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Mestrado em Direito das Empresas A tributação autónoma no âmbito do IRC Parte I - Teoria e noções Walcemir de Azevedo de Medeiros Trabalho apresentado na disciplina “Seminários” do Mestrado em Direito das Empresas pelo ISCTE - Instituto Universitário de

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Page 1: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

Mestrado em Direito das Empresas

A tributação autónoma no âmbito do IRC

Parte I - Teoria e noções

Walcemir de Azevedo de Medeiros

Trabalho apresentado na disciplina

“Seminários” do Mestrado em Direito das

Empresas pelo ISCTE - Instituto

Universitário de Lisboa, ministrada pelo

Professor Doutor Manuel António Pita.

Fevereiro, 2015

Page 2: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

INTRODUÇÃO...................................................................................................................1

I - TEORIA E NOÇÕES......................................................................................................3

I.1 - A NORMA JURÍDICA.................................................................................................................................3

I.1.1 - A lei natural................................................................................................................................4

I.1.2 - A lei cultural................................................................................................................................5

I.1.2.1 - A lei cultural moral...............................................................................................................................6

I.1.2.2 - A lei cultural “norma jurídica”..............................................................................................................6

I.1.2.3 - A norma jurídica em sua estrutura mínima..........................................................................................7

I.1.2.3.1 - O antecedente normativo: o fato jurídico...................................................................................9

I.1.2.3.2 – O consequente normativo: a relação jurídica...........................................................................10

I.1.2.3.3 – A norma jurídica recomposta....................................................................................................11

I.1.2.3 – A norma jurídica tributária................................................................................................................12

I.2 - O TRIBUTO..........................................................................................................................................12

I.3 - A REGRA-MATRIZ DE INCIDÊNCIA TRIBUTÁRIA..............................................................................................17

I.3.1 – A decomposição do antecedente normativo............................................................................18

I.3.1.1 – O critério material.............................................................................................................................18

I.3.1.2 – O critério espacial.............................................................................................................................18

I.3.1.3 – O critério temporal............................................................................................................................18

I.3.2 – A decomposição do consequente normativo............................................................................19

I.3.2.1 – O critério pessoal..............................................................................................................................19

I.3.2.2 – O critério quantitativo.......................................................................................................................19

I.3.3 – A recomposição da regra-matriz de incidência tributária........................................................20

CONCLUSÕES.................................................................................................................21

REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO................................................................................22

Page 3: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

Introdução

A carga fiscal em Portugal passa dos 35% do PIB. De toda a receita fiscal, pouco mais de 13%

provém do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas - IRC. Neste início de trabalho,

ainda não foi possível conhecer qual é a participação percentual, nessa receita, do valor

arrecadado a título de tributação autónoma, prevista no artigo 88 do Código do IRC. Chamam a

atenção, entretanto, os elevados percentuais ali aplicados, nomeadamente a taxação de 50% ou

70% sobre as despesas não documentadas, conforme nº 1 e nº 2 daquele dispositivo, o que

sugere que sejam representativas em relação ao encargo fiscal das sociedades. E tal relevância

económica, associada à indefinição da base tributária e da incerteza sobre a natureza jurídica

dessa cobrança, justifica a investigação da Tributação Autónoma no âmbito do Mestrado em

Direito das Empresas.

Não obstante tenha escopo bem definido, que é o de prevenção antielisiva, a Tributação

Autónoma possui natureza confusa e base tributária indefinida: suas várias expressões são

instituídas por meio de lei que regulamenta imposto sobre rendimento, todavia, ora parecem

taxar o consumo; ora parecem ser empregadas como sanção pela prática de ato ilícito.

Sob o ponto de vista do contribuinte, o tributo é, ao mesmo tempo, importante

constrangimento ao desenvolvimento da livre iniciativa, e nem sempre justa transferência

compulsiva de riqueza das famílias e empresas para o Estado. Por essa razão, para que se

ofereça a necessária segurança jurídica ao processo de arrecadação tributária, a norma que

define a incidência tributária deve ter precisa o suficiente para revelar de modo claro a natureza

da exação e sua base tributável e evitar constrangimento indevido à livre iniciativa, nem

indevida transferência de recursos de empresas e famílias para o Estado, mesmo porque a livre

iniciativa e a propriedade privada são direitos econômicos garantidos pela Constituição da

República.

A presente investigação possui como premissas, portanto, a indefinição da base tributária

e a confusão acerca da natureza das expressões da Tributação Autónoma em sede de IRC.

Pretende-se começar o desenvolvimento a partir de abordagem teórica, com oferecimento

de noções de norma jurídica, de tributo, e com a apresentação da regra-matriz de incidência

tributária como instrumento de análise. O termo tributo será aqui usado como gênero que

Page 4: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

compreende espécies tributárias, consoante sugere o artigo 3º da Lei Geral Tributária. Na

sequência, haverá delimitação do objeto de estudo, seguido de apresentação de noção e

histórico, compreendendo criação, propósitos iniciais e posteriores modificações da Tributação

Autónoma em Portugal. Aqui também haverá exemplificação de casos de instituição de

tributação autónoma em outros Estados, em sede de direito comparado.

Pretende-se, mais à frente, classificar a espécie tributária tributação autónoma (com suas

várias expressões) dentro do gênero tributo. Como critérios de classificação dos tributos em

geral, com vistas à diferenciação da tributação autónoma das demais espécies tributárias serão

adotados (i) a capacidade contributiva, (ii) a vinculação a prestação concreta de serviço

público, (iii) a vinculação à utilização de um bem do domínio público, (iv) a vinculação à

remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento dos particulares, (v) a vinculação a mais-

valias de bens do sujeito passivo em resultado de obras públicas ou serviços públicos, (vi) a

vinculação a desgaste de bens públicos ocasionados pelo exercício de uma actividade pelo

sujeito passivo (LGT, artigo 4º) e (vi) a vinculação entre a materialidade da hipótese de

incidência a uma atividade estatal referida ao sujeito passivo.1

Serão seguidamente delineadas as expressões da tributação autónoma na legislação

portuguesa, e procedida à classificação dessas expressões segundo a função e a finalidade de

cada uma delas. A partir dessa classificação, será determinada a base econômica sobre a qual

incidem essas espécies tributárias, tendo como guia o artigo 104 da Constituição da República

Portuguesa – CRP, e o artigo 3º da Lei Geral Tributária – LGT, aprovada pelo Decreto-Lei n.º

398/98, de 17 de dezembro.

