xvi congresso nacional de linguÍstica e filologia ... · 131. a produção do gênero textual...

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ISSN: 1519-8782 XVI CONGRESSO NACIONAL DE LINGUÍSTICA E FILOLOGIA Promovido pelo Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos Realizado no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro 27 a 31 de agosto de 2012 (http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf ) Cadernos do CNLF, Vol. XVI, Nº 04, t. 2 Anais do XVI CNLF Rio de Janeiro, 2012

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ISSN: 1519-8782

XVI CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

Promovido pelo Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos Realizado no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro

27 a 31 de agosto de 2012

(http://www.filologia.org.br/xvi_cnlf)

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2

Anais do XVI CNLF

Rio de Janeiro, 2012

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1277.

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO CENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES

INSTITUTO DE LETRAS

REITOR

Ricardo Vieiralves de Castro

VICE-REITOR

Paulo Roberto Volpato Dias

SUB-REITORA DE GRADUAO

Len Medeiros de Menezes

SUB-REITORA DE PS-GRADUAO E PESQUISA

Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron

SUB-REITORA DE EXTENSO E CULTURA

Regina Lcia Monteiro Henriques

DIRETOR DO CENTRO DE EDUCAO E HUMANIDADES

Glauber Almeida de Lemos

DIRETORA INSTITUTO DE LETRAS

Maria Alice Gonalves Antunes

VICE-DIRETORA DO INSTITUTO DE LETRAS

Tnia Mara Gasto Salis

pg. 1278 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

Crculo Fluminense de Estudos Filolgicos e Lingusticos Boulevard 28 de Setembro, 397/603 Vila Isabel 20.551-030 Rio de Janeiro RJ

[email protected] (21) 2569-0276 http://www.filologia.org.br

DIRETOR-PRESIDENTE

Jos Pereira da Silva

VICE-DIRETORA

Cristina Alves de Brito

PRIMEIRA SECRETRIA

Dlia Cambeiro Praa

SEGUNDA SECRETRIA

Regina Celi Alves da Silva

DIRETOR DE PUBLICAES

Ams Coelho da Silva

VICE-DIRETOR DE PUBLICAES

Jos Mrio Botelho

DIRETORA CULTURAL

Marilene Meira da Costa

VICE-DIRETOR CULTURAL

Adriano de Sousa Dias

DIRETOR DE RELAES PBLICAS

Antnio Elias Lima Freitas

VICE-DIRETOR DE RELAES PBLICAS

Eduardo Tuffani Monteiro

DIRETORA FINANCEIRA

Ilma Nogueira Motta

VICE-DIRETORA FINANCEIRA

Maria Lcia Mexias Simon

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1279.

XVI CONGRESSO NACIONAL DE LINGUSTICA E FILOLOGIA

de 27 a 31 de agosto de 2012

COORDENAO GERAL

Jos Pereira da Silva

Marilene Meira da Costa

Ilma Nogueira Motta

COMISSO ORGANIZADORA E EXECUTIVA

Ams Coelho da Silva

Cristina Alves de Brito

Regina Celi Alves da Silva

Antnio Elias Lima Freitas

Jos Mrio Botelho

Eduardo Tuffani Monteiro

Ilma Nogueira Motta

Maria Lcia Mexias Simon

Antnio Elias Lima Freitas

COORDENAO DA COMISSO DE APOIO

Adriano de Sousa Dias

Valdnia Teixeira de Oliveira Pinto

COMISSO DE APOIO ESTRATGICO

Marilene Meira da Costa

Laboratrio de Idiomas do Instituto de Letras (LIDIL)

SECRETARIA GERAL

Slvia Avelar Silva

pg. 1280 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

SUMRIO

113. A aprendizagem da escrita em contextos digitais: alguns limites e muitas possibilidades Fernanda Maria Almeida dos Santos ....1286

114. A biblioteca de Adonias Filho Vanessa dos Santos Reis ........ 1297

115. A crtica gentica no universo das obras de arte: um recorte do pro-cesso criativo de Vik Muniz Thais Jernimo Duarte .............. 1307

116. A cultura surda no processo de aprendizagem da lngua portuguesa escrita por alunos surdos Vanessa Mutti de Carvalho Miranda e Lucas Santos Campos ................................................................ 1317

117. A edio do texto teatral Anatomia das Feras Dbora de Souza e Rosa Borges dos Santos ............................................................. 1325

118. A edio interpretativa de Malandragem Made in Bahia em diferen-tes suportes Williane Silva Cora e Rosa Borges dos Santos . 1338

119. A estilstica em ao no cancioneiro balsense Marcia Meurer Sandri e Claudio Cezar Henriques ............................................ 1350

120. A fontica e a fonologia na obra de Leodegrio Amarante de Aze-vedo Filho Mirian Therezinha da Matta Machado ................. 1364

121. A formao de leitores no ensino tcnico e profissionalizante: um relato de experincia Juliana Santos Menezes ........................ 1372

122. A fragmentao do indivduo em Ode triunfal Vanessa dos San-tos Reis ....................................................................................... 1383

123. A heterocronia na narrativa de Um Erro Emocional, de Cristvo Tezza Patrcia Mariz da Cruz e Maria Fernanda Garbero de A-rago .......................................................................................... 1389

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1281.

124. A heterogeneidade discursiva da realizao enunciativa do gnero divulgao cientfica Urbano Cavalcante Filho ..................... 1397

125. A humanizao da personagem Baleia em Vidas Secas: uma abor-dagem sistmico-funcional Camila Brito dos Santos .............. 1407

126. A leitura em lngua inglesa na educao profissional e tecnolgica: um relato de experincia com alunos de ESP Annallena de Souza Guedes ....................................................................................... 1417

127. A leitura no PROEJA: espaos, objetos e modos de ler Adailton Costa de Souza ........................................................................... 1429

128. A linguagem em the catcher in the rye: um estudo comparativo de suas tradues para o portugus Brbara Andrade de Sousa .. 1442

129. luz dos candeeiros: o que nos dizem os livrinhos de assentos e notas de fazendas da Bahia na primeira metade do sculo XX Trcia Priscila Lima Dria, Dayane Moreira Lemos, Zenaide de Oliveira Novais Carneiro ........................................................... 1451

130. A modernidade e Baudelaire: um passeio solitrio em meio multi-do Veronica Almeida Trindade, Rosana Maria Ribeiro Patrcio e Aleilton Fonseca ........................................................................ 1458

131. A produo do gnero textual cientfico e seus desdobramentos in-tertextuais Arlinda Cantero Dorsa .......................................... 1468

132. A teoria de gneros bakhtiniana em textos orais de publicidade e propaganda Patricia Jernimo Sobrinho ................................ 1481

133. A transtextualidade no processo de criao do romance Nh Guima-res, do escritor baiano Aleilton Fonseca Adna Evangelista Couto dos Santos e Rita de Cssia Ribeiro de Queiroz ........................ 1494

134. A variao da concordncia nominal de nmero no contexto escolar Dayane Moreira Lemos e Trcia Priscila Lima Dria ........... 1507

135. Adjunto adverbial: teoria, ensino e anlise Maria de Ftima Bar-reto Lisboa, Clzio Roberto Gonalves e Rosngela Maria Zanetti 1515

pg. 1282 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

136. Anlise acstica das vogais orais da lngua idate Maressa Xavier Alcantara ................................................................................... 1534

137. Apolnio e prisciano a sintaxe e suas consequncias Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira ........................................................... 1550

138. Aquisio de oraes relativas preposicionadas no portugus brasi-leiro Ana Cristina Baptista de Abreu ...................................... 1556

139. Arquivo Nacional, Departamento de Censura de Diverses Pbli-cas: o caso Greta Garbo Arivaldo Sacramento de Souza e Rosa Borges dos Santos ...................................................................... 1564

140. As cartas dos leitores na sala de aula: as marcas de oralidade como estratgias estilstico-argumentativas Aytel Marcelo Teixeira da Fonseca ...................................................................................... 1579

141. As concepes de gramtica e sua prtica em sala de aula Thalita Fernandes Clemente .................................................................. 1591

142. As construes condicionais epistmicas em discursos de ordem ju-risdicional valores sociais em foco Maria do Rosario Roxo e Gi-sele Costa ................................................................................... 1602

143. As margens da alegria e os cimos: molduras de um itinerrio meta-fsico Joelson Santiago Santos ................................................ 1610

144. As representaes de leitura em lngua materna construdas como uma trade comunicativa: autor-texto e leitor no contexto escolar dos alunos de ensino mdio Mrcia Maria Lima Candido ..... 1621

145. Aspectos catafricos do pronome pessoal de 3 pessoa em diferentes instncias enunciativas: anlise do conto Sarapalha, de J. G. Rosa Robevaldo Correia dos Santos e Gredson dos Santos ............... 1633

146. Aspectos da vida literria baiana a partir de uma leitura filolgica de O Imparcial e O Conservador Maria da Conceio Reis Tei-xeira ........................................................................................... 1644

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1283.

