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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI. GT 3: Sociologia e antropologia das emoções. Experiência emocional de indivíduos em situação de rua no Centro Antigo de Salvador. Autora: Patrícia Carla Smith Galvão - CRH / UFBA e UNEB. [email protected]

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XV ENCONTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DO NORTE E NORDESTE e PRÉ-ALAS

BRASIL. 04 a 07 de setembro de 2012, UFPI, Teresina-PI.

GT 3: Sociologia e antropologia das emoções. Experiência emocional de

indivíduos em situação de rua no Centro Antigo de Salvador. Autora: Patrícia

Carla Smith Galvão - CRH / UFBA e UNEB. [email protected]

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Experiência emocional de indivíduos em situação de rua no Centro Antigo de Salvador

Patrícia Carla Smith Galvão1 CRH / UFBA e UNEB

[email protected]

RESUMO

O escrito equaciona questões que fazem parte de um projeto de investigação acerca da experiência emocional de indivíduos em ‘situação de rua’, habitantes de um espaço social, o Centro Antigo de Salvador, marcado, tanto pela ‘centralidade’, quanto pela desigualdade socioeconômica e que, desde 1997, vem sofrendo intervenções urbanísticas. Neste sentido, o artigo traz aportes da sociologia das emoções para compreender como se constroem as subjetividades desses sujeitos, e os códigos e as estratégias que regulam a expressão das suas emoções e sentimentos, nas interações dos diferentes indivíduos que compartilham esse espaço e a dura realidade vivenciada nas ruas. Espera-se ter instrumentos teóricos para perceber como eles sentem e lidam com a pobreza, a sensação de impotência ou a experiência de vulnerabilidade social.

Vulnerabilidade social no Centro antigo de Salvador e questões relativas à população de rua

“Como era frágil o liame que prendia aquelas pessoas à sociedade constituída [...]. Eram sujeitos vulneráveis, cuja vida errava ao sabor dos acontecimentos.”

(Marcelo Antonio de Cunha, 2008).

Considera-se este escrito um registro transitório. Situa-se entre o final de uma

ampla pesquisa realizada para a Organização das Nações Unidas para a Educação,

a Ciência e a Cultura - UNESCO, a pedido do Escritório de Referência do Centro

Antigo de Salvador - ERCAS, Secretaria de Cultura do Estado da Bahia, tendo como

produto final o relatório intitulado ‘A dimensão social e o quadro de vulnerabilidades

do Centro Antigo’ (2009), objetivando compor o ‘Projeto de reabilitação sustentável

do Centro Antigo de Salvador’, e uma nova proposição de pesquisa que venha a

preencher algumas lacunas e responda a inquietações que, à época, por diversas

razões, não puderam ser contempladas.

1

Patrícia Carla Smith Galvão é Mestre em Planejamento Territorial e Desenvolvimento Social (UCSAL), Analista Universitária da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e membro do Grupo de Pesquisa Cultura, Sociabilidades e Sensibilidades Urbanas (GP UFBA/CNPq), no âmbito do Centro de Recursos Humanos – CRH / FFCH / UFBA. [email protected]

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A proposta atual, que nasce de discussões realizadas no âmbito da linha de

pesquisa ‘Configurações urbanas: identidade, desigualdade e sociabilidade’, do

Grupo de Pesquisa Cultura, Sociabilidades e Sensibilidades Urbanas (GP

UFBA/CNPq), vinculado ao Centro de Recursos Humanos - CRH da Faculdade de

Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, tem como macro

objetivo a atualização de estudo sobre vulnerabilidades sociais no Centro Antigo de

Salvador - CAS2 e, de modo específico, realizar levantamento sobre a população de

rua no CAS, elaborando perfil socioeconômico deste segmento populacional, e,

como um aprofundamento, através de estudos de caso, buscar compreender

algumas nuances das circunstâncias vivenciadas nas ruas. Nesse âmbito, investigar

como se configuram as experiências pessoais e sociais em condições de rua e se

constroem as subjetividades dos sujeitos envolvidos, ou seja, conhecer algumas das

lógicas que constituem esta dura realidade.

Os aspectos ligados à intersubjetividade têm sido discutidos, dentro da linha

de pesquisa, a partir da interlocução com a Profa. Dra. Marieze Torres, doutora em

Sociologia das Emoções pela UFBA, e atual líder do Grupo de Pesquisa, e têm

como marco, para esta autora, a escrita deste artigo, daí o seu caráter inicial, bem

como ‘transitório’, próprio do processo analítico em seu movimento de construção do

conhecimento científico.

Neste escrito procura-se identificar e registrar indicativos de aportes da

sociologia das emoções e mencionar instrumentos teóricos passíveis de equacionar

questões acerca da experiência emocional de indivíduos em ‘situação de rua’,

habitantes de um espaço social, o Centro Antigo de Salvador, marcado, tanto pela

‘centralidade’, quanto pela desigualdade socioeconômica e que, desde 1997, vem

sofrendo intervenções urbanísticas, direcionadas à modernização dos seus espaços

e equipamentos.

