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A FORMAÇÃO SOCIAL DA MENTE Vygotski, L. S.

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  • A FORMAO SOCIAL DA MENTE

    Vygotski, L. S.

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    A formao social da mente Vygotski, L. S. 153.65 - V631 Psicologia e Pedagogia O desenvolvimento dos processos psicolgicos superiores Texto proveniente de: Seo Braille da Biblioteca Pblica do Paran http://www.pr.gov.br/bpp e-mail: braill pr.gov.br Permitido o uso apenas para fins educacionais de pessoas com deficincia visual Texto-base digitalizado por: Funcionrios da Seo Braille da BPP - Curitiba - PR Este material no pode ser utilizado com fins comerciais. Organizadores: Michael Cole, Vera John-Steiner, Sylvia Scribner, Ellen Souberman Traduo: Jos Cipolla Neto, Luis Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche Livraria Martins FontesEditora Ltda. So Paulo - SP 1991 4 edio brasileira Coordenao da traduo: Grupo de Desenvolvimento e Ritmos Biolgicos - Departamento de Cincias Biomdias USP Reviso da traduo: Monica Stahel M. da Silva Capa: Alexandre Martins Fontes

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    Nota da contra-capa: Desenvolvimento das funes psicolgicas superiores H muito tempo o grande psiclogo russo L. S. Vygotski reconhecido como um pioneiro da psicologia do desenvolvimento. No entanto, sua teoria do desenvolvimento nunca foi bem compreendida no Ocidente. A Formao Social da Mente vem suprir grande parte desta falha. Trata-se de uma seleo cuidadosa dos ensaios mais importantes de Vygotski, editada por um grupo de eminentes estudiosos da sua obra. Fragmento da nota de Vygotsky sugerindo, pela primeira vez, a mediao como a base dos processos psicolgicos superiores. ("N.B. A essncia do mtodo instrumental reside no uso funcionalmente diferente de dois estmulos, que determinam diferencialmente o comportamento; disso resulta o domnio do indivduo sobre as suas prprias operaes psicolgicas. Sempre admitindo dois estmulos, precisamos responder s seguintes questes: 1. Como o indivduo se lembra do estmulo S1 com a ajuda do estmulo S2 (onde S1 o objeto e S2 o instrumento). 2. Como a ateno se dirige para S1 com ajuda de S2. 3. Como uma palavra associada a S1 rememorada via S2, e assim por diante.") memria de Alexander Romanovich Luria Prefcio dos organizadores da obra Lev Semyonovich Vygotsky ganhou destaque na psicologia americana a partir da publicao, em 1962, da sua monografia Pensamento e Linguagem (Thought and Language). H cinco anos, por sugesto de Alexander Luria, concordamos em editar uma coletnea de ensaios de Vygotsky que representasse toda a sua produo terica geral, na qual a relao entre pensamento e linguagem era um dos aspectos mais importantes. Luria, ento, colocou nossa disposio a traduo preliminar de duas obras de Vygotsky. A primeira, O Instrumento e o Smbolo no Desenvolvimento das Crianas (1930 ) nunca tinha sido publicada. A segunda, a traduo de uma monografia intitulada A Histria do Desenvolvimento das Funes Psicolgicas Superiores, havia sido publicada no segundo volume dos escritos de Vygotsky, no ano de 1960, em Moscou. Um breve estudo desses ensaios mais que depressa nos convenceu de que o escopo do trabalho de Vygotsky estendia-se muito alm do expresso em Pensamento e Linguagem. Alm disso, tornou-se evidente que a imagem que muitos dos nossos colegas faziam de Vygotsky, como sendo um neobehaviorista do desenvolvimento cognitivo, poderia ser, de forma conclusiva, desfeita por esses dois ensaios.

    Os quatro primeiros captulos deste volume foram elaborados a partir de Instrumento e Smbolo. O quinto captulo resume os principais pontas tericos e metodolgicos contidos em Instrumento e Smbolo, aplicando-os reao de escolha, problema classicamente estudado em psicologia cognitiva. Esse captulo foi extrado da seo 3 de A Histria do Desenvolvimento das Funes Psicolgicas Superiores.

    Os captulos 6 e 8 (aprendizado e desenvolvimento e os precursores da escrita ao longo do desenvolvimento) foram extrados de uma coletnea de ensaios publicados postumamente intitulada O Desenvolvimento Mental das Crianas e o Processo de Aprendizado (1935). O captulo 9, que trata do brinquedo, teve como base uma palestra proferida no Instituto Pedaggico de Leningrado, em 1933, e publicada em Voprosi Psilchologii (Problemas de Psicologia) em 1966. As referncias completas esto na listagem dos trabalhos de Vygotsky, nas ltimas pginas deste volume.

    Em muitos lugares deste livro inserimos materiais provindos de fontes adicionais, na tentativa de tornar mais claro o significado do texto. Na maioria dos casos, utilizamos outras partes de A Histria do Desenvolvimento das Funes Psicolgicas Superiores no includas neste volume; outros insertos provieram de ensaios contidos nos volumes de 1956 ou 1960 de coletneas de seus trabalhos. Em alguns casos, foram utilizados trechos de trabalhos de colaboradores de Vygotsky, onde esto explicitados exemplos concretos dos procedimentos experimentais ou resultados que no texto original

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    de Vygotsky so descritos de forma extremamente breve. As referncias dessas fontes auxiliares esto citadas nas notas no final deste volume.

    O trabalho de reunir obras originalmente separadas foi feito com bastante liberdade. O leitor no deve esperar encontrar uma traduo literal de Vygotsky, mas, sim, uma traduo editada da qual omitimos as matrias aparentemente redundantes e qual acrescentamos materiais que nos pareceram importantes no sentido de tornar mais claras as idias de Vygotsky. Como outros editores j notaram, o estilo de Vygotsky extremamente difcil.

    Ele teve uma produo escrita abundante e muitos de seus manuscritos nunca foram adequadamente editados. Alm disso, durante os freqentes perodos de doena, ele ditava seus trabalhos -uma prtica que resultou num texto repetitivo, elptico e denso. Certos espaos em branco nos manuscritos originais os tornam, hoje em dia, ainda menos acessveis do que devem ter sido no tempo em que foram escritos. Devido ao fato de as referncias serem raramente citadas nos originais, tentamos, da melhor maneira possvel, encontrar as fontes exatas referidas por Vygotsky. O processo de procurar as fontes originalmente citadas revelou-se uma tarefa altamente recompensadora, uma vez que muitos de seus contemporneos se mostraram surpreendentemente modernos em vrios aspectos importantes. Temos, ainda, perfeita noo de que ao mexer nos originais poderamos estar distorcendo a histria; entretanto, acreditamos tambm que, deixando claro nosso procedimento e atendo-nos o mximo possvel aos, princpios e contedos dos trabalhos, no distorcemos os conceitos originalmente expressos por Vygotsky.

    Temos uma dvida toda especial para com o falecido Alexander R. Luria, no s por nos ter fornecido uma traduo inicial de grande parte do material includo nos captulos de 1 a 5, como, tambm, pelo seu incansvel trabalho de pesquisa das referncias bibliogrficas citadas por Vygotsky e detalhamento de seus experimentos, alm da leitura de nosso manuscrito.

    Os captulos 6 e 7 foram traduzidos por Martin Lopez-Morillas. O captulo 5 e partes dos captulos de 1 a 5 foram traduzidos por Michael Cole. Queremos agradecer a James Wertsch por sua assistncia na traduo e interpretao de passagens especialmente difceis.

    A edio desses escritos de Vygotsky ocupou-nos por muitos anos. O fato de os editores terem trabalhado em locais distintos e sido educados em tradies intelectuais diferentes fez com que cada uma das equipes encontrasse diferentes materiais de interesse especial. Como no h apenas uma, mas vrias questes a serem esclarecidas por uxn corpo de pensamentos to complexo, escrevemos dois ensaios que refletem vrios aspectos do "ler Vygotsky".

    Vera John-Steiner, Ellen Souberman University of New Mexico Michael Cole, Sylvia Scribner The Rockfeller University

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    ndice

    Introduo: Michael Cole e Sylvia Scribner ............................................................................. 7 Nota biogrfica sobre L. S. Vygotsky 17 .................................................................................. 16 PRIMEIRA PARTE Teoria bsica e dados experimentais 1. O instrumento e o smbolo no desenvolvimento da criana ............................................. 17 2. O desenvolvimento da percepo e da ateno ................................................................... 24 3. O domnio sobre a memria e o pensamento ..................................................................... 28 4. Internalizao das funes psicolgicas superiores ........................................................... 38 SEGUNDA PARTE Implicaes Educacionais 5. Problemas de mtodo .............................................................................................................. 41 6. Interao entre aprendizado e desenvolvimento ................................................................ 53 7. O papel do brinquedo no desenvolvimento ....................................................................... 61 8. A pr-histria da linguagem escrita ...................................................................................... 69 Posfcio Vera John-Steiner e Ellen Souberman As obras de Vygotsky ............................................... 80

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    "A aranha realiza operaes que lembram o tecelo, e as caixas suspensas que as abelhas constroem envergonham o trabalho de muitos arquitetos. Mas at mesmo o pior dos arquitetos difere, de incio, da mais hbil das abelhas, pelo fato de que antes de fazer uma caixa de madeira, ele j a construiu mentalmente. No final do processo do trabalho, ele obtm um resultado que j existia em sua mente antes de ele comear a construo. O arquiteto no s modifica a forma que lhe foi dada pela natureza, dentro das restries impostas pela natureza, como tambm realiza um plano que Ihe prprio, defnindo os meios e o carter da atividade aos quais ele deve subordinar sua vontade." Karl Marx, O Capital

    " precisamente a alterao da natureza pelos homens, e no natureza enquanto tal, que constitui a base mais essencial imediata do pensamento humano." Friedrich Engels, Dialtica da Natureza

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    INTRODUO Michael Cole e Sylvia Scribner Quando Lev S. Vygotsky, advogado e fillogo, iniciou sua carreira como psiclogo aps a Revoluo Russa de 1917, j havia contribudo com vrios ensaios para a crtica literria. Na poca em que predominavam Wilheim Wundt, o fundador da psicologia ex-perimental, e William James, representante do pragmatismo americano, ele era estudante. Na cincia, foram seus contemporneos, entre outros, Ivan Pavlov, Wladimir Bekhterev e John B.

    Watson, todos adeptos das teorias comportamentais privilegiadoras da associao estmuloresposta, alm de Wertheimer, Kohler, Koffka e Lewin, fundadores do movimento da Gestalt na psicologia. O leitor poderia esperar, ento, que o trabalho de Vygotsky tivesse principalmente interesse histrico - talvez enquanto uma breve viso de como os fundadores da psicologia moderna influenciaram a psicologia sovitica na Rssia ps-revolucionria. Certamente esses ensaios tm interesse na perspectiva da histria intelectual, mas, de forma alguma, constituem relquias histricas. Pelo contrrio, ns os oferecemos como uma contribuio s controvrsias e discusses da psicologia contempornea.

