçando as pessoas? Claro que não. Eu poderia forçar meus filhos, mas, ainda assim, um dia eles diriam; “pai, somos seres humanos, e o senhor não tem este direito”. Imagine uma pessoa que não tem nada a ver? Estamos crescendo por que Islã é a promessa de Deus. Mesmo depois do 11 de setembro continuamos levando a mensagem para mais e mais pessoas, pois este é o desígnio de Alah: paz, amor e fraternidade.

Como pessoas do ocidente, o que inclui os baianos, se submetem à disciplina do Islã?

Tem regras no Islã. A pessoa que não aceita estas regras não precisa ficar.

Como funciona a hierarquia dentre as mesquitas espalhadas por todo o mundo? Há o que se poderia chamar de um “clero muçulmano”?

A religião islâmica não tem hierarquia. O sheikh é uma pessoa que tem conduta e estudou. Tem várias universidades em países islâmicos. Somos apenas pessoas que têm conhecimento sobre cultura islâmica e condição social e moral para dirigir a comunidade como sacerdotes. No meu caso aqui, por exemplo, não há ninguém que me pudesse ser hierarquicamente superior. Isso não significa que eu seja poderoso. Sou apenas o orientador desta comunidade, através do conhecimento que tenho. Sou guiado pelo meu conhecimento na Universidade e pelo Alcorão. Se surge algum problema que não consigo resolver, tem outros sheikhs no Brasil e no mundo, a quem posso consultar. Mas a verdadeira fonte do Islã é o Alcorão Sagrado. Ninguém tem poder ou hierarquia para mudá-lo. Alguém que possa dizer; “esta lei servia apenas para o povo de Mohammad. Hoje não serve mais”. Não existe isso no Islamismo. A palavra do Livro é a mesma desde Mohammad e para sempre será a mesma coisa

Como o senhor foi convidado para liderar a comunidade islâmica de Salvador?

Um estudante nigeriano, chamado Misbah Akani, passou aqui uma vez, antes de 1991, e pensou consigo próprio: “Não, a história do Islã não pode acabar aqui nesta cidade, onde lutarem homens islâmicos”. Após ter procurado, encontrou apenas alguns árabes, que não eram muçulmanos. Muitos árabes islamizados deixaram a Bahia, por causa de uma crise comercial, e foram para outros estados. Aqui surgiu islamismo a partir dos malês, então não poderia parar assim. Estudantes de intercâmbio, que faziam curso universitário; a maioria nigerianos e senegaleses se juntaram a Akani e alugaram uma casa para as orações. Quando [em 1991] houve um encontro mundial de muçulmanos em São Paulo, nos conhecemos, através de um amigo em comum, e ele me convidou, para vir aqui para a Bahia. Anos mais tarde, eu viria para cá.

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Como o senhor avalia o resgate histórico da Revolta dos Malês, em 1835?

A história dos malês, para a religião islâmica e para o mundo em geral, é um episódio que precisamos pesquisar bem. O professor João Reis está lutando ainda. Ele me disse que não iria parar os estudos; ainda há muita coisa que precisa ser descoberta. Quando eles se levantaram, ocorria uma coisa grave; a escravização de seres humanos.

Mas eles próprios não eram inocentes, em relação a práticas escravistas na África.

Naquela época, escravidão tida como uma coisa normal para a humanidade. Os traficantes europeus, com seu dinheiro e poder político, compravam os africanos como escravos. A questão é realmente polêmica. Os malês descobriram que esta coisa é realmente algo horrível. Ninguém tem o direito de usar outro ser humano como escravo. E eles descobriram isso através do Islã, por que a religião declara que todos nós nascemos livres.

Qual teria sido o papel da religião na revolta?

O primeiro capítulo revelado ao profeta foi sobre buscar conhecimento. Vai buscar conhecimento; sobre a sua vida, sobre a vida social, sobre a vida espiritual. Através disso, talvez eles tivessem acordado para o fato de não terem nascido escravos, e que era necessário buscar a liberdade.

Na sua opinião, o que poderia explicar o desaparecimento do Islã, enquanto prática religiosa aqui em Salvador?

O governo da época da revolta fez tudo para apagar totalmente qualquer palavra do Islã. Tanto que alguns deles retornaram para a terra natal, a Nigéria, minha terra também. E lá tem a Mesquita do Brasil, construída pelo pessoal que retornou para lá. Até hoje há famílias nigerianas com sobrenomes em português. Por outro lado, os que ficaram na Bahia tinham medo de apresentar qualquer coisa do Islã. Quem divulgasse a religião seria perseguido pelo governo. Os malês que ficaram na Bahia não divulgaram a mensagem por que não a tinham mais, ou por medo. É uma especulação muito difícil de ser feita.

O senhor, pelo fato de ter nascido num país islâmico, consegue enxergar vestígios da religião árabe aqui na Bahia?

Ficaram apenas algumas coisas que denunciam a presença islâmica, como a roupa branca, que os baianos gostam de usar na sexta-feira, um costume do mundo muçulmano. Sexta-feira é um dia sagrado para nós. O nosso profeta nos disse que roupa branca é roupa que traz a paz; tranqüilidade. Ele ainda falou: “usa a roupa branca para enterrar seus mortos”. Além do que, tem palavras que as pessoas falam nas ruas até hoje, como Salamaleikun, aprendida através dos malês, que é uma saudação muçulmana universal; “a paz de Deus esteja contigo”. Na Igreja da Lapinha, por exemplo, há uma frase islâmica no altar. O professor Cid Teixeira não tem certeza que a Igreja tenha sido uma mesquita.

Houve, da parte do senhor, algum contato com descendentes dos malês que chegaram à Bahia, entre os séculos XVIII e XIX?

Tive um encontro com a senhora Ivone, apresentada a mim pelo professor Cid Teixeira. Ela confessou não saber muita coisa, mas falou muito sobre os avós dela. Me mostrou um amashba muito grande, que o avô dela usava para rezar. O avô dela rezava, colocava a cabeça no chão, fazia o jejum no mês do Ramadã. Conforme o hábito universal dos muçulmanos, ele só comia no mês do Ramadã quando o sol se punha. Ela era criança, não sabia significado destas coisas, mas guarda muitas lembranças, por isso, sempre a

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convidamos para seminários. Depois dos malês, a luz do Islã se apagou aqui na Bahia, e, em 1991, nós trouxemos a religião de volta.

Há notícias de pessoas que querem alterar as escrituras sagradas. Isso é possível?

Há países muçulmanos que querem mudar a lei do Islã, mas isso é um problema deles. Nada nos obriga a parar de seguir as escrituras sagradas, tal qual foi transmitida pelo profeta. Não há outra divindade além de Deus, e Mohammad é seu último profeta – qualquer um que diga esta palavra no mundo inteiro é nosso irmão.

O profeta

Após a reforma da Caaba, no final do século VI d.C., os anciãos de Meca ficaram em

dúvida sobre quem teria a honra de colocar a pedra sagrada no seu lugar dentro do

santuário. A mão de Alah, através do destino, resolveria o problema. Ficou decidido que a

tarefa caberia ao primeiro que entrasse no local sagrado. O privilegiado foi um jovem

mercador de Meca, cuja a sabedoria e honestidade o fariam ser conhecido como Al-Amin,

“o Leal”.

Descrito como um homem magro, mas vigoroso, com rosto oval e olhos negros, ele pediu

que se colocasse um manto no chão, e, em cima dele, a Pedra Negra. Com um nobre de

cada uma das principais tribos de Meca puxando uma ponta do manto, a pedra foi erguida.

Em seguida, sozinho, o jovem colocou-a no canto leste da Caaba, onde jaz perfumada e

engastada em prata até os dias de hoje. O nome do jovem era Mohammad.

O último profeta de Alah, numa linhagem onde também figuram personagens como Abraão

e Jesus Cristo (Iça, em Árabe) nasceu em Meca, por volta de 570 d.C., na tribo Quraish,

uma das mais influentes da península Arábica do período. O profeta ficou órfão aos seis

anos de idade, sendo criado por um avô, depois por um tio. Quando jovem, trabalhou como

pastor, depois nas caravanas de camelos que levavam seda e incenso até a Síria. Aos 25

anos, casou-se com a prima Khadija, uma rica viúva muitos anos mais velha.

