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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE E PRÉ-ALAS BRASIL
04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.
GT 25 - Violência, Polícia e Prisão: olhares, saberes e dimensões institucionais no Brasil
TRABALHO POLICIAL, VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E AS RESPOSTAS DA CORREGEDORIA
Autor: Jaime Luiz Cunha de Souza Co-autor: João Francisco Garcia Reis
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TRABALHO POLICIAL, VIOLAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS E AS RESPOSTAS DA CORREGEDORIA1
Jaime Luiz Cunha de Souza2 João Francisco Garcia Reis3
Resumo Um dos principais dilemas com o qual se defrontam as instituições policiais brasileiras tem sido a dificuldade para harmonizar as peculiaridades do trabalho policial histórica e tradicionalmente marcado por posturas autoritárias, violentas e autorreferenciadas, e o compromisso com o estado democrático de direito e o respeito aos direitos humanos. Este texto analisa uma das dimensões desse multifacetado problema ao colocar sob análise alguns dados preliminares da pesquisa intitulada Abordagens Policiais de Rotina e Direitos Humanos em Belém – Pará, pesquisa esta iniciada em janeiro de 2012 e com previsão de conclusão para 2013, com o apoio do CNPq. Nosso foco são as denúncias realizadas junto ao núcleo da Corregedoria da Polícia Militar, em Belém, relativas aos anos de 2010 e 2011. Focalizamos, especificamente, o tipo de tratamento que recebem na Corregedoria da Polícia Militar as denúncias de violação dos direitos humanos pelo uso excessivo da força e outras violações previstas nos Artigos 5, 9, 10 e 11 da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Palavras-chave: Corregedoria; Polícia; Gestão; Trabalho Policial; Direitos Humanos.
Introdução
Desde o retorno do Brasil à normalidade democrática tem havido
mudanças crescentes e significativas na sociedade em termos de cobranças de
transparência das ações do governo e de suas instituições. Em grande medida
isso se deve ao fato de que a opinião pública passou a ter acesso a muitas
informações sobre comportamentos inadequados e até mesmo criminosos de
funcionários públicos, especialmente daqueles que fazem parte das instituições
1 Este texto representa um dos resultados parciais da pesquisa intitulada Abordagens Policiais de Rotina e Direitos Humanos em Belém-Pará apoiada pelo CNPq e registrada nesta instituição de fomento sob o número 401164/2011-0. 2 Doutor em Ciências Sociais, Professor da Faculdade de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFPA (FCS/UFPA), do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFPA (PPGCS/UFPA) e do Mestrado Profissional em Defesa Social e Mediação de Conflitos, da UFPA (MPDSMC/UFPA). Contato: [email protected]. 3 Mestrando do Mestrado Profissional em Defesa Social e Mediação de Conflitos (MPDSMC) da Universidade Federal do Pará. Contato: [email protected].
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de segurança pública. Relatos descrevendo violação dos direitos humanos e
outras formas de comportamento inadequado por parte de policiais passaram a
surgir nas manchetes de jornais impressos e reportagens de televisão
colocando a polícia brasileira constantemente sob críticas e gerando uma
enorme sensação de descrédito que faz com que a sociedade tenha pouca
confiança na capacidade do Estado de mediar conflitos e garantir a segurança
dos cidadãos.
Este estado de questionamento da legitimidade e de baixa
credibilidade atribuído à polícia brasileira atingiu de maneira contundente a
Polícia Militar do Estado do Pará, cujas atividades ao longo de sua história têm
sido marcadas por inúmeros episódios que resultaram em denúncias e
acusações de violações dos direitos humanos. Os dirigentes políticos do
Estado e os gestores da instituição seguidamente são obrigados a vir a público
para dar explicações a respeito do comportamento de seus subordinados,
solidarizar-se com as vítimas, prometer providências disciplinares e assumir
compromissos de melhoria e transformação sem que tais intenções sejam
efetivamente concretizadas em ações percebidas pela sociedade.
Com o intuito de esclarecer algumas das dinâmicas e dos obstáculos
que envolvem esta intricada questão buscaremos, neste texto, explicitar sob
qual perspectiva a Polícia Militar do Estado do Pará se posiciona em relação à
demanda de problemas relativos à violação dos direitos humanos que envolve
seus policiais e sobre os seus mecanismos de controle interno. O objetivo é
avaliar as estratégias eventualmente utilizadas ou não pela instituição para dar
conta desse tipo de assunto, tendo sido escolhido como foco de nossa análise
a atuação da Corregedoria da Polícia Militar em Belém, considerada a partir de
um grupo de oficiais do escalão hierárquico intermediário da corporação.
Os sujeitos tomados como referência foram 40 capitães lotados na
Região Metropolitana de Belém e a Comissão de Corregedoria de Polícia
Militar da capital; tal escolha deveu-se a dois motivos básicos: o primeiro é que,
para esta comissão, converge a maioria das denúncias de violação ocorridas
na região metropolitana; o segundo é induzido por nossa expectativa de que o
fato de, atualmente, ocuparem uma posição intermediária no quadro
hierárquico da instituição e terem a possibilidade de atingir os postos de
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direção e comando em médio e longo prazo, sinalize para o tipo de
comprometimento futuro da instituição.