    Com o objetivo de entender como as idias deste livro puderam manter sua relevncia atravs das distncias de tempo e de cultura que nos separam de Vygotsky, tivemos que, repetidamente, refletir sobre as condies da psicologia europia que forneceram o cenrio inicial para as teorias de Vygotsky. Foi-nos de grande valia examinar as condies da sociedade e da psicologia na Rssia ps-revolucionria, uma vez que eram fonte dos problemas imediatos com os quais Vygotsky se defrontava, bem como fonte de inspirao, na medida em que ele e seus colegas procuravam desenvolver uma teoria marxista do funcionamento intelectual humano.

    No incio do sculo XIX

    At a segunda metade do sculo XIX, o estudo da natureza humana era um atributo da filosofia. Os seguidores de John Locke, na Inglaterra, desenvolveram sua concepo empiricista da mente, que enfatizava a origem das idias a partir de sensaes produzidas por estimulao ambiental. O maior problema da anlise psicolgica, para esses empiricistas ingleses, era descrever as leis de associao pelas quais sensaes simples combinam-se para produzir idias complexas. No continente europeu, os seguidore de Immanuel Kant afirmavam que idias de espao e tempo e conceitos de quantidade, qualidade e relao originavam-se na mente humana e no poderiam ser decompostas em elementos mais simples. Ambos os grupos mantinham-se irredutveis em suas posies. Ambas as tradies filosficas desenvolviam-se tendo como pressuposto, originado a partir dos trabalhos de Ren Descartes, que o estudo cientfico do homem deveria restringir-se ao seu corpo fsico. filosofia estava designado o estudo de sua alma.

    Apesar de o conflito entre essas duas abordagens se estender at os dias de hoje, os termos dessa discusso, por volta de 1860, foram mudados irrevogavelmente, pela publicao quase que simultnea de trs livros.

    Deles, o mais famoso foi A Origem das Espcies de Darwin, que argumentava a favor da continuidade essencial entre o homem e outros animais. Uma conseqncia imediata dessa afirmao foi o esforo de muitos intelectuais para estabelecer descontinuidades que separassem seres humanos adultos de seus parentes inferiores (tanto ontogentica quanto filogeneticamente). O segundo livro Die Psychophysik, de Gustav Fechner, que apresentava uma descrio detalhada e matematicamente elaborada da relao entre as variaes de eventos fsicos determinveis e as respostas "psquicas" expressas verbalmente. O que Fechner propunha era, nem mais nem menos, a descrio quantitativa do contedo da mente humana. O terceiro livro, um volume peqeno, intitulado Reflexos do Crebro, foi escrito por um mdico de Moscou chamado I. M. Sechenov. Sechenov, que havia estudado com alguns dos mais eminentes fisiologistas europeus, contribuiu para a compreenso dos reflexos sensorimotores simples usando a tcnica da preparao neuromuscular isolada.

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    Sechenov estava convencido de que os processos por ele observados em tecidos isolados de r eram, em princpio, os mesmos que ocorrem no sistema nervoso central dos organismos intactos, inclusive nos seres humanos. Se as respostas musculares, em sua preparao, podiam ser explicadas por processos de inibio e excitao, porque as mesmas leis no poderiam ser aplicadas s operaes do crtex cerebral humano? Mesmo na ausncia de evidncias diretas para essas especulaes, as idias de Sechenov sugeriram as bases fisiolgicas para a ligao entre o estudo cientfico natural de animais e os estudos filosficos humanos anteriores. O censor do Czar parece ter compreendido as implicaes materialistas e revolucionrias das teses de Sechenov, proibindo a sua publicao pelo tempo que pde. Quando finalmente o livro foi publicado, continha uma dedicatria a Charles Darwin.

    Esses trs livros, de Darwin, Fechner e Sechenov, podem ser vistos como constituintes essenciais do pensamento psicolgico do final do sculo XIX. Darwin uniu animais e seres humanos num sistema conceitual nico regulado por leis naturais; Fechner forneceu um exemplo do que seria uma lei natural que descrevesse as relaes entre eventos fsicos e o funcionamento da mente humana; Sechenov, extrapolando observaes feitas em preparaes neuromusculares isoladas de rs, props uma teoria fisiolgica do funcionamento de tais processos mentais em seres humanos normais. Nenhum desses autores se considerava (e tampouco era considerado pelos seus contemporneos) psiclogo. No entanto, eles forneceram as questes centrais que preocupariam a psicologia, uma cincia jovem, na segunda metade do sculo: quais so as relaes entre o comportamento humano e o animal? Entre eventos ambientais e eventos mentais? Entre processos fisiolgicos e psicolgicos? Vrias escolas de psicologia atacaram uma ou outra dessas questes, contribuindo com respostas parciais dentro de perspectivas tericas limitadas.

    De tais escolas, a primeira foi fundada por Wilhem Wundt, em 1980. Wundt assumiu comp tarefa a descrio do contedo da conscincia humana e sua relao com a estimulao externa. Seu mtodo consistia em analisar os vrios estados de conscincia em seus elementos constituintes, definidos por ele mesmo como sensaes simples. A priori, ele excluiu, como elementos de conscincia, sensaes tais como "sentimento de estar ciente" ou "percepo de relaes", considerando esses fenmenos como "nada mais do que" subprodutos de mtodos falhos de observao (introspeco). De fato, Wundt props, explicitamente, que as funes mentais complexas, ou, como eram ento conhecidas, os "processos psicolgicos superiores" (a lembrana voluntria e o raciocnio dedutivo, por exemplo) no poderiam, em princpio, ser estudadas pelos psiclogos experimentais.

    Na sua opinio, s poderiam ser pesquisadas atravs de estudos histricos dos produtos culturais, tais como as lendas, costumes e linguagem.

    Por volta do comeo da Primeira Guerra Mundial os estudos introspeetivos dos processos conscientes humanos sofreram ataques vindos de duas direes. Tanto nos Estados Unidos quanto na Rssia, psiclogos descontentes com as controvrsias em torno das descries introspectivas corretas das sensaes, e com a conseqente esterilidade da pesquisa resultante, renunciaram ao estudo da conscincia em prol do estudo do comportamento. Explorando o potencial sugerido pelo estudo de Pavlov dos reflexos condicionados (desenvolvido a partir de Sechenov) e pelas teorias de Darwin sobre a continuidade evolutiva entre os animais e o homem, essas correntes psicolgicas abriram muitas reas para o estudo cientfico do comportamento animal e humano. Com relao a um aspecto importante, entretanto, concordavam com os seus antagonistas introspectivos: sua estratgia bsica consistia em identificar as unidades da atividade humana (substituindo as sensaes pela unidade estmulo-resposta) e ento especificar as regras pelas quais esses elementos se combinam para produzir fenmenos mais complexos. Essa estratgia concentrou-se, conseqentemente, naqueles processos psicolgicos compartilhados tanto por animais quanto por seres humanos, relegando os processos psicolgicos superiores - pensamento, linguagem e comportamento volitivo. A segunda linha de ataque sobre a descrio do contedo da conscincia veio de um grupo de psiclogos que se contrapunham a um ponto, em relao ao qual tanto Wundt quanto os behavioristas concordavam: a validade de se analisar os processos psicolgicos em seus constituintes bsicos. Esse movimento, que veio a ser conhecido como a psicologia da Gestalt, demonstrou que muitos fenmenos intelectuais (os estudos de Kohler com macacos antropides constituem um exemplo) e fenmenos perceptuais (por exemplo, os estudos de Wertheimer sobre o movimento aparente de luzes intermitentes ) no

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    poderiam ser explicados pela postulao de elementos bsicos da conscincia nem pelas teorias comportamentais baseadas na unidade estmulo-resposta. Os gestaltistas rejeitavam, em princpio, a possibilidade de, atravs de processos psicolgicos simples, explicar os processos mais complexos.

    Resumidamente, era essa a situao da psicologia europia quando Vygotsky apareceu em cena. Na Rssia, a situao no era muito diferente.

    Psicologia ps-revolucionria na Rssia Nas primeiras dcadas do sculo XX, a psicologia na Rtssia, assim como na Europa, movia-se entre escolas antagnicas, cada uma procurando oferecer explicaes parciais para alguns fenmenos. Em 1923, no primeiro congresso sovitivo de neuropsicologia, K. N. Kornilov iniciou a primeira grande mudana intelectual e organizacional na psicologia aps a Revoluo. Naquela poca, o prestigiado Instituto de Psicologia dE Moscou era chefiado por G. I. Chelpanov, um adepto da psicologia introspectiva de Wundt e opositor do behaviorismo. (Ele havia publicado, em 1917, imediatamente antes da Revoluo, a 6 edio do seu livro A Mente Humana, uma crtica s teorias materialistas da mente.) Chelpanov atribua um papel restrito ao marxismo na psicologia, aceitando que essa teoria poderia ajudar a explicar a organizao social da conscincia, mas no as propriedades da conscincia individual. Numa palestra intitulada "Psicologia Contempornea e Marxismo", Kornilov criticou Chelpanov pelas bases idealistas da sua teoria psicolgica e pelo restrito papel por ele atribudo ao marxismo na psicologia. Kornilov, que denominava sua prpria abordagem de reatologia, procurou submeter todos os ramos da psicologia a uma estrutura marxista, usando as reaes comportamentais como os elementos bsicos.

    As crticas de Kornilov a Chelpanov, em 1923, prevaleceram.

    Chelpanov foi demitido da direo do Instituto de Psicologia e substitudo por Kornilov, que, imediatamente, formou uma equipe de jovens cientistas dedicados formulao e implementao de uma teoria da psicologia comportamental e marxista. Pode-se imaginar, assim, a sensao causada, um ano mais tarde, rao segundo encontro de neuropsicologia, pela palestra de Vygotsky intitulada "Conscincia como um Objeto da Psicologia do Comportamento" - principalmente porque, qualquer que seja o aspecto pelo qual se veja a abordagem reatolgica de Kornilov, no se conseguir caracterizar de uma forma clara o papel da conscincia na atividade humana, assim como no se conseguir atribuir ao conceito de conscincia um papel na cincia psicolgica.' Vygotsky comeava, assim, a divergir da autoridade recentemente estabelecida. Ele no propunha, entretanto, um retorno posio advogada por Chelpanov. Nessa sua palestra inicial e num conjunto de publicaes subseqentes, ele deixou absolutamente claro que, do seu ponto de vista, nenhuma das escolas de psicologia existentes fornecia as bases firmes necessrias para o estabelecimento de uma teoria unificada dos processos psicolgicos humanos. Emprestando uma expresso dos seus contemporneos alemes, ele se referia com freqncia "crise na psicologia", impondo-se a tarefa de formular uma sntese das concepes antagnicas em bases tericas completamente novas.