Ao contrário do personagem bíblico que abraçou-se à visão e decidiu não soltá-la até que

esta o abençoasse, Maomé recuou diante da primeira revelação. Numa pequena gruta no

monte Hira, ao norte de Meca, o profeta passava dias dedicando-se ao jejum e à meditação.

No ano de 610, durante um destes momentos de solidão, ele teve uma revelação, que o fez

cair de joelhos.

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“Recita”, ordenou a visão; o profeta retrucou: “Eu não sou digno”. A visão o imobilizou,

dando-lhe um abraço, que o fez expulsar todo o ar dos seus pulmões: “Recita, em nome do

Deus que te criou” - ordenou novamente - “que criou o homem a partir de um torrão de

terra, que ensinou ao homem o que ele não sabia”. O profeta se rendeu.

Perturbado, Maomé voltou para casa e conversou com Khadija. A dúvida o acossava. Teria

sido ele mesmo o escolhido por Deus para trazer sua mensagem, ou estava enlouquecendo?

A esposa o consolou, confiou no chamado divino e tornou-se a primeira convertida.

Naquela época, os árabes praticavam uma forma de adoração a uma série de divindades no

local sagrado da Caaba, uma construção simples em forma de cubo, onde se reverenciava

um meteorito negro. Na tradição Islâmica, a Caaba foi originalmente construída por Adão

seguindo um protótipo celestial e depois do dilúvio reconstruída por Abraão e Ismael.

Acabou tornando-se santuário de  ídolos, um para cada dia do ano lunar. Ainda de acordo

com a tradição, Mohammad seria o enviado de Alah para corrigir a distorção, e firmar o

principal preceito da fé islâmica: a unicidade divina.

Aquela aparição na gruta não seria a última. As revelações trazidas pelo arcanjo Gabriel

prosseguiram pelos 30 anos seguintes, e formariam o livro sagrado do Islã, o Corão. O

profeta começou a pregar, o que o fez arregimentar uma série de adeptos. Condenava as

práticas fetichistas de então, quando eram cultuados elementos da natureza, como o sol, a

lua e as estrelas. A instabilidade religiosa trazia convulsões sociais e prejuízos para os

mercadores de Meca, que tratavam os muçulmanos da época com escárnio e violência. A

hostilidade chegou a tal ponto que Maomé e seus seguidores, numa noite sem lua e estrela

de 622 d.C., fugiram de Meca e atravessaram o deserto rumo ao oásis de Yatrib, 300

quilômetros ao norte.

O calendário muçulmano tem início nesta hégira, ou migração do profeta. Cientes da fuga,

os inimigos do profeta cercaram sua casa, ansiosos por matarem-no assim que o avistassem.

Mais uma vez, segundo a tradição islâmica, o anjo Gabriel apareceu, e informou a

Mohammad sobre a cilada. A visão ainda trazia um recado de Alah. O profeta poderia

seguir em paz, pois os inimigos estariam dormindo, dando-lhe tempo suficiente para a fuga.

Minutos depois, a casa seria arrombada. Dentro da habitação só havia Ali, um jovem primo

do profeta. Confusos e exaltados, os invasores pouparam a vida do rapaz, como o arcanjo

havia previsto.

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A fama de Mohammad havia chegado anos antes ao Oásis. Reconhecido por populares,

muitos lhe ofereceram abrigo, mas o profeta disse que Alah haveria de guiar seu camelo até

o lugar apropriado. O animal parou e ajoelhou-se perto de um celeiro onde se guardavam

tâmaras. E foi ali que Maomé ajudou seus seguidores a construir a primeira mesquita. O

Oásis ficou conhecido como Madinat al-Nabi – a Cidade do Profeta, ou simplesmente

Medina.

A poderosa e benevolente inspiração divina que guiou o camelo e o próprio profeta até

aquela terra fértil, no meio da paisagem geral de aridez, ordenara Maomé a fazer a guerra

contra os infiéis. Apenas um século após a sua morte, as bandeiras do Islã tremulavam em

três continentes (Ásia, Europa e África), desde as bordas da China até os Pirineus.

Apesar da pouca instrução, o mesmo homem que conquistou respeito como mercador

entraria para a história como religioso e estrategista militar. Em 630, duas décadas após a

primeira visão, Mohammad voltaria à cidade natal, mas desta vez, à frente de 10 mil

homens. Meca rendeu-se sem luta. O profeta entrou na cidade subjugada, caminhou até a

Caaba, tocou a Pedra Negra e fez sete círculos ao seu redor. Ordenou que os ídolos fossem

quebrados e perdoou todos os seus inimigos. Mas sua missão pessoal estava perto do fim.

Em 632 d.C, ele morria nos braços de Aisha, sua esposa predileta, e partia deste mundo,

para o encontro com Alah.

Ainda durante os anos 20 do século VI a.C., o profeta já havia abandonado Meca, mas

deixado para trás vários fiéis, esperançosos na volta do messias. O sofrimento dos

muçulmanos residentes na cidade continuava insuportável, dada a violência e

incompreensão dos politeístas. Assim, houve uma nova fuga, mas desta vez para o atual

território da Etiópia. De uma forma tímida, com aproximadamente 48 famílias, realizou-se

o primeiro contato da religião árabe com o continente africano.

A chegada pacífica da comunidade ao extremo norte do continente abriria flanco para o

poder armado inspirado por Alah. Em 682, apenas cerca de setenta anos depois da chegada

da comunidade, o general Uqba ibn Nafi, abriu caminho para a fé islâmica a partir do rio

Nilo, na direção do ocidente. Caíram sob o jugo árabe os atuais territórios da Tunísia,

Argélia, Marrocos e Libia. A quase seis mil quilômetros de Damasco, a capital do império

mouro, numa praia perto de Agadir, o audacioso general entrou no mar a galope, e com a

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espada em punho bradou para as ondas: “Se não fosse detido por este oceano, conquistaria

mais terras em louvor de d´Ele”.

O Atlântico, o Saara e o curto tempo de uma vida barraram o ímpeto marcial de Uqba. Mas

o Islã ainda penetraria na África com a mesma gradação da areia numa ampulheta. Longas

filas de camelos comandadas por povos nômades trataram de fazer ecoar, sobretudo no

Sudão central, o grito dos muezzins: “Allah... u akbar” (Deus é Grande). Sangue ainda

deveria ser derramado, e a religião deve ter tido sua parte nisso, mas, comparada à sanha

imperialista dos primeiros seguidores de Mohammad, poderia-se dizer que a mensagem do

profeta teve um ingresso lento e “pacífico” na antiga África. Armistício que, por sinal,

deveria durar pouco.

A época dos impérios passou. Desde então, os mulçumanos seguem o livro sagrado

Alcorão, que contém a última mensagem revelada por Deus à humanidade. Composto de

114 suratas (capítulos) dotadas de sonoridade e poesia impressionantes, o livro vem

inspirando fiéis de todo o mundo. Verdadeira bússola dos islâmicos os instrui a crerem em

um único Deus; nos Anjos; nos profetas que trouxeram revelações de Deus a humanidade;

no fim do mundo e no juízo final,  quando todos prestarão contas dos seus atos a Alah.

Os profetas que os mulçumanos crêem serem portadores das revelações de Deus são: Adão,

Noé, Abraão, Ismael, Isaac, Jacó, José, Jó, Moisés, Arão, Davi, Salomão, Elias, Jonas, João

Batista e Jesus Cristo. O último profeta de Deus é Mohammad. "Islã" (em árabe) significa

"submissão", "rendição", "entrega", que é derivada de uma outra palavra “salam”, que

significa paz.  No sentido religioso, Islã, significa "total submissão à vontade de Deus".