O estudo anterior, realizado para a UNESCO, sob a coordenação do

sociólogo Gey Espinheira, caracterizou e dimensionou aspectos da vulnerabilidade

2 O recorte territorial abrange duas áreas do Centro Antigo: o Centro Histórico de Salvador (CHS),

tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), em 1984, amparado legalmente pelo Decreto-Lei 25, de novembro de 1937, e o seu Entorno – que engloba as áreas delimitadas pela Lei Municipal nº 3.289/83 como sendo de Proteção ao Patrimônio Cultural e Paisagístico de Salvador. Essas áreas correspondem a 88 setores censitários definidos pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 21 dos quais localizados no Centro Histórico e 67 no Centro Antigo.

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social da população do CAS, com especial ênfase àqueles relacionados a direitos

humanos, cidadania e violência. Baseou-se na interpretação de fatos etnográficos e

de situações, acessíveis através da observação participativa, e no levantamento

sistemático e análise de dados primários e secundários. Observação de campo,

escutas flutuantes, realização de contatos e entrevistas, assim como apoio do

trabalho das equipes de “Redução de Danos” que atuam na área, reforçaram as

pesquisas qualitativas de caráter compreensivista em que as subjetividades são

objetivadas pelos levantamentos de ações sociais, e com a observação de micro-

configurações, o que associa os diversos espaços e tempos, já que um mesmo

espaço é vivenciado de forma diferente ao longo do dia e da noite.

Em sua parte descritiva, o conjunto de análises foi constituído a partir de uma

narrativa etnográfica sobre o Centro Antigo de Salvador, tendo como ponto de

partida o Pelourinho, seguindo deste centro até as suas irradiações. A narrativa

percorreu os caminhos que partiram desta centralidade revitalizada, até as áreas

aonde a requalificação urbana ainda não chegou, localizando-se, sob a perspectiva

da análise sociológica, os fatores de vulnerabilidade presentes no CAS.

O estudo teve como horizontes de análise os seguintes aspectos: a) o

processo de ocupação e caracterização do Centro Histórico na imagem da cidade do

Salvador; b) a perspectiva sociológica das práticas e ocupação do Centro Antigo em

sua funcionalidade urbana; c) os valores culturais de equipamentos localizados na

área de estudo e ligados a manifestações artísticas, religiosas e cívicas; d) a

configuração do quadro de vulnerabilidades de áreas de Centro Histórico e Antigo,

ligadas ao uso de psicoativos, com ênfase no crack; à incidência de HIV/AIDS; à

incidência de situações violentas; ao assédio e cultura de exploração; à paisagem

humana degradada; à precariedade de serviços e atendimentos; à insuficiência de

limpeza e higienização de espaços públicos e de estabelecimentos; e) a perspectiva

sociológica de compreensão da modernização de Salvador na substituição de

antigos e velhos valores percebidos como uma síntese da transformação cultural de

Salvador a partir da análise das mudanças de imagem e significado deste espaço da

cidade (Estabelecidos e desafortunados e tendências de requalificação dos

subespaços e suas consequências sociais e culturais); f) indicativos sobre

transformações e políticas públicas de auto-sustentação de centros antigos em

outras capitais brasileiras e/ou estrangeiras.

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A análise sociológica contemplou recortes temáticos variados. Os aspectos

priorizados referiram-se às formas de existir nas ruas centrais de Salvador (habitus e

figurações do Centro), conforme orientavam os suportes teóricos do estudo. A rua (e

suas variações sugeridas, a saber: o bairro, a praça, o bar, o espetáculo), e o lar

foram tratados como “categorias sociológicas”, que abrigam o homem, a mulher, o

menino, a menina - moradores e usuários do Centro - em suas relações familiares,

profissionais, de vizinhança, de clientela, ou seja, em seus sistemas de ação

(DAMATTA, 1997)3.

O campo da economia foi abordado, sobretudo, a partir do que se identifica

como esperanças e desesperanças do lugar, ou seja, a “economia do lugar

vulnerável”, marcada, pelo acaso e pela necessidade, caracterizada pela

prostituição, informalidade, mendicância e petição, ainda, pela exploração ou tráfico.

Atua nos espaços físicos e sociais do CAS um elenco múltiplo e hierarquizado: de

empresários, gestores, instituições, e ONGs, a pequenos comerciantes, informais,

moradores de rua e etc., em suas múltiplas funções que se somam em “graus

variados e extremos da condição humana” (DAMATTA, 1997, p. 15).

O enfoque principal foi a identificação de práticas, representações e situações

de vulnerabilidade e estigmatização, relacionadas à população do Centro Antigo de

Salvador, como o uso de drogas, moradia de rua ou informal, desemprego,

abandono e marginalização, diante do esforço institucional de ordenar e/ou

normatizar os espaços públicos e da necessidade e urgência de democratizar o

cuidado social. Ao todo, para além das suas contradições estruturais marcadas pela

concentração da riqueza histórico-cultural e pobreza socioeconômica de sua

população (CARRIÓN, 2004), constatou-se um mosaico rico e encantador.