    Para os gestaltistas contemporneos de Vygotsky, a existncia da crise devia-se ao fato de as teorias existentes (fundamentalmente as concepes behavioristas de Wundt e Watson) no conseguirem, sob seu ponto de vista, explicar os comportamentos complexos como a percepo e a soluo de problemas. Para Vygotsky, no entanto, a raiz da crise era muito mais profunda.

    Ele partilhava da insatisfao dos psiclogos da Gestalt para com a anlise psicolgica que comeou por reduzir todos os fenmenos a um conjunto de "tomos" psicolgicos. Mas, ao mesmo tempo, ele sentia que os gestaltistas no eram capazes de, a partir da descrio de fenmenos complexos, ir alm, no sentido de sua explicao. Mesmo que se aceitassem as crticas da Gestalt s outras abordagens, a crise persistiria, uma vez que a psicologia continuaria dividida em duas metades irreconciliveis: um ramo com caractersticas de "cincia natural", que poderia explicar os processos elementares sensoriais e reflexos, e um outro com caractersticas de "cincia mental", que descreveria as propriedades emergentes dos processos psicolgicos superiores. O que Vygotsky procurou foi uma abordagem abrangente que possibilitasse a descrio e a explicao das funes psicolgicas superiores, em termos aceitveis para as cincias naturais. Para Vygotsky, essa explicao tinha o

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    significado de uma grande tarefa Ela deveria incluir a identificao dos mecanismos cerebrais subjacentes a uma determinada funo; a explicao detalhada da sua histria ao longo do desenvolvimento, com o objetivo de estabelecer as relaes entre formas simples e complexas daquilo que aparentava ser o mesmo comportamento; e, de forma importante, deveria incluir a especificao do contexto eocial em que se deu o desenvolvimento do comportamento. As metas de Vygotsky eram extremamente ambiciosas, talvez at de forma no razovel. Ele no as_ atingiu ( como, alis, estava bem ciente ) : No entanto, conseguiu, de fato, fornecer-nos uma anlise arguta E presciente da psicologia moderna.

    A maior razo para a relevncia permanente do trabalho de Vygotsky est no fato de que, em 1924 e na dcada subseqente, ele se dedicou construo de uma crtica penetranta noo de que a compreenso de funes psicolgicas superiores humanas poderia ser atingida pela multiplicao e complicao dos princpios derivados da psicologia animal, em particular aqueles princpios que representam uma combinao mecnica das leis do tipo estmulo-resposta. Ao mesmo tempo, ele produziu uma crtica devastadora das teorias que afirmam que as propriedades das funes intelectuais do adulto so resultado unicamente da maturao, ou, em outras palavras, esto de alguma maneira prformadas na criana, esperando simplesmente a oportunidade de se manifestarem.

    Ao enfatizar as origem sociais da linguagem e do pensamento, Vygotsky seguia a linha dos influentes socilogos franceses, mas, at onde sabemos, ele foi o primeiro psiclogo moderno a sugerir os mecanismos pelos quais a cultura torna-se parte da natureza de cada pessoa. Ao insistir em que as funes psicolgicas so um produto da atividade cerebral, tornou-se um dos primeiros defensores da associao da psicologia cognitiva experimental com a neurologia e a fisiologia. Finalmente, ao propor que tudo isso deveria ser entendido luz da teoria marxista da histria da sociedade humana, lanou as bases para uma cincia comportamental unificada.

    Estrutura terica marxista Ao contrrio do esteretipo dos intelectuais soviticos que se apressam em fazer suas teorias de acordo com a mais recente interpretao do marxismo elaborada pelo Politburo, Vygotsky, desde o incio de sua carreira, via o pensamento marxista como uma fonte cientfica valiosa. "Uma aplicao do materialismo histrico e dialtico relevante para a psicologia", seria um resumo preciso da teoria scio-cultural de Vygotsky dos processos psicolgicos superiores.

    Vygotsky viu nos mtodos e princpios do materialismo dialtico a soluo dos paradoxos cientficos fundamentais com que se defrontavam seus contemporneos. Um ponto central desse mtodo que todos os fenmenos sejam estudados como processos em movimento e em mudana. Em termos do objeto da psicologia, a tarefa do cientista seria a de reconstruir a origem e o curso do desenvolvimento do comportamento e da conscincia.

    No s todo fenmeno tem sua histria, como essa histria caracterizada por mudanas qualitativas (mudana na forma, estrutura e caractersticas bsicas) e quantitativas. Vygotsky aplicou essa linha de raciocnio para explicar a transformao dos Processos psicolgicos elementares em processos complexos. O cisma entre os estudos cientficos naturais dos processos elementares e a reflexo especulativa sobre as formas culturais do comportamento poderia ser superado desde que se acompanhassem as mudanas qualitativas do comportamento que ocorrem ao longo do desenvolvimento. Assim, quando Vygotsky fala de sua abordagem como privilegiadora do "desenvolvimento", isso no deve ser confundido com uma teoria do desenvolvimento da criana. Na concepo de Vygotsky, essa abordagem constitui o mtodo fundamental da cincia psicolgica.

    A teoria marxista da sociedade (conhecida como materialismo histrico) tambm teve um papel fundamental no pensamento de Vygotsky. De acordo com Marx, mudanas histricas na sociedade e na vida material produzem mudanas na "natureza humana" (conscincia e comportamento) . Embora essa proposta geral tivesse sido repetida por outros, Vygotsky foi o primeiro a tentar correlacion-la a questes psicolgicas concretas. Nesse seu esforo, elaborou de forma criativa as concepes de Engels sobre o trabalho humano e o uso de instrumentos como os meios pelos quais o

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    homem transforma a natureza e, ao faz-lo, transforma a si mesmo. Nos captulos 1 a 4, Vygotsky explora o conceito de instrumento de uma maneira que encontra seus antecedentes diretos em Engels: "A especializao da mo - que implica o instrumento, e o instrumento implica a atividade humana especfica, a reao transformadora do homem sobre a natureza"; (2) "o animal meramente usa a natureza externa, mudando-a pela sua simples presena; o homem, atravs de suas transformaes, faz com que a natureza sirva a seus propsitos, dominando-a. Esta a distino final e essencial entre o homem e os outros animais" (p. 291 ) . De maneira brilhante, Vygotsky estendeu esse conceito de mediao na interao homem-ambiente pelo uso de instrumentos, ao uso de signos. Os sistemas de signos (a lingua_em, a escrita, o sistema de nmeros), assim como o sistema de instrumentos, so criados pelas sociedades ao longo do curso da histria humana e mudam a forma social e o nvel de seu desenvolvimento cultural. Vygotsky acreditava que a internalizao dos sistemas de signos produzidos culturalmente provoca transformaes comportamentais e estabelece um elo de ligao entre as formas iniciais e tardias do desenvolvimento individual. Assim, para Vygotsky, na melhor tradio de Marx e Engels, o mecanismo de mudana individual ao longo do desenvolvimento tem sua raiz na sociedade e na cultura.

    Em captulos posteriores (particularmente no captulo 5 ) Vygotsky generaliza sua concepo sobre a origem das funes psicolgicas superiores de tal forma que revela a ntima relao entre a sua natureza fundamentalmente mediada e a concepo materialista dialtica de mudana histrica.

    Certos psiclogos soviticos costumavam, algumas vezes, citar em excesso os clssicos do marxismo, procurando, dessa forma, um meio de construir uma psicologia marxista em meio ao caos das escolas antagnicas existentes. Ainda que em notas no publicadas, Vygotsky repudiou o "mtodo das citaes" como meio de relacionar marxismo e psicologia, tornando explcita a maneira pela qual ele julgava que os seus princpios metodolgicos bsicos pudessem contribuir para a elaborao de uma teoria na psicologia:

    "No quero descobrir a natureza da mente fazendo uma colcha de retalhos de inmeras citaes. O que eu quero , uma vez tendo aprendido a totalidade do mtodo de Marx, saber de que modo a cincia tem que ser elaborada para abordar o estudo da mente.

    Para criar essa teoria-mtodo de uma maneira cientfica de aceitao geral, necessrio descobrir a essncia desta determinada rea de fenmenos, as leis que regulam as suas mudanas, suas caractersticas qualitativas e quantitativas, alm de suas causas. necessrio, ainda, formular as categorias e os conceitos que lhes so especificamente relevantes - ou seja, em outras palavras, criar o seu prprio Capital.

    O Capital est escrito de acordo com o seguinte mtodo: Marx analisa uma nica "clula" viva da sociedade capitalista - por exemplo, a natureza do valor. Dentro dessa clula ele descobre a estrutura de todo o sistema e de todas as suas nstituies econmicas. Ele diz que, para um leigo, essa anlise poderia parecer no mais do que um obscuro emaranhado de detalhes sutis. De fato, pode at ser que haja esses detalhes sutis; no entanto, eles so exatamente aqueles absolutamente necessrios "micro-anatomia". Algum que pudesse descobrir qual a clula "psicolgica" - o mecanismo produtor de uma nica resposta que seja - teria, portanto, encontrado a chave para a psicologia como um todo" (de cadernos no publicados)."

    A leitura cuidadosa deste manuscrito nos fornece provas convincentes da sinceridade de Vygotsky e da imensa utilidade da estrutura por ele desenvolvida.

    O ambiente intelectual e social de seu tempo Nos anos 20, na Unio Sovitica, Vygotsky no era o nico a utilizar as abordagens histrica e do desenvolvimento no estudo da natureza humana. Dentro da psicologia, um seu colega mais velho, P. P. Blonsky, j hava assumido a posio de que a compreenso das funes mentais complexas requeria uma anlise do desenvolvimento. (3) De Blonsky, Vygotsky adotou a noo de que o "comportamento s pode ser entendido como histria do comportamento". Blonsky foi, tambm, um dos primeiros a defender a idia de que as atividades tecnolgicas de uma populao so a chave da

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    compreenso de seu psicolgico, uma idia que Vygotsky explorou a fundo.

    Vygotsky e muitos outros tericos soviticos da poca foram, tambm, influenciados de forma importante pelo trabalho de socilogos e antroplogos europeus ocidentais, como Thurnwald (4) Levy-Bruhl, que se interessavam pela histria dos processos mentais reconstrudos a partir de evidncias antropolgicas da atividade initelectual dos povos primitivos. As escassas referncias neste livro no refletem plenamente a extenso do interesse de Vygotsky no desenvolvimento dos processos mentais entendidos historicamente. Esse aspecto de seu trabalho recebeu ateno especial numa publicao conjunta com A. R. Luria, em 1930, intitulada Estudos sobre a Histria do Comportamento. Esse interesse serviu de estmulo para as duas expedies realizadas por Luria, em 1931 e 1932, nsia Central, cujos resultados foram publicados muito depois da morte de Vygotsky. (5) Essa nfase histrica era tambm muito comum na lingstica sovitica, cujo interesse centrava-se no problema da origem da linguagem e na sua influncia sobre o desenvolvimento do pensamento. As discusses em lingstica tratavam de problemas semelhantes aos tratados nos trabalhos de Sapir e Whorf, que comeavam, ento, a se tornar influentes nos Estados Unidos.