147. Campos semnticos de cincia e de religio em Medicina Teolgica de Francisco de Melo Franco Jssica Correia da Silva .......... 1654

148. Coerncia, coeso e sucesso escolar: eixos temticos de uma pes-quisa em educao Osvaldo Barreto Oliveira Jnior ............. 1662

149. Condicionais preditivas no discurso poltico Maria do Rosario Roxo e Monique Gusmo Sampaio ............................................ 1675

150. Construo gramatical: modelo de descrio dos usos lingusticos Maria do Rosario Roxo .............................................................. 1682

151. Contribuies do PIBID/Letras para a formao do professor e para o ensino de lngua portuguesa Vandinalva de Jesus Coelho Cam-pos, Marize Barros Rocha Aranha e Fbia Elina dos Santos Arajo .................................................................................................... 1691

152. Convergncia de linguagens: o dilogo entre escola e redes sociais para a promoo do sucesso escolar na contemporaneidade Edna Maria de Oliveira Ferreira e Osvaldo Barreto Oliveira Jnior 1700

153. Cordel identitrio: uma anlise da temtica social na obra do Mestre Azulo Jos Severino da Silva ................................................ 1712

154. Crtica textual e codicologia: estudo do manuscrito militar de ttica para infantaria (I-14,01,039/FBN-RJ) Sandro Marcio Drumond Alves ........................................................................................... 1722

155. De Dionsio a Donato as primeiras tradues e adaptaes da Tech-n Grammatik Luiz Roberto Peel Furtado de Oliveira ......... 1735

156. Ditos populares em msicas do cancioneiro popular: uma aborda-gem cognitiva Antonio Marcos Vieira de Oliveira ................. 1756

157. Do som do berrante ao uso das novas tecnologias: a cultura panta-neira sob olhares intertextuais Arlinda Cantero Dorsa ........... 1768

158. Edio digital de Sermo de frei Domingos: paixo virtual Mar-lia Andrade Nunes e Alcia Duh Lose ...................................... 1784

pg. 1284 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

159. Edio digital: a filologia nos novos tempos Marla Oliveira An-drade e Alcia Duh Lose ........................................................... 1793

160. Elementos folhetinescos em A Viuvinha, de Jos de Alencar. A construo do romance brasileiro Anne Caroline de Morais San-tos ............................................................................................... 1801

161. Em nome do esprito: como se configura o sagrado em Miguel Tor-ga e Guimares Rosa Helitnia dos Santos Pereira ................ 1809

162. Emprstimos lingusticos nos livros didticos: descrio e tratamen-to no dicionrio escolar Maryelle Cordeiro ............................ 1816

163. Ensino-aprendizagem e avaliao na educao a distncia (EaD): abordagem colaborativa Nara Maria Fiel de Quevedo, Maria Ali-ce de Mello Fernandes, Rute de Souza Josgrilberg e Terezinha Baz de Lima ...................................................................................... 1827

164. Entre ler, responder e guardar: a correspondncia entre Ansio Tei-xeira e Monteiro Lobato nas primeiras dcadas do sculo XX Tamyres Costa Vieira Oliveira e Luciete de Cssia Souza Lima Bastos ......................................................................................... 1839

165. Entre os gneros do discurso e os discursos sobre gnero: Clarice Lispector e a subverso do feminino Thiago Eugnio Loredo Bet-ta, Andreza Barreto Leito, Srgio Arruda de Moura ............... 1848

166. Esboo sobre uma escritura biogrfica de Antnio Ferreira Santos a partir de uma leitura de O Conservador Ediane Brito Andrade e Maria da Conceio Reis Teixeira ............................................ 1859

167. Escolas bilngues na fronteira entre Brasil e Argentina: a lngua por-tuguesa como lngua estrangeira Angela Baalbaki .................. 1870

168. Esquadro da Moda: intolerncia e preconceito lingustico Clzio Roberto Gonalves e Vernica Barante Machado ................... 1882

169. Estrutura fonolgica da lngua brasileira de sinais e da lngua portu-guesa: questes sobre a (in)dependncia na estrutura lingustica Robevaldo Correia dos Santos e Geisa Borges da Costa .......... 1897

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1285.

170. Estudo de recepo das massas: um olhar para o receptor Juliana Rettich ........................................................................................ 1908

171. Estudos diacrnicos da lngua portuguesa: arcasmos presentes nos manuscritos de Paranagu Joyce Elaine de Almeida Baronas e Rebeca Louzada Macedo ........................................................... 1916

172. Estudos lingusticos de MPB: Luz Gonzaga Afrnio da Silva Garcia ........................................................................................ 1929

173. Fontes para o estudo de prticas de escrita na Bahia setecentista e oitocentista: o caso do Livro do Gado da fazenda Campo Seco Adilson Silva de Jesus e Mariana Fagundes de Oliveira ........... 1945

174. Fontes para medio de letramento na Bahia oitocentista: o caso dos registros eclesisticos de terras Shirley Cristina Guedes dos San-tos e Zenaide de Oliveira Novais Carneiro ................................ 1955

175. Formao inicial e continuada de professores em ambiente virtual: o olhar sobre o PCC do curso de letras da unigran/dourados Terezi-nha Baz de Lima, Nara Maria Fiel de Quevedo Sgarbi, Maria Ali-ce de Mello Fernandes e Rute de Souza Josgrilberg ................. 1964

176. Grupo sinttico e compostos com p: um continuum em constru-o Neide Higino da Silva ....................................................... 1974

177. Imagens de velhice e loucura em Ronaldo Correia de Brito Joel-son Santiago Santos ................................................................... 1990

178. Imagens urbanas e ecolgicas na poesia de Sosgenes Costa Ma-riana Barbosa Batista e Aleilton Fonseca ................................. 1997

pg. 1286 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

A APRENDIZAGEM DA ESCRITA EM CONTEXTOS DIGITAIS: ALGUNS LIMITES E MUITAS POSSIBILIDADES

Fernanda Maria Almeida dos Santos (UFBA) [email protected]

O surgimento e constante ampliao do uso das tecnologias digi-tais na sociedade hodierna, devido especialmente popularizao e facilidade de acesso aos microcomputadores, propiciaram significativos avanos na vida e nas relaes humanas, bem como nos modos de apro-priao do conhecimento, tornando-se condio primordial para o acesso informao e para o desenvolvimento da comunicao mundial.

Evidentemente, a utilizao do computador conectado internet vem possibilitando novas formas coletivas/interativas de se ensinar e a-prender, articuladas ao contexto em que os indivduos esto inseridos, contribuindo para a construo do saber, seja por favorecer o uso de vari-ados percursos e linguagens pelos sujeitos, seja por propiciar a constitui-o de redes colaborativas de comunicao. Considera-se, desse modo, que [...] o computador no mais instrumento que ensina o aprendiz, mas a ferramenta com a qual o aluno desenvolve algo, e, portanto, o a-prendizado ocorre pelo fato de estar executando uma tarefa por interm-dio do computador. (VALENTE, 1993, p. 8)

Nessa perspectiva, nota-se que a aplicabilidade das tecnologias digitais no campo educacional tem sido vista por muitos educadores e instituies escolares como uma possibilidade para a modernizao do ensino. Entretanto, preciso considerar que, embora a informtica ofere-a tecnologias e inovaes que podem ser aproveitadas no campo educa-tivo para acessar e aperfeioar os mais diversos tipos de conhecimentos, no altera a concepo de ensino-aprendizagem do professor (o compu-tador pode ser utilizado simplesmente como uma ferramenta para edio de textos tradicionais), nem oferece, por si s, subsdios conceituais para a anlise e elaborao de novas ideias.

O computador um mero instrumento de comunicao de dados, de informao; uma dentre as vrias ferramentas que podem intermediar o processo de ensino e aprendizagem. Mas, se utilizado em sala de aula como um recurso simblico mediador do conhecimento, aliando-se a concepes e prticas pedaggicas interacionais (que enfatizem a explo-rao de novos tipos de raciocnio, propiciem variadas possibilidades de

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1287.

participao dos sujeitos e estimulem a comunicao com base nos prin-cpios da interatividade), esse instrumento poder ter carter diferencia-dor, sobretudo no processo de aprendizagem da escrita pela criana, por possibilitar o uso social da linguagem em diferentes contextos de produ-o e interpretao de sentidos.

Seguindo essa tica, o presente artigo apresenta uma discusso sobre o processo de aquisio da linguagem escrita em contextos digitais, enfatizando alguns aspectos que podem limitar a aprendizagem e desta-cando as mltiplas possibilidades de apropriao da escrita por interm-dio do computador. Mas, longe de se limitar a uma simples descrio do processo de aprendizagem da escrita, as pginas que se seguem apresen-tam reflexes pertinentes acerca da importncia do uso do computador (atrelado a prticas pedaggicas interacionais) para o desenvolvimento comunicativo e socioeducacional dos indivduos na contemporaneidade.

1. Como a criana aprende a escrever?

A aprendizagem e o domnio da linguagem, principalmente em sua modalidade escrita, acarretam mudanas significativas no desenvol-vimento humano. Por meio da escrita possvel expor ideias e experin-cias, desenvolver a imaginao e o raciocnio crtico e ampliar a prpria capacidade de comunicao. possvel realizar no apenas a leitura da palavra; mas, sobretudo, a leitura do mundo.

Observa-se, entretanto, que o aprendizado da linguagem escrita iniciado muito antes do perodo de escolarizao no se limita sim-ples compreenso/reproduo dos cdigos de uma determinada lngua. uma tarefa complexa e exige do indivduo tanto a potencialidade de as-similar as diferenas especficas dos sistemas fnico, fonolgico, morfo-lgico e lexical da lngua; quanto habilidade de identificar o que h de peculiar na estrutura sinttica e no modo como as relaes semnticas e discursivas se estabelecem. Desse modo, verifica-se que o domnio da escrita de uma lngua um processo gradual, atravs do qual o indivduo reflete a respeito dos fatos do prprio sistema de escrita, combinando os elementos de maneira singular e distanciando-se, muitas vezes, da vari-ante padro da lngua escrita. Nota-se, contudo, que nem sempre essas singularidades so respeitadas no mbito escolar.

Muitas vezes, a criana exposta a processos artificiais de apren-dizagem, voltados para uma concepo de ensino que concebe a escrita

pg. 1288 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

como um mero cdigo de transcrio grfica das unidades sonoras (cf. FERREIRO, 2001). Sob essa tica, o texto escrito considerado produto da codificao de um emissor a ser decodificado pelo leitor/ouvinte, sen-do necessrio a este apenas o conhecimento do cdigo.

Ferreiro (2001) expe, contudo, que diferentemente de um cdigo de transcrio grfica (em que tanto os elementos quanto as relaes j esto predeterminadas), a escrita deve ser concebida como um sistema de representao da linguagem. A autora explica que essa diferena no apenas terminolgica, mas apresenta distintas implicaes para o proces-so de alfabetizao: Se a escrita concebida como um cdigo de trans-crio, sua aprendizagem concebida como a aquisio de uma tcnica; se a escrita concebida como um sistema de representao, sua aprendi-zagem se converte na apropriao de um novo objeto de conhecimento, ou seja, em uma aprendizagem conceitual." (FERREIRO, 2001, p. 16)

Escrever no apenas representar objetos, conceitos e ideias atra-vs de signos grficos. A escrita se caracteriza por diferentes condies que determinam a produo dos discursos. , sobretudo, um mecanismo de interao com o outro, com o mundo, atravs do qual os sujeitos dialogicamente se constituem e so constitudos. (cf. KOCH, 2003)

Tambm, de acordo com Bakhtin (2006), a linguagem compre-endida a partir de sua natureza scio-histrica, por meio de sua dimenso social e dialgica. Nas palavras do autor,

... toda palavra comporta duas faces. Ela determinada tanto pelo fato de que procede de algum, como pelo fato de que se dirige para algum. Ela constitui justamente o produto da interao do locutor e do ouvinte. Toda palavra serve de expresso a um em relao ao outro. Atravs da palavra, defino-me em re-lao ao outro, isto , em ltima anlise, em relao coletividade. (BAKH-TIN, 2006, p. 115)

Contudo, vlido ressaltar que essa relao dialgica no ape-nas de concordncia, mas, sobretudo, de refutao do enunciado anterior, de confronto com ideias de outrem. Verifica-se, ento, que o processo de apropriao da linguagem escrita envolve tanto aspectos sensoriais quan-to a atividade mental, baseada na experincia prvia e no contexto socio-interacional.