A esses sujeitos foram aplicados questionários construídos e
adaptados com base na escala Likert, por ser esta um instrumento de coleta de
dados que permite estabelecer uma linha graduada de resposta para cada
pergunta do questionário e na qual os sujeitos especificam seu nível de
concordância com determinado questionamento ou se posicionam em relação
a uma determinada afirmação. O dados coletados na Corregedoria referem-se
aos anos de 2010 e 2011, e a noção de direitos humanos que utilizamos está
baseada nas definições que se encontram presentes nos Artigos 5, 9, 10 e 11
da Declaração Universal dos Direitos Humanos4.
Instituições Policiais e os Mecanismos de Controle Interno
Muitos países democráticos criaram setores dentro de suas
instituições, na forma de departamentos, ouvidorias e corregedorias
especializadas em lidar com as queixas contra os abusos de poder e violações
de direitos praticados por policiais. No Brasil, os parâmetros que definem o
trabalho policial são baseados em princípios também previstos na Constituição
Federal de 1988, no Código de Processo Penal, no Estatuto da Criança e do
Adolescente, na Lei de Tortura e em outras leis. No estado do Pará, além de
todas as leis já indicadas, o trabalho policial também tem como parâmetro a lei
estadual nº 6.833, de 13 de fevereiro de 20065, que institui o Código de Ética e
Disciplina da Polícia Militar do Pará. Todo esse conjunto de normas traz em
seu bojo a previsão e a expectativa de que o respeito à dignidade humana seja
parte efetiva da prática profissional desses funcionários públicos e não apenas
um discurso de efeito politicamente correto.
4 Artigo 5: “Ninguém será submetido a tortura ou castigo cruel, desumano ou degradante”; Artigo 9:
“Ninguém será arbitrariamente preso, detido ou exilado” ; Artigo 10: “Todo homem tem direito, em plena igualdade, a uma justa e pública audiência por parte de um tribunal independente e imparcial, para decidir de seus direitos e deveres ou do fundamento de qualquer acusação criminal contra ele”; Artigo: 11 – I)Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa. II) Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática era aplicável ao ato delituoso”. 5 Disponível em www.pm.pa.gov.br/Lei 6.833 . Acesso no dia 25 de maio de 2012.
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Apesar de algumas especificidades decorrentes da história e da
própria sistemática de trabalho adotada em cada estado da federação, as
principais atribuições formais das corregedorias de polícia militar giram em
torno das atividades de monitoramento das instituições policiais para deter ou
evitar o abuso de autoridade, a corrupção e a arbitrariedade praticada por
policiais. Os problemas que o setor de corregedoria enfrenta para desenvolver
corretamente sua atividade em todo o mundo são basicamente os mesmos,
apesar de, em alguns outros países, a discussão sobre a necessidade e o
fortalecimento já ter se tornado uma discussão pacificada há muito tempo. No
entanto, mesmo nos países em que a preocupação em fortalecer as
corregedorias tem um papel um papel importante para a instituição, existe uma
luta permanente para manter um grau confiabilidade e de neutralidade das
corregedorias para que elas mantenham a credibilidade social no desempenho
de suas funções. A atuação das corregedorias, em termos ideais, também visa
à prevenção e combate às transgressões praticadas por policiais com base em
queixas ou por sua própria iniciativa. No entanto, desempenhar essas funções
de maneira adequada e garantir que o trabalho policial se dê de acordo com os
princípios da qualidade, da eficiência e do respeito aos direitos humanos,
efetivamente, não é tarefa fácil.
Para Cano (2012) as duas principais funções das corregedorias de
polícia são: de um lado, corrigir e melhorar as práticas da instituição para torná-
la mais eficientes, de outro lado, investigar e punir a conduta irregular praticada
por policiais. Consequentemente – comenta ao autor -, a corregedoria tem o
duplo papel de inspecionar a qualidade do trabalho policial e, ao mesmo tempo,
desempenhar o papel de “polícia da polícia”. Ainda de acordo com Cano (2012)
as corregedorias de polícia brasileiras têm enormes dificuldades em lidar com
essas atribuições fundamentais, que, aliás, são extremamente vastas e
complexas, por isso, suas ações tendem a serem reativas, muito mais
centradas na investigação e na punição dos abusos do que na execução do
controle de qualidade.
Frequentemente as corregedorias são acusadas de corporativismo
em função da sua incapacidade de intimidar eficazmente os abusos dos
policiais transgressores. Para Cano, este não é um fator exclusivo das
corregedorias, e sim uma prática que permeia basicamente toda a instituição
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policial e que produz o efeito negativo de criar uma certa lealdade na
transgressão, isto é, como uma tendência a não delatar os colegas que violam
a lei. O autor ainda complementa dizendo que essa dinâmica é fruto de uma
subcultura interna que tolera, e, às vezes, até incentiva os comportamentos
irregulares. (CANO, 2012).
Existem vários fatores que podem explicar a ineficiência das ações
do Estado e de seus departamentos de controle interno, e também a
persistência de práticas sistemáticas de violação dos direitos humanos
exercidas por servidores do sistema de segurança pública. Entre esses fatores
podemos destacar a falta de vontade política dos dirigentes, que se reflete na
ausência de ações concretas especialmente voltadas para esse tipo de
problema. A consequência mais direta dessa falta de clareza de estruturação
organizacional para lidar com a questão da violação dos direitos humanos é a
fragilização progressiva dos departamentos de controle, especificamente dos
departamentos de controle interno, como é o caso das corregedorias de polícia.