A partir da determinação das bases econômicas, será construída a regra-matriz de

incidência tributária2 para cada uma das diferentes expressões da Tributação Autónoma

previstas no artigo 88 do Código do IRC. A regra-matriz de incidência tributária, na forma

proposta por Paulo de Barros Carvalho, é um método de sistematização analítica da norma

jurídica tributária, em que o termo norma jurídica é utilizado no modelo idealizado por Hans

Kelsen,3 segundo a qual os textos normativos das leis, dos decretos, das portarias, podem ser

reduzidos à estrutura mínima composta de duas partes: a hipótese ou antecedente ou descritor e

o consequente ou prescritor. Será demonstrado que essas partes – antecedente e consequente –

podem, por sua vez, ser decompostos em critérios, de modo que, no descritor ou antecedente,

1 Gama, 2003: 116.2 Carvalho, 2008: 146.3 Kelsen, 1986: 68.

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sejam identificados os critérios material, espacial e temporal, ao passo que no prescritor, os

critérios pessoal e quantitativo.

Ao fim, haverá explanação a respeito de como a jurisprudência e a doutrina vêm tratando

a tributação autónoma em Portugal. O termo jurisprudência aqui será tratado em seu sentido

lato, de modo a abranger também as decisões de tribunais administrativos.

Com as informações obtidas a partir da classificação dos tributos, determinação da base

econômica das espécies tributárias e elaboração da regra-matriz de incidência tributária das

diferentes expressões da Tributação Autónoma, estas estarão perfeitamente identificadas e

caracterizadas, de modo que seja possível descrever com segurança sua natureza jurídica e

funcional.

I - Teoria e noções

I.1 - A norma jurídica

Grosso modo, pode-se dizer que tudo no mundo decorre de um nexo qualquer de causa e efeito.

Sempre que se analisa um determinado dado “y” de um objeto de observação qualquer,

constata-se que ele é conseqüência de outro dado “x”, que por sua vez lhe foi a causa. Em

outras palavras, diz-se que “x” IMPLICA “y”.

Sejam, por exemplo, as cinco assertivas abaixo:

1. som no ar IMPLICA propagação à razão de 340 m/s

2. água a 100ºc IMPLICA vapor

3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas

4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações

5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC

Tais relações de implicação entre a causa e o efeito decorrem sempre de alguma lei, no

sentido mais amplo que a palavra lei possa ter, assim definido por MONTESQUIEU:

“As leis, em seu significado mais extenso, são as relações

necessárias que derivam da natureza das coisas; e, neste

Page 6: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

sentido, todos os seres têm suas leis; a Divindade possui

suas leis, o mundo material possui suas leis, as inteligências

superiores ao homem possuem suas leis, os animais

possuem suas leis, o homem possui suas leis. [...] Existe,

portanto, uma razão primitiva; e as leis são as relações que

se encontram entre ela e os diferentes seres, e as relações

destes diferentes seres entre si”.4

As leis ou relações de implicação não são todas da mesma espécie. Há duas ordens de

relações, segundo Miguel Reale5, cada uma delas correspondente a uma das duas espécies de

realidade: a realidade natural e a realidade cultural, essa última também chamada humana ou

histórica. Para esse autor, as relações naturais obedecem às leis físico-matemáticas, enquanto

que as relações culturais obedecem às leis culturais.

I.1.1 - A lei natural

Recorde-se as duas primeiras assertivas:

1. som no ar IMPLICA propagação à razão de 340 m/s

2. água a 100ºc IMPLICA vapor

Pode-se afirmar com segurança que um grito no ar será ouvido exatamente após um

segundo por outra pessoa que esteja a 340 metros de distância; e que a água entra em ebulição

quando aquecida a cem graus Celsius, eis que a experimentação científica oferece certeza sobre

esses fenômenos. Nesses dois primeiros exemplos, logicamente observadas as condições ideais

de temperatura e pressão, o antecedente da lei natural necessariamente implica o conseqüente.

As leis naturais são, assim, leis indicativas: o antecedente indica o consequente. Antecedente e

consequente são ligados por nexo de causalidade.6 São leis empiricamente verificáveis, isto é,

podem ser produzidas e comprovadas experimentalmente. São leis físico-naturais, estudadas

pelos cientistas em geral. São, enfim, leis de natureza ôntica, do âmbito do ser, que podem ser

assim ser resumidas:

dado o antecedente, é o conseqüente

4 Secondat, Charles-Louis, Livro I (2000: 8)5 Reale, 2003: 24.6 Kelsen, 1999: 86.

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e

dado água a 100ºC, é a ebulição

I.1.2 - A lei cultural

Sejam agora os três últimos exemplos:

3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas

4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações

5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC

Essas três leis são bem diferentes das duas primeiras. Pode ser que haja esbarrão que não

seja seguido do pedido de desculpas. É possível existir estatuto de sociedade anónima em que

falte o número de ações. E a sociedade comercial altamente lucrativa pode eventualmente

deixar de pagar o IRC devido. Dado o antecedente, o conseqüente tanto pode ocorrer, como

também pode ser que não ocorra. As leis 3, 4 e 5 não podem ser, portanto, deduzidas a partir de

observação empírica. Não se consegue provocar a ocorrência de seu consequente em

laboratório. São leis chamadas culturais, que são aquelas convencionalmente estabelecidas pelo

homem, com o intuito de viabilizar a vida em grupo. As leis culturais são leis imperativas: o

antecedente impõe o consequente. Antecedente e consequente são ligados por nexo de

imputação. São leis do âmbito do dever-ser, ou leis de natureza deôntica, que podem ser

representadas da seguinte forma:

dado o antecedente, deve ser o conseqüente

Precisa-se algum cuidado com essa terminologia. Normalmente, em comunicação

coloquial, costuma-se utilizar a locução verbal dever ser com o sentido de indicar

probabilidade. É trivial ouvir-se, por exemplo, “o Benfica deve ser campeão este ano”. Não é

esse, todavia, o sentido aqui utilizado. Aqui em nosso estudo, o dever-ser é usado para conectar

o antecedente ao conseqüente de uma relação, e tem como finalidade prescrever conduta:

dado o esbarrão, deve ser o pedido de desculpas

e

Page 8: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

dado o rendimento, deve ser o IRC

Essas leis culturais – pois, como já visto, são convenções criadas pelo homem – são

denominadas regras ou normas, pois prescrevem, em seu conseqüente, determinado

comportamento de um ser humano frente a outro. Na lição de Miguel Reale, “Quando, pois,

uma lei cultural envolve uma tomada de posição perante a realidade, implicando o

reconhecimento da obrigatoriedade de um comportamento, temos propriamente o que se

denomina regra ou norma”. 7

As leis ou normas culturais também não são todas semelhantes. Dentre outros tipos,

merecem destaque a norma cultural moral e a norma cultural jurídica.