Mas preciso considerar que esse processo de construo se ini-cia muito cedo e engloba outras etapas do desenvolvimento infantil. Se-gundo Vigotski (2007), os gestos iniciais utilizados pela criana, o brin-quedo de faz-de-conta, o desenho e a escrita devem ser considerados co-

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1289.

mo momentos distintos do processo de desenvolvimento da linguagem escrita. De acordo com o autor, a brincadeira do faz-de-conta favorece seu desenvolvimento lingustico por possibilitar a realizao de estrat-gias de substituio e gerar uma atividade ou gesto representativo, no qual o objeto/brinquedo adquire o valor de signo. Quanto ao desenho, construdo, inicialmente, com base na linguagem oral e considerado pela criana como um objeto em si mesmo; posteriormente, passa a ser enca-rado como uma representao e, aos poucos, se transforma em marcas no figurativas, que daro origem escrita.

Ao perceber que pode desenhar no apenas as coisas, mas tambm a fala (Cf. VIGOTSKI, 2007), a criana estar preparada para enfrentar o processo de aquisio da escrita propriamente dito.

Para Ferreiro (1982; 2001) e Ferreiro e Teberosky (1986), trs pe-rodos fundamentais, no interior dos quais possvel verificar subnveis, determinam o aprendizado inicial do sistema de escrita pela criana.

O primeiro perodo caracteriza-se pela busca de parmetros de di-ferenciao entre as marcas grficas figurativas (desenhos) e as marcas grficas no figurativas (escrita), como formas alternativas de represen-tao da realidade.

J o segundo perodo caracterizado pela construo de condi-es formais de interpretabilidade. Nesse perodo, intitulado de pr-sil-bico, ainda no h algum tipo de correspondncia entre grafia e som. A construo grfica de uma palavra intermediada por critrios intrafigu-rais, os quais consistem no estabelecimento das propriedades que o texto deve possuir para ser interpretvel, a exemplo do princpio da quantidade mnima e da variabilidade qualitativa.

Quanto ao terceiro perodo o que corresponde fonetizao da escrita. Engloba trs nveis de evoluo: silbico, silbico-alfabtico e alfabtico.

O nvel silbico se evidencia, conforme Ferreiro (1982), quando a criana compreende que as diferenas das representaes escritas se rela-cionam com as diferenas na pauta sonora das palavras. Nesse nvel, a criana procura efetuar uma correspondncia entre grafia e slaba, geral-mente uma grafia para cada slaba. As letras j no so percebidas aleato-riamente, mas de acordo com o som percebido nas palavras.

Quanto ao nvel silbico-alfabtico, Ferreiro (1982) salienta que neste nvel coexistem duas formas de fazer correspondncias entre sons e

pg. 1290 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

grafias: a silbica e a alfabtica. A sistematicidade da tarefa executada pela criana se d no sentido de que cada grafia corresponde a um som. Assim, percebe-se que as slabas podem ser constitudas por mais de um som.

No nvel alfabtico a escrita organizada com base na correspon-dncia entre grafias e fonemas. Assim, ocorre a identificao da dimen-so fonmica em quase todas as slabas, embora frequentemente no se-jam respeitadas as convenes ortogrficas. Nota-se, ento, que o proces-so de alfabetizao no se encerra nessa etapa. Ser ainda necessrio s crianas identificar as diferentes relaes que se estabelecem entre letras e sons e se apropriar das normas ortogrficas de sua lngua.

Em seus escritos, Lemle (1983) indica a existncia de trs tipos de relaes entre fonemas e grafemas: 1) as correspondncias biunvocas, em que cada letra corresponde a um som e cada som corresponde a uma letra; 2) a relao de um para mais de um, com restrio de posio, em que, para cada som numa determinada posio, h uma letra correspon-dente; 3) relaes de concorrncia, em que vrias letras podem represen-tar um som numa mesma posio.

Mas, observa-se que, embora a compreenso da linguagem escrita seja efetuada, inicialmente, por meio da modalidade oral da lngua, gra-dualmente esse elo intermedirio desaparece e a escrita converte-se de simbolismo de segunda ordem1 para um sistema de smbolos de primeira ordem2, denotando diretamente as entidades reais e as relaes entre elas. (cf. VIGOTSKI, 2007)

Sendo assim, nota-se que a aprendizagem da escrita demanda abs-trao, elaborao e controle de regras e, portanto, requer o uso de capa-cidades metacognitivas3. Ao descrever tais capacidades, Gombert (2003) as subdivide em habilidades epilingusticas e habilidades metalingusti-cas. Enquanto as primeiras se referem a um conhecimento implcito e no consciente acerca da linguagem oral, as segundas implicam num controle explcito ou consciente das estruturas lingusticas.

1 Signos representativos criados com base nos smbolos falados.

2 Signos representativos que denotam diretamente entidades, objetos e aes.

3 Etimologicamente, a palavra metacognio significa para alm da cognio; desse modo, represen-ta a faculdade de conhecer o prprio ato de conhecer, ou, por outras palavras, consciencializar, ana-lisar e avaliar como se conhece.

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1291.

, evidentemente, atravs da interface entre conhecimentos impl-citos e explcitos que a criana constri competncias fundamentais para o seu desenvolvimento no decorrer do processo de alfabetizao, especi-almente quando adquire a conscincia de que possvel segmentar a lin-guagem oral em unidades distintas e de que essas unidades reaparecem em outros vocbulos e obtm conhecimento das regras de correspondn-cia entre grafemas/fonemas e grafemas/significados. Sendo assim, pos-svel afirmar que, pelo menos duas, dentre as principais habilidades me-talingusticas, podem intermediar, direta e indiretamente, o processo de aprendizagem da lngua escrita pela criana: a conscincia fonolgica e a conscincia morfossinttica.

Alm disso, o processamento semntico e o pragmtico tambm so elementos fundamentais para a elaborao de um texto. Eles contri-buem no apenas para a produo de significados por meio da ativao do conhecimento lingustico e do conhecimento de mundo do indivduo, em determinada situao discursiva; mas, sobretudo, para a compreenso da ideia de que as palavras adquirem significados no contexto de uso da lngua.

Desse modo, a escrita no deve ser encarada como uma tcnica ou como um produto com fim em si mesmo; mas deve ser entendida como um processo que se constri gradualmente e resultante do desenvolvi-mento de atividades interativas entre os sujeitos e a prpria lngua. Nessa perspectiva, nota-se que o uso de recursos como o computador pode fa-vorecer a aprendizagem e se tornar um importante aliado.

2. O computador: um importante aliado no processo de aprendizagem da escrita

Sem dvida, o uso do computador em sala de aula pode desenca-dear experincias significativas de aprendizagem, desde que seja adequa-damente mediado pelo docente e baseie-se, bvio, em uma concepo de ensino voltada para o desenvolvimento de prticas interativas.

Partindo do pressuposto de que inovaes tecnolgicas no repre-sentam inovaes pedaggicas, acredita-se que a simples insero e utili-zao de computadores nas escolas no suficiente para promover me-lhorias no campo educacional. Nota-se que, em muitas escolas, os labora-trios de informtica ficam fechados ou nem so visitados pelos alunos; em outras, quando muito, so oferecidas aulas de informtica aos discen-

pg. 1292 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

tes, uma vez por semana. Isso no representa desenvolvimento, nem si-nnimo de inovao pedaggica. Os alunos precisam usar a informtica e no apenas ter aulas de informtica; ou melhor, precisam ser inseridos em prticas adequadas de aprendizagem por meio da utilizao dos re-cursos tecnolgicos.

No que concerne, especificamente, aprendizagem da escrita, o computador oferece valiosas contribuies. Segundo Frade (2007), a a-prendizagem da escrita no papel pressupe o acmulo de duas tarefas: saber, ao mesmo tempo, o que so as letras e como tra-las e ainda sa-ber o que representam como sistema. Diferentemente, no computador, a atividade escrita demanda menos esforo, facilitando a aprendizagem.

... o ato de liberar-se do gesto de produzir um traado no papel j que as le-tras esto disponveis no teclado e basta escolh-las e toc-las talvez possa reduzir o nvel de dificuldade da tarefa para o aprendiz, favorecendo a identi-ficao dos caracteres e seu correspondente registro fonolgico, mais do que seria possvel na escrita com outro instrumento. (FRADE, 2007, p.80).

Em consonncia com essas ideias, Oliveira (2006) explica que, diante do computador, os alunos no precisam se preocupar com a forma das letras e tamanho das palavras; do-se conta tambm de que qualquer erro na escrita pode ser facilmente apagado e no ficaro indcios. Um fator positivo resultante dessa nova forma de aprender que, agora, dominar o ato grfico de escrita j no uma habilidade central como quando se escreve mo. Essa descarga atencional no domnio das habi-lidades grficas permite que o aluno se centre em outros aspectos mais importantes na escrita. (OLIVEIRA, 2006, p. 37)

Outro aspecto enfatizado por Frade (2007) acerca do assunto o fato de haver diferenas entre o alfabetizado que aprende a digitar e o a-prendiz das primeiras letras, que digita ao mesmo tempo em que aprende o registro de um sistema. Enquanto no primeiro caso h apenas uma mu-dana no suporte utilizado para a apresentao dos textos escritos, no se-gundo caso, os indivduos compreendem o conceito de representao da escrita na medida em que aprendem a operar com a tecnologia e com o prprio sistema de escrita; por isso, levantam hipteses, fazem infern-cias e realizam reflexes diversas, tornando a aprendizagem muito mais dinmica.