Infelizmente, este não é um problema específico da polícia do
estado do Pará, nem uma exclusividade das polícias brasileiras; diversos
trabalhos realizados com polícias de outros países como, por exemplo, os de
Bittner (2003), Goldstein (2003), Reiner (2004), Bayley (2006), Bayley e
Skolnick (2006), identificam a existência segmentos resistentes dentro das
instituições policiais que, por uma espécie de cultura própria, são reticentes em
assimilar os princípios que norteiam o trabalho policial em sociedades
democráticas. Segundo esses autores, as instituições policiais com maior
dificuldade em adaptar-se às dinâmicas sociais do estado democrático de
direito, via de regra, acabam por se colocar em rota de colisão com a cultura do
respeito aos direitos humanos.
Para Macaulay (2012), as principais causas da atuação tendenciosa
das corregedorias de polícia estão relacionadas ao fato de que elas sofrem
com diversos defeitos estruturais, como por exemplo, os policiais corregedores
mantêm ligações muito fortes e são pouco ou nada distanciados em relação à
corporação que estão investigando. O fato de não haver um projeto de carreira
diferenciado – comenta a autora - torna-os muito vulneráveis no exercício de
suas atividades, principalmente quando o objeto de sua investigação são os
oficiais e/ou policiais bem colocados na estrutura hierárquica da instituição.
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Soma-se a isso o fato de que nem as instituições policiais como um todo e nem
as corregedorias - e este é um exemplo característico da corregedoria da
polícia militar do Estado do Pará - cultivam a prática de manter um banco de
dados atualizado com o perfil dos policiais transgressores o que, na prática,
significa que se torna extremamente difícil que a corregedoria consiga manter
um acompanhamento sistemático da atuação dos policiais reincidentes na
prática de violações de direitos. Isso faz com que dificilmente haja elementos
suficientes para que sejam analisados e construídos padrões estatísticos de
abuso, e, sem esses dados construídos de maneira confiável, é improvável que
as estratégias de prevenção e controle das violações dos direitos humanos
praticadas por policiais militares sejam elaboradas e aplicadas de forma
eficiente.
A fragilidade das corregedorias faz com que as ações disciplinares e
mesmo as investigações geralmente não consigam atingir os oficiais do alto
escalão. Uma das explicações para este fato é que os encarregados da
investigação, propositadamente ou não, demonstram ignorância em relação à
legislação mais recente, principalmente da lei anti-tortura6 e, em geral,
preferem se orientar por antigos hábitos e leis autoritárias que já nem estão
mais em vigor. Na visão de Macaulay (2012), os investigadores das
corregedorias de polícia frequentemente ignoram o Código Penal e seguem
seus próprios costumes e práticas a respeito da avaliação da evidência de
comportamento irregular por parte dos policiais. A autora esclarece que, uma
vez que a evidência da ilegalidade criminosa é descoberta, os investigadores
são, ou pelo menos deveriam ser, obrigados a abrir um inquérito policial que,
em tese, só poderia ser arquivado por um promotor de justiça ou por um juiz.
Entretanto – comenta Macaulay – existem casos em alguns estados brasileiros
nos quais a corregedoria tem seus próprios inquéritos arquivados (neste caso,
arquivados ilegalmente) antes que os mesmos alcancem os tribunais. Essa
prática esdrúxula combina a aparência superficial de legalidade com a uma
cultura interna absolutamente corporativista, o que a torna o trabalho da
6 Lei Nº 9.455 de 7 de abril de 1977. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9455.htm.
Acesso no dia 27 de maio de 2012.
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corregedoria e a própria instituição policial uma espécie de universo legal
paralelo (MACAULAY, 2012).
Uma das primeiras inferências que podemos extrair do que foi acima
exposto é que a atuação das corregedorias de polícia em todo o mundo, e
também no Brasil, é uma atividade extremamente complexa e cheia de
limitações oriundas da própria história da instituição e da subcultura interna por
ela criada. Esses problemas são especialmente acentuados em países como o
Brasil em que a abertura das instituições ao controle externo e as tentativas de
consolidação de mecanismos de controle interno ainda são recentes e
incipientes. Diante desse contexto, é preciso ter consciência de que, para uma
instituição policial agir eficazmente contra o desvio de conduta de seus
servidores e tomar o respeito aos direitos humanos como paradigma, não basta
somente a força de vontade de algum gestor individualmente empenhado; é
imprescindível que haja apoio organizacional, pois a instituição como um todo
precisa partilhar ativamente este compromisso. Para isso, é preciso que os
gestores tenham uma noção clara da extensão e da natureza do problema, que
sejam capazes de identificar as suas causas e o que deve ser feito para corrigi-
lo.
Resposta Punitiva da Polícia Militar do Estado do Pará
A violação dos direitos humanos praticada por policiais, apesar de
ser um fenômeno que atualmente encontra ampla repercussão na imprensa e
acolhida em instituições governamentais e não governamentais tanto no âmbito
estadual quanto nacional e até mesmo internacional, ainda é um fenômeno
subnotificado. Os números apresentados a seguir são surpreendentes porque
além de revelarem a dimensão naturalizada e quase cotidiana desta prática,
indicam também que o número de denúncias aumentou de forma consistente
nos anos de 2010 e 2011, mesmo com o funcionamento das ouvidorias, das
corregedorias e de outros órgãos de controle interno e externo. Os dados da
Tabela 01 são extremamente esclarecedores das dinâmicas que envolvem as
violações praticadas por policiais e da atuação da corregedoria da polícia
militar que é responsável pela região metropolitana de Belém.