I.1.2.1 - A lei cultural moral

Isole-se, dessa feita, o terceiro exemplo:

3. esbarrão IMPLICA pedido de desculpas

Essa lei é diferente das duas seguintes. Isso porque, se descumprida, o Estado não

intervém a fim de obrigar a pessoa que provocou o esbarrão a pedir desculpas. Não há

coatividade por parte do Estado. Trata-se de uma norma cultural do tipo moral.

I.1.2.2 - A lei cultural “norma jurídica”

Considere-se, enfim, os dois últimos exemplos dados:

4. sociedade anónima IMPLICA contrato social com indicação do número de ações

5. rendimento da pessoa coletiva IMPLICA IRC

Nesses últimos dois exemplos, já existe coatividade estatal, isto é, o Estado intervém no

sentido de que, em ocorrendo o fato previsto no antecedente normativo, ocorra também o

prescrito no consequente: o Estado intervém para que sejam supridas a falta de indicação do

número de ações e também a falta de pagamento do imposto. Trata-se, aqui, de um outro tipo

de norma cultural, que é a norma jurídica. Dentre outras diferenças em relação à norma moral,

destaca-se a já mencionada coatividade estatal, que é o poder-dever de o Estado, por meio de

7 Reale, 2003: 9.

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seu braço judicial, usar a força para fazer com que se cumpra o consequente normativo. Não há

coatividade estatal na norma moral, só na norma jurídica.

Sugeriu-se até aqui o uso dos termos lei e norma jurídica como sinônimos. De fato, a lei,

o decreto, a portaria podem ser considerados como sendo norma jurídica latu sensu. Neste

trabalho, porém, o termo norma jurídica será tomado em sentido estrito, como se explicará. Em

geral, normas jurídicas, assim tomadas em seu sentido largo, que são os textos das leis, dos

decretos, das portarias, não possuem estruturas simples como nos exemplos aqui mencionados.

Ao contrário, os enunciados das leis, dos decretos, costumam ter uma complexidade tal que

demandam leitura mais acurada, por profissionais habilitados8, a fim de desvendar-lhe o sentido

e o alcance. Porém, uma vez feito isso, é sempre possível, a partir do conjunto integrado dos

enunciados normativos que compõem o sistema jurídico, deles extrair normas jurídicas em

sentido estrito, assim formadas em sua estrutura mínima, compostas de antecedente e

consequente, como algo semelhante aos dois últimos exemplos utilizados, que são os casos do

estatuto da SA e do IRC.

I.1.2.3 - A norma jurídica em sua estrutura mínima

Em sua estrutura formal, todo o enunciado normativo pode ser reduzido a uma fórmula

genérica em que é retirada a significação do texto da lei, do decreto, da portaria, e essa

significação é reduzida em sua forma até que seja reformulada em um corpo mínimo, composto

por um antecedente ligado a um consequente normativo.9 O texto em si do enunciado da lei ou

do decreto pode ser da maior complexidade, formado pelas mais diversas palavras

(heterogeneidade semântica), mas a estrutura mínima da norma é sempre a mesma: dado o

antecedente, deve ser o consequente (homogeneidade sintática).10 Paulo de Barros Carvalho

denomina essas estruturas mínimas de “expressões irredutíveis de manifestação do deontico”.11

E Hans Kelsen, idealizador da sistematização da norma jurídica segundo sua estrutura,

ensina também que não há norma jurídica sem sanção. Para o autor, a norma jurídica (estrito

senso) geral ou completa é composta de duas partes. A primeira delas estabelece como devida

uma conduta, a partir da verificação do fato previsto no antecedente normativo, o que

corresponde aos exemplos já vistos. A segunda parte, com estrutura idêntica, fixa a sanção

cabível, aplicada pelo órgão judicial competente, para o caso de descumprimento da conduta

8 Carvalho, 2007: 4.9 Vilanova, 1997: 90.10 Santi, 2001: 38.011 Carvalho, 2008: 20.

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estabelecida pela primeira.12 Kelsen chamou de norma secundária a primeira parte, e de norma

primária a segunda parte.13

Adianta-se que, neste trabalho, o conceito de norma jurídica será tomado assim, em seu

sentido estreito, como sendo a significação dos enunciados normativos que compõem todo o

complexo do direito positivo posto, como textos de lei, de decreto, de outras normas jurídicas

em sentido largo, enfim, significação essa reconstruída com formato de expressão mínima,

composta apenas por antecedente e consequente normativos, mas suficiente para, à custa de

imposição de sanções, prescrever condutas condicionadas à ocorrência de fatos jurídicos.

Um exemplo de redução da norma em sentido lato à norma em sentido estrito pode ser

dado em relação às normas em sentido largo expressas nos textos da Constituição da República,

artigo 24, n.º 1, segundo o qual “A vida é inviolável” e do Código Penal, artigo 131, que tem a

redação: “Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.” Como

significação desses enunciados, tem-se, como norma secundária, “dado o fato de existir vida

humana, deve ser proibido suprimi-la”, e como norma primária, “dado o fato de uma pessoa

matar outra, deve ser a prisão do homicida por 8 a 16 anos”. Trata-se de um exemplo bastante

simplório. Útil, todavia, na medida em que, ao tomar enunciados normativos da Constituição e

do Código Penal para redução a uma só norma jurídica secundária, revela este exemplo que,

para construção da norma jurídica em sentido estrito, deve-se sempre levar em conta todo o

complexo coordenado de normas, isto é, todo o ordenamento jurídico,14 e não só um diploma

formal, a Constituição, uma lei, um decreto.

