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Digitalizado e corrigido por Marta Cristina Soares, destinado à leitura por parte de deficientes visuais, usando meios acessíveis. Nota: Todas as fotografias incluídas nesta obra, por serem desnecessárias (inclusive para mim), foram removidas, sendo apenas apresentado neste documento, o conteúdo acessível. FERNANDO ESTEVES CERCADO Os dias fatais de José Sócrates I © 201 5, Fernando Esteves e Matéria-Prima Edições Todos os direitos reservados incluindo os direitos de reprodução total ou parcial em qualquer suporte. Por vontade expressa do autor, este livro segue a grafia anterior ao novo Acordo Ortográfico. Matéria-Prima Edições Av. Miguel Bombarda, 42, 1.° C 1050-127 Lisboa [email protected] vvww.materiaprimaedicoes.com Título: CERCADO Autores: Fernando Esteves Paginação: Gráfica 99 Revisão: Pedro Prostcs da Fonseca Capa: Pedro Fernandes Fotografia da capa: Orlando Almeida/Global Imagens Fotografias do interior: Lusa, Global Imagens e Getty Images Impressão e acabamento: Cafilesa - Soluções Gráficas, Lda.

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Digitalizado e corrigido por Marta Cristina Soares, destinado à leitura por parte de deficientes visuais, usando meios acessíveis.

Nota: Todas as fotografias incluídas nesta obra, por serem desnecessárias (inclusive para mim), foram removidas, sendo apenas apresentado neste documento, o conteúdo acessível.

FERNANDO ESTEVES

CERCADO

Os dias fatais de José Sócrates

I

© 201 5, Fernando Esteves e Matéria-Prima Edições Todos os direitos reservados

incluindo os direitos de reprodução total ou parcial em qualquer suporte.

Por vontade expressa do autor, este livro segue a grafia anterior ao novo Acordo Ortográfico.

Matéria-Prima Edições

Av. Miguel Bombarda, 42, 1.° C

1050-127 Lisboa

[email protected]

vvww.materiaprimaedicoes.com

Título: CERCADO Autores: Fernando Esteves Paginação: Gráfica 99 Revisão: Pedro Prostcs da Fonseca Capa: Pedro Fernandes

Fotografia da capa: Orlando Almeida/Global Imagens Fotografias do interior: Lusa, Global Imagens e Getty Images

Impressão e acabamento: Cafilesa - Soluções Gráficas, Lda.

1. a edição: Maio de 2015

2. a edição: Maio de 2015 ISBN: 978-989-769-023-5 Depósito legal: 393 209/15

Para a Margarida. Que te tornes táo forte como a tua mãe.

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índice

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INTRODUÇÃO 9

I. O ALVO 600 85 040 13

II. RUMO À DERROTA 81

III. «PELAS COSTAS, COMO UM PATIFE» 109

IV. O «CHEFE Maior» 135

V. FREEPORT: o CENTRO MALDITO 161

VI. O MISTÉRIO DA COVA DA BEIRA 189

VII. CONSPIRAÇÃO AO TELEFONE 207

VIII. Os PROJECTOS DO ZEZITO 239

O FIM? 261

Notas 265

Fontes documentais 269

Anexos 271

índice onomástico 291

Agradecimentos 293

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Introdução

' a noite de 21 de Novembro de 2014 jantava com algumas dezenas de amigos, na sua esmagadora maioria jornalistas, quando subitamente os nossos telemóveis começaram a vibrar e a tocar em simultâneo. Numa estranha sinfonia nocturna, todos recebíamos chamadas e mensagens a um ritmo diabólico. Rapidamente percebemos porquê: José Sócrates acabara de ser detido no aeroporto de Lisboa no âmbito de uma investigação judicial em que era o principal visado.

Claro que o jantar de aniversário da minha amiga Catarina terminou naquele instante. Todos - aniversariante incluída - desejávamos ir para casa assistir aos directos das televisões, ao mesmo tempo que acompanhávamos em tempo real os artigos exclusivos sobre o caso que a jornalista Felicia Cabrita se encontrava a publicar no site do jornal Sol a uma velocidade colossal. No espaço de pouco mais de uma hora ficámos a saber que José Sócrates era suspeito de crimes tão graves como os de fraude fiscal, corrupção ou branqueamento de capitais. Parecia um filme, pura ficção. Não era, afinal: um ex-primeiro-ministro acabara mesmo de ser detido pela primeira vez na história da democracia portuguesa.

Por tudo o que o acontecimento significa - a nível político, judicial, humano, jornalístico... - era impossível ficar-lhe indiferente. Nos últimos 20 anos acompanhei, enquanto jornalista, a carreira política de José Sócrates, que foi deputado, secretário de Estado do Ambiente e ministro do Ambiente nos Governos de António Guterres e, finalmente, primeiro- -ministro entre 2005 e 2011. Ao longo desse período, cobri muitos dos casos que o afectaram politicamente. A sua detenção foi a ringing bell, o

sinal de que precisava para que, na manhã de sábado — estava Sócrates detido há escassas horas tenha decidido avançar com este livro.

José Sócrates é um personagem fascinante. É épico. É trágico. É tétrico

- é, acreditam alguns, razoavelmente mágico. Tem tudo o que os manuais dizem que um político deve possuir: carisma, inteligência, coragem. Cultura, capacidade de decisão, imagem. Entrevistei, nos últimos quatro meses, muitas pessoas que trabalharam directamente com ele. Todas, sem excepção, sublinharam as suas qualidades, num momento em que seria muito fácil deixá-lo cair. E todas, também sem excepção, aceitaram partilhar comigo a sua experiência profissional com o agora preso número 44 do Estabelecimento Prisional de Évora, na estrita condição de o fazerem em off the record. Embora tenham aceitado gravar depoimentos, por

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motivos diversos optaram por não se expor. Nenhum se declarou envergonhado por ter trabalhado com Sócrates. E todos se manifestaram surpreendidos pela avalancha de notícias que dão como certa a indiciação do seu antigo chefe pela prática de crimes tão graves. Porque, é justo sublinhá-lo, nenhum identificou, no comportamento e na acção do seu líder, sinais de que, como defende o procurador Rosário Teixeira na indiciação que serviu de base à prisão de Sócrates, o ex-primeiro-ministro seria o cérebro de um «esquema» tenebroso destinado a beneficiar empresas - nomeadamente as que tinham ligações ao grupo Lena, onde trabalhava Carlos Santos Silva, o amigo de Sócrates também em prisão preventiva no âmbito da Operação Marquês

- a troco de elevadas compensações monetárias.

Exceptuando os que respeitam aos membros do gabinete de José Sócrates, todos os diálogos reproduzidos no livro resultam ou de escutas telefónicas autorizadas que estão incluídas em processos judiciais que se encontram arquivados; ou de despachos judiciais de arquivamento cuja consulta é pública; ou, finalmente, de entrevistas por mim realizadas a intervenientes devidamente identificados. Não são publicadas escutas ilegais. E tudo, mas mesmo tudo, é susceptível de confirmação pessoal, processual ou documental.

É importante sublinhar que este livro não pretende substituir-se às investigações judiciais dos variadíssimos processos a que o nome de José Sócrates já foi associado. Em nenhum desses casos o ex-primeiro-ministro

foi sequer arguido. Ou seja: para todos os efeitos, Sócrates, mesmo encontrando-se actualmente na cadeia, é um homem inocente.

Inocente, mas não indiferente. A sua personalidade explosiva - que os colaboradores sublinham de forma tão enfática como elogiam a sua competência -, a sua relação tempestuosa com a imprensa e com os seus adversários políticos, o facto de ter sido o primeiro político nacional, talvez a par de Paulo Portas, a compreender defimitivamente a importância da imagem e do spinning político e mediático, a sua vontade, por vezes estranhamente suicida, de lutar sempre, independentemente das circunstâncias e dos adversários, conferem-lhe uma dimensão dramática única. Para o bem ou para o mal, José Sócrates é um personagem maior entre os agentes políticos nacionais.

O facto de os processos judiciais estarem fechados não significa que estejam esgotados. Isto porque há uma dimensão que, por raramente possuir relevância criminal, foi largamente ignorada nas investigações realizadas pelas autoridades: a da gestão política e mediática das crises que abalaram a governação do líder socialista.

O que se propõe neste livro é um mergulho no universo secreto dos bastidores das decisões, dramas e conspirações; das hesitações, conversas e traições que fizeram a história dos últimos dez anos da vida de José Sócrates. Para além dos seus ex-colaboradores e de um número muito razoável de camaradas e adversários políticos, entrevistei alguns dos jornalistas que, por um ou outro motivo, foram fundamentais em vários dos casos abordados. Judite Sousa, por exemplo, disponibilizou-me o seu diário profissional relativo ao ano de 2009, o da polémica do caso Face Oculta. Trata-se de um documento imprescindível para compreender a forma como

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Sócrates actuava na sua relação com a comunicação social. A jornalista, que também narra os bastidores das entrevistas que realizou aos maiores banqueiros portugueses - determinantes para precipitar a decisão do pedido de ajuda externa —, relata de forma intensa e impressiva os telefonemas que manteve com Sócrates nos dias anteriores às entrevistas que lhe realizou. Numa das entradas do diário, conclui, sem margem para dúvidas: «Foi uma tentativa de condicionamento».

Também inéditos são os bastidores da investigação jornalística ao caso Freeport, um dos que mais abalou a imagem de José Sócrates. Entre outras informações mais substanciais, Manuela Moura Guedes revelou-me os detalhes de uma noite épica em que, juntamente com a jornalista dal VI Ana Leal, protagonizou uma espécie de invasão nocturna, vestida com um insuspeito pijama, a casa de um vizinho da repórter. Objectivo: encontrar um gravador que lhes permitisse escutar o conteúdo de uma cassete com o famoso áudio em que Sócrates é apelidado de «corrupto». O senhor não queria acreditar que a estrela da TVI, que não conhecia pessoalmente, lhe tinha aparecido naqueles preparos...

Outra revelação: no dia em que Teixeira dos Santos precipitou o resgate financeiro, depois de prestar uma declaração explosiva ao Jornal de Negócios, Sócrates já decidira pedir ajuda externa. O seu gabinete já tinha inclusivamente escrito o draft da carta do pedido de assistência, que aguardava apenas a realização do congresso do Partido Socialista, marcado precisamente para esse fim-de-semana.

Outra ainda: nas eleições de 2011, em que soube muito cedo que perderia, Sócrates esteve sempre em esforço: mental e físico. Mental porque não é fácil para um obcecado pela vitória fazer uma campanha sabendo que o seu esforço de nada valerá; físico porque a dada altura estava tão exausto que, ao final da tarde, um médico tinha de lhe administrar uma injecção sem a qual não conseguiria falar no comício nocturno, tal era o desgaste das suas cordas vocais.

Em 2013, numa entrevista ao jornal Expresso a propósito do lançamento do seu livro A Confiança no Mundo, Sócrates reconheceu que tinha «as mãos sujas» por ter passado a vida a «calcular o mal menor na merda da política». Mas fê-lo, sublinhou na mesma ocasião, na convicção de que nunca atravessou as «linhas vermelhas» que diz ter imposto a si próprio: o respeito à Constituição e à lei. No momento em que escrevo, esta declaração de princípios está a ser altamente questionada pela justiça portuguesa. Sócrates está oficialmente cercado. Cercado mas não vencido. Porque o animalferoz, como um dia ele mesmo se definiu, dificilmente deixará de lutar.

O ALVO 600 85 040

José Sócrates na noite cm que foi detido, depois de ter sido constituído arguido no âmbito da Operação Marquês.

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José Sócrates e João de Sousa fazem o seu passeio diário no pátio do Estabelecimento Prisional de Évora (EPE), onde ambos estão presos preventivamente. A dada altura, o primeiro trava. Quer que João, um inspector da Polícia Judiciária detido por suspeitas de corrupção, lhe observe o gémeo da perna direita, que o está a incomodar. Levanta a calça e baixa lentamente o cano da bota preta.

- João, o que acha disto? É bicho? Estou cheio de comichão!

O companheiro de cárcere observa atentamente. A imagem é-lhe familiar.

- São pulgas, José. O meu caro tem pulgas!

Sócrates não quer acreditar. Cerra os dentes e explode de raiva.

- Pulgas! Canalhas! Isto é uma canalhice!

Já mais tranquilo, pergunta, com um sorriso amarelo:

- O que faço agora?

— Lave com maior regularidade a sua cela.1

Na cadeia de Évora, o ex-primeiro-ministro tenta sobreviver. Até há poucos meses, viveu descontraidamente entre o cosmopolitismo romântico de Paris e o conforto requintado de Lisboa. Todos, mesmo os que o odiavam, lhe reconheciam uma aura que lhe conferia um estatuto quase divino, uma espécie de gravitas que o distinguia. Agora, sentado

no pátio despido do EPE, com a brancura exacerbada da sua perna picada exposta ao sol, Sócrates constata que tem um problema de pulgas para resolver na cela de 8m2. Aos 58 anos, é devolvido à sua condição de humano.

(Um ano e nove meses antes...)

Quinta-feira, 27 de Março de 2013

São 21 h quando o jornalista Vítor Gonçalves surge no ecrã. O tom é solene.

- Muito boa noite. Chegou a hora de quebrar o silêncio. José Sócrates está de regresso ao País e a primeira entrevista é aqui na RTP.

Na régie, o realizador estala um dedo. É o sinal para o operador de mistura mudar de câmara. Quer, obviamente, focar o ex-primeiro-ministro, o homem do momento. Como sempre, Sócrates está impecavelmente vestido, com um fato preto feito à medida e a gravata azul clara que escolhe quase sempre para as grandes ocasiões. Parece tenso. Tem noção da importância do momento. Após dois anos em Paris, para onde fora estudar depois de, em 2011, ter perdido as eleições contra Pedro Passos Coelho, sabe que vive um momento nuclear.

Vítor Gonçalves - um profissional com quem Sócrates tivera conversas acesas quando foi primeiro-ministro e Gonçalves desempenhava as funções de director-adjunto de informação da RTP - prossegue.

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- Boa noite José Sócrates. Durante a semana passada o País inteiro colocou a seguinte pergunta: Porque é que José Sócrates, que esteve os últimos dois anos em Paris, decidiu regressar à política através do comentário político?

Sócrates inspira e coloca um ar grave, quase de Estado.

— Em primeiro lugar, há um tempo para tudo na vida. Há um tempo para o silêncio e há um tempo também para falar. Este é o tempo para tomar a palavra.

Tomar a palavra. Falar. Sim, porque Sócrates está farto de ouvir. Cansou-se de ver PSD, CDS, PCP e BE a fazer tiro ao boneco sempre que se trata de encontrar um culpado pela desgraça que se instalou no País - sobretudo porque o boneco é ele. Recusa passar à História como o homem que levou Portugal ao caos.

Há muito que Vítor Gonçalves lhe manifestara o seu interesse em entrevistá-lo. Jornalista arguto, sabia que mais tarde ou mais cedo Sócrates falaria. Depois de várias recusas, em Dezembro de 2012 voltou a ligar ao ex-primeiro-ministro. Finalmente a resposta foi positiva. Vítor Gonçalves teve nesse momento a certeza de que o socialista decidira contra-atacar.

A conversa realizar-se-ia três meses depois, mas pelo caminho o jornalista foi preparando o caminho. Definiu temas. Inventou perguntas. Planeou abordagens originais. E, na tarde do dia anterior à data marcada, deslocou-se a casa de Paulo Ferreira, o seu co-entrevistador que entretanto fora nomeado director de informação da RTP, para definir quem perguntava o quê ao longo da entrevista mais esperada do ano.

* * *

Sócrates chega 15 minutos antes da hora, ainda a tempo de tecer um comentário azedo à intervenção crítica que o jornalista Pedro Santos Guerreiro acaba de protagonizar no seu espaço de comentário na estação pública. Parece nervoso, mas durante a entrevista vai descontraindo. Apesar da assertividade dos entrevistadores - sobretudo de Vítor Gonçalves, que lhe faz as questões mais delicadas -, responde a tudo o que lhe é perguntado. Balanço final: correu bem a todos. Vítor Gonçalves recorda o momento: «Foi uma entrevista combativa e interessante. Percebi que do outro lado da mesa estava alguém disponível para o combate.

Não foi uma conversa seca, teve dinâmica e isso fez dela um bom espectáculo televisivo.»2

As audiências comprovam-no: é uma das entrevistas mais vistas de sempre na estação pública. Com a presença na RTP o primeiro passo para acabar com a travessia no deserto estava dado - o segundo demoraria dez dias a chegar. Cenário: a mesma RTP, onde estrearia um espaço de opinião que concorreria directamente com o mais popular comentador português - Marcelo Rebelo de Sousa. Difícil ganhar, mas não impossível - pelo menos na cabeça de José Sócrates.

Domingo, 7 de Abril de 2013

Assustado com a possibilidade de, pela primeira vez na sua vida enquanto comentador, ser batido pela concorrência, Marcelo Rebelo de Sousa - um viciado em audiências que entra em pânico nas escassas semanas em que desce abaixo dos 30% de share - discute alternadamente ao telefone com José Alberto Carvalho e Judite Sousa, director e directora-adjunta de

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informação da TVI, a melhor forma de combater o animalferoz. Optam por uma manobra de antecipação. Marcelo surgiria às 20h35 - 25 minutos antes do que é habitual. Com essa estratégia, quando Sócrates começasse, pelas 21 h, o seu próprio programa, já o professor iria embaladíssimo nas audiências. Parece-lhes uma jogada perfeita.

Horas mais tarde, o antigo primeiro-ministro entra na RTP. Chega em cima da hora do início do programa. Já maquilhado, avança para o estúdio. A sua espera está Cristina Esteves, a jornalista escolhida para sua interlocutora e com quem previamente combinara por telefone os temas a abordar.

Indiferente aos protestos em massa que a notícia do seu espaço de opinião no canal público gerou - que incluiu uma petição pública electrónica que recolheu mais de 100 mil assinaturas -, o socialista começa energicamente o seu ajuste de contas com o passado. Massacra sem piedade Pedro Passos Coelho, que apresenta como o príncipe da austeridade.

Sublinha a infinita calamidade que significou para Portugal o chumbo do PEC IV. E escalpeliza minuciosamente o «desastre» da política financeira do Governo.

Segunda-feira, 8 de Abril de 2013

Judite Sousa não se cansa de olhar para o ecrã do seu iPhone. Espera a todo o minuto ser notificada da chegada das audiências relativas à noite anterior. Fora ela quem conduzira o programa de Marcelo Rebelo de Sousa. Perder contra Sócrates seria um desastre de proporções inimagináveis. Quando, finalmente, vê os resultados, respira fundo: não só venceram a concorrência, como o fizeram com distinção - durante os cerca de 40 minutos em que esteve a comentar, Marcelo obteve 1,8 milhões de telespectadores, correspondentes a 34,6% de quota de mercado. O que não quer dizer que Sócrates tenha sido um desastre - bem pelo contrário: 978 mil telespectadores, mais 322 mil do que o Telejornal, o espaço informativo mais nobre da estação.

Ao longo de quase um ano, Sócrates difunde livre e acriticamente as suas opiniões sobre a realidade política. Cristina Esteves dá-lhe todo o gás de que precisa - e Sócrates necessita de muito, tantas são as contas por saldar. Até que um dia tudo muda: aquele em que o jornalista José Rodrigues dos Santos é convidado pela nova direcção de informação, liderada por José Manuel Portugal, para, quinzenalmente, assegurar a moderação do programa. Sócrates vê com simpatia a alteração. Motivos: a vedeta da RTP garantiria mais audiência e, para além disso, acrescentava um peso ao programa que Cristina Esteves manifestamente não lhe atribuía. A verdade é que acha que uma figura política da sua dimensão justifica a escolha de um peso pesado como seu parceiro de programa.

Quando é convidado, Rodrigues dos Santos coloca duas condições para aceitar. Primeira: tratá-lo-ia como a qualquer político. Para o jornalista e escritor, José Sócrates não é um comentador vulgar - trata-se de um profissional da política que, apesar de não se encontrar no momento

a desempenhar funções públicas, estará seguramente a fazer política no ecrã - e ele não se encontra disposto a participar passivamente naquele espectáculo. Segunda: não poderá ser Sócrates a definir unilateralmente os temas a discutir. Trata-se de matéria de natureza editorial e, como tal, da competência do jornalista. As suas reservas não surpreendem

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ninguém: o pivô fez sempre questão de partilhar com a redacção a sua opinião relativamente à forma como os programas de comentário eram conduzidos na RTP. A direcção de informação compreende-o. E pede-lhe para se entender com José Sócrates - o que veio a acontecer através da realização de um almoço em que Rodrigues dos Santos transmitiu ao ex-primeiro-ministro a sua visão sobre o assunto. Sócrates resistiu como pôde, mas acabou por aceitar avançar nos termos definidos pelo seu interlocutor.

Domingo, 23 de Março de 2014

São 20h46 quando a câmara aponta para a face de José Sócrates. Parece preparado para o que se passará nos próximos 27 minutos. Parece, mas não está. Isto porque, para mal dos seus pecados, não levou à letra o que lhe dissera Rodrigues dos Santos durante o almoço a dois, realizado 80 horas antes.

Durante esse período, o pivô fez, com a colaboração de uma documentalista da estação, uma recolha exaustiva das declarações, promessas e compromissos assumidos por Sócrates enquanto governante. Quando deu por si tinha na mão dezenas de notícias com afirmações em que Sócrates dizia, em momentos diferentes, uma coisa e o seu contrário. A medida que as contradições se acumulavam, percebeu que o que se passaria naquela noite não seria bonito.

A conversa começa. Passados poucos minutos, Sócrates critica, pela enésima vez, as políticas de austeridade do Governo de Passos Coelho. O jornalista corta-lhe a palavra.

— É preciso lembrar que quem começou a austeridade em Portugal foi o senhor.

Surpreendido pela investida, Sócrates olha para baixo, tentando conter os nervos.

- Desculpe, ó José Rodrigues dos Santos, eu tenho de esclarecer o seguinte: a questão da austeridade e da diferença dos dois partidos sobre a austeridade é sobre o montante da austeridade. Eu também estou de acordo que o País numa situação destas e com a crise internacional deve fazer uma política austera e de rigor no orçamento.

O pivô insiste. Procura clareza.

— Portanto, é a favor da austeridade.

- Não, eu sou a favor do rigor orçamental, desculpe! Agora, o problema é que nestes três anos o memorando de entendimento foi desvirtuado, fizeram o dobro da austeridade.

Rodrigues dos Santos agarra na cópia de uma notícia do Jornal de Negócios onde estão seis linhas sublinhadas a verde fluorescente.

— Estive a ver os meus arquivos e disse, em Fevereiro de 2011, depois de decretar medidas de austeridade, que o importante é atingir os 4,6% de défice «mesmo que isso signifique vir a tomar mais medidas de austeridade». E afirmou mais: «Este governo fiará tudo o que for necessário para garantir a meta do défice». Não disse quase tudo, não disse um pouquinho, disse tudo...

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Com ar impaciente, de cotovelos em cima da mesa e mãos cruzadas em postura desconfortavelmente defensiva, Sócrates vai à luta.

— Em Fevereiro de 2011 lancei medidas de austeridade para corrigir os valores do défice como todos os países tinham tomado. Já agora vamos lá então contar a história toda. Entre 2005 e 2008 corrigi um défice da direita que herdei de 6,83% — pode ir consultar os seus arquivos — para menos de 3%, mas fi-lo sempre com crescimento económico. Os seus arquivos têm isso?

Rodrigues dos Santos insiste na tecla da austeridade.

— Deixe-me colocar-lhe esta questão: em Dezembro de 2010, o senhor faz esta afirmação (agarra num recorte e vira-o para Sócrates): «A austeridade é o único caminho». Portanto, o que está a dizer agora é totalmente contrário ao que disse naquela altura...

Sócrates fica aflito. Está confuso. Sente-se cercado, não esperava nada daquilo.

— Não, não, desculpe...

O jornalista acelera, de dedo em riste...

— ... E passo a citá-lo: «Tenho plena consciência do esforço que está a ser pedido a todos os portugueses, mas quero que saibam que este é o único caminho que protege o País e que defende o interesse nacional». Isto são palavras suas.

Está consumada a desgraça do ex-chefe de Governo, que pela primeira vez é derrotado num estúdio de televisão. As suas últimas palavras cheiram a desforra.

- Vamos ter oportunidade de falar mais daqui a 15 dias. Eu vou-me preparar e o José Rodrigues dos Santos vai-se preparar e espero que desta vez nos seus arquivos encontre também outras coisas que não apenas aquilo que me é desfavorável.

Quando as câmaras se desligam, Picam a falar no estúdio durante mais 40 minutos diante da redacção e dos operadores de câmara. O ambiente é de cortar à faca.

Segunda-feira, 24 de Março de 2014

O telemóvel de José Rodrigues dos Santos notifica-o da chegada de uma nova sms. Observa o ecrã. É José Sócrates. O ex-primeiro-ministro quer falar-lhe, depois do combate épico da noite anterior. As redes sociais estão inundadas de comentários. Há de tudo: desde os incondicionais de Sócrates, que consideram ter-se assistido a um massacre ardilosamente planeado pelo jornalista; até aos apoiantes seguros do pivô, que defendem a sua liberdade para perguntar tudo o que lhe parecer importante. Já em conversa telefónica, Sócrates não esconde o seu desconforto. Pergunta ao jornalista se já pensou no que fizera. Claro que pensou.

- Fiz as perguntas que tinha de fazer e o senhor deu as respostas que tinha de dar. Até me pareceu que esteve bem, se quer que lhe diga. Foi brilhante. Eu pressionei-o forte, como é meu dever, mas o senhor aguentou-se. Esteve brilhante. Não vejo qual é o seu problema.

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Sócrates não se comove com os elogios de Rodrigues dos Santos, que acusa de lhe ter montado uma cilada, uma canalhice. O jornalista sente necessidade de pôr água na fervura:

- Olhe, vou-lhe dizer o que as pessoas que o senhor conhece disseram sobre a entrevista: o Zé Rodrigues dos Santos é um cabrão, fez isto e fez aquilo, e tu aguentaste-te muito bem, tiveste calma e deste grandes respostas. Tu é que ficaste a ganhar. Disseram-lhe ou não lhe disseram isso?

Sócrates não nega e acrescenta que o próprio filho lho havia dito. Mas já está mais à frente. Quer saber se aquele registo é para manter. O pivô não pensa em recuar. Considera que tem um trabalho a fazer e não está disponível para ceder. A dada altura, Sócrates recorda-lhe algo que tinha dito num dos programas de comentário com Cristina Esteves. Rodrigues dos Santos responde de forma abrupta.

- Não vejo programas de políticos a fingirem que são comentadores.

Perante a incredulidade de Sócrates, o jornalista continua.

- O senhor acha-me com cara de ter tempo a perder para ouvir políticos a aldrabarem as pessoas e a venderem a banha da cobra? Não o oiço a si nem oiço qualquer outro dos políticos que por aí aparecem a fazer esses comentários. Tenho coisas mais úteis para fazer com o meu tempo. E se agora o oiço a si e ao Sarmento éporque estou ali no estúdio e não tenho alternativa. Se não tivesse estas entrevistas, nem sequer vos ouvia. Tenho mais que fazer.

Ainda nesse dia voltariam a dialogar. O grande pomo da discórdia é o facto de nenhum deles estar disposto a abdicar da prerrogativa de definir os temas a abordar. Sócrates porque o seu contrato o prevê; Rodrigues dos Santos porque quer respeitar as normas éticas da sua profissão.

- Não aceito receber instruções editoriais de um político. Não podem ser os políticos a decidir os temas. Isso é um embuste. Isso é enganar os espectadores. Não o farei.

Ainda no mesmo dia, Rodrigues dos Santos liga a Sócrates. Na conversa anterior, o ex-primeiro-ministro queixara-se de que o pivô não definia os temas do programa quando fazia o espaço de comentário com o ex-ministro do PSD Nuno Morais Sarmento. O jornalista reafirma a sua convicção de que tem de ser como ele diz. Caso contrário, nada feito. Sócrates acaba por aceitar, mas já no final da conversa sugere-lhe que pense, pelo menos, no tom utilizado nas perguntas, esbatendo a postura

claramente adversativa do primeiro programa. José Rodrigues dos Santos resiste.

- Eu não sei o que lhe diga mais. Isto é uma entrevista a um político sobre temas políticos, não é um tempo de antena. Foi um tom normal numa entrevista dura.

Sócrates insiste. Pede-lhe que pense no assunto com calma - afinal, tinham duas semanas até à realização do programa seguinte. Rodrigues dos Santos adia o problema:

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- Bem, eu agora vou a Moscovo para a Feira do Livro e vou estar com a cabeça noutras coisas.

Quinze dias depois, novo telefonema, este da iniciativa de Rodrigues dos Santos.

- Olhe, eu pensei bem e, enfim, estou disposto a flexibilizar a minha posição quanto ao tom. Quer dizer, vi a gravação da entrevista e pareceu-me tudo normal. O tom era normal. Não acho normal que se faça uma pergunta dura a sorrir, até parece que estamos a gozar. Mas se o senhor se sente mais confortável com um tom mais soft, tudo bem, não épor aí.

Sócrates volta a reagir mal. Diz-lhe que não foi contratado para aquele tipo de programa, que não é só uma questão de tom, é também de conteúdo das perguntas. E pede-lhe que tente entendê-lo.

- Pois, mas quanto ao resto é que já não pode ser. Aquilo é uma entrevista normalfeita a um político. Não fiz nada de mal, cumpri as regras da minha profissão. Tenho de ser livre para fazer as perguntas que o meu dever de jornalista me impõe. Isso para mim é inegociável. Sou jornalista, não sou o ponto do teatro que dá deixas aos políticos, nem aceito ser cúmplice num embuste ao público. Aquela entrevista não é um tempo de antena, é um acto jornalístico. Se não, nem precisavam de um jornalista. Punham lá um locutor qualquer e já estava. Se tem um jornalista é para fazer jornalismo. Isto não é negociável.

Sócrates não desiste. Diz-lhe que foi contratado para um espaço de opinião em que falaria sobre o que bem entendesse. E pede ao jornalista que o compreenda — o que Rodrigues dos Santos faz sem esforço.

— Compreendo perfeitamente. Tem toda a razão. O senhor não tem culpa. Prometeram-lhe uma coisa e eu estou a fazer-lhe outra. Compreendo a sua posição. O senhor não tem culpa. Mas eu também não tenho. Está a entender? Eu não tenho culpa. Ofereceram-lhe condições que não podiam ser oferecidas. Esse é que é o problema. Nós temos estado a tentar compatibilizar conceitos que se revelaram incompatíveis. O contrato que o senhor pelos vistos assinou prevê cláusulas que, a serem cumpridas, obrigam os jornalistas a violar a sua ética profissional. Está a entender? Quem lhe ofereceu essas condições não as podia ter oferecido. Esse contrato é, do meu ponto de vista, ilegal, uma vez que obriga os jornalistas da RTP a violarem a sua ética. Estamos perante um conflito insanável. O senhor tem um contrato com a RTP e eu tenho um contrato com a RTP. O seu contrato diz certas coisas, mas o meu contrato obriga-me a fazer jornalismo e a respeitar as regras da minha profissão. Está a perceber? Para que o seu contrato seja respeitaado, tenho de violar o meu contrato. Para que o meu contrato seja respeitado, o seu contrato tem de ser violado. Este é o problema. Perante isto, eu só tenho uma coisa a fazer: é respeitar o meu contrato. O meu contrato com a RTP prevê que eu faça jornalismo. Eu vou fazer jornalismo. Se isto viola o seu contrato, o senhor que fale com a RTP e resolva o problema. Agora, eu vou respeitar o meu contrato.

Domingo, 6 de Abril de 2014

Político e jornalista voltam a encontrar-se em estúdio. Sabem que o programa será especialmente duro. Sócrates não pode dar-se ao luxo de voltar a ir ao tapete. Rodrigues dos Santos, ciente do que se passara 15 dias antes, prevê alguma agressividade vinda do

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interlocutor. Mas está longe de imaginar que o seu nível de argumentação pudesse situar-se ao

nível do insulto pessoal. A dada altura, o ex-primeiro-ministro, irritado com as suas questões incisivas, dispara:

- Você acha que em todas as circunstâncias se deve comportar de forma adversarial no sentido de se colocar na pele do advogado do diabo. Mas até o advogado do diabo pode ser inteligente e pode perceber... Não basta papaguearmos tudo aquilo que nos dizem para fazermos uma entrevista.

Enquanto Sócrates fala, o jornalista não consegue disfarçar um misto de espanto e indignação. Quando o político termina, contém a fúria, mas assinala secamente o momento.

- Muito bem, fica registado o seu insulto, ao qual não vou responder.

O programa termina e Rodrigues dos Santos, ainda indignado com o que se passou, levanta-se imediatamente para se dirigir à mesa de apresentação do Telejornal— o comentário é feito num espaço contíguo -, no sentido de o dar por terminado. Para trás, em cima da mesa de debate, deixa as folhas com os seus apontamentos, em que se destacam uns gráficos sobre a dívida pública. De uma forma caricatural e meio infantil, Sócrates, menos tenso do que há duas semanas, questiona-o sobre se não lhe fazia perguntas sobre o tema.

Dessa vez, Rodrigues dos Santos não o poupa.

- O senhor escusa de estar armado em sonsinho porque isso comigo não resulta!

Acto contínuo, o pivô vira-lhe as costas e dirige-se à sua mesa. Sócrates fica para trás. Em silêncio.

No dia em que trava este intenso diálogo, o ex-chefe do Executivo já está há muito a ser discretamente investigado pelas autoridades judiciais. Encontra-se sob escuta telefónica há vários meses - é o alvo 60085040. Durante esse período, os investigadores acumularam indícios susceptíveis de gerar fortes dúvidas sobre a origem do dinheiro que lhe permite ter o estilo de vida claramente desafogado que exibe e que foi noticiado por vários órgãos de comunicação social.

Quinta-feira, 31 de Julho de 2014

A revista Sábado publica uma manchete que vira o País ao contrário: José Sócrates estará a ser alvo de «apertada vigilância» por parte das autoridades na sequência da extracção de uma certidão documental do processo Monte Branco, que investiga crimes de fraude fiscal. A publicação garante ainda que o político poderá ser «em breve» constituído arguido e que a sua detenção para interrogatório está a ser ponderada.

Será um dia louco para o ex-primeiro-ministro, passado ao telefone, entre chamadas de amigos preocupados e outras exclusivamente dedicadas a tentar perceber qual a melhor forma de gerir o problema gigante que tem em mãos. Como quase sempre, não se esconde.

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Tem de dar a cara e afirmar a sua inocência. Contacta a direcção de informação da RTP. Quer ir ao Telejornal lavar a honra em directo.

São 20h06 quando José Rodrigues dos Santos noticia o caso. Minutos antes chegou-lhe às mãos um comunicado da Procuradoria-Geral da República (PGR) em que se garante que Sócrates não é suspeito no caso Monte Branco - um pequeno brinde para o ex-primeiro-ministro. Já com o político sentado na mesa do Telejornal, o pivô começa pela pergunta mais óbvia.

- Boa noite. Qual é sua reacção a estas notícias que estão a sair?

Vestido informalmente, sem gravata, com a pele queimada do sol, Sócrates endireita as costas, faz um sorriso irónico e passa ao ataque:

- A minha reacção é de estupefacção [...]. Isto é uma verdadeira canalhice porque se trata de inventar uma história para depois ser desmentida pelo Ministério Público no mesmo momento em que as televisões a dão.

Trava, inspira - e continua. Está imparável:

- Isto é absurdo pela simples razão de que eu não tenho contas no estrangeiro, não tenho capitais para movimentar. Só tenho uma conta bancária há mais de 25 anos, não tenho nenhumas poupanças!

E conclui:

— Isto é uma campanha de canalhice com o objectivo único de difamar-me. Não é verdade que tenha tido uma vida luxuosa em Paris, onde vivi à custa de um empréstimo que contraí na Caixa Geral de Depósitos!

A verdade é, porém, outra. Em Maio, antes das eleições europeias, a hipótese da detenção fora equacionada pelo Ministério Público. E só não terá ido para a frente por uma questão de precaução: as eleições estavam à porta e os investigadores, cientes de que a politização do processo poderia ser altamente prejudicial, não quiseram correr o risco de serem acusados de interferir na disputa eleitoral. De qualquer modo, Sócrates continuou sob escuta telefónica. Dentro da Operação Marquês - uma investigação do Ministério Público destinada a apurar se José Sócrates acumulou uma enorme fortuna no exterior resultante de actos de corrupção enquanto exerceu cargos políticos - todos sabiam que seria detido. Só restava definir quando.

Sexta-feira, 21 de Novembro de 2014

São 8h quando o advogado João Araújo entra no avião. Destino: Paris. Tem de falar rapidamente com José Sócrates. Fazê-lo por telefone não é opção - há muito que o ex-primeiro-ministro está sob escuta. Assim que encontra o seu cliente, confirma-lhe o que ele já antevia: no segundo em que meter o pé em solo português, será muito provavelmente detido.3

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No dia anterior, o filho de Sócrates ligara-lhe a partir de Lisboa. Aflito, queria dizer-lhe que a sua casa fora alvo de buscas judiciais. E que o seu amigo Carlos Santos Silva, o motorista João Perna e o advogado Gonçalo Trindade tinham sido detidos no âmbito da Operação Marquês.4

Sócrates sabe que não é expectável que lhe seja dado tratamento especial. A sua espera, no aeroporto, terá, seguramente, a maior das humilhações da sua vida. Não é como primeiro chefe do Executivo preso em

Portugal que deseja passar à História. Tem de resistir, de evitar a prisão a todo o custo. Pede ao advogado que informe as autoridades nacionais de que está disposto a colaborar voluntariamente com a Justiça. São 15h54 quando, à sua frente, João Araújo clica na tecla send para remeter um e-maildirigido ao director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Amadeu Guerra:

Incumbiu-me o meu constituinte, senhor Engenheiro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, de transmitir a V. Exa. o seguinte:

- Chegou ao conhecimento dele encontrar-se em curso nesse Departamento Central de Investigação e Acção Penal uma investigação que o tem como suspeito e que, no âmbito dessa investigação, foram realizadas diversas buscas e detidas algumas pessoas.

1 - Desconhecendo, embora, em concreto, o objecto dessa investigação, o meu constituinte tem o maior interesse em ser, com toda a possível brevidade, ouvido no âmbito dela, com vista a esclarecer o que deva e possa esclarecer.

2 - Apesar de, neste momento, se encontrar, por motivos da sua vida pessoal, ausente no estrangeiro, mais concretamente em Paris, dispõe-se a proceder aos acertos que forem necessários a comparecer onde e quando lhe for determinado para ser ouvido.

3 - Assim sendo, solicito a V. Exa que me faça, por este meio, notificar da primeira ocasião disponível para essa diligência, sem embargo de o senhor Engenheiro José Sócrates se encontrar já a desenvolver os seus melhores esforços para apressar o seu regresso ao País para tender a qualquer necessidade de colaboração sua.5

Um e-mail não é suficiente. Têm de esgotar todos os cartuchos, de encostar a Justiça à parede, de demonstrar de forma muito clara que fugir não é uma opção para o ex-líder socialista. João Araújo pega no telemóvel e digita o número de Amadeu Guerra. Pergunta-lhe se recebeu o e-mail. Negativo. Ainda assim, o director do DCIAP compromete-se a

fazer chegar a informação a Rosário Teixeira, o procurador responsável pelo processo. A verdade é que já nada há a fazer: o mandado de detenção foi emitido três dias antes e o juiz de instrução Carlos Alexandre está decidido a interrogar Sócrates o quanto antes.6

Durante o dia, o ex-primeiro-ministro desespera por uma comunicação do DCIAP a marcar uma inquirição ou por um simples e-mail de resposta a confirmar a recepção da sua comunicação. Nada. Um imenso e aflitivo silêncio. Debate com João Araújo o próximo passo a

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dar. Sócrates está determinado a avançar, sente que é seu dever regressar. E di-lo ao seu advogado.

— Eu fui primeiro-ministro, se não for eu a respeitar as instituições, quem é que as vai respeitar?

Quando, às 22h30, o avião da Air France aterra na Portela, Sócrates liga imediatamente o telemóvel. Faz um telefonema para um amigo ainda dentro do avião. A dada altura, interrompe a chamada.

- Tenho de desligar, estão ali uns senhores à minha espera...

Os «senhores» estão na manga de acesso ao aeroporto. São inspectores da autoridade tributária e agentes da Polícia de Segurança Pública (PSP). Um dos polícias tira-lhe educadamente o telemóvel. Outro dá-lhe ordem de detenção. Sócrates está prestes a cair nas mãos da dupla mais mediática do sistema judicial português: o procurador Rosário Teixeira e o juiz de instrução criminal Carlos Alexandre.

* * *

Dois velhos conhecidos

Rosário Teixeira e Carlos Alexandre não são amigos, mas trabalham juntos há muito. O primeiro é um dos procuradores mais respeitados do DCIAP, que tem no currículo casos tão mediáticos como o Furacão, o Monte Branco ou o BPN. O segundo destacou-se em processos como

o dos submarinos adquiridos por Paulo Portas, a detenção de Ricardo Salgado no âmbito do caso Monte Branco ou, mais recentemente, o caso dos vistos gold.

Foram os dois, acompanhados por três inspectores da Polícia Judiciária (PJ), que um dia, pelas 7:h da manhã, tocaram à campainha da casa de Isaltino Morais. Surpreso, de roupão vestido, o ex-presidente da Câmara Municipal de Oeiras leu o mandado judicial que lhe foi entregue. Havia indícios de que fugira ao fisco e queriam revistar-lhe a casa - podia ser que encontrassem documentação útil para a investigação em curso. Quando terminou a leitura do documento em que eram mencionadas as suspeitas que justificavam a busca, Isaltino desabafou:

- Então vocês atrevem-se a escrever estas coisas a meu respeito?!8

A essa hora, em Massamá, a procuradora titular do inquérito, Leonor Furtado, estava a tocar à campainha do apartamento da irmã de Isaltino. A PJ vigiara a casa toda a noite e sabia que a mulher lá estava, mas ninguém abria a porta, mesmo depois de terem colado um pedaço de fita-cola sobre a campainha. Impaciente, Leonor Furtado telefonou ao juiz. Queria arrombar a porta, mas precisava de um aval superior. Alexandre resistiu. Pediu a Isaltino para telefonar à irmã e a porta abriu-se.

Depois das buscas em casa, Isaltino acompanhou Rosário Teixeira e Carlos Alexandre ao seu escritório situado em Miraflores. E até acabou por dar uma pequena ajuda ao juiz e aos

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inspectores, que tinham estacionado o seu Passat cinzento sem pagar parquímetro. Na ausência das moedas, o carro tinha sido bloqueado por um funcionário da empresa municipal de Oeiras. Descontraidamente, o ex-autarca pegou no telemóvel e resolveu rapidamente o problema.

Em Mação, onde nasceu Carlos Alexandre, são poucos os que o tratam por juiz. Lá, é o Alexandre, o Carlos Alexandre ou o Lagarto, numa alusão ao seu sportinguismo. Filho de José e Narcisa, um carteiro e uma tecelã, tem dois irmãos mais velhos: João Francisco e Maria Júlia. Por causa de uma asma brônquica, a mãe deixou cedo o emprego na fábrica de lanifícios local - reformou-se pouco depois dos 40 anos. O dinheiro

não abundava mas José Alexandre sempre teve como prioridade a educação dos filhos - e para lhes pagar os estudos no Externato D. Pedro V, então o único colégio particular existente na região, chegou a penhorar uma mota ao Banco Totta & Açores.

Passados muitos anos, seguramente que José gostaria de ver o seu filho a viver sem dificuldades. A memória do jovem Carlos a carregar baldes de cimento para ajudar o pai a construir a casa da família, uma moradia localizada próximo do quartel da Guarda Nacional Republicana, é agora isso mesmo — uma memória distante. Nessa altura, entre Junho e Dezembro de 1975, tinha 14 anos, frequentava o 8º ano e nada fazia adivinhar que se tornaria o inquiridor implacável em que se transformou.

«Isto é uma busca!»

De Rosário Teixeira sabe-se menos. O magistrado cultiva a discrição. Nascido em Moçambique, é casado com uma médica, com quem tem um filho. Partilha com Carlos Alexandre a paixão pelo Sporting e a obsessão com o trabalho. Fica horas a fio no seu gabinete, que já chegou a funcionar fora das instalações do DCIAP, onde chegou em 2001 pela mão de Cândida Almeida, a ex-directora do departamento. Não demorou muito a destacar-se. Uma das primeiras situações em que surgiu debaixo dos holofotes dos media foi no célebre caso do Envelope 9, que nasceu de uma notícia publicada na edição de 13 de Janeiro de 2006 do jornal 24horas, entretanto extinto. Na peça, relatava-se a existência, entre os documentos do processo sobre abusos sexuais na Casa Pia, de uma listagem de telefonemas de vários titulares de órgãos de soberania, incluindo Jorge Sampaio, então chefe de Estado. A pedido de Jorge Sampaio, a procuradoria instaurou então um inquérito. Na manhã do dia 15 de Fevereiro, estava Pedro Tadeu, director do 24horas, a fazer a reunião habitual de preparação da edição quando o avisaram de que uns elementos estranhos à redacção exigiam ter acesso ao computador de Joaquim Eduardo Oliveira, o jornalista que assinara a peça. Tadeu terminou a reunião e dirigiu-se ao procurador, que lhe disse:

— Temos um mandado para cumprir:9

O director reagiu:

- Têm a certeza de que querem fazer isto? Esta acção pode configurar um atentado à liberdade de imprensa.