A interpretação de dados primários produzidos na pesquisa de campo e, em

casos específicos, com o cruzamento de dados secundários, oriundos de banco de

dados institucionais, revelaram inúmeros e variados elementos de vulnerabilidade

social relativos: à saúde coletiva (uso de psicoativos; incidência de DST/AIDS,

tuberculose e restrição no acesso a serviços públicos de saúde); à segurança e

violência (furtos ou roubos; assédio a turistas e frequentadores locais; violência

3 As duas grandes categorias sociológicas referidas por DAMATTA (1997, p.15 e 17), a casa e a rua

como “domínios culturais institucionalizados”, podem ser encontradas, segundo este mesmo autor, numa “série de variações, combinações e segmentações, todas contendo ainda graus variáveis de intensidade e exigindo lealdade de ordens diversas”.

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policial; tráfico de drogas; abuso sexual de crianças e adolescentes); à educação

(baixos índices educacionais); serviços urbanos e vigilância sanitária (ausência de

saneamento básico e coleta regular de lixo; falta de higienização de espaços

públicos); a atividades econômicas (prostituição; informalidade; catação e

armazenagem de lixo); e aos usos habitacionais (moradia informal em casa de

cômodos, cortiços ou em ruínas; presença expressiva de moradores de rua, entre

outros).

A respeito desse último aspecto, infelizmente, a pesquisa deparou-se com a

fragilidade de informações e modestos dados secundários. O quantitativo de

moradores de rua foi estimado a partir de dados levantados em Pesquisa Nacional

sobre a População em Situação de Rua, realizada entre agosto de 2007 a março de

2008, pelo Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome (MDS) em

parceria com (UNESCO), teve sua incidência considerada difusa, em várias

localidades ao longo do território de abrangência do estudo, verificável, sobretudo,

no período da noite. A insuficiência de dados oficiais relativos a este segmento

populacional, não permitindo aprofundamentos, promoveu, à época, inúmeras

inquietações, que se mantém e nutrem as discussões atuais.

Centro Antigo de Salvador: ‘centralidade’, declínio e pobreza

A capital baiana possui cerca de 3 milhões de habitantes, sendo apontada

como terceiro maior município do País em população. Ao longo do seu período

histórico de formação e crescimento, tem sido objeto de um intenso processo de

transformações sócio-espaciais. Nesse sentido, assumiu, enquanto cidade,

diferentes funções e papéis, configurando-se tanto como “suporte de apropriação e

sede de governo do território colonizado (...) (sécs. XVI a XVIII)”, passando a

representar muito posteriormente um “polo regional metropolitano, comercial e de

serviços de apoio à produção e administração (décadas de 60 a 90, séc. XX)”, até

assumir-se, nos dias atuais, enquanto “polo de produção cultural e turístico integrado

aos mercados nacionais de bens simbólicos e de turismo, com vínculos e integração

em ascensão com o mercado externo (década de 90, séc. XX)”4.

4

Todos os trechos citados neste parágrafo foram retirados do anexo de n.ºA. 02, do Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano – PDDU, Município de Salvador, 2004. Referência completa: SALVADOR, Lei nº 7.400, de 20 de fevereiro de 2008. Dispõe sobre o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano

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O Centro Antigo de Salvador, um dos espaços de maior significância da

capital5, tem sido apontado como lugar no qual vem se desenvolvendo um processo

complexo e multi-fatorial de “esvaziamento”, ocasionado pela descentralização de

funções (administrativas, financeiras e comerciais) e o surgimento de novos fluxos

de circulação em outras partes da cidade, com reflexos na sua dinâmica como um

todo, além de pesadas consequências para a área antiga que restou abandonada.

O referido movimento fora iniciado após a década de 50, com a alavancada

do processo de industrialização na região periférica da cidade que possibilitou a

criação do Centro Industrial Aratu (CIA - 1967) e do Complexo Petroquímico de

Camaçari (COPEC - 1974). Também, com as transformações e o implemento do

sistema de transporte rodoviário, marcando o surgimento de vias e estradas que

passam a ligar as extensões mais periféricas da capital com as demais localidades

do interior do Estado e fora dele. Somam-se a isto o surgimento de outros núcleos

comerciais e financeiros, a exemplo da região do Iguatemi e adjacências (a partir da

década de 70), ou a partir do deslocamento das instituições de decisão política

estadual, com a implantação do Centro Administrativo da Bahia – CAB nas

intermediações do miolo urbano rumo ao aeroporto, distante do seu núcleo original

(SANTOS, 1959; AZEVEDO e outros, 2001; VASCONCELOS, 2002; CARVALHO e

PEREIRA, 2006).