    D mesma forma que o conhecimento da produo acadmica dos anos 30 til na compreenso da abordagem de Vygotsky sobre a cognio humana, tambm essencial considerar as condies scio-polticas da Unio Sovitica durante esse tempo. Vygotsky trabalhou numa sociedade onde a cincia era extremamente valorizada e da qual se esperava, em alto grau, a soluo dos prementes problemas sociais e econmicos do povo sovitico. A teoria psicolgica no poderia ser elaborada independentemente das demandas prticas exigidas pelo governo, e o amplo espectro da obra de Vygotsky mostra, claramente, a sua preocupao em produzir uma psicologia que tivesse relevncia para a educao e para a prtica mdica. Para Vygotsky, essa necessidade de desenvolver um trabalho terico aplicado a um contexto no constitua, de forma'alguma, uma contradio. Ele tinha comeado sua carreira como professor de literatura e muitos dos seus primeiros artigos cuidavam de problemas da prtica educacional, particularmente da educao de deficientes mentais e fsicos. Tinha sido um dos fundadores do Instituto de Estudo das Deficincias, em Moscou, ao qual se manteve ligado ao longo de toda a vida. Em estudos de problemas mdicos, tais como cegueira congnita, afasia e retardamento mental severo, Vygotsky viu a oportunidade de entender os processos mentais humanos e de estabelecer programas de tratamento e reabilitao. Dessa forma, estava de acordo com sua viso terica geral desenvolver seu trabalho numa sociedade que procurava eliminar o analfabetismo e elaborar programas educacionais que maximizassem as potencialidades de cada criana.

    A participao de Vygotsky em debates sobre a formulao de uma psicologia marxista envolveu-o em disputas acirradas no fim dos anos 20 e comeo dos 30. Nessas discusses, ideologia, psicologia e linhas de ao estavam intrincadamente ligadas, uma vez que diferentes grupos lutavam pelo direito de representar a psicologia. Com a sada de Kornilov do Instituto de Psicologia, em 1930, Vygotsky e seus colaboradores estiveram no poder por um breve tempo, mas em momento algum ele foi oficialmente reconhecido como lder.

    Nos anos que imediatamente antecederam sua morte, Vygotsky lecionou e escreveu extensamente sobre problemas da educao, usando freqentemente o termo "pedologia", que pode ser grosseiramente traduzido por "psicologia educacional". Pode-se dizer que, em geral, ele era adepto da pedologia que enfatizava os testes de capacidade intelectual padronizada a partir dos testes de QI, que estavam, ento, ganhando evidncia na Europa Ocidental e nos Estados Unidos.

    Era sua ambio reformar a pedologia de acordo com as linhas sugeridas no captulo 6 deste volume, mas sua ambio excedeu em muito suas possibilidades. Por essa concepo, Vygotsky foi erroneamente acusado de defender a aplicao de testes psicolgicos em massa, e tambm criticado como o "grande chauvinista russo", pelo fato de ter sugerido que as populaes iletradas ( como aquelas que vivem em regies no industrializadas na Asia Central) ainda no tinham desenvolvido as capacidades intelectuais associadas civilizao moderna. Dois anos aps sua morte, o Comit Central do Partido Comunista baixou um decreto proibindo todos os testes psicolgicos na Unio Sovitica. Ao mesmo tempo, todas as revistas de psicologia mais importantes deixaram de ser publicadas por quase 20 anos. Um perodo de fermentao intelectual e experimentao chegava ao

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    fim.

    Mas as idias de Vygotsky de forma nenhuma morreram com ele. Mesmo antes de sua morte, ele e seus colaboradores estabeleceram um laboratrio em Kharkov, chefiado inicialmente por A.N.

    Leontiev (atualmente decano da Faculdade de Psicologia na Universidade de Moscou) e posteriormente por A.V. Zaporozhets (atualmente Diretor do Instituto de Educao Pr-Escolar). Luria completou sua formao mdica na segunda metade da dcada de 30 e, a partir da, passou a elaborar seu trabalho pioneiro, mundialmente famoso, no campo do desenvolvimento e da neuropsicologia. Muitos dos primeiros colaboradores de Vygotsky ocupam posies de destaque no Instituto de Estudo das Deficincias e no Instituto de Psicologia, ambos da Academia Sovitica de Cincias Pedaggicas, assim como em departamentos de psicologia das universidades, como o da Universidade de Moscou.

    A simples observao de qualquer compndio sobre a pesquisa psicolgica sovitica mostrar que Vygotsky influenciou e continua a influenciar a pesquisa numa ampla variedade de reas bsicas e aplicadas relacionadas aos processos cognitivos, seu desenvolvimento e sua desintegrao.

    Sua idias no deixaram de ser questionadas, nem mesmo pelos seus colaboradores; no entanto, permanecem como um aspecto vivo do pensamento psicolgico sovitico.

    A utilizao do mtodo experimental por Vygotsky As referncias que Vygotsky faz no texto a experimentos efetuados em seu laboratrio algumas vezes provocam no leitor uma certa inquietao. Ele quase no apresenta os dados brutos, e os resumos so muito gerais. Onde esto os testes estatsticos que dizem se as observaes refletem ou no efeitos "reais"? O que provariam esses estudos? Ser que eles fornecem, de fato, algum suporte s teorias gerais de Vygotsky ou estoria ele, apesar de seu repdio, praticando uma psicologia especulativa sem submeter as suas proposies centrais ao teste emprico? Aqueles que no seu dia a dia esto imersos na metodologia da psicologia experimental, como a praticada na maioria dos laboratrios americanos, certamente tenderiam a retirar o termo "experimento" dos estudos de Vygotsky, considerando-os um pouco mais do que demonstraes interessantes ou estudos-piloto - e de fato o so, em muitos aspectos.

    Achamos, no entanto, que importante ter sempre em mente a natureza dos manuscritos que foram usados como base para este livro. Eles no constituem um relato de uma srie de pesquisas a partir das quais proposies gerais so extrapoladas. Ao invs disso, nesses escritos Vygotsky estava preocupado em apresentar os princpios bsicos de seu mtodo e de sua teoria. Sua referncia ao pouco trabalho emprico a que tinha acesso era feita com o objetivo de ilustrar e apoiar seus princpios. As descries de estudos especficos so esquemticas e os achados so, em geral, apresentados como concluses gerais, e no sob a forma de dados brutos. Alguns dos trabalhos citados foram publicados de forma detalhada pelos seus colaboradores, e poucos so encontrados em ingls. _ A maioria dos estudos, entretanto, foi realizada por seus colaboradores como estudos-piloto, que nunca foram preparados para publicao. O laboratrio de Vygotsky existiu somente durante uma dcada, sendo a sua morte por tuberculose esperada a qualquer momento. As implicaes de sua teoria eram tantas e to variadas, e `o tempo to curto, que toda sua energia concentrou-se em abrir novas linhas de investigao ao invs de perseguir uma linha em particular at esgot-la. Essa tarefa coube aos colaboradores e sucessores de Vygotsky, que adotaram suas concepes das mais variadas maneiras, incorporando-as em novas linhas de pesquisa.(7) Entretanto, o estilo de experimentao nesses ensaios representa mais do que uma resposta s condies de urgncia nas quais eles foram conduzidos. A concepo que Vygotsky tinha de experimentao diferia daquela dos psiclogos americanos, e a compreenso dessas diferenas fundamental para a apreciao adequada da contribuio de Vygotsky psicologia cognitiva contempornea.

    Como qualquer aluno de curso introdutrio psicologia experimental sabe, o propsito de qualquer experimento, como convencionalmente apresentado, determinar as condies que controlar o comportamento. A metodologia deriva desses objetivos: as hipteses experimentais prevem aspectos

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    do estimulo ou da tarefa que determinaro aspectos particulares das respostas; dessa forma, o experimentador procura manter o mximo de controle sobre os estmulos, as tarefas e as respostas, com o objetivo de testar sua previso.

    A quantificao das respostas a base para a comparao entre experimentos e para a extrao de inferncias sobre as relaes de causa e efeito. Em resumo, os experimentos so planejados de modo a produzir um certo desempenho sob condies tais que tornem mximas as suas possibilidades de interpretao.

    Para Vygotsky, o objetivo da experimentao completamente diferente. Os princpios de sua abordagem bsica (apresentada no captulo 5 deste volume) no surgem puramente da crtica metodolgica s prticas experimentais estabelecidas; eles derivam de sua teoria da natureza dos processos psicolgicos superiores e da tarefa rdua de explicao cientfica, em psicologia. Se os processos psicolgicos superiores surgem e sofrem transformaes ao longo do aprendizado e do desenvolvimento, a psicologia s poder compreend-los completamente determinando a sua origem e traando a sua histria. A primeira vista, poderia parecer que tal tarefa exclui o mtodo experimental e requer estudos do comportamento individual por longos perodos de tempo. Mas Vygotsky acreditava (e engenhosamente demonstrou) que ao experimento cabia o importante papel de desvendar os processos que comumente esto encobertos pelo comportamento habitual. Ele escreveu que num experimento adequadamente concebido, o experimentador pode criar processos que "pem mostra o curso real do desenvolvimento de uma determinada funo". Ele chamou esse mtodo de "gentico-experimental", um termo que ele compartilhava com Heinz Werner, um eminente contemporneo, cuja abordagem psicolgica comparada do desenvolvimento era muito bem conhecida de Vygotsky.

    Para que um experimento sirva como meio efetivo para estudar "o curso do desenvolvimento de um, processo" ele deve oferecer o mximo de oportunidades para que o sujeito experimental se engaje nas mais variadas atividades que possam ser observadas, e no apenas rigidamente controladas. Uma tcnica efetivamente usada por Vygotsky, com esse propsito, foi a de introduzir obstculos ou dificuldades na tarefa de forma a quebrar os mtodos rotineiros de soluo de problemas. Por exemplo, no estudo da comunicao infantil e da funo da fala egocntrica, Vygotsky elaborou uma situao tal que requeria da criana um engajamento numa atividade cooperativa com outras crianas que no conseguiam compartilhar sua linguagem (estrangeiras ou surdas). Um outro mtodo utilizado era o de fornecer caminhos alternativos para a soluo do problema, incluindo vrios tipos de materiais (chamados por Vygotsky de "auxiliares externos"), que poderiam ser usados de maneiras diferentes para satisfazer s exigncias do teste. Atravs da observao cuidadosa do uso que as crianas, em diferentes idades e sob diferentes condies de dificuldade, faziam dos auxiliares externos, Vygotsky procurou reconstruir a srie de mudanas nas operaes intelectuais que normalmente se expressam, gradativamente, no curso do desenvolvimento biogrfico da criana. Uma terceira tcnica utilizada era a de colocar a criana frente a uma tarefa que excedesse em muito os seus conhecimentos e capacidades, procurando, com isso, evidenciar o incio rudimentar de novas habilidades.