Dentre outras classificações possíveis, podem as normas – primárias e secundárias – ser

divididas quanto ao quadro dos destinatários definidos no consequente, e também quanto ao

modo como se descreve o fato no antecedente normativo. Quanto aos destinatários, pode ser

geral ou individual; geral se é destinada a um conjunto de sujeitos indeterminados, e individual

se é dirigida a um só indivíduo ou grupo determinado de sujeitos. Quanto ao fato descrito no

antecedente, pode ser abstrata ou concreta; será abstrata ao referir-se a uma hipótese futura, a

um evento de possível ocorrência. Será concreta se trouxer a descrição de um fato determinado

e já ocorrido.15 Interessa particularmente a este estudo a norma geral e abstrata, que é dirigida a

12 Kelsen, 1986: 68.13 Alguns autores entendem que, em obra postumamente revelada, Kelsen teria mudado de opinião a

respeito dessa denominação, de modo que a norma que estabelece a conduta fosse denominada primária, e a que fixa a sanção fosse a secundária. Como não há consenso a respeito, prevalecerá, neste trabalho, a noção ofertada na obra Teoria geral das normas, ou seja, primária é a norma sancionadora, secundária é a norma estabelecedora da conduta.

14 Bobbio, 1999: 20.15 Carvalho, 2004: 35.

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generalidade indeterminada de sujeitos e refere-se a uma hipótese futura, de possível

ocorrência, e também a norma individual e concreta, que é dirigida a um sujeito ou conjunto

determinado de sujeitos, e narra no antecedente um fato já ocorrido. Um exemplo de norma

geral e abstrata pode ser extraído do enunciado do artigo 8º, n.º 7, do Regime Geral das

Infrações Tributárias – RGDIT, instituído pela Lei n.º 15/2001, de 5 de junho, que atribui

responsabilidade solidária por multas e coimas para quem colaborar dolosamente para a prática

de infrações tributárias. E um exemplo de norma jurídica individual e concreta é o acórdão

proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, que manteve a condenação do arguído pelo

pagamento de multa, por ter dolosamente colaborado na prática de crime de abuso de confiança

fiscal.16

A partir dessas noções, pode-se avançar para a análise da estrutura da norma jurídica, do

seu antecedente normativo, que a doutrina convencionou chamar de previsão e do consequente

normativo, denominado estatuição pela doutrina.17 A previsão descreve um fato de possível

ocorrência, no caso da norma abstrata; e a estatuição estabelece uma relação jurídica entre

sujeitos.

I.1.2.3.1 - O antecedente normativo: o fato jurídico

O homem não consegue viver bem no isolamento, necessita de se integrar à sociedade. Disso

resulta um infinito entrelaçamento, um número sem fim de relações interpessoais. Cada uma

dessas relações – sua criação, modificação ou extinção – deriva sempre de um fato

determinado, razão pela qual Pontes de Miranda chega a dizer que “O mundo não é mais do

que o total dos fatos...”. 18

Por vezes, do fato decorrem efeitos jurídicos, casos em que, por exemplo, há

transformações patrimoniais, mudanças de estado civil, transferência de bens, criação,

modificação e extinção de direitos e obrigações. Quando determinado fato tem efeito jurídico,

ele se denomina fato jurídico. Efeitos jurídicos decorrem sempre de fatos jurídicos. Inexiste

efeito jurídico que não tenha tido como origem um fato jurídico. Segundo Paulo de Barros

Carvalho “É incontestável a importância que os fatos jurídicos assumem, no quadro

sistemático do direito positivo, pois, sem eles, jamais apareceriam direitos e deveres,

inexistindo possibilidade de regular a convivência dos homens, no seio da comunidade”. 19

16 Ac. TRP de 06/12/2012, Rel. Mouraz Lopes.17 Pita, 2011: 49.18 Miranda, 1999: 51.19 Carvalho, 2002: 279.

Page 12: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

Mas para que um fato seja considerado um fato jurídico, vale dizer, para que um fato

tenha efeitos jurídicos e crie, extinga ou modifique direitos subjetivos, é absolutamente

necessário que ele se enquadre perfeitamente em uma hipótese previamente descrita na

previsão, ou termo antecedente de norma jurídica. Segundo Lourival Vilanova, “O fato se

torna jurídico porque ingressa no universo do direito através da porta aberta que é a

hipótese”.20 O fato jurídico é, portanto, o conteúdo do antecedente normativo ou previsão.

I.1.2.3.2 – O consequente normativo: a relação jurídica

Verificada a ocorrência do fato previsto no antecedente normativo, estabelece-se, no

consequente, uma relação jurídica de natureza deôntica entre o sujeito S1 e o sujeito S2,21 de

modo que a um deles fica obrigado, proibido ou é facultada determinada em relação ao outro.

Isso porque a proibição, a obrigação e a permissão são os três modais deônticos

possíveis.22Todas as normas jurídicas existentes transmitem um desses três comandos. Não há

uma quarta opção de modalidade deôntica.23

I.1.2.3.3 – A norma jurídica recomposta

A norma jurídica secundária (denominação de Kensen) pode, pois, assim ser graficamente

representada:

20 Vilanova, 1997: 89.21 Vilanova, 1997: 75.22 Bobbio, 1999: 31.23 Vilanova, 1997: 216.

Consequente normativo

Antecedente normativo

(Fato)

S1 S2

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Fig. 1 – Norma jurídica secundária

Uma vez não satisfeita a relação estabelecida pelo consequente da norma secundária, ou

seja, descumprida a proibição ou obrigação, ou não observada a faculdade, dá-se a incidência

da norma jurídica primária (terminologia de Kelsen), de semelhante estrutura, que é aquela que

estabelece a sanção ao sujeito infrator:

Fig. 2 – Norma jurídica primária

I.1.2.3 – A norma jurídica tributária

Assim, com base no que até aqui já se viu, é possível deduzir com segurança que a norma

jurídica tributária é aquela norma jurídica que contém no antecedente normativo a previsão do

fato jurídico tributário e, no consequente, o estabelecimento de relação jurídica entre o sujeito

ativo e o sujeito passivo da relação tributária, com estatuição de obrigação da prestação do

tributo pelo sujeito passivo ao sujeito ativo, mediante coatividade, que é a imposição de sanção

pelo Estado em caso de descumprimento da obrigação pelo sujeito passivo.