Percebe-se tambm que o aprendizado da escrita em ambientes digitais pode ser favorecido pela iconicidade presente na tela e pelos as-pectos audiovisuais: sons, imagens e signos verbais e formas em movi-mento. Acredita-se que se uma criana pode acionar um comando que

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permite ouvir e visualizar, simultaneamente histrias e outros textos nar-rados com a apresentao sincrnica da sua escrita na tela, talvez possa perceber melhor essa relao (FRADE, 2007, p. 70). Sem contar que, atravs da oralizao de um texto por um programa computacional, o a-prendiz tem a oportunidade de realizar a leitura do texto por meio do a-companhamento da escrita ou tentar reler, intensificando, assim, seu con-tato com o sistema escrito.

Alm disso, observa-se que ao produzir um texto no meio digital o aprendiz no precisa se preocupar em separar as palavras em slabas (caso essas no caibam por completo em uma linha); muito menos com o alinhamento do texto, com o emprego de uma caligrafia legvel e bonita e com os erros ortogrficos, j que o computador faz isso automaticamen-te. O corretor ortogrfico, por exemplo, indica os equvocos na ortografia e se responsabiliza pelas correes necessrias. E, embora muitos afir-mem que esses aspectos podem interferir negativamente no aprendizado de uma lngua pela criana, verifica-se que tais elementos podem auxiliar no aprendizado se mediados de maneira adequada.

O aprendizado do sistema alfabtico e ortogrfico pode ocorrer significativamente no contexto digital, atravs do uso de atividades ldi-cas, que facilitem o aprendizado, e por meio da prpria leitura e escrita em situaes envolventes. Alm disso, a aprendizagem no meio digital no priva o indivduo de aprender tarefas indispensveis ao texto manus-crito, tais como a organizao do texto, a separao de slabas e o uso de uma caligrafia legvel. Nota-se, ento, que com o uso das novas tecnolo-gias podem ser adquiridos outros gestos de escrita, mas esses podem conviver com os gestos da cultura manuscrita. A utilizao de um gesto no significa a excluso do outro.

Outros benefcios propiciados pelo uso do computador no proces-so de aprendizagem da escrita so mencionados por Oliveira (2006). Um deles se refere ao uso da escrita como estratgia para resoluo de pro-blemas, j que envolve o sujeito em uma situao em que ter que alcan-ar determinado objetivo e, para isso, precisar definir estratgias e re-solver como e quando ir atuar. Outra vantagem diz respeito grande possibilidade de construo de tarefas colaborativas. Segundo o autor, os computadores poderiam facilitar o planejamento de tarefas de escrita que permitem a interao entre alunos [...]: o que se escreve visto pelos demais alunos e cada um deles pode intervir na modificao do texto uti-lizando o mesmo instrumento. (OLIVEIRA, 2006, p. 43)

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Alm disso, nota-se que a interao em contexto digital pode ser favorecida pela execuo de variadas tarefas e pela realizao de trocas comunicativas no ambiente virtual, por meio do uso de alguns programas informacionais e, principalmente, da Internet. Ao navegar pela Internet, o indivduo tambm acessa variados textos por meio de atalhos que lhe propiciam um novo modo de construir o conhecimento. O percurso de leitura sempre imprevisvel e possibilita o dilogo com outros textos e outras vozes discursivas. Assim, o modo como os sujeitos apreendem dados e informaes acerca da realidade, bem como desenvolvem as ha-bilidades de uso da leitura e escrita, marcado por trajetrias diversifica-das.

Observa-se, desse modo, que a aprendizagem da escrita em con-textos digitais pode facilitar no apenas o processo de alfabetizao, mas tambm favorecer as prticas de letramento, desencadeando processos de ensino-aprendizagem cada vez mais interativos, dinmicos e plurais, arti-culados ao contexto de uso da linguagem pelos sujeitos envolvidos.

Sendo assim, Shetzer e Warschauer (2000) evidenciam a relevn-cia de se trabalhar com o letramento digital em contextos de aprendiza-gem voltados para o ensino de lnguas. Em consonncia com estas ideias, Coscarelli (2007) apresenta algumas sugestes de atividades para o apri-moramento das prticas de letramento digital por crianas: enviar e-mail para os colegas; utilizar o corretor ortogrfico em programas para digita-o de texto; usar o dicionrio eletrnico para a busca de sinnimos; or-ganizar-se, montando sua agenda eletrnica; montar blogs; acessar sites para enviar cartes eletrnicos, ouvir/ler histrias, escutar msicas e brincar com as palavras de maneiras diversificadas; podendo, ao mesmo tempo, divertir-se, aprimorar as atividades de leitura e escrita e desen-volver a familiaridade com o computador.

Percebe-se, ento, que o uso continuado das tecnologias digitais, especialmente do computador, pode auxiliar no processo de aprendiza-gem da escrita, visto que propicia o uso social e cognitivo da linguagem, constituindo um importante espao para a produo e interpretao de sentidos. A convivncia com os gneros eletrnicos s tem a acrescentar na aprendizagem da leitura e da escrita pela criana, desde que, bvio, no se tornem nicos para ela.

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A BIBLIOTECA DE ADONIAS FILHO

Vanessa dos Santos Reis (UEFS) [email protected]

1. Introduo

Os sculos XX e XXI so palco para importantes conquistas cien-tficas, avanos tecnolgicos, descobertas em diversas reas, alm de significativas transformaes no mbito das artes. E, nesse perodo, os estudos literrios e lingusticos tambm conseguem consolidar-se.

Contudo, j no incio do sculo IV a.c j se percebe a presena dos estudos literrios em meio a outras reas de conhecimento a exemplo da matemtica e da ginstica. Os jovens atenienses eram leitores de Ho-mero, uma vez que necessitavam expressar-se de maneira convincente, nesse sentido, surgem disciplinas como a retrica, a gramtica e a dialti-ca, que fundamentam a organizao de ensino desde os romanos at o i-ncio da Era Moderna (ZILBERMAN, 1994).

Com a revoluo burguesa, no sculo XVIII, o novo modelo im-pe mudanas que atingem o conhecimento e agora, assim como as rela-es de trabalho, passa a ser compartimentado. A poesia e outras expres-ses da palavra so agregadas literatura, rea considerada carente em finalidade e aplicabilidade. Dessa maneira, a literatura considerada co-mo ineficaz como disciplina, fazendo surgir a necessidade de outra cin-cia para melhor explic-la.

Disciplinas como esttica e histria da literatura surgem nesse contexto, tendo como principais precursores os estudiosos alemes. na Alemanha que se inicia a modernizao e reforma das universidades, ins-tituio que nasce na Idade Mdia, mas que entra em crise. Com a refor-ma de Humboldt, a instituio reabilitada, e a diviso do conhecimento consolida-se na prtica, a histria da literatura encontra um lugar institu-cional, ampliando seus domnios.

No sculo XX os estudos literrios so convertidos em teoria da literatura, momento em que o Formalismo Russo uma das expresses mais consistentes. Cabe agora histria da literatura o papel de definir cnones, valorizados e avalizados pela teoria da literatura. Nesse mesmo sculo, assiste-se crise desse paradigma, como o advento do Ps- -Estruturalismo, Ps-Modernismo, Desconstrutivismo e Estudos Cultu-

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rais, instauram-se questionamentos que as formulaes iniciais no mais podem responder.

Uma dessas indagaes diz respeito s relaes entre teoria da li-teratura e histria da literatura, onde se iniciaria e findaria a obra liter-ria? Questionamento que deve pensar nas fontes primrias para alcanar uma resposta. Segundo Zilberman (1994, p. 15):

Fontes primrias constituem, em princpio, matria da histria, que cons-tri uma narrativa a partir dos documentos que certificam o passado. A Teoria da Literatura tende a abrir mo desse material, ao privilegiar o produto final, a obra publicada, em detrimento de suas origens e processo de criao.

A histria da literatura acompanhou esse pensamento, no valori-zando as origens do texto literrio, acabou por desistoriciz-lo. Dessa maneira, buscando desmitificar esse conceito, fundamental que os estu-diosos da literatura percebam que a histria do texto se d mesmo antes de seu nascimento, e que o autor sofre influncias diversas no momento de criao. Segundo Regina Zilberman, as fontes podem ser todo e qual-quer material utilizado pelo autor antes do momento de criao, desde lembranas infantis at mesmo sonhos, tradies, enfim.

Genericamente, fontes corresponde a um significante que pode acolher tudo que precede a obra, pertencendo sua fase de gestao e produo. Atri-buir-lhe esse significado, porm no basta; de um lado, por se mostrar muito abrangente; de outro, por no levar em conta as escolhas do pesquisador que desejar privilegiar o estudo das fontes. (ZILBERMAN, 1994, p. 18).

Nesse contexto, compete ao pesquisador eleger as fontes que re-conhece na obra do artista estudado e atribuir-lhe um sentido. Caber en-to ao pesquisador o papel de recolher os indcios, e buscar a significao para o seu estudo. nessa perspectiva, reconhecendo a biblioteca do es-critor baiano Adonias Filho, como importante fonte primria que, inten-taremos demonstrar as relaes que a prosa adoniana apresenta com a Tragdia Grega.

2. Modernismo: novas perspectivas

A ecloso do movimento modernista acarreta a intensificao da conscincia nacionalista, fazendo com que essa ideia seja repercutida in-tensamente na fico, alm de atribuir-lhe um carter essencialmente brasileiro, ideal que se almejava desde o Romantismo. Todas as correntes da fico modernista inserem-se nesse contexto, e mesmo as tendncias psicolgicas apresentam a preocupao em retratar o ambiente brasileiro,

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a exemplo do prprio Machado de Assis, para quem os problemas huma-nos existiam num determinado contexto histrico. (COUTINHO, 1955, p. 301).