    Esse procedimento est bem ilustrado nos seus estudos sobre a escrita (captulo 7 ) , em que crianas pequenas recebiam papel e lpis, pedindo-se que fizessem representaes de eventos, pondo mostra assim para o pesquisador a compreenso mais precoce que a criana tem da natureza do simbolismo grfico.

    Com esse conjunto de procedimentos, os dados crticos fornecidos pelo experimento no so o nvel de desempenho como tal, mas os mtodos pelos quais o desempenho atingido.

    Esse contraste entre os trabalhos experimentais convencionais (centrados no desempenho em si) e o trabalho de Vygotsky (preocupado com o processo) tem sua expresso contempornea em estudos recentes de pesquisadores americanos sobre a memria am crianas. Em muitos estudos (inclusive vrios dos nossos) apresentavam-se, para crianas de vrias idades, listas de palavras a serem lembradas e analisava-se o desempenho, medindo-se o nmero de palavras recordadas e a sua ordem. A partir desses indicadores os pesquisadores procuraram inferir se as crianas pequenas engajavam-se ou no, e em que extenso, em atividades organizadoras, como uma estratgia de

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    memria.

    Por outro lado, John Flavell e seus colegas, usando procedimentos muito parecidos com aqueles usados pelos colaboradores de Vygotsky, apresentavam s crianas os elementos a serem lembrados e as instruiam no sentido de fazerem o que quisessem para ajud-las a lembrar.

    Observaram ento as tentativas das crianas para classificar os itens, os tipos de agrupamentos realizados por elas e outros indicadores de sua tendncia a usar estratgias organizativas no processo de lembrana. Da mesma maneira que para Vygotsky, a questo central : o que as crianas esto fazendo? Como elas tentam satisfazer s exigncias da tarefa?

    Associado a isso gostaramos de tornar claro um conceito bsico do mtodo experimental e da abordagem terica de Vygotsky que, acreditamos, tem sido amplamente interpretado de forma incorreta. Em vrios pontos do texto, ao referir-se estrutura do comportamento, Vygotsky usa um termo que ns traduzimos como "medado". As vezes, esse termo acompanhado de um desenho mostrando um estmulo, uma resposta e um "elo de mediao" entre eles ( por exemplo, S-X-R ) . O mesmo termo e virtualmente a mesma forma de representao grfica foram introduzidos nas teorias norte-americanas de aprendizado nos Estados Unidos no final dos anos 30, tornando-se muito popular nos anos 50, na medida em que foram feitas tentativas de estender as teorias baseadas na associao estmulo-resposta do aprendizado a comportamentos humanos complexos, especialmente a linguagem. importante ter sempre em mente que Vygotsky no era um adepto da teoria do aprendizado baseada na associao estmulo-resposta e no era sua inteno que a sua idia de comportamento mediado fosse interpretada nesse contexto.

    O que ele, de fato, tentou transmitir com essa noo que, nas formas superiores do comportamento humano, o indivduo modifica ativamente a situao estimuladora como uma parte do processo de resposta a ela. Foi a totalidade da estrutura dessa atividade produtora do comportamento que Vygotsky tentou descrever com o termo "mediao".

    Vras so as implicaes da abordagem terica e do mtodo experimental de Vygotsky. A primeira que os resultados experimentais podem ser tanto quantitativos como qualitativos. Descries detalhadas, baseadas em observaes cuidadosas, constituem uma parte importante dos achados experimentais. Para alguns, esses achados poderiam parecer meramente anedticos; para Vygotsky, no entanto, tais observaes, se realizadas objetivamente e com rigor cientfico, adquirem status de fato confirmado.

    Uma outra conseqncia dessa nova abordagem experimental a ruptura de algumas das barreiras tradicionais entre os estudos de "laboratrio" e de "campo". Dessa forma, a observao e interveno experimental podem ser executadas numa situao de brinquedo, na escola ou num ambiente clnico, freqentemente to bem quanto ou melhor do que no laboratrio. As observaes sensveis e as intervenes imaginativas relatadas neste livro comprovam essa possibilidade.

    Finalmente, ao invs do mtodo clssico, um mtodo experimental que procura traar a histr:a do desenvolvimento das funes psicolgicas alinha-se melhor com os outros mtodos histricos nas cincias sociais - incluindo a histria da cultura e da sociedade ao lado da histria da criana. Para Vygotsky, os estudos antropolgicos e sociolgicos eram coadjuvantes da observao e experimentao no grande empreendimento de explicar o progresso da conscincia e do intelecto humanos.

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    Nota biogrfica sobre L. S . Vygotsky Lev Semyonovitch Vygotsky nasceu a 5 de novembro de 1896, na cidade de Orsha, no nordeste de Minsk, na Bielo-Rssia. Completou o primeiro grau em 1913, em Gomel, com medalha de ouro.

    Em 1917, aps graduar-se na Universidade de Moscou, com especializao em literatura, comeou sua pesquisa literria.

    De 1917 a 1923, Vygotsky lecionou literatura e psicologia numa escola em Gomel, onde dirigia tambm a seo de teatro do centro de educao de adultos, alm de dar muitas palestras sobre os problemas da literatura e da cincia. Durante esse perodo, Vygotsky fundou a revista literria Verask. Foi a que publicou sua primeira pesquisa em literatura, mais tarde reeditada com o ttulo de A Psicologia da Arte. Tambm criou um laboratrio de psicologia no Instituto de Treinamento de Professores, onde dava um curso de psicologia, cujo contedo foi publicado mais tarde, na revista Psicologia Pedaggica.

    Em 1924, Vygotsky mudou-se para Moscou, trabalhando primeiro no Instituto de Psicologia, e depois no Instituto de Estudos das Deficincias, por ele criado. Ao mesmo tempo, dirigiu um departamento de educao de crianas deficientes fsicas e retardadas mentais, em Narcompros ( Comits Populares de Educao), alm de dar cursos na Academia Krupskaya de Educao Comunista, na Segunda Universidade Estadual de Moscou (posteriormente chamada de Instituto Pedaggico Estadual de Moscou) e no Instituto Pedaggico Hertzen, em Leningrado. Entre 1925 e 1934, Vygotsky reuniu em torno de si um grande grupo de jovens cientistas, que trabalhavam nas reas da psicologia e no estudo das a,normalidades fsicas e mentais. Simultaneamente, o interesse pela medicina levou Vygotsky a fazer o curso de rnedicina, primeiro no Instituto Mdico, em Moscou, e posteriormente em Kharkov, onde tambm deu um curso de psicologia na Academia de Psiconeurologia da Ucrnia. Um pouco antes de sua morte, Vygotsky foi convidado para dirigir o departamento de psicologia no Instituto Sovitico de Medicina Experimental. Morreu de tuberculose em 11 de junho de 1934.

    A. R. Luria

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    PRIMEIRA PARTE Teoria bsica e dados experimentais 1. O instrumento e o smbolo no desenvolvimento da criana O propsito primeiro deste livro caracterizar os aspectos tipicamente humanos do comportamento e elaborar hipteses de como essas caractersticas se formaram ao longo da histria humana e de como se desenvolvem durante a vida de um indivduo.

    Essa anlise se preocupar com trs aspectos fundamentais:

    (1) Qual a relao entre os seres humanos e o seu ambiente fsico e social? (2) Quais as formas novas de atividade que fizeram com que o trabalho fosse o meio fundamental de relacionamento entre o homem e a natureza e quais so as conseqncias psicolgicas dessas formas de atividade? (3) Qual a natureza das relaes entre o uso de instrumentos e o desenvolvimento da linguagem? Nenhuma dessas questes tem sido adequadamente tratada pelos estudiosos preocupados com a eompreenso da psicologia humana e animal.

    Karl Stumpf, um eminente psiclogo alemo do comeo do sculo XX, baseou seus estudos num conjunto de premissas completamente diferentes daquelas que empregarei aqui_. Comparou o estudo das crianas botnica, enfatizando o carter botnico do desenvolvimento, que ele ssociava maturao do organismo como um todo.

    O fato, no entanto, que a maturao per se um fator secundrio no desenvolvimento das formas tpicas e mais complexas do comportamentn humano. O desenvolvimento desses comportamentos caracteriza-se por transformaes complexas, qualitativas, de uma forma de comportamento em outra (ou como Hegel diria, uma transformao de quantidade em qualidade). A noo corrente de maturao como um processo passivo no pode descrever, de forma adequada, os fenmenos complexos. Apesar disso, como A. Gesell acertadamente apontou, continuamos ainda a utilizar a analogia botnica em nossa descro do desenvolvimento infantil (or exemplo, dizemos que os primeiros anos de educao de uma criana ocorrem no "jardim de infncia"). Atualmente, vrios psiclogos tm sugerido que esse paradigma botnico seja abandonado.

    Em resposta a essa crtica, a psicologia moderna subiu um degrau na explicao cientfica adotando modelos zoolgicos como base de uma nova abordagem geral na compreenso do desenvolvimento infantil. De prisioneira da botnica, a psicologia infantil torna-se, agora, encantada pela zoologia. As observaes em que esses modelos se baseiam provm quase que inteiramente do reino animal, e as tentativas de respostas para as questes sobre as crianas so procuradas na experimentao animal. Observa-se que tanto os resultados dessa experimentao, como o prprio procedimento para obt-los, esto sendo transpostos dos laboratrios de experimentao animal para as creches.

    Essa convergncia entre a psicologia animal e a psicologia da criana contribuiu de forma importante para o estudo das bases biolgicas do comportamento humano. Muitos pontos de unio entre o comportamento animal e o da criana tm sida estabelecidos, em particular no estudo dos processos psicolgicos elementares. Como conseqncia, no entanto, surge um paradoxo.

    Quando estava em moda o paradigma botnico, os psiclogos enfatizavam o carter singular das funes psicolgicas superiores e da dificuldade de estud-los por mtodos experimentais. Porm, a abordagem zoolgica dos processos intelectuais superiores aqueles que so caracteristicamente humanos - levou os psiclogos a interpret-los no mais como algo singular e sim como uma extenso direta dos processos correspondentes nos animais inferiores. Essa maneira de teorizar aparece particularmente na anlise da inteligncia prtica das crianas, cujo aspecto mais importante o uso de instrumentos.