Estas transformações implicaram em que a população de Salvador

reorientasse seu fluxo de circulação e acesso, no exercício de suas atividades

diversas, modificando a estrutura interna da cidade e tornando-a, no dizer de Milton

Santos (1995), uma cidade excêntrica. São mudanças que “estendem a especulação

ao espaço maior da região e têm uma notável influência sobre a centralidade da

cidade, visto o velho centro ter ficado excêntrico em relação aos novos acesos”,

implicando também em que esta capital, através da sua população, venha a

descobrir novas formas de relação com seu espaço (e nesse espaço), substituindo o

do Município do Salvador – PDDU 2007 e dá outras providências. Secretaria Municipal do Planejamento, Urbanismo e Meio Ambiente. Prefeitura Municipal do Salvador, Bahia, 2008. Acessível em http://www.seplam.salvador.ba.gov.br/lei7400_pddu/conteudo/texto/lei7400-08.pdf 5 A zona que inclui o Centro Histórico de Salvador é referida no Plano Diretor de Desenvolvimento

Urbano do Município do Salvador – PDDU 2007, como correspondente “ao espaço simbólico e material das principais relações de centralidade do Município, beneficiado pela localização ou proximidade de grandes terminais de transporte de passageiros e de cargas, vinculando-se às atividades governamentais, manifestações culturais e cívicas, ao comércio e serviços diversificados, a atividades empresariais e financeiras, a serviços relacionados à atividade mercantil e atividades de lazer e turismo” (SALVADOR, 2008, s.p.).

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seu antigo referencial, representado substancialmente pelo “seu contato com o mar,

tanto em relação ao Recôncavo, tradicionalmente ligado à cidade por saveiros,

quanto à navegação de grande distância [...].” (AZEVEDO e outros, 2001, p. 7).

As transformações referidas, proporcionadas por uma conjunção de fatores

que se interligam e somam, obedecem a lógicas estruturantes e de algum modo

partilhadas pelos agentes construtores e financiadores das novas modelagens dos

espaços urbanos, interessados em criar novas áreas ‘centrais’, valorizadas e

competitivas, em relação ao centro antigo e histórico que resta, pela diminuta

capacidade de investimentos públicos, pouco a pouco abandonado, ‘esquecido’.

Em decorrência desta dinâmica, durante vários momentos estiveram voltadas

para a nossa área central e antiga da cidade as atenções governamentais, o que

culminou em um dos maiores programas de restauração patrimonial realizado desde

1990, privilegiando, entretanto, os usos dessa região da cidade pelas camadas da

população local com maior poder aquisitivo ou empreendimentos voltados para o

segmento turístico, capazes de trazer retorno econômico aos investimentos

implementados.

Seguindo uma tendência mundial, o histórico do planejamento e atuação

governamental voltados à área central da cidade do Salvador, gerou a expulsão da

população local, o enfraquecimento do capital sociocultural alocado em decorrência

do afastamento ou tentativa de “domesticação” dos agentes comuns àquele espaço

intra-urbano, e em seu esvaziamento, a despeito do grande volume de investimentos

realizados para a sustentação da oferta de serviços e atendimento das demandas

dos usuários locais ou visitantes:

os responsáveis pelas cidades passaram a buscar o renascimento

dos centros urbanos, através da revitalização de suas áreas

centrais, da reutilização dos patrimônios (físico, social e

econômico) instalados e da sua melhor utilização possível,

viabilizando o sistema econômico através de respostas

socioculturais. As antigas áreas urbanas assumem papel

importante na construção de políticas locais de desenvolvimento

voltadas geralmente para a revitalização de áreas urbanas

deprimidas, subutilizadas ou abandonadas que perderam

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vitalidade econômica (ZANCHETTI; LACERDA, 2002, apud.

BASTOS, 2003, p. 20).

Nos efeitos perversos destes projetos pode-se enfatizar o processo de

exclusão social e marginalização sofrido por aqueles entendidos como tipos anti-

sociais, supostamente tomados como transgressores da ordem pública,

no perigoso jogo da desqualificação de todos aqueles que não se

enquadram no padrão de cidadania da sociedade inclusiva, a que é

composta por “consumidores válidos” (Bauman), mas também pelos

que se conformam com a ordem desigual estabelecida” justificada

pela responsabilidade de cada um pelo seu destino pessoal, êxito ou

fracasso (ESPINHEIRA, 2005, p. 05).

À criação de espaços inacessíveis e mesmo hostis às populações mais

pobres – enobrecimento ou elitização de lugares anteriormente populares -, a partir

de investimentos públicos que priorizam a presença/trânsito de consumidores

válidos, dá-se o nome de “gentrificação”. Este processo, ao mesmo tempo em que

resulta, retroalimenta o processo de exclusão, pois interfere na valorização

imobiliária dos lugares que sofrem as intervenções (HARVEY, 2006).