O movimento modernista propicia uma literatura brasileira de fei-tio prprio, nesse momento a fico adquire uma fisionomia bem defini-da e intensifica-se a preocupao em produzir uma literatura pautada sob o signo do nacional, criando-se uma maior conscincia da realidade bra-sileira. Dentro do Modernismo desenvolveram-se vrias correntes, algu-mas em prolongamento de tendncias anteriores, outras resultantes de novas formas da fico universal. H, nesse momento, o interesse em ampliar a significao da literatura regional para o universal.

nesse contexto que surgem autores como Guimares Rosa, Cla-rice Lispector e Adonias Filho, grupo de autores que, a partir de 1945, considerada a terceira fase do Modernismo, inclinou-se para um retorno de certas disciplinas formais, preocupando-se com a renovao do ro-mance em bases artsticas, depois de um regionalismo restrito ao prprio regionalismo. Como acentua o ensasta Jorge Arajo:

Por tudo o que mostra (ou sonega), a narrativa de Adonias Filho a me-nos regionalista dos egressos de 30, assim como as de Cornlio Pena e Lcio Cardoso, os trs confluindo para uma zona de intermediao inquiridora, pes-simista, nebulosa de perspectivas atemporais, metafsicas e de transcendncia adventcia, apocalptica. O investimento intimista, ontolgico, de fuso de -pos, drama, phatos trgico etc., [...] (ARAJO, 2008, p. 151).

O romance adoniano apresenta universos concntricos e mlti-plos, deformados e degradados por asperezas. O autor apresenta perso-nas de psicologia conturbada, atormentadas pela memria de sofrimento recorrente. na terra que Adonias Filho encontra a fonte para compor ti-pos humanos que do sua narrativa um carter universalizante.

3. Percursos da prosa adoniana

A Bahia produziu, ao longo da histria, muitos e notveis poetas e escritores, como Gregrio de Matos, Castro Alves e Jorge Amado. Alm desses, um contemporneo de Amado veio a ser tambm merecedor de destaque: Adonias Aguiar Filho, nascido em 1915. Criado na fazenda de cacau de sua famlia em Itajupe espao onde grande parte de sua fic-o desenvolvida, iniciou sua carreira literria na comunidade intelec-tual de Salvador, dando continuidade s suas incurses literrias no Rio de Janeiro. Colaborou de forma efetiva em vrios jornais, chefiou o Ser-

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vio Nacional de Teatro, o Instituto Nacional do Livro e a Agncia Na-cional, alm de ser diretor da Biblioteca Nacional. Em 1965, a sua cont-nua e diversa produo literria, como novelista e crtico literrio, valeu-lhe a eleio para a Academia Brasileira de Letras.

Pertencente corrente subjetivista e introspectiva, o escritor baia-no denota acentuada impregnao esteticista, desenvolvendo uma ten-dncia de indagao interior, em torno dos problemas da alma e do desti-no, em que a personalidade humana colocada em face de si mesma.

A fico publicada pelo autor, toda ela em prosa, consiste em ro-mances e uma coleo de contos: Os servos da morte (1946), Memrias de Lzaro (1952), Corpo vivo (1962), O forte (1965), Lguas da promis-so (1968), Luanda beira Bahia (1971), As velhas (1975). Suas composi-es, todas elas, apresentam o duplo carter naturalista e regionalista, qualidades que se fundem, complementando-se uma outra num eficien-te suporte s suas teses deterministas.

A inter-relao do homem com o mundo que o rodeia apresen-tada de maneira semelhante como se v, por exemplo, na obra de Guima-res Rosa: tipos introspectivos, toscos, inseridos em um ambiente que os molda e condiciona. Adonias Filho apresenta em seu texto uma grande preocupao com o destino humano, interessa-lhe fixar o drama existen-cial de suas personagens.

Em sua obra, o que se destaca [...] a perfeio com que explora a psique de suas personagens, ao testemunhar a sua lida ingente em meio a um ciclo vital predeterminado e fatalstico. (SILVERMAN, 1981, p. 10). Nas trs primeiras obras do autor, rotuladas como a Trilogia do Ca-cau, isso se evidencia mais que em qualquer outra, as personagens cir-culando em um ambiente opressivo, arqutipos comuns, todos fadados s mesmas tragdias. O autor narra a realidade essencial do drama humano que consiste em lutar contra o destino e a morte. Personagens que esto irrevogavelmente encadeados tradio local, ao solo em que plantam o cacau, s guas que cruza.

Os ambientes baianos utilizados pelo autor, quase sempre bravios, saturados pelo mormao, mas ao mesmo tempo intensamente poticos em sua expressividade, objetivam ressaltar o isolamento humano, deline-ando o homem em seu aspecto mais primitivo, instintivo e altamente cruel.

Os Servos da morte configura-se numa obra em que Adonias Fi-lho compe quadros relativamente densos, carregados de morbidez, de

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dio de autoflagelao. Por esse motivo, Adonias Filho considerado como grande representante da tragdia no Brasil, criador de um mundo trgico e brbaro, varrido pela violncia e mistrio e por um sopro de po-esia. Nesse romance, o escritor narra os conflitos eternos da natureza humana, situando o homem em face de seus dilemas e conferindo, obra, grande densidade dramtica.

O primeiro captulo j apresenta essa tenso. No dilogo entre o casal Paulino Duarte e Elisa evidenciada a repulsa da esposa pelo marido, alm da aluso ao casamento como sacrifcio, realizado para que a mesma livre a sua me e irm da misria. J nesse momento, a crise estabelecida numa relao de dio que se prolongar durante anos. A trama acontece em uma remota propriedade rural com o nome Baluar-te, localizada em plena floresta tropical, rodeada de vegetao to densa que chega s vezes a barrar a luz, a fazenda respira uma intemporalidade propcia interao dos seres semibrbaros que formam o tipo predomi-nante na obra.

O narrador onisciente acrescenta um detalhe sugestivo ao descre-ver o ambiente como um espao secular, que apresenta rudos, chuva e vento. Nesse ambiente, numa construo muita prxima da tragdia gre-ga, habitam Paulino Duarte e os seus subservientes cinco filhos, quase todos seus rivais em primarismo e brutalidade (SILVERMAN, 1981, p. 12). A narrativa marcada por reminiscncias que fornecem ao leitor da-dos importantes para compreender a origem para esse primarismo:

Foi assim. Passaram-se os anos, o menino criado pelo velho Juca, ator-mentado pela ferocidade do pai. Vivia entre os ces, como eles deitado na sombra da casa rugindo como eles em presena de pessoas estranhas. Paulino Duarte crescia entre os ces bravios e os dois bbados. Dormia na varanda, al-gumas vezes, aspirando o perfume das plantas, as estrelas nos olhos. Vagava pelas estradas, ouvia o murmrio do povo quando passava, os cabelos enor-mes, a pele queimada, os ps no cho. (ADONIAS FILHO, 1965, p. 2)

Paulino criado entre os ces ferozes e age como eles, e, nessas mesmas condies so criados seus cinco filhos, todos eles seus rivais em primarismo e bestialidade, frutos da herana maldita. A tragdia perpetuada por meio de seus filhos, o proscrito ngelo, o mais novo dos irmos, est sempre provocando Paulino por ter maltratado Elisa - a mar-tirizada me defunta. Adonias Filho reproduz, ento, a origem e continu-idade dessa tragdia, num ambiente sombrio, onde as crianas crescem semelhana do pai, entre murros e grunhidos.

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As personagens de Os servos da morte so contaminadas pelo primitivismo da famlia, todas elas marcadas pela maldio da origem, sertanejos brutos conformados pelo destino trgico, ao qual no eviden-ciam nenhum tipo de reao.

4. A trajetria do trgico

A trajetria dos estudos sobre o trgico parte da classificao do gnero dramtico, sendo esse caracterizado como a tenso que se estabe-lece entre o eu - sujeito e o mundo objeto representado por persona-gens. A afinidade do romance dramtico se d com a tragdia potica, segundo Muir (1975), a correspondncia entre a ao e o personagem to essencial que difcil encontrar termos para descrev-la sem exage-ros. Poder-se-ia dizer que uma mudana na situao sempre envolve uma mudana nos personagens, enquanto toda a mudana, dramtica ou psi-colgica, externa ou interna, ou causada ou configurada por alguma coisa existente entre ambos.

Sob esse aspecto, o romance dramtico coloca-se margem tanto dos romances de ao, como dos de personagem. Nos dois h um hiato entre o enredo e os personagens, no romance dramtico no deveria ha-ver nenhum. Seu enredo parte sem significado.

O gnero dramtico mostra que tanto a aparncia como a realida-de idntica, e que a personagem ao e a ao, personagem. A tenso existe nos personagens dramticos: a tenso vista como destino, e sua progresso como desenvolvimento. Muir (1975) acentua ainda que:

O final de qualquer romance dramtico ser uma soluo do problema que pe os eventos em movimento; a ao ter se completado, produzindo um equilbrio ou resultando em alguma catstrofe que no pode ter prosseguimen-to por mais tempo. Equilbrio ou morte, estes so os dois finais em direo aos quais se move o romance dramtico. (MUIR, 1975, p. 31).

Para DOnofrio (1995), a essncia da arte dramtica est no con-flito, no choque entre vontades opostas, na coliso entre os diferentes objetivos dos personagens. Conflito que gera surpresa e tenso, expressas atravs do dilogo.

O primeiro estudioso da tragdia grega foi Aristteles, filsofo e esteta grego, individualizou e analisou seis elementos da tragdia: o my-thos (fbula); o ethos (carter das personagens); a dianoia (pensa-mento inspirador); a lexis (discurso, linguagem); a psis (aspecto vi-

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sual); a melopia (canto e acompanhamento musical). Esses seis ele-mentos so traos estruturais presentes no apenas na tragdia, mas em qualquer obra literria. Aristteles (3, p. 110) assim define a tragdia:

, pois, a tragdia, imitao de aes de carter elevado, completa em si mesma, de certa extenso, em linguagem ornamentada e com vrias espcies de ornamento distribudas pelas diversas partes do drama, imitao que se afe-ta no por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a pieda-de, tem por efeito a purificao (catarse) desses sentimentos.

Nesse momento, Aristteles afirma ser a arte imitao da realida-de. A tragdia, por ser imitao das aes, fatos, acontecimentos, se dife-rencia da poesia lrica, que imitao de sentimentos.