    A inteligncia prtica nos animais e nas crianas

    No estudo da inteligncia prtica particularmente importante o trabalho de Wolfgang Kohler (3). Muitos dos seus experimentos foram feitos com macacos antropides, durante a Primeira Guerra

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    Mundial e, por vezes, ele comparou algumas de suas observaes do comportamento de chimpanzs com alguns particulares de respostas em crianas. Essa analogia direta entre a inteligncia prtica na criana e respostas similares apresentadas por macacos tornou-se o princpio-guia do trabalho experimental nesse campo.

    A pesquisa de K. Buhler procurou, tambm, estabelecer similaridades entre crianas e macacos antropides (4). Ele estudou a apreenso manual de objetos por crianas pequenas, sua capacidade de usar vias alternativas quando da consecuo de um objetivo e o uso que elas fazem de instrumentos primitivos. Essas observaes, juntamente com o seu experimento clssico no qual solicitava a crianas pequenas que tirassem um anel de um basto, ilustram uma abordagem muito parecida com a de Kohler. Buhler considerava que as manifestaes de inteligncia prtica em crianas eram exatamente do mesmo tipo daquelas conhecidas em chimpanzs. De fato, h uma fase na vida da criana que Buhler chamou de "idade de chimpanz" (p. 48). Uma criana que ele estudou com dez meses de idade foi capaz de puxar um cordo para obter um biscoito amarrado a ele. A capacidade de retirar um anel de um basto, deslizando-o verticalmente, ao invs de tentar pux-lo lateralmente, no aparece at a metade do segundo ano de vida. Embora esses experimentos tenham sido interpretados como um apoio para a analogia entre crianas e macacos, tambm fizeram com que Buhler descobrisse, como ser explicado em sees posteriores, que o incio da inteligncia prtica na criana (que ele chamava de "raciocnio tcnico"), assim como no chimpanz, independente da fala.

    As observaes detalhadas de crianas durante o primeiro ano de vida, feitas por Charlotte Buhler, vieram apoiar essa concluso". C. Buhler j encontrou as primeiras manifestaes de inteligncia prtica em crianas de 6 meses de idade. Entretanto, no somente o uso de instrumentos que se desenvolve nesse ponto da histria de uma criana; desenvolvem-se tambm os movimentos sistemticos, a percepo, o crebro e as mos - na verdade, o seu organismo inteiro. Em conseqncia, o sistema de atividade da criana determinado em cada estgio especfico, tanto pelo seu grau de desenvolvimento orgnico quanto pelo grau de domnio no uso de instrumentos.

    Foi K. Buhler quem estabeleceu o princpio, importante para o estudo do desenvolvimento, de que os primeiros esboos da fala inteligente so precedidos pelo raciocnio tcnico e este costitui a fase inicial do desenvolvimento cognitivo. A sua nfase nos aspectos do comportamento das crianas semelhantes aos do chimpanz tem sido seguida por outros. na extrapolao dessa idia que os perigos dos modelos zoolgicos e de analogias entre os comportamentos humano e animal encontram sua mais clara expresso. So insignificantes as possibilidades de erro em pesquisas sobre o perodo pr-verbal do desenvolvimento infantil, como as feitas por Buhler. No entanto, as suas concluses, extradas de seu trabalho com crianas muito pequenas, so questionveis, articularmente a sua afirmao de que "os sucessos obtidos pelos chimpanzs so completamente independentes da linguagem e, no caso do ser humano, mesmo mais tardiamente na vida, o raciocnio tcnico ou o raciocnio em termos de instrumentos, est longe de vincular-se linguagem e a conceitos, diferentemente de outras formas de raciocnio". (7) Buhler partiu do pressuposto de que as relaes entre a inteligncia prtica e a fala que caracterizam a criana de dez meses de idade permanecem intactas por toda a vida. Essa anlise, postulando a independncia entre ao inteligente e fala, ope-se diretamente aos nossos achados, que, ao contrrio, revelam uma integrao entre fala e raciocnio prtico ao longo do desenvolvimento.

    Shapiro e Gerke oferecem uma anlise importante do desenvolvimento do raciocnio prtico em crianas, baseando-se em experimentos inspirados nos estudos de Kohler sobre soluo de problemas por chimpanzs. Afirmam que o raciocnio prtico da criana apresenta alguns pontos semelhantes com o pensamento adulto, diferindo em outros, alm de enfatizarem o papel dominante da experincia social no desenvolvimento humano. De acordo com sua viso, a experinzia social exerce seu papel atravs do processo de imitao; quando a criana imita a forma pela qual o adulto usa instrumentos e manipula objetos ela est dominando o verdadeiro princpio envolvido numa atividade particular. Eles sugerem que as aes, quando repetidas, acumulam-se, umas sobre as oufras sbrepondo-se como numa fotografia de exposio mltipla; os traos comuns tornam-se ntidos e as diferenas tornam-se borradas. O resultado a cristalizao de um esquema, um princpio definido de atividade. A criana, medida que se torna mais experiente, adquire um nmero cada vez maior de modelos que ela compreende. Esses modelos representam um esquema cumulativo

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    refinado de todas as aes similares, ao mesmo tempo que constituem um plano preliminar para vrios tipos possveis de ao a se realizarem no futuro.

    Entretanto, essa noo de adaptao de Shapiro e Gerke est por demais ligada concepo mecanicista de repetio. Para eles, experincia social cabe somente o papel de prover a criana com esquemas motores; no levam em considerao as mudanas que ocorrem na estrutura interna das operaes intelectuais da criana. Na sua descrio dos processos infantis de soluo de problemas, no entanto, os autores so forados a assinalar "um papel especial preenchido pela fala" nos esforos adaptativos e prticos da criana em crescimento. Mas a sua descrio desse papel um pouco estranha. "A fala", dizem eles, "compensa e substitui a adaptao real; ela no serve como elemento de ligao com a experincia passada, servindo, simplesmente a uma adaptao puramente social que atingida atravs do experimentador". Essa anlise no leva em conta a contribuio da fala para o desenvolvimento de uma nova organizao estrutural da atividade prtica.

    Guillaume e Meyerson oferecem-nos concluses diferentes quanto ao papel da fala na gerao das formas tipicamente humanas de comportamento". A partir de seus experimentos extremamente interessantes sobre o uso de instrumentos entre os macacos antropides, eles concluram que os mtodos utilizados por esses animais para realizar uma determinada tarefa so similares em princpio, e coincidem, em certos pontos essenciais, com aqueles usados por pessoas afsicas (isto , indivduos privados da fala). Seus achados apiam minha suposio de que a fala tem um papel essencial na organizao das funes psicolgicas superiores (10).

    Esses exemplos experimentais levam-nos de volta ao comeo de nossa reviso das teorias psicolgicas do desenvolvimento infantil. Os experimentos de Buhler indicam que a atividade prtica da criana pequena, antes do desenvolvimento da fala, idntica quela de macacos antropides, e Guillaume e Meyerson sugerem que o comportamento desses animais semelhante quele observado em pessoas privadas da fala. Ambas as linhas de trabalho levam-nos a focalizar nossa ateno sobre a importncia de compreender a atividade prtica das crianas quando na idade de comear a falar. Meu trabalho, assm como de meus colaboradores, est dirigido para esses mesmos problemas. No entanto, nossas premissas diferem daquelas dos pesquisadores citados acima.

    Nossa preocupao primeira descrever e especificar o desenvolvimento daquelas formas de inteligncia prtica especificamente humanas.'

    A relao entre a fala e o uso de instrumentos

    Em seus experimentos clssicos com macacos, Kohler demonstrou a inutilidade da tentativa de se desenvolver em animais as formas mais elementares de operaes com signos e simblicas.

    Ele concluiu que o uso de instrumentos entre macacos antropides independente da atividade simblica. Tentativas adicionais de desenvolver uma fala produtiva nesses animais produziram, tambm, resultados negativos. Esses experimentos mostraram, uma vez ma,is, que o comportamento propositado dos animais independe da fala ou de qualquer atividade utilizadora de signos.

    O estudo do uso de instrumentos isolado do uso de signos, habitual em trabalhos de pesquia sobre a histria natural do intelecto prtico, assim como no pro_edimento de psiclogos que estudaram o desenvoTvimento dos processos simblicos na criana: Conseqentemente, a origem e o desenvolvimento da fala e de todas as outras atividades que usam signos foram tratados como independentes da organizao da atividade prtica na criana. Os psiclogos preferiram estudar o desenvolvimento do uso de signos como um exemplo de intelecto puro, e no como o produto da histria do desenvolvimento da criana. Freqentemente atribuiram o uso de signos descoberta espontnea, pela criana, da relao entre signos e seus significados. Como W. Stern zfirmava, o reconhecimento do fato de que esses signos verbais tm significado constitui "a maior descoberta da vida da criana" (11). Vrios autores localizam esse "momento" feliz na transio entre o primeiro e o segundo ano, considerando-o como produto da atividade mental da criana. Um exame detalhado do desenvolvimento da fala e de outras formas de uso de signos era considerado desnecessrio. Ao invs disso, tem-se admitido que a mente da criana contm todos os estgios do futuro desenvolvimento

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    intelectual; eles existem j na sua forma completa, esperando o momento adequado para emergir.

    Assumia-se no somente que inteligncia prtica e fala tinham origens diferentes, como tambm considerava-se a sua participao conjunta em operaes comuns como no tendo importncia psicolgica bsica ( como no trabalho de Shapiro e Gerke ). Mesmo quando o uso de instrumentos e a fala estavam intimamente ligados numa determinada operao, eles eram estudados como processos separados e pertencentes a duas classes completamente diferentes de fenmenos. Na melhor das hipteses, a sua ocorrncia simultnea era considerada como uma conseqncia de fatores externos fortuitos.

    Tanto os estudiosos da inteligncia prtica como os estudiosos do desenvolvimento da fala freqentemente no reconhecem o embricamento entre essas duas funes. Conseqentemente, o comportamento adaptativo das crianas e a atividade de uso de signos so tratados como fenmenos paralelos - uma viso que leva ao conceito de fala "egocntrica" de Piaget (12). Ele no atribui papel importante fala na organizao da atividade infantil, como tambm no enfatiza suas funes de comunicao, embora seja obrigado a admitir sua importncia prtica.

    Embora a inteligncia prtica e o uso de signos possam operar independentemente em crianas pequenas, a unidade dialtica desses sistemas no adulto humano constitui a verdadeira essncia no comportamento humano complexo. Nossa anlise atribui atividade simblica uma funo organizadora especfica que invade o processo do uso de instrumento e produz formas fundamentalmente novas de comportamento.