O sistema de gestão não sustentável, que expulsou antigos moradores e

comprometeu a efervescência do lugar cultural, negligenciado sistematicamente

uma grande quantidade de cidadãos que de fato necessitavam da ação

governamental no sentido de viabilizar melhorias e aumento da qualidade de suas

vidas. Mais recentemente, a emergência de aspectos culturais passa a ter

implicação também nos projetos de renovação urbana, entretanto, o que não se dá

no sentido da valorização das pessoas que habitam os lugares-alvo dos processos

de renovação, mas, parcialmente, no sentido do espetáculo e, em consequência, da

sua perda de significação, bem descrita por Espinheira (2005, p. 07): “O trágico da

recuperação física de lugares urbanos é o esvaziamento da cultura, dos significados,

uma forma de separar o olho da mão e da alma, como fala Valéry, como o fim da

narrativa, segundo Benjamim”.

Sob marquises: homens e mulheres em vulnerabilidade social no Centro Antigo de Salvador

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Como mencionado anteriormente, o Centro Antigo e Histórico de Salvador é

espaço para o exercício de práticas que transitam entre vários domínios. É lugar de

aventura para pessoas de todas as idades. É lugar de trabalho, do formal ao

informal, e daquele labor que se efetiva na aventura e prazer de outros. É também

lugar de moradia, e nem sempre a casa, fragilizada em suas precariedades e

paredes em ruínas, é lugar de privacidade. A relação pode estar invertida, e dormir

nas calçadas, nas ruas, sob a proteção marquises ou do olhar dos passantes, pode

ser mais garantido, como também no domínio das ruas se pode garantir, na

realização de atividades diversas, inclusive na mendicância ou catação, o sustento e

a manutenção diários, ainda que absolutamente precários.

A perspectiva inaugura o foco no usuário comum: na infância, juventude ou na

maturidade violadas, e quando se pode relacionar a vadiagem, a delinquência, ao

desemprego e marginalização em relação ao mundo do trabalho, por exemplo.

Deste ponto poderíamos enveredar pelas análises sobre as consequências da

urbanização e da pobreza ou indigência e da segregação urbana no cotidiano de

vida dos habitantes da cidade do Salvador e do seu Centro6.

Os estudos que relacionam urbanização e pobreza permitem uma

aproximação teórica de aspectos que se verificam como e/ou resultam de problemas

sociais7 e lançam luzes sobre questões cujas circunstâncias e imagens têm suas

expressões nas ruas do centro antigo da cidade de Salvador. Como um preâmbulo,

contextualizam problemas vivenciados nos cenários de pobreza e vulnerabilidade,

espaços de transito de homens e mulheres em situação de rua.

6 Toma-se como indicador de pobreza uma renda mensal familiar per capita inferior a meio salário

mínimo e, de indigência, uma renda abaixo de um quarto do salário mínimo. Inaiá Carvalho e Gilberto Corso, em Como anda Salvador (2009, p.122), analisam a situação de indigência e pobreza na Capital baiana, demonstrando um decréscimo nos quantitativos registrados nas últimas décadas: a proporção de indigentes, que alcançava 14,98% em Salvador, no ano de 1991, restringiu-se suavemente ao longo do tempo, passando para 13,45%, no ano 2000. Em relação à pobreza, os percentuais registrados foram, em 1991, correspondentes a 35,28%, enquanto que, em 2000, o percentual de pobres em Salvador era de 30,7%. A redução verificada, todavia, e os números ainda encontrados não oferecem tranquilidade, posto que, assim, “Salvador constituía a terceira maior aglomeração de pobreza metropolitana do país, atrás apenas de Recife (31,8%) e de Fortaleza (36,0%), conforme dados da PNAD” (Carvalho; Corso, 2009, p. 123). 7

Maricato (2003, p.163) , em suas análises sobre o processo de urbanização das cidades brasileiras,

registra a ausência de políticas públicas e ações efetivas de tratamento das questões básicas e estruturais (habitação, saneamento, transporte, trânsito, emprego e renda) para a configuração de um quadro de “involução”, no qual a reestruturação produtiva do capitalismo internacional (globalização), as novas tecnologias, o recolhimento do welfare state, e a flexibilização e a desregulamentação das políticas sociais e da relação capital/trabalho têm sérias implicações, de impacto nas cidades brasileiras.

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São pobres8 todos aqueles que não têm poder aquisitivo suficiente para suprir

as suas necessidades materiais básicas, ou seja, aquelas que permitem a

reprodução da força de trabalho. Os sinais ostensivos da pobreza estão no estilo e

na dimensão da moradia, na alimentação, no vestuário, na (des)ocupação

profissional e nas disposições sociais para agir; os sinais dissimulados estão na

subjetividade da pobreza, na sensação de impotência e submissão que se refletem

na autodepreciação dessa condição humana, consequentemente, do não

reconhecimento do valor do outro que está nesta mesma condição.