Como o objeto de estudo, a tributação autónoma, é, em tese, uma espécie tributária, é de

interesse análise mais demorada da norma jurídica tributária, com partição de seus antecedente

e consequente normativos, o que será feito mais adiante, com auxílio da chamada regra-matriz

de incidência tributária.

O - P - F

Consequente normativo(sanção)

Antecedente normativo

(Descumprimento da norma secundária)

O - P - F

S1 S2

Page 14: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

I.2 - O tributo

Para a sociedade, é mais fácil viver organizadamente do que de forma desorganizada. É mais

prático, mais barato, e a maior parte das despesas é dividida por todos. E a história comprovou

que o Estado é a melhor forma de organizar a sociedade: se não há Estado, não há sociedade

eficientemente organizada.

Essa organização, obviamente, tem custos. E o Estado precisa oferecer serviços a fim de

propiciar aos cidadãos as condições necessárias à sobrevivência e ao exercício dos seus direitos

fundamentais. E o Estado também precisa organizar-se, necessidade essa que também consome

recursos. Em suma: Estado requer financiamento. Esse financiamento é obtido na forma de

receita pública: se não há receita pública, não há Estado24.

As classes de receitas públicas mais relevantes são as patrimoniais, as creditícias e as

tributárias. As patrimoniais provêm da exploração ou do usufruto do património do próprio

Estado. As receitas creditícias derivam da remuneração de capital nas operações de crédito em

que o Estado ocupa a posição de credor. A receita pública tributária é a que provém dos tributos

cobrados pelo Estado aos contribuintes. Enquanto as receitas públicas patrimoniais e creditícias

são originárias, isto é, originam-se da riqueza do Estado, a receita pública tributária é derivada,

pois incide sobre a manifestação de riqueza das pessoas singulares e coletivas.25

A origem e composição da receita pública dependem do modelo de financiamento do

Estado. Até o primeiro terço do século XIX, viviam-se nos chamados Estados patrimoniais.

Sociedade e Estado eram organizados em forma de estamentos. Determinadas classes sociais

tinham mais privilégios em detrimento de outras. O Estado patrimonial detinha a maior parte

dos meios de produção; à época, basicamente terra. O financiamento das ações estatais

originavam-se, em sua maior parte, do património do próprio Estado. Mas por volta de 1820,

1830, foram bem-sucedidas algumas revoluções políticas, nomeadamente em Estados europeus,

que foram chamadas de revoluções liberais. Estados absolutistas deram lugar ao Estado liberal.

O liberalismo apregoava liberdade e valorização do indivíduo, além de menor participação do

Estado na economia. Com isso, patrimônios estatais, antes principais fontes de receitas

públicas, foram sendo transferidos à iniciativa privada. A partir daí, as receitas públicas

passaram a ser maioritariamente tributárias, ou seja, provenientes de tributos pagos pelos

24 Guimarães & Catarino, 2014: 16.25 Vasquez, 2011: 80.

Page 15: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

súbditos "segundo os seus haveres".26 A maior parcela da receita pública passou a ser, portanto,

receita tributária, quer dizer, proveniente de tributos. A esse novo modelo de financiamento

estatal, que funciona até os dias de hoje nas economias de mercado, convencionou-se

denominar Estado fiscal, assim entendido como aquele “cujo suporte financeiro seja

constituído pela figura dos impostos”.27

Este estudo tem como objeto a tributação autónoma de que trata o artigo 88 do Código

do IRC. Como objeto de estudo que é, precisa ser definido, isolado, classificado, dividido se

possível, e analisado. Não há dúvida de que o produto dessa tributação autónoma é receita

pública, pois é resultado de cumprimento de obrigação patrimonial das empresas para com o

Estado, para que este cumpra suas funções. Não se trata de receita pública de origem

patrimonial, pois não provém do patrimônio estatal. Nem de origem creditícia, pois não decorre

de qualquer relação de crédito. É, portanto, como o próprio nome sugere, receita de origem

tributária: incide mesmo sobre o patrimônio das pessoas coletivas. Logo, tributação autónoma é

uma espécie de tributo. A princípio, neste início de investigação, pode-se dizer, como hipótese

preliminar, que este tributo chamado tributação autónoma não parece ser um imposto. Pelo

menos o legislador optou por não chamá-lo de imposto. É do género tributo, mas sua espécie

carece ainda de identificação mais precisa.

A palavra tributo possui várias aceções. Falávamos da idade média e do surgimento dos

Estados liberais a partir do século XIX. O termo tributo, porém, terá sido usado desde os

primórdios da civilização, com significados outros além de meio de financiamento do Estado.

O vocábulo tributo já foi utilizado como sinónimo de oferenda aos deuses, de presente aos

líderes, em troca de proteção, de entrega de bens ao vencedor da guerra, como despojo, ou

mesmo com o significado de homenagem. Atualmente, não é raro encontrar-se a palavra tributo

como sinónimo de imposto ou taxa.

Neste trabalho, porém, o vocábulo tributo será utilizado como meio de financiamento

estatal, conforme significado atribuído pela legislação portuguesa e de acordo com o

entendimento da doutrina majoritária. E a maior parte da doutrina28 considera tributo como

gênero do qual são espécies o imposto, a taxa e as contribuições financeiras, noção esta que se

assemelha com aquela contida na LGT, conforme artigo 3º, n.º 2, assim escrito:

Artigo 3.º 26 Guimarães & Catarino, 2014: 17.27 Nabais, 2013: 26.28 Nesse sentido, Américo Brás Carlos, (2014, Impostos - teoria geral, pág. 35) cita Soarez Martinez,

Alberto Xavier e Sá Gomes.

Page 16: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

Classificação dos tributos

[…]

2 - Os tributos compreendem os impostos, incluindo os

aduaneiros e especiais, e outras espécies tributárias criadas

por lei, designadamente as taxas e demais contribuições

financeiras a favor de entidades públicas.

Sobre a redação desse enunciado normativo, permite-se desde já sejam antecipadas

algumas reflexões, que serão úteis no seguimento deste ensaio. Há aspetos positivo e negativo.