O Dia do Carneiro

Um homem subiu uma colina com o seu filho mais velho. De acordo com a tradição

islâmica, Deus teria pedido ao ele a criança em sacrifício. Com o coração angustiado, trazia

um punhal. O filho não sabia o que ia ocorrer. Quando estava prestes a concretizar o

holocausto, a voz de Deus o impediu. Alah estava satisfeito com a prova de amor e

submissão. Ao invés do sacrifício do filho, um carneiro poderia substituir o menino, o que

reforçou a fé e aliviou o coração do pai.

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O nome do homem era Abraão, do filho, Ismael. O episodio e lembrado por muçulmanos

de todo o mundo, numa celebração subseqüente ao Ramada. O carneiro morre com uma

incisão feita com um punhal a altura da jugular. O que une os afro-muçulmanos do século

XIX e a comunidade islâmica atual em salvador e a fé na unicidade divina, de acordo com

os preceitos islâmicos. O que animava os guerrilheiros males do século XIX era redenção

nos braços de Alah, quer tivessem morrido em batalha ou vencido a rebelião. Talvez como

Abraão fez um dia, os males tinham que comprovar sua fé, ainda que seus filhos pudessem

correr perigo.

O ideal da comunidade islâmica da Salvador do século XXI não e diferente. Embora a

época das perseguições tenha acabado, uma sombra de intolerância religiosa paira sobre o

Islã. Por outro lado, na metrópole de dois milhões de habitantes, resquícios malês resistem,

mesmo em meio ao transito engarrafado, e no discurso inflamado dos lideres do movimento

negro.

A fé em uma força superior e algo que acompanha a humanidade desde os tempos dos

nossos mais peludos e rudimentares antepassados. Estudos recentes feitos pela

Universidade Carnegie Mellon, nos EUA, tentaram encontrar nas interligações do cérebro

humano o “centro nervoso da fé”. Houve malogro na iniciativa, exatamente como havia

previsto o cientista Charles Darwin, em 1871. Darwin escreveu que o “dom de acreditar

não e instintivo no homem”. Em seu livro A Descendencia do Homem, o cientista postulou

que “acreditar em Deus não e apenas a única, mas a maior diferença que separa os homens

dos animais”48.

O avanço tecnológico trouxe a tona provas das manifestações religiosas dos nossos

ancestrais. Túmulos funerários, esculturas e pinturas rupestres são abundantes. De acordo

com as descobertas arqueológicas mais recentes, o ritual funerário e praticado em quase

todo mundo há pelo menos 40 mil anos. Com os corpos, eram sepultados ornamentos,

ferramentas, armas e comida. Então, acreditava-se que os mortos precisariam destes

instrumentos em vida outra vida, o que evidencia uma perspectiva de um mundo espiritual.

Mas ao longo da historia da humanidade, política, guerra e religião formaram um ciclo

motocontinuo, no qual a figura de Deus se adequar as necessidades terrenas. Estão ai para

dar testemunho o discreto dedo da Igreja Católica na Alemanha da Segunda Guerra, ou,

48 KOSTMAN, Ariel. Quando começamos a crer. Revista Veja. São Paulo:Abril, 2003. Nº1834, 24 de Dez de 2003.p.106-109.

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dentro da realidade brasileira, o golpe militar de 1964, onde mais uma vez aparece a

aquiescência do Vaticano. O presidente dos EUA Geoge W. Bush, evoca a presença divina

em vários dos seus discursos. Do lado oposto, o terrorista Usama Bin Laden, leva adiante

sua cruzada contra os infiéis, a partir de atentados terroristas.

Na mitologia negra afro-brasileira, a imagem de Alah não escapava aos paralelos rituias,

caros mesmo a uma versão afro do Catolicismo. O aspecto religioso abriu flanco para uma

espécie de maçonaria negra, a qual facultava aos afro-muçulmanos a possibilidade de

infiltrarem-se nas irmandades de leigos, inclusive de maneira destacada. Tanto na África

quanto na Bahia, os males foram associados a uma cultura mais refinada e respeitados por

seus poderes mágicos. Os patuás encontrados nos corpos de guerrilheiros mortos em 1835 e

a chamada baraka dos mestres males tinham grande repercussão no imaginário dos

escravos.

Como dizem os peritos, o lugar do crime sussurra preciosas informações a ouvidos atentos.

Mas o Forte de São Pedro, o Corredor da Vitória, a Igreja da Lapinha, todos parecem

fechar-se num acordo de silencio. Ainda muitos mistérios rondam os males.

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Bibliografia:

ALCHEIK, Hassam. O Lugar da Mulher no Islã. São Bernardo do Campo: Ed. Wamy – Assembléia Mundial da Juventude Islâmica, 1989

BELT, Don(ed. Senior da National Geographic).O mundo do Islã. In: National Geographic Brasil. São Paulo:Abril,2001.p.16-21.

BRAGA, Júlio Santana. Sociedade Protetora dos Desvalidos; uma irmandade de cor. Salvador: Ianamá, 1987

CARVALHO, Jehová de. Nação-Jeje. In Encontro de Nações de Candomblé. Salvador: Ianamá, 1984. p. 55 - 57

CASTRO, José Guilherme da Cunha, org. Miguel Santana. Salvador, EDUFBA, 1996

KOSTMAN, Ariel. Quando começamos a crer. Revista veja. São paulo:abril, 2003. Nº1834, 24 de dez de 2003.p.106-109.

LIMA, Edvaldo Pereira. Páginas ampliadas: o livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura – 2.ed – Campinas/SP: Unicamp, 1995

LIMA, Vivaldo da Costa. A família de santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: um estudo de relações intergrupais. 2.ed – Salvador/Ba: Currupio, 2003

LUZ, Marco Aurélio. Do tronco ao Opá Exin; memória e dinâmica da tradição Africana-Brasileira. Salvador: SECNEB, 1993.

MONTEIRO, Antônio. Notas Sobre Negros Malês na Bahia. Salvador/Ba: Ianamá, 1987

QUTB, Sayyid. Normas no caminho do Islã. Trad. Samir El Hayek. S.l Editora Movimento da Juventude Islâmica Abu Bakr Assidik S.d

REICHERT, Rolf. Os documentos Árabes do Arquivo Público do Estado da Bahia . Rio de Janeiro: Olímpica, 1970

REIS, João José. Rebelião Escrava no Brasil; A História do Levante Malê em 1835. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil; revisão e prefácio Homero Pires; notas bibliográficas Fernando Sales. São Paulo: Nacional, 1862-1906

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Silveira, Renato da. Iyá Nassô Oká, Babá Axipá e Bambochê Obitiko – uma narrativa sobre a fundação do candomblé da Barroquinha, o mais antigo terreiro baiano de Ketu. Trabalho em andamento, versão 2001

VERGER, Pierre Fatumbi. Fluxo e Refluxo; do tráfico de escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de todos os Santos do século XVII a XIX. Trad. Tasso Gadzanis. São Paulo: Currupio, 1987.

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ANEXOS

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ANEXO 01:

ÁGUAS DE OXALÁ – Pierre Fatumbi Verger

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ÁGUAS DE OXALÁPierre Fatumbi Verger