Nesse sentido, ainda outros elementos podem ser trazidos por Wacquant

(2005)9, que colabora na compreensão de aspectos relacionados ao estigma e

preconceito no uso de termos e em procedimentos que fragilizam, hierarquizam e

tornam invisíveis agentes sociais habitantes de lugares físicos/sociais socialmente

desqualificados. Em Os Condenados da Cidade, a partir de estudos sobre guetos

norte-americanos, este autor adverte, sobretudo, para a criação e utilização de

elementos discursivos (termos, expressões, conceitos) que alimentam “a espiral da

estigmatização que faz [...] [de] tantos lugares malditos, sinônimos de indignidade

social e de relegação cívica” (WACQUANT, 2003, p. 167). Enfatiza a crítica sobre a

omissão do Estado, negligenciando “sua missão primeira, que é a de sustentar a

infra-estrutura organizacional indispensável ao funcionamento de toda sociedade

complexa”, ao abandonar “às forças do mercado e à lógica do ‘cada um por si’

camadas inteiras da sociedade, em especial aquelas que, privadas de todos os

recursos, econômico, cultural ou políticos, dependem completamente dele para

chegar ao exercício efetivo da cidadania” (WACQUANT, 2003, p. 168)10.

Revela-se uma problemática, rica e complexa, que é da tendência à expulsão

do mundo econômico (renda e consumo), antecedida à saída do mundo político e

social (direitos, desigualdade social, à falta de oportunidades para o trabalho) de

parcela representativa da nossa sociedade. Esta “nova exclusão social” fundamenta-

se na relação entre grupos sociais distintos: uns que se tornam desnecessários

economicamente, pois “perdem qualquer função produtiva, ou se inserem de forma

8

O Cidades@ IBGE apresenta, do Mapa de Pobreza e Desigualdade - Municípios Brasileiros 2003, índice de pobreza para Salvador igual a 35,76%. 9 WACQUANT, Loïc. J. D. Os condenados da cidade: estudos sobre marginalidade avançada. 2

a. ed.

Rio de Janeiro: Revan; Fase, 2005. 10

WACQUANT, Loïc J. D. Da América como utopia às avessas. In. BOURDIEU, Pierre. (Org.). A miséria do mundo. 5

a. ed. Petrópolis: Vozes, 2003 p. 167-175.

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marginal no processo produtivo, e passam a se constituir em um peso econômico

para a sociedade (dos que trabalham e/ou têm renda) e para os governos”, frente a

outro que mantém sua condição e capacidade produtiva e de consumo sem

ameaças. Em consequência, ocorrem transformações nas representações sociais

dos indivíduos que não reúnem condições para a inserção econômica e social: “eles

não são apenas objeto de discriminação social. Pouco a pouco, de forma

homeopática, passam a ser percebidos como socialmente ameaçantes. Bandidos

em potencial. Indivíduos perigosos” (NASCIMENTO, 2000, p. 70).

Se pensarmos mais especificamente na população de moradores de rua,

utilizando informações da Pesquisa Nacional sobre a População em Situação de

Rua11, mencionada anteriormente, quando do levantamento de 31.992 pessoas, com

18 anos ou mais de idade, vivem nas ruas de 71 cidades brasileiras com mais de

300 mil habitantes, e referirmo-nos ao quantitativo indicado para a capital baiana, de

3.289 pessoas, temos ainda circunstâncias preocupantes. Desse quantitativo,

estima-se que parte significativa escolha as ruas do Centro como lugar de vivência,

considerando que a dinâmica própria dessa parte da cidade, em termos de infra-

estrutura física e de serviços (inclusive os de assistência social), de fluxos de

pessoas, e etc, tenha impacto e seja diferencial em suas possibilidades de

sobrevivência.

A pesquisa realizada anteriormente abre caminho para uma nova perspectiva.

É um ponto de partida. As observações in loco, os registros fotográficos (fotos de 01

a 04), e as informações de técnicos e gestores dos quadros das unidades de

atendimento à população de rua, entrevistados durante o trabalho de campo,

embora permitissem visualizar ‘um panorama geral’ que ilustrasse a presença e 11

O perfil levantado no estudo apresenta elementos que oscilam entre extremos diferenciados de vulnerabilidade: segundo este levantamento, a maior parte dessa população moradora de rua no Brasil (70,9%) possui atividades remuneradas, como as de catador de materiais recicláveis, os chamados guardadores de carros nas ruas, empregado de construção civil e de limpeza e etc. A maioria (52,6%) recebe entre R$ 20 e R$ 80 por semana e 15,7% têm a esmola como principal meio para a sobrevivência. Segundo o texto da pesquisa "esses dados são importantes para desmistificar o fato de que a população em situação de rua ser composta por 'mendigos' e 'pedintes'. Aqueles que pedem dinheiro para sobreviver constituem minoria". No entanto, 1,9% dos entrevistados confirma trabalhar com carteira assinada e 47,7% nunca tiveram trabalho formal. Pela pesquisa, 79,6% fazem pelo menos uma refeição por dia e 19% dos entrevistados não conseguem se alimentar diariamente. A pesquisa revela ainda que 68,9% dormem nas ruas; 22,1%, em albergues; e 8,3% costumam alternar. A maioria ouvida pela pesquisa (71,3%) disse que passou a viver e morar na rua em consequência do alcoolismo ou do uso de drogas, desemprego e brigas familiares. E aponta fato gravíssimo: os programas governamentais não alcançam 88,5% dos entrevistados, que negam receber qualquer benefício do governo. Do total dos entrevistados, 95,5% disseram não participar de nenhum movimento social e 61,6% não exercem o direito ao voto.