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Sem alterar o tom de voz, Rosário Teixeira prosseguiu:

— Nós sabemos da gravidade do que estamos a fazer e vamos fazê-lo com todo o respeito pela liberdade de imprensa.

O que aconteceria de seguida não seria bonito. Assim que entrou na redacção, o perito informático da PJ, que acompanhava Rosário, ordenou com um tom levemente cinematográfico:

- Tirem as mãos dos tecbidos! Isto é uma busca!

Espontaneamente, os jornalistas começaram a informar os seus colegas de outros órgãos de comunicação social do que estava a acontecer. Rapidamente a redacção se encheu de repórteres. E o que estava previsto ser uma busca discreta tornou-se um carnaval mediático. A dada altura, quando percebeu que estava a ser fotografado, o perito da PJ reagiu:

— Aqui ninguém fotografa nada!

Tadeu explodiu:

- Você está em minha casa, aqui fotografa-se o que eu quiser!

Ao ver a tensão subir, Rosário Teixeira pediu calma a Pedro Tadeu. Foram para um gabinete e ficaram lá enquanto as buscas decorriam. O procurador, que nunca perdeu a serenidade, estava, como sempre, elegante: de fato e gravata e, muito provavelmente, com meias brancas calçadas - alguns magistrados costumavam referir-se ao colega em surdina como o peúgas brancas.

Também Carlos Alexandre é conhecido pela sua indumentária carac- terística: é curta, inversamente proporcional à sua obsessão pela pou-

pança. O juiz não gasta dinheiro com coisas que considera supérfluas. E faz tudo para não se meter em aventuras que depois não pode pagar. Nem no dia do seu casamento entrou em exageros. Foi a 5 de Dezembro de 1986, quando estava a estagiar no Tribunal da Relação de Évora e vivia em casa da futura sogra, no Alandroal. Depois de casarem numa cerimónia civil na conservatória de Oeiras, mesmo ao lado do edifício da Câmara, onde nesse ano Isaltino Morais tinha tomado posse pela primeira vez como presidente da autarquia, Carlos e Felisbela organizaram um almoço modesto num restaurante para apenas cerca de duas dezenas de amigos e familiares.

Umas ajudinhas de custo...

Com tantas buscas e processos complicados no currículo, é natural que nem todos corram de forma perfeita — e às vezes o que pretende ser uma acção policial pensada ao detalhe pode transformar-se num episódio caricato. Um exemplo: na Operação Furacão, aquando da busca ao Fini- banco, em Outubro de 2005, Rosário Teixeira e a sua equipa de dez elementos enganaram-se no alvo - o edifício onde se deslocaram na Baixa lisboeta estava vazio de documentos. Sem transporte (os carros eram poucos para o número de investigadores), tiveram de arranjar trocos para os bilhetes do metro. For volta das 11h30, chegaram por fim

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ao Fini- banco, que fica entre o Saldanha e o Campo Pequeno, reforçando a equipa que já lá estava. Saíram todos às 5h da madrugada, depois de preenchido um auto de busca com 80 páginas.

Se, como neste caso, houve situações em que se resolveu a questão das viagens sem grandes problemas, noutras não. Durante a maior parte das buscas, que se verificaram até finais de 2007, os velhos carros do MP, com mais de 250 mil quilómetros, pararam vezes sem fim nas bermas das estradas. Aqueciam em demasia, não tinham luzes e, quando chovia, percebia-se bem a falta que faziam os limpa-vidros. E, no Inverno, em idas ao Porto, Rosário Teixeira viajou com o casaco enrolado nas pernas, a solução que

encontrou para combater o vento gelado que passava pelo buraco onde deviam estar os plásticos que tapam a ligação do motor ao interior do carro.

O dinheiro para as operações também foi um problema. Entre 14 e 16 de Dezembro de 2006, na célebre busca ao private banking do BES, na Madeira, Rosário Teixeira teve de avançar o dinheiro para as passagens aéreas (foi-lhe depois devolvido) e alojou-se numa residencial modesta. No âmbito da mesma operação, Carlos Alexandre não ficou melhor: pediu e obteve do director da PJ local, Calado de Oliveira, autorização para dormir numa casa de função da Judiciária. Por norma, nas buscas, o Estado não paga ao juiz a estadia nem as refeições. Nessa viagem, Paulo Silva, o inspector tributário de Braga (distrito onde o caso Furacão nasceu), alugou um carro e instalou-se no Savoy, fazendo bom uso das ajudas de custo pagas a 100% quando se trabalha fora da área de residência.

Tempos depois, esta desproporção entre magistrados e homens do fisco quase originou uma espécie de incidente diplomático no fim de outra busca, quando Carlos Alexandre desabafou, alto para que todos ouvissem, que era sempre bom ganhar umas ajudinhas de custo. Fez-se silêncio.

De Paris a Moscavide

Ricardo Costa apresenta, como habitualmente, o programa Expresso da Meia-Noite, na SIC Notícias. Terminada a emissão, entra no carro e dirige-se para casa, situada na zona do Restelo. Mal acaba de pousar as chaves do automóvel, o seu iPhone toca. Do outro lado, alguém lhe dá a informação que lhe mudará a noite. Sócrates foi preso - preso! Difícil de acreditar; impossível de ignorar. «Fui logo para a SIC comentar e dei ordem para pararem imediatamente as máquinas de impressão do Expresso.» Não é razoável que o maior jornal do País saia no dia seguinte sem a notícia do ano. Tem de mudar a manchete.

O rumor de que o ex-primeiro-ministro está prestes a ser detido circulava pelas redacções desde o meio da semana. Nessa mesma tarde, Rui

Gustavo, um dos jornalistas mais destacados do jornal, que acompanha de perto as questões da Justiça, transmitiu-o a Ricardo Costa.

- O Sócrates vai ser preso.

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Ricardo Costa não conteve o espanto.

- Tens a certeza?

- Sim.

O director duvidou. E insistiu:

- Não é um rumor?

- Acho que não, a fonte é mesmo muito boa...11

Estava fora de causa avançar com a informação sem uma confirmação total. Rui Gustavo recorda o dia: «Estávamos num beco sem saída. Eu tinha a certeza de que era verdade, mas se a notícia fosse publicada antes da detenção muito provavelmente a mesma não ocorreria.»12 Gustavo viu-se assim na mais ingrata das situações que pode acontecer a um jornalista: tinha uma grande cacha mas estava inibido de a noticiar. De qualquer modo, prevendo a possibilidade de algo acontecer durante o dia, decidiu escrever o texto, que ficaria assim pronto para entrar a qualquer momento. Quando, pouco depois das 20h, abandonou a redacção, nada acontecera - ainda.

A chamada de Ricardo Costa, feita já depois das 00h, desperta-o de novo para o assunto. Tem de actualizar rapidamente o texto que deixara escrito, de modo a que ainda entre na edição. Habituado a trabalhar sob pressão, o jornalista não perde a serenidade. Liga à fonte que lhe passara a informação só para confirmar definitivamente a detenção. E, enquanto faz zapping pelos canais de notícias - que entretanto se concentraram no Campus de Justiça - começa a teclar freneticamente no seu tablet BQ aquele que poderia ter sido o texto da sua vida.

No preciso segundo em que Rui Gustavo dita telefonicamente a Marco Grieco, director de arte do jornal, as últimas alterações ao texto que há poucos minutos lhe enviara, o Estabelecimento Prisional de Évora

já se encontra em estado de excitação máxima. Ao observar na televisão que Sócrates fora detido, o inspector João de Sousa - preso na mesma cela que Manuel Palos, ex-director do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF), recentemente detido preventivamente no âmbito da investigação aos vistos gold - espreita para a cama de baixo do beliche que partilham:

- Ó Manuel, o Sócrates foi preso!

O ex-director do SEF, que contava os minutos para que o juiz Carlos Alexandre, também encarregado do seu caso, pudesse ouvi-lo, não esconde a desilusão.

— Merda! Agora o Carlos Alexandre vai passar uns quatro dias a interrogá-lo...13

Nesse momento José Sócrates está no Campus de Justiça a ser constituído arguido. Cumpridas todas as formalidades, desce ao parque de estacionamento e ocupa o banco de trás de um veículo descaracterizado. Lá fora, o circo está montado. No instante em que a sua figura surge, invulgarmente frágil, afundada no banco traseiro do carro, perdida na imensidão da sua impotência, os flashes das câmaras disparam esquizo- frenicamente. A alta velocidade, o veículo desaparece na escuridão da noite. Próxima paragem: o edifício do Comando

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Metropolitano de Lisboa da PSP, situado em Moscavide. A entrada faz-se discretamente pela garagem. Já fora do carro, no piso -1, onde se situa a zona de detenção, é-lhe pedido que tire o cinto e os atacadores — duas medidas de prevenção destinadas a prevenir a possibilidade de suicídio. Percorre um corredor estreito com cinco celas colectivas. Vira à direita, em direcção à zona das celas individuais. Ocupa uma das oito disponíveis. Quando, por fim, fica isolado, Sócrates confronta-se com a sua circunstância. No dia anterior dormira no seu apartamento de luxo, situado numa das cidades mais glamorosas do mundo; almoçara com João Araújo num bom restaurante parisiense. Agora, à sua frente, o que vê é um espaço decrépito, com pouco mais de 10 n., uma pequena cama, uma casa de banho rudimentar e uma campainha para usar quando necessário. Levanta-se e toca-a.

Quer ir ao corredor fumar um cigarro, uma vantagem concedida pela PSP a todos os presos que não representam perigo. Também pede água. Naquela sexta-feira, é o único detido a pernoitar ali. Está sozinho. Literalmente.

Pela manhã, barbeia-se e toma o pequeno-almoço: pão com manteiga e um galão. Fala pouco, mas é sempre cordial. Também quando acompanha as buscas à sua casa está sempre sorridente. Mais tarde, no Campus de Justiça, ocupa uma das celas de detenção, também no piso -1, e faz as mesmas refeições que os outros três detidos.

O interrogatório só começa às 9h38 de domingo, dia 23. Nesse dia, verifica-se uma pausa para almoço entre as 12h25 e as 13h 15, com a audição a continuar até às 20h05. No dia seguinte, a sessão é retomada às 10h07, verificando-se pouco depois outro intervalo, entre as 11h52 e as 12h09. Durante a inquirição, que decorre em ambiente de grande tensão, o juiz Carlos Alexandre apresenta ao ex-primeiro-ministro escutas alegadamente comprometedoras. A dada altura, confronta-o com uma conversa em que são abordados aspectos da sua intimidade sexual. Sócrates explode. Desata aos gritos e recusa-se a ouvir mais. Não está disponível para ver a sua privacidade ser violentada daquela forma tão crua, tão intrusiva, tão imprevista - tão radical.

O interrogatório termina às 12h34. Ao todo, o ex-governante é ouvido durante doze horas e sete minutos. As alegações finais do MP e das defesas decorrem entre as 16h36 e as 19h46. A decisão de Carlos Alexandre sobre as medidas de coacção a aplicar a José Sócrates é anunciada às 22h29. O antigo líder do PS fica em prisão preventiva, indiciado pelos crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. No dia anterior, os restantes suspeitos do caso já tinham passado pelo crivo de Alexandre. João Perna, o seu antigo motorista, também estava preso, suspeito de posse de arma proibida, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. O advogado Gonçalo Trindade, depois de detido, ficou em liberdade, sujeito a termo de identidade e residência. E ao seu grande amigo Carlos Santos Silva fora aplicada a mesmíssima pena que a si: prisão preventiva pela alegada prática dos crimes de

corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. A partir do instante em que é detido, Sócrates sabe que o seu futuro está directamente relacionado com o do seu amigo: se um cair, caem os dois.

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Da Covilhã a Lisboa: uma amizade longínqua

José Sócrates e Carlos Santos Silva conheceram-se em 1982, um ano antes de o primeiro ser eleito líder da concelhia e presidente da Federação Distrital do PS de Castelo Branco. Eram os dois jovens engenheiros. Sócrates tirara um bacharelato de quatro anos em Engenharia Civil no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra; Santos Silva fizera o seu curso no Instituto Superior Técnico, em Lisboa.

O futuro primeiro-ministro era funcionário da Câmara Municipal da Covilhã, onde se distinguia mais pela destreza a usar o telefone fixo - não havia ainda telemóveis - do departamento de obras para fazer contactos pessoais do que pelos projectos de engenharia que liderava. Não era um funcionário exemplar. Mas era já um político que dava que falar.

Carlos, pelo contrário, fora o melhor aluno da sua turma. Tinha um talento nato que os seus colegas aproveitavam. Tirava-lhes dúvidas e dava-lhes verdadeiras aulas em cima de um simples guardanapo de uma mesa de café. Depois de um estágio no Laboratório Nacional de Engenharia Civil, onde ainda trabalhou durante alguns meses, o jovem prodígio regressou à Beira Interior com uma finalidade: prosperar na sua área, se possível criando um negócio.

Nascido em 1958 em Pereiras, no concelho de Belmonte, Santos Silva, um ano mais jovem do que Sócrates, passou por grandes dificuldades. Os seus pais, José Carloto e Alice, eram pequenos agricultores. Trabalhavam de sol a sol. A casa em que nasceu e em que viveu até aos cinco anos era rudimentar: não tinha electricidade, água canalizada ou casa de banho. Quando entrou para a escola primária, já a família se tinha mudado para a Quinta de Lamaçais, na freguesia de Teixoso, onde

passaram a ter água, luz e casa de banho, mas continuaram as dificuldades: Carlos tinha de caminhar diariamente quatro quilómetros para ir à escola. Aos 13 anos, perdeu a mãe. Valeu-lhe o pai, que continuou a trabalhar para que os dois filhos tivessem as oportunidades que manifestamente não tivera.

Quando regressou à Covilhã, Santos Silva começou logo a trabalhar. Foi contratado por um empreiteiro de obras públicas de Belmonte, António Pina Vieira do Vale, que o nomeou director técnico de uma obra importante: um troço de 25 quilómetros de auto-estrada entre Castelo Branco e Sarnadas de Ródão para vir a integrar o 1P2, o Itinerário Principal concebido nos anos 80 de forma a ligar o norte ao sul de Portugal pelo interior e que mais tarde fará parte da A23. Durante três anos, viveu numa residencial em Castelo Branco para acompanhar as obras, mas ia todos os fins-de-semana à Covilhã, onde tinha longuíssimas conversas com o amigo José sobre política e filosofia. Já nessa altura, Sócrates não dispensava uma boa discussão.

Rapidamente Santos Silva passou a acompanhar Sócrates e um grupo de amigos nas saídas para bares e discotecas. O ex-primeiro-ministro tinha um Mercedes 250 bege - ainda hoje o mantém na garagem - que fazia furor naqueles tempos. Metiam-se todos lá dentro e saíam à aventura. Carlos tinha um Volkswagen Golf15 e levava uma vida sem extravagâncias. O seu pai entretanto prosperara e o seu irmão tornara-se médico. A família vivia bem.

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Com a entrada na Comunidade Económica Europeia, registou-se uma explosão na construção civil. As obras surgiam um pouco por todo o lado. O cofre sem fundo que os parceiros europeus colocaram à disposição do País em nome da integração económica foi um maná para os engenheiros civis. Em 1987, ano em que Sócrates foi eleito deputado pela primeira vez, Santos Silva criou a Enaque, a sua primeira empresa. Seguir-se-iam outras, que o fariam prosperar ao ponto de a Covilhã se ter tornado demasiado pequena para si.

Em 1996, já com José Sócrates a ocupar as funções de secretário de Estado do Ambiente do Governo liderado por António Guterres, o

empresário mudou-se para Lisboa. Foi nessa altura que aconteceu a primeira polémica a que o seu nome esteve associado, quando participou no consórcio que construiu a central de compostagem da Cova da Beira, um projecto impulsionado por Sócrates que se tornou num negócio ruinoso para o Estado.

Foi em Lisboa que Santos Silva conheceu a sua actual companheira, com quem tem uma filha de 12 anos. Com o passar dos anos, a relação com Sócrates, que entrou numa escalada política imparável, estreitou-se. Dividiram casas, viajaram, passaram férias juntos. Os investigadores da Operação Marquês acreditam que a relação passou da amizade para a promiscuidade financeira. E, na indiciação aos dois amigos, apontam com clareza os indícios que alegadamente o provam.

Dez pecados mortais

A tese da acusação é inequívoca: durante cerca de 11 anos, os «amigos de juventude» José Sócrates e Carlos Santos Silva estabeleceram uma relação de estranha cumplicidade que lhes permitiu, a partir do início dos anos 2000, constituir no exterior, sobretudo em bancos suíços e em contas offshore, um invejável património financeiro com origem em várias empresas nacionais, com o Grupo Lena, de que Carlos Santos Silva foi administrador, à cabeça.

Segundo Rosário Teixeira e Carlos Alexandre, que confirmou a acusação emitida pelo primeiro, esse «acervo financeiro» foi acordado entre os dois e era sua propriedade. Isto apesar de se encontrar somente em nome do empresário da Covilhã, alegadamente para «ocultar» a posse pelo ex-primeiro-ministro, que à data dos alegados crimes de que os dois são acusados era membro do Governo - primeiro no Executivo de António Guterres e, a partir de 2005, num Governo de maioria absoluta liderado por si próprio.

Terá sido exactamente em 2005 que os dois terão esboçado um plano para trazer para Portugal o dinheiro que tinham alegadamente

depositado no exterior, o que veio a acontecer através de regimes de regularização fiscal extraordinária. O primeiro deles foi o RERT I, inserido no Rectificativo do Orçamento do Estado de 2005, que previa a possibilidade de regularização fiscal em Portugal, a troco do pagamento de uma taxa de 5%, de fundos detidos fora do País.

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Nessa primeira fase, avança a acusação, Sócrates terá acordado com Santos Silva o envio para Portugal de apenas uma parte da fortuna alegadamente escondida: 533.082 euros detidos no BIC Cayman em nome da Sunland Finance Ltd. e 36.139 euros depositados numa conta do Santander Espanha. Destino final do depósito: uma conta do Banco Espírito Santo (BES) que, a partir desse momento, se terá constituído como conta fiduciária, a partir da qual saíam as remessas de dinheiro que, depois de passarem previamente por outras contas, chegariam a José Sócrates, apresentado como real proprietário da fortuna.

A dada altura, quando verificaram que a adesão ao RERT I correra bem, Sócrates e Santos Silva terão, de acordo com o Ministério Público (MP), decidido transferir para Portugal a totalidade dos seus fundos no estrangeiro, o que terá acontecido entre 16 de Outubro de 2010 e 8 de Fevereiro de 2011. Ao todo, terão sido regularizados 23.013.156 euros, com origem em duas contas sediadas na UBS de Zurique, na Suíça. Imposto pago: 1.110.657 euros.

Na contestação à prisão preventiva, Paula Lourenço, advogada de Carlos Santos Silva, coloca em causa praticamente todas as alegações do MP sobre a origem do dinheiro, a começar pela tese da constituição do «acervo financeiro» e da respectiva circulação pelas sociedades offihore indicadas pela investigação, nomeadamente porque «pura e simplesmente a primeira [Sunland Finance Ltd.] e as ulteriores sociedades offshore [a Brickhurst International, Ltd. e a Pine Hill Finance Ltd.] não tiveram qualquer relação material temporal».

Também a tese de que os dois amigos se juntaram para «formular um plano» que visava ensaiar primeiro uma pequena transferência de fundos, para só depois, ao abrigo de um novo programa de regularização fiscal - o RERT II - transferirem o grosso do dinheiro, é contestada pela defesa

de Santos Silva, que garante que o dinheiro sempre foi propriedade do seu cliente. Mais: que só em 2007 - dois anos depois da primeira transferência monetária para Portugal - é que o empresário da Covilhã teve disponíveis 23.327.122 euros em contas na UBS de Zurique - os que viriam a ser regularizados ao abrigo do RERT II. Em resumo: afirmar que a primeira adesão ao RERI foi «um ensaio» para só depois enviar o dinheiro restante é uma falsidade, tendo em conta que nessa altura os valores em causa ainda não existiam - ou, pelo menos, não se encontrariam nas contas identificadas pela investigação.

Paula Lourenço confronta ainda o MP com aquilo que diz serem contradições na acusação, nomeadamente sobre a proveniência do dinheiro: «Na sua promoção, o MP entende que a razão primeira [por] que o arguido Santos Silva deve ficar sujeito à medida de coacção de prisão preventiva é precisamente por estarem em curso o cumprimento de diligências de cooperação perante as autoridades suíças para a averiguação da origem dos fundos detectados na Suíça». Conclusão de Paula Lourenço: «Assim sendo, é o MP que de forma clara e sem margem para dúvidas diz que pelo menos neste momento cronológico não tem elementos a propósito da origem dos fundos, e se não tem esta informação quanto à origem dos fundos muito menos tem quanto à titularidade dos mesmos». Para a defesa, as «certezas» do MP são facilmente rebatíveis, por um motivo: «O MP demonstra não ter a certeza de nada».

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Também José Sócrates, que dedica a sua defesa sobretudo a contestar os fundamentos legais da prisão preventiva e não tanto os indícios concretos apontados pela acusação, nega que algum dia tenha construído qualquer tipo de «acervo» com o seu amigo. E sublinha que a eventual relação desse montante com os crimes indiciados «é meramente insinuada», sendo indicados «esparsos, de passagem, e nunca referidos explicitamente aos factos imputados, meros momentos temporais», situados entre 2000 e 2005.

A acreditar no conteúdo da acusação e do despacho de pronúncia, a investigação sabe - ou julga saber - do que fala, apontando dez indícios de práticas criminosas que alegadamente justificam a detenção dos arguidos.

Indício n.°1: a compra de uma casa de luxo em Paris

Quando, em 2011, Sócrates perdeu as eleições contra Pedro Passos Coelho, viu-se numa encruzilhada. Tinha 54 anos, mais de 30 dedicados à política. Estava na hora de desaparecer, de fazer a sua travessia no deserto. A aposta na inacção contrariava a sua natureza inquieta, mas se quisesse voltar a ter ambições políticas concretizáveis precisava mesmo de se movimentar debaixo dos limites do radar, durante um par de anos.

Em Portugal ser-lhe-ia complicado passar despercebido. Naquela altura já não lhe era fácil andar na rua. Algumas pessoas baixavam os olhos quando se cruzavam consigo; outras aproveitavam para o insultar; outras, poucas, cada vez menos, para o cumprimentar. Tinha de sair do País. Solução encontrada: a elitista Paris, uma das cidades mais fascinantes do mundo. Seria lá que sublimaria as frustrações da política caseira - e seria também na cidade-luz que cumpriria uma ambição antiga: estudar filosofia política. Faltava apenas escolher a universidade e o local onde viveria. Matriculou-se na Sciences Po e mudou-se para um 4.° andar luxuoso situado no número 17 de um dos bairros mais caros de Paris.

O 16 é o bairro onde o realizador português Rúben Alves gravou o sucesso de bilheteira A Gaiola Dourada. Lá, uma moradia pode custar entre 30 a 40 milhões de euros. Construído em 1860, ganhou estatuto não só pelas suas grandes avenidas e edifícios com fachadas em blocos de pedra, mas também porque se concentraram ali quase todas as grandes embaixadas.

A praça de Trocadéro é um dos pontos mais conhecidos do bairro, onde também há um monumento à princesa Diana, que morreu junto ao rio Sena, um hipódromo e a avenida mais larga de Paris, a Foch. Habitados por embaixadores, príncipes árabes e políticos de topo, como o ex-Presidente Nicolas Sarkozy, a maioria dos apartamentos tem vista para o Sena ou para a Torre Eiffel.

A porteira do seu prédio era portuguesa, algo bastante comum. Em pouco tempo, Sócrates mergulhou na cidade e criou rotinas. Bebia

diariamente café no Le Diplomatique, um bistro perto de casa. Sentava- -se ao balcão e era servido por um empregado também português. Os vizinhos viam-no muitas vezes a fazer exercício. Aos domingos de manhã saía de calções e ténis para correr. Quando estava muito frio, vestia um fato de treino. Por vezes ia com o filho mais velho, que o acompanhou na

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aventura francófona. Um dos seus locais preferidos era o Bosque de Bolonha, com mais de 800 hectares. Quando ia para a faculdade, usava calças de ganga e blazer e levava uma pasta de cabedal preta debaixo do braço. Para se deslocar, guiava um elegante Mini preto.

Antes de ir para França, Sócrates contraíra um empréstimo de 120.000 euros na Caixa Geral de Depósitos para alegadamente se sustentar durante o tempo em que lá estudaria. O MP e o juiz contestam que tenha sido essa a motivação: «[contraiu o empréstimo] sabendo que não se podia expor a receber na sua conta fundos com origem directa no Carlos Silva ou mesmo a receber fundos em numerário». Rosário Teixeira e Carlos Alexandre vão mais longe: «José Pinto de Sousa sabia também que não precisaria de suportar tais fundos financeiros durante muito tempo.» Isto porque, sublinham, «estava montado um esquema entre o José Pinto de Sousa e o Carlos Silva, pelo qual este último iria realizar pretensas aquisições de imóveis à mãe de José Pinto de Sousa, criando um justificativo para a entrada de fundos na conta de Maria Adelaide Monteiro, que, por sua vez, fazia transferir os mesmos para a conta do José Pinto de Sousa». Terá sido desta forma que Sócrates recebeu na sua conta da CGD, com origem nas contas da sua mãe, 520.000 euros durante 2012.

Foi precisamente em Agosto desse ano que Carlos Santos Silva adquiriu um apartamento situado na Avenue President Wilson, n.° 15. Por ser uma casa de luxo, o preço foi alto, pago em duas tranches: 257.624 euros em 30/07/2012 e 2.609.924 euros um mês depois. Sócrates deixou a sua casa no bairro 16 e mudou-se para o imóvel, que habitou entre Setembro de 2012 e Julho de 2013.

Dois meses depois, em Setembro de 2013, já o ex-primeiro-ministro morava em Lisboa, a casa entrou em obras - e a sua intervenção neste processo é alvo de suspeita por parte da investigação, que está convicta

de que o facto de ter sido Carlos Santos Silva quem formalmente pagou os 480.240 euros investidos na remodelação da propriedade, nada quer dizer sobre quem era, na realidade, o titular do dinheiro. São vários os indícios que, no entender do MP, apontam nesse sentido: Sócrates assistiu à assinatura do contrato entre Santos Silva e o gabinete de arquitec- tura responsável pela empreitada e, além disso, manteve contactos directos com o arquitecto responsável e escolheu os materiais, tomando decisões sobre as alterações a realizar. Sócrates terá pedido mesmo a Sofia Fava, sua ex-mulher também então residente em Paris, para acompanhar o projecto. Mais: perante o atraso verificado, o socialista «deu indicações» a Carlos Silva para pressionar o arquitecto responsável. Conclusão de Carlos Alexandre: «Apesar de estar registado em nome de Carlos Silva, o referido apartamento sempre foi, na realidade, apenas ocupado por José Pinto de Sousa, que ocasionalmente o decidia emprestar a terceiros, que decidiu a realização das obras no mesmo e escolheu as alterações a serem feitas e que decidiu ainda colocar o mesmo em venda, quando a imprensa portuguesa começou a suscitar suspeitas sobre as suas relações com o Carlos Silva.»

Precisamente depois da divulgação, em Portugal, do estilo de vida alegadamente faustoso que José Sócrates mantinha em Paris, o ex-governante terá decidido não voltar a ocupar o apartamento, alugando duas casas na cidade: uma para Sofia Fava e para o seu filho (onde ficava quando se deslocava à cidade); outra para o filho do socialista Pedro Silva Pereira, também estudante, que vivera durante algum tempo na casa da President Wilson. E como

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pagou José Sócrates as duas rendas? O juiz Carlos Alexandre explica: «[...] transferiu da sua conta na CGD para a conta de Paris, também junto da CGD, a quantia total de 45.000 euros entre Janeiro e Junho de 2014, para o que teve de recorrer a novo financiamento junto da CGD e à mobilização de fundos da poupança da mãe.»

Embora o recurso de José Sócrates para o Tribunal da Relação seja omisso no que respeita à sua vida em Paris, o ex-primeiro-ministro já explicou, em entrevista escrita que concedeu à SIC, alguns detalhes sobre as suas opções: «Em 2011, depois de sair do Governo, aluguei um

apartamento em Paris, onde vivi um ano. Só mais tarde, a partir de meados de 2012, e por cerca de dez meses, habitei num outro apartamento, o táo falado “apartamento de luxo” de que é proprietário o meu amigo Eng. Carlos Santos Silva. Residi aí apenas enquanto não começaram as obras de restauro que ele tinha planeado para recolocar esse apartamento no mercado (como de facto fez, a partir de finais de 2013). Assim, quando as obras começaram (Verão de 2013), saí desse apartamento, tendo a minha família passado a viver num aparthotel, durante cerca de quatro meses (Setembro a Dezembro de 2013). Depois, desde Janeiro de 2014, aluguei um novo apartamento, onde vivi, e viveu também a minha família, ao longo do último ano. No momento em que escrevo, ainda estou a pagar essa renda (sendo que o contrato termina em 31 de Dezembro de 2014) [...]. Toda a tese da investigação sobre as casas de Paris, além de falsa, é um verdadeiro monumento ao absurdo. Vejamos: através do meu amigo, eu teria comprado um apartamento de luxo para morar durante o meu curso em Paris; por razões que a razão desconhece, em vez de escolher um apartamento pronto a habitar, fui logo escolher um apartamento que precisava de obras; e quando terminaram as obras, em vez de ir morar para lá, à grande e à francesa, acabei afinal por ir morar para outro lado, um apartamento mais pequeno que aluguei e tive de pagar! Creio que todos já terão compreendido o óbvio: nada disto faz sequer sentido.»

Também a advogada de Santos Silva é bastante cáustica na crítica ao MP. Para começar, sublinha que o imóvel pertence, de facto, ao seu cliente. Pergunta: «O apartamento não foi pago com fundos de contas do ora recorrente, precisamente com fundos que resultaram da transferência da conta da Suíça ao abrigo do RERT II?» E continua: «Há alguma ilegalidade na cedência para habitação temporária de um amigo? E qual seria o problema se o ora recorrente tivesse efectivamente comprado o apartamento com o único propósito de permitir ao amigo uma habitação condigna enquanto este permanecesse em Paris?».

Paula Lourenço confirma ainda que a casa custou, com as obras entretanto realizadas, cerca de 3,5 milhões de euros, estando à venda por 3,9

milhões. A representante de Carlos Santos Silva conclui que o seu cliente «tem o direito de exigir que o modo como honra as suas amizades e ajuda os seus amigos seja pelo menos respeitado, mesmo que incompreendido, porque o acto de ajudar os amigos não está tipificado como crime na lei portuguesa e os tribunais estão ainda sujeitos ao princípio da legalidade. Só o acto contrário à lei é crime, e ajudar os amigos, com mais ou menos generosidade, não é contrário à lei e é um acto aprovado pela moral.»

Indício n.° 2: a transmissão de fundos através de imóveis

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O MP acusa José Sócrates e Carlos Santos Silva de, em 2011, terem «acordado um esquema» destinado a fazer chegar fundos ao ex-primeiro-ministro sem deixar rasto. Estratégia encontrada: simular vendas de imóveis que se encontravam registados em nome de Maria Adelaide Monteiro, mãe de Sócrates, de modo a que esta, posteriormente, doasse o dinheiro ao ex-primeiro-ministro.

Foram várias as casas que Santos Silva comprou a Maria Adelaide Monteiro. No dia 6 de Junho de 2011, pagou-lhe 100.000 euros por um apartamento situado no Cacém. Um mês depois, mais 75.000 euros por outra casa no mesmo prédio. Detalhe sublinhado pelo MP: 75% do valor das casas foi disponibilizado a Adelaide Monteiro seis meses antes da celebração das escrituras. Os apartamentos nunca foram arrendados pelo empresário, o que, no entender do MP, indicia «que as vendas não tenham sido mais do que pretextos para a colocação de fundos na esfera de José Pinto de Sousa».

A 25 de Setembro de 2012, nova aquisição, desta vez de uma casa na Rua Braamcamp, a troco de 600.000 euros, pagos em três tranches de 200.000. Outro detalhe registado pela acusação: «Subsequentemente ao recebimento das várias prestações de 200.000 euros, uma parte do recebido era, de imediato, transferida para a conta de José Pinto de Sousa [...] onde foram recebidos, entre Junho e Dezembro de 2012, montantes no total de 450.000 euros». Conclusão do juiz de instrução: «O real

beneficiário da venda do imóvel foi José Pinto de Sousa, não existindo um real propósito de alienação do imóvel, mas tão só criar um justificativo para a transferência de fundos para a esfera do primeiro.»

O MP elenca ainda outros imóveis que terão sido pagos pelo dinheiro de José Sócrates, embora estejam em nome de Carlos Santos Silva: um andar na Rua Soeiro Pereira Gomes, adquirido por 662.625 euros; um apartamento na Rua Manuel da Fonseca, comprado por 118.485 euros, e um terreno para construção na Quinta da Beloura, adquirido por

250.0 euros.

O negócio da aquisição de casas não se fica por aqui. Os investigadores detectaram intenções de compra de imobiliário. Para além disso, Sofia Fava, ex-mulher de Sócrates, vendeu um apartamento situado em Lisboa a uma sociedade chamada Gigabeira por 400.000 euros. A Gigabeira tem como sócia a empresa Constrope, que, por sua vez, é participada pela sociedade Taggia xiv, que tem como accionista Santos Silva. O juiz Carlos Alexandre acrescenta: «Verifica-se ainda que o preço pago pela Gigabeira foi muito superior ao preço praticado em outras fracções do mesmo imóvel.»

Outra situação em que Sofia Fava surge como protagonista diz respeito à aquisição do Monte das Margaridas, em Montemor-o-Novo. Escriturada a 3 de Fevereiro de 2012, a propriedade custou 760.000 euros, resultantes de um financiamento do BES que teve como fiador Carlos Santos Silva - o mesmo que posteriormente se responsabilizou até Junho de 2014, através da sua empresa XLM, a pagar uma avença mensal a Sofia Fava com um valor pouco superior ao crédito em questão: 4.650 euros. Depois dessa data tudo mudou - ou melhor, quase tudo. Diz o despacho de Carlos Alexandre: «Tais pagamentos de favor pela XLM prolongaram- -se até

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final de Junho de 2014, data em que, face a notícias vindas a público sobre as investigações pendentes e face a novas formas de transferir fundos para a esfera de José Pinto de Sousa, os mesmos procedimentos se alteraram, chegando a verificar-se algum atraso no pagamento.»

Desde Julho de 2014, o provisionamento da conta de Sofia Fava passou a ser feito a partir da conta de Manuel Falcão Reis, o seu

companheiro. Mas, segundo o MP, quem financiava Manuel Reis era Santos Silva, que continuaria assim a «alimentar» indirectamente a ex-mulher de Sócrates. Conclusão: «Mais uma vez, verifica-se que a aquisição do imóvel Monte das Margaridas é feito à custa de fundos que vêm directamente da esfera de José Pinto de Sousa ou que estão sob o controlo formal de Carlos Silva, mas que na realidade pertencem ao primeiro.»

Em entrevista escrita à TVI, dada a partir da cadeia de Évora, Sócrates não falou sobre todos os negócios imobiliários apontados pela investigação, preferindo centrar-se no que envolveu a venda, pela sua mãe, do apartamento da Rua Braamcamp, de que ele mesmo se terá ocupado. «Em 2011, quando fui viver para Paris, a minha mãe ficou a viver sozinha no prédio da Braancamp. Em 2012, comunicou-me que queria ir viver para outro apartamento que tem em Cascais, onde teria pessoas queridas por perto. Uns tempos depois, eu próprio falei com o Eng. Carlos Santos Silva e contei-lhe da vontade da minha mãe, tendo ele manifestado interesse em comprar o apartamento que iria ficar disponível em Lisboa, desde que o preço fosse razoável. Assim, pediu-se uma avaliação prévia do valor do imóvel, estabeleceu-se o preço, fez-se a escritura e o apartamento mudou de dono - que, julgo eu, o renovou e o alugou em seguida. Do dinheiro da venda, a minha mãe, como é seu direito e é normal entre pais e filhos, fez-me doação dos 75% que podia dar-me em vida (sendo eu filho único, depois do falecimento dos meus dois irmãos). E faço notar o seguinte, que me parece importante: esta venda não aumentou em nada o meu património ou o da minha família. O que se fez foi trocar o imóvel que a minha mãe já tinha pela liquidez correspondente ao seu verdadeiro valor. O património que já estava na família permaneceu na família, agora convertido em liquidez. Uma venda, aliás, é isso mesmo. E foi o que foi feito.» Por isso, o ex-primeiro-ministro acha «espantoso» que o MP afirme que se tratou de uma venda simulada. «Tanto quanto imagino, as vendas verdadeiramente simuladas não se fazem pelo preço de mercado, não obrigam ao abandono do imóvel pelo vendedor e não acabam no aluguer a terceiros pelo novo proprietário! Esta é apenas outra história mal contada por quem conduz esta investigação contra mim.»

Carlos Santos Silva, por sua vez, admite que foram compradas três casas à mãe de José Sócrates, mas sublinha que «a aquisição de imóveis não constitui crime em Portugal. E mesmo que esses imóveis fossem eventualmente da propriedade do co-arguido [Sócrates], também a sua aquisição pelo ora recorrente não constitui qualquer crime».

Carlos Santos Silva vai mais longe no seu recurso para o Tribunal da Relação, ao colocar uma questão prática: «Na presunção do MP e do senhor juiz de instrução, a compra teria sido simulada e o real proprietário seria o co-arguido José Sócrates. Será minimamente razoável que se assim acontecesse não fosse acautelada a propriedade? É que, em caso de morte do ora recorrente [Santos Silva], a única beneficiária desses imóveis, por direito sucessório, seria a sua filha menor! Não seria generosidade a mais?»

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Indício n.° 3: as entregas de dinheiro vivo

José Sócrates pedia «fotocópias» ou «folhas de dossiê» e Carlos Santos Silva fazia-lhe chegar, quase sempre através do motorista João Perna, quantias em numerário maioritariamente destinadas a assegurar a gestão de despesas correntes — as suas, as da família, caso da mãe e da ex-mulher Sofia Fava; e as de um círculo de amizade e de colaboradores.

Os montantes entregues a Sócrates eram muito variáveis. Raramente se situavam abaixo dos 5.000 euros. E frequentemente ultrapassavam os 15.000. No dia 27 de Novembro de 2013, por exemplo, ter-lhe-á sido passada a quantia de cerca de 50.000 euros, levantada no Barclays e destinada a André Figueiredo, seu amigo e ex-chefe de gabinete no PS. O ritmo a que eram feitos os levantamentos e as entregas chegava a ser alucinante. Apenas três dias antes, o ex-primeiro-ministro já tinha recebido 5.000 euros. E, recuando mais três dias, conclui-se que lhe terá sido entregue uma quantia que o MP estima que se situe entre os dez e os 100.000 euros, alegadamente para financiar a compra de milhares de exemplares do seu livro A Confiança no Mundo. Contas feitas, só naquele mês de Novembro de 2013, José Sócrates terá recebido entre 90 e 175.000 euros.

Os «livros» e «fotocópias» serviam para quase tudo: para pagar roupa, salários, rendas, condomínios, viagens - o MP refere, por exemplo, umas férias de José Sócrates na ilha de Formentera, Espanha, em Julho de 2014 - e até presentes de Natal. Para reforçar a sua tese, sublinha que, nos telefonemas em que solicitava o envio de quantias monetárias, o ex-primeiro-ministro não pedia - ordenava. É também por isso que os investigadores acreditam que o dinheiro, na verdade, lhe pertencia.