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Tabela 01: Número de Procedimentos Instaurados na Corregedoria da PM/PA Relativos a Região Metropolitana de Belém, Apurados nos Anos de 2010 e 2011
Procedimentos 2010 2011 Variação
Sindicância 334 760 + 127,8%
IPM 93 195 +109,7%
Apuração preliminar 32 46 + 43,8%
PAD 136 185 +36%
Comissão de disciplina 18 3 -0,27,8%
Soma 632 1199 +95,6%
Fonte: Corregedoria da PM/PA
A Tabela 01 assinala um crescimento significativo no número de
procedimentos instaurados na corregedoria7. De um total de 632
procedimentos em 2010, chegou-se a 1.199 em 2011, o que representa um
crescimento de 95,6% no número de denúncias. Se compararmos aos efetivos
operacionais da cidade de Belém nos dois anos que tomamos para análise,
verificamos que, em 2010, o efetivo era de 3.950 PMs e, em 2011, na mesma
área, o efetivo de PMs chegou a 4.333. Ou seja, houve um acréscimo do
efetivo em 9,7% no ano de 2011 em relação ao ano anterior, 2010. Todavia,
quando analisamos os números relativos aos procedimentos instaurados na
corregedoria de polícia em função das denúncias recebidas, percebemos que
houve um crescimento de aproximadamente 100%. Isso quer dizer que,
enquanto o número de policiais aumentou aproximadamente 10% de um ano
para outro, o número de denúncias e procedimentos da corregedoria aumentou
aproximadamente 100%. Contraditoriamente, percebemos que neste período
houve um decréscimo de aproximadamente 28% na instauração de comissões
disciplinares, o que, basicamente, significa que o aumento exponencial de
denúncias contra os policiais não representou um proporcional aumento da
instauração de procedimentos punitivos por parte da corregedoria. Mesmo se
levarmos em consideração que o aumento do número de denúncias não
significa necessária e obrigatoriamente ter havido um número maior de 7 Os dados elencados dizem respeito somente aos trabalhos realizados pelas comissões responsáveis pelo
efetivo da Polícia Militar na cidade de Belém e região metropolitana. Portanto, não fazem parte desta tabela os dados das corregedorias responsáveis pelas demais sub-regiões do estado, nem os dados relativos à Polícia Civil e outros órgãos de segurança pública.
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violações - uma vez que esse fenômeno também pode ter sido causado por
uma eventual diminuição da subnotificação - os números são espantosos tendo
em vista que não houve nesses dois anos nenhuma mudança significativa da
política do estado em relação à facilitação do recebimento das denúncias ou
qualquer tipo de incentivo para quem queira fazê-la.
A enorme discrepância entre o número de denúncias feitas e os
números correspondentes dos membros da polícia acusados e condenados é
reveladora das falhas, das limitações e da ausência de isenção dos
mecanismos de controle interno da polícia paraense. Os dados nos permitem
inferir que, para além da quantidade substancial de tempo que os policiais
corregedores levam para investigar minuciosamente as violações praticadas e
do eventual comprometimento destes com uma espécie de subcultura
tradicional da instituição, há ainda a pouca ou nenhuma proteção dada às
vítimas e às testemunhas que, algumas vezes, sentindo-se ameaçadas e
pressionadas, resolvem calar ou mudar o depoimento inicial, o que propicia o
encerramento prematuro da apuração e inviabiliza a eventual punição do
policial transgressor. Assim sendo, seja por corporativismo, seja por falta nas
ferramentas adequadas de trabalho em decorrência do número relativamente
pequeno de policiais que compõem as corregedorias em comparação com o
número de alegações e denúncias recebidas, o fato é que a maioria dos casos
que chega à corregedoria simplesmente não evoluem em direção à conclusão
esperada pela sociedade.
A Violação dos Direitos Humanos como um
Problema de Gestão
Uma das dificuldades cruciais para quem exerce atividades de
gestão em uma instituição policial provavelmente é a de zelar para que o
policial e, consequentemente, a polícia, enquanto instituição, mantenha-se
íntegra e conquiste o respeito da sociedade; tal tarefa envolve a tentativa de
produzir a uniformidade de comportamentos dos subordinados em uma
atividade permeada de subjetividade, de discricionariedade e que ocorre
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essencialmente distante da observação direta do gestor. Nessas condições, a
busca da integridade tanto individual quanto organizacional torna-se um
processo altamente desgastante porque expõe constantemente a polícia e
seus gestores à crítica generalizada, de uma lado, e à utilização política de
suas falhas, de outro.
Klockars et al (2000) definiu integridade da polícia como a inclinação
dos policiais a resistir as tentações de abusar dos direitos e privilégios
aproveitando-se da função que exercem. Esta definição realça aquilo que
parece ser, ao mesmo tempo, o sonho e o pesadelo de todo gestor sério e
comprometido, que é a tarefa de construir um ambiente organizacional que
promova e apoie a conduta ética por parte dos policiais individualmente e, ao
mesmo tempo, promova na instituição policial como um todo um profundo e
efetivo engajamento na tentativa de suprimir os comportamentos considerados
problemáticos; em síntese, o sonho/pesadelo com que os gestores das
instituições de segurança pública se debatem é provocado pela necessidade
inadiável de fazer com que o trabalho policial possa fluir pautado numa visceral
rejeição à transgressão de qualquer tipo, especialmente aquelas relacionadas
às violações de direitos.
Os dados colhidos dos depoimentos dos sujeitos desta pesquisa
mostram que, na Polícia Militar do Estado do Pará, a questão da integridade
policial não é uma das preocupações mais prementes, na medida em que não
existe uma política organizacional claramente definida em relação à questão
dos direitos humanos levada a efeito como uma estratégia global da instituição.