Como aspeto positivo, nomeadamente em relação à atratividade por investimentos, há a

instituição do princípio da legalidade para criação de tributos em sua generalidade, eis que CRP

só se ocupara em prescrever tal princípio aos impostos em especial.29 Como aspetos negativos,

nomeadamente em relação à atratividade por investimentos, pode-se mencionar a indefinição

da abrangência do conceito de tributo, ao admitir a LGT que, além de impostos, a noção de

tributo compreenda também “outras espécies tributárias”. Então, embora logo a seguir aquele

enunciado faça menção “designadamente” às taxas e demais contribuições financeiras a favor

de entidades públicas, dúvidas não há sobre a possibilidade de criação de novas espécies

tributárias a qualquer altura. E também não se pode deixar de anotar alguma dose de tautologia

na lei, segundo a qual “Os tributos compreendem os impostos, […] e outras espécies tributárias

[…]”. Ora, tal assertiva só seria plausível se já existisse definição legal do que seja tributo, o

que, todavia, não existe na LGT, nem na CRP.

Ausente na legislação, a noção de tributo também parece não ter merecido maior

importância na doutrina portuguesa. Em seu Manual de Direito Fiscal, Sérgio Vasques limitou-

se a estabelecer algumas diferenças entre as três fontes mais relevantes da receita pública, quais

sejam a patrimonial, a creditícia e a tributária.30 Em obra com o mesmo título, Glória Teixeira

já começa sua exposição a partir dos dois tipos de impostos, impostos sobre o consumo e

impostos sobre o rendimento, sobre os quais, segundo a autora, assenta-se fundamentalmente o

sistema fiscal português. Em detrimento às figuras tributárias de “diferentes tipos”, que seriam

as taxas, licenças e contribuições, Teixeira dá esse destaque aos impostos em razão de seu

caráter unilateral e vinculativo, termo que usa como sinónimo de obrigatório.31 Nuno Sá

Gomes, em seu Manual de Direito Fiscal, explica que tratará Direito Tributário e Direito Fiscal

29 CRP, art, 103, n.º 2 e 3.30 Vasques, 2011: 80.31 Teixeira, 2012: 33 e 34.

Page 17: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

como sinônimos, eis que se ocupará apenas dos impostos, e não das demais espécies

tributárias.32 O Manual de Direito Fiscal de Saldanha Sanches, a partir de um capítulo intitulado

“Sistema constitucional e classificação dos impostos”, o autor discorre sobre a noção de

imposto e das outras espécies tributárias, taxa, contribuições, sem, no entanto, de maneira

semelhante às outras obras, oferecer qualquer noção do que seja o gênero tributo.33 João

Ricardo Catarino, em Lições de Fiscalidade, parte também da definição das espécies

tributárias, imposto, taxa, contribuições, tarifa pública, sem prévia definição de tributo.34 Na

mesma obra, Vasco Valdez reconhece que impostos, taxas, contribuições especiais e receitas

parafiscais são espécies do gênero tributo, mas, igualmente, não define tributo, somente as

espécies tributárias.35 Diferentemente, o Manual de Direito Fiscal de autoria de Alberto Xavier

conceitua tributo como sendo “prestação patrimonial estabelecida por lei a favor de uma

entidade que tem a seu cargo o exercício de funções públicas, com o fim imediato de obter

meios destinados ao seu financiamento”.36 Tal noção, contudo, peca por alguma imprecisão.

Aponta um fim imediato do tributo, o que sugere que haveria também um fim mediato sem, no

entanto, indicá-lo. Compromete também esse conceito elaborado por Xavier a ausência de

menção a outros importantes fins do tributo, como por exemplo a da diminuição das

desigualdades, que é a principal finalidade do imposto sobre o rendimento pessoal, consoante

artigo 104, n.º 1, da Constituição da República.

Mas essa ausência, na legislação portuguesa, de uma definição legal do que seja tributo

enquanto gênero das espécies tributárias, aliada à aparente pouca importância pela doutrina em

relação à necessidade de se formular um conceito próprio para tributo, tem uma explicação.

Segundo Casalta Nabais, que também não oferta noção de tributo, a doutrina procura sempre

isolar um ramo do direito homogêneo quanto ao objeto e específico quanto ao regime jurídico,

que estude as receitas públicas coativas contributivas. Entende o autor que uma parte da

doutrina, nomeadamente a da Itália, Espanha e Brasil, escolheu o ramo do Direito Tributário,

que cuida da generalidade dessas receitas públicas. Por essa razão houve nesses países alguma

preocupação na criação do conceito de tributo. Outra parte da doutrina, à qual Portugal se filia

conjuntamente à França, Alemanha, Áustria, Suíça, etc., isolou, com aquela finalidade, o

Direito Fiscal, que teria como objeto o que seria o mais importante segmento dentre aquelas

receitas, que seria a receita pública coativa contributiva unilateral, ou seja, o imposto.37 Assim,

32 Gomes, 2003: 17.33 Sanches, 1998: 16 e ss.34 Catarino e Guimarães, 2014: 23.35 Catarino e Guimarães, 2014: 182.36 Xavier, 1974: 35.37 Nabais, 2014: 34.

Page 18: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

a eleição do Direito Fiscal e o foco na parcela da receita pública proveniente dos impostos

justificaria, em tese, segundo Nabais, a carência de estudo mais aprofundado acerca do instituto

tributo como gênero das receitas públicas de origem tributária.

Necessário se faz, portanto, que aqui se formule uma noção de tributo, prévia que seja,

aproximada que seja, mas que atenda minimamente a sistematização indispensável a um início

de trabalho académico. Pelo que até aqui já foi visto, e com base nos preceitos fundamentais da

legislação aplicável, pode-se afirmar que o tributo é: (i) produto da receita pública tributária,

(ii) objeto da obrigação instituída pela relação jurídico-tributária criada em lei (LGT, artigo 3º,

n.º 2) estabelecida entre a administração tributária, agindo como tal, e as pessoas singulares e

colectivas (LGT, artigo 1º, n.º 2), (iii) com vistas à satisfação das necessidades financeiras do

Estado e de outras entidades públicas e à promoção da justiça social (LGT, 5º, n.º 1).