Os investigadores tiveram inicialmente dificuldade em perceber a linguagem cifrada utilizada por Sócrates e Santos Silva quando se referiam a dinheiro. Carlos Alexandre elenca, no despacho que determinou a prisão preventiva dos dois arguidos, as situações consideradas suspeitas da forma que se segue:

-A 16-09-2013, entrega, através de João Perna, de uma quantia de, pelo menos, 5.000 euros, que José Sócrates mandou depois fazer chegar, em parte, à sua mãe, correspondendo a levantamento por caixa, na mesma data, sobre a conta n.° 210243550006;

-A 20-09-2013, entrega, através de João Perna, de uma quantia de cerca de 10.000 euros, levantada da conta n.° 210243550006, nos dias 17 de 18 de Setembro, precedida de um encontro entre João Perna e Carlos Santos Silva no Hotel Marriott;

-A 27-09-2013, entrega directa por Santos Silva da quantia de

10.0 euros, realizada já ao fim do dia, após solicitação de José Sócrates, que referiu que «precisava de levar alguma coisa», tendo este sido pressionado por ter esgotado o plafond do cartão de crédito e por pedido de Sofia Fava, que nessa data se deslocava para Paris;

-A 04-10-2013, entrega de uma quantia entre 10.000 e 50.000 euros, envolvendo o levantamento deste último montante sobre a conta n.° 155204501183 do Banco Barclays. A entrega foi combinada na véspera e feita por intermédio de André Figueiredo, que se

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encontrou com Carlos Santos Silva a pedido de Sócrates, que utilizou a expressão «ir buscar um livro»;

-A 09-10-2013, entrega de uma quantia entre 10.000 e 100.000 euros, envolvendo o levantamento deste último montante no Banco Barclays, conta n.° 155204501183. Combinada entre Maria João [ex-secretária de José Sócrates no PS] e Santos Silva, na ausência no estrangeiro do ex-primeiro-ministro, a entrega foi destinada à aquisição de exemplares do livro publicado por José Sócrates;

-A 21-10-2013, entrega de uma quantia de, pelo menos, 4.000 euros, a pedido de Sócrates, que diz que «precisava» e que «pode ser amanhã», sendo certo que, no próprio dia, Santos Silva procede a um levantamento em numerário de 10.000 euros sobre a conta n.° 210243550006 do BES, e outro de 50.000 euros sobre a conta Barclays n.° 155204501183, tendo mesmo, neste caso, o banco feito a entrega da quantia nas instalações das sociedades de Carlos Santos Silva;

-A 31-10-2013, entrega de uma quantia entre 5.000 e 10.000 euros, a pedido do ex-primeiro-ministro, na sequência de este se ver confrontado com contas por pagar e não dispor de saldo disponível. Nesta data, Santos Silva encontra-se no estrangeiro, sendo contactado telefonicamente por Sócrates, que diz que está com «necessidade», pretendendo uma entrega «igual à anterior». Como está fora do País, Santos Silva procura contactar a sua mulher, Inês do Rosário, para que esta obtenha o dinheiro e faça a entrega do que diz serem «fotocópias». Neste caso é Inês quem faz a entrega, deslocando-se a casa de Sócrates. Diz Carlos Alexandre: «Como alguns dos pagamentos devidos deveriam ser feitos por transferência bancária e o José Pinto de Sousa não queria depositar numerário na sua conta CGD, para evitar suspeitas e ter que dar justificações, acabou por ordenar a mobilização de fundos da conta da mãe, no montante de 10.000 euros, na data de 01-11- -2013»;

- A 6-11-2013, entrega de uma quantia entre 5.000 e 10.000 euros, solicitada por José Sócrates, que pede a Santos Silva para lhe levar «aquilo», o que este último faz pessoalmente, deslocando-se a casa

do primeiro. Depois da entrega José Sócrates procede à distribuição de fundos por várias pessoas, designadamente pela sua funcionária, Maria João, e pela mãe, que lhe confirma ter recebido 5.200 euros. Apesar deste recebimento, dadas as despesas com o pagamento do IMI, com a viatura e com os filhos, Sócrates tem nesta fase que recorrer a um financiamento da CGD, com o objectivo de o pagar com o recebimento de um bónus anual que então esperava receber da Octa- farma [empresa em que desempenhara funções de consultor];

A 08-11-2013, entrega de uma quantia de cerca de 10.000 euros, levantados nesse mesmo dia da conta do BES e entregues a Santos Silva em casa do amigo, tendo de seguida jantado juntos. Neste período, Sócrates estava apostado numa campanha para aquisição massiva do seu próprio livro, para o que precisava de dispor de numerário;

A 11-11-2013, entrega de uma quantia entre 10.000 e 100.000 euros, na sequência de levantamentos realizados por Santos Silva junto do Barclays, de 100.000 euros, e junto do então BES, de

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10.0 euros, seguindo-se um encontro com José Sócrates, ainda no âmbito da estratégia de compra dos seus próprios livros;

A 18-11-2013, entrega de uma quantia de cerca de 5.000 euros, realizada por Santos Silva a João Perna, aparentemente destinada ao pagamento de despesas do patrão;

A 27-11-2013, entrega de uma quantia de cerca de 50.000 euros, levantada do Barclays, tendo sido pedida por Sócrates, que fala em «dar aquela coisa ao seu amigo», numa alusão a que a entrega era para ser feita a André Figueiredo [seu ex-chefe de gabinete no PS]. Como Carlos Santos Silva está fora do País, encarrega da entrega Inês do Rosário, que acaba por se encontrar pessoalmente com Sócrates;

A 5-12-2013, entrega de uma quantia de cerca de 10.000 euros, na sequência de solicitações com origem em Manuel Falcão Reis, actual companheiro de Sofia Fava, tendo José Sócrates contactado Santos Silva, que diz que «vai tirar o resto das fotocópias»;

- A 10-12-2013, entrega de uma quantia entre 5.000 e 50.000 euros, na sequência de solicitação, na véspera, de Sócrates, que utiliza a expressão «precisava», respondendo Santos Silva com o recurso à expressão «fotocópias». O dinheiro é depois, em parte, utilizado pelo socialista para fazer uma entrega de 4.000 euros a Manuel Falcão Reis, no sentido de este o remeter a Sofia Fava, que estava em Paris;

-A 20-12-2013, entrega de cerca de 10.000 euros, solicitada por Sócrates, ainda relacionada com a campanha de compra de exemplares do seu livro. André Figueiredo encontra-se com Santos Silva para receber o numerário;

- A 23-12-2013, entrega de 3.000 euros, a pedido de Sócrates, com o fim de adquirir telemóveis para oferecer no Natal, sendo a entrega feita por Santos Silva a João Perna, que fica encarregado da compra dos aparelhos e que admitiu perante terceiros ter ido buscar «guito» para comprar os presentes a pedido de José Pinto de Sousa;

- A 03-01-2014, entrega de 10.000 euros, realizada após um período em que José Sócrates e Santos Silva passaram férias juntos, em Cabo Verde, sendo o dinheiro entregue a João Perna, que se desloca aos escritórios de Santos Silva, destinando-se parte do numerário a pagar uma compensação a Maria João;

- A 01-02-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, na sequência de um pedido de Sócrates, que utiliza a expressão «precisava de» e pede um encontro com Santos Silva, apesar de este acabar de chegar do Brasil. Destino do dinheiro: pagar o complemento de vencimento a Maria João e fazer uma entrega a Célia Tavares;

- A 19-02-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, realizada em casa de José Sócrates, onde se deslocou Santos Silva. Objectivo: pagar despesas, designadamente as que se relacionam com o seu carro;

- A 02-04-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, realizada pessoalmente por Santos Silva, na sequência de encontros com Sócrates, numa altura em que este tinha diversas solicitações de pagamento

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pendentes, quer a Maria João, quer à Top Atlantic, quer relativos às despesas de alojamento em Paris, não dispondo de disponibilidade financeira na sua conta bancária;

- A 04-04-2014, entrega de cerca de 10.000 euros a pedido de Sócrates, que usa a expressão «aquela outra coisa», quando contacta com Santos Silva. O dinheiro terá sido arranjado em tempo recorde, através de Inês do Rosário e de Gonçalo Ferreira;

-A 13-4-2014, entrega de cerca de 5.000 euros, a pedido do socialista, que, vendo aproximar-se uma deslocação a Paris, contacta Santos Silva a pedir que lhe leve «alguma coisa». A entrega foi feita num restaurante pelo próprio amigo;

-A 17-4-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, a pedido de Sócrates, que pergunta por «alguma coisa daquelas» quando interpela Santos Silva, que, por sua vez, pede a colaboração da mulher para a obtenção e guarda do numerário, que trata como «aquela coisa»;

-A 12-5-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, a pedido de José Sócrates, por Santos Silva. Entre eles fazem referências a «documentos» e «fotocópias», sendo a entrega feita por encontro entre Inês do Rosário e João Perna, ficando depois este último encarregado de distribuir dinheiro por terceiros, casos de Célia Tavares e de Lígia Correia;

-A 24-5-2014, entrega de cerca de 5.000 euros, a pedido de José Sócrates, que diz uma frase enigmática a Carlos Santos Silva: «Se puderes trazer também um bocadinho, não é nada de especial, daquela coisa que gosto muito.» Encontram-se na casa do ex-primeiro-ministro nesse mesmo dia;

-A 28-5-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, combinada na véspera entre Santos Silva e Sócrates. O primeiro diz que já tem «aquela coisa» desde ontem, reportando-se ao dia 26 de Maio, em que tinha levantado 10.000 euros. O encontro entre os dois ocorre a 28 de Maio;

- A 30-05-2014, entrega de 10.000 euros, por ocasião da deslocação de Sócrates a Paris, com o levantamento dos fundos a ser feito por Inês do Rosário e por Gonçalo Ferreira, seguido da entrega dos

mesmos a João Perna, que vai buscar José Sócrates para o levar ao aeroporto e lhe entregar o dinheiro. O montante destina-se às despesas de Sofia Fava em Paris, que, quando pediu o dinheiro, o denominou «livros do duda». Depois disso, Sócrates referiu-se ao mesmo como sendo um «dossiê»;

-A 5-6-2014, entrega de 10.000 euros, a pedido de José Sócrates, que se encontra no Algarve, de onde solicita a Santos Silva a entrega «daquilo». O dinheiro é levantado no próprio dia e é Inês do Rosário quem o entrega a João Perna, para este o levar ao Algarve;

- A 18-06-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, a pedido de Sócrates, numa ocasião em que Santos Silva e a mulher estão no estrangeiro, sendo Gonçalo Ferreira quem faz a entrega de «uma coisa daquelas»;

- A 30-6-2014, entrega de uma quantia de cerca de 5.000 euros, a solicitação do socialista, que pede a Santos Silva «um bocadinho daquilo», visando satisfazer vários encargos: IMI, pagamento do salário a Maria João e entregas a terceiros;

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- A 7-7-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, a pedido de Sócrates, numa altura em que Santos Silva está no estrangeiro, pelo que é pedido que «deixe alguma coisa à Inês», destinando-se o mesmo dinheiro a suportar despesas de uma deslocação do ex-primeiro-ministro para um período de férias numa vivenda em Formentera, Espanha, com início a 8 de Julho. Inês procede à entrega do dinheiro a João Perna, que dá parte dele a Sócrates. Com o restante, faz um depósito de 2.000 euros na sua própria conta (a 0803/0059333/700, na CGD) e, no dia 8 de Julho, transfere os mesmos 2.000 euros para a conta de Sócrates na CGD;

-A 11-07-2014, entrega de 5.000 euros, a pedido de José Sócrates, que se encontra em Formentera, destinando-se o dinheiro a ser entregue em Portugal a João Perna. Sócrates pede a entrega de «metade das fotocópias» da última vez. Carlos utiliza parte do dinheiro que já tinha levantado para si, uma vez que se iria também deslocar, nesse dia, para Formentera. João Perna confirma a

Sócrates a recepção do dinheiro, mas fala primeiro com Fernanda Câncio, a namorada do ex-primeiro-ministro, dando-lhe um recado sobre «documentos entregues». Quando sabe do diálogo com Câncio, Sócrates censura o funcionário;

- A 05-08-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, após reunião entre Santos Silva e José Sócrates, Picando encarregado da entrega Gonçalo Ferreira;

-A 18-08-2014, entrega de uma quantia de cerca de 5.000 euros, por ocasião de um encontro entre Santos Silva e Sócrates. No dia seguinte, o socialista faz chegar 4.000 euros à mãe através de uma empregada apresentada no processo apenas por «Rita»;

-A 22-08-2014, entrega de 5.000 euros, a pedido de Sócrates, que pede a Santos Silva: «Tens de me trazer também»;

- A 10-10-2014, entrega de cerca de 10.000 euros, na sequência de contactos entre Santos Silva e José Sócrates, tendo o primeiro referido, na véspera, que só poderia encontrar-se no dia seguinte. Encontram-se pessoalmente e é nessa altura que Santos Silva passa o dinheiro vivo ao amigo;

- A 29-10-2014, entrega de cerca de 5.000 euros, por insistência de Sócrates junto de Santos Silva, falando ambos da entrega de «livros»;

- A 03-11-2014, entrega de cerca de 5.000 euros, a pedido de Sócrates, mais uma vez sujeito a diversas pressões para realizar pagamentos e após constatar não ter dinheiro no banco.

O que Rosário Teixeira e Carlos Alexandre consideravam indícios seguros de branqueamento de capitais, Sócrates classificou, em entrevista dada à TVI a partir da cadeia, de «empréstimos» de um amigo numa fase em que atravessava problemas financeiros. «Confirmo, sem qualquer problema, que face a algumas dificuldades de liquidez que atravessei em certos momentos, sobretudo desde que tive parte da minha família em Paris e eu próprio vivi entre Lisboa e aquela cidade, recorri várias vezes a empréstimos que o meu amigo Carlos Santos Silva me concedeu para pagar despesas diversas. Mas, sinceramente, não me

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parece que pedir dinheiro emprestado a um amigo seja crime, nem aqui nem em nenhuma parte do mundo! Sempre foi, como continua a ser, minha intenção pagar-lhe o que for devido, apesar da informalidade da nossa relação e da grande amizade pessoal que nos une desde há muitos anos. É um assunto que resolverei com ele e que só a nós diz respeito [...]. Para o caso, o que importa deixar claro é que o facto de o Eng. Carlos Santos Silva me ter emprestado dinheiro, muito ou pouco, não transforma o dinheiro dele em dinheiro meu! Isso, convenhamos, é um completo disparate! Acontece que o Eng. Carlos Santos Silva detém, como é sabido, meios próprios de fortuna pessoal fruto da sua diversificada actividade empresarial em vários países do mundo. E, sendo meu amigo, esteve disponível para me ajudar quando eu precisei. Estou-lhe grato por isso. Mas não deixarei de lhe pagar! A afirmação de que o dinheiro dele é meu é simplesmente absurda e não tem qualquer fundamento.»

Na sua contestação à prisão preventiva, Carlos Santos Silva não deixa cair o amigo, ao admitir que, de facto, «emprestou» mais de meio milhão de euros a José Sócrates entre o segundo semestre de 2011 e Novembro de 2014. «O ora recorrente admite ter entregado ao Eng. José Sócrates, por via directa e indirecta, ou seja, por depósitos na conta de João Perna ou em numerário, a quantia total de cerca de 550.000 euros, segundo recorda de memória, pois todos os seus últimos apontamentos e elementos a propósito foram apreendidos.»

Mais uma vez, Carlos Santos Silva sublinha que a amizade não é crime. Também o tom impositivo alegadamente utilizado por Sócrates nos telefonemas não fica de fora da argumentação da representante do empresário: «Foi pelo arguido dito e redito ser grande amigo do José, desde a juventude. Estranho seria que assim sendo o José sempre que precisasse da ajuda do amigo tivesse de lho pedir cerimoniosamente», escreve, para concluir: «Nem é de estranhar que ambos quisessem manter uma razoável discrição e reserva, atento o estatuto social do co-arguido Eng. José Sócrates, que naturalmente desejava evitar especulações na comunicação social de que o amigo o ajudava a manter um certo estilo de vida.»

Indício n.° 4: a compra em massa dos seus próprios livros

Carlos Alexandre é taxativo: «Em Outubro de 2013, José Pinto de Sousa lançou, através da editora Babel, um livro sob o título A Confiança no Mundo. De forma a garantir o sucesso de vendas da mesma publicação [...] angariou uma rede de colaboradores destinada a realizar aquisições de exemplares do mesmo livro em diferentes pontos do País, aos quais passou a fazer entrega de fundos, a fim de realizarem as referidas aquisições.»

As pessoas que terão participado neste «esquema», como o define o MP, têm nome: André Figueiredo, Renato Sampaio, João Perna, Gonçalo Ferreira, Carlos Martins, Inês do Rosário, Rui Mão de Ferro e Maria Lígia Correia. A peça central seria mais uma vez Carlos Santos Silva. Terá sido o empresário a disponibilizar aos elementos desta rede um montante de cerca de 170.000 euros para a aquisição de perto de 10 mil exemplares. O resultado foi o esperado: A Confiança no Mundo — livro apresentado no Museu da Electricidade, em Lisboa, pelo ex-Presidente brasileiro Lula da Silva e por Mário Soares com grande pompa e circunstância - transformou-se num fenómeno de vendas e esteve várias semanas no primeiro lugar do top de não ficção das livrarias, ultrapassando mesmo fenómenos de vendas na área da ficção como Miguel Sousa Tavares ou Margarida Rebelo Pinto.

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Nas escutas telefónicas feitas pela investigação verificou-se que, a dada altura, os alegados «emissários» de José Sócrates começaram a utilizar alguns expedientes para «não atrair as atenções» dos empregados dos pontos de venda, optando por adquirir exemplares em locais com pontos de pagamento automático, como supermercados e lojas da Fnac.

Só em nome da companheira de João Perna foram feitas nove aquisições, num total de 134 livros - ou seja, uma média de 14 livros por visita. Também Gonçalo Trindade Ferreira, advogado de Santos Silva e igualmente arguido no processo, admitiu, no interrogatório do MP, ter adquirido 20 a 50 livros - os investigadores viriam a apurar que foram muitos

mais: a última contagem ficou-se pelos 1.916 exemplares, correspondentes a um investimento superior a 20.000 euros.

Outra pessoa que o MP envolve no negócio é Inês do Rosário. A função da companheira de Carlos Santos Silva seria a entrega de dinheiro vivo quer a José Sócrates - que, ao contrário dos restantes envolvidos, afirmou desconhecer este «esquema» -, quer a outros elementos.

A rede — que, de acordo com o MP, terá sido financiada com dinheiro que, na realidade, seria de José Sócrates - possuía ramificações em vários pontos do País. No Porto, por exemplo, terá sido Renato Sampaio, deputado, ex-líder do PS local e grande amigo de Sócrates a encarregar-se das compras. Na Covilhã, esse papel coube a Carlos Martins, amigo de juventude, vice-presidente da Câmara Municipal da Covilhã e homem- -forte do aparelho socialista no distrito. Em Lisboa, André Figueiredo é apontado pelo MP como um dos envolvidos. A fechar a lista estão Rui Mão de Ferro, gestor e sócio de Carlos Santos Silva, e uma funcionária do PS, Maria Lígia Correia.

Na sua contestação, Carlos Santos Silva admitiu o envolvimento no «esquema», mas não se desviou um milímetro em relação à que tem sido a sua argumentação: «Foi verdade, mas ao que o recorrente julga saber não constitui crime algum. É verdade que quis suportar a aquisição do livro do José, que quis promover o seu amigo. É censurável? Talvez. É crime? Não, não é crime.»

Indício n.° 5: a utilização da conta do motorista João Perna para a circulação do dinheiro

Entre Agosto de 2011 e Julho de 2014, o motorista de José Sócrates recebeu na sua conta da CGD uma média de 1.200 euros por mês, uma parte dos quais não declarados ao fisco. Mas não foram os salários de João Perna que inquietaram o procurador Rosário Teixeira e o juiz Carlos Alexandre: foi o facto de alegadamente a mesma conta ter servido,

durante esse período, para supostamente fazer transitar dinheiro de Carlos Santos Silva para José Sócrates.

O sistema seria simples: para não entregar directamente dinheiro ao seu amigo, Santos Silva transferia regularmente quantias avultadas para a conta de João Perna, que depois as utilizava para financiar o patrão. Quando confirma a medida de coacção de prisão preventiva, o juiz Carlos Alexandre enumera da forma que se segue as ocasiões em que tal aconteceu.

1 - Outubro de 2011

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No dia 13, foi depositado na conta de João Perna um cheque emitido por Carlos Santos Silva sobre a sua conta no então BES n.° 210243550006, no montante de 40.000 euros. De seguida, João Perna procedeu ao levantamento de uma quantia de 2.484 euros e emitiu dois cheques, um destinado à Servilusa, no montante de 27.315.73 euros, e outro destinado à Emergência Médica Internacional, no montante de 9.800 euros.

As duas despesas reportam-se a acontecimentos relacionados com familiares de José Sócrates, mais propriamente com o seu irmão António José Sócrates, falecido em Agosto de 2011 e previamente deslocado para um hospital na Corunha, em Espanha. Segundo Carlos Alexandre, estão em causa pagamentos relacionados com despesas médicas e de funeral do irmão de Sócrates, que à data não possuía fundos disponíveis para proceder aos pagamentos.

2 -Ainda em Outubro de 2011

A mesma conta da CGD de João Perna volta a receber um depósito de 25.000 euros com origem em Carlos Santos Silva, da mesma conta BES 210243550006. Aquele montante é utilizado para:

- Levantamento em numerário de 2.823 euros

- Pagamento por cheque do condomínio da Heron Castilho, no montante de 6.255 euros

- Pagamentos à Top Atlântico e àTop Partner, no montante de 15.368

euros

Conclui Carlos Alexandre: «Mostra-se evidente que as viagens pagas foram realizadas por José Pinto de Sousa, sendo aliás confirmado que, mesmo em datas posteriores, continuou a ser João Perna a tratar dos pagamentos de viagens à Top Tours.»

3 - Março de 2012

No dia 21, João Perna deposita na mesma conta a quantia de 3.500 euros em numerário. Cinco dias depois, emite dois cheques destinados ao pagamento do condomínio do edifício Heron Castilho, num total de 3.389 euros. Mais uma vez, afirma Carlos Alexandre, «estaremos perante despesas realizadas no interesse de José Sócrates, que não dispunha na altura de fundos suficientes na sua conta da CGD para as respeitar.»

4 - Maio de 2012

No dia 2, João Perna volta a depositar 7.500 euros em numerário na sua conta da CGD, uma quantia que foi praticamente na totalidade destinada ao pagamento de guias emitidas pelo tribunal, pelo que, conclui o juiz, se «indicia ser uma despesa imputável a José Pinto de Sousa».

5 -Ainda em Maio de 2012

No dia 3, João Perna deposita novo cheque de 7.500 euros, com origem na conta BES n.° 210243550006, de Carlos Santos Silva. Uma vez mais se verifica que, a 8 de Maio, a maior parte desse montante foi mobilizada para o pagamento de facturas àTop Atlântico - ou seja,

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mais uma despesa paga por João Perna no interesse de José Sócrates, que não dispunha de fundos na sua conta para a suportar, «mobilizando fundos da sua conta oculta» e utilizando a conta de João Perna como «passagem e ocultação».

6 - Ainda em Maio de 2012

No dia 10, João Perna deposita novo cheque, este de 15.000 euros, com origem na conta BES n.° 210243550006, de Carlos Santos Silva.

O valor é mobilizado para emitir novo cheque em nome de João Perna, que o deposita posteriormente na conta de Sócrates na CGD.

7 - Junho de 2012

José Sócrates transfere da sua conta da CGD para a de João Perna a quantia de 13.000 euros, no dia 22. O montante é utilizado por João Perna para efectuar levantamentos em numerário e para realizar pagamentos àTop Partner e ao condomínio do edifício Heron Castilho, onde Sócrates possuía um apartamento.

8 - Agosto de 2012

Mais um depósito de José Sócrates na conta de Perna. Valor: 12.000 euros. Finalidade: pagar viagens e condomínios do ex-primeiro-ministro.

9 - Novembro de 2012

Outro reforço de Sócrates na conta do seu motorista, este no valor de

10.0 euros, para utilizar nos mesmos fins.

10 - Março de 2013

Nos dias 16 e 18, são realizados depósitos em numerário na conta de João Perna no total de 7.060 euros. Perna paga novamente à Top Partner o condomínio da casa de Sócrates.

11 - Entre Abril e Junho de 2013

A 8 de Abril e a 3 de Junho verificam-se novas transferências da conta de Sócrates para João Perna, no valor de 4.000 e 3.000 euros. Destino: despesas correntes.

12 - Agosto de 2013

No dia 4 é depositado, em numerário, o montante de 1.200 euros, quantia que foi utilizada por João Perna no dia 26 para pagar o condomínio da Heron Castilho.

13 - Novembro de 2013

Novo depósito, de 1.330 euros; novo pagamento de condomínio.

14 - Janeiro de 2014

No dia 16, há uma nova transferência de Sócrates para Perna. Valor

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4.0 euros. Foi posteriormente levantado em numerário.

14 - Maio de 2014

No dia 29, há um depósito de 1.180 euros na conta de João Perna, proveniente da conta de Carlos Santos Silva. Objectivo: pagamento de condomínio.

15 - Junho de 2014

Nos dias 9 e 10 são realizados na conta do motorista dois depósitos que, na sua totalidade, atingiram o valor de 6.050 euros. O valor é gasto no pagamento de despesas dentárias de familiares de José Sócrates na Clínica Maló.

16 - Julho de 2014

No dia 8, verificam-se dois depósitos na conta de Perna, no total de

2.0 euros, que foram transferidos no mesmo dia para a conta de Sócrates na CGD. «Este procedimento revela que José Pinto de Sousa precisava de aumentar o saldo da sua conta para fazer face aos seus encargos fixos, por débito nessa conta, tanto mais que se iria ausentar para um curto período de férias em Formentera, e ainda que José Pinto de Sousa tinha o cuidado de não depositar numerário na sua conta, uma vez que já sabia que tal tipo de operações poderia atrair suspeitas por parte do banco», sublinha Carlos Alexandre.

17 - Ainda em Julho de 2014

No dia 31, Sócrates faz uma transferência de 2.500 euros para João Perna num contexto em que, refere Carlos Alexandre, «após notícias

saídas na comunicação social, precisa de dinheiro para as despesas correntes e não possui forma de o levantar, sendo, ao mesmo tempo, pressionado para pagar o complemento de vencimento da Maria João (1.000 euros) e despesas realizadas pela mesma (467 euros).»

Na contestação à prisão preventiva, o advogado de Sócrates, João Araújo, não gasta com este assunto uma linha das 75 páginas do documento. Quanto a Paula Lourenço, limita-se a registar a sua surpresa perante as suspeitas do MP e do juiz de instrução: «Não se percebe a estranheza. Trata-se de quantias irrelevantes (que só têm um valor expressivo porque se referem a vários anos) e justificadas precisamente porque o Eng. José Sócrates estava frequentemente ausente do País, em França, e o recorrente tinha acordado com ele a disponibilização desses fundos para suportar esse tipo de despesas.»

Indício n.° 6: os pagamentos à amiga misteriosa da Suíça

Sandra Santos é a personagem-mistério do processo. Vive na Suíça, é apresentada como sendo uma pessoa «do relacionamento pessoal» de José Sócrates, mas nunca se clarifica que tipo de relação mantêm. São amigos? São namorados? São o quê, exactamente? Sabe-se apenas que Sandra Santos se deslocou várias vezes a Portugal, que terá passado férias com o ex-primeiro-ministro e que este, na óptica do MP, a financiava, tendo-lhe feito chegar, através de Carlos Santos Silva, 92.750 euros entre Abril de 2008 e Julho de 2014.

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Carlos Alexandre sublinha que, quando se deslocava a Lisboa, Sandra Santos acompanhava José Sócrates. «(...] Entre o final de Abril e o início de Maio, estando Sandra em Portugal, esta volta a contactar directamente o Carlos, que tinha estado ausente do País, para lhe pedir dinheiro, sendo evidente que com quem estava, no dia-a-dia, era com José Pinto de Sousa». E descreve as movimentações de dinheiro realizadas em favor da amiga, que trata apenas por «Sandra»:

1 - No ano de 2008, foram identificadas duas transferências a partir das contas de Carlos Santos Silva, conta BES n.° 2101243550006 e conta Barclays n.° 116200532572, no montante total de 4.000 euros, dirigidas a uma conta na Suíça;

2 - No ano de 2009, foram identificadas duas transferências a partir da mesma conta BES n.° 2101243550006 para a conta de Sandra no total de 5.000 euros;

3 - No ano de 2010, foram identificadas nove transferências a partir da conta BES n.° 210243550006 para a conta de Sandra no total de 17.500 euros;

4 - No ano de 2011, foram identificadas nove transferências a partir da conta BES n.° 210243550006 para a conta de Sandra no total de 17.500 euros;

5 - No ano de 2012, foram identificadas cinco transferências a partir da conta BES n.° 210243550006 para a conta de Sandra no total de 9.000 euros;

6 - No ano de 2013, foram identificadas onze transferências a partir da conta BES n.° 210243550006 para a conta de Sandra no total de 25.500 euros. Ainda neste ano, já em Novembro, constata-se que José Sócrates, sendo abordado telefonicamente por Sandra, que está na Suíça e que lhe pede 3.000 euros, lhe responde que «o nosso amigo vai-te mandar como habitualmente». Já em Dezembro de 2013, após Sandra ter acordado com José Sócrates a deslocação da primeira a Lisboa, verifica-se que é Santos Silva quem trata da viagem e do seu pagamento;

7 - No ano de 2014, até Julho, foram identificadas sete transferências a partir da conta BES n.° 210243550006 para a conta de Sandra no total de 20.500 euros. Em Janeiro, dia 18, Sandra faz o primeiro pedido, que é dirigido a José Sócrates e que Carlos Santos Silva satisfaz uns dias depois.

Já em Março de 2014, Sandra pede directamente a Carlos Santos Silva um apoio financeiro de 1.000 euros, que este satisfaz, na mesma data em

que José Sócrates combina a deslocação de Sandra a Portugal. O mesmo ocorre em Abril de 2014, com a amiga a acertar datas de deslocação com José Sócrates e a pedir o dinheiro e a viagem a Carlos Santos Silva.

O mesmo circuito de comunicações repete-se no final de Maio, com Sandra a pedir um apoio adicional de 3.000 euros, que chega a ser complementado por um envio de 250 euros via Western Union. Em Junho ocorre novo envio de 250 euros via Western Union, expedido por Gonçalo Ferreira a pedido de Carlos Santos Silva. No dia 14 de Julho de 2014, este faz nova transferência para Sandra, no montante de 3.800 euros.

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À imagem do que acontece com a maioria das situações elencadas pelo MP e pelo juiz de instrução, João Araújo também não se pronuncia directamente sobre Sandra Santos. E, ao contrário do que se verifica relativamente a quase todas as suspeitas do MP, a advogada Paula Lourenço é telegráfica no comentário ao caso Sandra Santos: «É crime? Não, não é crime.»

Indício n.° 7: os gastos milionários em viagens

José Sócrates viajava. Muito. Em trabalho e em lazer. E quem pagava? Formalmente era Carlos Santos Silva, mas na verdade, acredita o MP, era o próprio, tendo em conta que o dinheiro seria seu. Os dois amigos fizeram vários períodos de férias em conjunto. Segundo os investigadores, era Sócrates quem normalmente escolhia os destinos.

Em Dezembro de 2013, por exemplo, foram a Cabo Verde. E, em Julho de 2014, deslocaram-se à ilha de Formentera, onde arrendaram duas villas: uma para Santos Silva e outra para José Sócrates e Fernanda Câncio, a jornalista do Diário de Notícias que então seria sua namorada. Custo total do aluguer das moradias durante 11 dias: 18.000 euros, suportados por Santos Silva. Na sua contestação, Paula Lourenço limita- -se a escrever o mesmo que redigira a propósito de outras imputações: «É crime? Não constitui qualquer ilícito, tenha sido ou não aquele [José Sócrates] a escolher ou sugerir o destino das viagens.»

Indício n.° 8: a simulação de uma segunda remuneração

A partir do início de 2013, José Sócrates arranjou emprego como consultor do laboratório suíço Octapharma, cujo responsável máximo para Portugal é Paulo Lalanda e Castro, seu amigo pessoal. A troco de um salário mensal de 12.500 euros, o ex-primeiro-ministro dedicou-se à «facilitação» - o termo é do juiz Carlos Alexandre - de negócios em mercados como a Venezuela, a Argélia ou o Brasil. Problema: ao longo de 2013, Sócrates terá constatado que precisava de uma nova fonte de rendimento «legal», que lhe permitisse «diminuir os riscos das constantes entregas» em dinheiro vivo por parte de Santos Silva. Terá sido então que ambos arquitectaram, juntamente com Lalanda e Castro, um «esquema» para fazer chegar a Sócrates mais 12.500 euros mensais. Isso terá sido conseguido através da assinatura de um contrato de prestação de serviços de Sócrates à empresa Dynamicspharma, que tem Lalanda e Castro como único administrador. Até Novembro de 2014, quando foi detido preventivamente, Sócrates terá recebido cerca de 250.000 euros provenientes de Lalanda e Castro. Este, por sua vez, seria compensado a partir das contas associadas a Santos Silva. Ou seja: o contrato entre Sócrates e a Dynamicspharma não passaria de uma fachada criada para fazer chegar discretamente dinheiro ao ex-primeiro-ministro.

O ex-patrão de José Sócrates, que numa primeira fase ficou de fora do processo, acabou também constituído arguido, estando indiciado por fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. Durante a audição no MP, Lalanda e Castro reafirmou que as relações com o consultor José Sócrates «sempre se nortearam pela legalidade e regularidade administrativa e fiscal», garantiu o seu advogado, Ricardo Sá Fernandes, que sublinhou a existência de vários «equívocos» relativamente à alegada participação do seu cliente no caso. Lalanda e Castro, lembrou Sá Fernandes, relacionou-se pessoalmente com José Sócrates a partir de meados de 2012, «quando o conheceu em Paris, cidade onde ambos tinham morada», não tendo tido

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antes qualquer relacionamento com ele. Terá sido nesse contexto que entendeu que a contratação de José Sócrates

como consultor de empresas poderia «constituir uma mais-valia muito relevante em actividades económicas a desenvolver fora de Portugal». E daí terá nascido «uma relação de prestação de serviços», primeiro com a Octapharma AG, em 2013, e depois com a Dynamicspharma, em meados de 2014.

Indício n.° 9: os investimentos imobiliários

José Sócrates quereria muito comprar uma casa em Tavira e tê-lo-á feito sentir a Carlos Santos Silva, a quem terá dito em várias ocasiões para este ver uma propriedade que o ex-governante identificara. Decidido a avançar para a aquisição, o ex-primeiro-ministro terá contactado a agente imobiliária e feito uma oferta em seu nome e no de Carlos Santos Silva: 900.000 euros. E terá ainda afirmado a sua «disponibilidade imediata» para o pagamento da quantia.

Para o MP, o comportamento de Sócrates revela a sua «efectiva disponibilidade dos fundos que se encontram em nome de Carlos Santos Silva, uma vez que assume que uma parte da futura propriedade, caso fosse adquirida, sempre seria da sua titularidade». Mas uma vez mais o argumento da amizade vem à tona nas alegações de Paula Lourenço, que, depois de negar que tenha sido adquirido qualquer imóvel em conjunto, afirma: «Mesmo que algum dia o tivessem planeado, tal não seria crime. [...] Não será um facto normal e corrente entre amigos?»

Indício n.° 10: os milhões do futebol

O MP acredita que José Sócrates participou num negócio de compra dos direitos televisivos da liga espanhola de futebol, juntamente com Carlos Santos Silva. Na resposta dos procuradores ao recurso que o ex-primeiro-ministro apresentou no Tribunal da Relação para contestar a prisão preventiva, é referido que a sua parte do investimento seria feita com o

dinheiro que, sendo seu, estava depositado nas contas do amigo. De acordo com a investigação, o negócio terá rendido perto de 2,7 milhões de euros, dinheiro que também acabou depositado em contas de Carlos Santos Silva.

Corrupção: o crime mais difícil de provar

O Grupo Lena ganhou mais de 200 milhões de euros em obras públicas entre 2007 e 2010. E premiou Santos Silva com muitos milhões que acabaram escondidos na Suíça, os mesmos que o MP diz que são de José Sócrates. Esta é a tese das autoridades sobre o crime de corrupção, que as defesas do empresário e do ex-primeiro-ministro rejeitam por completo. Garantem que nunca foram sequer confrontadas com actos concretos desse crime, quer nos interrogatórios, quer no conteúdo da decisão judicial do Tribunal Central de Instrução Criminal (TCIC) que pôs em prisão preventiva os dois principais suspeitos da Operação Marquês. De facto, na contestação feita ao recurso de Santos Silva para o Tribunal da Relação de Lisboa sobre a aplicação da prisão preventiva, o MP reconhece que ainda há dados por apurar: «Não dispunha a investigação, na data dos interrogatórios, de informação sobre os actos concretos de adjudicação, vantajosos para o dito Grupo Lena, que tenham sido venalmente decididos,

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mas foi possível identificar e quantificar a sua existência no global, sendo imputada a realização de obra para o Estado, no referido período de 2007 a 2010 [quando Sócrates era primeiro-ministro, superior a 200 milhões de euros.»

Logo após os interrogatórios do ano passado no TCIC, o advogado João Araújo deixou expresso na acta judicial que o crime de corrupção tinha sido «alimentado a oxigénio» pela investigação para não provocar a derrocada do processo. E sublinhou que o seu cliente não tinha sido «confrontado com qualquer facto que pudesse indiciar com razoabilidade mínima a prática de um crime de corrupção (activa?, passiva?, outra coisa qualquer?, quando?, para quê?, com que vantagem?)». Conclusão: «Ora,

este crime de corrupção é absolutamente indispensável à história em que assenta esta imputação, porque sem a corrupção, e à falta do tráfico [de influências], desaparecido sem combate, inexiste a origem ilícita dos fundos, não há branqueamento [de capitais].» A advogada Paula Lourenço alinhou pelo mesmo diapasão: «Ao arguido Santos Silva não foi exibido um único documento, uma única intercepção telefónica ou qualquer outro meio de prova referente à prática do crime de corrupção [...] absolutamente nada.»

Os argumentos das defesas de Sócrates e Santos Silva não convenceram o juiz de instrução Carlos Alexandre, que validou a indiciação por corrupção. «É um facto que a investigação ainda não está concluída e que a cooperação internacional é um substrato fundamental nesta rede, mas dizer-se que não há quaisquer indícios da prática de crimes de corrupção é um passo gigantesco», escreveu o magistrado judicial antes de revelar que estavam em curso diligências internacionais de cooperação para apurar com exactidão os fluxos financeiros que tinham ido parar às contas de Santos Silva na Suíça.

O dinheiro tinha como origem sobretudo «sociedades do Grupo Lena», onde o empresário fora administrador até 2009. Depois dessa data, Santos Silva manteve uma única ligação formal ao grupo: tinha 20% da XMI, Managment & Investments, SA, detida em 80% pela Gesparsoci e a Lunindic, controladas por responsáveis do Lena.

No recurso da prisão preventiva para a Relação de Lisboa - que o viria a chumbar —, a defesa de Sócrates manteve o que já tinha dito na indiciação no TCIC, vincando que a suspeita de corrupção resultava de um «acervo de indefinições, generalidades meramente conclusivas, intoleráveis em processo penal». Segundo esta versão, o que estava em discussão era uma ligação absurda entre Sócrates e uma empresa de construção civil: «[...] o que tem tudo isso a ver com o recorrente - terem esses contratos, ditos de adjudicação, sido concluídos enquanto ele era primeiro-ministro não parece, em todo o caso, suficiente para indiciar seja o que for, tanto mais que, em regra, esses contratos, mais exacta- mente as adjudicações, são precedidas de concursos públicos.»

Já no recurso de Paula Lourenço, também ele chumbado, a questão da corrupção foi arrumada em apenas meia dúzia de linhas «pelo respeito que é devido à magistratura portuguesa», ironizou a advogada, que perguntou: «É o facto de a Lena ter sido beneficiada de contratos por parte do Estado no processo que constitui o indício de corrupção? Não foram muitas as

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empresas portuguesas a beneficiar de contratos com o Estado no tempo em que o Eng. José Sócrates foi primeiro-ministro? Só por isso há fundamento para a suspeita?»

Dois meses depois do interrogatório de Novembro de 2014, os procuradores Rosário Teixeira e Ana Catalão vieram dizer que a ausência de actos concretos de corrupção, afinal, sempre fizera parte da estratégia da investigação, defendendo que na «fase indiciária» teve de se ter cuidado com a recolha de prova para não alertar os visados. Em causa estava o acesso aos dados bancários na Suíça registados em nome de entidades ou offshore controladas por Carlos Santos Silva e cujo acesso - pedido logo em Novembro de 2013 pelo MP e autorizado pelas autoridades suíças ainda antes do fim desse ano - só podia ser concretizado de forma legal com conhecimento do titular das contas.

Quarta-feira, 26 de Novembro de 2014

São 03h12 da madrugada quando José Sócrates atravessa, sentado no banco traseiro de um Kangoo azul, os portões do Estabelecimento Prisional de Évora. A partir deste instante, é oficialmente o preso preventivo mais famoso da história da democracia portuguesa. Está exausto. Durante os 1.31 quilómetros que separam Évora de Lisboa, mudou várias vezes de viatura para despistar os jornalistas, ansiosos por uma imagem da sua desgraça. À chegada, cumpre as formalidades rotineiras e é-lhe atribuído o número de detido: o 44. Depois de conversar brevemente com alguns guardas, pede-lhes, resignado:

- Deixem-me descansar...

Na manhã seguinte, ainda antes das 8h, acorda e o cenário que o rodeia é propício a um mergulho num inevitável spleen, triste e contemplativo. A cela onde se encontra tem oito metros quadrados; a cama onde dormiu é amplamente desconfortável; o lavatório é decrépito. E há ainda a retrete miserável. E o duche minúsculo. Onde está o luxo que até há pouco o cercava? A pergunta que se impõe; é possível descer ainda mais baixo? A resposta: sim - claro que sim.

A primeira refeição que toma na cadeia é um pão com manteiga acompanhado de um café com leite. Poucas horas depois, pelas 12h15, come um cozido à portuguesa — os guardas levam-lhe o tabuleiro com o prato à cela. À tarde, recebe as suas primeiras visitas na cadeia: Sofia Fava, sua ex-mulher, e Capoulas Santos, ex-ministro da Agricultura. Aos dois repete o que diz a toda a gente: está triste, mas preparado para lutar. Não ficará calado a ver o seu nome a ser massacrado na praça pública. Entrega- -lhes uma carta manuscrita que redigiu na sua cela. Objectivo: fazer com que a missiva seja divulgada no jornal Público, ironicamente aquele com quem mais problemas tivera durante os anos de governação.

O texto é publicado no dia seguinte. Começa com a expressão da revolta...

Há cinco dias «fora do mundo», tomo agora consciência de que, como é habitual, as imputações e as «circunstâncias» devidamente seleccionadas contra mim pela acusação ocupam os jornais e as televisões. Essas «figas» de informação são crime. Contra a Justiça, é certo; mas também contra mim.

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Não espero que os jornais, a quem elas aproveitam e ocupam, denunciem o crime e o quanto ele põe em causa os ditames da lealdade processual e os princípios do processo justo.

Por isso, será em legítima defesa que irei, conforme for entendendo, desmentir as falsidades lançadas sobre mim e responsabilizar os que as engendraram.

... Continua com a condenação da prisão preventiva...

A minha detenção para interrogatório foi um abuso e o espectáculo montado em torno dela uma infâmia; as imputações que me são dirigidas são absurdas, injustas e infundamentadas; a decisão de me colocar em prisão preventiva é injustificada e constitui uma humilhação gratuita.

Aqui está toda uma lição de vida: aqui está o verdadeiro poder - de prender e de libertar. Mas em contrapartida, não raro a prepotência atraiçoa o prepotente.

Defender-me-ei com as armas do estado de Direito — são as únicas em que acredito. Este é um caso da Justiça e é com a Justiça Democrática que será resolvido.

... E termina com uma palavra de esperança.

Não tenho dúvidas que este caso tem também contornos políticos e sensibilizam-me as manifestações de solidariedade de tantos camaradas e amigos. Mas quero o que for político à margem deste debate. Este processo é comigo e só comigo. Qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o Partido e prejudicaria a Democracia.

Este processo só agora começou.

Évora, 26 de Novembro de 2014 José Sócrates

O primeiro dia do ex-primeiro-ministro na cadeia termina com um prato de esparguete com carne. Às 19h as celas fecham. Três horas depois, as luzes apagam-se. Sócrates deita-se no beliche e adormece.

Quinta-feira, 27 de Novembro de 2014

O ex-primeiro-ministro fica sem tabaco. Precisa fumar. Os tempos em que tinha de se esconder para o fazer já passaram. Não é político, ninguém lhe pode apontar o dedo pelos pecadilhos, por ser simplesmente humano. Pergunta a um guarda prisional onde pode comprar um maço. A resposta apanha-o de surpresa: de acordo com o regulamento dos estabelecimentos prisionais aprovado durante a vigência de um dos seus governos, terá de preencher um requerimento, que posteriormente será objecto de aprovação pelo director do estabelecimento prisional. Incrédulo, desabafa:

- Fui mesmo eu que aprovei isso?! É preciso tanta burocracia para ter um maço de tabaco???

Sexta-feira, 28 de Novembro de 2014

14h06. Bernardo Ferrão está na redacção do Expresso quando o seu smartphone apita. Acaba de receber uma sms. Desbloqueia o ecrã e o que vê é surpreendente.

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- Está atento porque te vão ligar de Évora. O indicativo é o 266.16

O editor de política do maior e mais influente jornal do País percebe instantaneamente do que se trata. Sócrates quer falar consigo. Na sequência da detenção, Bernardo ligara imediatamente a André Figueiredo, sugerindo que o ex-primeiro-ministro, caso estivesse disponível para dar uma entrevista, a concedesse ao Expresso. Passaram vários dias desde que falou com o ex-chefe de gabinete de José Sócrates. Tudo indica que a resposta chegará pela voz do próprio. Volta-se para os colegas de secção e informa-os da ocorrência:

- O Sócrates vai ligar-me.

Ia mesmo. Cerca de 20 minutos depois, o telefone toca.

- Olá Bernardo, como vai?

O jornalista não esconde algum constrangimento. É uma situação definitivamente estranha.

- Senhor Engenheiro, como está?

- Estou a ligar-lhe de um contexto diferente.. .Agora estou preso...

Apesar da estranheza do momento, Bernardo não perde o bom humor.

- Pois, é público, todo o País já percebeu...

O jornalista percebe rapidamente que o antigo governante está revoltado: «O tom que utilizava era pesado, ainda estava quente, disse-me que a prisão era injusta.» Sócrates prossegue:

- Sei que me quer fazer uma entrevista. Estou a ligar-lhe para a combinarmos. Como é que quer fazer?

- Deixe-me falar primeiro com o Ricardo Costa. Só depois podemos avançar definitivamente.

- Está bem, veja então com o Ricardo e ligo-lhe mais tarde.'7

Duas horas depois, o telefone de Bernardo volta a tocar. Ricardo Costa recorda o momento: «Fomos logo para a sala de reuniões. Metemos o telemóvel em alta voz e começámos a falar.»

Durante o telefonema, Sócrates renova o interesse em falar ao Expresso. Mas coloca condições: a entrevista terá de ser realizada por duas de três pessoas: Bernardo Ferrão, Ricardo Costa e Nicolau Santos, sub-director do jornal e jornalista especializado em economia. Costa não perde tempo a pensar no assunto.

- Vou eu e o Ferrão.

Por momentos, parece que se recua no tempo e que Sócrates está a ligar do seu amplo gabinete em São Bento. Começa a dar ordens.

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—Já falei com o director da cadeia. Agora liguem para a Direcção Geral dos Serviços Prisionais a pedir formalmente autorização. Vêm cá na hora das visitas; eu prescindo de receber pessoas para falar convosco.

Os jornalistas concordam. Vão fazê-lo imediatamente. Mas Sócrates ainda não acabou.

— Quero que publiquem uma declaração minha na edição de amanhã.

É tudo o que Ricardo e Bernardo querem ouvir. Serão eles os primeiros a ter um on do ex-primeiro-ministro - um exclusivo bem à medida do Expresso. Depois de um compasso de silêncio, Sócrates dita:

— Só deixa de ser livre quem perde a dignidade. Sinto-me mais livre do que nunca.

E desliga.

II

RUMO À DERROTA

Sócrates faz o discurso de derrota. O ex-primeiro-ministro nunca teve a ilusão de que poderia vencer as eleições de 2011.

Domingo, 5 de Junho de 2011

Com a cara totalmente revestida de suor, José Sócrates tenta sobreviver, refugiado atrás do púlpito, às perguntas das dezenas de jornalistas que se acumulam no Hotel Aids. A notícia da sua derrota eleitoral contra Pedro Passos Coelho ainda está quente - embora menos do que o discurso de derrota que acaba de fazer. Com esforço evidente, vai respondendo a todas as questões que lhe são colocadas. Já nada tem a perder. Sorri profusamente enquanto a palavra circula pelos repórteres. Está preparado para tudo - ou quase tudo.

— Muito boa noite, senhor primeiro-ministro. Susana Martins, da Rádio Renascença. Gostava de saber se receia que este resultado eleitoral, esta derrota eleitoral, abra caminho a novos processos judiciais ou que acelere...

...Aassistência, constituída por militantes do Partido Socialista (PS), explode.

— B u u u uuuuhhhhhh!!!!!!!!

A jornalista prossegue.