Oxalufã, rei de Ilu-ayê, a terra dos ancestrais, na longínqüa África estava muito velho, curvado pela idade e andava com dificuldade, apoiado num grande cajado, chamado opaxorô.Um dia, Oxalufã decidiu viajar em visita a seu velho amigo Xangô, rei de Oyó. Antes de partir, Oxalufã consultou um babalaô, o adivinho, perguntando-lhe se tudo ia correr bem e se a viagem seria feliz. O babalaô respondeu-lhe: "Não faça esta viagem!Ela será cheia de incidentes desagradáveis e acabará mal."Mas, Oxalufã tinha um temperamento obstinado, quando fazia um projeto, nunca renunciava. Disse, então, ao babalaô:"Decidi fazer esta viagem e eu a farei, aconteça o que acontecer!" Oxalufã perguntou ainda ao babalaô, se oferendas e sacrifícios melhorariam as coisas. Este respondeu-lhe: "Qualquer que sejam suas oferendas, a viagem será desastrosa. "E fez ainda algumas recomendações:"Se você não quiser perder a vida durante a viagem,deverá aceitar fazer tudo que lhe pedirem.Você não deverá queixar-se das tristes conseqüências que advirão.Será necessário que você leve três panos brancos.Será necessário que você leve, também, sabão e limo da costa."Oxalufã partiu, então, lentamente, apoiado no seu opaxorô.Ao cabo de algum tempo, ele encontra Exu Elepô, Exu "dono do azeite de dendê. "Exu estava sentado à beira da estrada, com um grande pote cheio de dendê. "Ah! Bom dia Oxalufã, como vai a família?" "Oh! Bom dia Exu Elepô, como vai também a sua?""Ah! Oxalufã, ajude-me a colocar este pote no ombro.""Sim, Exu, sim, sim, com prazer e logo." Mas de repente, Exu Elepô virou o pote sobre Oxalufã.Oxalufã, seguindo os conselhos do babalaô, ficou calmo e nada reclamou. Foi limpar-se no rio mais próximo. Passou o limo da costa sobre o corpo e vestiu-se com um novo pano;àquele que usava ficou perto do rio, como oferenda.Oxalufã retomou a estrada, andando com lentidão, apoiado no seu opaxorô. Duas vezes mais ele encontrou-se com Exu.Uma vez, com Exu Onidu, Exu "dono do carvão";Outra vez, com Exu Aladi, Exu "dono do óleo do caroço de dendê."Duas vezes mais, Oxalufã foi vítima das armadilhas de Exu,ambas semelhantes à primeira. Duas vezes mais, Oxalufã sujeitou-se às conseqüências. Exu divertiu-se às custas dele,sem que, contudo, conseguisse tirar-lhe a calma. Oxalufã trocou, assim, seus últimos panos, deixando na margem do rio os que usava, como oferendas. E continuou corajosamente seu caminho, apoiado em seu opaxorô, até que passou a fronteira do reino de seu amigo Xangô.

Kawo Kabiyesi, Sango, Alafin Oyó, Alayeluwa! "Saudemos Xangô, Senhor do Palácio de Oyó, Senhor do Mundo!"

Logo, Oxalufã avistou um cavalo perdido que pertencia a Xangô.Ele conhecia o animal, pois havia sido ele que, há tempo, lhe oferecera. Oxalufã tentou

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amansar o cavalo, mostrando-lhe uma espiga de milho, para amarrá-lo e devolvê-lo a Xangô.Neste instante, chegaram correndo os empregados do palácio.Eles estavam perseguindo o animal e gritaram: "Olhem o ladrão de cavalo! Miserável, imprestável, amigo do bem alheio!Como os tempos mudaram; roubar com esta idade!! Não há mais anciãos respeitáveis! Quem diria? Quem acreditaria?"Caíram todos sobre Oxalufã, cobrindo-o de pancadas. Eles o agarraram e arrastaram até a prisão. Oxalufã, lembrando-se das recomendações do babalaô, permaneceu quieto e nada disse.Ele não podia vingar-se. Usou então dos seus poderes, do fundo da prisão.Não choveu mais, a colheita estava comprometida, o gado dizimado;as mulheres estéreis, as pessoas eram vitimadas por doenças terríveis. Durante sete anos o reino de Xangô foi devastado.Xangô, por sua vez, consultou um babalaô, para saber a razão de toda aquela desgraça. "Kabiyesi Xangô, respondeu-lhe o babalaô,tudo isto é conseqüência de um ato lastimável. Um velho sofre injustamente, preso há sete anos. Ele nunca se queixou, mas não pense no entanto... Eis a fonte de todas as desgraças!"

Xangô fez vir diante dele o tal ancião. "Ah! Mas vejam só!" - gritou Xangô. "É você, Oxalufã! Êpa Baba! Exê ê!Absurdo! É inacreditável, vergonhoso, imperdoável!!! Ah! você Oxalufã, na prisão! Êpa Baba!! Não posso acreditar e, ainda por cima, preso por meus próprios empregados! Hei! Todos vocês! Meus generais! Meus cavaleiros, meus eunucos, meus músicos! Meus mensageiros e chefes de cavalaria! Meus caçadores! Minhas mulheres, as ayabás! Hei! Povo de Oyó! Todos e todas, vesti-vos de branco em respeito ao rei que veste branco!Todos e todas, guardai o silêncio em sinal de arrependimento!Todos e todas, vão buscar água no rio! É preciso lavar Oxalufã!Êpa Baba! Êpa, Êpa! É preciso que ele nos perdoe a ofensa que lhe foi feita!!"

Este episódio da vida de Oxalufã é comemorado, a cada ano,em todos os terreiros de candomblé da Bahia, no dia das "Águas de Oxalá" quando todo mundo veste-se de branco e vai buscar água em silêncio, para lavar os axés, objetos sagrados de Oxalá.Também, com a mesma intenção, todos os anos, numa quinta-feira,uma multidão lava o chão da basílica dedicada ao Senhor do Bonfim que,para os descendentes de africanos dos outros tempose seus descendentes de hoje, é Oxalufã.

Êpa, Êpa Baba!!!

(Do livro Lendas Africanas dos Orixás)Pierre Fatumbi Verger/Caribé - Editora Corrupio

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ANEXO 02:

Entrevista com Benedito Lima, 42 anos, professor de história da

rede pública e freqüentador do Centro Islâmico

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Anexo 02Entrevista com Benedito Lima, 42 anos, professor de história da rede pública e

freqüentador do Centro Islâmico.

O que levou o senhor a iniciar o contato com o Islamismo?Na minha família, particularmente eu e minha esposa, não temos nenhuma religião. O que me levou inicialmente a ter contato com o Islã é que não há intermediários. Somente a Alah, somente a Deus, você entrega seu destino. Diretamente você entrega a sua vida a Deus e ele te proverá. Isso gerou em mim o desejo de conversão.

Como o senhor chegou ao Centro Islâmico?Quando morava em Pernambuco, assisti a uma reportagem falando sobre o CCIBa. Inclusive o sheikh Armhad falava na matéria. Então escrevi na minha agenda. Anos depois, quando eu vim para a Bahia, para trabalhar, pedi informação telefônica sobre o Centro. Foi quando eu mantive contato, fiz uma visita e fui muito bem recebido. Isso tem mais ou menos um ano.

Qual o diferencial da religião islâmica, em relação às outras? Falar sobre religião é um negócio muito difícil. Eu acredito que não seja um destes privilegiados que consiga falar sobre religião. Tanto que nunca fui batizado, nem mesmo participei de qualquer religião. Mas observo algumas diferenças; por exemplo, na própria amizade, há uma irmandade entre os muçulmanos. Ainda existem regras, limites. Não estamos falando contra a liberdade, mas contra a liberalidade. A própria oração, estar ali, rezando; se vigiando cinco vezes por dia...

Como é o processo de conversão?A conversão se passa primeiro no coração. Tem que estar com o coração puro, buscando a verdade, não deve ser coagido, como muitas religiões fazem por aí. Além disso, há o conhecimento. Tem que estudar sobre a religião, para ter certeza de que ela o aproxima realmente de Alah, de Deus.

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ANEXO 03

ENTREVISTA COM ABDUL HAKIM, UM DOS FUNDADORES DO CENTRO DE

CULTURA ISLÂMICA DA BAHIA (CCIBA)

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Anexo 03

Entrevista com Abdul Hakim, um dos fundadores do Centro de Cultura Islâmica da

Bahia (CCIBa)

Como foi o processo de constituição do CCIBa? Quem realmente se envolveu nesta atividade de fundar o centro islâmico foram basicamente universitários, entre os quais posso citar Misbah Akani. Após algum tempo de estudos com um grupo de alunos da UFBA, ele veio com uma carta do Centro de Divulgação do Islã para América Latina e da Junta de Assistência Social Islâmica, ambas sediadas em São Bernardo do Campo, São Paulo. O documento autorizava a fundar um Centro Islâmico e congregar com outros irmãos, que eram poucos na época.