Os indicativos dessa ausência aparecem na Figura 01 logo abaixo:
Fonte: Pesquisa de campo
Figura 01: Adaptação do código de ética adoutrina de direitos humanos(a) e causas das limitações/inadequações da formação dos gestores compatíveis coma doutrina de Direitos Humanos, na opinião dos Capitães da PMPA Pará. Belém. Maio de 2012.
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A figura mostra que 47%, quase a metade dos capitães que
responderam ao questionário, não consideram que o código de ética, que é o
documento que regula mais direta e especificamente a atividade policial tenha
sido adequadamente adaptado para servir de balizamento aos policiais quanto à
adequação de suas atividades a doutrina de respeito aos direitos humanos.
Perguntamos a esses policiais se eles acreditavam haver limitações ou
inadequação na formação dos gestores da instituição que poderiam de alguma
forma comprometer sua capacidade de atuar sobre as transgressões dos
subordinados na questão específica da violação dos direitos humanos. A esse
questionamento 71% opinaram que a doutrina de direitos humanos não está
solidiamente introjetada entre os gestores8. Indagados sobre as causas dessa
falha de formação gerencial os resultados mostram que, na opinião 86% desses
oficiais, há um agudo desconhecimento tanto na tropa em geral como entre os
próprios gestores a respeito da doutrina de Direitos Humanos9. Uma parte notável
dos entrevistados considera que o tipo de formação que os policiais recebem, que
os prepara para serem guerreiros, muito mais que guadiões da lei e protetores da
sociedade, é que faz com que na tentativa de desempenhar essa suposta função
guerreira, a violação de direitos dos cidadãos se torne uma prática mais ou menos
generalizada. A Figura 01 mostra que 57% dos oficiais atribuíram a esse fator,
algumas vezes também conjugado com o desconhecimento, como um dos fatores
explicativos da sistemática violação dos direitos humanos praticada por policiais
militares10.
As opiniões descritas na Figura 01 revelam-se especialmente
importantes por terem sido colhidas entre oficiais no posto de capitão, ou seja,
que se encontram em uma posição intermediária do oficialato. Tal
peculiaridade lhes permite falar com algum conhecimento de causa, pois num
passado recente, na condição de aspirantes e tenentes, estavam em contato
direto com o que pensavam os praças e, atualmente, têm um pouco mais de
acesso ao que pensam os oficiais superiores; ou seja, além de representarem
uma avaliação interna razoavelmente qualificada sobre a atuação da instituição 8 Os 71% das opiniões estão assim distribuídas: 48% concordam plenamente e 23% concordam em parte.
9 Os 86% das opiniões estão assim distribuídas: 22% concordam plenamente e 64% concordam em parte. 10
Os 57% das opiniões estão assim distribuídas: 22% concordam plenamente e 35% concordam em parte.
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frente ao problema, também representam a possibilidade de que possam ter
atuações mais sintonizadas com a doutrina de direitos humanos quando
chegarem do topo de suas carreiras.
Pelo que mostram os dados, os gestores da Polícia Militar do Estado
do Pará padecem, talvez com diferenças apenas quanto ao grau e à extensão,
dos mesmos problemas que sofrem os gestores de polícias de outras regiões
do Brasil e de outras partes do mundo. Ou seja, os gestores estão cientes de
que implantar a doutrina de direitos humanos como uma política organizacional
é uma prioridade. Todavia, não são capazes de mobilizar uma política interna
efetiva voltada para esta questão, seja porque não acreditam em sua eficácia,
seja porque têm uma visão distorcida acerca dos direitos humanos, seja, ainda,
porque compreendem que isso envolveria uma completa reconfiguração dos
valores e práticas da instituição, e isso certamente é mais fácil dizer do que
fazer (MENKE, WHITE e CAREY, 2002; BITTNER, 2003; BAYLEY e
SKOLNICK, 2006).
É por isso que uma parte considerável dos gestores da polícia
continua a fechar os olhos para o problema da violação dos direitos humanos
por parte de seus subordinados. Isso não acontece necessariamente porque
eles são cúmplices ou toleram a violação - embora algumas vezes seja
exatamente este o caso - mas sim porque são irremediavelmente mal
equipados e mal preparados para lidar com as consequências da adoção de
medidas efetivamente drásticas contra seus próprios subordinados pela
repercussão que isso poderia ter tanto interna quanto externamente, uma vez
que também tornaria mais exposta a instituição às críticas da imprensa e a
reprovação da sociedade. Consequentemente, os gestores que ocupam postos
intermediários possivelmente se sentem inadequadamente apoiados pela
instituição para iniciar medidas disciplinares rigorosas, sem a certeza de que
receberão apoio dos escalões superiores e do próprio poder executivo estadual
ao qual a corporação está diretamente subordinada. De fato, iniciar uma ação
disciplinar contra um “membro-problema” da instituição, contrariando a
subcultura interna e os valores cultivados pela corporação, poderia levar a
consequências negativas para um gestor, na medida em que o mesmo poderia
ser percebido pelos próprios subordinados como alguém que provavelmente
tem algum motivo escuso e pessoal; desta feita, o gestor poderia ver as ações
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questionadas quanto à sua motivação e terminar se transformando de
investigador em investigado. Ou seja, um gestor rigoroso poderia ser acusado
de perseguição pelos subalternos ou, se não acusado, pelo menos ser
percebido dessa forma e tornar-se alguém em que os comandados não podem
confiar. Os gestores também podem ser formal ou informalmente acusados de
preconceito e discriminação como resultado de uma ação disciplinar. O tipo de
repercussão negativa que isso poderá ter dependerá muito do tipo de rede de
relações que gestor e seu eventual acusador/denunciador eventualmente tenha
construído e das circunstâncias em que tais acusações tiverem sido feitas.