— ... Ou que acelere processos judiciais em curso.

Sócrates põe um ar incrédulo, primeiro; faz um sorriso divertido logo a seguir. Parece ainda mais transpirado. Encara a jornalista nos olhos.

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- Processos judiciais?

- Estou-me a referir...

Os gritos aumentam de tom. Sócrates pede silêncio. Levanta as mãos.

- Um momento, desculpem!

Susana Martins não se atemoriza com os protestos da multidão. Continua.

- Estou-me a referir a processos como o Face Oculta ou o Freeport.

As ameaças e gritos sobem de tom.

- Cala-te, puta!

- Vaca de merda, vai-te embora; desaparece!!!

Sócrates tenta novamente travar as massas.

— Desculpem, um momento! Por favor! Eu compreendo a vossa surpresa, que é igual à minha, mas confesso que não entendi a pergunta...

A jornalista insiste, indiferente à rebelião em curso.

— Teme que esta derrota eleitoral possa abrir, ou não, caminho a novos processos judiciais, por exemplo em torno do Face Oculta, ou acelerar processos judiciais em curso?

Confirmava-se: a repórter estava mesmo a cercá-lo. Mais gritos da assistência; mais um alerta do primeiro-ministro.

— Desculpem, só um momento! Eu não consigo compreender essa pergunta pela simples razão de que a justiça nada tem a ver com a política. E o que eu desejo é viver num país em que essa separação esteja absolutamente ao serviço do Estado de Direito.

Os camaradas irrompem em aplausos e em gritos de euforia.

— Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-sse! Pê é-

Sócrates decide acabar com o cerco - à jornalista e a si próprio. — É melhor passarmos a outra pergunta. Quem é que tem uma?

A Antena 1 tem. Passa-se à frente.

Quando, já nos bastidores, encontra os seus apoiantes mais próximos, estes transmitem-lhe o desconforto com a postura da jornalista. Sócrates concorda, está em fúria acelerada. É implacável com a profissional, mas está ainda mais revoltado com a Rádio Renascença, que qualifica com termos nada católicos.

Fosse como fosse, o alerta para o que lhe poderia acontecer estava dado.

(18 dias antes...)

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Quarta-feira, 18 de Maio de 2011

José Sócrates está embalado. As palavras fluem. Os sounclbytes sáo disparados com um músculo ainda maior do que o habitual. O tema ajuda: Novas Oportunidades. A maior bandeira social da sua governação. Dois dias antes, Pedro Passos Coelho afirmou que a menina dos olhos do chefe do Executivo era um «escândalo», «uma mega-produção do PS» e um estímulo à «credenciação da ignorância», pelo que iria pedir uma auditoria externa ao funcionamento do projecto.

Assim que tomou conhecimento das declarações do líder do PSD, o chefe do Governo ficou inicialmente chocado, para no segundo imediatamente posterior se sentir invulgarmente excitado. Sócrates é um tubarão. Consegue sentir o cheiro a sangue a quilómetros de distância - e o que naquele preciso instante já tomava forma entre as milhares de milhões de ligações neuronais do seu cérebro era um imenso, um grandioso, um épico, um inesquecível esfaqueamento político. «Estava ali uma grande oportunidade para colocar as pessoas do nosso lado. Era um projecto com um enorme alcance social, que atingiu 500 mil pessoas. Ter Passos Coelho a rebentar com ele, ainda por cima com aquela contundência, era o pretexto perfeito para o atacar.»1

Para além de violenta, a resposta teria de ser rápida. Estava fora de questão deixar sair o tema da agenda. José Sócrates foi muito claro sobre

o assunto; não podia haver dúvidas ou hesitações — e não houve. Em apenas dois dias organizou-se uma sessão em Vila Franca de Xira - exac- tamente o local onde Passos Coelho produzira as declarações explosivas

destinada a ser uma acção de grande alcance mediático. Apesar da rapidez na decisão, tudo foi planeado ao detalhe. «A ideia era meter diplomados das Novas Oportunidades a relatar as suas experiências e como as respectivas vidas foram alteradas para melhor depois de frequentarem o programa.»2

Um a um, os escolhidos vão desfiando as suas experiências no palco. Os discursos, apesar de serem da sua autoria, tiveram de passar anterior- mente pelo crivo da equipa de José Sócrates, sofrendo em alguns casos leves alterações. Ali não há lugar para improvisos ou imprevistos.

As intervenções estão algo murchas quando sobe ao púlpito Carlos Silva, um antigo vereador do PCP na autarquia de Sines. O ambiente aquece finalmente.

— Vim a Vila Franca porque era minha obrigação, porque tinha de dar uma resposta a quem me chamou ignorante. Claro que tive também o privilégio de ter recebido das mãos do primeiro-ministro há algum tempo atrás no Seixal o diploma do 12.o ano.

Na assistência, José Sócrates, devidamente secundado por Eduardo Ferro Rodrigues, comove-se com o relato pungente. A comoção atinge o seu ponto mais alto quando o próprio líder do Governo decide subir ao palco. De fato preto e gravata azul-clara, lança-se aos calcanhares de Passos.

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— Foi um insulto à coragem que os portugueses tiveram. O que mais me chocou nas declarações do líder do PSD feitas aqui em Vila Franca — e por isso decidimos vir aqui a Vila Franca para responder — foi a frieza com que isto foi dito.

Sócrates prossegue com o seu guião, a sua narrativa: tem de explorar intensamente a componente emocional. Relembra uma situação ocorrida com Carlos Silva.

— Há uns tempos o Carlos Silva disse-me assim: sabes, pela primeira vez enchi-me de coragem, fui-me inscrever...

Visivelmente emocionado, Sócrates fica em silêncio. Quer controlar-se. Morde os lábios - um tubarão não chora. Prossegue.

... E tirei o 12. ° ano. Lembro-me desse momento no Seixal e compreendo...

A voz está embargada. Não aguenta e deixa cair uma lágrima, que limpa imediatamente com a mão esquerda - o espectáculo tem de continuar.

... A emoção do Carlos Silva quando diz que se abraçou à mulher. Eu próprio fico com a voz afectada quando me lembro desse momento.

Carlos Silva fecha o dia com um desafio a Passos Coelho:

— Aceite discutir connosco para ver nesta história quem é o verdadeiro ignorante.

Quando, depois de terminada a sessão, Sócrates se encontra com a sua equipa mais próxima, está ansioso por ouvir as suas opiniões sobre a «ocorrência». A expressão «lágrima» não é utilizada, mas todos sabem que é disso que o líder do Governo está a falar. As respostas dividem-se, mas há algo pacífico para todos: mal não fez. «Sócrates tem uma imagem demasiado racional. O facto de se ter emocionado podia ajudar a conferir-lhe uma faceta mais humana,»3

Sexta-feira, 20 de Maio de 2011

José Sócrates acaba de sair do debate televisivo com Pedro Passos Coelho na RTP. Volta-se para os membros do seu inner circle e pergunta-lhes o que acharam do seu desempenho. A questão é retórica: o líder do PS sabe que acaba de perder um confronto de que nunca pensou sair derrotado. Passou o dia a preparar todos os detalhes que poderiam fazer a diferença. Estudou os pontos fracos do adversário. Testou soundbytes com a sua

equipa. Preparou informação explosiva para utilizar durante a conversa moderada pelo jornalista Vítor Gonçalves. Os motivos para a derrota eram indecifráveis.

(75 minutos antes...)

Quando, já bem perto do início de debate, chega à RTP, Sócrates está impecavelmente maquilhado. Uma das duas profissionais com quem por norma trabalha foi prepará-lo a casa, onde o socialista se deslocou para se vestir e descansar um pouco no sentido de disfarçar as olheiras. Avança para o estúdio, acompanhado pelos assessores de imprensa Luís Bernardo e Jorge Morgado Fernandes; pelo seu chefe de gabinete no PS, André Figueiredo; e por Almeida

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Ribeiro, seu secretário de Estado Adjunto e eminência parda de São Bento. Ao entrar, depara-se com Vítor Gonçalves, que lhe dá as boas vindas e tenta fazer alguma conversa de circunstância, habitual naqueles momentos.

— Qual será a sua atitude no frente-a-frente?

Sócrates não está para grandes diálogos. É telegráfico na resposta.

- Tranquila.

O jornalista faz nova investida.

— Acha que vai ser um debate tranquilo?

Nada feito. O primeiro-ministro demissionário balbucia qualquer coisa inaudível, baixa a cabeça e acaba com o diálogo. Não pode desconcentrar-se com conversas de circunstância.

São 20h50 quando Passos Coelho chega, em ritmo acelerado, ao estúdio de gravação. Está levemente eufórico, como se lhe tivessem acabado de injectar nos bastidores uma dose cavalar de confiança. Dirige-se ao adversário, quase desafiante, e estende-lhe a mão.

- Boas noites. Está bom. Engenheiro? Como está? Bem-disposto?

Com uma pasta branca carregada de apontamentos que preparara durante a tarde na sua casa situada em Massamá, Passos continua alegremente:

— Nunca tinha estado neste estúdio...

Sócrates não esconde o ar de enfado. O líder do PSD, apostado em espalhar boa disposição, prossegue com os comentários, desta vez acompanhados de um riso controlado. Olha para Sócrates, que já se encontra instalado no seu lado da mesa.

— Está a uma distância enorme, Engenheiro!

Sócrates decide finalmente responder.

— Fizeram isso de propósito...4

São 21h em ponto quando o debate começa. O momento é solene. Está muito em causa. A tensão sobe. A temperatura do estúdio inflaciona. Sócrates quer conduzir a conversa, como sempre. Tem um guião. Nada de novo. Leva três ou quatro mensagens fundamentais, que horas antes discutira com os seus conselheiros no seu gabinete em São Bento: a crise internacional das dívidas soberanas está na origem da desgraça financeira que se abateu sobre Portugal; por ter chumbado o PEC IV, Passos Coelho é anti-patriota; o líder do PSD é um perigoso ultra-liberal cujo sonho mais recôndito é desmembrar o Estado Social e, finalmente, Passos Coelho é um político sem passado governativo. Artilharia pesada.

Do outro lado, Passos também tem a sua narrativa: José Sócrates é o Judas da economia nacional, um carrasco que nos conduziu à ruína financeira e à humilhação que representa ajoelharmo-nos perante o mundo; um primeiro-ministro que não merece mais uma oportunidade, depois de um desempenho ruinoso à frente do Governo.

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O líder do PS dispara o primeiro tiro: confronta Passos Coelho com um documento que este assinara enquanto administrador da Fomentin- vest, onde trabalhara antes de assumir a liderança do PSD, em que reconhece que a crise internacional de 2009 foi um factor importante para

a degradação da economia portuguesa. Não disfarça o gozo que a revelação lhe traz. Faz o seu melhor sorriso matreiro e ironiza:

- Uma coisa é o Passos Coelho empresário; outra é o Passos Coelho político. ..

Tiro no porta-aviões. Passos treme, mas não cai. Tem muito tempo para recuperar. Vai a jogo. Confronta o adversário com as sucessivas declarações públicas em que prometeu que não aumentaria impostos, o que acabaria por fazer. E conclui, vitorioso:

- Estas mudanças de opinião afectaram mais o País do que esse relatório de contas que assinei.

Já ferido, Sócrates segue para a luta ideológica, um terreno em que se sente confortável. Quer sublinhar a alegada obsessão passista em destruir as «conquistas de Abril». Durante quase meia hora, a Constituição e os co-pagamentos da saúde convertem-se nas estrelas da discussão. Quem não souber que Sócrates é um conhecido moderado, arrisca-se a pensar que se trata de um radical de esquerda, tal é a energia que emprega na defesa do Serviço Nacional de Saúde tendencialmente gratuito. Durante o dia, juntamente com os membros do seu gabinete, todos concordaram que era imperativo enfatizar o tema. «Era obrigatório.»" Passos sabe que este é terreno pantanoso. Tem de dar um salto em frente, de voltar a encostar o adversário às cordas. E é o que faz, usando a ironia.

- Afinal, Portugal não precisa de ajuda externa, o País está bem, não precisou de aumentar brutalmente os impostos, de cortar nos apoios sociais...

Olha para Sócrates e conclui secamente:

- Este é o resultado da sua política: são 700 mil desempregados!

O primeiro-ministro está seriamente ferido. O desemprego tremendo é o seu ponto mais frágil. A partir desse momento entra em parafuso.

sempre em perda. O argumentário que leva fica de lado. Começa a acenar com a cabeça enquanto Passos o ataca de forma impiedosa, lançando- -lhe à cara as supostas provas da sua alegada incompetência. Perante a invasão, o líder do PS limita-se a dizer repetidamente:

- O senhor só sabe dizer mal do País...

Lá dentro, na sala reservada ao staff, Luís Bernardo, João Morgado Fernandes, André Figueiredo e Almeida Ribeiro estão em silêncio. Olham uns para os outros, mas não dizem nada. Está a correr mal — muito mal. «Nunca o tinha visto assim. Há um momento em que ele parece desistir. Não se sentia confortável com os argumentos. Pela primeira vez ele não usou todas as armas que tínhamos para usar, desviou-se do guião previsto e andou à deriva. Acho

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que ele sempre acreditou que a eleição estava perdida. Estava com um resgate em cima; não era fácil.»6

O debate termina sem honra nem glória para o socialista. Sai desiludido do estúdio. Quer que alguém lhe diga que não correu assim tão mal. Mas a verdade é que foi lamentável. Um membro do gabinete tem uma explicação para o descalabro: «Houve ali um erro de cálculo dele em relação a Passos Coelho. Desvalorizou-o. Mas se isso fazia sentido quando ele chegou ao PSD e era frágil, tinha entretanto deixado de fazer. Ele acha-se muito superior a Passos Coelho, que despreza intelectualmente. Na sua cabeça, perder contra ele era uma impossibilidade teórica.»7

Diagnosticado o descalabro, há que seguir em frente. São cerca das 23h quando o grupo se junta à mesa do restaurante II Gattopardo, um dos preferidos do primeiro-ministro, que precisa desesperadamente de uma boa pasta italiana. Enquanto comem, vão fazendo telefonemas para medir as reacções ao descalabro evidente. Em casa, as duas restantes assessoras de imprensa do gabinete monitorizam ao minuto os programas de comentário - já faz parte do ritual. «Tentámos perceber o que os comentadores mais importantes diziam sobre a prestação, o que se estava a passar nas televisões.»8 E o que se está a passar não é bonito. Miguel Sousa Tavares, por exemplo, fuzila o socialista na SIC, ao afirmar que

este acaba de ser humilhado de forma surpreendente pelo líder da oposição. Pergunta: «Onde andava este Pedro Passos Coelho?»

Sócrates está gravemente ferido. Mas não morreu. Ainda.

Sábado, 21 de Maio de 2011

A campanha oficial arranca. Na auto-estrada para Évora, a cidade escolhida para iniciar as festividades, Sócrates desespera. Está sentado no banco da frente do Mercedes s350 preto, que se encontra discretamente estacionado. Um dos autocarros com apoiantes oriundos de Lisboa avariou, e se pretendem uma recepção apoteótica na Praça do Giraldo para que os telejornais das 20h reportem a onda imparável que tomou conta da campanha do PS, terão de esperar. Sócrates, mais habituado a que esperem por ele, agita-se. Perde a calma e, aos gritos, coloca violentamente tudo em causa: a aplicação das pessoas, a sua competência e as respectivas intenções.9

Ultrapassado o drama, o líder mergulha na multidão, devidamente protegido pela chamada «bolha», o nome de código para o círculo protector e praticamente impenetrável que os militantes imberbes da Juventude Socialista, de mãos dadas ou abraçados, formam à sua volta mal sai do carro. Não é uma «bolha» qualquer: para além de condicionar o contacto físico entre o candidato e a população, funciona também como um isolador de som - lá dentro praticamente não se distingue o que se diz fora dela. Além disso, tem técnicas próprias. Estende, encolhe, alarga e aperta em função das circunstâncias e humores de Sócrates e respectivos spin doctors.

No Público, Vasco Pulido Valente assinala o aparato em redor do primeiro-ministro: «Infelizmente agora Portugal foi surpreendido por um candidato que se rodeou de um pelotão de personagens tétricas, que não deixam a plebe chegar perto. Porquê? Talvez porque o sr.

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Sócrates não quer ouvir o que o País verdadeiramente acha dele ou porque supõe que a execração geral à sua maravilhosa pessoa corre o perigo horrendo

de chegar a vias de facto. Com a escolta fica separado dos portugueses, como antes ficou separado da realidade. Naquele casulo de “guarda-costas”, com um ou outro fanático à mistura, nada o impede de exibir a sua sensibilidade e de soltar a sua fantasia. Cá fora é diferente.» E é exactamente cá fora que, a suar, quase desidratado pelo calor alentejano, Sócrates se atira, sem piedade, ao seu alvo de estimação.

- O Dr. Pedro Passos Coelho está a pretender que outros sigam o seu exemplo de sectarismo e de irredutibilidade. O País já pagou um preço por falta de diálogo, o País já pagou um preço pelo facto de o líder do PSD estar irredutível!

Durante cerca de 30 minutos, o candidato dedica-se a vergastar o social-democrata, que «deitou o Governo abaixo» e que, por isso, «fez levantar o PS», que se encontra em Évora «para dizer ao PSD que é o PS quem vai ganhar estas eleições!» Sentados nas bancadas montadas de propósito para o comício, os participantes rejubilam. Gritam o nome do primeiro-ministro. Batem palmas. Gritam de novo. Mais palmas. Muitas, demasiadas palmas. À distância, os alentejanos olham desconfiados para os entusiastas, cidadãos oriundos de outras paragens, como a índia, a China, Cabo-Verde, Moçambique ou o Paquistão. Foram eles que fizeram o primeiro-ministro esperar na auto-estrada. Mobilizados pela concelhia do PS da Almirante Reis, em Lisboa, destoam pela cor, pelo vestuário e, claro, pelo facto de dificilmente conseguirem fazer-se entender em português. Mas a verdade é que não foram lá para falar, muito menos para escutar - a ideia é mesmo estar. Fazer número para artificialmente inchar o espaço, gerando a ilusão de uma aura de entusiasmo massivo em redor do socialista.

Presentes no local, os repórteres televisivos ouviram atentamente José Sócrates. No final do dia enviaram, como é hábito, as respectivas peças para os jornais das 20h, os mais importantes para a campanha por passarem em horário nobre. E o que destacaram eles? O ataque fulminante a Passos? A defesa intransigente do Estado social? As propostas apresentadas com vigor para aumentarem a competitividade? As soluções

originais para diminuir as desigualdades entre o interior do País e os grandes centros urbanos? Vejamos o teor das peças realizadas pelas duas estações privadas:

SIC

José Manuel Mestre começa por mostrar uma passagem emocional do discurso de Sócrates. Logo a seguir, contextualiza: «O apelo ao coração dos alentejanos fazia todo o sentido, não se desse o caso de boa parte da assistência não ter nada a ver com o assunto.» Acto contínuo, surge uma imagem de um conjunto de cidadãos indianos devidamente protegidos do sol por bonés socialistas. Um deles, ainda adolescente, revela a proveniência:

- Moro em Corroios, a camioneta foi buscar-nos e depois nós viemos de Corroios, é bué da longe!

Outro:

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- Vim de Rio de Mouro [Sintra].

Outro ainda, este sem o dente da frente:

- Vim de Lisboa; moro em Cascais.

Determinadas as origens, o repórter da estação de Pinto Balsemão passa a outro tipo de questões.

- Alguma vez tinha ido apoiar o Eng. Sócrates a algum lado?

- Não.

- Porque é que veio hoje?

O jovem africano pensa um segundo...

- Convidaram-me...

- Quem é que o convidou?

O entrevistado fica inerte. Olha para o chão. Precisa de pensar um segundo.

- Foi da embaixada.

- Qual embaixada?

- Moçambique.

Outro cidadão africano, uma criança com ar carenciado, reconhece que também é a sua estreia. O repórter tenta saber o que carrega ela na mão.

- O que tens aí?

- Um saco com comida.

- Trouxeste de onde?

- Deram-me ali à porta, foi um senhor que estava à porta.

Resumindo, baralhando e concluindo: a viagem a Évora, os gritos, os gestos de apoio, a presença, valiam uma merenda.

Em Évora, Sócrates atacou Passos Coelho, mas o que passou nos telejornais foi uma

gaffe da sua campanha.

TVI

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Filipe Mendonça, repórter atento e criativo, dá gás à imagem de um paquistanês de camisa rosa e chapéu do PS que, de bandeira na mão, se dedica a espalhar felicidade pelas ruas de Évora como se não houvesse amanhã. A coreografia é gloriosamente acompanhada por um sonoro «Viva, viva!; José, viva!; Viva, viva!; José viva!» O entusiasmo do cidadão oriundo da Avenida Almirante Reis encontra paralelo noutro requisitado, este com aparência notoriamente ucraniana. Diz: «Para mim PS muito bom. Ele deu produto para estranja, muito produto para estranja.» Filipe Mendonça avança para outros depoimentos, qualquer deles altamente esclarecedor. O de um chinês de óculos de massa preta, por exemplo: «Nós, chineses, tudo para ele!» Para além disso, o repórter insiste em encontrar outras respostas. Provavelmente na esperança cega de descobrir alguém que, de facto, habite no local em que o comício acontecera, aborda um paquistanês de turbante e barba negra.

- Onde vive?

- Em Odivelas.

- E porque é que está aqui?

- Não tenho documentos...

Repórter que é repórter não desiste. Filipe aborda duas moçambicanas. Uma delas:

- Venho da embaixada de Moçambique para aqui.

- Isto é um comício do PS, sabe?

- Sim, eu sei, eu sei.

- É portuguesa?

- Não... Gostaria de ser mas ainda não sou...

A dificuldade de encontrar alguém com o perfil procurado é óbvia. Perguntar pessoa a pessoa, indivíduo a indivíduo, é impraticável. É então que o jornalista se lembra de questionar uma bancada inteira de apoiantes efusivos.

- Quem pode votar em Portugal levanta o braço!

Pois...

Passam poucos minutos das 20h e José Sócrates faz a ronda habitual de telefonemas para Luís Bernardo e João Morgado Fernandes. Está ansioso, como sempre acontece àquela hora. Quer saber quais são as aberturas dos telejornais. Raramente vê televisão mas é obcecado pelo relato que se faz da sua acção. Os assessores informam-no do ângulo escolhido pelas estações para reportar o que se passara no primeiro dia da campanha. Fica fora de si. No dia anterior fora varrido por Passos Coelho num estúdio de televisão. Não podia dar-se ao luxo de falhar mais um tiro. Como fora possível montar-se uma operação com tanto amadorismo? Como fora possível que ninguém tivesse reparado que juntar tantos membros de minorias étnicas no meio do Alentejo poderia aguçar a curiosidade dos jornalistas, sempre ávidos de encontrar um pormenor curioso, um ângulo original que lhes permita fazer algo fora do convencional? Os

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seus colaboradores tinham servido aos media um pequeno escândalo numa bandeja dourada. Explode. E deixa bem claro que um embaraço daqueles não pode voltar a acontecer.10

Do episódio resulta a imagem de uma campanha de plástico, construída com régua e esquadro e sem ponta de autenticidade. Um membro da organização reconhece.- «As coisas atingiram níveis absurdos... Então nesse comício de Évora tudo correu mal. A verdade é que ele teve razão quando disse que se não for ele a tratar das coisas tudo falha...»

Terça-feira, 24 de Maio de 2011

O candidato acaba de fazer um violento manifesto anti-Passos quando se aproxima da mesa dos jornalistas. Os repórteres presentes na Guarda querem continuar a almoçar, mas um primeiro-ministro é um primeiro-ministro. Sócrates, de sorriso nos lábios e com as mangas da camisa branca bem arregaçadas, quer «explicar-lhes» a sua posição sobre as denúncias recentes de Passos Coelho, que acusara o Governo de fazer nomeações para cargos na função pública numa altura em que se encontra em gestão.

No seu discurso, o líder do PS já fora taxativo: «É uma acusação que não é apenas gratuita. A verdade é que não se percebe o que Pedro Passos Coelho quer fazer, porque o Governo tomou uma deliberação bem expressa no sentido de que não haverá nomeações num período de gestão.» Sócrates garantiu ainda que o Governo fizera apenas seis nomeações desde que está em gestão, todas «estritamente necessárias». Mas, não fosse o diabo tecê-las, insistiu junto dos jornalistas:

— Eu olho para as vossas caras e parece que não percebem. Não querem fazer perguntas?

A assistência fica em silêncio. Não interessa: Sócrates explica na mesma.

— Eu próprio dei indicações para que não houvesse nomeações, nem por parte dos directores-gerais, que até é competência deles. Depois das eleições quem for Governo já pode fazer as nomeações. A acusação do PSD é pôr as coisas ao contrário. O que é que vocês chamam a isto? É que isto é de um tipo de má-fé. Não estamos a esconder nada. Eu próprio nem percebi qual era a acusação. Vinha no carro e até demorei um bocadinho a perceber.11

No mesmo dia, Passos dá por encerrado o caso, afirmando que «o País entende o que se passou». E a verdade é que entendera mesmo: alguém enganara o líder do PSD porque de facto Sócrates dera directrizes para travar os abusos do aparelho. «Foi uma das suas primeiras preocupações quando se demitiu. Deu instruções claras para que os chefes de gabinete dos ministros, por exemplo, não desatassem a colocar pessoas. Nisso foi absolutamente escrupuloso porque sabia que, a acontecer, podia virar-se contra ele.»12

Quinta-feira, 26 de Maio de 2011

Amadora, junto à estação ferroviária. Uma chuva impiedosa abate-se sobre o subúrbio lisboeta, criando o cenário perfeito para emoldurar o exercício de dramatização política que está prestes a acontecer.

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Indiferente à intempérie em curso, José Sócrates sobe vigorosamente ao palanque do camião de campanha. Quer, para não variar, vergastar o presidente do PSD, desta vez por este, em entrevista à Rádio Renascença, ter admitido a possibilidade de reavaliar a lei do aborto, ao considerar que a despenalização até às dez semanas «pode ter ido um pouco longe demais».

Assim que Passos falou, uma campainha apitou na cabeça de Sócrates. Tinha ali uma oportunidade para apresentar o seu inimigo como um radical de direita, um ultraconservador obcecado em fazer regredir algo que tanto custara a conquistar.

Completamente encharcado, do alto do púlpito, tenta aquecer os resistentes.

— Fico chocado com essa declaração do Dr. Passos Coelho e acho que isso não é admissível!

A pequena multidão responde-lhe com o apoio que tanto desejava. Sócrates anda ansioso por encontrar um tema que faça virar a eleição; que lhe permita dar a volta nas sondagens. Quer muito uma Marinha Grande - a sua Marinha Grande, como Mário Soares teve a dele. Prossegue:

— Quem assim se comporta não é merecedor de confiança! Os socialistas rejeitam voltar ao tempo do aborto clandestino!

Mais tarde, em conversa com um membro do seu gabinete, este dá-lhe a entender que está a apostar numa temática errada. Passos não fora tão definitivo como eventualmente lhe teriam narrado.

— Você está a dar ao aborto uma importância que ele não tem. As declarações foram empoladas pela Renascença, há claramente um exagero na interpretação. 13

Sócrates está inamovível. Sublinha a ignorância do assessor, bem como a sua total e incondicional ausência de faro político. Claro que aquilo é um tema! Acabou por não ser.

Sábado, 28 de Maio de 2011

Faltam 128 horas para a eleição. À medida que o dia D se aproxima, a temperatura da campanha sobe perigosamente. Em Faro, onde Sócrates protagoniza mais um comício, os ânimos aquecem. Enquanto o líder do PS tenta discursar, um grupo de manifestantes protesta contra a política governamental, nomeadamente no que respeita à cobrança de portagens na Via do Infante, a A22. Há de tudo: assobios, cartazes a dizer «estamos fartos de ser roubados», palavras de ordem inspiradas na revolução dos cravos. José Sócrates fica possesso. A PSP faz uma detenção e identifica alguns agitadores. Ainda antes de abandonar o local, o secretário-geral do PS afirma que a manifestação foi própria de pessoas que «não sabem o que é a democracia, nem o direito de manifestação por parte dos partidos».

A perturbação das acções de campanha por parte de elementos organizados foi uma constante na estrada. Mas o maior pesadelo de Sócrates não eram os sindicatos revolucionários, os agricultores falidos, os pilotos grevistas da TAP, os 700 mil desempregados. A verdade é que o fenómeno que mais sono lhe roubou não tinha sequer rosto humano e possuía um nome intimidador: o Darth Vader do Fraque.

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O fantasma que aterrorizou o primeiro-ministro durante toda a campanha nasceu durante um telefonema descontraído entre Rodrigo Moita de Deus e Carlos Lopes, ambos membros do 31 da Armada, um blogue conotado com a direita conservadora. Na conversa, realizada pelas 8h30 da manhã, os dois amigos trocavam ideias sobre potenciais posts para inserir no blogue durante esse dia. Partilharam piadas, como sempre acontecia. Riram-se muito. Até que Moita de Deus se lembrou que seria engraçado que alguém fosse, em nome do blogue, entregar simbolicamente a José Sócrates uma factura pelos erros cometidos durante os seis anos da sua governação.

- O que achas de lhe mandarmos um Darth Vader [o vilão da saga Guerra das Estrelas] do Fraquer”4

Carlos não podia concordar mais. Falaram com os restantes membros do blogue e ninguém se opôs. Para avançarem só faltava arranjar dinheiro para financiar o projecto. Havia que alugar um carro, que teria de ser devidamente adornado; e tinha de se pagar ao Darth Vader, bem como ao operador de câmara que o acompanharia. Solicitaram aos seus leitores uma contribuição pecuniária para um desígnio manifestamente épico. Conseguiram pouco mais de 2.000 euros. Acabariam por gastar bem mais do que isso, cerca de 9.000, pagos pelo seu bolso. «Idealizámos aquilo no máximo para uma semana. A ideia era entregar a factura directamente ao primeiro-ministro, filmar o momento, fazer um vídeo e divulgá-lo no blogue.»15 Problema: a campanha de Sócrates fez tudo para evitar o contacto entre o candidato e Darth Vader. «Para teimoso, teimoso e meio: decidimos prolongar a presença do cobrador na campanha.»16 Uma decisão que espalhou o terror entre os próximos de Sócrates, assustados com a possibilidade de a presença do personagem vestido de maneira esquisita, com uma factura na mão, cativar mais a comunicação social do que as ideias do chefe do Executivo. Um dos elementos do gabinete descreve as estratégias colocadas no terreno para anular os efeitos da presença do vilão da sétima arte: «Havia sempre militantes do partido que tinham de cercá-lo, afastá-lo. Não podia haver violência. A ideia era empurrá-lo discretamente, intimidando-o com a elegância possível nessas situações. Havia um militante de Sintra que era bom nisso. Passava por ele dizia-lhe ao ouvido: “Se não vais embora parto-te os cornos.”»17

A dada altura, perante a manifesta resistência dos dois jovens - o Darth Vader e o operador de câmara - tentou-se a via do diálogo.

— Pelo menos deixem o comício acabar e apareçam ao fim.

Nada feito. Resultado: «A JS tinha instruções para, durante os comícios, os submergir com as bandeiras, de modo a não lhes dar hipóteses para aparecer nas televisões. Enfim, era o jogo do gato e do rato...»18

Sexta-feira, 3 de Junho de 2011

Último dia de campanha. Quando, pouco antes das 13h, Sócrates entra no seu Mercedes para se dirigir à cervejaria Trindade, em Lisboa, já sabe que perderá a eleição - tem essa convicção há muito. A última semana foi estranhamente tranquila. Em vez de o desesperar, a certeza da derrota tranquilizou-o. Os seus colaboradores agradeceram. «Foi muito interessante. Não falávamos exageradamente em política. Ele estava de consciência tranquila. Fazia os comícios,

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mas já totalmente certo de que não havia hipótese de vencer.»19 Bernardo Ferrão, que cobriu a campanha para a SIC, recorda um José Sócrates «cansado», «prostrado», desleixado, até; muito longe da figura que em 2009, depois da vitória eleitoral, lhe preparou uma pequena surpresa: «Fui com um repórter de imagem para a porta de São Bento para ver se avistávamos os membros de um futuro Governo. A dada altura, passou de carro. Sorriu-nos e entrou na residência.»20 Uns minutos depois, aparece David Damião, um dos assessores de imprensa de José Sócrates, com dois cafés — um em cada mão.

— O senhor primeiro-ministro não gosta que estejam cá fora tão desconfortáveis e mandou trazer-vos um café para tomarem enquanto tentam descobrir a composição do novo Governo.. .21

Nos derradeiros dois dias na estrada o socialista estava, de facto, arrasado. Ao final da tarde, pagava a factura dos discursos realizados durante o dia. Ficava sem voz. Mas como o espectáculo tinha de continuar um médico deslocava-se ao final da tarde ao seu quarto de hotel, onde lhe administrava injecções para que aguentasse o comício nocturno. «Havia os directos das televisões às oito...»22

Por aqueles tempos, já raramente exibia as suas fúrias viscerais. Estava rendido. «Olhávamos para as coisas com ironia, não vivíamos aquela vertigem. Um sintoma do nosso estado de espírito era o facto de nesse período termos falado muito sobre o discurso de derrota, embora também houvesse um de vitória.»23

Ao almoço na Trindade segue-se a tradicional descida ao Chiado. São 15h30, já estamos no countdown para a intervenção de encerramento da campanha, que acontecerá dentro de pouco mais de quatro horas no Parque das Nações. O tempo passa rapidamente. Antes de se dirigir ao comício, Sócrates é maquilhado. Tem de terminar com dignidade.

Quando finalmente o seu motorista estaciona junto ao recinto, Sócrates já consegue ouvir o som de fundo de uma multidão que ainda acredita num milagre — no milagre que ele próprio deixou cair há vários dias. Não importa. Tem de avançar, de aguentar até ao fim, de honrar as palavras que frequentemente partilhava com a sua entourage, a quem dizia que os seus adversários teriam de o papar até ao fim. Até ao fim. Falta pouco. Levemente eufórico, o speaker abre as hostilidades.

- Falta fazer cumprir Portugal e o futuro...

O candidato, de casaco preto, calças de ganga e camisa azul apertada no penúltimo botão, concentra-se. Daí a poucos segundos dará a cara. O speaker está imparável...

- ...José Sócrates! José Sócrates! José Sócrates! Ele vai ser o primeiro-ministro de Portugal! Ele é José Sócrates!...

É uma figura cansada a que emerge da penumbra para ocupar o palco. Sorri, aponta para os militantes em êxtase, a quem agradece o carinho. As bandeiras esvoaçam ao ritmo da música épica. E o speaker continua imparável.

— ...É um homem livre, um homem que ama Portugal. Portugal!Portugal! Portugal!

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O homem que ama Portugal aproxima-se. Totalmente cercado por militantes, pousa as duas mãos no púlpito. Aguarda que se faça silêncio. E avança com uma ode ao PS, que lhe vale as primeiras palmas da assistência.

— Meus queridos amigos, camaradas: no fim desta campanha quero fazer perante todos vós o elogio ao PS. Este é um partido forte. Este partido nunca vira a cara à luta! Dizem muitos que sou corajoso. Não sei. Quero apenas dizer que o que sou aprendi com a história do PS.

As bandeiras voltam a agitar-se. Sócrates responde à energia colectiva com um derradeiro esforço. Desistir, mostrar fragilidade, está fora de questão.

- Este partido é o grande partido de todos, é o que os fundadores ambicionaram.

Olha discretamente para os apontamentos. Prossegue.

- .. .Nesta campanha mantive a atitude de sempre, de nobreza, elevação e superioridade. [...] Nunca nesta campanha entrou o insulto ou o ataque pessoal. Aqueles que fizeram desta uma campanha de ataques pessoais e insultos não me surpreenderam - já estou habituado a isso há seis anos...

Mais palmas. Pede silêncio. Segue-se o ataque directo a Passos Coelho.

- Foram os outros que incentivaram a radicalização. Mas isso é do foro psicanalítico. O PS está aqui a dizer que está disponível para compromissos. A isso chama-se grandeza e um partido como o nosso tem o dever de ser grande quando os outros se mostram sectários.

A multidão explode.

- Pê-esse! Pê-esse! Pê-esseU!

O discurso prolonga-se por mais uns minutos. Nos bastidores, os mais próximos do primeiro-ministro sentem o cheiro a fim de ciclo. Mas ainda não sabem que se encontram a assistir a um pedaço de História - aquele que provavelmente surgirá em todos os obituários de José Sócrates como o último comício da sua vida política.

Domingo, 5 de Junho de 2011

São 18h42 quando o líder do Executivo chega ao Hotel Altis, o quartel- -general do PS para a noite eleitoral. Está aparentemente descontraído, depois de uma tarde em família. Almoçou com a sua ex-mulher, Sofia Fava, e os dois filhos. Entra no elevador e sobe ao 13.° andar, onde já o aguardam as figuras que lhe são mais próximas - no PS e no Governo. Todos sabem

o que está para acontecer. Há uma desgraça a caminho; só não se sabe ainda a sua exacta dimensão. A dúvida que lhes corrói os sentidos é só uma: terá o PS capacidade para evitar uma maioria absoluta do PSD e do CDS/PP? Embora seja esse o seu objectivo desde muito cedo, nem Sócrates acredita nessa possibilidade. Naquele momento é quase uma evidência que Portas e Passos formarão em breve um Governo de maioria.

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Chegam os resultados. Confirma-se o pior dos cenários: a vitória folgada do PSD, com 38,63% dos votos, correspondentes a 105 deputados. Outro dos ganhadores da noite eleitoral é o CDS/PP, que com 11,74% dos votos reforça a posição de terceira força política nacional e assegura a eleição de 24 deputados, fundamentais para, juntamente com os do PSD, formar uma clara maioria absoluta na Assembleia da República. O grande derrotado da noite é, obviamente, o PS. Não indo além dos 28,05% dos votos, elege somente 73 deputados, menos 23 do que em 2009. Nada de novo: Sócrates tem, desde essa manhã, uma sondagem em seu poder cujos valores se aproximam dos que são divulgados pelos telejornais às 20h. Está na hora da verdade.

Sentado numa cadeira situada num dos quartos do 13.° andar do Hotel Altis, em Lisboa, o líder do PS é maquilhado por uma profissional. Contrariamente ao que se possa imaginar, o primeiro-ministro não é um cliente especialmente exigente ou particularmente vaidoso. Pretende apenas disfarçar pequenas imperfeições que se ampliam para lá do limite na televisão e, se possível, uma solução que o ajude a atenuar os efeitos do suor que seguramente o atacará quando, daí a pouco, entrar no elevador para descer ao rés-do-chão com o objectivo de dar o último dos passos da sua vida política antes de rumar a Paris, onde planeia concretizar um sonho de juventude: estudar fora de Portugal, sem pensar em mais do que na mera fruição cultural.

Minutos antes de descer ao piso-1 para falar ao País, Sócrates pede a André Figueiredo que lhe arranje uma cópia dos estatutos do partido. Nesse instante já decidiu afastar-se da liderança. Quer conhecer os formalismos legais para convocar um congresso extraordinário que dê lugar à eleição de um novo secretário-geral. Já tem o discurso escrito; falta

dar-lhe pequenos retoques. Assim que o faz, passa o documento às duas secretárias que se encontram naquele 13.° andar e que rapidamente o colocam em formato electrónico, a tempo de ser introduzido nos tele- pontos que Sócrates pensa utilizar na sua comunicação.

São 21h07 quando entra no elevador. Assim que as portas se abrem para sair, a loucura toma conta do Altis. Um batalhão de jornalistas ataca decididamente o primeiro-ministro. Querem um comentário à derrota eleitoral. Sócrates atravessa a multidão muito devagar. As tantas, o aparato é de tal modo que se parte um vidro, que acaba por cair em cima da jornalista da TVI Beatriz Jalon.

Uma vez mais, precisa de silêncio para falar. Demora uns minutos a controlar a massa ondulante que se movimenta descompassadamente à sua frente. Começa por elogiar os eleitores...

— Nesta noite quero começar por saudar os portugueses. Todos os portugueses. Todos os portugueses onde quer que se encontrem e seja qual for a preferência política que manifestaram no dia de hoje. É em dia de eleições que as democracias e as nações se afirmam. Pois neste dia — neste dia em que o povo democraticamente falou e fez a sua escolha — é isto que sinto e é isto que quero dizer aos portugueses: hoje, como sempre, acredito profundamente em Portugal e no seu futuro. Portugal é fruto da vontade dos portugueses. Portugal é uma nação antiga, forte e capaz, que nunca se vergou nem ao pessimismo, nem à descrença. Os portugueses sempre souberam ser senhores do seu próprio destino olhando

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para a frente com confiança e com ambição. É dessa confiança e ambição que precisamos, neste momento. É esse Portugal que quero saudar.

...Continua com a necessidade de promover o diálogo...

- A democracia cumpriu-se hoje, mais uma vez. O povo foi às urnas, o povo falou, o povo fez as suas escolhas políticas para a próxima legislatura. Quero por isso saudar, com respeito democrático, quem ganhou estas eleições: o PSD. [...] Sempre o disse, e às vezes fui uma voz isolada a dizê-lo: os tempos que temos pela frente exigem sentido das responsabilidades e espírito de compromisso. Nunca precisámos tanto de diálogo, de entendimento e de concertação como agora. E isso não muda com o resultado das eleições.

Reafirmo, assim, diante do Pats, a disponibilidade do Partido Socialista para o diálogo e para os entendimentos que, em coerência com o seu projecto, sejam necessários para que o País possa superar esta crise que atravessamos. Os votos do Partido Socialista estarão sempre ao serviço de Portugal.

... Prossegue para o Partido Socialista...

- Os resultados são o que são: o Partido Socialista perdeu estas eleições. Mas épreciso que se diga: nas actuais circunstâncias, o PS teve um resultado que dignifica o Partido Socialista e o seu papel na história da democracia em Portugal.

... E retira consequências políticas do falhanço. Com ele, a culpa não morreria solteira. Dulce Pássaro, ministra do Ambiente, chora abundantemente...

- Não me escondo atrás das circunstâncias. Esta derrota eleitoral é minha e assumo-a por inteiro esta noite. Entendo, por isso, que é chegado o momento de abrir um novo ciclo político na liderança no Partido Socialista. Um novo ciclo político que seja capaz de cumprir aquele que é, a partir de hoje, o dever primeiro do Partido Socialista: preparar uma alternativa consistente, credível e mobilizadora para voltar a governar Portugal. [... ] Pela minha parte, encerro hoje mais uma etapa de um longo percurso de 23 anos de exercício das mais diversas funções políticas. Estou profundamente grato aos portugueses por me terem dado a oportunidade e a honra de servir o meu País e os meus compatriotas. Regresso, com orgulho, à honrosa condição de militante de base do Partido Socialista.

Termina, já encharcado em suor, com um raro exercício de humildade...

- Todas as lideranças políticas cometem erros e eu terei, certamente, cometido alguns. Mas nunca cometi o erro de não agir e de não decidir. E não cometi o aro defiigir e de virar a cara às dificuldades, isso não. Ocorrem-me, naturalmente, algumas coisas que porventura poderia ter feito melhor, aqui ou ali. Pelos resultados outros falarão a seu tempo. E o tempo é sempre o melhor juiz da obra realizada. Mas o que vos digo é que não me ocorre nada

que os socialistas ou o Partido Socialista pudessem ter feito mais e melhor do que aquilo que fizeram ao meu lado, ao serviço de Portugal! [...]

Esta noite — especialmente esta noite — o meu coração está preenchido. Não há nele outro sentimento que não seja amor ao meu País, amor aos meus compatriotas. E gratidão. Uma

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profunda gratidão por os portugueses me terem dado a extraordinária oportunidade e a suprema honra de, como primeiro-ministro, poder servir o meu País - que é Portugal.

Assim que acaba, e já refeito da pergunta feita pela jornalista da Rádio Renascença acerca da possibilidade de sair judicialmente fragilizado depois da derrota, o primeiro-ministro junta os amigos partidários e membros do gabinete à mesa da Brasserie do Hotel Tivoli, outro dos seus restaurantes favoritos em Lisboa. É uma refeição diferente de outras. Já nada se encontra em jogo. Está tudo perdido. O que, paradoxal mente, é libertador. Naquele segundo, está longe de querer saber o que dizem os comentadores televisivos sobre a sua derrota; o que os «pistoleiros», como gosta de designar os jornalistas, escreverão nos jornais do dia seguinte; o que dizem de si na blogosfera. Quer comer uma massa, para que amanhã possa começar a preparar o seu futuro. Sabe que o espera uma travessia no deserto; que em Portugal o ambiente se tornou irrespirável. Mesmo para os amigos, a sua utilidade passou a ser muito relativa. Uns tempos depois da derrota, já a partir de Paris, telefona a um ex-colaborador próximo. Embora não seja esse o objectivo do contacto, interessa-se pela sua vida. Pergunta-lhe o que está a fazer profissionalmente. Resposta:

- Estou desempregado.