O Restaurante Universitário (RU), a esta época sediado no Campus de Ondina, onde funciona hoje a Faculdade de Comunicação (FACOM), era um centro de reuniões dos estudantes muçulmanos?Sim, era um ponto de encontro. Eu conheci Misbah no RU, isso no início dos anos 90. Alugamos a primeira casa para as orações já em 92.

Pelo fato do Islã ser uma religião muito presente nos países africanos, houve, maior proximidade dos estudantes negros da UFBA, talvez em busca de uma identidade?Não havia nenhuma preocupação com a questão racial. A nossa preocupação era com a questão religiosa. Mas como estávamos na Bahia, em Salvador, claro que esta questão era colocada na mesa. Até por que o Islã é contra o racismo, então não tinha como evitar este tipo de discussão. A nossa religião é contra o racismo, mas não da maneira que o Movimento Negro Unificado (MNU) é. Somos contra o racismo através dos preceitos islâmicos, que pregam igualdade para todos, independente da etnia, da raça ou do sexo.

Quais são as origens das verbas para o CCIBa?As verbas partem do CDIAL, e da JSAI, financiados com verbas provenientes da Arábia Saudita. Ainda existem outras formas de doações. São pessoas que têm condições de fazer grandes doações. Dentro do Islã, isso é chamado de zacat, um dos pilares da nossa religião. É uma caridade; mas não uma esmola, como certa mídia quer fazer parecer. Por exemplo, se um príncipe saudita quisesse doar uma mesquita para nós, seria um zacat também.

Como foi o processo de se obter esta carta, trazida por Misbah Akani, a fim de fundar o CCIBa, tendo em vista que o Islã tem poucos adeptos no estado? Foi fruto de um diálogo que já existia em São Paulo, entre africanos e sauditas. Os árabes chegaram na África antes mesmo dos europeus; portanto um convívio que remonta há séculos. A chegada do Centro Islâmico na Bahia é resultado deste convívio.

Como está o empenho para a divulgação da fé aqui na região Nordeste?A comunidade árabe realmente está mais concentrada nos estados do sul e sudeste. Na região Nordeste, realmente percebemos uma grande deficiência. Por isso realizamos um primeiro acampamento muçulmano no ano passado [o grupo não saiu da grande Salvador.

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Foi um evento realizado em Lauro de Freitas]. São palestras e visitas a diversas localidades, onde procuramos os que professam a religião, para que possamos, inclusive, cadastrá-los. Os dados vão servir como mapa, para a fundação de novos centros islâmicos.

Esta é uma Jihad?Sim, mas Jihad no sentido de esforço, empenho pela divulgação da fé, não uma guerra santa.

Há alguma conexão entre o CCIBa e os movimentos negros?Sim, mas como convidados para eventos e palestras. Assim, o Olodum já nos convidou, o Ilê Ayê nos convidou. Nós não negamos. Os militantes do movimento negro também são seres humanos e necessitam de informação sobre o Islã. Estamos aqui para isso; levar informação, independente de raça, cor ou mesmo credo.

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ANEXO 04:

ENTREVISTA COM AGNES BEZERRA, 27 ANOS, ESTUDANTE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL – MARKETING, DA

UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SALVADOR

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Anexo 04Entrevista com Agnes Bezerra, 27 anos, estudante de Comunicação Social – Marketing, da Universidade Católica de Salvador

Como você escolheu o Islã, enquanto prática religiosa?Antes eu acreditava que eram coincidências, hoje tenho plena certeza de que não foi. Primeiro, teve um ano em que viajei com uns amigos, e quando liguei a televisão estava passando a Haj. Fiquei impressionada com aquele povo, que tinha aquela fé, aquela determinação. Logo em seguida, veio meu aniversário, quando ganhei um livro chamado A Viagem de Thor, um romance sobre as religiões, que falava muito do Islã. Depois começou um semestre na faculdade, e eu conheci um irmão daqui, o Abdul Hakim, no laboratório de informática. A gente começou a conversar, e ele me falou que havia um centro islâmico em Salvador. Falou das aulas de cultura islâmica, aulas de árabe, e me deu o cartão daqui. Fiquei quase uma ano querendo vir aqui, mas com vergonha. Então, finalmente me matriculei num curso de árabe, foi quando tive contato com as pessoas da comunidade, comecei a conhecer mais o Islã e tive certeza de que era aquele o meu caminho. Um ano depois, eu me converti.

Qual a sua origem? Há muçulmanos na família?Sou baiana, de uma família toda católica. Sou a única muçulmana da minha família.

Você usa o véu o tempo todo?Não. Uso apenas dentro do centro islâmico.

Porquê?Aqui em Salvador, eu sinto que as pessoas agridem, fazem piada. Normalmente quando estou com o sheikh, ou com as pessoas da comunidade eu não me incomodo de usar o véu. Mas sozinha eu não uso.

Quais são a natureza destas agressões?São verbais, as pessoas gritam o nome de Jade [personagem da novela O Clone, da Rede Globo], gritam que sou “da turma de Bin Laden”, estas coisas assim. O preconceito não se repete na universidade, inclusive com vários colegas visitando aqui o CCIBa. A minha família também. Minha irmã já teve aqui e minha mãe. As pessoas próximas aceitam com naturalidade.

O Islã faz muitas restrições, em relação à vida pessoal; como o uso de bebidas alcoólicas, por exemplo. É difícil se enquadrar?Quanto ao uso de bebidas alcoólicas, está previsto no Alcorão; é proibido. Mas estamos falando de um código de vida. Quando você escolhe, escolhe tudo. Como foi uma coisa que eu não fui forçada, mas uma coisa pela qual eu optei, não há, para mim, constrangimento algum.

Você só poderia casar-se com um homem islâmico?

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Como muçulmana, eu só posso casar com muçulmano. Já o homem muçulmano, pode casar com qualquer mulher que seja seguidora das religiões dos livros sagrados; o Alcorão, a Torah e a Bíblia.

Como você vê a posição da mulher dentro do Islã? Ao contrário do que as pessoas pensam, a religião não deixa a mulher numa espécie de submissão. O que existe é um respeito muito grande à figura da mulher; ao ser feminino, à mãe, à irmã, à esposa, num sentido de família.

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ANEXO 05

ENTREVISTA COM JOÃO CHAGAS, 55, NOME DE INICIADO YAHIA

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Anexo 05Entrevista com João Chagas, 55, nome de iniciado Yahia.

Como foi a sua aproximação com o Islã?Um amigo meu, descendente de árabe, filho de árabe, aliás, pois nasceu aqui no Brasil, me trouxe para cá, para uma visita. Gostei muito do lugar, de como me trataram. E até hoje, graças a Deus, venho me adaptando muito bem. Hoje, posso dizer que este pessoal aqui do centro são meus parentes. Tenho orgulho disso. Aqui eu já fiz seis anos com eles, e não pretendo sair para canto nenhum.

Como o pessoal do centro se integra? Há encontros; festividades?Temos uma festa, que ocorre de ano em ano; uma vez por ano, no mês do Ramadã, a festa do carneiro. É uma festa na comunidade, e também espiritual. Não é uma festa de bebida, estas coisas. A nossa bebida aqui é guaraná, e a ceia é com frutas. Quando termina o Ramadã, um mês depois, vem o sacrifício do carneiro, morto de maneira sem dor. Daí para diante é a fé; rezar cinco vezes por dia.

O senhor praticava anteriormente alguma outra religião?Eu era cristão, mas eu vivia um pouco constrangido, não pelo fato da palavra, pois Deus é um só. É um ser que a gente não troca por nada. Mas faltava alguma coisa em minha vida.

Como é a estrutura do centro?A estrutura, o líder nosso aqui é o sheikh, a pessoa responsável pela religião. Nós temos uma diretoria. Não fazemos nada sem consultar a diretoria. Se compramos material, entregamos a nota para eles. É preciso o controle, uma pessoa que organize. Não é uma firma, é uma comunidade, mas é tudo controlado.