As consequências desse impasse fazem com que normalmente os
gestores busquem as soluções menos problemáticas, a menos que sejam
efetivamente pressionados para se posicionarem de forma diferente. De acordo
com Haarr (1997), a maioria dos gestores considera que é mais fácil obter o
cumprimento geral dos seus subordinados se não usarem uma abordagem
punitiva. Para este autor, policiais de linha de frente geralmente só tomam
medidas disciplinares se diretamente instruídos por seus superiores, pois isso
lhes proporciona a desculpa de que eles estão apenas obedecendo ordens
superiores. Em muitos casos, os gestores fazem “vista grossa” às
transgressões praticadas pelos subordinados e com isso se fortalece o código
de silêncio que é característico da cultura policial (REINER, 2012; TYLER,
2004).
A Resposta da Instituição Policial em Termos de Formação/Qualificação na Doutrina de Direitos Humanos
Uma das respostas mais corriqueiras das polícias brasileiras quando
são confrontadas com os casos de violação de direitos praticadas por policiais
é a tentativa de desconectar o delito praticado do comportamento normal da
tropa. É comum atribuir tal comportamento a alguns desviantes e chamar a
atenção para o baixo percentual que eles representam diante do universo de
policiais que compõem a corporação.
Newburn (1999) comenta que uma das principais fontes dos desvios
de conduta de policiais e onde também podemos depositar as maiores
esperanças na abordagem desse problema é justamente o recrutamento, no
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estágio inicial de formação e no processo contínuo de capacitação. Para este
autor, o recrutamento se destaca como uma das áreas mais críticas, pois a
utilização de critérios inadequados de triagem durante esse processo e a
ausência de um acompanhamento sistemático durante a formação e após sua
entrada do policial no serviço efetivo podem desempenhar um papel importante
na forma como tais policiais lidarão com as questões do respeito aos direitos
humanos e, consequentemente, com o maior ou menor número de denúncias a
serem investigadas pela corregedoria de polícia.
A ausência de critérios tecnicamente definidos, com base em perfil
psicológico e testes vocacionais, comenta Newburn (1999), produz um grande
número de “policiais-problema”, os quais, encontrando um ambiente
organizacional já contaminado por práticas delituosas e uma corregedoria
fragilizada, conseguem manter-se e até progredir hierarquicamente na
instituição, apesar das transgressões que praticam. A falta de uma política de
respeito aos direitos humanos consolidada internamente e a baixa valorização
profissional do policial militar e mais a reduzida perspectiva de projeção na
carreira profissional, principalmente na categoria de praças11, faz com que a
instituição acabe por atrair pessoas que não têm uma efetiva vocação para a
atividade policial; alguns batem as portas da polícia simplesmente porque esta
é a oportunidade de trabalho que se lhes apresenta. Além disso, a ausência de
uma formação especificamente voltada para a introjeção da doutrina de direitos
humanos está quase ausente, restringindo-se a uma reduzidíssima parcela da
carga horária do curso de formação. Outro fator limitante em relação a essa
questão diz respeito ao fato de que tal doutrina não faz parte da política de
avaliação dos policiais com vistas a sua promoção na carreira, ou seja, não
existe um critério de avaliação do trabalho policial para sua promoção na
carreira que esteja diretamente vinculado à sua experiência com os direitos
humanos. Um indicador da dimensão desse problema na Polícia Militar do
Estado do Pará pode ser encontrado nos dados revelados na Figura 2 , a
seguir:
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Praças formam uma categoria de policiais que vai do posto de soldado ao posto de suboficial. Os oficiais formam outra categoria que começa em aspirante e atinge o ápice no posto de coronel.
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Os dados mostram que, quando questionados em relação à
existência de programas que orientem os policiais especificamente sobre os
direitos humanos, 56% dos oficiais entrevistados entendem que existem
programas que orientam os PMs, todavia 44% opinam que tais programas não
existem; quanto à fonte de conhecimento em relação aos direitos humanos,
56% dizem ter tomado conhecimento nos cursos de formação da PM/PA, 37%
citam que tomaram conhecimento em cursos realizados pela Secretaria
Nacional de Segurança Pública (SENASP) e 7% tiveram contato com a
temática em cursos realizados nas universidades. Vale ressaltar que a carga
horária dedicada a essa temática tanto nos cursos de formação quanto nos de
aperfeiçoamento ofertados nos convênios feitos pela Polícia Militar do Estado
do Pará com a Universidade Federal do Pará (UFPA) é extremamente
reduzida. Tais conteúdos estão lá presentes muito mais para cumprir uma
exigência da instituição que financia os cursos do que como parte importante
de uma política organizacional levada a efeito pela Secretaria de Segurança
Pública; em relação à reciclagem especificamente voltada aos ensinamentos
sobre direitos humanos e a incorporação de tal doutrina ao código de ética da
Figura 02: a)Existência de programas de DH na PMPA (b), origem/fonte do conhecimento sobre DH (c), reciclagens realizadas sobre DH (d) e adaptação do Código de Ética da PMPA aos DH (c), na opinião dos Capitães PMPA. Belém. Maio de 2012.