    A interao social e a transformao da atividade prtica

    Tomando por base a discusso apresentada na seo anterior e ilustrada pelo trabalho experimental a ser descrito a seguir, pode-se tirar a seguinte concluso: o momento de maior significado no curso do desenvolvimento inteLectual, que d origem s formas puramente humanas de inteligncia prtica e abstrata, acontece quando a fala e a atividade prtica, ento duas linhas completamente independentes de desenvolvimento, convergem.

    Embora o uso de instrumentos pela criana durante o perodo pr-verbal seja comparvel quele dos macacos antropides, assim que a fala e o uso de signos so incorporados a qualquer ao, esta se transforma e se organiza ao longo de linhas inteiramente novas. Realiza-se, assim, o uso de instrumentos especificamente humano, indo alm do uso possvel de instrumentos, mais limitado, pelos animais superiores.

    Antes de controlar o prprio comportamento, a criana comea a controlar o ambiente com a ajuda da fala. Isso produz novas relaes com o ambiente, alm de uma nova organizao do prprio comportament. A criao dessas formas caracteristicamente humanas de comportamento produz, mais tarde, o intelecto, e constitui a base do trabalho produtivo: a forma especificamente humana do uso de instrumentos.

    A observao de crianas numa situao similar quela dos macacos de Kohler mostra que elas no s6 agem na tentativa de atingir seu objetivo como tambm falam. Como regra, essa fala surge espontaneamente e continua quase sem interrupo por todo o experimento. Ela aumenta em intensidade e torna-se mais persistente toda vez que a situao se torna mais complicada e o objetivo mais difcil de ser atingido. Qualquer tentativa de bloque-la (como mostraram os experimentos do meu colaborador R.E. Levina) ou intil ou provoca uma "paralisao" da criana.

    Levina props alguns problemas prticos para crianas de 4 e 5 anos, como, por exemplo, pegar um doce num armrio. O doce estava fora do alcance direto da criana. medida que a criana se envolvia cada vez mais na tentativa de obter o doce, a fala "egocntrica" comeava a manifestar-se como parte de seu esforo ativo. Inicialmente, a verbalizao consistia na descrio e anlise da situao, adquirindo, aos poucos o carter de "planejamento", expressando possveis caminhos para a soluo do problema. Finalmente, ela passava a ser includa como parte da prpria soluo. Por exemplo, pediu-se a uma menina de quatro anos e meio que pegasse o doce usando como possveis instrumentos um banco e uma vara. A descrio de Levina a seguinte:

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    (parada ao lado de um banco, olhando e, com a vara, tentanto sentir algo sobre o armrio.) "Subir no banco." (Olha para o experimentador, muda a vara de mo. ) "Aquilo mesmo um doce?" (Hesita.) "Eu posso peg-lo com aquele outro banco, subo e pego." (Pega o outro banco.) "No, no d. Eu poderia usar a vara." (Pega a vara e esbarra no doce. ) "Ele vai se mexer agora." (Acerta o doce.) "Moveu-se, eu no consegui.peg-lo com o banco, mas a vara funcionou." (13) Nessas circunstncias parece que natural e necessrio para a criana falar enquanto age.

    No nosso laboratrio observamos que a fala no s acompanha a atividade prtica como, tambm, tem um papel especfico na sua realizao. Nossos experimentos demonstraram dois fatos importantes:

    (1) A fala da criana to importante quanto a ao para atingir um objetivo. As crianas no ficam simplesmente falando o que elas esto fazendo; sua fala e ao fazem parte de uma mesma funo psicolgica complexa, dirigida para a soluo do problema em questo.

    (2) Quanto mais complexa a ao exigida pela situao e menos direta a soluo, maior a importncia que a fala adquire na operao como um todo. As vezes a fala adquire uma importncia to vital que, se no for permitido seu uso, as crianas pequenas no so capazes de resolver a situao.

    Essas observaes me levam a concluir que as crianas resolvem suas tarefas prticas com a ajuda da fala, assim como dos olhos e das mos. Essa unidade de percepo, fala e ao, que, em ltima instncia, provoca a internalizao do campo visual, constitui o objeto central de qualquer anlise da origem das formas caracteristicamente humanas de comportamento.

    Para desenvolver o primeiro desses pontos devemos indagar: o que realmente distingue as aes de uma criana que fala das aes de um macaco antropide, na soluo de problemas prticos?

    A primeira coisa que impressiona o experimentador a liberdade incomparavelmente maior das operaes das crianas, a sua maior independncia em relao estrutura da situao visual concreta. As crianas, com a ajuda da fala, criam maiores possibilidades do que aquelas que os macacos podem realizar com a ao. Uma manifestao importante dessa maior flexibilidade que a criana capaz de ignorar a linha direta entre o agente e o objetivo. Ao invs disso, ela se envolve em vrios atos preliminares, usando o que chamamos de mtodos instrumentais ou mediados (indiretos). No processo de soluo de um problema a criana capaz de incluir estmulos que no esto contidos no seu campo visual imediato. Usando palavras (uma classe desses estmulos) para criar um plano de ao especfico, a criana realiza uma variedade muito maior de atividades, usando como instrumentos no somente aqueles objetos mo, mas procurando e preparando tais estmulos de forma a torn-los teis para a soluo da questo e para o planejamento de aes futuras.

    Em segundo lugar, as operaes prticas de uma criana que pode falar tornam-se muito menos impulsivas e espontneas do que as dos macacos. Esses, tipicamente, realizam uma srie de tentativas descontroladas de resolver o problema em questo. Diferentemente. a criana que usa a fala divide sua atividade em duas partes consecutivas. Atravs da fala, ela planeja como solucionar o problema e ento executa a soluo eiaborada atravs de uma atividade visvel. A manipulao direta substituda por um processo psicolgico complexo atravs do qual a motivao interior e as intenes, postergadas no tempo, estimulam o seu prprio desenvolvimento e realizao. Essa forma nova de estrutura psicolgica no existe nos macacos antropides, nem mesmo em formas rudimentares.

    Finalmente, muito importante observar que a fala, alm de facilitar a efetiva manipulao de objetos pela criana, controla, tambm, o comportamento da prpria criana. Assim, com a ajuda da fala, as crianas, diferentemente dos macacos, adquirem a capacidade de ser tanto sujeito como objeto de seu prprio comportamento.

    A investigao experimental da fala egocntrica de crianas envolvidas em atividades, como quelas descritas por Levina, produziu o segundo fato de grande importncia demonstrado por nossos experimentos: a quantidade relativa de fala egocntrica, medida pelo mtodo de Piaget, aumenta em relao direta com a dificuldade do problema prtico enfrentado pela criana (14). Tomando por base esses experimentos, eu e meus colaboradores desenvolvemos a hiptese de que a fala egocntrica das

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    crianas deve ser vista como uma forma de transio entre a fala exterior a interior. Funcionalmente, a fala egocntrica a base para a fala interior, enquanto que na sua forma externa est includa na fala comunicativa.

    Uma maneira de aumentar a produo de fala egocntrica complicar a tarefa de tal forma que a criana no possa usar, de forma direta, os instrumentos para solucion-la. Diante de tal desafio, aumenta o uso emocional da iinguagem pelas crianas, assim como aumentam seus esforos no sentido de atingir uma soluo mais inteligente, menos automtica. Elas procuram verbalmente um novo plano de ao, e a sua verbalizao revela a conexo ntima entre a fala egocntrica e a socializada. Isso melhor notado quando o experimentador deixa a sala ou no responde aos apelos de ajuda das crianas. Uma vez impossibilitadas de se engajar numa fala social, as crianas, de imediato, envolvem-se na fala egocntrica.

    Enquanto nessa situao a inter-relao dessas duas funes da linguagem evidente, importante lembrar que a fala egocntrica est ligada fala social das crianas atravs de muitas formas de transio. O primeiro exemplo significativo dessa ligao entre essas duas funes da lingugem o que ocorre quando as crianas descobrem que so incapazes de resolver um problema por si mesmas. Dirigem-se ento a um adulto e, verbalmente, hescrevem o mtodo que, sozinhas, no foram capazes de colocar em ao. A maior mudana na capacidade das crianas para usar a linguagem como um instrumento para a soluo de problemas acontece um pouco mais tarde no seu desenvolvimento, no momento em que a fala socializada (que foi previamente utilizada para dirigir-se a um adulto) internalizada. Ao invs de apelar para o adulto, as crianas passam a apelar a si mesmas; a linguagem passa, assim, a adquirir uma funo intrapessoal alm do seu uso interpessoal. No momento em que as crianas desenvolvem um mtodo de comportamento para guiarem a si mesmas, o qual tinha sido usado previamente em relao a outra pessoa, e quando elas organizam sua prpria atividade de acordo com uma forma social de comportamento, conseguem, com sucesso, impor a si mesmas uma atitude social. A histria do processo de internalizao da jala social tambm a histria da socializao do intelecto prtico das crianas.

    A relao entre fala e ao dinmica no decorrer do desenvolvimento das crianas. A relao estrutural pode mudar mesmo durante um experimento. A mudana crucial ocorre da seguinte maneira: num primeiro estgio, a fala acompanha as aes da criana e reflete as vicissitudes do processo de soluo do problema de uma forma dispersa e catica. Num estgio posterior, a fala desloca-se cada vez mais em direo ao incio desse processo, de modo a, com o tempo, vreceder a ao. Ela funciona, ento, como um auxiliar de um plano j concebido mas no realizado, ainda, a nvel comportamental. Uma analogia interessante pode ser encontrada na fala das crianas enquanto desenham (veja, tambm, o captulo 8).

    As crianas pequenas do nome a seus desenhos somente aps complet-los; elas tm necessidade de vlos antes de decidir o que eles so. medida que as crianas se tornam mais velhas, elas adquirern a capacidade de decidir previamente o que vo desenhar. Esse deslocamento temporal do processo de nomeao significa uma mudana na funo da fala.

    Inicialmente a fala segue a ao, sendo provocada e dominada pela atividade. Posteriormente, entretanto, quando a fala se desloca para o incio da atividade, surge uma nova relao entre palavra e ao. Nesse instante a fala dirige, determina e domina o curso da ao; surge a funo vlanejadora da fala, alm da funo j existente da linguagem, de refletir o mundo exterior (15).

    Assim como um molde d forma a uma substncia, as palavras podem moldar uma atividade dentro de uma determinada estrutura. Entretanto, essa estrutura pode, por sua vez, ser mudada e reformada quando as crianas aprendem a usar a linguagem de um modo que lhes permita ir alm das experincias prvias ao planejar uma ao futura. Em contraste com a noo de descoberta sbita, popularizada por Stern, concebemos a atividade intelectual verbal como uma srie de estgios nos quais as funes emocionais e comunicativas da fala so ampliadas pelo acrscimo da funo planejadora. Como resultado a criana adquire a capacidade de engajar-se em operaes complexas dentro de um universo temporal.