Como foi o seu processo de conversão?Levei mais ou menos um ano examinando os livros, vindo aqui às sextas-feiras. Depois disso, fiz a charada. Quando a pessoa passa a ser muçulmano, torna-se mais bondoso para a família e pessoas próximas. Se você ouve seu vizinho chorando com fome, a sua obrigação é ajudar ele. É ajudando que a gente é ajudado. Este é o fundamento da religião islâmica.

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ANEXO 06

ADRIANO ALMEIDA, 27. NOME DE INICIADO: ABU BAKR

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Anexo 06Adriano Almeida, 27. Nome de iniciado: Abu Bakr

Como o senhor conheceu o Islã?Quando conheci o Islã, nenhum dos meus amigos falava sobre religião muçulmana ou coisas deste tipo. Há uns cinco anos atrás, cada dia um representante de uma religião abria a programação da TV. Um dia, eu vi um sheikh paulista falando, o que me interessou, mas não tinha nenhum conhecimento sobre o assunto. Tinha apenas uma curiosidade.

O que te chamou atenção, na fala deste sheikh?O que ele estava falando era uma coisa certa. As pessoas estavam adorando a Jesus, e deixando de adorar a Deus, como se Jesus estivesse acima de todas as coisas. Isso foi mexendo comigo.

E para chegar os centro islâmico foi difícil?Não. Na verdade, eu fui perguntando às pessoas onde tinha mesquita por aqui, e ninguém sabia. Eu já tinha visitado algumas igrejas plesbiterianas, e descobri que a doutrina deles era muito opressiva em certos sentidos. A Igreja Universal também, a Igreja Batista; eles se dizem cristãos, mas não trabalham como cristãos. Era outra forma de comportamento. Não era cristianismo. Um dia, conversei com um amigo meu, a respeito do Islã. Ele morava aqui perto, e me indicou.

Foi difícil a sua adaptação à religião islâmica?Eu já tinha mulher e filho, então não foi difícil para mim. Mas é preciso entender que o Islã tem seus cinco pelares, e mesmo os pilares têm seus subpilares. Existes muita coisa na crença islâmica, mas que você precisa ter muito cuidado. Não se pode pegar um indivíduo, colocar num meio, e tentar mudá-lo bruscamente. Por exemplo, eu consumia álcool, e fui deixando de consumir aos poucos. Tudo tem seu tempo. Não é entrar e fazer a charada, eu estudei o Islã. Depois de muito estudo, quase dois anos e meio, fui me compreendendo e cortando certos hábitos.

Pelo o que o senhor pôde observar, ao longo do seu convívio aqui, no CCIBa, qual a maior dificuldade que as pessoas passam, ao tentar se converter ao Islã?A grande dificuldade que as pessoas passam com a religião islâmica aqui na Bahia, é o fato do Brasil não ser um país islâmico. Se fosse, não haveria bebida alcoólica, por exemplo. Se uma pessoa é garçom, ou seja, trabalha vendendo bebidas, nada o impede de ser muçulmano. Não precisa abandonar a profissão, até que Alah lhe dê outra forma de sustento. Muita gente acha que é radical. “Você é isso e acabou”, o que pode, até mesmo, destruir a vida de uma pessoa. Mas o processo é gradual. Cada um vê o que está errado e tenta consertar. Por exemplo, eu trabalho com música. Nestes meios, você toca em hotel, em festa onde vende cerveja e tudo o mais. Você está trabalhando, mas contribuindo para que outras pessoas bebam e paguem o show, inclusive com dinheiro de bebida alcoólica. Tentei mudar de profissão, mas é muito difícil por que já trabalho com isso há mais de dez anos. Até que Alah me dê outra fonte de renda, vivo disso.

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O senhor se veste de maneira diferente (um camisolão longo, tipo abadá), chama os fiéis para oração e parece ser muito solicitado pelos demais crentes. Qual a sua posição dentro da hierarquia das orações?No Islã não existe, como existe na Igreja, o clero. Apenas pessoas que estudam um pouco mais, dedicam-se ao estudo do Alcorão e dos haditts. Mas existem certas coisas, por exemplo, o sheikh, que é uma pessoa que ensina o conhecimento, pois é formado em jurisprudência islâmica. A função dele é mostrar como é o Islã realmente, e como a pessoa pode se adaptar à religião. Quando conheci o sheikh, há quatro anos atrás, ele me orientou bastante. Eu perguntava as coisas para ele, o que ele não conseguia responder, eu ia procurando bibliografia, analisando e tirando minhas dúvidas. Todos no centro islâmico tem o mesmo direito. Não tenho cargo algum aqui. Me visto assim por que eu gosto. A questão de usar esta roupa é apenas por isso, me sinto bem usando esta roupa de oração; você pode me ver na rua usando calça jeans e camiseta, ou mesmo com esta vestimenta.

O Islã é vítima de intolerância religiosa na Bahia? Em algum momento, já houve incompreensão das outras opções religiosas contra os muçulmanos de Salvador?Mostraram intolerância, tanto do lado do animismo, ou seja o candomblé e espiritismo, quanto do lado daqueles que se dizem evangélicos. Uma realidade é que os evangélicos estudam o Islã e outras religiões e como eles falharam, tentando mostrar que eles são os certos. Nós muçulmanos não vemos deste ponto, e sim que existe o cristianismo, e outras religiões, e devem ser respeitadas. Ainda há a questão do livro sagrado deles, a Bíblia. Quem compilou a Bíblia foi Paulo de Tarso. Ainda existe uma Bíblia derivada dos cristãos e outra da Igreja Católica. A Bíblia que os evangélicos usam não é a dos cristãos, mas derivada da dos católicos. Se tivessem conhecimento do verdadeiro Cristianismo, não teriam estas atitudes. Com relação ao animismo, aparece a ignorância. Eles não sabem nem do que se trata. Nem mesmo do que são os orixás, e por que eles estão aqui na terra. A Igreja coloca que os orixás são demônios, mas eles não têm o conhecimento dos jinns. Eles são a segunda forma de criação feita por Alah. A primeira são os anjos e, em terceiro os homens. Os jinns podem voltar e encarnar numa pessoa, para terem o prazer de comer e beber, como os seres humanos. É apenas uma questão de ignorância, a verdade está no Alcorão.

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ERSIDADE FEDERAL DA BAHIAFACULDADE DE COMUNICAÇAODEPARTAMENTO DE JORNALISMO

Memorial

O Sacrifício do carneiro:Uma radiografia da presença Islâmica em Salvador.

Por: Luiz Carlos Souza

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“Assomou-me uma tempestade, que destruiu casa, telhado, tudo.

Agora, nada oculta a lua que brilha.”

Provérbio Zen japonês

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Apresentação

O exercício diário do jornalismo na Editoria de Economia do Correio da Bahia me fez conhecer de perto a rotina de se fazer um jornal. Recebíamos duas pautas por dia, ou cinco por semana, quando estávamos nos cadernos – Correio Trabalho e Correio Negócios. Por mais boa vontade ou talento que o repórter possa ter, resumir a realidade que o circunda numas poucas linhas e uma tarefa impossível. Através do jornalismo investigativo, que principiei a estudar

na Agencia de Noticias da Universidade, Ciência Press, com a

professora Nadja Miranda, percebi que o caminho para

aprofundar informações, e mesmo para fundar novos critérios

de relação com o leitor poderiam estar no livro-reportagem. A

agencia tratava de temas científicos, com a investigação em

torno dos projetos realizados pelos professores da

Universidade Federal da Bahia (UFBa). Mas, ainda assim,

apesar do jornalismo especializado, faltava espaço em papel,

para levar adiante as idéias.

A partir da leitura complementar indicada pela professora

Nadja, como o livro de Edvaldo Pereira: Paginas Ampliadas - o

livro-reportagem como extensão do jornalismo e da literatura,

pude perceber que o exercício diário do jornalismo poderia

estar na confecção de livros que buscassem aprofundar temas

correntes no jornalismo cotidiano. Estas experiências se

juntaram ao conhecimento adquirido durante as disciplinas que

cursei na Facom ajudando-me no despertar senso critico e a

experiência investigativa.