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alguns aspectos relacionados a este segmento populacional, a insuficiência de

dados oficiais e, sobretudo, a ausência de informações provenientes desses sujeitos

(suas próprias vozes), não permitiram aprofundamentos à compreensão daquela

realidade social.

Durante o dia, para estes dois extremos (Largo do Aquidabã e

Barroquinha)12 convergem grandes fluxos populacionais, que

acessam áreas centrais da cidade e são espaços caracterizados pelo

comércio informal (bancas de frutas, balas, produtos eletrônicos, etc).

Ao cair da noite, sobretudo, ilustram exemplos de circunstancias de

vulnerabilidade social vivenciadas na cidade de Salvador, servindo

de dormitório a inúmeras pessoas. Homens, mulheres, crianças,

idosos, são encontrados sob marquises dos viadutos do antigo

terminal rodoviário da Aquidabã ou da Barroquinha. Alguns

permanecem naquele espaço ainda durante o dia. É comum

percebermos “vestígios” da vida doméstica que, na ausência ou

distância de residências formais, tem nos espaços públicos seus

abrigos. Roupas, panelas, vasilhames, sacolas e diversos tipos de

apetrechos são por vezes dispostos nos cantos desses espaços. Á

noite tem suas serventias restabelecidas, voltam a ser propriedades

de quem se acostuma a não possuir quase nada nesta vida13.

12

A Baixa dos Sapateiros compreende o vale que separa o alto de Santo Antonio Além do Carmo, Carmo e todo o conjunto de rua denominado Pelourinho, em sua extensão pelas praças Terreiro de Jesus, Praça da Sé, rua da Misericórdia, rua Chile e as paralelas Avenida 7 e Carlos Gomes, de um lado, e, de outro, os bairros de Nazaré, Saúde, Mouraria e São Bento. Longa, vinda dos planos do vale do Retiro, da Rotula do Abacaxi, passando pelos Dois Leões e chegando às Sete Portas, daí para o Aquidabã e Baixa dos Sapateiros propriamente dita, tem como extremo sul o terminal da Barroquinha. Este último é o ponto final da Baixa dos Sapateiros, na confluência da Avenida Joana Angélica com a Av. 7 e Carlos Gomes, enquanto noutro extremo, limite leste-norte do Centro Histórico, à confluência dos bairros do Barbalho, Carmo, Nazaré, e do Comercio, através do túnel Américo Simas, tem-se o Largo do Aquidabã. 13

Trecho de relatório de atividades de campo que originou a publicação: ESPINHEIRA, Gey, GALVÃO, Patrícia. C. S., Lima, Denise, BAHAMONDE, Nila Mara S. Galvão, SOARES, Antônio, M. de C., DUPLAT, Isabele, outros. A dimensão social e o quadro de vulnerabilidades no Centro Antigo e Histórico de Salvador In: Centro Antigo de Salvador: Plano de Reabilitação Participativo. Salvador: Pedro Calmon, 2009, v.01, p. 228-261.

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Fotos de 01 a 04 – Imagens de moradores de rua, Centro Antigo de Salvador, 2009. Registros de Campo. Autor: Antônio Mateus Soares

Quantos são? Como vivem?, por um lado, são questões pertinentes e

relevantes. Por outro, são imprescindíveis indagações sobre o que pensam e como

sentem as circunstâncias vivenciadas, até chegar a quesitos que respondam sobre

como se constroem as subjetividades desses sujeitos, e os códigos e as estratégias

que regulam a expressão das suas emoções e sentimentos, nas interações dos

diferentes indivíduos que compartilham esse espaço e a realidade vivenciada nas

ruas, ou ainda, quais as emoções de maior prevalência, de modo que o

conhecimento e a compreensão das subjetividades dos sujeitos em situação de

vulnerabilidade social possam induzir a comportamentos, destes e de outros agentes

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sociais, com possível reflexo na esfera coletiva/pública e que venham a gerar ações

que beneficiem esta população.

Movimentos estes impulsionados por um grau de empatia, que se não

exatamente igual, bastante próximo daquele mencionado por Marcelo Cunha (2008,

pgs 9 e 10), na abertura do seu livro “No olho da Rua”, escrevendo sobre sua

experiência à frente de um dos maiores abrigos na cidade do Rio de Janeiro, o

Fazendão, referindo-se ao que aprendeu com sua mãe, na infância, sobre a

necessidade de pedir ‘perdão aos mendigos’ que batiam à porta e, ‘pelo amor de

Deus’, pediam auxílio: “Quando não tínhamos o que oferecer, devíamos pedir

desculpas: ‘Perdoe-me’. Aí eles respondiam ‘amém’, abaixavam a cabeça e seguiam

em frente com seus passos lentos e seus sacos às costas. [...]. Perdão por como

nós organizamos a vida no mundo de modo a deixá-los ali, assim, rejeitados,

vivendo de sobras e migalhas”.