Sócrates fica desconfortável. Afinal de contas, aquela pessoa trabalhara consigo directa e diariamente durante anos; alguma responsabilidade teria sobre o que lhe sucedera. Pergunta-lhe se quer a sua ajuda. A resposta é desconcertante.

- Neste momento qualquer ajuda sua é uma desatida!

Dão uma gargalhada e desligam. Até hoje.

Ill

«PELAS COSTAS,

COMO UM PATIFE»

O anúncio do pedido de resgate financeiro. Sócrates exigiu que Teixeira dos Santos estivesse com ele.

Quarta-feira, 6 de Abril de 2011

São 18h05. Luís Bernardo, assessor de imprensa, corre para o gabinete de José Sócrates em São Bento. Está com ar carregado. Abre a porta e mostra-lhe uma página impressa do site de um jornal económico.

—Já viu a notícia do Negócios.'5

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Sócrates pega no papel, observa a fotografia do seu ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, e lê o título: «Portugal vai pedir ajuda externa». Sem perder a calma, exclama:

— [Traiu-me] pelas costas, como um patife.1

(27 dias antes...)

Quarta-feira, 9 de Março de 2011

Sócrates já está afundado, perdido, acossado. Tem a Comissão Europeia, o FMI, os bancos e a oposição permanentemente a morder-lhe os calcanhares por causa da crise dos juros galopantes da dívida pública, um fantasma sobre a governação. Não precisa, por isso, que também Cavaco Silva se junte ao grupo e lhe meta o pé em cima. Não naquele dia, pelo menos. O dia em que o Presidente da República toma posse no

Parlamento para o seu segundo mandato em Belém. A introdução no seu discurso de temas menos simpáticos para o Governo terá seguramente uma repercussão mediática difícil de controlar.

Cavaco sabe disso, claro — e por essa razão decide não poupar o Governo, apelando a um «sobressalto cívico» e lamentando que «muitos dos agentes políticos» só conheçam um «país virtual e mediático». «[É preciso] despertar os portugueses para a necessidade de uma sociedade civil forte, dinâmica e, sobretudo, mais autónoma perante os poderes públicos», afirma o chefe de Estado a partir do púlpito. Dois metros abaixo, na bancada do Governo, de costas voltadas para Cavaco, Sócrates tenta manter a calma - um exercício a que não está particularmente habituado. O seu ar é grave. Está furioso, como os seus membros do gabinete puderam posteriormente constatar. Ao longo dos seis anos em que esteve à frente do Executivo, nunca escondeu que detesta Cavaco.

Sob o olhar sempre terno de Maria, o Presidente prossegue: está na hora de os portugueses «despertarem da letargia» em que têm vivido. Sócrates escuta, hirto, na sua cadeira. Amanhã será outro dia.

Quinta-feira, 10 de Março de 2011

Os exercícios de respiração anti-fúria do dia anterior não tiveram efeitos a longo prazo. É que, menos de 24 horas depois, Sócrates esquece-se de inspirar e expirar repetidamente antes de se lançar como um animal ao rival de Belém. Os seus próximos sabiam: seria impossível travá-lo. E assim foi. «O Governo é que governa», diz, com a crueza habitual, aos jornalistas. Mais: «A palavra do Presidente da República é tanto mais forte quanto mais isenta for.» Tradução: o senhor Presidente não manda nada e devia preocupar-se mais com a manutenção da marquise da sua casa da Travessa do Possolo do que com a governação, sob pena de estar a meter-se onde não é tido nem achado.

O primeiro-ministro está de saída do debate da moção de censura apresentada pelo Bloco de Esquerda. Correu-lhe bem - apesar das

condições absolutamente adversas, conseguiu, como quase sempre acontecia nos momentos difíceis, sobreviver, com a ajuda do PSD e do CDS, que se abstiveram. Neste instante já só

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pensa em falar com Passos Coelho. No dia seguinte participará numa reunião fundamental do Conselho Europeu, em que apresentará um plano de austeridade, negociado durante dias e noites intermináveis entre o seu gabinete, com o assessor económico Vitor Escária à cabeça, e os responsáveis do BCE e da Comissão Europeia. Para que tudo corra bem na Europa, precisa do apoio do principal partido da oposição. Já em São Bento, liga a Passos Coelho. Pede-lhe que passe por São Bento - tem um «assunto de Estado» para discutir com ele.

O sol já se pôs quando Passos, sentado ao lado do seu chefe de gabinete, Feliciano Barreiras Duarte, num Audi negro conduzido pelo Sr. Meireles, o motorista do partido, entra pelos portões da residência oficial do primeiro-ministro. A sua espera está Sócrates, que ostenta o ar grave das grandes ocasiões. Passos percebe imediatamente porquê: o seu adversário está ansioso pelo apoio ao plano que apresentará no dia seguinte. Na anterior reunião do Conselho Europeu, que ocorrera a 4 de Fevereiro, ficara decidido que ou Portugal apresentava um documento consistente de reequilíbrio das contas, que se enquadrasse devidamente numa solução europeia global e integrada, ou poderia perder o apoio dos seus parceiros.

No seu gabinete, Sócrates explica detalhadamente o que pretende fazer para convencer os chefes de Estado europeus de que o problema financeiro português ainda tem solução. Receita para atingir o objectivo do défice de 3% no ano seguinte: cortes, cortes, cortes. A negociação fora difícil. Representantes do Banco Central Europeu e da Comissão Europeia deslocaram-se a Portugal para partir pedra com Vítor Escária. O documento final só ficou fechado à última hora - Sócrates resistiu até ao limite a incluir duas medidas: o aumento do IVA e a diminuição das deduções do IRS. Sabia que Passos não concordava com elas e não queria que o líder do PSD pensasse que se tratava de uma provocação. A dada altura, face à sua hesitação, um colaborador perguntou-lhe:

- Onde é que vamos buscar então 600 a 800 milhões?...

Sócrates engoliu em seco.

Os juros da dívida porcuguesa tinham batido nuns impressionantes 7,7%. Era urgente tomar medidas drásticas, sob pena de Portugal se afundar ainda mais na esquizofrenia especulativa dos mercados financeiros. Na manhã seguinte, Sócrates teria de defender a sua dama e considerava que sem o apoio do chefe da oposição tudo poderia claudicar. Problema: tinha-o deixado de fora durante o processo negocial. Apesar disso, embora contrariado, Passos ter-se-á comprometido nessa noite a não tirar o tapete ao Governo numa circunstância tão complicada.

Sexta-feira, 11 de Março de 2011

As próximas horas serão decisivas. Há muito que Portugal caminha perigosamente em cima de um arame sinuoso. Conscientes de que a queda é uma hipótese real, Sócrates e a sua equipa de crise discutiram durante semanas em São Bento a estratégia a adoptar. O primeiro passo - negociar em segredo com o BCE e a Comissão Europeia - estava conseguido. O segundo - amansar o líder da oposição - também tivera aparente sucesso. O terceiro está prestes a ser dado: logo pela manhã, com um ar que oscila entre o envergonhado e o comprometido, Teixeira dos Santos desfia em conferência de imprensa as ideias do Executivo para reequilibrar

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as contas públicas. Pura violência: congelamento das pensões, corte nas indemnizações por despedimento, redução de custos com medicamentos e outras medidas na área fiscal que, na prática, resultavam na subida de vários impostos, como o IRS ou o IRC.

No momento em que o ministro das Finanças termina a sua comunicação, deixando o País em estado de choque, já Sócrates se encontra em Bruxelas, para onde viajou pela madrugada no Falcon do Estado português com uma pequena comitiva, no sentido de cumprir o quarto e último passo do plano. Durante o voo, mostrou-se aliviado pelo facto

de a conversa com Passos ter resultado. Estava confiante: tudo correria pelo melhor.

Quando sai do seu Mercedes preto junto ao edifício do Conselho Europeu, escoltado por três motas da polícia, o primeiro-ministro aparenta uma inesperada descontracção, tendo em conta a importância do momento. O facto de se sentir acolchoado pelo apoio de Passos e do presidente da Comissão Europeia, Durão Barroso, é importante para alimentar o seu estado de espírito. Também a chanceler alemã, Angela Merkel, sucumbira aos seus argumentos. O primeiro-ministro prometera-lhe medidas duras; ela comprometera-se a convencer os contribuintes alemães a continuar a apoiar os preguiçosos do Sul da Europa.

Discretamente maquilhado, de casaco comprido de corte irrepreensível, com uma gravata azul escolhida por si, Sócrates explica pacientemente aos jornalistas o que o traz a Bruxelas: «Portugal vem para esta cimeira com o firme propósito de, pela sua parte, contribuir para a defesa da moeda única e defesa da Europa e, por isso, o ministro das Finanças teve ocasião de, em Portugal, antecipar para hoje a divulgação daquilo que são as nossas linhas de orientação para 2012 e 2013, para que não haja a mínima dúvida na Europa e nas instituições europeias de que Portugal está comprometido com a orientação para pôr as contas em ordem.»

À mesma hora, em Lisboa, Passos Coelho faz uma ronda de telefonemas para pessoas da sua confiança, sobretudo políticos e economistas. Quer cheirar o ambiente, saber o que pensam o partido e a inteligência nacional. No PSD, os militantes - sobretudo os que têm mais responsabilidades - tremem de excitação. Acham que está na hora de tomar o poder de assalto, de depor Sócrates, correr com os camaradas e substituídos energicamente por companheiros de partido. E se o líder não o quiser fazer, outro o fará por ele. Marco António Costa, o chefe do aparelho, não poderia ter sido mais claro na conversa com Passos:

— Ou nos preparamos para eleições no País ou para eleições internas.

O aviso, que Passos regista em silêncio, fica dado. O líder do PSD sabe que Rui Rio espreita uma oportunidade para lhe assaltar o lugar. Curvar-se uma vez mais perante o primeiro-ministro será, muito provavelmente, um exercício de dolorosa auto-imolação política.

Entre os membros da sociedade civil que também ouve, as opiniões dividem-se. Uns consideram que o Governo expirou o prazo de validade, mas também há quem acredite que vale a pena dar uma última oportunidade a José Sócrates e Teixeira dos Santos. Embora não a tenha partilhado com ninguém, o líder do PSD já tomou a decisão: não continuará a carregar Sócrates ao colo. E é isso mesmo que faz sentir a um banqueiro que lhe liga nesse dia, preocupado com a possibilidade de Passos inviabilizar os esforços do primeiro-ministro.

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- Desculpe, mas não pode ser! Chegou a altura em que defender o País implica agir de outra forma, porque senão andamos sempre nisto. É como um jogador quando entra num casino e perde dinheiro: «É só mais uma vez». E depois é outra e outra. Eu não posso continuar a alimentar um viciado em jogo de casino.1

Se, a 2.041 km de distância, as orelhas de Sócrates aquecem perante os comentários de Passos, escaldam quando, a meio da tarde, Cavaco Silva, depois de informado pelo líder do PSD sobre a sua posição, pede a Fernando Lima, seu assessor de imprensa, que comunique aos jornais que não foi informado pelo Governo sobre o programa de austeridade que este acaba de apresentar em Bruxelas. E ficam definitivamente a arder no momento em que Passos, sentado no seu gabinete da São Caetano à Lapa, se senta a escrever o discurso que planeia fazer ainda nesse dia, depois de divulgados os resultados da cimeira de Bruxelas.

Começa assim:

O País foi esta manhã surpreendido com o anúncio feito pelo Governo de um vasto conjunto de medidas de austeridade. Surpreendido, desde logo, porque ainda ontem o Governo reafirmou estar assegurado o controlo das contas públicas e a consequente desnecessidade de recurso a qualquer ajuda.

Mas surpreendido também pelo facto de as medidas hoje levadas a Bruxelas terem sido ocultadas ao Parlamento, parceiros sociais e mesmo, ao que parece, ao Presidente da República. Com esta política de facto consumado, uma vez mais, o Governo insiste em tratar Portugal e os portugueses como se fossem coisa sua, dando, assim, mostras de total falta de cultura democrática.

E continua...

O PSD afirma com total clareza e lealdade democrática que o errado caminho que o Governo pretende prosseguir não contará com o nosso apoio. Reforço: se o Governo quer seguir tal caminho terá de o fazer sozinho ou procurar o apoio de outros, mas não terá o apoio do PSD.

É claro que o jogo vai virar. Em Bruxelas, Sócrates participa num jantar de trabalho com todos os líderes da zona Euro. O dia não foi fácil. Merkel e Barroso estão consigo, mas também há quem desconfie da capacidade de Portugal para cumprir os seus compromissos. A dada altura, o primeiro-ministro holandês decide fazer uma intervenção nesse sentido. Sócrates perde o controlo:

- Diga lá quanto é que Portugal lhe deve porque não estou para lhe dever um tostão ou para aturar o seu calvinismo reles!3

O documento é votado pelos membros do Conselho. Sucesso total. Sócrates vence. Angela Merkel não lhe salta para o colo, mas faz questão de lhe mostrar que está contente com o desfecho:

- Parabéns!4

Durão Barroso também está eufórico:

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- Conseguimos.

A dada altura, o presidente da Comissão Europeia sai da sala com o telemóvel na mão. Quando regressa parece em estado de choque:

— Não acredito no que se está a passar em Portugal!1'

Quando Vítor Escária estende a Sócrates o take da agência Lusa a noticiar que Passos Coelho só espera pelo fim da reunião para fazer uma conferência de imprensa a anunciar o chumbo ao PEC IV, o primeiro-ministro fica possesso. Como é possível tamanha irresponsabilidade? Escária também está chocado - tantos meses de trabalho duro deitados ao lixo. O momento seguinte é de total embaraço. Sócrates pede a palavra e deita, derrotado, o tapete ao chão.

— Meus senhores, acabo de tomar conhecimento de que o líder da oposição portuguesa não apoiará as medidas que constam deste documento, por isso, a confirmar-se esta posição nada me resta a não ser levá-lo a votos no Parlamento português.

A desilusão é geral. «Mas o que estamos aqui a fazer?!»8, pergunta um dos presentes. Por telefone. Durão ainda tenta demover o líder laranja. Nada feito.

Apesar de ter comovido muitos militantes do PSD profundo e menos profundo, o grito do Ipiranga de Passos não comove Jean-Claude Trichet, Angela Merkel ou Nicolas Sarkozy. Todos temem que, caso sejam votadas na Assembleia da República, as propostas do Executivo não passem. E que, nessa circunstância, José Sócrates peça a demissão, precipitando eleições antecipadas e abrindo uma crise política que não interessa a ninguém.

Um membro do gabinete do primeiro-ministro resume aquilo em que todos, na comitiva de Sócrates, acreditavam: «O documento aguentaria Portugal pelo menos até ao segundo resgate da Grécia e permitir-nos-ia fazer uma gestão semelhante à dos espanhóis, que não tiveram de pedir ajuda externa.»

Quando entra no Falcon de regresso a Portugal, Sócrates ainda tem esperanças de que Passos mude de ideias. Assim que chega, percebe que está a laborar numa enorme fantasia. Liga a Jorge Lacão, um dos seus conselheiros mais próximos, e explode:

- Vamos fazer como o Cortes: incendiar as naus! Se eles chumbarem o PEC demito-me.

Há vários meses que o primeiro-ministro andava obcecado com a evolução dos juros da dívida portuguesa. Eram elas o barómetro da confiança que os mercados financeiros depositavam (ou não) em Portugal. «A dada altura ficou paranoico com as taxas. Queria acompanhá-las quase ao minuto.»10 Vítor Escária era o seu principal apoio. Três meses antes, instalara em São Bento um terminal informático em que era possível ver a sua evolução em tempo real.

Sócrates, que apesar de ter apontado o Plano Tecnológico como uma das principais bandeiras da sua governação, tinha particulares dificuldades para lidar com a tecnologia, atrapalhava-se no manuseamento do terminal - a ansiedade traía-o frequentemente. A sua obsessão com aquele ecrã era de tal modo intensa que o fez deslocá-lo da sala de reuniões da residência, onde foi inicialmente instalado, para a que dava acesso directo ao seu gabinete. Estava aterrorizado com o dia em que os juros ultrapassassem a fasquia psicológica dos 7%, de que

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estava refém desde que Teixeira dos Santos afirmara publicamente que era esse o limiar a partir do qual se devia solicitar um resgate - uma intervenção que lhe valeu um enorme raspanete. Apesar de considerar as declarações do ministro das Finanças um erro, um elemento próximo de Sócrates desculpabiliza-o: «Na altura ele estava longe de acreditar que algum dia chegaríamos a esse ponto. Fê-lo na convicção de que a situação nunca se colocaria.»11 Mas colocou.

Se o ambiente em São Bento era pesado por causa das fúrias épicas do primeiro-ministro, transformava-se num pandemónio quando, na sua cabeça, se instalava a confusão sobre as verdadeiras taxas de juro, que variavam durante o dia em função da agência que as divulgava. A Reuters podia dar um valor e, ao mesmo tempo, a Bloomberg, que era utilizada por jornais como o Diário Económico e o Jornal de Negócios, dar outro. «Isso era suficiente para o tirar fora de si. Muitas vezes tive de lhe explicar que essas pequenas variações, que muitas vezes eram de centésimas, eram corrigidas no final do dia, quando as taxas se encontravam.»12

Quarta-feira, 23 de Março de 2011

Como sempre acontece. Luís Bernardo acorda pelas 7h da manhã. Levanta-se, sintoniza o rádio na TSF e escuta as primeiras notícias do dia. Em bom rigor, não são as primeiras - o assessor de imprensa mais próximo de José Sócrates raramente se deita sem saber quais serão as capas dos jornais do dia seguinte. É um news junkie, um viciado em informação que lê, vê e ouve quase tudo o que é noticiado nos media sobre a acção governativa e acerca de José Sócrates em particular.

O seu acesso à informação é quase ilimitado. Sabe, quase em tempo real, quais são as notícias importantes que estão a ser trabalhadas nos órgãos de referência e, se quiser — e quis muitas vezes ao longo do tempo em que trabalhou com Sócrates -, tem como aceder a artigos de jornal já escritos e paginados que serão postos à venda no dia seguinte.

Apesar da normalidade aparente, aquela não é uma manhã como as outras. Pode ser a sua última como assessor de um primeiro-ministro no exercício pleno das suas funções. No Parlamento, é o dia de todas as decisões - aproxima-se o tudo ou nada. Sócrates radicalizou, claro: ou o seu plano tem apoio parlamentar ou a demissão é certa.

No gabinete, o chefe do Executivo não parece tão ansioso como habitualmente. «Ele tem uma qualidade extraordinária: nos grandes momentos: aparenta uma calma impressionante. Deixa de gritar, fica pensativo, introspectivo.»13

Durante a manhã, Sócrates encontra-se com Jaime Gama, presidente da Assembleia da República, e troca ideias com os seus principais conselheiros sobre a melhor forma de encarar o que se seguirá. São 15h06 quando entra em São Bento. Senta-se na bancada do Governo, ladeado por Teixeira dos Santos, Vieira da Silva, Jorge Lacão e Pedro Silva Pereira. Está prestes a começar a tarde explosiva que rebentará em definitivo com a governação. Aqui fica o relato, minuto a minuto.14

15h20 - Começa a falar o ministro das Finanças, Teixeira dos

Santos.

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15h25 -Teixeira dos Santos: «A dúvida mina a confiança. A dúvida é como pedra no sapato que fere.»

15h27 - Primeiros aplausos da bancada do PS a Teixeira dos Santos. Sete segundos. Pouquinho.

15h29 - Teixeira dos Santos: «Temos de poupar. Temos de gastar menos.»

15h35 - O ministro das Finanças termina a intervenção inicial: «O País precisa de um amplo entendimento político.» Ao passar por José Sócrates, o primeiro-ministro abraça-o e abandona imediatamente o plenário, dirigindo-se para a residência oficial. Precisa de escrever o discurso de demissão que, previsivelmente, terá de proferir no início da noite. No Parlamento, o debate continua na sua ausência.

15h50 - Fala Francisco Assis, líder parlamentar do PS: «O Governo não hesita em tomar as medidas necessárias.»

13h57 - Assis ataca a oposição: «O PSD seguiu um caminho indigno.»

16h01 - Teixeira dos Santos de novo: «O PSD só está preocupado em chegar ao poder.»

16h03 - Mais Teixeira dos Santos: «O PSD não quer dar a cara pelas medidas que são necessárias.»

16h22 - Francisco Louçã. Como acontece quando fala o líder do BE, o Parlamento eleva os níveis de intensidade. «Os portugueses sabem agora que há dois anos inteiros dos salários da função pública que estão no escândalo do BPN.» Depois de um chorrilho de críticas, anuncia o chumbo ao PEC «de forma clara».

16h31 -Teixeira dos Santos: Louçã é um «demagogo bem-falante».

16h35 - Bernardino Soares, do PCP: «O Governo tratou mal a Assembleia da República na apresentação do PEC, que não é um Plano de Estabilidade e Crescimento, é um programa de recessão e de instabilidade para a vida das pessoas.»

16h46 -Teixeira dos Santos para Bernardino Soares: «O senhor achou que isto [o debate] era tão importante que até usou uma linda

gravata.» A gravata do líder parlamentar comunista é azul com riscas diagonais prateadas - Paulo Portas poderia usá-la.

17h03 - Manuela Ferreira Leite ao ataque. Acusa o PS e o Governo de se «esconderem numa torre de arrogância e de desprezo democrático». Mas não só: para a ex-líder do PSD, José Sócrates tem «um discurso manipulador» que «minou a confiança de todos os sectores da sociedade portuguesa.»

17h 13 - Manuela Ferreira Leite imparável: «Pela forma como o Governo actua, o País continuará a afundar-se».

17h35 - Mais Ferreira Leite: «Em democracia há soluções. As soluções de um Governo passam por esta Assembleia. E se não for o PS a fazê-lo haverá outros partidos capazes de o fazer.»

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17h37 - Jaime Gama passa para os discursos finais. Fala Paulo Portas.

17h39 - O líder do CDS quer «recuperar a liberdade de Portugal.» Acusa o PS de provocar uma crise. E aponta o dedo ao PSD por aceitá-la.

17h42 - Ainda Paulo Portas: «Este PEC IV é tão cruel quanto a propaganda do Governo é fantasiosa. [...] O discurso do Governo é o dos curandeiros enganosos.» O dirigente centrista aproveita para fazer o papel de Zandinga: «O primeiro-ministro estará nas televisões às 20h. Prefere a propaganda à política.»

18h53 - Hora de Jerónimo de Sousa, secretário-geral do PCP. A cassete é a do costume: «O que este PEC propõe é mutilar os direitos dos trabalhadores. [...] Diga lá, senhor ministro das Finanças, qual é o esforço que a banca está a fazer? [...] Os senhores não têm coragem de desafiar os tubarões.»

Indiferente à guerrilha dialéctica que se desenrola a poucos metros de si [a residência oficial é contígua ao Parlamento], Sócrates ultima o discurso do fim. Tem já agendada uma audiência com Cavaco Silva para daí a sete minutos (19h), mas não a quer realizar antes de terminar a votação na Assembleia, onde continuam as intervenções...

19h35 - Francisco Assis: «Para o PSD, pelos vistos, a alta política é o domínio da abstracção e do vazio.» Pela primeira vez, a bancada do PS levanta-se em apoteose. Logo a seguir, uma espécie de epitáfio do seu camarada: «Tive orgulho em servir Portugal com um homem da envergadura de José Sócrates.»

19h56 - Cinco horas depois de o debate começar, passa-se à votação. Pedro Silva Pereira não fica para assistir. Quer juntar-se rapidamente a José Sócrates, que naquele preciso instante já se prepara para se dirigir a Belém.

20h02 - Votos contados. O PEC IV morre antes de nascer.

São 20h19 quando o carro do primeiro-ministro entra no palácio de Belém. O Presidente recebe-o em ambiente de total formalidade. Não parece especialmente desgostoso com a queda - na sua cabeça Sócrates nunca teve condições mínimas para liderar um Governo da nação. O primeiro-ministro, por seu lado, também não está particularmente interessado em grandes conversas. O diálogo é, por isso, curto. O Presidente, preocupado com o futuro próximo, tenta alertá-lo para a necessidade de não abandonar abruptamente a condução do Governo - as eleições não seriam para o dia seguinte. Sócrates responde secamente.

— Senhor Presidente, descidpará mas não preciso que me lembre os meus deveres.15

Exactamente 21 minutos depois de entrar, Sócrates deixa Belém. Sentado ao lado do motorista num Audi preto, regressa a São Bento, onde naquele instante está a ser ultimado o cenário para o discurso final. Todos os minutos contam. Tem de entrar em directo nas televisões o mais rapidamente possível. Juntamente com Luís Bernardo, faz os testes do costume: iluminação, teleponto, microfones. Está maquilhado. Pode avançar.

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21h02 — «Hoje os partidos da oposição retiraram todas as condições para o Governo continuar a governar. Acabei de apresentar a minha demissão ao senhor Presidente da República.»

21h07 - «Esta crise política era evitável. [...] Pode haver quem pense que hoje teve uma vitória no jogo político. [...] Hoje o País perdeu, não ganhou.»

21 h09 - «Os que provocaram a crise política são a partir de agora os responsáveis pelas suas consequências. [...] Agora, como sempre, acredito nos portugueses e em Portugal.»

Termina. Está exausto. Precisa de jantar. No dia seguinte inaugurará uma nova luta. Sente-se preparado. Com coragem. Como sempre.

Terça-feira, 5 de Abril de 2011

- Paulo, tenho a gravata alinhada? E o casaco está direito? Fico com ele aberto ou fechado'™'

Ricardo Salgado, presidente executivo do Banco Espírito Santo (BES) está preocupado com a sua imagem. Daí a 30 segundos dará uma das entrevistas mais importantes da sua vida enquanto banqueiro. Nada pode falhar. Paulo Padrão, director de comunicação do BES, é a última pessoa com quem fala antes de lançar um olhar frio e profundo em direcção a Judite Sousa, a jornalista da TVI, já sentada na sua cadeira, também ela pronta para conduzir uma das conversas mais marcantes da sua carreira.

Judite não tem de fazer um esforço sobrenatural para que Ricardo Salgado lance a bomba mais esperada. Limita-se a colocar a pergunta óbvia:

- Portugal deve ou não solicitar ajuda internacional?

A resposta é a que Sócrates não quer, não precisa, não pode ouvir.

— O que ouvi do primeiro-ministro é que só o fará em último recurso. Acontece que a sucessão de acontecimentos é de tal forma rápida que, neste momento, acredito não haver outra alternativa senão o pedido desse apoio intercalar da União Europeia para Portugal. É urgentíssimo, porque sinto

que o Estado está com constrangimentos financeiros que têm de ser resolvidos para neutralizar o efeito da subida das taxas de juro.

O Dono Disto Tudo, como é conhecido, sabe do que fala. A necessidade de financiamento do Estado português para o curto prazo é aflitiva: tem de pagar dois empréstimos de mais de quatro mil milhões de euros cada, que vencem em Abril e Junho. As reservas nacionais chegam para liquidar o primeiro, mas são claramente insuficientes para pagar o segundo - ou seja, será necessária uma nova emissão de dívida, o que, com os juros acima dos 10% e com os bancos nacionais de cofres vazios, se afigura como uma missão praticamente impossível.

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Judite Sousa chegou à TVI apenas cinco dias antes, na sequência de uma OPA hostil da Prisa [dona da TVI ] à direcção de informação da RTP. Juntamente com José Alberto Carvalho, assumiu as mesmas funções num canal que ainda vivia as dores do polémico afastamento da jornalista Manuela Moura Guedes.

Ao chegar à estação, a jornalista sentiu que devia dar uma demonstração da sua força, do peso e do capital próprio que poderia conferir à TVI, fazendo com que todos - os colegas de redacção, os políticos, líderes de opinião e telespectadores - percebessem que uma nova era começara na estação. Estreou-se com uma entrevista a Teixeira dos Santos. Apesar da simpatia evidente do ministro das Finanças, com quem ficou a conversar sobre futebol depois da conversa (são ambos adeptos do Futebol Clube do Porto), a audiência não foi fantástica: 25% de share. «Achei que depois disso devia avançar imediatamente para entrevistas aos presidentes dos maiores bancos a operar em Portugal. Tive a intuição de que algo de muito importante estava em curso e quis que a TVI tivesse um papel nesse processo.»17 No espaço de uma hora contactou os responsáveis de comunicação do BES, do BPI, do BCP e do Santander, solicitando-lhes uma entrevista aos respectivos líderes para o imediato. «O que aconteceu depois disso foi inédito na minha carreira. Todos aceitaram poucas horas depois, o que me faz acreditar que se concertaram para tomar uma posição de conjunto.»18

Preocupados em não distorcer de forma radical a linha daTVI, Judite Sousa e José Alberto Carvalho optaram por entrevistas curtas, de dez minutos, a emitir em dias seguidos. Além disso, reconhece Judite, «por ser uma experiência pioneira, não queria comprometer seriamente as audiências da estação».

As entrevistas - sobretudo a de Ricardo Salgado, o mais importante banqueiro e também o mais próximo de José Sócrates - têm uma repercussão gigantesca. Hoje é um dado adquirido que contribuíram decisivamente para precipitar uma decisão que a prazo seria inevitável - apesar da resistência estoica de Sócrates, que assistiu, impotente e revoltado, às declarações daqueles que até há pouco tempo tinham sido seus parceiros privilegiados. Um ex-colaborador recorda o estado de espírito de Sócrates: «Sentiu-se traído, uma vez mais. Sabia que depois daquilo pouco havia a fazer. Achou que era ingrato que, depois de tanta resistência, não houvesse ninguém que estendesse a mão ao Governo.»

No Público, Luís Campos e Cunha, o primeiro ministro das Finanças da era Sócrates, com quem se incompatibilizou ao fim de pouco mais de um mês, resumiu a tragédia em curso: «Estamos a viver um filme de terror em que o Drácula culpa a vítima de lhe sugar o sangue. Estamos a viver o malbaratar dos dinheiros públicos durante muitos anos, com especial relevância nos últimos cinco. Estamos a sofrer as consequências da dita política keynesiana de 2009 que teria permitido que a recessão fosse apenas de 2,6%. Muitos defenderam tal irracionalidade, mas também houve quem chamasse a atenção da idiotia de tal abordagem numa pequena economia, sem moeda própria e sem fronteiras económicas. Sócrates afirmou que o défice de 2009 foi da sua responsabilidade porque foi de propósito, lembram-se? E o de 2010 é responsabilidade de quem?»

O castelo está a ruir.

Quarta-feira, 6 de Abril de 2011

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Teixeira dos Santos já não aguenta a pressão. São os banqueiros. São os parceiros europeus. É Cavaco Silva. É Durão Barroso. São as agências de rating. Tirando Sócrates e os seus próximos, ninguém acredita que Portugal sobreviva sem resgate — e quanto mais cedo ele acontecer, melhor. Aterrorizado com a possibilidade de o País entrar em default, o ministro das Finanças ruma uma vez mais a São Bento, na expectativa de convencer Sócrates a acatar a sua opinião. Nessa manhã, Portugal realizou um leilão de dívida que, como era previsível, correu muito mal. Está decidido: vai encostar o primeiro-ministro à parede. Diz-lhe:

- Tem de ser!

Sócrates não baqueia:

— Não, não estou convencido/”

A verdade é que Teixeira dos Santos já não é a pessoa ideal para convencer o primeiro-ministro a fazer o que quer que seja. O facto de defender a ajuda externa de forma tão aberta há várias semanas faz dele, aos olhos de Sócrates, um vendido aos interesses da Alemanha e do grande capital financeiro. O chefe do Executivo suspeita que o Ministério das Finanças tem duas caras: uma para ele e outra para os interlocutores europeus.

Há muito que os gabinetes do primeiro-ministro e das Finanças trabalham numa base de desconfiança mútua, mais precisamente desde que Sócrates percebeu, através de conversas informais com Durão Barroso e Angela Merkel, que, ao negociarem na Europa em nome de Portugal, os técnicos das Finanças não veiculam a mensagem oficial do Governo português, claramente contrária a um pedido de ajuda. A guerra surda chegou a assumir contornos ridículos: a certa altura, os assessores de imprensa do Ministério das Finanças deixaram de atender as chamadas dos assessores do gabinete do primeiro-ministro, que tinham responsabilidades de coordenação geral da comunicação governamental.

«Percebemos que estávamos em lados opostos da barricada e José Sócrates não hesitou: ficámos nós com a gestão comunicacional dos assuntos mais relevantes - os leilões da dívida pública, os números do desemprego, as exportações e outros dados de macroeconomia.»20

Um dia, um membro do gabinete de Teixeira dos Santos enviou uma sms a um elemento da equipa de Sócrates.

— Vem tomar café comigo.

Já sentado, com a chávena ao seu alcance, o colega desabafou:

— Estou aqui em sigilo absoluto. A conversa tem de ficar entre nós. Queria só dizer-te que vocês podem continuar a ligar mas ninguém vai atender os telefones.

Gorada a tentativa do ministro das Finanças, avança um peso pesado: Mário Soares. Nos últimos dias, o ex-Presidente da República recebera e falara com muitas pessoas que defendiam o pedido de resgate. Uma delas fora Ricardo Salgado. A todos, Soares prometeu diligenciar junto de Sócrates no sentido de este «ganhar juízo». Telefona-lhe e pergunta-lhe se o pode receber. Apesar de estar a ter um dia canino, o primeiro-ministro é incapaz de recusar a solicitação do paterfamilias do PS.

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Soares pede-lhe que avance imediatamente com o resgate. Resposta: nem pensar nisso. O decano socialista, muito pouco habituado a ser contrariado, insiste até à exaustão. Nada. Vira costas, desce os degraus do palácio, enfia-se no carro negro com motorista e regressa à Fundação Soares, situada a cerca de um minuto da residência oficial. Quando, lá chegado, fala com Vítor Ramalho, o socialista, apontado como o último dos soaristas, diz-lhe:

- O homem não vai avançar. Tem uma determinação enorme, não vai desistir!2'

De São Bento, Teixeira dos Santos segue para o Terreiro do Paço. Quer almoçar com os seus quatro secretários de Estado, Costa Pina, Sérgio Vasques, Gonçalo Castilho e Emanuel dos Santos. No final da refeição, despede-se com uma frase denunciadora.

-Até ao fim do dia algo farei.11

E faz mesmo. Poucas horas depois, pede à assessora de imprensa Rita Tamagnini para ligar ao Jornal de Negócios a propor que lhe façam algumas questões sobre a emissão dos bilhetes do Tesouro dessa manhã, que tinha corrido muito mal. Na verdade, o que Teixeira dos Santos quer é outra coisa - exactamente o que vem a suceder.

Quando é contactada, Helena Garrido, a subdirectora do jornal, não se encontra na redacção. Está a entrar para uma reunião com um dirigente histórico do PS. Não pode deixá-lo à espera, até porque naquele instante ele surge à porta. Adia.

- Rita, dá-me uma hora, pode ser?

— Ok, até já.

Assim que termina a reunião, Helena entra num táxi e liga imediatamente a Rita Tamagnini. Nesta altura ainda está longe de imaginar o que se passaria no minuto seguinte. Propõe-lhe que espere até que chegue à redacção do Negócios, de onde lhe enviará as questões. A resposta é negativa.

— Não posso esperar mais. Dita-mas por telefone.

— Como avalia os resultados do leilão de hoje, nomeadamente no que respeita às taxas de juro?

— Quem foram os compradores (mais portugueses ou estrangeiros) e se o Governo está a dar orientações às empresas públicas para comprarem dívida pública?

— Portugal tem condições de encontrar os recursos necessários para pagar as suas dívidas (do Estado e das empresas públicas) até que o novo Governo entre em funções? E qual é o montante dos compromissos do Estado até ao Verão?

E, finalmente, a questão mais desejada pelo titular das Finanças:

- Portugal deve pedir ajuda já?

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Pouco antes das seis da tarde, o telefone de Helena Garrido toca. É Rita Tamagnini.

- Helena, enviei-te as respostas. Peço-te que tomes atenção à última delas.

A jornalista percebe finalmente o que está em causa. Em plena redacção, grita para os colegas, ainda sem ter lido o e-mail do Ministério das Finanças:

- Portugal vai pedir ajuda!!!!!!!

E a loucura instala-se.

Depois de informado sobre as declarações de Teixeira dos Santos por um Luís Bernardo ainda a recuperar do choque, Sócrates aparenta uma calma invulgar. Uma vez mais, face a um episódio-limite, não perde a compostura. «Era mais fácil ele irritar-se porque um telefone não funcionava do que nestas ocasiões.»24

Pede para se ligar ao ministro. Tem de revelar-lhe o que pensa sobre o que acaba de fazer. Com grande frieza, diz-lhe foi um acto de traição,

uma indignidade, uma canalhice. Devia, no mínimo, ter-lhe dado tempo para falar com o Presidente da República. Em suma, tivera a atitude de um garoto.

Terminada a chamada, há que seguir em frente. Pede a Bernardo para chamar o inner circle. «Era como se na cabeça dele aquele cenário já estivesse todo montado, tal foi a rapidez com que reagiu. Sabia todos os passos a dar de seguida.»25

Acção prioritária: telefonar a Cavaco Silva a dar-lhe conta do ocorrido. Não o apanha de surpresa - também no seu caso, esse mérito pertence ao jornal da Cofina. Nesta semana, o Presidente fez um conjunto de contactos internos e externos relacionados com a crise, tendo recebido, em audiências separadas, os presidentes dos quatro maiores bancos nacionais e o governador do Banco de Portugal, Carlos Costa. Estava a trabalhar num cenário que apontava para um financiamento intercalar de emergência, que garantisse o financiamento da economia até 15 de Junho. Seria então que haveria um novo pico de financiamento. E nesse momento o novo Governo não estaria ainda em condições de assumir junto de Bruxelas o compromisso de um pacote de medidas de austeridade que viabilizasse um financiamento a três anos.

Cavaco manteve contactos telefónicos com o presidente da União Europeia, Herman Van Rompuy, o presidente do Banco Central Europeu, Jean-Claude Trichet, e o presidente do Eurogrupo, Jean-Claude Juncker. Procurou convencê-los de que a agitação política que varria Portugal tinha gravidade apenas relativa e que rapidamente seria ultrapassada.

Em São Bento, Sócrates está a mil à hora. Tem de ser escrita a intervenção do anúncio do pedido de ajuda, que fará daí a pouco em directo para os telejornais. A tarefa fica a cargo do chefe de gabinete, Almeida Ribeiro, um discreto e competente ex-espião do Serviço de Informações e Segurança (SIS), considerado um pequeno génio pela generalidade dos que com ele trabalham. O processo é relativamente rápido. A verdade é que o primeiro-ministro já tinha decidido avançar para o resgate. Só não o fizera ainda por dois motivos. Primeiro: queria fazer uma ronda de contactos com os líderes europeus de modo a que estes reagissem

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solidariamente com Portugal na hora do anúncio. Segundo: não queria avançar antes do congresso do PS, que se realizaria nesse fim-de-semana, para não diluir o seu efeito mediático. Sócrates já tinha inclusivamente pedido aos seus assessores para solicitar as cartas de pedido de resgate da Grécia e da Irlanda, caso se pretendesse fazer uma adaptação à realidade portuguesa. Em São Bento já circulavam drafts do pedido.

Decide-se que até às 20h, hora para que está prevista a comunicação ao País, o gabinete fica oficialmente em blackout. Luís Bernardo agarra no seu telemóvel, desliga-o e coloca-o em cima de uma mesa. Volta-se para os colegas e diz:

— Agora quero que todos façam o mesmo. Não vamos atender uma só chamada.

A ideia é criar expectativa para a comunicação, mantendo a dúvida no ar. Depois da notícia do Negócios, o gabinete do primeiro-ministro sabe que não terá de se esforçar para captar a atenção da imprensa. A telefonista de São Bento é instruída para atender as chamadas e informar os profissionais da hora para que está prevista a intervenção.

Há muito para tratar. São Bento não tem salas de grandes dimensões e a ocasião exige um espaço à altura. Solução: colocar os funcionários da residência de rabo para o ar a mudar cadeiras e sofás para libertar espaço num dos salões, de modo a que os jornalistas possam trabalhar à vontade.

Paralelamente é convocado um conselho de ministros extraordinário. Sócrates quer todos os membros do Governo por perto na hora da comunicação. Vão chegando, um a um. A medida que são dirigidos para uma espécie de cave construída em São Bento nos tempos de António Guterres, expressam quase todos a sua revolta face à atitude de Teixeira dos Santos. «O ambiente era de cortar à faca. Ninguém lhe perdoava a forma insidiosa como planeou o esquema.»26

O momento em que o primeiro-ministro encarará a nação através dos ecrãs de televisão aproxima-se rapidamente. Todos os segundos contam. Sócrates manda o seu motorista buscar um fato e uma gravata a sua casa,

situada no edifício Heron Castilho, perto do Largo do Rato. Para além disso, é requisitada a presença urgente de Cristina Gomes, a sua habitual maquilhadora, considerada uma das melhores do mercado.

Faltam poucos minutos para entrar em directo. As televisões estão prontas — demasiado prontas, aliás: assim que constata a sua entrada na sala, a TVI coloca imediatamente as imagens no ar. Problema: Sócrates ainda não vai falar; está apenas a afinar a iluminação e o som com o seu assessor, Luís Bernardo. O resultado é ridículo: o primeiro-ministro em mangas de camisa a perguntar, com olhar titubeante: «Ó Luís, vê lá como fico a olhar assim para os... [...] achas que fica bem assim... ou fica melhor assim?»

Sócrates percebe imediatamente que há qualquer coisa que correu mal, mas está com tanta pressa que não lhe dá importância. Precisa agora de falar com os seus ministros. Desce à cave, cumprimenta-os, mas não lhes diz o que se seguirá - a verdade é que não é necessário. Sobe novamente. Pede para ficar sozinho. Normalmente, antes de qualquer discurso importante fica

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cinco minutos a ensaiá-lo em silêncio. «Tem uma memória prodigiosa. A sua técnica é ir absorvendo as palavras, interpretando-as, encontrando os momentos certos para respirar, para parar, para enfatizar uma ideia. No carro, por exemplo, ele trabalhava com fichas. Ia no banco da frente e durante o caminho lia-as para dentro, não emitia qualquer som, mas era perceptível que estava a testar o discurso. Nisso ele é insuperável.»27

As 20h38 entra na sala e dirige-se ao microfone. O silêncio é total.

Primeiro o diagnóstico:

- Esta situação é especialmente grave para o nosso País. Estou firmemente convencido de que, avaliadas todas as alternativas, e depois de todos os contactos que fiz, [a situação] tenderá a agravar-se ainda mais se nada forfeito.

A seguir os adversários:

- Como sabem, lutei todos os dias para que isto não acontecesse. A verdade é que tínhamos uma solução e ela foi deitada fora. Como na altura alertei, a rejeição do PEC e a abertura de uma crise política vieram fragilizar o País e diminuir a capacidade do Governo para responder a dificuldades.

A terminar, o tapete lançado ao chão:

- A minha obrigação é pôr acima de tudo o interesse nacional. Por isso, gostaria de comunicar aos portugueses que o Governo decidiu hoje mesmo dirigir à Comissão Europeia um pedido de assistência financeira.

Quando regressa, cabisbaixo, aos bastidores, tem Luís Bernardo à sua espera. Quer falar-lhe do que sucedeu com a câmara da TVI.

- Temos um problema.

Sócrates inquieta-se.

- Os gajos da TVI filmaram quando estávamos nos testes e aquilo passou em directo.

O primeiro-ministro reage como esperado. Como era possível aquilo ter ocorrido?! Procura culpados. Quer que Bernardo lhe dê um nome, mas este não entrega ninguém. É o chefe da equipa.

- A culpa é minha.

Sócrates não se convence. Ordena-lhe que lhe diga a verdade, que lhe dê o nome do atrasado mental que deve ser punido.

- É minha, a responsabilidade é minha.

Ainda nessa noite, a direcção de informação da TVI contacta o gabinete no sentido de garantir que o que se passou não foi intencional. Mas nesse momento já nada interessa. O que Sócrates verdadeiramente deseja é ir para um restaurante onde seja servida comida italiana. Juntamente com o grupo do costume vai para o Tivoli, onde, entre um comentário menos

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simpático sobre Cavaco e uma observação pouco católica sobre os méritos de Pedro Passos Coelho, não se cansa de repetir que os «gajos» não têm noção do mal que fizeram ao País. E que a partir de agora é que verão o buraco em que colocaram Portugal.

A narrativa do costume volta a aparecer: ou ele ou o caos.

IV

O «CHEFE MAIOR»

Outubro de 2009

A conspiração é intensa. A propaganda da oposição e os serviços de contrainformação de José Sócrates travam nas redacções portuguesas uma luta feroz. Os adversários do primeiro-ministro estão desesperados para provar que este mentiu ao Parlamento quando, quatro meses antes, em Junho, garantiu aos deputados em plena Assembleia da República não possuir conhecimento do negócio da aquisição da TVI pela Portugal Telecom (PT). Se o conseguirem, dão um golpe profundo nas aspirações de José Sócrates vencer as eleições que se avizinham - quem votará num chefe de Governo que mente aos deputados?