Essa breve noção permite confirmar afirmativa já antecipada, segundo a qual o objeto

deste estudo, que é a tributação autónoma prevista no artigo 88 do Código do IRC, é realmente

um tributo, eis que compõe a receita tributária, objeto da relação jurídico-tributária instituída

em lei e estabelecida entre a administração tributária e a pessoa coletiva contribuinte. Continua

não sendo claro, todavia, qual é exatamente sua espécie tributária dentre aquelas autorizadas

pela Constituição da República e previstas na Lei Geral Tributária. Com o intuito de identificar

tal espécie tributária, sua natureza jurídica, suas funções, é necessário que se faça análise das

normas jurídicas que instituíram a referida tributação autónoma em suas várias expressões,

veiculadas por meio do artigo 88 do Código do IRC. É o que se propõe fazer com o auxílio da

regra-matriz de incidência tributária, instrumento sobre o qual se discorre a seguir.

I.3 - A regra-matriz de incidência tributária

A regra-matriz de incidência tributária, ou RMIT, é um instrumento de análise idealizado por

Paulo de Barros Carvalho para estudo da norma jurídica tributária.38 Trata-se da sistematização

analítica da norma tributária geral e abstrata, decompondo-a em seu antecedente normativo, ou

previsão, e em seu consequente normativo, ou estatuição. A previsão, como já se viu, descreve

o evento que, uma vez ocorrido, estabelece a relação jurídica tributária prescrita na estatuição.

A gravidade e a importância da norma jurídica tributária decorrem de sua propriedade

ímpar de, uma vez ocorrido o fato jurídico tributário nela previsto, fazer nascer a obrigação de

que pessoas entreguem dinheiro ao Estado. Por ser fato propulsor da transferência de riquezas,

38 Carvalho, 2007: 255.

Page 19: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

sua hipótese de incidência deve revestir-se de certos elementos, segundo Alberto Xavier,39 ou

aspetos, segundo Geraldo Ataliba,40 ou critérios, segundo Paulo de Barros Carvalho,41 que lhe

deem precisão tal que a obrigação gerada tenha exatamente os contornos e a dimensão

transmitida pelo fato jurídico efetivamente ocorrido. Precisão obtém-se mediante análise.

Necessário, pois, analisar a norma jurídica tributária. Análise pressupõe quebra, decomposição.

Mesmo a norma jurídica tributária em sentido estrito, quer-se dizer, aquela expressa em sua

estrutura mínima, pode ser decomposta. E é o que se pretende fazer, com o auxílio da RMIT:

decompor a norma tributária em critérios de caráter material, espacial, temporal, quantitativo e

pessoal, como se verá a seguir.

Como já visto, a estrutura mínima da norma tributária, como a norma jurídica em geral, é

formada de antecedente normativo ou previsão, e consequente normativo ou estatuição.

I.3.1 – A decomposição do antecedente normativo

A previsão (antecedente normativo) da norma jurídica tributária pode ser decomposta em

critérios material, espacial e temporal.

I.3.1.1 – O critério material

O critério material é aquele que pode ser considerado o núcleo do antecedente normativo. O

critério material denota qual é a ação que faz nascer o tributo. É sempre formado por um verbo

pessoal no infinitivo e seu complemento.42 O critério material é o pressuposto do tributo e é

normalmente obtido com a resposta à pergunta “o que faz surgir a obrigação?”. Como exemplo,

cita-se o critério material da regra matriz de incidência do IRC é formado pelo verbo obter e

pelo complemento rendimento.43

I.3.1.2 – O critério espacial

É o critério espacial da previsão ou antecedente normativo que delimita a área geográfica em

que a satisfação do critério material dá origem ao tributo. Pode ou não estar explicito na norma.

Caso não seja expresso, o critério espacial coincide, obrigatoriamente, com o âmbito de 39 Xavier, 1974: 247.40 Ataliba, 2000: 76.41 Carvalho, 2007: 265.42 Carvalho, 2007: 269.43 Código do IRC, art. 1º.

Page 20: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

validade territorial da norma, isto é, com sua vigência espacial. O critério espacial é obtido com

a resposta à pergunta “onde surge a obrigação?” Um exemplo é o critério espacial da regra-

matriz de incidência do IRC para contribuintes residentes no território nacional, que é de base

mundial (word wide income).44

I.3.1.3 – O critério temporal

O critério temporal indica o momento no qual a satisfação do critério material faz nascer a

obrigação do tributo. Nos casos em que o critério material é satisfeito durante um intervalo de

tempo, entende a doutrina que deve ser tomado como o último instante desse intervalo.45 O

critério temporal pode ser definido pela resposta à pergunta “quando surge a obrigação?”. O

critério temporal da regra-matriz de incidência do IRC é o último dia do período de

tributação.46

I.3.2 – A decomposição do consequente normativo

A estatuição da norma jurídica tributária por sua vez,, pode ser decomposta em critérios pessoal

e quantitativo.

I.3.2.1 – O critério pessoal

O critério pessoal indica as pessoas que ocupam os pólos da relação jurídica tributária que se

estabelece nesse consequente normativo. São os sujeitos ativo e passivo. O sujeito ativo é o

detentor do direito subjetivo à prestação tributária. O sujeito passivo é aquele a quem incumbe

o dever jurídico de entregar o tributo. O critério pessoal pode ser identificado pela respostas às

perguntas “quem tem o direito de exigir?” e “quem tem o dever de pagar?” Por ser imposto

estadual,47 o IRC tem como sujeito ativo o Estado48, e como sujeitos passivos as pessoas

descritas no artigo 2º, n.º 1 do Código do IRC.

44 Código do IRC, art. 4º, n.º 1.45 Carvalho, 2007: 282.46 Código do IRC, art. 8, n.º 9.47 Lei Geral Tributária, art. 3º, n.º 1, alínea “b”.48 Lei Geral Tributária, art. 1º, n.º 2 c/c art. 18, n.º 1.