Mais atualmente, ao menos em parte, com o ‘advento’ da reciclagem de

materiais, a figura do morador de rua se desvincula parcialmente da imagem do

esmoler e do pedinte. Habitam as ruas por inúmeras e complexas razões, que

podem ser categorizadas em várias dimensões, pautadas em questões econômicas,

de saúde, relacionais, familiares; são quase infinitas as experiências vivenciadas ou

as estratégias e ‘modos de fazer’ encontrados para a sobrevivência, inclusive para a

(auto)proteção emocional (SOUSA, 2009) .

De toda forma, a alteração no padrão de subsistência econômica ou a riqueza

deste mundo social, não libera a sociedade de pensar e, sobretudo, de se implicar

no surgimento, permanência ou mesmo agravamento dessas circunstâncias.

Nascimento (2000, pgs. 67 e 69-70) bem ilustra os contornos da situação, como

suas consequências, relacionando o aumento da desigualdade social e o

desemprego, ao surgimento “de grupos sociais que não possuem acesso aos bens

materiais e simbólicos, em particular, que não têm possibilidades de encontrar um

lugar no mundo do trabalho, com repercussões não apenas na criação de grupos

sociais pobres, mas também na auto-estima dessas pessoas”. É, no dizer deste

autor, um “exército de reserva em lixo industrial”, constituído cada vez com maior

contingente de pessoas desnecessárias economicamente e que “não apenas não

têm mais trabalho ou capacidade de gerar renda suficiente como não têm

qualidades requeridas para nele ingressar”.

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A partir disto, pode-se ainda relacionar as emoções experimentadas por estes

indivíduos, com as estratégias de sobrevivência que estão vinculadas aos

enfrentamentos emocionais para lidar com as dificuldades e com seus próprios

sentimentos, o que vale também para qualquer outro membro da sociedade

(incluindo o sujeito pesquisador), como um convite à luta contra o esvaziamento de

identidade e diferenças, considerando que a ‘dimensão existencial’, a ‘dimensão

cidadã’ e a ‘dimensão produtiva’ estão intrinsecamente ligadas (CUNHA, 2008).

Considerações parciais

Vários autores reconhecem a importância do conceito de emoções e das

relações sociais dos indivíduos como um elemento-chave para a compreensão da

sociedade. Segundo Koury, em três leituras analíticas diversas, registradas em seu

artigo ‘As Ciências Sociais das Emoções: um balanço’, apesar de apresentarem

“aproximações e diferenciações lógicas”, todas três visões “atentam para o aspecto

salutar da análise social enquanto uma análise que considere o processo de

intersubjetividade nas relações humanas em diálogo tenso e conflitual com os

processos objetivos da configuração do social” (KOURY, 2006, p. 143).

De modo complementar, como nos adverte Sennett (2008, p.193), “a distinção

entre espaço e lugar é fundamental na forma urbana. Mais do que apego emocional

por onde se vive, a questão envolve uma experiência temporal”. Completa este

sentido, o registro de Gey Espinheira (2008, pgs. 2 e 5): “o ser humano é capaz de

emoções e elas orientam a ação social guiada pelos significados que assumem para

as pessoas. [...]. As emoções são respostas ao estar-no-mundo e ser-no-mundo,

consequentemente, a ver-o-mundo”. E assim vamos em busca de uma ‘estética do

nós’, possivelmente elaborada e comunicada pelas emoções de quem vivencia a

realidade da região central e antiga da cidade de Salvador, em seus aspectos mais

frágeis.

O sensível (a subjetividade - sentimentos e emoções) interessa na medida em

que, na esfera do cotidiano, as questões ligadas ao sentir têm efeito prático na vida

dos indivíduos e constituem a realidade social. É possível e desejável, portanto, a

partir de referências emocionais construídas por indivíduos moradores em situação

de rua do Centro Antigo de Salvador, o aprofundamento das questões relativas à

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vulnerabilidade social no CAS, através dos aportes da Sociologia das Emoções e de

instrumentos teóricos para perceber como estes indivíduos sentem e lidam com

a pobreza, a sensação de impotência ou a experiência de vulnerabilidade social.

O Centro Antigo de Salvador é espaço de grande importância histórico-

cultural, marcado pela ‘centralidade’ e, sobretudo, mais recentemente, pela

desigualdade socioeconômica decorrente de intervenções urbanísticas. Com o

agravante de intervenções impelidas por ações e projetos “de adequação” dos

espaços urbanos, objetivando a realização da Copa do Mundo, faz-se pertinente a

atualização de estudos sobre as vulnerabilidades sociais encontradas naquela

região da cidade.

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