Em sua obra, Potica, Aristteles considera a poesia trgica como obra de mimese superior porque imita a ao de seres superiores aos mortais, sendo o heri trgico um deus, um homem que excede pela for-a fsica. Dessa maneira, o filsofo grego considera as personagens, os temas, o discurso trgico como superiores.

importante ressaltar que, o conceito de trgico sofreu evolues ao longo da histria do gnero dramtico. Mas o desejo de retomar o conceito da tragdia dos gregos aparece em alguns dramaturgos moder-nos, como o norte-americano ONeill, e os brasileiros Chico Buarque e Paulo Pontes e no prprio Adonias Filho.

Em Os Servos da Morte, as personagens de Adonias Filho lutam entre a escurido dos instintos e uma tnue luz de razo, amam e matam com facilidade, e um corpo morto no mais do que uma carcaa po-dre que deve ser enterrada. A vingana o esteio de todas as reaes e represlias e a bondade aparece envolta mais por uma passividade, por inrcia, do que por um real sentimento. As criaturas frgeis como Elisa, tm o poder tambm da vingana, de reaes sanguinrias.

Para estabelecer relaes entre o contedo trgico e associ-lo s obras de um perodo contemporneo, faz-se necessrio salientar que o escritor Adonias Filho agrega, sua escrita, elementos importantes da tragdia tessitura narrativa, tornando-a transgressora e geradora de um estilo peculiar. Quando insere o mecanismo estrutural da tragdia grega na trama imagtica da sua obra, Adonias Filho no o faz apenas na apro-priao do princpio arquitetnico dos grandes escritores gregos, sua nar-rativa tambm se explica na assimilao do enredo trgico. H uma inter-ferncia muito clara do escritor baiano, quando este utiliza, na atualidade, elementos tecidos desde o perodo clssico. No entanto, estes elementos

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no aparecem intocados, mas modificados e atualizados no discurso dos romances adonianos.

Os personagens de Adonias Filho se inscrevem em um mundo emoldurado pelo sortilgio da morte. Estabelece-se em sua obra um mito em que a natureza no conhece o homem, e em que o homem no reco-nhece a si prprio. Sim, o sofrimento est impresso em tudo. H uma tragdia viva em todas as coisas do mundo, no p dos caminhos, na quie-tude dos arbustos, no canto das aves (ADONIAS FILHO, 1965, p. 65).

A desumanizao dos personagens, concatenados devastao da natureza, emblematiza o ciclo persequitrio da obra de Adonias Filho. Na narrativa adoniana, a vingana o esteio de todas as reaes:

... Que importava a tempestade na noite, a solido entre as rvores, se possua a vingana nas mos? Sim, ela se vingaria. Estava escrito que a vingana no brotaria da morte. Seria mais cruel, abominvel, mil vezes mais terrvel que a insensvel podrido do corpo. Vingar-se-ia fazendo nascer do seu ventre um filho que no fosse de Paulino Duarte. Um filho que ele criasse, e amasse, at o instante da verdade, da dolorosa revelao. (ADONIAS FILHO, 1965, p. 66).

O universo trgico pode ser concebido como uma crise cujo ponto central a ambiguidade. Isso porque o trgico resultado de um mundo que se apresenta como o choque entre foras opostas: o mtico e o racio-nal. Personagens como Elisa, preservam a sua virtude sofrida, at perder a razo. Todos os Duartes mostram ser, como so chamados, e como in-dica a impiedosa determinao, os servos da morte: Ela nos escolheu a ns, trouxe-nos s escondidas, e a nossa presena ignorada de Deus. (ADONIAS FILHO, 1965, p. 23). Elisa revigora em Paulino Duarte e nos filhos do casal [...] a linhagem trgica da vingana por cissiparidade emocional traumtica. Porque potencializa o dio ao mundo provavel-mente revestido do dio inconsciente aos seus desvos (ARAJO, 2008, p. 154).

Para Aristteles, a tragdia culmina com a purificao das emo-es, a catarse. Em seus romances, Adonias Filho eleva seus romances categoria do trgico, representando mortais simples, (Antrpos), ultra-passando a medida de cada um (Metrn), que por conta de estmulos ne-gativos, so levados cegueira da razo (te), a prtica violenta (Hy-bris), submetendo o heri ao castigo (Nmesis) e punio (Moira). Di-ferente de squilo, para quem o sofrimento uma pgina de sabedoria, Adonias Filho pensa que a cegueira da razo deriva de uma herana mal-dita, incontrolvel e imprevisvel, como acontece em Os servos da morte.

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A fraqueza de Elisa tambm sua potncia de dio e de desejo de vingan-a e de destruio, pesadelo e delrio de ecos aterradores, ngelo (Dibolus) nome irnico, fruto alegrico da vingana premeditada e consciente, concreti-zada na traio e recrudescida pela pessoa de Elisa na existncia e tormento de ngelo. A mscara da perverso refletida na fragilidade doentia, no revesti-mento da maldade calculada, fria, constante, na profuso de males contamina-dores da herana de runas. (ARAJO, 2008, p. 153).

5. Consideraes finais

No ensaio sociocultural Sul da Bahia, Cho de Cacau, Adonias Fi-lho diz que em todo esse tempo, nas funduras das grandes florestas, em tudo o que foi uma guerra contra a natureza, gerou-se uma violenta saga humana no ventre mesmo da selva tropical (ADONIAS FILHO, 1981, p. 20). O que antes fora vivenciado, agora transformado em fico, por relato dos personagens presentes, ou atravs das lembranas do que dis-seram outros referidos.

Escritor de invulgar penetrao psicolgica, Adonias Filho apre-senta em sua narrativa, os conflitos do homem na sociedade, cobrindo com suas personagens a gama de sentimentos que a vida moderna suscita no mago da pessoa. Esse fluxo psquico trabalhado no universo da lin-guagem de uma prosa realmente nova, em que se busca uma escritura que possa espelhar o pluralismo da vida moderna.

Em Os servos da morte, temos um escritor mais preocupado em dar sua obra uma dimenso literria do que fotografar uma realidade circunstante, por isso mesmo abaixo do plano da criao, produo de uma literatura interessada em reformular o romance em bases artsticas, depois de um regionalismo restrito ao prprio regionalismo, difundido e propagado como salvao da literatura.

Adonias Filho pertence a uma classe interessada na renovao formal do romance brasileiro, em estabelecer um equilbrio de concepo e um equilbrio de realizao. Um autor que situa no meio rural brasileiro os conflitos da natureza humana, em que os instintos comandam as aes das personagens. Em Os servos da morte, a imagem da famlia que se degrada e que cai apresentada com uma intensidade dramtica e um fervor criativo pouco vistos na trajetria da literatura brasileira.

Cabe tambm inferir, o quo foi profcuo entender o processo de criao literria como elemento essencial para os estudos literrios. En-

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tender Adonias Filho como leitor dos clssicos, particularmente como leitor da tragdia grega, fez-me compreender melhor a sua obra.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1307.

A CRTICA GENTICA NO UNIVERSO DAS OBRAS DE ARTE:

UM RECORTE DO PROCESSO CRIATIVO DE VIK MUNIZ

Thais Jernimo Duarte [email protected]

Analisar obras de arte analisar imagens produzidas pelo homem. Imagens simples ou complexas, carregadas de intenes, sentimentos e sentidos que buscam diferentes interpretaes. Seguindo a viso hegelia-na, o artista tem diante de si um projeto e uma matria a serem trabalha-dos. Ao iniciar-se o trabalho, h um projeto, mas a obra que est sendo realizada segue sua lei interior, de tal modo que nunca se pode prever o seu resultado. O fazer artstico no depende de normas pr-existentes, ao contrrio, um processo, muitas vezes, imprevisvel.

Estudar um texto, uma obra de arte, ou qualquer outro fruto da criao humana, por meio da crtica gentica, admitir que, alm do pro-duto final acabado, houve um processo de construo desta obra. Esta perspectiva de processo (redes) amplia a compreenso da criao e revela os caminhos seguidos pelo autor, suas incertezas, mudanas e decises. Neste contexto, buscamos estudar o processo criativo de Vik Muniz (1961-atual). Brasileiro, o artista plstico obteve em terras estrangeiras o reconhecimento de seu trabalho inovador. Por meio da utilizao de di-versos materiais, cria e recria obras de arte que traduzem um pouco da histria da humanidade e da sua prpria histria.

Salles (2000, p. 16) descreve que, em seu trabalho de pesquisa, o crtico passa a conviver com o ambiente do fazer artstico, cuja natureza o artista sempre conheceu e da qual sempre reconheceu a relevncia, na medida em que sabe que a arte no s um produto considerado acaba-do. Ostrower (1999, p. 18) reconhece que o estilo de um artista se revela em inmeras decises intuitivas (conscientes e inconscientes) que co-brem todas as etapas do trabalho:

Tais decises, e tambm as hesitaes, so formuladas com a maior natu-ralidade e simplicidade [...] os pensamentos no precisam ser verbalizados nem sequer pensados. Basta o artista agir. Mesmo assim envolvem decises, escolhas, avaliaes, que vm do foro ntimo da pessoa e exigem coragem e corao (ambas as palavras tm a mesma raiz). (OSTROWER, 1999, p. 18)

A crtica gentica atribui ainda mais singularidade obra, na ma-neira que estuda um modo de construo prprio do artista. Salles (2000,

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p. 55) observa que o percurso s daquele artista. Ningum mais cons-truiu ou construir aquele labirinto; ningum mais seguiu ou seguir a-quele caminho. A autora trata o gentico como um voyeur que invade o espao privado da criao e, por meio de vestgios, narra suas histrias.

Vik Muniz recorre a diferentes inspiraes e materiais para com-por suas obras. interessante perceber que o artista tem como caracters-tica marcante a releitura de obras consagradas e mundialmente conheci-das. Por meio de recortes no processo criativo de algumas sries poss-vel perceber a busca do artista pelo material ideal, aquele que possibilita-r a transmutao da imagem em sua plenitude.

1. A viso da crtica gentica no universo das obras de arte

A crtica gentica define os atos de produo, os rastros do pro-cesso. A origem da obra de arte o artista e a do artista a obra, e como nenhum sustenta por si o outro, movemo-nos dentro de um crculo o qual s ser superado por um terceiro elemento que na ordem da dignidade o primeiro por ser fundamento de ambos.

Quando ressaltamos a importncia do artista social, no estamos reduzindo a arte a um simples produto que reproduz momentos histricos ou ideologias. claro, que estes fatores esto presentes na obra de um ar-tista, mas, como adverte Cotrim (2000, p. 34), na realizao da obra de arte, todos os elementos que a envolvem precisam ser traduzidos em ter-mos de criao esttica.