O assunto escolhido para o estudo, a saber, a influencia Islâmica em Salvador e recoberto por uma aura de silêncio e mistério. Resguarda historia de um povo, a beleza de seus rituais e a força de sua fé. O assunto é controverso, hoje, principalmente, pós-11 de setembro de

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2001. Há em todo o mundo, o estereotipo da violência e radicalismo relacionado ao Islã. Esta visão advém do desconhecimento das sharia (leis da religião, que interferem na vida política, social, cultural e comportamental de seu povo) e do terror a alteridade que o ocidente alimenta. Nada tem inquietado tanto a opinião publica quanto a onda de violência que assola os paises islâmicos. Pouco conhecido da maioria, este universo no qual gente morre em nome de Deus invade as salas de jantar das famílias brasileiras todos os dias, por conta da televisão. Paralelamente a isto, Salvador já teve uma presença islâmica forte, entre os séculos XVIII e primeiras três décadas do século XIX. Entre os africanos de etnia haussa e nagô havia um forte movimento de proselitismo, tanto na África quanto na Bahia. Então, idealizei um trabalho no qual o resgate cultural, com foco nas alianças que os negros muçulmanos tiveram que fazer para sobreviver frente ao poderio escravista pudesse coexistir com uma ponte para o presente. Na Salvador do século XX, formou-se uma comunidade muçulmana, que, a rigor, não tem nada a ver com os antepassados afro-muçulmanos de 200 anos atrás. Assim, o trabalho, dentro de suas limitações, procurou

harmonizar passado e presente, numa narrativa cientifica,

imiscuída com traços literários para dar viva cor a uma

historia que de ,per si, já e grandiosa. Assim, o mundo árabe

na Salvador contemporânea ainda e cercado de mistérios,

talvez como o véu das mulheres islâmicas dos paises do

Oriente Médio, das quais apenas pode-se suspeitar a beleza.

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OBJETOO objeto deste trabalho foi a rebelião male de 1835, e sua

repercussão em torno do arco de alianças nos anos

subseqüentes a repressão que cercou os afro-muçulmanos

durante o século XIX. A radiografia da presença islâmica

contou ainda com o perfil da comunidade muçulmana que se

formou na Salvador do século XXI.

BUSCOU-SE, COM AFINCO, ESTUDAR E TRAZER A TONA OS ANTECEDENTES DA

REBELIÃO, A SUA REALIZAÇÃO, OS MOTIVOS DE SEU MALOGRO E AS MARCAS E

CICATRIZES QUE DEIXOU EM NOSSA HISTORIA. HOUVE, NOS ANOS SEGUINTES AO

LEVANTE, UMA MITIFICAÇÃO DE SUA IMPORTÂNCIA PARA A FORMAÇÃO DA IDENTIDADE

NEGRA NA BAHIA (COISA QUE SE PERCEBE POR EXEMPLO, NA CONSTRUÇÃO DE UM

BLOCO DE CARNAVAL INTITULADO “MALE DE BALE” E AS CONSTANTES REFERENCIAS

A REVOLUÇÃO EM DISCUSSÕES SOBRE A PARTICIPAÇÃO DOS NEGROS COMO ELEMENTOS

DESRUPTORES DO STATUS QUO), ENTRETANTO A MITIFICAÇÃO VEM CONSTANTEMENTE

ACOMPANHADA DE UM DESCONHECIMENTO ACERCA DOS ELEMENTOS MOTIVADORES DA

REVOLUÇÃO, SEUS PRINCIPAIS ARTICULADORES E SUAS CONSEQÜÊNCIAS. ESTE

TRABALHO NÃO TEM A PRETENSÃO DE ESGOTAR O ASSUNTO OU DE “FAZER JUSTIÇA”

AO NOME E A HISTORIA MALE, PRETENDE, SIM, SER MAIS UM OLHAR A VOLTAR-SE

SOBRE ESTA HISTORIA MUITAS VEZES ESQUECIDA E, SE POSSÍVEL, TRAZER A TONA

QUESTIONAMENTOS E PERSONAGENS ESQUECIDOS DESTA BATALHA.

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OBJETIVOS

O objetivo principal do livro-reportagem O Sacrifício do

Carneiro – uma radiografia da presença islâmica em Salvador

foi identificar a presença afro-muçulmana na cultura baiana.

Alem do que, o resgate histórico do levante do males de 1835

e sempre oportuno dentro da academia, tendo em vista a divida

social que o pais tem com os afro-descendentes. O racismo não

foi um efeito colateral na formação da sociedade brasileira,

mas um dos fatores que ajudou a organiza-la, através da

hierarquização do mercado de trabalho e mão de obra. A

revisão histórica, no sentido de deixar claro que não houve

uma mera aceitação da escravidão, pelos cativos africanos

torna-se urgente, tendo em vista um imaginário popular

inculto, no qual “o português e burro, o índio preguiçoso e o

negro acomodado”.

Assim; segue a divisão dos objetivos:

- Gerais:

Promover, dentro do âmbito acadêmico uma discussão

sobre o mundo islâmico;

Colaborar para a elucidação da serie de incógnitas

que cercam o mundo árabe;

Colaborar para que acabe o preconceito contra as

pessoas que professam a religião islâmica;

Promover o resgate histórico do levante dos males

de 1835;

Avaliar o nível das alianças – tanto estratégicas

quanto rituais – que os males fizeram ao longo do

século XIX;

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Comparar o critério deste arco de alianças com as

atuais, realizadas por aqueles que reivindicam uma

herança guerreira afro-muçulmana – representado por

diversos segmentos do movimento negro.

Objetivos específicos:

Exercitar o texto mais longo, em formato de livro;

Exercitar leitura de livros históricos;

Harmonizar jornalismo investigativo com pesquisa

bibliográfica;

Seguir pistas dos descendentes de escravos

muçulmanos da Bahia; identificando as suas

prováveis ascendências;

Investigar a identidade das etnias africanas que

vieram para a Bahia, a fim de colaborar para a

constituição da identidade da cultura baiana.

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MATERIAIS E MÉTODOS

Alem da consulta bibliográfica, discriminada no corpo do

trabalho, lancei mão de entrevistas, gravadas, via telefone,

ou anotadas a caneta, dada as ocasiões de diálogos informais.

Durante a elaboração deste trabalho passei pelo

constrangimento de ter minha residência arrombada. O que os

assaltantes furtaram foi um dos materiais mais valiosos

levantados durante a pesquisa: um gravador contendo as

entrevistas do historiador João Jose Reis, e da descendente

de africanos islamizados, Dona Ivone da Paixão. O registro

policial contendo a ocorrência esta registrado no corpo do

trabalho, na parte de “anexos”. Em virtude do encerramento do

prazo de entrega do trabalho, não foi possível realizar novas

entrevistas.

A Internet também foi de grande valia para o trabalho,

constituindo-se numa ampla biblioteca virtual, com

informações que se renovavam praticamente todos os dias. Alem

disso, revistas e jornais auxiliaram no acompanhamento das

noticias do mundo árabe e formação de conceitos relativos aos

paises de maioria muçulmana.

Na biblioteca do Centro de Estudos Afro-Orintais (CEAO), fui

presença tão constante a ponto de ser confundido como

funcionário da casa. O professor orientador transmitiu-me

recomendações de textos e trechos marcantes em obras que

traziam o tônus do trabalho: o arco de alianças empreendido

pelos afro-islamicos do século XIX, em especial a infiltração

destes nas irmandades de leigos, como a Sociedade Protetora

dos Desvalidos e a Irmandade do Rosário dos Pretos das Portas

do Carmo. Num momento de adversidade, transplantados para uma

terra estrangeira, os negros das mais diversas nações se

uniram contra o poderio branco escravista. Os críticos que

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acusam o movimento Male de 1835 de sectarista e divisionista

o fazem por ignorância, ou por outra linha de interpretação

das evidencias colhidas pela repressão policial na época do

levante.