Do outro lado da barricada, os colaboradores do primeiro-ministro tentam tudo para impedir a eclosão de mais um escândalo durante a campanha. Luís Bernardo e David Damião, assessores de imprensa de Sócrates, repetem já em piloto automático as ideias que repetem aos jornalistas desde que, em Junho, o caso tomou conta das manchetes dos jornais: não é verdade que Sócrates tenha estado envolvido no plano de compra da TVI - e ainda mais irreal é a ideia segundo a qual o seu alegado envolvimento teve como finalidade a concretização de uma tenebrosa, de uma excitante, de uma vigorosa fantasia: através de uma tomada de poder daquela estação privada, acabar com o Jornal Nacional de Sexta da TVI, o incómodo espaço informativo conduzido pela jornalista Manuela Moura Guedes que, através das notícias incisivas sobre os

sucessivos casos a que o primeiro-ministro foi sendo associado, há muitos meses lhe estraga os fins-de-semana.

Apesar de o negócio ter sido abortado pelo próprio José Sócrates, que accionou a golden share do Estado na PT, os estilhaços da polémica continuam, com o sufrágio popular mesmo à porta, a atingi-lo fortemente. Os seus inimigos desejam ardentemente ver a sua cabeça pendurada na janela de São Bento. E estão dispostos a tudo para o conseguir — inclusivamente a mergulhar sem escrúpulos em exercícios de baixa política. É o que fazem, ao distribuírem insidiosamente a alguns jornalistas um documento falso com a transcrição de várias conversas alegadamente ocorridas entre Sócrates e Armando Vara, o seu amigo e camarada do Partido Socialista. A primeira, que supostamente tivera lugar a 1 de Agosto, poucos dias depois de Sócrates ter decidido inviabilizar o negócio, começa exactamente pela questão PT/TVI.

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Armando Vara (AV): A propósito desta coisa da PT e da TVI, estava aqui a ler uma coisa do Henrique Granadeiro [Chairman da PT] a dizer que foi a Ferreira Leite quando era ministra das Finanças quem obrigou a PT a comprar a rede fixa do Estado para arranjar despesas extraordinárias e aldrabar o défice.

José Sócrates (JS): Esta gente tem a memória muito curta... mas aposto que esta coisa ainda vai sobrar para mim por causa da porcaria da TVI.

AV: Pode ser que não...

JS: Pode ser que não uma gaita. O negócio é melhor para a TVI e para a Media Capital do que para a PT. E mesmo que não mexam uma palha na TVI já só me estão a chatear os cornos por causa desta merda.

A V: Mas tu já sabias do negócio? Disseste na Assembleia que não sabias...

JS: E não sabia... quer dizer, sabia há já vários meses que o Teixeira dos Santos me tinha dito, em Março ou assim, que a PT estava a estudar o assunto... mas eram só estudos, não havia uma intenção concretizada, ou assim. Os gajos estão sempre a fazer estudos sobre tudo e mais alguma coisa. Também foi uma surpresa para mim esta coisa ter avançado e oxalá não tivesse avançado, por causa da porcaria da TVI... ainda me vão chatear por causa disto...

AV: Mas disseste na Assembleia que não sabias de nada...

JS: E não sabia de nada de concreto, porra! E aquilo que sabia era o que toda agente sabia. Se vires bem, a Prisa já tinha falado no assunto. Vai ver os jornais de Janeiro ou assim.

Ao verem o documento os jornalistas desconfiam imediatamente da sua veracidade. Ao contrário do que acontece com as escutas normais, não tem registados os números de telefone do emissor nem do receptor, por exemplo. E também não tem assinaladas as horas a que as conversas ocorreram, bem como a respectiva duração. Mas o conteúdo, por ser potencialmente verosímil, fá-los duvidar. Esta alegada conversa entre Sócrates e Vara sobre a acusação recente, por parte da Presidência da República, de que o gabinete do primeiro-ministro andaria a espiar Cavaco Silva, é um exemplo.

AV: Então agora andas a espiar o Cavaco? [risos]

JS: Já viste esta merda? Agora até o Presidente anda feito com a Manuela Ferreira Leite. Idealizaram todos juntos esta coisa da asfixia democrática.

[...]

AV: Já viste este título fabuloso? Olha só: «Presidência suspeita estar a ser vigiada pelo Governo».

JS: E já viste de onde vem a notícia, qual a fonte? Olha só: fonte não identificada do Presidente da República...

AV: O que quer dizer: o Presidente da República ele próprio!

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JS: O gajo e o seu escravo privativo, o sabujo do faz tudo do Fernando Lima [assessor de imprensa de Cavaco Silva e alegado autor da fuga de informação para o jornal Público].

AV: É uma bonita oposição que tu tens ali, já viste?

JS: Podes crer, pá. Já não me bastava a Ferreira Leite, agora ainda me sai o Cavaco na rifa, todos juntinhos em campanha eleitoral à volta desta cretinice da asfixia democrática, com a Presidência da República a dar uma ajudazinha oficial e tudo.

AV: Mas será que eles pensam que alguém acredita nesta merda?

JS: Claro que pensam. Há sempre um imbecil que engole estas patranhas. E cada imbecil que acredita nisto é um voto que os gajos ganham.

Uma terceira escuta diz respeito ao dia 3 de Setembro, quando aTVI anunciou o fim do Jornal Nacional de Sexta. Sócrates ganhara; Manuela Moura Guedes perdera.

A V: Parabéns!

JS: Parabéns porquê?

AV: A Manuela Moura Guedes foi à vida.

JS: Porra! E dás-me os parabéns por causa disso? Já pensaste no que anda por aí a deitar-me as culpas?

AV: Seja lá como for, a gaja ter deixado aquele telejornal é bom para ti.

JS: É bom mas é uma gaita. Quando já ninguém acreditava naquela gaja, agora é que correm com ela, e logo em vésperas de duas eleições.

AV: Mas como é que a gaja saltou?

JS: Sei lá. Foi uma decisão da Prisa espanhola e do camelo do Juan Luis Cebrián, que anda às turras com o Zapatero.

AV: Mas terem corrido com a gaja é um alívio para ti.

JS: Porra! Se queriam correr com a gaja, esperavam até ao fim das eleições. Fazer esta coisa agora parece encomendado.

AV: Que se lixe, foi à vida, foi à vida. Não ficas satisfeito?

JS: Claro. Claro que fico. Por um lado fico.

A conversa imaginária entre Sócrates e Vara não surge do nada. Tem uma história - a que se segue.

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Junho de 2009

Teófilo Santiago, director da Polícia Judiciária de Aveiro, investiga uma rede alargada de corrupção e tráfico de influências com epicentro no distrito, tendo como protagonista um industrial de sucata, Manuel Godinho. Em causa estão alegados subornos do empresário a políticos e gestores para ser favorecido em concursos públicos. Entre os suspeitos contam-se figuras conhecidas, muitas ligadas ao PS e quase todas, naquele momento, sob escuta telefónica. Duas delas, o gestor Armando Vara e o jovem e ambicioso advogado Paulo Penedos, consultor jurídico da PT, viriam a revelar-se especialmente produtivas para a investigação.

No momento em que Teófilo Santiago começa a ouvir as conversas telefónicas cruzadas de Vara e de Penedos, percebe de imediato que o que tem na mão não é um, mas dois escândalos: o da alegada corrupção de políticos por um sucateiro e outro, bem mais ardiloso, de eventual atentado contra o Estado de Direito. A diferença substancial entre os dois é que o segundo tem um suspeito com um nome conhecido: José Sócrates.

Para o director da PJ de Aveiro, o primeiro-ministro encontra-se, naquele preciso instante, no centro nevrálgico de uma conspiração cuja finalidade é controlar meios de comunicação social como a TVI (altamente hostil ao Governo socialista), o Correio da Manhã, o Público ou as publicações de referência da Controlinveste (Diário de Notícias e TSF). Tem de comunicar já as suas suspeitas ao Procurador-Geral da República

(PGR), Fernando Pinto Monteiro. No despacho que na terça-feira, 23 de Junho, lhe remete, o procurador Marques Vidal não pode ser mais claro: «No que concerne à necessidade de diligência de investigação autónoma, esta decorre da premência da realização de diligências para esclarecimento do “esquema” [...] e à identificação de todos os participantes no “esquema” da TVI, diligências que a não serem realizadas de imediato poderão levar a perdas irremediáveis para a actividade de aquisição da prova, sendo certo que existem indicações que o “esquema” TVI poderá estar concluído até à próxima quinta-feira.» Têm dois dias. Precisam agir em tempo recorde.

Para atestar a solidez dos indícios que encontrou. Marques Vidal remete a Pinto Monteiro dezenas de CDs com as escutas a Vara e Penedos, ambos arguidos no caso Face Oculta. Entre as conversas enviadas encontram-se 11 mantidas entre Armando Vara e José Sócrates [os diálogos nunca viriam a ser conhecidos, uma vez que foram destruídos na sequência de uma decisão do Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, Noronha do Nascimento, que considerou as escutas inválidas pelo facto de não terem sido autorizadas por si].

Não é, porém, necessário conhecer o teor das discussões entre Sócrates e Vara para notar com relativa facilidade que, com ou sem a intervenção directa do primeiro-ministro, poderá estar em marcha a tomada da TVI e a deposição do casal José Eduardo Moniz e Manuela Moura Guedes. A partir de determinada altura, os diálogos entre os intervenientes - sobretudo os protagonizados por Paulo Penedos e Rui Pedro Soares, Administrador Executivo da PT, superior hierárquico de Paulo Penedos e homem de confiança total de José Sócrates — ganham uma força, um ritmo e uma intensidade imparáveis, sempre em crescendo, sempre numa voragem de tal modo descontrolada que lhes permite, num curto espaço temporal,

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cavalgar ondas de euforia e frustração; gozo e desilusão. Tudo sempre em doses excessivas, cavalares. É o relato desses dias de tensão, em que a figura de José Sócrates está omnipresente, que se segue.1

Domingo, 21 de Junho de 2009

Tal como acontece com Sócrates, conhecido por telefonar aos seus colaboradores a qualquer hora do dia ou da noite, também Rui Pedro Soares o faz. São 23h03 quando liga a Armando Vara para lhe dar uma grande notícia.

- Está fechado [o negócio da compra da TVI], Já tenho as assinaturas da PT e amanhã vão lá [a Espanha] buscar as assinaturas deles. O negócio vai ser comunicado na quinta-feira.

Talvez para surpresa de Rui Pedro Soares, Armando Vara não solta foguetes. Há algo que o preocupa: o futuro de José Eduardo Moniz, que considera demasiado perigoso para ser deixado ao abandono.

- Qual é o destino do gajo?

- Passa a consultor estratégico da Prisa.

Vara serena. Ter Moniz como parte integrante do negócio é a garantia de que dificilmente alguém poderá dizer que se está perante um terrível saneamento político. Mas, apesar de desejado, o homem forte da TVI não suscita a mínima confiança entre os amigos de Sócrates. A informação sobre o negócio, que deveria permanecer secreta, chega à Presidência da República. Alguém deu com a língua nos dentes. Rui Pedro fica preocupado. Elege imediatamente um suspeito pela fuga: José Eduardo Moniz. Vara centra a sua atenção na forma como serão arrumadas as bestas negras do socratismo.

- Qual vai ser a situação da Manuela Moura Guedes?

- Fica lá dentro mas na prateleira.

Voluntária ou involuntariamente, José Eduardo Moniz dá uma alegria ao trio quando admite publicamente que pondera sair da TVI para se candidatar à presidência do Sport Lisboa e Benfica. Rui Pedro Soares e Paulo Penedos rejubilam: o facto de o jornalista admitir sair da estação apenas porque quer mudar de vida pode criar convicção generalizada de

PP — Com alguma calma.

RPS- [Depois disto] Podemos escrever um livro e começarmos a ser pagos a peso de ouro.

Quarta-feira, 24 de Junho de 2009

No primeiro minuto do dia, Paulo Penedos reporta a Rui Pedro Soares as manchetes dos jornais da manhã seguinte, que está a ver nas televisões. Mas a grande preocupação de Rui é resolver, a partir de Madrid, o imbróglio Moniz - está difícil chegar a um contrato que satisfaça todas as partes. E, até que o homem da TVI se sinta confortável, avançar é muito arriscado. A medida que os minutos passam e o ruído político se dissemina, com a oposição em bloco a

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criticar o negócio, este vai criando resistências dentro da própria PT, o que é registado por Penedos com apreensão.

PP — O chairman está contra, o Zeinal [Bava] faz isto porque é um gajo profissional mas está-se a torcer, isto é uma maluqueira e vão levar muita porrada.

RPS - Analisa e decide se é melhor para o PSD a pequena tourada que vão ensaiar e que Belém vem ampliar ou manter a TVI como está agora durante mais três meses [...]. Se o Moniz é corrido sem nós entrarmos é melhor para a PT mas é muito pior para o chefe máximo [que a investigação acredita ser Sócrates] , porque nós vamos ajudar a amortecer o embate, não vamos ampliá-lo.

Às 00h59, novo diálogo, com Moniz novamente no centro das atenções.

RPS - Disse ao Sócrates que andamos nisto há dez meses e que só nos últimos dias é que...

PP - E verdade, mas enquanto estiveste com pessoas da tua confiança directa ou indirecta nada se soube.

RPS - O chefe perguntou se não é melhor correrem com o gajo [Moniz] antes de nós [PT] entrarmos. Respondi-lhe que não.

A pressão pública para que o negócio não se realize é crescente. Ou o concretizam rapidamente ou tudo vai pelos ares. Ainda em Madrid, convicto de que é possível salvar o plano, Rui Pedro aguarda a todo o momento a hora em que falará com a Prisa. Dá instruções a Penedos para meter de imediato uma pessoa num avião para lhe levar o seu portátil a Madrid. Entretanto, pede-lhe que vá ao seu gabinete e entre no seu e-mail - a password é Socrates2009. O contrato de Moniz está concluído e tem de ser entregue a Zeinal Bava, CEO da PT.

Depois do que se passara nessa tarde na Assembleia, a líder do PSD não tem condições políticas para permanecer calada sobre o caso que incendeia as manchetes dos jornais. Em entrevista a Ana Lourenço, na SIC Notícias, Manuela Ferreira Leite critica duramente o negócio, acusando José Sócrates de mentir quando disse que o desconhecia - nem todos os intervenientes o percebem imediatamente, mas o golpe de misericórdia que faltava para aniquilar as manobras em curso acaba de ser dado. Depois da entrevista, pelas 23h05, Armando Vara comenta-a ao telefone com o empresário Lopes Barreira, um dos arguidos do processo Face Oculta. E faz uma afirmação explosiva: que ninguém acredita que Sócrates não saiba do negócio.

Lopes Barreira (LB) — Viste a entrevista da broxa [Manuela Ferreira Leite]?

Armando Vara (AV) - Não.

LB — Saiu-se bem.

AV — Não vi, mas já ouvi dizer que ela disse que o Sócrates mentiu ao dizer que não sabia de nada.

LB - O Sócrates não tem matéria, não se dizia uma coisa dessas.

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AV - Ninguém acredita que não soubesse. Foi um erro trágico. Devia ter dito que não foi oficialmente informado, mas que tinha conhecimento disso. Isto vai correr mal.

PP — Então... Se ele não quer...

Rui Pedro Soares pede a Paulo Penedos para o ir buscar. É imperioso informar Zeinal Bava da alegada oposição de Sócrates antes de o presidente executivo entrar no estúdio da RTP para ser entrevistado por Judite Sousa, a quem se preparava para confirmar o interesse da PT na aquisição. Rui Pedro parece desesperado: «Vou ter de tirar o sonho do Zeinal.»

A entrevista realiza-se. Zeinal Bava reafirma o interesse no negócio. Nas suas notas pessoais, escritas depois da entrevista ao líder da PT, Judite Sousa registou o ambiente geral: «Na imprensa e nos bastidores, a ideia da compra era alterar a linha editorial da TVI, afastando José Eduardo Moniz. Na quinta-feira, o Presidente pediu transparência e ética nos negócios. Falei com Abílio Martins, director de comunicação da PT, e pedi-lhe uma entrevista com Zeinal Bava. Ele vem e explica a racionalidade do negócio, recusando outras leituras e sublinhando que é insultuoso insinuar-se que a PT é instrumentalizável. No final, o Abílio Martins mostrou-me sms que foi recebendo durante a entrevista, provenientes de colegas meus. Tom geral: “A gaja está lixada”. No dia seguinte, o Abílio telefona-me e diz-me que tinha sido dura com o Zeinal. Fiquei a perceber como é que funciona o jornalismo a este nível na imprensa económica.»2

Sexta-feira, 26 Junho de 2009

Em São Bento, Sócrates tenta focar-se na governação. Já praticamente não lê jornais - o que não quer dizer que não acompanhe intensamente as notícias através dos briefings permanentes de David Damião e Luís Bernardo. Diz frequentemente que não está para se irritar com «pistoleiros» - a expressão mais simpática das que normalmente utilizava para designar os profissionais de comunicação social. Mas nesta sexta-feira tem de vir a público falar sobre o caso — ou melhor: sobre o fim do caso.

Benfica e que o Estado pode entrar na Media Capital. Com aquelas coisas do Zeinal a PT diz que não, que tem que ver várias hipóteses.

Entretanto fica combinado que na semana seguinte eu vou a Madrid falar com o Polanco [...]. Ele [Polanco] repetiu que o José Eduardo Moniz está desgastado, quer sair e que gostavam muito que a PT entrasse no negócio. Disse-lhe que não podia ser porque se a PT entrasse no negócio, com o Moniz, em Portugal havia uma escandaleira monumental, e diz-se que há censura, etc. etc. O Polanco retorquiu que o Moniz está de acordo e que defende o negócio. Ele está de acordo, quer sair, decidimos em Maio que a mulher dele sai do ecrã a 30 de Junho e que ela passava para o núcleo de formação de programas.

Entretanto eles [Prisa] dão conhecimento ao Moniz de que estão a apresentar o negócio à PT. Entretanto o Moniz nete-se naquilo do Benfica, depois das eleições europeias. As eleições são a um domingo, na segunda o Vieira antecipa as eleições e na terça sai uma notícia no Jornal de Negócios, página 39, a dizer que o Moniz, ou melhor, a dizer que a PT e a Cofina estão a negociar a compra da Média Capital e a fotografia que sai é a do Moniz. A seguir o Moniz candidata-se ao Benfica [...] e todo o quadro muda. Isto é, ele vai sair, portanto o que se diz é verdade, ele realmente ia ser consultor.

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Os espanhóis devem andar a fialar com o Bernardo Bairrão [administrador da TVI] e com o Moniz dizendo-lhes que estavam em negociações com a PT, com o Zeinal e comigo. A seguir há ali um azar [...]. O Zeinal diz-me para ir a Madrid fechar o negócio, [... ] jantou com o Moniz e que ele está de acordo. Ao mesmo tempo, eu jantava em Madrid com o Polanco... Há aqui um primeiro revés. Eu tinha os papéis assinados da PT mas não lhos dei a assinar, no primeiro jantar, porque estava à espera que o Zeinal me dissesse se o jantar com o Moniz tinha corrido bem. Na quarta-feira de manhã o Zeinal manda o contrato do Moniz, mas o contrato não está assinado e eu informo o Zeinal de que está tudo bem mas aquela situação não pode existir se o Moniz não assinar. Porque ele assinar e dizer por fora que foi uma forma de o afastar não serve.

Ainda na quarta-feira a Manuela Ferreira Leite vai à SIC e diz que o negócio está fechado. Porquê? Porque eu tinha combinado com o Polanco, depois de jantar, fechar o negócio porque supostamente já tinha o contrato

ninguém que José Eduardo Moniz é uma espinha na sua garganta. Sente- -se enganado. Às 13h 17 telefona ao seu companheiro de mágoas.

— Já está confirmado quem andou a fazer jogo triplo... Foi o Moniz, porque também foi ele que, ao mesmo tempo que estava a negociar connosco e a dizer aos espanhóis que queria sair, andava a dizer para a Presidência da República que o queriam pôr fora. Já suspeitavam disso, agora têm a certeza. Ele [Moniz] já tinha feito o mesmo à ZON; com esta só um maluco lhe dá emprego em Portugal.

A história provaria o contrário: o jornalista foi anunciado no final de Julho como vice-presidente da Ongoing, ainda antes de ir de férias. No Parlamento, quando a 9 de Março de 2010 foi ouvido na Comissão de Ética em que se procurava investigar se Sócrates tinha mentido na Assembleia, confirmou ter-se encontrado com Zeinal Bava a 23 de Junho de 2009. Nessa reunião, o então o presidente da comissão executiva ter-lhe-á dito «estarem em curso conversas com a Prisa» e que «gostaria muito» que o ex-director-geral da TVI desse o seu contributo não só à Media Capital, mas também à PT. A resposta foi um não: «Lamento, mas não vai contar comigo. Porque suspeito que este acordo confirmará o que se passa neste momento, um clima de tensão insuportável entre mim e a administração que conduzirá inevitavelmente a alterações editoriais.»3

Sexta-feira, 10 de Agosto de 2009

A novela em redor do futuro de Manuela Moura Guedes, ainda e sempre inimiga pública número um de José Sócrates, está ao rubro. Agora que não tem José Eduardo Moniz para a proteger, a pivô está fragilizada. Nos bastidores, as conversas apontam todas no mesmo sentido: sabe-se que cairá; resta saber quando - e às mãos de quem. Às 20h48, Joaquim Oliveira, presidente da Controlinveste, comenta o assunto com Armando Vara.

Joaquim Oliveira (JO) — Estive com o Juca Magalhães (Júlio Magalhães, o jornalista que viria a suceder a João Maia Abreu como director da

TVI, que não lhe perdoam o facto de ter constituído uma equipa de elite, que trabalhava totalmente à margem das tarefas diárias da redacção. «Foi um processo verdadeiramente

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estalinista.»6 É obrigada a mudar de lugar na redacção e encostada a um canto. Não lhe são atribuídas novas funções. As pessoas que ainda lhe falam fazem-no discretamente «por terem medo de represálias». Entra numa depressão profunda. «Passava os dias inteiros sem ter o que fazer; quando saía da redacção tinha ataques de choro, já não dava para aguentar mais.»7 O desenlace é conhecido: a jornalista meteu baixa médica e acabou por negociar a saída em troco de uma indemnização de algumas centenas de milhares de euros.

Sexta-feira, 5 de Setembro de 2014

Os 36 arguidos do caso Face Oculta - 34 pessoas e duas empresas - são condenados pelo Tribunal de Aveiro. Com cerca de 2.800 páginas, o acórdão determina que a pena mais pesada seja aplicada ao principal arguido: Manuel Godinho, líder da rede de associação criminosa, é condenado a 17 anos e seis meses de prisão efectiva. Também Armando Vara e José Penedos, com uma pena de cinco anos para cada um, não escapam à prisão efectiva. Com Paulo Penedos o juiz é mais simpático, embora pouco: quatro anos de clausura.

Nas escutas que constam do acórdão final, Vara invoca, em conversas com arguidos ou testemunhas do caso, frequentemente o nome de José Sócrates, dando a entender que o seu peso junto do seu amigo poderia ser decisivo para desbloquear situações e resolver problemas imprevistos. Na prática, seria, acreditou o juiz, uma espécie de facilitador de negócios.

Numa das conversas que a investigação mais valorizou, mantida a 18/06/2009 pelas 22h17, o ex-ministro socialista fala com Francisco Bandeira, ex-administrador da Caixa Geral de Depósitos, que está assustado com o facto de Ana Paula Vitorino (na altura Secretária de Estado dos Transportes e arqui-inimiga de Manuel Godinho, que tinha negócios

[...]

AV — O primeiro-ministro hoje deve, deve... Já falou ao Mário Lino [então ministro dos Transportes, Obras Públicas e Comunicações; superior hierárquico de Ana Paula Vitorino], já ficou fodido com o assunto, não é! E, tanto quanto eu percebo, já deu instruções para parar tudo.

CR - Eh pá, eu acho isto tudo uma loucura completa. A gaja [Ana Paula Vitorino] passou-se dos cornos, pá...

AV — O que foi que ela te disse? O que é que ela te disse? Que ias sair dali, prós, prós Portos?

CR - Ela disse-me, ela disse-me o seguinte: «Olha, tenho duas notícias para ti. Uma boa e uma má. A má é que o, sabes como são estas coisas, primeiro-ministro, [e] o ministro querem fazer alterações e mais não sei que mais, pá, portanto nós temos que mexer aqui nas empresas, pá, e tu devias sair da CP. Eh pá, a boa notícia é que vais para administrador do Instituto Portuário e dos Transportes Marítimos.»

AV- Uh!

CR - Eu disse: «Eh pá, olha. Eh, a minha resposta é a seguinte: vou pensar, eh, há uma coisa que te digo. É que não te vou deixar pendurada, nem ó [sic] Governo. Portanto, ah... Das duas

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uma: ou saio porque vou para outro sítio, pá... eh, ou aceito aquilo que me... [imperceptível]». AV- Uh!

CR — Não te vou é entalar-te e deixar-te numa situação delicada. Da forma como ela me diz, pá, eu penso, o Mário Lino está por trás disto e o Sócrates também. Portanto, eh pá...

AV - Não. O Sócrates não estava, pá. Então, mandei-lhe a mensagem quando soube... Mandei-lhe a mensagem e já me ligou hoje de manhã.

[...]

CR - O problema, sabes qual é? É que o próximo Conselho de Ministros vai ser a última oportunidade que há-de nomear administradores

públicos, porque no período que medeia a convocação de eleições e

[imperceptível).

AV — Não vai nomear, tá descansado.

CR - Não pode nomear ninguém, pá.

referências a contactos havidos entre a PT e a Prisa, «não existe nos elementos disponíveis qualquer referência a acções ou omissões de titulares de cargos políticos ou de outras pessoas, que se mostrem de algum modo idóneos para tentar destruir, alterar ou subverter o Estado de Direito constitucionalmente estabelecido, nomeadamente os direitos, liberdades e garantias estabelecidos na Constituição da República Portuguesa».

Conclusão: «Não existem no conjunto dos documentos examinados elementos de facto que justifiquem a instauração de procedimento criminal contra o primeiro-ministro José Sócrates e/ou qualquer outro dos indivíduos mencionados nas certidões, pela prática do referido crime de atentado contra o Estado de Direito.»

No fim do dia, Sócrates derrota barbaramente os seus inimigos. Uma vez mais.

Através de uma denúncia anónima, José Sócrates foi acusado de viabilizar o centro comercial Freeport a troco de dinheiro.

Ambiente do Governo de António Guterres, viabilizar o projecto de instalação de uma grande superfície comercial em Alcochete.

Na resposta, o primeiro-ministro não se fica pelo ataque à entrevistadora. Na verdade, o seu alvo é outro: Manuela Moura Guedes, a sua besta negra; a coordenadora do Jornal Nacional de Sexta, o bloco informativo líder de audiências que há vários meses vem revelando notícias sobre o assunto que o colocavam directamente em causa.

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— Vocês não veem o telejornal da TVI à sexta-feira? Acham que aquilo é um telejornal? Aquilo não é um telejornal, é uma caça ao homem, aquilo é um telejornal travestido, é um espaço noticioso que tem como único objectivo o ataque pessoal feito de ódio e perseguição pessoal!

Judite não quer acreditar que Sócrates acaba de dizer o que disse. Pensa: «Está louco!»1. Não é a única a fazê-lo. Em Cascais, a 29 quilómetros do estúdio da RTP, Manuela Moura Guedes está a jantar calmamente em casa de uma amiga quando escuta as palavras fatais: telejornal travestido.

Primeiro chega o espanto:

— Isto não é possível!

A seguir, a indignação:

— Como pode uma pessoa com estas responsabilidades não dignificar o cargo que ocupa?!

Por fim, a decisão:

— Vou processá-lo por difamação, está decidido!

Telefona a José Eduardo Moniz, seu marido e director-geral da TVI.

— Está, Zé? Jd sabes o que disse o Sócrates na RTP?

Ausente nos Estados Unidos, Moniz desconhece o que acabara de se passar.

— Não, o que foi?

— Pôs em causa o jornal e vou-lhe meter um processo, mesmo que a TVI não queira.

recusa ir a estúdio, mas aceita falar com Cândida Almeida, directora do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), no sentido de ser ela a comentar o escândalo em nome da PGR. E promete dar uma resposta até à segunda-feira seguinte.

Ansiosa, Judite decide queimar etapas. Esperar até segunda-feira está fora de questão. Liga a Cândida Almeida. Sem sucesso. Manda-lhe uma sms. Silêncio. Liga de novo. Nada - o telefone da magistrada mantém-se desligado durante todo o fim-de-semana.

Segunda-feira, 26 de Janeiro de 2009

A jornalista da RTP acaba de sair de um pequeno-almoço com Paulo Padrão, director de comunicação do BES, com quem acertou a realização de uma entrevista a Ricardo Salgado para essa mesma semana. Subitamente, o telemóvel toca. Tira-o da carteira e olha para o ecrã. É Pinto Monteiro. O PGR diz-lhe que Cândida aceita falar. Marcam para a sexta-feira seguinte - entrevistaria o líder do BES um dia antes.

Quinta-feira, 29 de Janeiro de 2009

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A rapidez fulminante com que os acontecimentos relacionados com o escândalo Freeport evoluem - só a PGR divulga dois comunicados sobre o assunto - obriga Judite Sousa a tomar medidas. Urgentes. Assim que, pela manhã, vê as notícias, percebe que não pode esperar mais um dia. Telefona a Pinto Monteiro. Diz-lhe que a conversa terá de realizar-se nessa mesma noite. O PGR promete-lhe tratar do assunto. A jornalista agradece a atenção mas, num claro exercício de diplomacia paralela, decide ligar directamente a Cândida Almeida. Em minutos está tudo acertado. A noite, desilusão gigante para os que desejavam vigorosamente a cabeça de José Sócrates: a directora do DCIAP afirma, sem margem.

Sexta-feira, 17 de Abril de 2009

O dia mais crítico de todo o processo Freeport: aquele em que Manuela Moura Guedes abre o Jornal Nacional de Sexta com a exibição de um DVD potencialmente mortal para José Sócrates. Nele, Charles Smith, o homem que, juntamente com Manuel Pedro, a Freeport contratara para tratar da aprovação do centro comercial em Portugal, fala com Alan Perkins. O administrador da Freeport quer saber duas coisas: 1) para onde foi direccionada uma elevada quantia de dinheiro da empresa para a qual não havia justificação na contabilidade; 2) porque é que a polícia portuguesa se encontra a investigar o negócio de Alcochete. O conteúdo da conversa, filmada através de uma câmara oculta instalada por Alan Perkins, é revelador. Este excerto, em particular, é demolidor para Sócrates:

Alan Perkins (AP) - O que desencadeou a acção da policial A queixa era sobre corrupção...

Charles Smith (CS) - O primeiro-ministro, o ministro do Ambiente é corrupto.

AP - Quando tudo estava a ser construído qual era a posição dele?

CS - Este tipo, Sócrates, no final de Fevereiro, Março de 2002, estava no Governo. Era ministro do Ambiente. Ele é o tipo que aprovou este projecto. Ele aprovou na última semana do mandato, dos quatro anos. Em primeiro lugar, foi suspeito que ele o tenha aprovado no último dia do cargo... E não foi por dinheiro na altura, entendi Isto foi mesmo ser estúpido.

AP — Quando foram feitos os pagamentos? Como estava em posição de receber pagamentos se aprovou o projecto no último dia do cargo?

CS — Foram feitos depois. Ele pediu dinheiro a dada altura, mas não...

CS — João [João Cabral, engenheiro civil que trabalhava para Charles Smith e Manuel Pedro ,foi aprovado e os pagamentos foram posteriormente

João Cabral (JC) — Certamente... Houve um acordo em Janeiro. Eles tinham um acordo com o homem do Sócrates, penso que é em Janeiro.

CS - Sean [Collidge] reuniu-se com o tipo. Sean reuniu-se com funcionários dele, percebei Sean e Gary [Russel] reuniram-se com eles.

O mais fantástico estava para vir. Dias depois, Ana voltou-se para Manuela e disse-lhe algo que sabia que a sua amiga gostaria de ouvir.

— Estou prestes a conseguir o vídeo da conversa.

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A pivô não queria acreditar. Sabia quem era a fonte de Ana Leal. Temia que o medo a fizesse recuar.

— Tens a certeza ??

— Sim. Vou tentar hoje e acho que vou conseguir.

O dia em que Ana Leal entrou na redacção com o DVD dentro da mala foi especial. Era a prova que lhes faltava. Combinaram que, dentro da estação, só elas, José Eduardo Moniz e o jornalista Carlos Enes, que também acompanhava o caso, saberiam da sua existência. Embora não o verbalizassem, os quatro tinham a expectativa secreta de que uma notícia daquela amplitude pudesse, finalmente, ter consequências políticas - algo que, apesar da contundência das informações que haviam divulgado até então, nunca acontecera.

A verdade é que não estavam a jogar sozinhos. Do outro lado encontrava-se José Sócrates, que contava com uma equipa altamente preparada ao nível da informação e da contra-informação. Luís Bernardo, o seu homem de maior confiança, conhecia quase tudo o que se passava na TVI. Trabalhara lá como jornalista; possuía as suas fontes; sabia da existência do DVD. Por isso, foi sem surpresa que tomou conhecimento de que a estação exibiria o material na sexta-feira, 17. Falou com José Sócrates sobre a estratégia a aplicar. Alargaram a discussão ao inner circle. Vieira da Silva, Almeida Ribeiro e Pedro Silva Pereira convergiram na ideia de que a estratégia ideal para se protegerem daquela arma de destruição massiva era contactar os meios de comunicação social de referência durante o dia, colocando em causa a credibilidade da informação. Tinham de secar a TVI. A alternativa era deixar que a bomba lhes caísse no colo - e nesse caso as consequências seriam imprevisíveis.

Quando, às 20h, no gabinete do primeiro-ministro, em São Bento, se sentam à frente da televisão, José Sócrates, Luís Bernardo, David

pede-lhe o número de telefone de José Sócrates, no sentido de retomar a conversa mais tarde.

Já em sua casa, depois do programa, Judite come qualquer coisa para enganar a fome. Está sozinha: Fernando Seara, seu marido, foi para aTVI participar num programa de comentário desportivo; e André, o seu filho, foi ao ginásio. Passam poucos minutos das 22h quando liga para o primeiro-ministro. Sócrates não atende - e ainda bem, pensa Judite, que só quer descansar. Decide enviar-lhe uma mensagem escrita a dizer-lhe que tentou contactá-lo sem sucesso. Trinta segundos depois chega a chamada menos desejada. A jornalista registou no seu diário profissional o relato do diálogo: «Continua a conversa onde ela tinha ficado... começa a acusar um grande stresse. Está a antecipar a entrevista. Peço-lhe que explique o que são perguntas políticas e perguntas de investigação. Dou-lhe o exemplo do DVD. Começa a gritar. Tenho de afastar o telemóvel... Diz que já sabia que eu ia falar nisso. Digo-lhe que é uma pergunta incontornável. Continua a gritar. Diz que discorda dos meus critérios editoriais, digo-lhe que não são meus; são da RTP. Nada importa, não ouve o que eu digo. A conversa termina sem nexo. Foi uma tentativa de condicionamento.»1’

Terça-feira, 21 de Abril de 2009

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Judite Sousa e José Alberto Carvalho encontram-se no início da tarde. Têm de ultimar a entrevista que daí a poucas horas conduzirão. Dividem perguntas. Quem fica com as mais difíceis? Quem lhe fala das pressões sobre a comunicação social? Quem o confronta com o teor do DVD noticiado pelaTVI? Judite oferece-se para fazer de polícia má. A bem da verdade, não tinha nada a perder.

Quando chega ao estúdio, Sócrates vem invulgarmente agitado. O momento também é registado por Judite Sousa no seu diário: «Não percebo porque é que ele quer dar a entrevista estando no estado em que está. Cumprimentamo-nos normalmente. Grande tensão. Mais do que da última vez. Fala com o Zé Alberto. Dá-lhe os parabéns pelo nascimento

supostamente Bernardo se referiu a Manuela Moura Guedes. Tinha, por isso, de ter cuidado daí em diante. Afinal de contas, era assessor do primeiro-ministro. O colaborador estranhou, vindo o conselho de quem vinha...

- Você a pedir-me para ter cuidado?! Saiu-me, o que quer?

Foi, por isso, com espanto que o assessor, sentado no gabinete reservado à equipa do primeiro-ministro na RTP, escutou o chefe a utilizar a expressão censurada. Já no restaurante, durante o jantar, perguntou-lhe, a brincar:

- Então e aquilo do jornalismo travestido!

Sócrates sorriu. E colocou-lhe as culpas em cima. Aquilo do travesti tinha-lhe ficado no subconsciente...

(Seis anos antes...)

Fevereiro de 2005

José Sócrates está no seu carro, na zona das Amoreiras, quando um grande cartaz com a sua cara estampada lhe mobiliza a atenção. Estranha. Não mandou colocar material de propaganda naquela zona. E seguramente não aprovou o texto insultuoso que o acompanha: em letras garrafais, apontando para a sua figura, há uma pergunta insidiosa: Sabe mesmo quem é? A ideia é clara: fomentar a dúvida sobre o seu carácter em plena campanha eleitoral para as eleições legislativas, que disputará dentro de alguns dias com Pedro Santana Lopes, o primeiro-ministro em exercício que tentava, naquela campanha, sobreviver ao enxovalho político de que fora vítima quando o Presidente da República, Jorge Sampaio, dissolveu a Assembleia da República e convocou eleições antecipadas, com o argumento de que Santana não reunia condições para governar.

liderado pelo Eng. José Sócrates. Imediatamente a seguir, e na sequência da vitória do Partido Socialista liderado por José Inocêncio, a Câmara desenvolveu esforços para que o projecto fosse aprovado.

Existem rumores que o primeiro parecer da Direcção Regional da Agricultura e Ordenamento do Território teria sido favorável à aprovação, no entanto, ainda antes da primeira decisão do então ministro tiveram que reformular o parecer.

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Ao que consta houve entrega de dinheiro ao ministro e apoio à campanha eleitoral do Partido Socialista.

Este processo da Freeport tem sido bastante nebuloso e culminou na conturbada inauguração em Setembro.

Ao que conta existem dois assessores da Câmara que têm procurado «sugar» algum dinheiro aos patrocinadores do empreendimento bem como a outros empresários que investem ou pretendem investir em Alco- chete.

Estes dois assessores são a Eng. Honorina e o Dr. José Manuel Marques.

Esses autarcas sabem da situação e eventualmente possuem documentos, para além dos principais dirigentes do Partido Socialista, o senhor António Lourenço tem escrito e demonstrado conhecimento da matéria.

A Eng. Honorina era vice-presidente da Câmara do Montijo, tendo perdido a confiança política da Presidente da Câmara. Mantém-se como vereadora sem pelouros; e, com alteração do quadro de poderes na câmara do Montijo, foi contratada pelo presidente da Câmara de Alcochete como assessora para o Urbanismo.

Neste momento corre no tribunal do Montijo alguns processos contra ela e accionados pela presidente da Câmara do Montijo e vice-versa.

O Dr. José Manuel Marques é funcionário da Reserva Natural do Estuário do Tejo, possuindo um contrato de prestação de serviços com a Câmara de Alcochete na área do Ambiente. Ao que consta, este contrato não é totalmente legal.

Existem autarcas que conhecem a situação e eventualmente possuem documentos, para além dos principais dirigentes do Partido Socialista, talvez seja oportuno ouvir o senhor António Lourenço que é o representante

terá sido colocar o telemóvel de José Sócrates sob escuta. A dada altura, a sua obsessão pelo nome do líder do PS começa a gerar suspeitas — de tal modo que são alterados os códigos pessoais de acesso ao sistema de escutas Paragon, em vigor no departamento.15

Quarta-feira, 9 de Fevereiro de 2005

Em pouco tempo, a averiguação preventiva transforma-se num inquérito- -crime. Tal como Torrão antevira. Já é, por isso, no âmbito do processo 77/05.2.JASTB que no dia 9 de Fevereiro de 2005 cerca de 20 agentes da PJ vão para o terreno realizar buscas no sentido de recolher provas susceptíveis de confirmar as suspeitas em causa.

No dia seguinte, Inês Serra Lopes, directora do jornal O Independente, está sentada no seu gabinete quando Francisco Teixeira, um jovem jornalista da secção de política, a informa de que a PJ está a investigar José Sócrates por alegadas irregularidades no licenciamento do Freeport. Fala- -lhe das buscas. E garante-lhe que vira o mandado, onde constava o nome do líder do PS como um dos alvos.

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Serra Lopes percebe que pode ter uma boa manchete na mão. Equaciona os riscos e as vantagens da publicação. «Pensei 500 vezes antes de avançar. O timing complicava as coisas. Estávamos em campanha eleitoral, mas sempre acreditei na Justiça. Num mundo ideal, publicaria depois da eleição, mas seria hipócrita.»16

Não pode perder tempo. O jornal fecha precisamente nessa quinta-feira à noite. Instrui o jornalista a remeter um conjunto de questões a José Sócrates, de modo a conferir-lhe o direito à defesa. Teixeira senta-se e começa a digitar o primeiro parágrafo da notícia com que no dia seguinte acordaria o País: «A Polícia Judiciária (PJ) tem “fortes indícios” de que a alteração da Zona de Protecção Especial do Estuário do Tejo por José Sócrates terá tido como contrapartida o financiamento de campanhas eleitorais do PS. Segundo um inquérito policial a que o Independente teve acesso, a PJ suspeita que a interferência do ex-ministro

Se o objectivo de quem fez questão que a notícia fosse publicada convenientemente em cima da data das eleições - a segunda manchete que O Independente fez saiu dois dias antes do escrutínio — era colocar as possibilidades eleitorais de José Sócrates ao nível do subsolo, a estratégia falha em toda a linha. É que no dia 20 de Fevereiro José Sócrates não se limita a vencer as eleições - tá-lo com maioria absoluta. Aos ataques dos seus detractores respondeu com uma bem estruturada estratégia de vitimização. O spin fora perfeito.

Depois das eleições, o inquérito avançou a três ritmos: devagar, devagarinho e parado. Até que, no Verão de 2008, pressionada pelo facto de o Serious Fraud Office - o organismo inglês de combate à fraude financeira - se encontrar a investigar a participação de cidadãos ingleses no caso, tendo mesmo dirigido uma carta rogatória às autoridades portuguesas no sentido de esclarecer um lote alargado de questões (ver anexo 1), Cândida Almeida, directora do DCIAP, chamou a si o processo, entregando-o ao cuidado de dois procuradores experientes: Vitor Magalhães e Paes Faria.

A primeira reunião oficial sobre o caso entre as autoridades de Portugal e Inglaterra ocorreu somente a 17 de Novembro de 2008, em Haia, sede do Eurojust, o órgão que se destina a facilitar a cooperação judicial na União Europeia. Cândida Almeida rejeitou uma proposta de investigação conjunta. E, pelo caminho, também recusou a oferta, pela polícia britânica, de uma cópia do DVD em que Sócrates é acusado por Charles Smith de corrupção. Argumento: a lei portuguesa não o permitia.

Pouco tempo depois, Vitor Magalhães e Paes Faria queixaram-se de terem sido pressionados por José da Mota, presidente do Eurojust, no sentido de protegerem José Sócrates. Mota e o primeiro-ministro conheciam-se desde o final dos anos 90, quando trabalharam no Governo de António Guterres como secretários de Estado do Ambiente e da Justiça, respectivamente.

À medida que foram evoluindo na investigação, os procuradores foram tropeçando sucessivamente em mistérios algo indecifráveis. Nos e-mails trocados entre os dirigentes do Freeport e os seus representantes

processo de aprovação do Freeport, confirmasse, por exemplo, a recepção, na sua residência, de uma carta que lhe terá sido dirigida pelo arguido Manuel Pedro, tratando-o por «caro amigo». Queriam ainda que explicasse o teor das declarações prestadas por Hugo Monteiro

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(seu primo), que afirmou ter ido a sua casa, em 2004, pedir autorização para criar um endereço electrónico com o seu nome, de forma a conseguir um contrato com o Freeport. E mais, muito mais:

1 - Se conhece ou tem alguma relação de parentesco com algum dos arguidos dos autos e, em caso afirmativo, quando os conheceu e em que circunstâncias;

2 - Quando, enquanto ministro do Ambiente do XIV Governo Constitucional, teve conhecimento do projecto de licenciamento do complexo Designer Village;

3 — Se confirma a recepção, na sua residência, de uma carta que lhe terá sido dirigida pelo arguido Manuel Pedro, tratando-o por «caro amigo», conforme consta de fls. 207 do Apenso E;

4 - Se, na qualidade de ministro do Ambiente, alguma vez foi contactado pela RJ McKinney, Limited, pelos seus colaboradores em Portugal, a Smith & Pedro Consultores associados, Lda. ou por outras pessoas/entidades ligadas, directa ou indirectamente, ao processo de licenciamento do complexo Freeport e, em caso afirmativo, quando e em que circunstâncias;

5 — Se teve conhecimento da existência da empresa denominada Neurónio Criativo - Publicidade e Marketing, Lda.;

6 - Se manteve alguma relação com a empresa mencionada no ponto anterior, nomeadamente com a manutenção de uma conta de correio electrónico com o endereço da mesma e como comenta o teor de um e-maildirigido ao arguido Charles Smith com conhecimento a [email protected] e a josecocrates@neuronio- criativo.com;

7 — Se confirma ter havido um apoio efectivo da família Carvalho Monteiro ao licenciamento do Freeport, tal como consta de fls.