Nessa criao que reside o valor essencial de toda grande obra de arte. pela criao esttica que uma obra de arte tende a se universa-lizar, a permanecer viva atravs dos tempos, anunciando uma mensagem artstica que, independe de seu contedo ideolgico, expressa profunda sensibilidade.

Da mesma forma que em um processo de comunicao, o anncio da mensagem artstica pode no ser absorvido de imediato pelo receptor, uma vez que a coerncia construda de forma individual, de acordo com os conhecimentos adquiridos em relao informao recebida. Para Flusser (1985, p. 08), as imagens oferecem a seus receptores um espao interpretativo. O observador decifra o resultado da sntese entre duas in-tencionalidades: a do emissor e a do receptor.

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1309.

O artista plstico Vik Muniz declara que sua primeira motivao para fazer arte justamente o intercmbio com o observador, as diferen-tes maneiras como cada indivduo percebe o mundo visual. Para Muniz (2007, p. 7), o artista faz somente metade da obra, o observador faz o res-to, e a autoridade do observador que confere arte sua fora miraculo-sa.

A possibilidade de conhecer o trajeto percorrido pelo artista at que a obra fosse considerada acabada amplia a prpria interpretao do trabalho final. Os documentos de processo trazem vestgios das experi-mentaes em busca da matria que se tornar a obra. So registros mate-riais do processo criador aos quais Salles (2000, p. 36) atribui dois gran-des papis: armazenamento e experimentao. O ato de armazenar pode ser geral, mas por meio da experimentao que hipteses de naturezas diversas so testadas, atividade muito comum no universo das artes pls-ticas.

A partir dos materiais coletados e armazenados, o autor possui um universo mais palpvel de relaes que podero ser efetuadas. Os exer-ccios de exemplificao e da materializao de um conceito ficam mais fceis de serem aplicados. Partindo de um mesmo material de apoio, di-ferentes obras podem ser criadas de acordo com a especializao e a in-teno de cada autor. importante enfatizar que o armazenamento no caracterstico no processo criativo de Vik Muniz, porm, as experimenta-es so constantes.

Para Salles (2000, p. 51), o crtico gentico manuseia um objeto que se apresenta limitado em seu carter material, mas ilimitado em sua potencialidade interpretativa. Apesar do aparente domnio sobre a obra, por vezes a mente do criador tomada por questionamentos quanto aos prximos passos, o que acrescentar ou subtrair.

Num tipo de busca que integra variadas formas de ser, o criador defronta-se com fatos reais, fatores de elaborao do trabalho que tornam possvel optar e decidir por uma ou outra, numa atitude de tomar deciso e atuar. No se trata de um processo de mo nica em que um pensamento pode ser colocado de imediato em sua forma definitiva. H uma sequncia de transformaes, da a pertinncia de afirmar o contnuo processo de traduo. (PANICHI; CON-TANI, 2003, p. 103)

Essa experimentao considerada por Salles (2004, p. 153) co-mo algo que deve ser analisado pela perspectiva de movimento e no ne-cessariamente como uma evoluo. No h segurana por parte do cria-dor de que o novo caminho trar resultados melhores do que os anterio-

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res. Nas idas e vindas do processo, assistimos a muitas recuperaes de formas negadas.

2. Experimentao diferentes materiais em autorretratos

Analisando a construo de algumas sries criadas por Vik Mu-niz, comum encontrar autorretratos traduzidos por meio dos materiais que compem as obras. Acerca desta prtica, nossa busca atual com-preender se os autorretratos so anteriores, posteriores, ou construdos em paralelo com as demais obras das sries.

Foram catalogados quinze autorretratos e, neste sentido, poss-vel fazer algumas inferncias. Por ser uma figura j conhecida, o autorre-trato poderia facilitar a experimentao de material, desta forma, no se-ria considerado como uma composio em si, antecedendo as sries e possibilitando ao artista avaliar se determinado material ideal para o objetivo proposto.

Na hiptese contrria, aps a constatao de viabilidade do mate-rial e da criao das sries, o artista finalizaria os trabalhos com a com-posio de seu autorretrato. Tambm h o vis de construo durante o processo criativo da srie, ou seja, o autorretrato, neste caso, comporia a prpria srie.

Alm do momento de criao, outros questionamentos so plaus-veis de aprofundamento. Dependendo do material utilizado, Vik Muniz compe seu autorretrato incorporando feies diferentes. Srio, triste, sorridente, pensativo, enfim, alm da diversidade de materiais, o artista tambm busca evidenciar suas diversas faces. Os autorretratos foram or-denados cronologicamente, de acordo com o ano de registro. As descri-es apresentam os ttulos atribudos a cada obra.

Figura 01 AUTO-RETRATO | 1998| Srie Imagens de Terra

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1311.

Figura 02 AUTO-RETRATO (VERMELHO) | 1999| Fora de Sries

Figura 03 Auto-retrato

(Estou muito triste para te contar, a partir de Bas Jan Ader) | 2003| Srie Rebus

Figura 04 Auto-Retrato | 2003| Srie Imagens de Revista

pg. 1312 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

Figura 05 Auto-Retrato (verso) | 2003| Srie Imagens de Revista

Figura 06 Vik | 2003| Fora de Sries

Figura 07 Auto-Retrato (Sortudo) | 2005| Fora de Sries

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1313.

Figura 08 Auto-Retrato (Menino Dourado) | 2005| Fora de Sries

Figura 09 Passagem de Khyber, Auto-Retrato como um Oriental, a partir de Rem-

brandt | 2005| Srie Imagens de Sucata

Figura 10 Auto-Retrato (Outono) |2005| Fora de Sries

pg. 1314 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

Figura 11 Auto-Retrato 2 (Outono) | 2005| Fora de Sries

Figura 12 Auto-Retrato (Talvez Amanh) |2005| Fora de Sries

Figura 13 Auto-Retrato em Chocolate |2005| Fora de Sries

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1315.

Figura 14 Auto-Retrato (Tero Islmico) |2005| Fora de Sries

Figura 15 Auto-Retrato (Acidente Tartar) |2005| Fora de Sries

A crtica gentica utiliza-se do percurso da criao para desmont-la e, em seguida, coloc-la em ao novamente. Referindo-se ao percurso seguido, o interesse so as marcas deixadas pelo criador, os movimentos de ir e vir de suas mos.

Neste sentido, para o recorte apresentado, cabem aprofundamen-tos acerca do processo criativo de Vik Muniz a fim de validar, ou no, parte das hipteses levantadas. Alm do momento de produo, busca-mos investigar o porqu de alguns autorretratos serem considerados pelo artista como fora de sries, apesar de haver sries produzidas com os mesmos materiais. Esses e outros questionamentos compem os objeti-vos da continuidade de nossos estudos.

pg. 1316 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

REFERNCIAS BIBLIOGRFICAS

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SALLES, Cecilia Almeida. Crtica gentica: uma (nova) introduo; fundamentos dos estudos genticos sobre o processo de criao artstica. 2. ed. So Paulo: EDUC, 2000.

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Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1317.

A CULTURA SURDA NO PROCESSO DE APRENDIZAGEM DA LNGUA PORTUGUESA ESCRITA

POR ALUNOS SURDOS

Vanessa Mutti de Carvalho Miranda (UESB) [email protected]

Lucas Santos Campos (UESB/UFBA) [email protected] e [email protected]

1. Introduo

O estudo foi motivado, por um lado, pelas queixas e dvidas de professores, que no se sentem preparados para orientar alunos surdos no processo de aquisio das habilidades de codificao e decodificao da lngua portuguesa na modalidade escrita e, por outro lado, pela insatisfa-o dos alunos surdos, que no se sentem amparados pelas metodologias at ento desenvolvidas no espao escolar para esse fim. Nessa realidade, o ensino de lngua portuguesa, para o sujeito surdo, ao invs de funcionar como um instrumento facilitador na mediao do conhecimento e como um meio para sua insero no bojo da sociedade, configura-se como um obstculo encontrado por esses sujeitos na sua caminhada escolar, educa-cional, profissional e social.

Assim sendo, nosso objetivo o de desenvolvermos um recurso didtico-pedaggico que possibilite ao surdo o domnio dessas habilida-des, o que pode lhe garantir uma ampla insero social. Para tanto, par-timos do pressuposto de que o ouvinte compreende a escrita como aporte da fala disso resulta que, atravs da audio, lhe possvel codificar e decodificar os signos escritos. O que no possvel ao surdo. Desse mo-do, se faz mister listarmos especificidades culturais que possam favore-cer a compreenso do portugus escrito pelo surdo, possibilitando-lhe codificar e decodificar textos. Acreditamos que, de posse dessa lista, ser possvel investir nos potenciais e especificidades que mais possam cola-borar com o objetivo aqui proposto.

2. Cultura, lngua(gem), identidade e interao

Do ponto de vista etimolgico, cultura refere-se tanto ao cuidado dispensado terra cultivada quanto ao trabalho de educar o homem para a vida. Em relao ao presente, pode-se afirmar que compreende o culti-

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vo de estudos lingusticos e identitrios de indivduos. A cultura um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas na-es quanto concepes que temos de ns mesmos (HALL 2006, p. 50).

Consideramos, como cultural, todos os padres de significados incorporados ao longo da vida, nas formas simblicas, desde as mais di-versas manifestaes religiosas, sociais, psquicas, passando pelo cultivo de objetos e chegando s formas de lngua(gem), verbalizadas ou sinali-zadas em torno das quais os indivduos se comunicam entre si e compar-tilham suas crenas, valores, significados e experincias.

Partindo dessa tica, podemos compreender cultura como um pro-cesso de desenvolvimento histrico-social, que se d por meio da cons-truo de uma lngua(gem) e identidades prprias em um determinado espao, por determinado perodo, dentro de um grupo de indivduos que interagem entre si. Em outras palavras, admitimos que os sujeitos que partilham de uma mesma cultura, geralmente compartilham uma lngua que lhes permite interagir, compreenderem-se um ao outro e ao mundo que lhes cerca. Do ngulo interacionista, com base em Vygotsky apud La Taille (1992, p. 23), podemos afirmar que o funcionamento psicolgico se constitui na relao com o outro, e, consequentemente, a cultura se re-vela como parte desta natureza humana historicamente constituda.