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DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO

A partir de um breve dialogo inicial com o professor Renato

da Silveira, tive acesso a duas fontes bibliográficas: a

primeira foi o livro de João Jose Reis: Rebelião Escrava no

Brasil; a Historia do Levante dos Males em 1835, e Notas

Sobre Negros Males na Bahia, de autoria do pesquisador

autodidata Antonio Monteiro. O primeiro livro primava pela

coerência na pesquisa, através de documentação e bibliografia

consistente. O segundo, conforme havia m alertado o professor

orientador, possui alguns problemas de apuração, tendo em

vista a confusão no citar das fontes e misturas de

personagens fictícios como Luisa Mahin, personagem de um

livro de Jorge Calmon, e Luis Sanin, efetivamente um dos

lideres do movimento de 1835.

De um lado, havia a coerência, que me levou a buscar outras

fontes bibliográficas. De um outro, a incerteza das apurações

de Monteiro, baseadas apenas na tradição oral. De acordo com

Monteiro, as informações lhes foram prestadas por um africano

muçulmano, ex-escravo, chamado Manoel da Silva Nascimento, o

Gibirilo. Consegui localizar a sobrinha-neta do “ultimo male

de vida religiosa ativa em Salvador”, como define o professor

Cid Teixeira.

Como temos um trabalho limitado no tempo, não pude me

estender em maiores detalhes com Ivone Silva da Paixão,

sobrinha do Gibirilo, senhora que conta atualmente 79 anos. A

senhora me concedeu duas entrevistas apenas; algo

insuficiente para avaliar o convívio familiar com os

ascendentes muçulmanos da família.

Em breve dialogo com o professor Cid Teixeira, tive noticia

de uma senhora de prenome Tomazia, também descendente de

male. Após ter trabalhado muitos anos na casa de uma família,

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tornou-se uma espécie de agregada. Dona Tomazia convive com

um amigo do professor Cid Teixeira. Ele intermediou os

contatos com a senhora, mas, receosa em prestar informações,

ela não manteve contato comigo.

Estava abalada, pela morte de um parente próximo, e não tinha

disponibilidade para falar sobre qualquer assunto. Ainda

assim, havia um primo da Dona Tomázia convertido ao

Islamismo. Ela disse que ele sabia “algumas coisas”, mas não

tem contato com a família há anos.

A perspectiva de comparar Islã e Candomblé, universos

aparentemente tão diferentes, me fez procurar os

pesquisadores Vivaldo Costa Lima e Jocélio Telles. Os

diálogos com os pesquisadores sempre traziam novas

referencias bibliográficas, alem de novas informações e

estimulo para dar continuidade a pesquisa, mas eram

praticamente unânimes ao dizer que, dada a serie de variáveis

embutidas na analise da presença islâmica em Salvador seria

impossível esgotar o trabalho no formato ora apresentado.

Costa Lima falou-me sobre o trabalho de Rolf Reichert, que

traduziu o texto das rezas fortes achadas junto ao corpo dos

insurrectos, em forma de patuás. Já o professor Telles,

chamou-me atenção para um tradicional dialogo do candomblé

com o poder instituído, sobretudo a partir da concessão de

cargos honoríficos. A hierarquia honorifica ajudava a

prestigiar os terreiros e figuras da sociedade, que passavam,

praticamente a adota-los. O dialogo do candomblé com o poder

ajuda a explicar a resistência da religião ate hoje, coisa

impensável ao Islã. Enquanto o candomblé tinha duas faces;

uma que negociava com o poder e outra que esperava toma-lo

pelo embate armado, o Islã tinha apenas uma; a afronta ao

poder instituído. Estas analogias tem o século XIX e XX, como

pano de fundo.

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Por outro lado, havia uma comunidade islâmica no seio da

Salvador do século XXI. A despeito da antiga tradição dos

negros males, os atuais muçulmanos tiveram que iniciar o

proselitismo praticamente da estaca zero.

Em entrevistas diretas com freqüentadores e adeptos da

religião, abordei temas polêmicos, como o terrorismo, a

posição da mulher no Islã e mesmo a lembrança afro-muçulmana.

Este ultimo tópico foi polemico, pois a herança da

combatividade dos males ultrapassou a questão política, para

adentrar ao aspecto religioso. O que se ouve na mesquita

soteropolitana e que os afro-muçulmanos lutaram pela

liberdade de todos os homens, orientação expressa no alcorão.

Na verdade, havia a expectativa de escravização dos mulatos,

caso a rebelião tivesse saído vencedora em 1835.

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RESULTADOS OBTIDOS

A partir das entrevistas realizadas e da consulta a bibliografia ficou claro que a hipótese inicial a ser defendida pelo trabalho foi viável. Tínhamos como argumento básico, recorte principal o estabelecimentos de alianças para a sobrevivência dos afro-muçulmanos na Bahia. Estas alianças, já em curso na África ao longo dos séculos XVII e XVIII não deixavam de ser vistas com preconceito, pelos seguidores de um Islã mais puro, alinhado com o líder espiritual Usuman Dan Fodio. O conferia status de polemica as uniões estratégicas e que

estas freqüentemente adentravam ao campo ritual, com a

criação de mitos e novas liturgias, coerentes com o quadro

político estabelecido. A questão das alianças ultrapassou o

tempo e o espaço, fazendo-se presente no discurso dos

diversos segmentos do movimento negro, e das organizações não

governamentais que tem como função levar direitos civis as

populações afro-descendentes.

Assim, o livro-reportagem conseguiu este objetivo, através da

reprodução e analise do discurso dos lideres dos segmentos

acima destacados. Já os conchavos rituais e estratégicos do

passado ficaram no plano da tradição oral, ou mesmo de uma

parca bibliografia a respeito. O fato e que a maçonaria negra

escapou incólume aos registros policiais, que se a

detectaram, o fizeram parcialmente.

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CONCLUSÃO

Mesmo após o fim deste estudo, ainda espero chegar as minhas

mãos escritos árabes em papel almaço, e recortes de jornais

antigos. Pelo menos uma entrevista ainda pode ser realizada.

Seria com um descendente de africano islamizado, do qual

dizem “saber algumas coisas”.

Após certa resistência, o homem ficou de entrar em contato.

Entretanto, ainda não se pode ter certeza que ele o fará. Se

o mundo islâmico parece fechado como uma ostra aos não

iniciados, maiores mistérios cercam a tradição dos negros

males.

Após a rebelião de 1835, ser muçulmano passou a ser

considerado uma coisa maligna. Tanto que, uma das

especulações em torno do significado do termo male e que este

seria uma corruptela de “ma lei”, em contraposição a uma “boa

lei”, talvez dos católicos. Entretanto a tese mais aceita

entre os especialistas e que a palavra male venha de imale,

termo de origem iorubana que significa muçulmano. O silencio

foi a arma usada pelos males baianos derrotados em 1835. Não

legaram, nem mesmo a filhos e netos, a religião revelada ao

profeta. Seguir pistas, perder-me em labirintos, tentar

juntar cacos de nações perdidas no tempo; eis a tarefa da

qual me ocupei nos últimos meses.

Sem duvida, embora não tenha havido malogro na iniciativa, o

assunto não pode ser esgotado, dado o formato ora apresentado

do presente trabalho. A investigação continua; inclusive com

a procura de novas fontes e bibliografia.

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Novas perspectivas para a pesquisa

Uma pesquisa deste porte que envolveu tanta leitura, entrevistas e reconstituição histórica consegue, de imediato, responder a algumas perguntas que surgiram no momento de sua concepção e no decorrer de seu desenvolvimento, entretanto, como de toda pesquisa, saímos mais cheios de duvidas que de certezas. Responde-se, ao fim, algumas perguntas que surgiram, entretanto muitas outras de maior relevância e profundidade. Estas só podem ser respondidas em um trabalho de maior fôlego, que engendre mais tempo de pesquisa, viagens, novas entrevistas e novas reflexões. Portanto, este trabalho pretende ampliar-se numa dissertação de mestrado onde se estudaria as relações dos afro-mulçumanos dos séc. XIX e XX com as irmandades de leigos representadas, principalmente, pela Sociedade Protetora dos Desvalidos e a Irmandade do Rosário dos Pretos.

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