Page 21: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

I.3.2.2 – O critério quantitativo

O critério quantitativo da estatuição resulta da mensuração da manifestação da riqueza a ser

tributada. É a base monetária utilizada para cálculo do valor do tributo. Assim como o critério

material é considerado o núcleo do antecedente normativo, considera-se a base monetária do

critério quantitativo como sendo o núcleo da estatuição tributária. Além de servir como

parâmetro de mensuração econômica do fato jurídico tributário, essa base monetária exerce o

importante papel de confirmar a sintonia com o critério material, que é o núcleo do antecedente

normativo, como já se disse, ou mesmo de infirmar aquele critério, se com ele houver

incompatibilidade.49 Assim, o conjunto formado pelo critério material e o critério quantitativo,

nomeadamente essa base monetária, pode ser considerado como a “impressão digital” do

tributo, eis que oferece identificação precisa da espécie tributária, inobstante o nome que lhe

tenha sido atribuído pelo legislador, isolando-a, diferenciando-a das demais. O tributo incide

sobre a manifestação de riqueza. E a riqueza se manifesta no rendimento, na propriedade e no

consumo, de modo que o critério quantitativo é sempre expressão de uma dessas três vertentes

de manifestação. O critério quantitativo pode ser indicado com a resposta à pergunta “quanto se

deve pagar?” Um bom exemplo de critério quantitativo pode ser extraído da regra-matriz de

incidência tributária do IRC das pessoas coletivas com atividade empresarial, situação em que a

base monetária ou matéria coletável é o lucro tributável.50 A taxa é o outro componente do

critério quantitativo. É aplicada sobre a base monetária para obtenção do valor do tributo. No

caso do IRC, a taxa é de 23% para empresas que não sejam enquadradas como pequena ou

média, salvo situações descritas no n.º 2 e seguintes do artigo 87 do Código do IRC.

I.3.3 – A recomposição da regra-matriz de incidência tributária

Reagrupando os critérios, pode-se montar o seguinte quadro genérico para a regra-matriz de

incidência tributária:

ANTECEDENTE

NORMATIVO

OU

PREVISÃO

CRITÉRIO

MATERIAL

(o que?)

VERBO

COMPLEMENTO

CRITÉRIO ESPACIAL

(onde?)

49 Carvalho, Curso de Direito Tributário. 2007: 344.50 Código do IRC, art. 15, n.º 1, alínea “a”.

Page 22: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

CRITÉRIO TEMPORAL

(quando?)

CONSEQUENT

E

NORMATIVO

OU

ESTATUIÇÃO

CRITÉRIO

PESSOAL

(quem?)

SUJEITO

ATIVO

SUJEITO

PASSIVO

CRITÉRIO

QUANTITATIVO

(quanto?)

BASE DE

CÁLCULO

TAXA

Há que ser lembrado que a regra-matriz de incidência tributária é um instrumento de

análise da norma jurídica tributária em sentido estrito, que é aquela já reduzida à sua mínima

estrutura (dado o fato jurídico tributário então deve ser a relação entre o sujeito ativo e o sujeito

passivo). Logo, há que ser montada uma RMIT específica para cada situação tributária, pois

existe uma regra-matriz própria e distinta para cada uma das combinações legalmente possíveis

entre os cinco critérios.

Conclusões

1 – Salvo alguma abordagem teórica que possa tornar-se necessária durante o desenvolvimento

do estudo, pretende-se que essas noções apresentadas sobre norma jurídica, tributo e regra-

matriz de incidência tributária, por hora ainda não aprofundadas, sirvam de base para a

identificação da verdadeira natureza jurídica e da função de cada uma das expressões da

tributação autónoma exigida por meio do artigo 88 do Código do IRC, que é o que se pretende

com a dissertação final.

2 – As leis, decretos, portarias, etc., são redigidos a partir dos mais variados vocábulos e

construções gramaticais. Mas as normas por eles veiculadas podem sempre ser reduzidas a uma

mesma estrutura mínima, formada pela previsão do fato jurídico e estatuição de uma relação

Page 23: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

jurídica em que, sob sanção, um sujeito fica obrigado, proibido ou lhe é facultado algo em

relação a outro.

3 – Embora exista entendimento majoritário de que o tributo é gênero das espécies tributárias

como imposto, taxa e contribuições, há carência na legislação e na doutrina de uma definição

própria de tributo, de modo que o estudo será desenvolvido a partir da noção de tributo aqui

mesmo deduzida.

4 – Mesmo a norma jurídica tributária reduzida à sua mínima expressão, em previsão e

estatuição, pode ser decomposta em critérios, por meio do instrumento chamado regra-matriz

de incidência tributária, de modo a facilitar a identificação das espécies tributárias, o que se

pretende seja útil na identificação da verdadeira natureza jurídica da tributação autónoma, em

suas expressões instituídas pelo artigo 88 do Código do IRC.

Mais abaixo, em vermelho, conteúdo IBET acerca de capacidade contributiva.

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1. Há necessidade de manifestação de capacidade contributiva para que possa ser exigida contribuição?

Não necessariamente. Só faz sentido falar-se em capacidade contributiva em relação a

tributo cujo critério material provenha de signo presuntivo de riqueza emitido pelo próprio

contribuinte, como no caso dos impostos, que têm por hipótese de incidência, conformada pela

base de cálculo (Paulo de Barros Carvalho, Curso, 10.ed, p.36) fato alheio a qualquer atuação

do poder público.

Não se pode, portanto, condicionar a incidência de taxa e de contribuição de melhoria à

observação do princípio da capacidade contributiva, pois, nesse caso o tributo é contrapartida

de atuação estatal, o que significa dizer que a dimensão econômica é dada pelo próprio Estado.

Nessa situação, que deve ser obedecido o princípio do não-confisco (CF, art. 150, IV).

Justamente por isso, a própria Constituição Federal, ao tratar de capacidade contributiva,

artigo 145, § 1º, fala somente em impostos:

Page 25: Walcemir Medeiros - Seminários - Trabalho 2

Art. 145. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios poderão

instituir os seguintes tributos:

I - impostos;

II - taxas, em razão do exercício do poder de polícia ou pela utilização, efetiva

ou potencial, de serviços públicos específicos e divisíveis, prestados ao contribuinte

ou postos a sua disposição;

III - contribuição de melhoria, decorrente de obras públicas.

§ 1º - Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão

graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à

administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos,

identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os

rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

§ 2º - As taxas não poderão ter base de cálculo própria de impostos.

A partir daí, em relação às contribuições, pode-se dizer que há necessidade de

manifestação da capacidade contributiva sempre que a correspondente hipótese de incidência

não esteja ligada a qualquer atividade estatal, como por exemplo a CIDE.

Já em relação a contribuições ligadas a contraprestação estatal, como na CIP, não há

necessidade de manifestação de capacidade contributiva.