8 - Se, no âmbito das suas funções partidárias no PS, alguma vez utilizou a conta de correio electrónico com o endereço «josecocrates@ ps.pt»;

9 - Em caso afirmativo, como explica o envio, através da conta de correio electrónico mencionado no ponto anterior, de uma mensagem de propaganda eleitoral ao arguido Charles Smith (charless- [email protected]), sendo certo que o mesmo é de nacionalidade estrangeira e não inscrito nos respectivos cadernos eleitorais;

10 - Como comenta o teor do e-mail, datado de 13/02/2002;

11 - Como comenta o teor do e-mail, datado de 20/03/2002;

12 - Se alguma vez reuniu com os promotores do complexo comercial Freeport, com os seus consultores em Portugal (Smith & Pedro Consultores Associados, Lda.) ou com qualquer outra pessoa/ entidade ligada ao licenciamento do complexo Freeport e, em caso afirmativo, quantas reuniões manteve e quem esteve presente nas mesmas;

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13 - Se confirma que, em Outubro de 2000, enquanto ministro do Ambiente, deu alguma orientação no sentido do ICN apresentar proposta, tecnicamente fundamentada, à luz dos objectivos da ZPE do Estuário do Tejo, de alterações dos limites da mesma;

14 — Por que motivo a alteração dos limites da ZPE do Estuário do Tejo não precedida de informação à Comissão Europeia e de audição prévia das autarquias locais envolvidas, das organizações de defesa do ambiente, do ICN e dos órgãos próprios da ZPE;

15 - Por que motivo a alteração dos limites da ZPE do Estuário do Tejo ocorreu na última reunião do Conselho de Ministros e de um Governo com meras funções de gestão;

16 - Se, em sua opinião, tal alteração da ZPE do Estuário do Tejo foi influenciada pela futura construção do complexo comercial Freeport;

17 - Por que motivo a alteração da ZPE do estuário do Tejo, a emissão do parecer favorável à DIA e a própria DIA favorável condicionada ocorreram no mesmo dia;

através da Smith & Pedro os empresários tentaram extorquir indevidamente somas avultadas à empresa proprietária do Freeport [os dois viriam a ser ilibados em 2012, quando foram julgados]. Quanto a Sócrates, nada.

Terça-feira, 27 de Julho de 2010

O grande dia chega. Seis anos após as primeiras suspeitas, Sócrates, já na qualidade de primeiro-ministro, pode respirar. Apesar das 27 rasteiras que os procuradores fizeram questão de deixar no despacho, a verdade é que, se bem trabalhado do ponto de vista da comunicação política, aquele será um grande momento para si. Na segunda-feira, durante a habitual reunião de coordenação com o seu círculo mais íntimo, fala-se do assunto e da melhor forma de o apresentar às pessoas. Logo ali fica decidido o recurso a uma das técnicas que José Sócrates melhor esgrime: a da vitimização política e pessoal.

Pede a Luís Bernardo para chamar a imprensa a São Bento ao fim da tarde. Quer falar ao País, dar uma lição de moral aos que o haviam «caluniado». Veste uma gravata encarnada lisa, escolhida por si. Está impecavelmente maquilhado. Quando entra na sala, está pronto para debitar verdades - as suas verdades.

Sobre a pureza dos princípios:

— Como sempre disse, a verdade acaba sempre por vir ao de cima e fica agora evidente para todos os portugueses de boa-fé a enormidade das calúnias, das falsidades e das injustiças que sobre mim foram insistentemente repetidas ao longo destes últimos seis anos, muitas vezes com um único objectivo: de me atacarem politicamente e de me atacarem pessoalmente.

Sobre a diabolização do seu nome e do da sua família:

- Foi injusta, infundada e caluniosa, sem qualquer respeito pelos mais elementares princípios da ética, da decência e da lei. Creio que os portugueses compreendem bem a minha satisfação de ver finalmente reconhecido.

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From: José António Cerejo

Sent: segunda-feira, 14 de Maio de 2007 19:36

To: ‘[email protected]'

Subject: Perguntas PÚBLICO

Ao gabinete do senhor primeiro-ministro A/C Luís Bernardo

José António Cerejo, jornalista do diário PÚBLICO, titular da carteira profissional n. ° 549, na sequência de anteriores contactos telefónicos e no âmbito da sua actividade profissional, vem solicitar resposta urgente às seguintes questões:

1 — Na fotografia publicada na pág. 25 do semanário Expresso de 6 de Janeiro 2007, cedida pelo gabinete do primeiro-ministro, o senhor primeiro-ministro encontra-se acompanhado, para além de eleitos locais brasileiros, pelo deputado Rui Vieira, pelo ministro Jaime Silva e pelo empresário Carlos Manuel Santos Silva. Sendo certo que este último é há muito amigo pessoal do senhor primeiro-ministro e ex-administrador e sócio de uma empresa (Conegil) que foi declarada judicialmente falida em 2003 com avultadas dívidas ao Estado, pergunta-se:

2 — Considera o senhor primeiro-ministro que as funções que ocupa são compatíveis com a sua apresentação pública e em actos de confraternização com empresários que não cumprem as suas obrigações perante o Estado, a banca e os seus fornecedores?

[•••]

Cumprimentos,

José António Cerejo Jornalista do PÚBLICO1

Luís Bernardo não estranha a curiosidade de José António Cerejo. Há muito que o jornalista de investigação exerce uma vigilância apertada aos actos do primeiro-ministro, com quem já tivera inclusivamente polémicas públicas. Em 2001, por exemplo, na sequência de uma notícia do Público sobre um apoio alegadamente secreto do Ministério do Ambiente,

José Cristóvão. E ainda da amante deste que é funcionária do Partido Socialista em Lisboa.

Sabe-se que a HLC indicou os nomes e o gabinete técnico, ao secretário de Estado, para elaboração do caderno de encargos e programa de concurso da Estação de Tratamento.

Sabe-se que todas as propostas foram levadas para Lisboa, onde se realizou uma reunião, primeiro com o secretário de Estado e o João Cristóvão, seguida de outra onde esteve este assessor, o gerente da HLC e dois engenheiros. Reunião esta que durou quatro horas. Pode testemunhar isto o motorista da Câmara da Covilhã, João José Duarte.

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Sabe-se que os autores do relatório de avaliação das propostas foram seleccionados pelo gerente da HLC e comunicados ao presidente do conselho de administração pelo secretário de Estado, mas como imposição.

Quem pagou este trabalho? Quanto custou?

Tem de haver controlo sobre as transferências bancárias sobre praças estrangeiras, como Londres e Paris, por parte da HLC, General Dasaux e outras, não esquecendo as associadas da HLC no concurso público.

O secretário de Estado comunica, quase diariamente, sobretudo à noite, com o presidente da Câmara da Covilhã. Eles falam invariavel- mente pelo telefone e telemóvel à hora de jantar.

Há que controlar a conta bancária, pessoal, do gerente da HLC e da mulher deste, pois tem casa em Londres, de onde é natural.

Há que saber quem pagou aos técnicos que elaboraram o relatório final de apreciação das propostas, dado que o dinheiro não saiu dos cofres da associação de municípios.

Peço imensa desculpa pelo anonimato, mas não é possível outra forma.1

Quarta-feira, 14 de Maio de 1997

Apenas sete dias depois do envio da missiva à PJ, outra carta anónima chega a Lisboa, desta vez remetida à Procuradoria-Geral da República.

política. Em causa estaria a sua alegada participação num esquema de cumplicidades políticas e empresariais, cujo objectivo último seria delapidar os cofres do Estado na sequência da viciação de um valioso concurso de construção de um aterro sanitário.

Lançado pela Associação de Municípios da Cova da Beira em Abril de 1996, o projecto de concepção, construção e exploração do aterro da Cova da Beira fora formalmente anunciado por José Sócrates em Setembro daquele ano, no âmbito de um programa que previa o investimento de 122 milhões de contos (mais de 610 milhões de euros) para acabar com as lixeiras em todo o País.

Na Cova da Beira, a disputa pela empreitada foi altamente polémica - de tal modo que, na sequência da deliberação sobre o vencedor, foram feitas três reclamações. Todas sem efeito. A obra acabou mesmo adjudicada ao primeiro vencedor: por cerca de 2,5 milhões de contos (12,5 milhões de euros), o consórcio liderado pelo grupo HLC, do empresário da Covilhã Horácio Luís de Carvalho, comprometeu-se a fazer a central de compostagem. Entre os membros do consórcio estava a Conegil, uma empresa de construção criada por Carlos Santos Silva.

Outra figura fundamental em todo o processo foi António Morais, o ex-professor de José Sócrates na Universidade Independente, que lhe ministrou quatro das cinco cadeiras que lhe permitiram concluir a licenciatura em Engenharia Civil e que, enquanto director do Gabinete de Estudos e Planeamento de Instalações do Ministério da Administração Interna (GEPI), para

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onde fora nomeado em Março de 1996 por Armando Vara (amigo de Sócrates e na altura secretário de Estado da Administração Interna), foi, indirectamente, o responsável pelo programa do concurso, pelo caderno de encargos e pela avaliação técnica das propostas apresentadas. Como não o podia fazer formalmente (estava impedido de exercer funções privadas por trabalhar no GEPI), foi encontrada outra forma de avançar: a Associação de Municípios da Cova da Beira, entidade promotora do projecto, contratou a empresa ASM, criada por Ana Simões, mulher de Morais, e por ele mesmo, que viria a desempenhar um papel decisivo na escolha do vencedor.

azul com listas encarnadas oblíquas estraga o cenário — sobretudo quando comparado com o seu camarada do Ambiente, que lhe ganha largamente na roupa e na figura - nessa altura teria cerca de 15 quilos a menos do que o líder do PS.

Acompanhados pelas forças locais, os dois socialistas deslocam-se com alegria e firmeza à entrada da central. Guterres descerra, com ar visivelmente empreendedor, a bandeira. Mais sorrisos de ocasião para os fotógrafos. A felicidade paira no ar. O que provavelmente Guterres desconhece no instante em que ajeita a franja pela enésima vez - um tique que nunca perdeu - e carrega no botão para o arranque das máquinas é que acaba de accionar uma estrutura extremamente débil - não tinha estação de tratamento de lixiviados e possuía um aterro sanitário ilegal, por exemplo. A verdade viria inevitavelmente à tona - restava saber quando.

Quinta-feira, 19 de Setembro de 2002

Exactamente às 20h, José Rodrigues dos Santos surge no ecrã da RTP com uma gravata cor-de-rosa e um fato cinzento que teria pelo menos dois números acima do seu. A tragédia indumentária é amplificada pelo dramático cenário multicolor que o cerca e que atinge o seu esplendor num tenebroso ecrã de televisão em que se destaca, em letras garrafais, a palavra PESADELO. Indiferente a tudo, o pivô faz o seu trabalho:

— A central da Cova da Beira poderá tornar-se num grave problema ambiental. A central está a trabalhar sem uma estação de tratamento de águas residuais. As diversas entidades atiram o problema umas para as outras.

Todos os envolvidos fugiam. Uns, os promotores, porque tinham sido incompetentes; outros, os executores, porque foram alegadamente promíscuos; outros ainda, os investigadores, por hesitarem em avançar com o esclarecimento do caso. Um desastre global, portanto.

Em 2002, a PJ fez as primeiras buscas às casas e empresas dos suspeitos. Na sede da HLG encontrou um bilhete com data de 1998, dirigido

que ela existe - por vezes alguém lhe falava en passant sobre o problema da Cova da Beira mas não possui grandes informações sobre o caso.

Durante a conversa com a fonte, percebe imediatamente que está na hora de ir de uma vez por todas atrás da história. Agarra no telefone e contacta um empresário que fora subempreiteiro na construção do aterro da Cova da Beira, que perdera uma fortuna na sequência da falência da Conegil, a empresa de Santos Silva que o contratara para lhe prestar serviços e que, depois de facturar uma fortuna com o negócio, fechou portas, deixando

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pendurados os seus fornecedores, não lhes pagando as dívidas. «Falei várias vezes com a fonte. Exigiu-me anonimato e repetiu-me as suspeitas. Disse-me que os outros (Conegil, FFLC, etc.) ganharam muito dinheiro e que a ele nada lhe tinha sido pago. Estava revoltado.»9

Passo seguinte: procurar o processo. Onde estaria? Na PJ? No MP? Cerejo sentou-se uma vez mais à frente do computador e digitou lentamente o seguinte e-mail, dirigido à assessora de imprensa da Procuradoria Geral da República:

From: José António Cerejo

Sent: quinta-feira, 22 de Março de 2007 16:43

To: [email protected]'

Subject: Pergunta PÚBLICO

Roa tarde Ana Lima,

Julgo que em tempos lhe fiz uma pergunta sobre este mesmo assunto, ou se calhar foi ainda à Sara Pina. Em todo o caso gostaria que me tentasse obter uma resposta para a seguinte questão:

Qual é a situação do inquérito aberto, à volta de 1999/2000, à adjudicação do Aterro Sanitário da Cova da Beira a um consórcio liderado pela empresa HLC - uma obra da Associação de Municípios da Cova da Beira, com sede na Covilhã. Nessa altura foram feitas numerosas diligências pela PJ, mas não é do meu conhecimento o desfecho do inquérito. Pretendia saber se foi arquivado, ou se está pendente.

No GEPI para projectar a moradia que construiu perto de Montemor-o-Novo.

Pelo valor de 3.500 contos (cerca de 17.500 euros), o camarada de José Sócrates — com quem em 2009 viria, no âmbito do caso Face Oculta, a ser apanhado em escutas consideradas comprometedoras pelo procurador de Aveiro Marques Vidal - tornou-se dono, em 1998, de 13.700 irr de uma propriedade situada a três quilómetros de Montemor-o-Novo. Em Março de 1999 requereu à Câmara o licenciamento da ampliação e alteração da velha casa ali existente. Tratava-se de fazer uma casa nova, com 335 nr, a partir de uma quase ruína.

O projecto de arquitectura tem o nome de Ana Morais. Os projectos de estabilidade e das redes de esgotos e águas foram subscritos por Rui Brás. As instalações eléctricas estiveram a cargo de João Morais. O alvará da empresa que fez a casa diz que a mesma dá pelo nome de Constrope. Ora bem: a arquitecta Ana Morais era à época casada com António José Morais. E Rui Brás e João Morais eram dois engenheiros que trabalhavam no GEPI, dirigido por Morais e tutelado por... Armando Vara.

Dias antes, Cerejo recebera a resposta da Procuradoria-Geral da República: não havia qualquer inquérito em curso. Cerejo desconfiou. Conhecido entre os seus colegas pela obsessão na procura e confirmação de uma informação, acabou não só por confirmar a sua existência, como que o mesmo se encontrava à beira da prescrição. Já com o número do processo, voltou à carga exactamente no dia em que publicou a notícia sobre Armando Vara. Passam dois

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minutos das 17h quando envia mais um e-mail, desta vez dirigido ao Departamento de Investigação e Acção Penal.

From: José António Cerejo

Sent: sexta-feira, 20 de Abril de 2007 17:02

To: '[email protected]. mj.pt’

Subject: Requerimento PÚBLICO

À 9." SECÇÃO DO Dl AP de Lisboa

CtKLADO

capitais. A acusação visa também a sua ex-mulher, Ana Simões, acusada dos mesmos crimes, bem como Horácio Luís de Carvalho, o presidente da HLC, a quem são imputados os crimes de corrupção activa e branqueamento de capitais.

O MP concluiu que Horácio Luís de Carvalho pagou cerca de 60.000 euros aos outros dois arguidos como contrapartida para o favorecimento das suas empresas na adjudicação do concurso para a central de compostagem da Cova da Beira.

Quase um ano depois, em Maio de 2008, os três personagens foram pronunciados pelos mesmos crimes. O despacho do juiz de instrução criminal é inequívoco: os arguidos «agiram de forma concertada para beneficiar a HLC, violando as normas legais aplicáveis e prejudicando os outros concorrentes, com o único propósito de satisfazer os seus interesses pessoais. Para atingir este objectivo produziram relatórios e actuaram de forma a que a Associação de Municípios da Cova da Beira adjudicasse indevidamente a empreitada à HLC/Conegil, não só porque a sua proposta não era a melhor, mas também porque devia ter sido excluída do concurso logo de início, por não possuir o currículo necessário.» Por esse «serviço», conclui o despacho, «receberam pelo menos 58.154 euros de Horácio Carvalho, que transferiu esse valor em quatro tranches para uma conta que os outros arguidos tinham aberto nas ilhas de Guernesey». Seguir-se-ia o julgamento.

Segunda-feira, 31 de Agosto de 2009

José Sócrates já teria esquecido que o processo existia quando lhe chega uma notificação judicial. Foi arrolado como testemunha no processo por Ana Simões - que entretanto rompera com o seu marido, a quem acusava de a ter utilizado ao longo de todo o processo, tendo mesmo chegado ao ponto de falsificar a sua assinatura.

O contratempo não podia vir em pior altura. Sócrates acaba de sobreviver ao escândalo Face Oculta - em que foi acusado pelo juiz

Sexta-feira, 1 de Março de 2013

Em julgamento, os três arguidos são ilibados. Os documentos bancários que comprovam várias transferências, num total de 58.000 euros, para uma conta offihore de António Morais e de Ana Simões, não foram considerados indícios suficientemente relevantes para provar que o

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casal recebeu dinheiro de Horácio Luís de Carvalho para indicar a sua empresa, a HLC, como a mais habilitada para construir a central de compostagem da Cova da Beira. O caso chega ao fim, mas várias interrogações ficaram no ar. Alguns exemplos:

1 — Por que razão o antigo motorista de Jorge Pombo nunca foi inquirido, apesar de na averiguação preventiva este ter relatado informalmente à PJ factos relevantes, nomeadamente as idas e vindas de várias pessoas envolvidas no caso e conduzidas por ele ao gabinete de José Sócrates e aos escritórios da HLC e de Morais, todos em Lisboa?

2 - Porque é que Augusto Teixeira, o antigo director delegado da Associação de Municípios da Cova da Beira, que foi o único a votar contra a intenção de adjudicar o aterro à HLC e que foi presidente da Câmara da Covilhã pelo PS, só foi inquirido formalmente em 2007, já com 85 anos e depois de ser afectado pela doença de Parkinson, quando revelava gravíssimos problemas de memória?

3 - Porque é que João José Cristóvão, ex-assessor de Pombo, nunca foi inquirido, apesar de ser amplamente referido no decurso da averiguação preventiva e ser autor de um documento, datado de Março de 1998 e apreendido no gabinete, em que revela que vai ter uma reunião com «o Sócrates»?

4 - Por que motivo não foram feitas escutas telefónicas no decurso das investigações?

Muitas dúvidas, fracas respostas. Para a História o que fica é que Sócrates nunca foi formalmente investigado, não foi suspeito ou arguido no caso. Inocente, portanto. Uma vez mais, o socialista varrera alegremente os seus inimigos.

As escutas do caso Independente revelam um José Sócrates apreensivo com as dúvidas que publicamente se colocaram sobre a sua licenciatura.

intitulado «O passado misterioso de Sócrates», dava-se conta de que o primeiro-ministro «mascarara» a sua licenciatura - ou seja: de engenheiro pouco teria.1

Quarta-feira, 16 de Fevereiro de 2005

A quatro dias das eleições legislativas, António Caldeira possui informação suficiente para escrever um post explosivo sobre o assunto. Pensa que talvez não seja prudente lançar a bomba de imediato. Sabe que o seu blogue é muito visitado por jornalistas e não deseja ser acusado de tentar influenciar o resultado eleitoral. Decide esperar.

Segunda-feira, 21 de Fevereiro de 2005

José Sócrates é dono há 24 horas de uma maioria absoluta mas ainda não estreou o seu futuro gabinete em São Bento. No entanto, Caldeira não vai esperar que isso aconteça. Quer avançar já. Contacta Maria Rui, a assessora do líder do PS. Pretende confirmar as informações a que tivera acesso. A resposta é surpreendente: vão ajudá-lo na procura da verdade.

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Um dia depois, o professor recebe um telefonema da directora dos serviços jurídicos da Uni. Tem duas notícias para lhe dar: 1) claro que José Sócrates é licenciado; 2) obviamente que as informações pretendidas (notas, equivalências, resultados de exames, tudo o que fora colocado em causa no post do Porta Bandeira), são da reserva da intimidade da vida privada. Nada que trave Caldeira: no dia seguinte, a 23 de Fevereiro, publica mesmo o texto mais lido da história do Portugal Profundo: «Os cursos de Sócrates». (ver anexo 3)

As acusações são esmagadoras. Se todas corresponderem à verdade, aproxima-se do palácio de São Bento um tsunami político de considerável dimensão. Assim que a blogosfera toma contacto com o post assassino, a esquizofrenia instala-se, nomeadamente entre os blogues políticos

Terça-feira, 13 de Março de 2007

Logo pela manhã, Ricardo Dias Felner desloca-se ao edifício da Uni, situado perto do bairro dos Olivais. Quando chega bate com a cabeça na porta do arquivo: a menos que José Sócrates expressamente o autorize, não o deixam tocar no seu dossiê de aluno. Passo seguinte: ligar a Luís Bernardo, o assessor de imprensa mais próximo do primeiro-ministro.

- Luís, o Público, na sequência de alguns boatos que correm na blogos- fera, nos corredores da Assembleia e entre a classe jornalística sobre a legalidade da licenciatura do primeiro-ministro, decidiu fazer um trabalho sobre o caso. Tenho aqui um conjunto de questões que lhe quero fazer e para as quais preciso de uma resposta escrita.

O assessor de maior confiança de Sócrates responde com cautela.

- Eh pá, espera aí, são questões tão concretas, dados que têm a ver com a própria pessoa... Manda-me um e-mail porque é mais fácil assim, já que falamos de situações que ocorreram há cerca de 11, 12 anos.

—Já tentei ir à própria universidade e o reitor não me deu autorização para consultar o processo. Queria ver com o primeiro-ministro se ele ma concedia.

A decisão é chutada para o dia seguinte.

- Olha, isto como são questões muito específicas, espera que amanhã a gente dá-te a resposta,5

Quarta-feira, 14 de Março de 2007

Ricardo Dias Felner está impaciente com o facto de o gabinete do primeiro-ministro, ao contrário do que fora combinado, ainda não lhe ter respondido às questões, quando o telemóvel finalmente toca. O número é o de Luís Bernardo, mas quem surge de rompante do outro lado da linha é José Sócrates, que decidiu convencê-lo pessoalmente de que a informação que possui é uma mão cheia de nada. Entra ao ataque, como sempre.

- Isto são rumores como os que foram postos a circular na blogosfera sobre a minha alegada homossexualidade! São lançados por anónimos a quem eu não respondo porque não respondo ao has fond. E se você pertence ao bas fond isso é consigo!

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Felner não quer acompanhar a violência verbal. Encaixa os murros de Sócrates e tenta baixar o tom da conversa.

- Senhor primeiro-ministro, estamos a fazer esta investigação com o objectivo de esclarecer tudo e esta é uma boa oportunidade para esclarecer boatos que correm há muito tempo!'

Quando desliga o telefone, José Sócrates continua frenético. A conversa ainda não tinha acabado. Poucos minutos depois, liga de novo ao jornalista.

- Queria dizer-lhe que eu estou aqui de boa-fé mas que me sinto muito insultado, minto ofendido, só com as suas perguntas!

ex-ministros ou ex-secretários de Estado à porta. Nunca vinham direc- tamente. Algum amigo comum aparecia para um almoço, por acaso, e dizia que fulano tal tinha imenso potencial e know-how e poderia ser uma excelente aquisição para a universidade. Porque não o convidamos?»9

A pergunta era retórica, claro — desse ponto de vista os dirigentes da Independente eram muito previsíveis. Um dos políticos que por lá passou foi Luís Marques Mendes. Começou a dar aulas em 1995, na ressaca do cavaquismo, de que fora uma das figuras mais destacadas. Currículo que apresentou para convencer a gestão da universidade do seu virtuosismo académico: estava na política desde os 18 anos, aos 20 era vice-presidente da Câmara Municipal de Fafe e aos 28 tornara-se secretário de Estado Adjunto do ministro-Adjunto. Na cadeira de Direito da Comunicação, nunca conseguiu implementar o programa da disciplina. Rapidamente se afastou. Outras figuras que pontificavam na universidade: Arlindo de Carvalho, ex-ministro de Cavaco Silva; Álvaro Campos Ferreira, deputado social-democrata; Pedro Duarte, jovem deputado do PSD; Rui Paulo Figueiredo, socialista próximo de José Sócrates; Ana Catarina Mendes, também deputada socialista. E mais, muitos mais - Alberto João Jardim, por exemplo, que, ao contrário da esmagadora maioria dos políticos que passaram pela Uni, deixou óptima imagem."

José Sócrates conhecera Arouca em 1995, ano em que António Guterres venceu as eleições legislativas, apoiado por uma nova geração de militantes em que se destacavam figuras como Jorge Coelho, António Vitorino, António José Seguro - na altura presidente da Juventude Socialista - e, claro, José Sócrates. Quem os apresentou foi António Morais, professor de Engenharia na Uni.

Nessa altura, o socialista queria concluir a sua licenciatura, depois de ter feito um bacharelato no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra (ISEC) e mais dois anos no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa (ISEL). Faltar-lhe-iam poucas cadeiras. Arouca não hesitou em ajudá-lo. Nessa altura ainda não era reitor - assumiria o cargo no Verão de 1996 -, mas o seu poder interno dava-lhe autonomia para fazer quase tudo o que queria sem dar satisfações a ninguém. Chamou a si o pro-

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da campanha eleitoral pretenderam insinuar que eu era homossexual... e que visa, no fundo, dizer o seguinte: ele não concluiu a licenciatura. Esta campanha é uma campanha recente que também está ligada com a Independente e com problemas na Independente, não é verdade?

LA: Sim, sim...

PS: Bom, isto é uma campanha que se passa ao nível desses répteis, ao da blogosfera e do anonimato... e da ordinance... à qual eu tenho reagido com superioridade e indiferença que acho que é a única atitude para com essa canalha.

LA: Absolutamente, absolutamente.

JS: Mas recentemente ligou-me um jornalista do Público, imagine, dizendo, enfim, que tinha conhecimento destas coisas que circulavam através dos blogues e que queria tirar isto a limpo. Eu decidi falar com ele. Lá lhe contei a minha história académica, bacharelato em Coimbra, fui para o ISEL /Instituto Superior de Engenharia de Lisboa], a meio do ISEL decidi ir para a Independente, onde me licenciei: e depois fui tirar o MBA no ISCTE [Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa]. Mas ele queria confirmar umas coisas e perguntava-me notas na Independente e equivalências [...] epediu-me autorização para ir ao meu dossiê na Independente. Eu disse-lhe que não tinha nenhum problema com isso, não tenho nada a esconder.

[...]

JS: A ideia deles... esses marotos, é basicamente a seguinte: ele foi para a Independente, já era secretário de Estado, o que eles procuram insinuar é que a Independente me deu basicamente a licenciatura.

LA: É o que eles pretendem insinuar, claro. Mas é um disparate que já está suficientemente rebatido. Você é que tem que dizer, ou, se quer que a gente lhe diga as notas e as equivalências ou pura e simplesmente manda-os a tal lado... é como você quiser.

JS: Eu estava a pensar, se o professor me fizesse esse favor, era telefonar ao jornalista a dizer que falei com o senhor reitor e que ele o receberá e mostrará todos os documentos.

LA: Ele chega cá com essa indicação sua e está perfeito, pá.

JS: Bem, eu acho que nem tinham condições semelhantes, tinham condições piores porque o meu bacharelato foi de quatro anos. Somado com aquele ano do ISEL dava cinco anos.

LA: Tem muita razão. Tinha condições, comparativamente, mais favoráveis.

JS: Mas foram exactamente as mesmas...

LA: ... Exactamente, as mesmas...

JS: Mas antes disso posso pedir-lhe um favor, professor?

LA: Diga. Todos.

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JS: Se o professor chamasse a si esses papéis e lhes desse uma vista de olhos, ainda poderíamos voltar a falar.

LA: Com certeza. Eu vou ver os papéis e ligo-lhe amanhã e depois quando você quiser... no fim-de-semana... um dia qualquer, quando entender estou ao seu dispor porque realmente estes gajos precisam de uma lição, pá.

JS: Ouça, quer dizer, eu já tenho a experiência suficiente e a pele dura para lidar com esta gente ignóbil, absolutamente ignóbil.

LA: É verdade, é verdade. Aliás, deixe-me felicitá-lo, eu sempre me sinto um homem ligado a vocês, não é? Embora não esteja inscrito no partido, mas devo-lhe dizer que você tem feito uma acção brilhante.

JS: Muito obrigado, muito obrigado. Eu também fico muito satisfeito por o ver combater. E agora épreciso combater. Também gostava de lhe dar uma palavra de moral... para recuperar isso...

LA: Obrigado... vai-se recuperar.

JS: E quando eu puder ajudar, que agora não posso, bem sei, mas quando eu puder ajudar cá estarei, cá estarei.

LA: Sim, sim, contamos consigo...

JS: Cá estarei, cá estarei...

Por estes dias, a Uni vive em tumulto permanente. Durante anos, os seus responsáveis, com Luís Arouca à cabeça, investiram somas milionárias num estilo de vida faraónico. Viagens em jactos privados, almoços com vinhos de 500 euros, carros de luxo, jóias e casas sumptuosas; tudo

[...]

JS: Mas portanto quantas cadeiras eu fiz na universidade?

LA: Na universidade teve, portanto. Inglês Técnico 1, Análise de Estruturas 2, Projecto e Interpretação 3, teve Betão Armado e Pré-esforçado 4 e Estruturas Especiais 5.

JS: Portanto fiz cinco cadeiras. Cinco cadeiras com quatro anos de bacharelato e com mais um ano que fiz na. ..lã... no...

LA:... Aqui no ISEL.

JS: Sim, no ISEL. Sim, quer dizer, a questão é que me deram as equivalências exactamente que davam a todos os alunos do ISEL.

LA: Absolutamente. Oiça, a todos. Estão aqui pedidas, aqui dadas. Está tudo aqui. Isso, o processo está rigorosamente completo. Como lhe digo, renovo os... Agora não são só os parabéns pela magnífica legislatura de governo que tem tido, mas você foi um aluno óptimo.

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JS: Oiça, fui aí como fui depois... Eu. ..sempre... sempre fui bom aluno. Nunca tive problemas. Fui o melhor aluno do MBA, não é? Mas esta campanha miserável...

LA: Mete nojo, está a ver...

JS: ... Que se destina a diminuir um adversário político... Esta direita não tem escrúpulos... não tem escrúpulos...

Sócrates desliga. O reitor não é suficientemente ágil. Vai correr mal.

Sexta-feira, 16 de Março de 2007

Foi difícil, mas possível. Finalmente Ricardo Dias Felner fala pessoalmente com o reitor e tem acesso ao processo, que consulta e fotocopia. Nesse mesmo dia, o jornalista toma conhecimento de novos dados que apontam para mais irregularidades no curso do que as que eram apontadas no post do Portugal Profundo. Contacta repetidamente Luís Bernardo. Quer uma reacção imediata do primeiro-ministro, mas o que obtém é um adiamento - mais um. Envia as novas questões por e-mail.

era um problema de desperdícios e tratamentos e isso... Também não percebi bem porque quis ficar com uma folha que era uma simples folha de capeamento, mas pronto...

JS: A que horas é que foi isso ?

LA: Isto passou-se entre as 09h30, um quarto para as 10h, e as 11h30.

JS: Enfim, vocês tinham aí a minha informação escolar do ISEC e do ISEL.

LA: Tudo. Demos tudo. fotocópias da informação toda.

JS: Ai sim? Os originais ou as cópias?

LA: Demos o que tínhamos. Os originais não temos nós. Nós temos fotocópias, não é? Viu lá as notas todas e inclusive quando se pediu aqui a equivalência, as equivalências que nós demos, as quatro ou cinco cadeiras que fez aqui, as notas, enfim, demos tudo o que, segundo as suas mdicações, lhe podíamos dar, que constam do processo. Só não podíamos dar agora os pagamentos e essas coisas.

JS: Bem... Por acaso só não sei se lhe devíamos ter dado isso, podíamos ter-lhe mostrado. Dar fotocópias... enfim, não sei...

LA: Mas oiça: se não lhe déssemos ele pedia a Lisboa e a Coimbra. São públicas. A mim pareceu-me que não havia inconveniente nenhum. Porque é com base nessas notas e justamente foram dadas as equivalências.

A chamada termina e Sócrates não quer acreditar que a ingenuidade do reitor seja inversamente proporcional à dimensão de um micróbio. Como foi possível fornecer as fotocópias do processo a Felner?! Agora é oficial: o ouro está nas mãos do bandido.

Sábado, 17 de Março de 2007

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Ricardo Dias Felner fuma um cigarro na companhia de duas colegas do Diário de Notícias e da Lusa quando recebe um telefonema de Luís Bernardo, com quem já se cruzou neste dia. Os dois estão na FIL, em Lisboa, para assistirem, cada um na sua qualidade, ao Fórum Novas Fronteiras, organizado pelo Partido Socialista. Bernardo pede-lhe que vá ter com ele

LA - Mas sem a nais pequena dúvida. Isso é tudo desmentido!

JS - Mas eu tive vários colegas a fazer o exame...

LA — Claro, mas é evidente. Não tem nada a ver uma coisa com a outra.

JS — Mas vamos lá ver. Ele diz aqui também um projecto de dissertação do quinto ano. Mas eu não me lembro de ter feito isto...

LA — Não há um projecto de dissertação, isso é... não percebo o que é que ele diz... um projecto de dissertação? Bem...

JS — Como conclui ainda a cadeira de Estruturas Especiais?

LA — Essas duas cadeiras, pelo menos o que lá está nos nossos registos é que foram dadas e feitas pelo António José Morais.

JS — Mas quais cadeiras?

LA- A cadeira de Estruturas Especiais, que é realmente uma das cadeiras que existe [...] mas que está feito está. E o autor e a nota que lá tenho é do António José Morais. Se não se lembra ele talvez se lembre. Um projecto de dissertação também não é nada complexo. É você, por exemplo, fazer um projecto de uma casa.

JS - Mas na altura não havia outros alunos a fazer...

LA - O Morais deve ter, com certeza. É uma questão de se lembrar. Devem ter combinado os dois, devem ter Jeito, deve ter dado as suas orientações.

JS - Bom, ok, está bem professor. Vou remetê-lo para si, pá, vou...

LA - Remeta à vontade, eu já lhe respondi a tudo isso.

JS - Ok, está bem, professor. Um grande abraço, adeus.

LA - Abraço, adeus, tchau, pá.

Sócrates está eléctrico. Ainda nesse dia, volta a ligar a Arouca. E que, em vez de esclarecer, a informação prestada a Ricardo Dias Felner pelo reitor ainda aumentou mais a confusão - e o jornalista fê-lo sentir ao gabinete do primeiro-ministro. As contradições acumulam-se perigosamente.

JS - Está?

LA - Sim, diga.

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JS — Olhe, meu caro, ele diz-me que perguntou ao senhor reitor se aquelas cadeiras foram ministradas naquele ano e diz que o senhor reitor não lhe disse que sim.

JS - Meu caro, então falamos amanhã. LA — Está certíssimo.

Terça-feira, 20 de Março de 2007

A hora da verdade está perto: a publicação da notícia está por dias. No gabinete do primeiro-ministro, o ambiente é irrespirável. Não podem desistir. O trabalho, que consideram incorrecto, injusto e manipulatório, tem de ser travado. E, se Felner se mostra tão rigorosamente inflexível, está na hora de falar com o seu chefe.

José Manuel Fernandes, director do Público, está fora de Lisboa, numa visita de vários directores de jornais ao Hospital Amadora-Sintra, quando recebe uma chamada de Luís Bernardo.

O assessor vai directo ao que interessa.

— Eh pá, eu acho que vocês têm toda a legitimidade para fazerem o trabalho de investigação jornalística, mas têm de perceber uma coisa: um trabalho de investigação não se faz em dois, três dias, nem a correr, nem sob pressão constante.

José Manuel Fernandes tenta amenizar o clima. E aproveita a ocasião para se queixar do comportamento de Sócrates em relação ao jornal.

— Reconheço que é um trabalho que tem algum melindre, vou analisar, mas deixa-me dizer-te que sou director do Público há muitos anos e nessa qualidade sempre tive a oportunidade de falar com todos os primeiros-ministros. Nunca falei com José Sócrates, apesar de já ter feito várias diligências nesse sentido. Acho que seria bom para as duas partes que isso acontecesse.

Bernardo vê uma janela de oportunidade.

— Mas tu queres falar com ele?

— Estou, estou interessado.

— Mas sobre quê?

— Sobre assuntos gerais, há aqui umas coisas que eu queria ver.14

Quarta-feira, 21 de Março de 2007

Na redacção do Público, o director faz questão de acompanhar de perto a edição dos textos que constam do trabalho de Ricardo Dias Felner. Quer assegurar-se de que o caso é apresentado da forma mais seca possível, sem gorduras desnecessárias passíveis de lhe retirar credibilidade. Quer mais: que a nota que o primeiro-ministro remeteu ao jornal a propósito do tema tenha especial destaque. Não pode dar o flanco. Às 00h 15, Luís Bernardo faz uma última diligência junto de Ricardo Dias Felner, só para confirmar que a notícia será finalmente impressa. Resposta: sim.

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Quinta-feira, 22 de Março de 2007

Se o ódio e a irritação fossem material inflamável, Lisboa ardia nesta manhã, no preciso micromilésimo de segundo em que Sócrates olha para a peça assinada por Felner. Tanta conversa, tanto tempo, tanta pressão, frenesim e excitação para nada. O texto sai - e o socialista explode.

O seu teor é tão agressivo como antecipara - os indícios de irregularidades sucedem-se. Quanto ao Boletim de Matrícula: «[...] o único documento junto ao processo foi uma fotocópia do BI». Quanto ao Plano de Equivalências: «[sem] qualquer timbre nem carimbo e onde se concretiza que cadeiras mereceram equivalência por parte da Uni [...] uma folha não numerada (como todas as outras), onde apenas surge o nome José Sócrates Sousa, manuscrito pelo próprio, e o mapa de equivalências por ele proposto. Acresce que o número de cadeiras a que é requerida a equivalência, 25, tem menos uma cadeira do que o total das disciplinas a que José Sócrates viria de facto a obter equivalência no processo de transferência: 26. Por outro lado, o espaço onde o responsável do conselho pedagógico pelo processo deveria colocar a sua assinatura está em branco.» E mais, muito mais.

É urgente responder imediatamente ao Público. Conter a disseminação do escândalo é prioritário. Sócrates e Bernardo decidem emitir uma nota.

É natural que resolva falar sobre o caso, através de uma entrevista televisiva. «Foi uma estratégia deliberada. Decidimos deixar sair toda a informação para, no momento em que entendêssemos que o fluxo informativo estava esgotado, finalmente falarmos já com todos os dados em cima da mesa, evitando o risco de, depois disso, sermos surpreendidos com mais novidades.»1

Ninguém fica propriamente surpreso quando é revelado que a RTP é a estação escolhida para Sócrates se defender. A fraca importância que o canal estatal tem vindo a atribuir ao caso é alvo de críticas dentro e fora da estação. Entretanto, o Expresso publica novas e gravosas informações, impossíveis de ignorar. A SIC dá-lhe eco, pedindo uma reacção ao gabinete do primeiro-ministro. A coordenadora do Telejornal, Fátima Silva, também liga para São Bento. Quer uma declaração oficial - a linha definida pelo director de informação, Luís Marinho, defendia que a RTP só devia dar a notícia se tivesse algum comentário do primeiro-ministro. Problema: Sócrates recusa-se a comentar para a RTP. Estamos num impasse. Resposta de David Damião a Fátima Silva:

- Essa informação já foi dada à SIC.

Fátima insiste:

— Sim, mas eu estou a pedi-la também...

Minutos depois, a coordenadora recebe uma chamada de Luís Marinho. Quer saber o que se passa com a notícia sobre Sócrates; se ela faz assim tanta questão de a dar. A jornalista explica-lhe os seus argumentos e deixa a decisão nas mãos do director. Que opta por não noticiar o assunto. Hoje não se recorda de o ter feito: «Não posso desmentir que isso tenha acontecido, mas não me lembro mesmo. Na altura, o gabinete do primeiro-ministro

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telefonava-me com regularidade mas achava isso normal. Também falava por vezes com o primeiro-ministro. O que aconteceu é que não quisemos ir a reboque do Público-, preferia divulgar notícias que fossem produto da nossa investigação.»18

Maria Flor Pedroso (MFP) — O senhor primeiro-ministro já falou várias vezes das aulas. O senhor frequentava as aulas?

JS — Eu frequentava as aulas no regime pós-laboral, cujo esforço... Nem sempre ia a todas as aulas, naturalmente, o regime pós-laboral serve justamente para isso. Mas fiz aquilo que todos os alunos devem fazer, isto é, frequentar as aulas...

MFP — Pois, já percebemos...

JS — ... Ter os exames e aproveitamento.

MFP - Sim, senhor. As outras quatro cadeiras, nesse ano que passou na Universidade Independente... as outras quatro cadeiras, foram todas leccionadas pelo mesmo professor. Isto pode acontecer? São cadeiras de anos diferentes [...]. Quando é que o senhor conheceu António José Morais?

JS - Eu conheci António José Morais, o professor António José Morais, quando ele foi meu professor. Tive sempre com ele uma relação de aluno/ professor. E conheci-o nessa altura — repare que não são os alunos que escolhem os professores, mais uma vez...

MFP - Claro, também já disse.

JS — Conheci-o nessa altura e durante esse período. Depois de ter acabado a minha licenciatura não tive, nem tenho, nenhuma relação pessoal, próxima ou...

MFP — ...Epolítica, tem?

JS - ... De qualquer tipo.

O objectivo número um - sobreviver à conversa - é atingido. Largamente. Fica por alcançar o segundo: apagar definitivamente a fogueira em que arde em lume acelerado. Apesar dos esforços dos jornalistas, a verdade é que fica quase tudo por clarificar. No dia 22 de Abril, precisamente um mês depois da publicação da primeira notícia, o jornal de Belmiro de Azevedo faz um ponto de situação especialmente doloroso para o primeiro-ministro. Intitulado «O que ainda não foi explicado», o artigo elenca as 13 contradições, falhas, episódios duvidosos e declarações contraditórias que minam o processo:

1 - No dossiê de aluno estava um certificado, emitido em 2003,

que referia que o curso de José Sócrates fora concluído a 8 de quatro disciplinas, apesar de no seu registo de docente apresentar apenas quatro horas semanais de docência nesse período.

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7 - Ao longo dos vários contactos que manteve com Ricardo Dias Felner antes da publicação da primeira notícia do Público, Sócrates nunca se lembrou do nome dos seus professores - apesar de terem sido apenas dois.

8 - Apesar de só se ter licenciado em 1996, em 1993 José Sócrates já surgia qualificado como engenheiro na Biografia dos Deputados.

9 - Sócrates nunca explicou por que motivo aparecia designado, na sua biografia oficial publicada no Portal do Governo, como «engenheiro civil» - e por que motivo só alterou a qualificação depois de ter sido confrontado pela imprensa.

Apesar de todas as dúvidas, a verdade é que o tempo, devidamente empurrado pela avalancha da actualidade, encarrega-se de ir fazendo a poeira baixar. Paulatinamente, Sócrates volta a poder respirar. Até que, em 2009, o advogado José Maria Martins, que ganhara visibilidade pública na defesa de Carlos Silvino - o motorista da casa Pia condenado à cadeia pelo crime de pedofilia -, decide avançar com uma acção de nulidade da licenciatura do então líder do Executivo.

Quando é informado da iniciativa, Sócrates desespera. É certo que José Maria Martins tem um enorme problema de credibilidade - as suas excentricidades valeram-lhe mesmo uma suspensão de três anos pela Ordem dos Advogados por alegada violação de deveres previstos no estatuto da Ordem como a honestidade, a probidade, a rectidão, a sinceridade ou a independência - mas é um perigo à solta pela facilidade que exibe no acesso às páginas dos principais jornais e aos ecrãs das televisões. É um problema real, de nada vale escondê-lo. Felizmente para o chefe do Governo, resolve-se em velocidade supersónica: apenas duas semanas após a apresentação da acção, as procuradoras Cândida Almeida e Carla Dias decidem-se pelo seu arquivamento. «De toda a prova resulta claro que a ânsia de afirmação e aceitação rápidas da UNI - Universidade

Problema: ao evidente estado de adultez não correspondia uma evolução na indumentária. O seu primeiro dia na autarquia ainda hoje é recordado entre os funcionários: entrou nos Paços do Concelho vestindo umas calças de bombazina encarnada e ténis brancos. Muito infantil.