Fonte: Pesquisa de campo
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PM/PA, existe um equilíbrio estatístico entre os que concordam (53%) e
discordam (47%) que tal incorporação tenha sido feita. A respeito dessas duas
últimas questões é no mínimo preocupante que praticamente metade dos
policiais na categoria de capitães não consiga identificar a existência de
atividades de ensino e reciclagem voltadas para esta questão, sendo que
essas ausências estão entre as que produzem na mídia o maior número de
projeções negativas da imagem da polícia.
Os dados da Figura 3, apresentados a seguir, oferecem indicações
bastante interessantes das causas pelas quais, historicamente, a Polícia Militar
do Estado do Pará tem sido incapaz de coibir com eficiência as práticas de
violação de direitos dos cidadãos praticada por seus policiais, a não ser em
casos esporádicos e sob forte pressão da mídia. Se a corporação, através de
seus mecanismos de controle interno, for incapaz de tomar medidas
significativas contra os policiais que cometem esse tipo de delito e está técnica
e politicamente impossibilitada de induzir a implantação de um programa de
formação em direitos humanos em larga escala capaz de atingir o
recrutamento, a formação e todos os processos de avaliação pelos quais
deveriam passar os policiais, então todas as outras iniciativas para combater
ou prevenir esse tipo de prática estarão seriamente comprometidas desde o
seu nascimento. Se o problema tem sua raiz na formação e na falta de
acompanhamento sistemática da vida profissional do policial, apenas aumentar
o conteúdo punitivo das sanções fazendo da corregedoria uma espécie de
“polícia da polícia” também não vai resolver o problema (JOHNSTON, 2002).
Como consequência da falta de uma política de recrutamento e
formação voltada para a consolidação de uma mentalidade de respeito aos
direitos humanos é possível inferir que, quanto mais negligenciada é esta
questão no âmbito da formação e da avaliação contínua dos policiais, mais
prováveis serão as dificuldades para controlar as características
organizacionais tradicionais arraigadas como, por exemplo, o uso sistemático e
excessivo da força, o desrespeito e a ameaça. Não é por coincidência que
esses são os mais graves problemas com os quais se deparam os
coordenadores de equipes de policiais militares da área operacional. Como
fruto de sua experiência pessoal, os capitães que responderam aos
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questionários apontaram os motivos que constam do quadro abaixo como os
mais frequentemente percebidos em sua experiência profissional:
Na opinião dos capitães, as denúncias mais comuns estão
representadas pelas agressões físicas, que somam 67% dos casos, seguidas
pelo desrespeito, que soma 16%, pela tortura, que representam 7% e pelo
abuso de autoridade e extorsão, que editam 5% das denúncias, cada. Em
relação às características dos policiais militares mais comumente envolvidos
em violações dos direitos humanos, na percepção dos capitães, 88% refere-se
a casos em que o policial envolvido parece estar estressado além do que é
comum ao dia-a-dia da profissão; 88% dos entrevistados também consideram
que esse tipo de violação ocorre com policiais que já tem normalmente um
comportamento violento, independentemente do nível de estresse; 67%
acreditam que os policiais envolvidos em violação dos direitos humanos, em
sua maioria, são os mesmos que normalmente têm problemas e estão
envolvidos com outras formas de indisciplina.
Obviamente, se estiver correta a percepção dos capitães a respeito
do perfil do policial que normal comete violações, como mostra a Figura 03,
isso novamente chama a atenção para o problema da formação, da
capacitação e do acompanhamento sistemático das atividades desses
profissionais, pois, se os fatores indutores das práticas violentas estão
relacionados com as características pessoais dos policiais e também
ambientais, necessário seria uma maior atuação da instituição no sentido de
Figura 03: Denúncias mais comuns (a) e características dos Policiais Militares que violam os direitos humanos (b), na opinião dos Capitães da PMPA. Belém. Maio de 2012.
Fonte: Pesquisa de campo
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prepará-los para lidar com situações-limite, além de um processo mais efetivo
de acompanhamento de suas atividades. Newburn (1999), por exemplo,
identifica entre os fatores causais ambientais que poderiam afetar o policial a
ponto de levá-lo a cometer transgressões, estão, primeiramente a baixa
visibilidade que tal atividade tem dos gestores da instituição, uma vez que as
mesmas ocorrem predominantemente na rua; indica, também, a constante e
diária exposição à violência e a relações estressantes com a comunidade como
fatores igualmente importantes para a construção do contexto indutor da
transgressão. Nesse sentido, a inexistência de um programa de treinamento
específico capaz de tornar os policiais adequadamente capacitados para
suportar com equilíbrio as situações de estresse a que são submetidos
cotidianamente aponta para aquela que seria uma das falhas fundamentais da
formação. O policial deveria ser devidamente qualificado para enfrentar tais
desafios, ao mesmo tempo em que deveria ser a meta prioritária da instituição
policial inculcar o paradigma do respeito aos direitos humanos desde sua
entrada como candidato até o dia de sua aposentadoria. Ou seja, os valores
democráticos aplicados às técnicas de policiamento e o respeito aos direitos
humanos como princípio norteador de suas ações deveriam ser os elementos
estruturadores da formação e capacitação do policial em toda a sua carreira.
Mas não o são.
Conclusão
Os dados acima apresentados mostram que as violações aos
direitos humanos constituem praticamente uma regra na Polícia Militar do
Estado do Pará porque ocorrem de forma sistemática, associadas às
subculturas internas das instituições policiais e à fragilidade os mecanismos de
controle interno como, por exemplo, a corregedoria. Os contornos desse
problema deixam à mostra as fragilidades organizacionais e, principalmente, a
incapacidade da corregedoria de polícia de dar conta de suas atribuições
formais plenamente.