Tomando a palavra como a unidade elementar da interao social, Bakthin (Apud SOUZA, 1994, p. 98) destaca que seu valor significativo a chave para compreender a unidade dialtica entre pensamento e lin-guagem e a consequente constituio da conscincia, da subjetividade e da identidade. Assim, as palavras, que so cdigos essenciais de uma ln-gua, devem ter significado comum para emissor e receptor. No caso da libras, os sinais, elementos que correspondem s palavras do universo do ouvinte, constitudos historicamente, com valor semntico reconhecido e partilhado pelo povo surdo, so os elementos que exercem esse papel.

O que ocorre na prtica que o surdo, no seu dia a dia precisa in-teragir no universo do ouvinte, na vida escolar, no trabalho e no meio so-cial. Para isso, ele precisa, pelo menos, dominar os cdigos da lngua portuguesa escrita, j que esse universo alm de verbal, essencialmente grafocntrico. Em busca de facilitar essa interao que nos propomos, atravs da mediao intercultural, proporcionar ao indivduo surdo o a-prendizado da lngua portuguesa escrita. Para isso, fundamental consi-derarmos a cultura surda nesse processo.

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1319.

3. A cultura surda

O surdo desenvolve especialmente a percepo visual-espacial na interao e comunicao com o mundo e com o outro, seja este surdo ou ouvinte. Atravs da experincia visual e da comunicao visual-espacial, ele estabelece suas vivncias de forma rica e profunda. Strobel (2008, p. 24) compreende a cultura surda como:

O jeito [prprio] de o surdo entender o mundo e de modific-lo a fim de torn-lo acessvel e habitvel ajustando-o com suas percepes visuais, que contribuem para a definio das identidades surdas e das almas das comunida-des surdas. Isto significa que abrange a lngua, as ideias, as crenas, os costu-mes e os hbitos de povo surdo.

A autora assevera que as comunidades surdas constituem um ni-co povo, independente do desenvolvimento lingustico e/ou outros laos de cultura, pois compartilham da experincia visual. A partir desse ponto de vista, ela enumera oito artefatos que marcam a cultura do povo sur-do, nomeadamente: a experincia visual, a literatura surda, o aparato lin-gustico, a histria familiar, as artes visuais, a causa poltica, a vida social e esportiva. So caractersticas prprias que revelam a forma como esse povo se constitui. Para um melhor entendimento, a seguir, tecemos bre-ves consideraes acerca de cada um desses artefatos.

A experincia visual constitui os surdos como indivduos que per-cebem o mundo atravs dos olhos. A percepo visual permite ao surdo se reconhecer enquanto usurio do canal visual na comunicao com o outro e na leitura e significao de mundo. A filosofia bilngue reconhece a capacidade visual do surdo como um fator que o diferencia da maioria das pessoas. Nesse novo paradigma, a diferena lingustica e o aparato visual proporcionam edificao de identidades e culturas prprias.

A literatura surda apresenta-se como produo do povo surdo, marca o reconhecimento da cultura surda, enquanto minoria dotada de um arcabouo cultural rico e diverso, representado em personagens sur-das que dialogam e significam suas experincias a partir das lnguas de sinais e de todo aparato visual. Nesse particular, Karnopp (2006, p. 10) ressalta que a literatura surda representa a edificao da histria do povo surdo enquanto construtor do prprio imaginrio, uma vez que:

Nas histrias analisadas, os autores buscam, enfim, o caminho da autorre-presentao do grupo de surdos na luta pelo estabelecimento do que reconhe-cem como suas identidades, atravs da legitimidade de sua lngua, de suas formas de narrar as histrias, de suas formas de existncia, de suas formas de

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ler, traduzir, conceber e julgar os produtos culturais que consomem e que pro-duzem.

O aparato lingustico representado pela lngua de sinais brasilei-ra e pela linguagem facial e corporal, forma como basicamente esses su-jeitos se comunicam e manifestam sua cultura. Apesar de ser difundida e utilizada entre os surdos brasileiros desde o Brasil colonial, a LIBRAS foi reconhecida oficialmente no pas em 2002, atravs da Lei 10.436.

A histria familiar refere-se ao nascimento de crianas surdas em lares de ouvintes e crianas ouvintes em lares de surdos. Testemunhos como os de Vilhalva (2001), Strobel (2008), Perlin (1998) aponta como negativo o fato de, terem sido considerados como no ouvintes, e, assim, terem sido submetidos, durante a infncia, a tratamentos para desenvol-verem a fala.

As artes visuais o desenho, a pintura, o teatro entre outras so tambm formas de expresso da cultura surda. Como toda forma de arte, essas manifestaes estimulam a linguagem, o cultivo das virtudes e o potencial cognitivo, alm da possibilidade de registrar e perpetuar a his-toria desse povo.

A causa poltica revelada na luta por melhores condies de vi-da. Por se tratar de uma das minorias no bojo da sociedade, a comunida-de surda luta por conquistas sociais e polticas que lhe garantam reconhe-cimento e espao na sociedade. Conquistas como o reconhecimento da lngua de sinais brasileira, o direito a interprete nas salas de aula, luta por escolas bilngues, por traduo on-line em canais de televiso, clouse caption (legenda na televiso) e muitos outros direitos.

A vida social e esportiva revelam caractersticas e padres de comportamento desenvolvidos ao longo das geraes, como os casamen-tos endgamos, os laos de amizade em grupamentos surdos, a rotina em associaes, em igrejas, nas escolas, os campeonatos esportivos entre ti-mes surdos, o concurso da miss surda, a comunicao e amizades firma-das nas redes sociais entre outros.

4. A cultura surda no processo de aprendizagem da lngua portugue-sa escrita por alunos surdos

Como j referenciado anteriormente, nosso objetivo o de desen-volver um recurso didtico-metodolgico para o ensino da lngua portu-guesa escrita que contemple as peculiaridades da cultura surda.

Cadernos do CNLF, Vol. XVI, N 04, t. 2, pg. 1321.

Atentos ao questionamento de Strobel (2008, p. 11), acerca de trabalhos realizados por ouvintes, sem sequer conhecer ou partilhar a cul-tura surda, salientamos que, neste estudo, o surdo ter o papel de sujeito atuante e norteador, no unicamente o de objeto ou informante da pes-quisa.

Nessa direo, j demos o seguinte passo: convidamos 04 pessoas surdas. Explicamos o papel delas neste trabalho. Vale salientar que todas consideraram muito relevante e muito importante essa participao, pois ningum como o prprio surdo para falar da sua realidade e indicar suas necessidades.

Realizamos uma primeira entrevista com quatro surdos. Partimos das seguintes questes:

Como o surdo compreende o texto escrito em lngua portuguesa. Em outras palavras, que mecanismo/recurso mental, cognitivo (i-maginrio) o surdo aciona/mobiliza para decodificar o portugus escrito?

Como o surdo escreve em lngua portuguesa, ou seja, que meca-nismo/recurso mental, cognitivo (imaginrio) o surdo acio-na/mobiliza para codificar em portugus escrito?

As perguntas, em libras, foram feitas a cada um de per si, sem que um tomasse conhecimento da resposta do outro. De posse de tais respos-tas, buscamos associar elementos cognitivos a formas de manifestao cultural em busca de identificar um recurso didtico-metodolgico que possibilite a apropriao da habilidade de leitura e escrita em portugus, ou seja, descobrindo a que o surdo associa o cdigo escrito, que pode ser letra, slaba, palavra ou at mesmo frase (elementos que chamamos de smbolo), desenvolveremos atividades mais ou menos como as especifi-cadas a seguir:

Na experincia visual, poderemos buscar objetos, representaes significados e realidades do seu universo que estejam envolvidos com determinados smbolos e represent-los lado a lado de modo que o sm-bolo correspondente da lngua portuguesa possa ser abstrado.

No universo da literatura surda podemos partir de cones da litera-tura que carregam significados e representaes dessa cultura e que per-mite a partir deles extrair outros tantos significados e contedos. Como por exemplo, a personagem do livro Cinderela Surda, adaptado por Hes-sel, Rosa e Karnopp (2003). Trata-se da histria de uma menina surda

pg. 1322 Anais do XVI CNLF. Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2012.

que retrata o universo surdo, mas tambm infanto-juvenil, podemos levar o estudante a grafar, ou seja, trein-lo a escrever itens do vocabulrio re-ferentes a sentimentos, famlia, vesturios, cores, entre outros presentes na obra.

No campo da histria familiar, poderemos apresentar elementos do universo da famlia, como pai, me, padrasto, madrasta, tio, tia, pri-mo, prima, irmo, irm entre outros para serem explorados.

As artes visuais representam um poderoso aporte da cultura surda, por ser uma forma de representao e manifestao de ideias e emoes, alm de se tratar de um legado, proporcionado pelo potencial e acuidade visual to peculiar ao surdo. Desse campo, podemos explorar expresses ligadas s diversas modalidades artsticas: desenho, pintura, fotografia, teatro e outras, a exemplo de palavras como: linha, reta, pincel, nome das cores, tcnicas, artistas entre outros.

No campo da poltica, alm de representar possveis vieses identi-trios, podemos utilizar vocbulos que esto presentes no cotidiano dos alunos, como: prefeito, deputado federal, deputado estadual, senador, presidente, leis, cdigos, direitos e deveres.

Os elementos da vida social e esportiva trazem excelentes repre-sentaes e desdobramentos, pois so comportamentos e habilidades ad-quiridas atravs do contato entre seus pares, dessa forma possvel extra-ir muitos smbolos. As redes sociais, por exemplo, alm de demonstra-rem a capacidade de letramento desses sujeitos revelam as experincias e o contato com a lngua escrita, por isso podem ser muito utilizadas no in-tuito de apresentar e significar novos vocbulos.

A inteno , na abordagem desses campos, observar a que o sur-do associa cada significado ou conceito. A partir disso, lhe apresentamos o smbolo (Estamos aqui chamando de smbolo a palavra ou frase grafa-da em lngua portuguesa, ou seja, o significante). Por exemplo, falamos com os quatro surdos sobre o conceito de massa, incluindo os diversos tipos desse elemento, mas com a conceituao voltada para a noo mais genrica. Cada um elaborou um desenho rep