Na Covilhã, Sócrates não quis depender do pai depois de terminar os estudos e regressar à cidade. Alugou, a baixo preço, o quarto 101 de uma pensão, situada no largo do município. Com o passar do tempo, o seu pedigree imobiliário aumentou gradualmente: daí passou para

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uma casa que pertencia a Pedro Roseta, ex-ministro do PSD. E depois mudou-se para uma moradia do bairro municipal. Nada de luxuoso, mas ainda assim estupidamente melhor do que a pensão.

Na autarquia, Sócrates nunca foi tão brilhante como chegava a ser fora dela. Acompanhava obras em estradas, edifícios, saneamento. Mergulhou no povo: todos os meses, juntamente com os outros dois engenheiros da autarquia organizava um lanche com os operários nas oficinas de carpintaria. Menu: frango à cafreal, a maior especialidade de um dos carpinteiros, militante do CDS.

Num meio pequeno, todos os pretextos eram bons para ocupar o tempo - e nisso Sócrates era muito bom. Para além de jogar futebol de salão com os amigos e de praticar ginástica no Inatel, tinha um programa com o seu colega Jorge Pombo na Rádio Clube da Covilhã. Chamava-se Meia de Lã. Jorge passava música brasileira; Zé lia textos de escritores como Cesário Verde ou Fernando Namora. Ao final da tarde, encontravam-se por vezes com Victor Marques, seu chefe no departamento de obras, para um whisky relaxante no Rocket Bar.

Sócrates tinha uma voltagem superior à dos que o cercavam. Aderira ao Partido Socialista em 1981 e rapidamente percebeu que não nascera para gastar as solas dos sapatos a calcorrear as estradas da Covilhã à procura de buracos nas estradas. O seu destino era maior do que isso - porque ele era bem maior do que isso.

À medida que a sua actividade no PS local aumentava, o trabalho na autarquia ressentia-se. A dada altura, o entusiasmo político

dele. Nalguns casos, esses documentos eram manuscritos com a letra de Fernando Caldeira, um colega de curso do actual primeiro-ministro que era fumcionário do município e que, por isso, não podia assumir a autoria de projectos na área do concelho.

O primeiro-ministro diz que assume «a autoria e a responsabilidade de todos os projectos» que assinou e que a sua actividade profissional privada se desenvolveu «sempre nos termos da lei». Embora se trate de uma prática sem relevância criminal, as chamadas “assinaturas de favor” em projectos de engenharia e arquitectura constituem uma «fraude à lei», no entendimento do penalista Manuel Costa Andrade, e são unanime- mente condenadas pelas organizações profissionais dos engenheiros técnicos e dos engenheiros.

Cercjo tomara contacto pela primeira vez com a notícia num pequeno apontamento escrito sobre o assunto no Expresso, em que era mencionada uma entrevista dada por Abílio Curto, antigo presidente socialista da Câmara Municipal da Guarda - preso por corrupção passiva à rádio Altitude. Revelou o ex-autarca:

— Uma vez disse-lhe [a José Sócrates] que ele mandava muitos projectos para a Câmara da Guarda, obras públicas, particulares. [...] O que sei é que nem todos os projectos seriam da autoria dele. Mas isso levar-nos-ia muito longe e também não vale a pena.

Assim que lê a notícia, Cerejo liga o radar. Pensa: «Isto pode ser engraçado.»1 Pois podia. Tem de confirmar as declarações. Contacta a rádio local e o jornalista que fez a entrevista. Pede-lhe

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o ficheiro de som - queria ouvir ele mesmo as declarações. Quando chega o e-mail com o áudio, não tem dúvidas de que está perante o início de uma história impactante.

Passo seguinte: falar com Abílio Curto. Problema para ultrapassar: convencer Abílio Curto de que a vida são dois dias e de que a efemeridade da existência nos deve inibir de desperdiçar tempo a remoer o passado ou em exercícios dispensáveis de rancor. Isto porque Cerejo fora

entrados nos serviços dessa câmara no período compreendido entre Janeiro de 1980 e Dezembro de 1989.

Com os meus cumprimentos,

José Mendes

Jornal PÚBLICO, secção Local

Rua Viriato 13, 1069-315 Lisboa Fax: 210 111 0071

Como quase sempre, o seu instinto funciona: quem quer que tenha analisado o pedido, terá certamente partido do princípio de que Cerejo tem interesse em conhecer de perto os projectos decrépitos e estereotipados das casas dos emigrantes da década de 80. O pedido é deferido e o jornalista arranca para a Guarda, onde se instala numa pensão velha e baratinha.

Mergulha no arquivo, situado no último piso do edifício camarário, onde se aproveitara uma parte do sótão enorme para acomodar as memórias da instituição. Durante três dias, vive literalmente naquele espaço. As caixas estão arquivadas por anos. Abre a de 1981. Mexe, remexe, volta a mexer e a remexer. Até que surge o momento Eureka!: nas mãos sujas pelo pó segura orgulhosamente o primeiro projecto com intervenção do engenheiro José Sócrates Pinto de Sousa. Depois desse, descobre o segundo. E o terceiro. E o quarto. Ao final dos três dias, consultara cerca de mil processos de licenciamento - cerca de um quatro do total de obras aprovadas entre 1981 e 1990. Entre eles descobriu 27 assinados por José Sócrates, sobretudo de casas de emigrantes, ampliações e anexos, mas também dois edifícios de habitação colectiva.

Os que mais chamaram a atenção do jornalista foram algumas peças manuscritas, nomeadamente memórias descritivas, termos de responsabilidade e cálculos de betão, em que a caligrafia usada nada tinha a ver com a de José Sócrates. Frequentemente, essa letra é a mesma que aparece nos autos das vistorias realizadas no fim das obras pelos técnicos da Câmara da Guarda: a de Fernando Caldeira, colega de curso do então

Quem não revelou ponta de ambiguidade foi o desenhador Cristóvão Pereira, que admitiu que o ex-primeiro-ministro assinara projectos feitos por si: «Como éramos amigos e eu não podia assinar, ele assinava-me os projectos e fazia os cálculos, mas nunca cobrou nada por isso.»

Sexta, 1 de Fevereiro de 2008

Em São Bento, a indignação é geral. Como sempre. Sócrates grita, espuma, esbraceja. O «pistoleiro» volta a atacar, desta vez com factos ocorridos há quase 20 anos! Naquele momento, na cabeça do primeiro-ministro tudo é muito transparente: o Público está ao

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serviço do seu dono, o empresário Belmiro de Azevedo, que continuava sem lhe perdoar o facto de em 2006 ter inviabilizado a OPA da Sonae sobre a PT. Pura vingança, portanto. O timing dificilmente poderia ter sido pior: está a meio de uma remodelação governamental. Quer refrescar o Governo para lançar caras novas para as eleições do ano seguinte. E agora aparece, vindo do nada, o Público a estragar-lhe a festa. Uma vez mais.

Logo pela manhã, os telefones começam a tocar em São Bento. Outros jornalistas querem uma reacção de Sócrates. O que o primeiro-ministro e a sua task force mais temem acontece: o trabalho de Cerejo contamina as restantes publicações. Sempre atento, Luís Bernardo pega no telemóvel. Tem urgentemente de fazer gestão de danos. Fala com os seus con- tactos nos principais jornais e estações de televisão, desvalorizando a notícia. Tarde demais. O primeiro-ministro tem de reagir, não há alternativa. Bernardo dialoga com Sócrates e concordam na realização de uma curta declaração no Palácio de Belém, onde nessa sexta-feira ocorre a cerimónia de tomada de posse dos novos membros do Governo.'*

Em Belém, com uma multidão de repórteres à sua frente, Sócrates é, como se esperava, impiedoso. Primeiro, qualifica a informação: «A notícia do Público é absolutamente deplorável.» Depois, segue para a substância: «Quero dizer com clareza que [...] todos os projectos que assinei na década de 80, há mais de 25 anos, são da minha autoria e responsabilidade.»

estado congelado desde a publicação da lei que o criou, em Agosto de 1988, devido à existência de dúvidas sobre o conceito de dedicação exclusiva.

É muito provável que o primeiro-ministro não tenha ficado absolutamente surpreso com a publicação da segunda notícia, esta sobre a alegada incompatibilidade entre a sua actividade privada e o exercício das funções de deputado em regime de exclusividade. Isto porque, uns meses antes, Luís Bernardo recebera um e-mail já ao final de uma noite de quarta-feira em que, entre outras perguntas, Cerejo aflorava a questão do subsídio de exclusividade:

De: José António Cerejo [mailto:acerejoCpitblico.pt]

Enviada: quarta-feira, 24 de Outubro de 2007 20:46

Para: Luis Bernardo

Assunto: Perguntas Jornal PÚBLICO

Ao Gabinete do

Senhor primeiro-ministro

A/C do senhor Luís Bernardo

José António Cerejo, jornalista do diário PÚBLICO, titular da carteira profissional n.° 549, para efeitos relacionados com a publicação, dentro de dias, de um trabalho jornalístico, incluindo portfolio fotográfico, sobre a actividade profissional privada exercida pelo engenheiro técnico José Sócrates nas décadas de 80 e 90, solicita que lhe seja dada resposta às seguintes questões:

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[-.]

3 — Qual a explicação do Eng. José Sócrates para o facto de ter requerido em 1992, e obtido com efeitos retroactivos a Outubro de 1988, o subsídio previsto na Lei 102/88 para os deputados que exerciam o seu mandato em regime de dedicação exclusiva, sendo certo que o senhor deputado José Sócrates continuava a exercer a sua actividade privada de

From: Luis Bernardo [mailto:[email protected]]

Sent: quarta-feira, 31 de Outubro de 2007 17:06 To: José Manuel Fernandes Cc: José António Cerejo Subject: RE: Peguntas Jornal PUBLICO

José Manuel Fernandes,

Junto segue resposta do Engenheiro José Sócrates às questões colocadas pelo jornal Público.

Com os melhores cumprimentos,

Luís Bernardo

Exrno. Senhor Director

Insiste o jornal que V. Exa. dirige em vasculhar o meu passado em constantes e desesperadas tentativas para descobrir qualquer coisa, mínima que seja, que permita atacar-me pessoal e politicamente. É uma forma de estar na política - mais do que uma forma de estar no jornalismo - que já não passa despercebida a ninguém.

Desmentido categoricamente pela investigação das instâncias judiciárias competentes no caso da minha licenciatura pela Universidade Independente, o jornal cuja direcção lhe foi confiada, sem conter o ressentimento, decidiu agora dedicar-se a um novo exercício de arqueologia jornalística procurando questionar o meu passado profissional na década de 80. Espero que não deixem em branco as décadas de 60 e 70 que, bem exploradas, e com os critérios em voga, ainda poderão render uma ou duas manchetes...

Ainda assim, não quero que fiquem sem resposta as perguntas que o Público me colocou através do bem conhecido jornalista José António Cerejo:

1. Exerci funções, entre 1981 e 1987, como engenheiro técnico nos quadros da Câmara Municipal da Covilhã. Como é sabido, deixei de prestar serviço efectivo na Câmara em 1987, por ter sido eleito Deputado à Assembleia da República.

Repetir a estratégia-José Mendes está fora de causa - dificilmente a liderança da autarquia cairá de novo na armadilha. Tem de dar a cara. A lei está do seu lado. Se não conseguir acesso imediato, os tribunais encarregar-se-ão de lho conceder.

Terça-feira, 5 de Fevereiro de 2008

Ainda está José Sócrates a ressacar das duas notícias seguidas quando o jornalista do Público envia um e-mail - mais um - para a autarquia da Guarda. Diz o que se segue:

From: José António Cerejo

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Sent: terça-feira, 5 de Fevereiro de 2008 17:09

To: [email protected]

Subject: Requerimento jornal PÚBLICO

Exm.o Senhor presidente da Câmara Municipal da Guarda José António Martins Mendes Cerejo, que também usa José António Cerejo e José António Mendes, jornalista do diário PÚBLICO, titular da Carteira Profissional n.0 549, ao abrigo da Lei de Acesso aos Documentos Administrativos e no âmbito da sua actividade profissional, vem solicitar a V. Ex“ que lhe indique, com a maior brevidade possível, o local, dia e hora em que poderá ter acesso, para efeitos de consulta, a todos os processos de licenciamento de obra particulares entrados nos serviços desse município entre 1981 e 1995, bem assim como a todos os processos de obras públicas, municipais e da iniciativa da administração central, que no mesmo período tenham sido apreciados pelos serviços da Câmara Municipal da Guarda.

Aguardando uma resposta urgente, apresento a V. Exa os meus cumprimentos,

José António Martins Mendes Cerejo

[email protected]

Telef 210 111 0717

preocupado com a passagem dos minutos, diz-lhe que o melhor é ir já buscar os restantes de 1981 e os de 1982 porque a consulta será rápida. Nada feito: a senhora não tem instruções para isso. Inconformado, o jornalista insiste, pedindo a um dos funcionários presentes na sala para contactar a secretaria do presidente.

São 9h58 quando chega a secretária com a lista das adjudicações de 1982. Pergunta:

— Quais dos projectos [eram cerca de uma dezena] quer?

O jornalista dá-lhe a resposta evidente:

- Todos}

Às 10h05, passados 14 minutos sobre o início da consulta, termina os primeiros três projectos. Fica a aguardar que cheguem os seguintes. Têm de passar mais 16 longos minutos até aceder a mais três processos, dois dos quais irrelevantes, uma vez que não são projectos das obras, mas documentos relacionados com o concurso para a sua execução.

Cerejo vê dois deles. Está a consultar o terceiro quando chega a secretária de Joaquim Valente. São 10h28.

- O seu tempo terminou e o senhor presidente quer falar consigo.

Cerejo reage.

— O tempo útil da consulta [uma hora] vai em 21 minutos. Faltam 39!

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A funcionária está irredutível.

— A mesa é necessária; não pode continuar...10

Já no gabinete de Joaquim Valente, o jornalista experimenta o gozo notório que a humilhação violenta de que está a ser alvo provoca ao ex-colega de José Sócrates que, entre sorrisos, lhe tenta explicar o inexplicável.

- Há muito trabalho na Câmara e os funcionários são poucos, mas mesmo assim quero proporcionar-lhe todas as condições para fazer o seu trabalho.

Cercado pela oposição, Valente faz uma fuga em frente: na próxima reunião do executivo municipal, a realizar no dia 24, trará novidades.

Quinta-feira, 24 de Setembro de 2008

Promessa feita; promessa cumprida. Joaquim Valente entra na reunião camarária com o relatório da investigação interna. Tem de acabar definitivamente com o frenesim à volta do primeiro-ministro. Distribui o documento pelos vereadores do PSD. Quando o consultam, não querem acreditar: depois de oito meses, tudo o que a comissão de inquérito produziu esgota-se em duas páginas e meia repletas de generalidades, em que se remete as conclusões para um relatório final ainda sem data de entrega. A vereadora laranja Ana Manso, também deputada na Assembleia da República, reage com violência.

Começa por classificar o comportamento do presidente da autarquia:

- Trata-se de uma manobra dilatória e um mau serviço prestado ao esclarecimento da verdade e ao bom nome do primeiro-ministro José Sócrates. Há uma tentava de branqueamento do processo, para a qual alertámos desde o início.

Segue rapidamente para a ameaça:

- Não excluímos enviar o processo ao Ministério Público.

E conclui:

- Estão a atirar-nos areia para os olhos!

Quarta-feira, 28 de Janeiro de 2009

Mais uma reunião de vereadores; mais uma fonte de incontrolável tensão. Mesmo sem estar presente, José Sócrates incendeia a sala. Um vereador socialista - Joaquim Valente não está - apresenta as conclusões do relatório mais desejado. São 22 páginas em que os autores concluem que os

o

Exige clareza e transparência. «A comissão que elaborou este relatório não tem independência em relação ao poder político, uma vez que tem total subordinação hierárquica e funcional ao Executivo [...]. Os portugueses têm o direito de saber a verdade.»

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Quarta-feira, 29 de Abril de 2009

Os caracteres vão-se acumulando no ecrã. José António Cerejo digita serenamente o epílogo de mais uma saga noticiosa:

O Departamento de Investigação e Acção Penal de Coimbra mandou arquivar o inquérito aberto aos projectos de obras assinados por José Sócrates na década de 1980 por terem prescrito os crimes que poderiam estar em causa.

O jornalista prossegue com a explicação do caso. Três mil duzentos e setenta e três caracteres depois, coloca um ponto final no texto e assina-o. Sócrates respira de alívio pela mão do mesmo homem que quase o sufocou nos últimos 394 dias da sua vida.

- «Sapere Sapore»

— Com «S»?

após termos saboreado, experimentado, após colocar as mãos na massa, podemos verdadeiramente conhecer algo, decidir ou falar sobre algo com propriedade, no findo ser sapiente.1 *

Ser sapiente. Eis uma preocupação de José Sócrates. Sapiente dentro da cadeia, mas ainda mais sábio a defender-se para fora dos seus muros. A partir da pequena mesa que possui nos 8 m2 da sua cela, tem-se defendido como pode. Deu entrevistas escritas àTVI, à SIC e à RTP. Mandou cartas a vários jornais (ver anexos). E até a Mário Soares endereçou uma missiva emocionada no dia 7 de Dezembro de 2014, data em que o histórico socialista completou 90 anos. Se fizermos um esforço por esquecer o destinatário quando passamos os olhos pela carta, podemos facilmente imaginar que, ao referir-se ao fundador do PS, Sócrates fala, na realidade, de si mesmo, ao enaltecer «o carisma de um personagem, essa aura enigmática e mágica, esse “não sei quê” excepcional que distingue os grandes homens políticos», e ao sublinhar «a coragem do combate e da ruptura».

João de Sousa, um ex-inspector da Polícia Judiciária também preso preventivamente em Évora, escreveu no seu blogue - intitulado Dos Dois Lados das Grades - que «na sua mitologia pessoal (quiçá loucura) Sócrates ainda é presidenciável: os grandes homens também passam pela prisão, é algo que os torna maiores, mais sensatos, sapientes. Sócrates vê-se no mesmo patamar olímpico que Mário Soares, Martin Luther King Jr. ou Nelson Mandela». Homem culto, João de Sousa foi escolhido pelo socialista como companheiro de conversas no pátio da cadeia. Também no seu blogue, deixou registada a síntese dos seus diálogos com o animal feroz:

— Está morto em vida.

Estará? Com Sócrates nunca se sabe.

' Entrevista do autor a João de Sousa no Estabelecimento Prisional de Évora/Blogue Dos dois lados das Grades.

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12 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates ,J Idem

14 Entrevista do autor a Rodrigo Moita de Deus

15 Idem 18 Ibidem

1 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

12 Idem

13 Ibidem

14 Entrevista do autor ao jornalista Bernardo Ferrão

15 Idem

16 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

17 Idem

CAPÍTULO III

' Dinis, David; Coelho, Hugo Filipe; Resgatados, Esfera dos Livros

2 Idem

' Alves, Clara Ferreira; entrevista a José Sócrates; Expresso, 19/10/2013

I Idem

' Ibidem

6 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates Ibidem

8 Ibidem

9 Alves, Clara Ferreira; entrevista a José Sócrates; Expresso, 19/10/2013

10 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

II Idem

6 Ibidem

7 Ibidem

8 Diário da Assembleia da República, 23/03/2011

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14 Dinis, David; Coelho, Hugo Filipe; Resgatados, Esfera dos Livros

16 Entrevista do autor à jornalista Judite Sousa

17 Idem

18 Ibidem

19 Dinis, David; Coelho, Hugo Filipe; Resgatados, Esfera dos Livros Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

21 Entrevista do autor a Vítor Ramalho Dinis, David; Coelho, Hugo Filipe; Resgatados, Esfera dos Livros, 2012

23 Entrevista do autor à jornalista Helena Garrido

24 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates 24 Idem

26 Ibidem 2' Ibidem

CAPÍTULO IV

1 As escutas telefónicas em que intervêm Rui Pedro Soares, Paulo Penedos, Armando Vara, Josc Penedos, Joaquim Oliveira e Lopes Barreira são todas descritas num despacho assinado

6 Idem

7 Ibidem

1 Ibidem

5 Entrevista do autor a José António Cerejo

6 Documento disponibilizado por José António Cerejo

7 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

8 Documento disponibilizado por José António Cerejo

9 Entrevista do autor a José António Cerejo

CAPÍTULO VII

: Caldeira, António; O Dossiê Sócrates, Edição de autor

2 Idem

3 Entrevista do autor ao jornalista Ricardo Dias Felner

4 Idem

' Ibidem

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2 Ibidem Ibidem

* Ibidem

9 Verde, Rui; O Processo 95385, Livros d’Hoje, 2011

10 Idem

" Ibidem

12 Todas as conversas telefónicas mantidas entre José Sócrates e o ex-reitor da Universidade Independente, Luís Arouca, constam do processo de investigação à Universidade Independente.

13 Entrevista do autor ao jornalista Ricardo Dias Felner

14 Entrevista do autor ao jornalista José Manuel Fernandes 18 Idem

16 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

17 Idem

18 Entrevista do autor ao jornalista Luís Marinho ” Idem

CAPÍ TULO VIII

1 Entrevista do autor ao jornalista José António Cerejo

2 Idem

3 Documento disponibilizado por José António Cerejo

4 Entrevista do autor a um ex-colaborador de José Sócrates

2 Documento disponibilizado pelo jornalista José António Cerejo 6 Idem

Entrevista do autor ao jornalista José António Cerejo

8 Idem

9 Ibidem

10 Ibidem

11 Ibidem

ANEXOS

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O Director-Geral tem agora o direito, em certas circunstâncias, de exercer os seus poderes internos, por indicação do secretário de Estado efectuada através da Autoridade Central do Reino Unido para Assistência Judiciária Mútua, para obter informações a pedido de autoridades estrangeiras. Encontram-se expostas na secção 2(2) e (3) da Lei sobre a Justiça Penal de 1987 as respectivas disposições, da seguinte forma:

2(2) - O Director-Geral pode, mediante aviso escrito, exigir que a pessoa cujos negócios devem ser investigados (a pessoa sob investigação’) ou qualquer outra pessoa que ele tenha motivo para crer que tenha informações relevantes, responda a perguntas ou, em alternativa, forneça informações em relação a qualquer assunto relacionado com a investigação num momento indicado, ou de imediato.

2(3) - O Director-Geral pode, mediante aviso escrito, exigir que a pessoa sob investigação, ou qualquer outra pessoa, apresente num local que seja assim indicado quaisquer documentos especificados, que o Director-Geral considere que se relacionam com qualquer assunto que diga respeito à investigação, ou quaisquer documentos de uma descrição especificado, que lhe pareçam assim se relacionar.

Pessoas sob investigação

A Serious Fraud Office e a Polícia da Cidade de Londres estão a realizar uma investigação por suspeita de crimes. A investigação relaciona-se com uma que está a ser levada a cabo pelas autoridades portuguesas por alegações de suborno e corrupção associadas com o desenvolvimento do local da Freeport, em Alcochete.

Os cidadãos do Reino Unido, que se sabe estarem ligados ao caso e que estão por conseguinte a ser presentemente investigados, vêm indicados a seguir:

1. Sean Collidge

2. Gary Russell

3. Jonathan Rawnsle

4. Rick Dattani

5. Charles Smith

6. William (Billv) McKinney Jnr

Existem motivos razoáveis para crer que as pessoas acima referidas tenham cometido crimes de suborno e de corrupção em contravenção das leis de Inglaterra e do País de Gales. Os crimes específicos que estão a ser considerados vêm expostos no Anexo ‘ 1 ’ à presente.

Além disso, os cidadãos abaixo indicados, que não são do Reino Unido, são considerados como estando sob investigação no sentido de terem solicitado, recebido ou facilitado pagamentos que sejam relevantes aos crimes indicados no Anexo ‘1’:

LtKLAUO

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O primeiro e o segundo requerimento para apreciação em matéria de Avaliação de Impacto Ambiental foram reprovados pelo Ministério do Ambiente de Portugal no decurso do ano 2000.

Charles Smith alega durante uma inquirição pela Polícia da Cidade de Londres que a Smith & Pedro foi abordada entre estas duas apresentações de requerimento relativamente ao pagamento de um suborno considerável para assegurar a aprovação.

No dia 17 de Janeiro de 2002, os representantes da Smith & Pedro e da Freeport reuniram com entidades portuguesas, incluindo o então ministro do Ambiente, José Sócrates, para discutir uma terceira apresentação para apreciação em matéria de Avaliação de Impacto Ambiental. Os participantes nesta reunião foram Sean Collidge, Gary Russell, Charles Smith, Manuel Pedro, José Sócrates e outros funcionários municipais e públicos portugueses.

Foram discutidas nesta reunião as dificuldades relacionadas com a Avaliação de Impacto Ambiental apresentada.

Foi alegado que, neste mesmo dia, o ministro do Ambiente, José Sócrates, reuniu posteriormente com Sean Collidge, Gary Russell, Charles Smith e Manuel Pedro. Nesta reunião distinta, José Sócrates efectuou alegadamente um pedido que seria equivalente a um suborno para assegurar que a Avaliação de Impacto Ambiental apresentada fosse favorável.

Alega-se que foi chegado a um acordo no sentido de que a Freeport cfectuaria, por intermédio da Smith & Pedro, pagamentos a terceiros, relacionados com José Sócrates. Estas alegações resultam colectivamente da Carta Rogatória da Procuradoria Geral da República do Montijo, de 12 de Agosto de 2005, apoiada por uma lista de e-mails extraídos de computadores apreendidos aos escritórios da Smith & Pedro pela Polícia Judiciária portuguesa.

Esta lista foi posteriormente fornecida pela Polícia Judiciária à Polícia da Cidade de Londres. Em acréscimo, as alegações são declaradas por Charles Smith numa reunião realizada com Alan Perkins (um ex-funcionário da Freeport) e com João Cabral no escritório da Freeport em Portugal, no dia 3 de Março de 2006. Alan Perkins gravou um vídeo da reunião sem o conhecimento de Charles Smith. Esse vídeo encontra-se em anexo a um depoimento colhido pela Polícia da Cidade de Londres, que foi divulgado às autoridades portuguesas por meio da Assistência Judiciária Mútua.

Há que referir que Charles Smith negou posteriormente as alegações específicas de corrupção numa inquirição sob aviso efectuada no dia 17 de Julho de 2007 pela Polícia da Cidade de Londres. Nas semanas que se seguiram ao dia 17 de Janeiro de 2002, o Ministério do Ambiente aprovou uma lei a alterar os limites da reserva

1. Buscas Queira por favor confirmar as moradas nas quais foram efectuadas buscas ou a quem (com excepção dos bancos) foram formalmente entregues mandados judiciais obrigando a apresentação de material relacionado com a investigação da Freeport PLC e RJ McKinney e outros. Queira por favor confirmar as datas das buscas ou da entrega formal dos mandados de apresentação.

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2. Índice do material Queira por favor fornecer um índice ou uma lista de material, de computadores e de outro material digital (material que não seja dos bancos) acumulado como resultado das buscas, dos mandados de apresentação ou de outro modo relacionados com a investigação da Freeport PLC e RJ McKinney e outros.

3. índice de material bancário Queira por favor fornecer um índice ou uma lista de material bancário acumulado relativamente à investigação da Freeport PLC e RJ McKinney e outros.

4. Material de vigilância Queira por favor fornecer uma lista das intercepções telefónicas ou outra vigilância intrusiva realizada relativamente à investigação da Freeport PLC e RJ McKinney e outros.

5. Provas principais Queira por favor fornecer uma colecção dos documentos de prova centrais identificados a esta data que seriam utilizados para, ou em preparação das inquirições a serem realizadas pela Polícia da Cidade de Londres e pela Serious Fraud Office no Reino Unido no tocante à investigação da Freeport PLC e RJ McKinney c outros. Solicita-se que esta colecção inclua especialmente comunicações físicas, electrónicas ou interceptadas que possam fornecer provas de pagamentos de subornos ou acordos para efectuar os pagamentos de subornos que são objecto da investigação.

6. Acesso a material e às testemunhas No seguimento do pedido (6), de modo a facilitar a investigação em curso no futuro, queira por favor dar autorização para que os representantes da Polícia da Cidade de Londres e da Serious Fraud Office tenham futuramente acesso à colecção completa dos depoimentos de testemunha e do material objecto dos pedidos supra, devendo ser acordado numa data futura. O âmbito do acesso que será solicitado pode ser esclarecido após a Serious Fraud Office c a Polícia da Cidade de Londres terem analisado os índices e o material solicitados nos Pedidos de (1) a (6) supra.

7. Assistência do Reino Unido pendente Queira por favor fornecer dados dos bancos, das contas bancárias e dos códigos de agência das contas bancárias de RJ McKinney no Reino Unido que seriam solicitados por Portugal por meio da Assistência Judiciária Mútua.

8. Material bancário e de planeamento pendente Queira por favor prestar esclarecimentos actualizados sobre qual o material bancário, para além daquele

provas em qualquer requerimento de restrição de bens de um réu ou para confiscar tais bens em caso de condenação, a menos que o requerimento para a obtenção de tais provas especifique que se destina a utilizar as provas para tais fins.

O director solicita, por conseguinte, o fornecimento de documentos e de provas para fins das suas investigações e para utilização como provas em acções penais e naqueles processos acessórios ou afins julgados pelos tribunais penais.

O director da Serious Fraud Office envia às Autoridades Judiciárias Competentes de Portugal os seus antecipados agradecimentos e aproveita a oportunidade para renovar os protestos da sua mais elevada consideração.

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Com os melhores cumprimentos,

Sr. Wayil Eisa, Gestor do Processo Serious Fraud Office

A CARTA A MÁRIO SOARES

Évora, 7 de Dezembro de 2004

Mário Soares, querido Amigo,

Noventa anos! Parabéns, camarada. Acabei de o ver na televisão, no seu almoço de aniversário entre tantos amigos que cultivou ao longo da vida. E que vida!

«Poder ser eu próprio», foi assim que Kierkegaard - esse filósofo atormentado com a dúvida que trouxe para o interior da fé religiosa — respondeu à velha pergunta da filosofia moral: «O que é uma vida boa?»

Ao longo da sua vida, o Mário Soares teve a felicidade rara de «ser eu próprio», no que isso significa de liberdade, de autonomia individual, de escolhas sempre de acordo com a sua consciência. Vida cheia, plena, realizada. Uma vida boa. Parabéns, Mário Soares.

Lá vi os seus amigos de sempre. Os amigos de todos os quadrantes políticos que celebravam uma vida pública. Uma vida, sim — mas duas lutas. A luta contra o fascismo do Estado Novo, e a outra contra o que bem se percebia ser uma ditadura de sinal contrário. A maioria estava lá para as duas embora alguns só para festejar a segunda. Bom, mas estiveram. Ainda bem.

No entanto, se bem ajuízo, ali celebrava-se sobretudo o carisma de um personagem, essa aura enigmática e mágica, esse «não sei quê» excepcional que distingue os grandes homens políticos. A sua vida é certamente marcada pela coragem do combate e da ruptura, mas é também, e hoje principalmente, pela coragem do compromisso.

Para usar a bela fórmula de René Char (tenho pensado tanto nele nestes dias...) o seu maior feito foi «transformar velhos inimigos em leais adversários». Como em todos os momentos decisivos de ruptura revolucionária - como foi o 25 de Abril - o compromisso da vida em comum, da aceitação da pluralidade humana que é a essência da democracia, impunha a emergência de alguém que, tendo passado pelo pior da ditadura - a prisão, o exílio, a perseguição -, fosse capaz de se elevar acima do crime, do traumatismo do ressentimento. E daí, recusando a violência e a vingança, permitir um novo recomeço. Um novo começo com a grandeza de a todos incluir - os que serviram, os que apoiaram e os que estavam «integrados no regime». Novo começo que, verdadeiramente, só terminou (ou começou) na noite inesquecível da sua primeira eleição como Presidente da República. «Esta é a vitória da tolerância!».

No momento em que o vislumbrei ao longe na sala de visitas e o vi, a si Mário Soares, sozinho, à minha espera para me abraçar, pequeno ponto que concentra toda a grandeza de que o ser humano é capaz, comovi-me interiormente com o meu próprio pensamento. A amizade é o mais belo e o mais político dos sentimentos humanos.

Abraça-o fortement

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O seu, muito seu amigo,

José Sócrates

Publicada no Jornal de Noticias

A CARTA DE MÁRIO SOARES PARA JOSÉ SÓCRATES

Lisboa, 23 de Dezembro de 2014

Meu Querido Amigo,

Quero agradecer-lhe, em primeiro lugar, a carta tão amiga que me enviou por altura dos meus noventa anos. Chegou-me tardiamente e só por isso agora lhe respondo.

Sabe como o admiro pela sua honradez, valentia e amizade dos seus amigos. Que são imensos, felizmente e, como têm demonstrado, com as visitas que lhe têm feito, apesar dos jornalistas ao serviço do que, infelizmente, sem qualquer julgamento prévio, o querem destruir política e eticamente.

Prender-se, sem qualquer julgamento prévio, alguém que veio voluntariamente para o seu país, sabendo que ia ser preso, significa um gesto que, se houvesse justiça, não podia ter qualquer razão de ser.

A intervenção da Procuradora-Geral da República, se tivesse qualquer sentido democrático, também o que se passou consigo nunca podia acontecer. Mas aconteceu.

Querido Amigo, está há um mês preso, sem ter sido julgado sem haver qualquer razão jurídica para o ser. Sei que é uma pessoa extremamente corajosa e que nunca se afligiu com a pouca vergonha que lhe têm feito. Sem excluir o juiz que o tem obrigado a ser tratado vergonhosamente. É o que toda a gente pensa. Tem plena consciência que não tem nada que o possa atingir gravemente. Por isso está tão firme e confiante quanto ao futuro.

Os meus parabéns nesta época natalícia. Cada vez o admiro mais.

3.

O primeiro post do Portugal Profundo

sobre o diploma na Universidade

Independente

Terça-feira, 22 de fevereiro de 2005

Os CURSOS DE SÓCRATES

Se compararmos os planos dos dois cursos - o bacharelato do Politécnico de Coimbra e a licenciatura da Universidade Independente —, e as respectivas disciplinas, chegamos à conclusão de que um candidato com o bacharelato do ISEC precisa de fazer dez cadeiras (existem algumas disciplinas do curso na Universidade Independente que não têm

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correspondência no curso de Coimbra) e mais uma de Projecto para se licenciar na Universidade Independente de Lisboa. Não deve ter sido fácil, tendo em conta que Sócrates teria concluído o bacharelato em 1979.

A Licenciatura em Engenharia Civil na Universidade Independente foi criada pela Portaria n.° 496/95 de 24 de Maio de 1995, embora o diploma tenha, retroac- tivamente, autorizado o funcionamento do curso desde o ano lectivo de 1994/95.

Ora, o primeiro governo de António Guterres (o 13.° Governo Constitucional) toma posse em 28 de Outubro de 1995. José Sócrates torna-se em 30 de Outubro de 1995, secretário de Estado Adjunto da Ministra do Ambiente (ressalve-se que Sócrates só se torna ministro Adjunto do primeiro-ministro em 25-11-1997).

Nessa desgastante função governativa, José Sócrates parece ter encontrado tempo e concentração, na mesma altura em que prepara e participa na campanha eleitoral durante o ano de 1995 e, já no Governo, a partir de Outubro de 1995, é secretário de Estado Adjunto da ministra do Ambiente para, quinze anos depois do seu bacharelato, realizar as 11 cadeiras que, em princípio, teve de cfectuar para obter o título de licenciado. Um comentário que me foi deixado na caixa deste meu bloguc com remissão para o Porta-Bandeira, expunha dúvidas sobre o curriculum

plausível. Não é. Não consta que Sócrates tenha frequentado a licenciatura bi-etá- pica do 1SEL ou do ISEC.

Mas Sócrates afirma ainda que «concluiu depois uma pós-graduação em Engenharia Sanitária pela Escola Nacional de Saúde Pública» (ENSP). Todavia, o curso de Engenharia Sanitária é leccionado desde 1975 na Universidade Nova de Lisboa, pertencendo, desde a criação das faculdades da Nova, à sua Faculdade de Ciências e Tecnologia, primeiro sob a forma de curso de especialização e a partir de 1983 como mestrado. Exige a licenciatura como condição de admissão. Nunca pertenceu à Escola Nacional de Saúde Pública (que em Abril de 1994 foi integrada na Universidade Nova de Lisboa). Mas Sócrates não foi aluno desse curso de Engenharia Sanitária da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade Nova de Lisboa (que foi criado em 1975) - nem ele o diz, pois refere expressamente que a sua «pós-graduação» foi na ENSP. Então, que curso de Engenharia Sanitária fez? Chamar-se-ia mesmo «pós- -graduação»? Ou seria um curso de curta duração na ENSP? E em que ano decorreu? Sócrates já seria licenciado quando frequentou essa «pós-graduação»?

José Sócrates frequenta agora o Mestrado em Gestão de Empresas do 1SCTE (Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa), o qual exige o grau de licenciatura. Mais um motivo para concluir que é realmente licenciado. No entanto, o perfil biográfico no Correio da Manhã indica que ele terminou «recentemente um mestrado em Gestão de Empresas». Terá apresentado já a tese? Terá concluído toda a parte curricular?

Depois da cansativa pesquisa, recebi uma informação de fonte credível: José Sócrates terá obtido em 1996 uma licenciatura em Engenharia Civil pela Universidade Independente. Todavia, não me foi possível saber, junto desta universidade, que equivalências lhe foram atribuídas e quantas cadeiras teve de frequentar e concluir o curso em Engenharia Civil em

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1996. Deve ter sido muito difícil, um esforço quase sobre-humano. Não há motivo algum para que Sócrates tenha escondido do povo português a sua epopeia académica, a não ser por modéstia, o que, neste caso, não se justifica. É um motivo de grande orgulho próprio e um exemplo de sucesso para jovens e adultos.

Tentei contactar a assessora de imprensa do futuro primeiro-ministro para eliminar estas dúvidas, mas não consegui. Pedi também um esclarecimento à Universidade Independente, mas não me foi possível obtê-lo até ao momento.

Este blogue está à disposição de ex-alunos da Universidade Independente, seus colegas de curso e de escola, bem como de outra qualquer pessoa que possa ajudar

João de Sousa, 15, 38. 262, 265 Joio José Cristóvão, 193. 197, 206 João José Duarte, 194-195 João Maia Abreu, 143, 154-155 João Marcelino, 143 João Morais, 202

João Perna, 29, 39, 52-53. 55-58, 60-66

Joaquim Eduardo Oliveira, 33

Joaquim Oliveira, 154, 266

Joaquim Valente, 245, 247, 255-258

Jonathan Rawnslc. 274, 275, 277

Jorge Coelho. 216

Jorge lacão, 118. 120

Jorge Morgado Fernandes, 88

Jorge Patrão, 243

Jorge Pombo. 197. 206, 242

Jorge Sampaio, 33. 174

José Alberto Carvalho, 18. 125-126, 163. 165. 167, 172, 233

José António Cerejo. 179. 191-193. 199-203. 205. 243- -257, 260. 267-268 José Bello Dias, 177 José da Mora, 180

José Eduardo Moniz, 142-146, 148, 150-154, 164-165, 170. 173, 267 José Manuel Fernandes. 21 1. 228-229, 251-252, 268 José Manuel Marques, 176 José Manuel Mestre, 94 José Manuel Portugal, 19 José Maria Martins, 236 José Marques, 275 José Mendes, 245-246 José Penedos,

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153, 156, 266 José Rodrigues dos Santos, 19-28, 198, 233 José Torrão, 177, 179 Juan Luis Cebrián, 140

Judite Sousa, 11, 18-19. 124-126, 150, 163, 165-167. 171- -172, 233. 266-267, 293 Júlio Eduardo Coelho Monteiro. 183 Júlio Magalhães, 154 Júlio Monteiro, 165 1-eonor Furtado, 32 l.opes Barreira, 148, 266

Luís Arouca. 215-217, 220-221, 223, 225-226, 235. 268 Luís Bernardo, 88, 91.97. 111. 120. 123, 130. 132-134. 137, 147, 150, 167. 170-171, 173-174, 186, 192-193, 212-215, 222, 224, 228. 230-231. 233. 248-252 Luís Campos e Cunha, 126 I-uís Cunha Velho, 155 Luis Marinho. 232-233. 268 Luís Marques Mendes, 216 Lula da Silva, 61 Manuel Costa Andrade, 244 Manuel Falcão Reis, 50, 55-56 Manuel Godinho, 141, 156 Manuel Paios, 38

Manuela Ferreira Leite, 122. 138-139, 148-149, 152-153 Manuela Moura Guedes, 12. 125, 137, 140, 142. 144 154- 155. 164. 168-169. 173-174. 267 Manuel Pedro, 168. 177, 182, 185, 275-276 Marcelo Rebelo de Sousa. 18-19 Marco António Costa, 115 Margarida Rebelo Pinto, 61 Maria Adelaide Monteiro, 46, 49 Maria Alice Fernandes, 177. 179 Maria Flor Pedroso, 233-234 Maria João. 54-58, 67 Maria José Morgado, 203 Maria Lígia Correia, 57, 61-62 Maria Rui, 210

Mário Dias Gomes, 181 Mário Lino, 158 Mário Moura, 155

Mário Soares. 61.99, 128-129, 262, 266, 282-285

Marques Vidal, 142, 159. 202, 205, 267

Martin Luther King jr., 262

Miguel Almeida, 177

Miguel Relvas, 175

Miguel Sousa Tavares, 61,91

Nelson Mandela. 262

Nicolas Sarkozy. 45, 118

Nicolau Santos. 78

Nuno Morais Sarmento, 24

Pacs Faria, 180-181, 185

Paula Lourenço. 43-44, 48, 67, 69, 71, 73-74

Paulo Baldaia, 143

Paulo de Azevedo. 229

Paulo Ferreira, 17

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Paulo Irlanda c Castro, 70

Paulo Padrão, 124. 166

Paulo Penedos. 141-146, 148-150. 153. 156. 159. 266 Paulo Portas, 11, 32, 105, 122 Paulo Silva, 36 Pedro Duarte, 216

Pedro Passos Coelho, 16, 18, 20,45, 83.85-93,95,97-99, 104-105,113-116. 118, 134 Pedro Roscra, 242 Pedro Santana 1-opes. 174-175, 177 Pedro Santos Guerreiro, 17 Pedro Silva Pereira, 47, 120, 123, 145, 170, 233 Pedro Tadeu, 33-34, 265 Rafael Mora. 143. 155 Renato Sampaio, 61-62 Ricardo Costa, 36-37. 78, 265

Ricardo Dias Felner, 211-212, 214-215, 217. 222-224, 226, 230. 236. 268 Ricardo Sá Fernandes, 70 Ricardo Salgado. 32. 124, 126, 128. 166 Rick Daitani, 274-275 Rodrigo Moita de Deus, 100, 266 Rosário Teixeira, 10, 31-36, 42, 46, 59, 62, 74 Rosa Ruela, 287 Rúben Alves, 45 Rui Brás. 202 Rui Gomes da Silva, 177 Rui Gonçalves, 181 Rui Gustavo, 36-37, 265 Rui Mão de Ferro. 61-62 Rui Paulo Figueiredo. 216 Rui Pedro Soares. 142-146. 149-151, 153. 159. 266 Rui Rio, 116 Rui Verde, 217, 221 Sandra Santos, 67, 69 Sara Pina, 200 Sean Collidge, 168, 274-276 Sérgio Vasques, 129

Sofia Fava, 47, 50. 52-53. 55-56, 58. 75. 104, 175 Susana Martins. 83-84

Teixeira dos Santos, 12, 111, 114, 116,119-121, 125, 127- -130. 132. 138 Teófilo Santiago. 141, 159 Vasco Pulido Valente, 92 Victor Marques, 242 Vieira da Silva, 120, 145, 170, 233 Vítor Escária. 113, 118-119 Vítor Gonçalves. 16-17, 88, 265 Vítor Magalhães. 180-181 Vítor Ramalho, 129, 266 William (Billy) McKinney Jnr. 274-275 Zeinal Bava, 146, 148, 150-151, 154

jornalistas. Os seus conselhos foram fundamentais para me evitar alguns embaraços.

Ao director da Sábado, Rui Hortelão. A sua coragem editorial e o seu incentivo permanente foram um combustível imprescindível para que este livro tenha sido possível.

Aos meus companheiros de secção na Sábado: Nuno Tiago Pinto, António José Vilela, Maria Henrique Espada, Sara Capelo e Gustavo Sampaio. Juntamente com o Vítor Matos, formam a melhor secção de Política da imprensa portuguesa. Pelo menos para mim.

À Sara Goulart, pela eficácia demonstrada na pesquisa documental.

À minha mãe e aos meus dois irmãos. Os três são, cada um à sua maneira, cada vez mais fundamentais na minha vida.

Ao meu filho, Rodrigo. Por tudo aquilo que me dá.