Outro dado importante é que, antes de cobrar dos policiais de rua
(operacionais) um comportamento de acordo com o que preceituam os
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princípios de respeito aos direitos humanos, é preciso que tal doutrina se torne
parte de uma política compreendida e adotada por toda a instituição e,
principalmente, pelos gestores. Sem esta adesão generalizada e sem um
processo persistente de formação e cobrança, o trabalho realizado pela
corregedoria está fadado a se tornar uma espécie de pano de Penélope12 que é
feito e desfeito todos os dias sem conseguir chegar a nenhum resultado
consistente.
Essa mudança de foco está diretamente relacionada com a
redefinição do papel da corregedoria de polícia que precisa deixar de ser um
incipiente controle punitivo para se tornar a principal indutora das ações
capazes de levar a instituição policial a se pautar-se pelas boas práticas. Tais
medidas certamente podem ajudar os gestores em geral e os corregedores, em
especial, na identificação das principais características organizacionais que
promovem ou dificultam a assimilação dos princípios e valores ligados aos
direitos humanos. É preciso também fazer com que os gestores sejam
cobrados e responsabilizados pelas posturas que assumem diante do
comportamento ou ações daqueles sobre os quais detêm autoridade, exigindo-
se deles também uma postura coerente e de acordo com a lei e não com o
corporativismo, a indiferença e as práticas de acobertamento dos erros. É
preciso que tais gestores - façam eles parte das corregedorias ou estejam em
outros postos de comando da instituição - mudem sua atitude diante da
violação aos direitos passando de uma cultura policial indiferente ou tolerante
para uma que tenha sempre como meta impedir que as violações aconteçam.
Para que isso aconteça é preciso mais do que a sua simples vontade e
capacidade de fazer uso adequado do sistema disciplinar formal da instituição
através da corregedoria. É fundamental que eles sejam capazes de exibir
atitudes e comportamentos que reflitam os valores e o ethos de um
policiamento profissional moderno, cujo trabalho deve estar sempre em
consonância com o estado democrático de direitos e no respeito aos direitos
fundamentais do cidadão.
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Penélope, esposa de Ulisses, um dos heróis gregos da guerra de Tróia, para conseguir frustrar a intenção dos pretendentes que queriam desposá-la, disse a eles que se casaria quando tivesse terminado de tecer um pano. Para retardar o término do trabalho usava o artifício de, secretamente, desfazer a noite tudo que fazia durante o dia.
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Embora os resultados preliminares aqui apresentados tragam
informações importantes, eles também apresentam algumas limitações. Uma
das primeiras refere-se ao fato de que a pesquisa foi feita apenas com capitães
e uma parte considerável das informações foi construída com base na
percepção dos entrevistados; o aspecto limitador está relacionado à própria
composição dos grupos que responderam aos questionários, uma vez que
representam um segmento da polícia relativamente homogêneo e de
característica bem específicas, se comparado com os outros estratos da
instituição. Outro aspecto importante é que os mesmos fazem parte do nível
intermediário da carreira de oficiais, o que nos leva a reconhecer que se o
estudo fosse realizado transversalmente, incluindo todas as categorias de
oficiais (inclusive os de alta patente) e todas as categorias de policiais praças,
os resultados aqui apresentados poderiam ser bem diferentes.
Uma segunda limitação refere-se ao fato de que o estudo foi feito
somente com oficiais que desenvolvem suas atividades na cidade de Belém,
em uma região de características extremamente peculiares, como é a
Amazônia. Isso faz com que os resultados não possam ser generalizados como
se representassem a opinião de todos os policiais do Estado do Pará, nem de
todos os oficiais da PM/PA, nem mesmo de todos os capitães da instituição,
uma vez que, policiais lotados no interior do Estado enfrentam condições de
trabalho consideravelmente diferentes que poderiam alterar de maneira radical,
para melhor ou para pior, as opiniões apresentadas aqui apresentadas.
Uma terceira limitação refere-se ao fato de que os dados foram
coletados com a aplicação de um questionário adaptado do modelo
normalmente conhecido como Escala Likert. Os críticos dessa estratégia
normalmente argumentam que os resultados conseguidos por esse meio
podem estar sujeitos a distorções por diversas causas, entre outras, porque
aqueles que respondem a esse tipo instrumento de coleta de dados podem
deliberadamente evitar o uso de respostas extremas, podem artificialmente
concordar com afirmações apresentadas ou podem, através de suas respostas,
tentarem mostrar imagem de si ou da sua instituição apenas no que tiver de
mais favorável. Infelizmente, esta é uma dificuldade que assumimos e que,
aliás, carregam grande parte das pesquisas feitas nas Ciências Sociais. Este,
portanto, é um ônus que conscientemente assumimos.
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Este trabalho tem o mérito de chamar a atenção para a importância
de incluir medidas de controle mais efetivo do trabalho policial, o fortalecimento
dos departamentos de controle interno e a necessidade de cobrar dos gestores
da instituição uma postura mais ostensivamente atuante na defesa da
vinculação da qualidade do trabalho policial ao respeito dos direitos humanos.
A continuação da pesquisa da qual esse texto é apenas uma parte, poderá
certamente incluir novos dados que, obviamente, não puderam ser aqui
apresentados. Próximos trabalhos e novas pesquisas poderão investigar
melhor os dados e percepções da sociedade e dos estratos profissionais que
não foram abordados neste texto sobre as atividades da corregedoria e dos
gestores da polícia relacionadas à questão dos direitos humanos.
BIBLIOGRAFIA
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