    Diferentemente dos macacos antropides, que, segundo Kohler, so "os escravos do seu prprio

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    campo de viso", as crianas adquirem independncia em relao ao seu ambiente concreto imediato; elas deixam de agir em funo do espao imediato e evidente. Uma vez que as crianas aprendem a usar, efetivamente, a funo planejadora de sua linguagem, o seu campo psicolgico muda radicalmente. Uma viso do futuro , agora, parte integrante de suas abordagens ao ambiente imediato. Em captulos subseqentes, descreverei com mais detalhes o desenvolvimento de algumas dessas funes psicolgicas centrais.

    Resumindo o que foi dito at aqui nesta seo: a capacitao especificamente humana para a linguagem habilita as crianas a providenciarem instrumentos auxiliares na soluo de tarefas difceis, a superar a ao impulsiva, a planejar uma soluo para um problema antes de sua execuo e a controlar seu prprio comportamento. Signos e palavras constittzem para as crianas, primeiro e acima de tudo, um meio de contato social com outras pessoas. As funes cognitivas e comunicativas da linguagem tornam-se, ento, a base de uma forma nova e superior de atividade nas crianas, distinguindo-as dos animais.

    As mudanas que descrevi no ocorrem de maneira unidimensional e regular. Nossa pesquisa mostrou que crianas muito pequenas solucionam problemas usando uma combinao singular de processos. Em contraste com os adultos, que reagem diferentemente a objetos e a pessoas, as crianas pequenas muito provavelmente fundiro ao e fala em resposta tanto a objetos quanto a seres sociais. Essa fuso da atividade anloga ao sincretismo na percepo, descrito por muitos psiclogos do desenvolvimento.

    A irregularidade qual estou me referindo claramente observada numa situao em que crianas pequenas, quando incapazes de resolver facilmente o problema colocado, combinam tentativas diretas de obter o fim desejado com uma confiana e dependncia na fala emocional. s vezes, a fala expressa os desejos da criana; outras vezes, ela adquire o papel de substituto para o ato real de atingir o objetivo. A criana pode tentar solucionar o problema atravs de formulaec verbais e por apelos ao experimentador. Essa combinao de diferentes formas de atividades parecia-nos, a princpio, confusa; no entanto, observaes adicionais direcionaram nossa ateno para uma seqncia de aes que tornou claro o significado do comportamento das crianas em tais circunstncias. Por exemplo, aps realizar vrias aes inteligentes e inter-relacionadas que poderiam ajud-la a solucionar com sucesso um determinado problema, subitamente a criana, ao defrontar-se com uma dificuldade, cessa todas as tentativas e pede ajuda ao experimentador. Qualquer obstculo aos esforos da criana para solucionar o problema pode interromper sua atividade. O apelo verbal da criana a outra pessoa constitui um esforo para preencher o hiato que a sua atividade apresentou.

    Ao fazer uma pergunta, a criana mostra que, de fato, formulou um plano de ao para solucionar o problema em questo, mas que incapaz de realizar todas as operaes necessrias.

    Atravs de experincias repetidas, a criana aprende, de forma no expressa (mentalmente), a planejar sua atividade. Ao mesmo tempo ela requisita a assistncia de outra pessoa, de acordo com as exigncias do problema proposto. A capacidade que a criana tem de controlar o comportamento de outra pessoa torna-se parte necessria de sua atividade prtica.

    Inicialmente, esse processo de soluo do problema em conjunto com outra pessoa no diferenciado pela criana no que se refere aos papis desempenhados por ela e por quem a ajuda; constitui um todo geral e sincrtico. Mais de uma vez observamos que, durante o processo de soluo de um problema, as crianas se confundem, porque comeam a fundir a lgica do que elas esto fazendo com a lgica necessria para resolver o problema com a cooperao de outra pessoa. Algumas vezes a ao sincrtica se manifesta quando as crianas constatam a ineficcia total dos seus esforos diretos para solucionar o problema. Como no exemplo mostrado no trabalho de Levina, as crianas se dirigem para os objetos de sua ateno tanto com palavras como com o instrumento, determinando a unio fundamental e nseparvel entre fala e ao na atividade da criana; essa unio torna-se particularmente clara quando comparada com a separao desses processos nos adultos.

    Em resumo, quando as crianas se confrontam com um problema um pouco mais complicado para elas, apresentam uma variedade complexa de respostas que incluem:

    tentativas diretas de atingir o objetivo, uso de instrumentos, fala dirigida pessoa que.conduz o

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    experimento ou fala que simplesmente acompanha a ao e apelos verbais diretos ao objeto de sua ateno.

    Quando analisado dinamicamente, esse amlgama de fala e ao tem uma funo muito especfica na histria do desenvolvimento da criana;

    demonstra, tambm, a lgica da sua prpria gnese. Desde os primeiros dias do desenvolvimento da criana, suas atividades adquirem um significado prprio num sistema de comportamento social e, sendo dirigidas a objetivos definidos, so refratadas atravs do prisma do ambiente da criana. O caminho do objeto at a criana e desta at o objeto passa atravs de outra pessoa. Essa estrutura humana complexa o produto de um processo de desenvolvimento profundamente enraizado nas ligaes entre histria individual e histria social.

    2 - O desenvolvimento da percepo e da ateno

    A relao entre o uso de instrumentos e a fala afeta vrias funes psicolgicas, em particular a percepo, as operaes sensrio-motoras e a ateno, cada uma das quais parte de um sistema dinmico de comportamento. Pesquisas experimentais do desenvolvimento indicam que as conexes e relaes entre funes constituem sistemas que se modificam, ao longo do desenvolvimento da criana, to radicalmente quanto as prprias funes individuais. Considerando uma das funes de cada vez, examinarei como a fala introduz mudanas qualitativas na sua forma e na sua relao com as outras funes.

    O trabalho de Kohler enfatizou a importncia da estrutura do campo visual na organizao do comportamento prtico de macacos antropides. A totalidade do processo de soluo de problemas foi, essencialmente, determinada pela percepo. Quanto a isso, Kohler tinha muitas evidncias para acreditar que esses animais eram muito mais limitados pelo seu campo sensorial do que os adultos humanos. So incapazes de modificar o seu campo sensorial atravs de um esforo voluntrio. De fato, talvez fosse til encarar como regra geral a dependncia de todas as formas naturais de percepo em relao estrutura do campo sensorial.

    Entretanto, a percepo de uma criana, porque ela um ser humano, no se desenvolve como uma continuidade direta e aperfeioada das formas de percepo anirnal, nem mesmo daqueles animais que esto mais prximos da espcie humana. Experimentos realizados para esclarecer esse problema, levaram-nos a descobrir algumas leis bsicas que caracterizam as formas humanas superiores de percepo.

    O primeiro conjunto de experimentos relacionou-se aos estgios do desenvolvimento da percepo de figuras pelas crianas.

    Experimentos similares, descrevendo aspectos especficos da percepo em crianas pequenas e sua dependncia de mecanismos psicolgicos superiores, foram realizados anteriormente por Binet, e analisados em detalhe por Stern (1). Ambos observaram que a maneira pela qual crianas pequenas descrevem uma figura difere em estgios sucessivos de seu desenvolvimento. Uma criana com dois anos de idade, comumente limita sua descrio a objetos isolados dentro do conjunto da figura. Crianas mais velhas descrevem aes e indicam as relaes complexas entre os diferentes objetos de uma figura. A partir dessas observaes, Stern nferiu que o estgio em que as crianas percebem objetos isolados precede o estgio em que elas percebem aes e relaes, alm dos prprios objetos, ou seja, quando elas so capazes de perceber a figura como um todo. Entretanto, vrias observaes psicolgicas sugerem que os processos perceptivos da criana so inicialmente fundidos e s mais tarde se tornam mais diferenciados.

    Ns solucionamos a contradio entre essas duas posies atravs de um experimento que replicava o estudo de Stern sobre as descries de figuras por crianas. Nesse experimento pedamos s crianas que procurassem comunicar o contedo de uma figura sem usar a fala.

    Sugeramos que a descrio fosse feita por mmica. A criana com dois anos de idade, que, de acordo com o esquema de Stern, ainda est na fase do desenvolvimento da percepo de "objetos" isolados,

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    percebe os aspectos dinmicos da figura e os reproduz com facilidade por mmica. O que Stern entendeu ser uma caracterstica das habilidades perceptuais da criana provou ser, na verdade, um produto das limitaes do desenvolvimento de sua linguagem ou, em outras palavras, um aspecto de sua perceloo verbalizada.

    Um conjunto de observaes correlatas revelou que a rotulao a funo primria da fala nas crianas pequenas. A rotulao capacita a criana a escolher um objeto especfico, isollo de uma situao global por ela percebida simultaneamente; entretanto, a criana enriquece suas primeira palavras com gestos muito expressivos, que compensam sua dificuldade em comunicar-se de forma inteligvel atravs da linguagem. Pelas palavras, as crianas isolam elementos individuais, superando, assim, a estrutura natural do campo sensorial e formando novos (introduzidos artificialmente e dinmicos) centros estruturais. A criana comea a percebez- o mundo no somente atravs dos olhos, mas tambm atravs da fala. Como resultado, o imediatismo da percepo "natural" suplantado por um processo complexo de mediao; a fala como tal torna-se parte essencial do desenvolvimento cognitivo da criana.

    Mais tarde, os mecanismos intelectuais relacionados fala adquirem uma nova funo; a percepo verbalizada, na criana, no mais se limita ao ato de rotular. Nesse estgio seguinte do desenvolvimento, a fala adquire uma funo sintetizadora, a qual, por sua vez, instrumental para se atingirem formas mais complexas da percepo cognitiva. Essas mudanas conferem percepo humana um carter inteiramente novo, completamente distinto dos processos anlogos nos animais superiores.

    O papel da linguagem na percepo surpreendente, dadas as tendncias opostas implcitas na natureza dos processos de percepo visual e da linguagem. Elementos independentes num campo visual so percebidos simultaneamente; nesse sentido, a percevo visual integral. A fala, por outro lado, requer um processamento seqencial. Os elementos, separadamente, so rotulados e, ento, conectados numa estrutura de sentena, tornando a fala essencialmente analitica.

    Nossa pesquisa mostrou que, mesmo nos estgios mais precoces do desenvolvimento, linguagem e percepo esto ligadas. Na soluo de problemas no verbais, mesmo que o problema seja resolvido sem a emisso de nenhum som, a linguagem tem um papel no resultado. Esses achados substanciam a tese da lingstica psicolgica, como a formulada muitos anos atrs por A. Potebnya, que defendia a inevitvel interdependncia entre o pensamento humano e a linguagem (2).

    Um aspecto especial da percepo humana - que surge em idade muito precoce - a percevo de objetos reais. Isso algo que no encontra correlato anlogo na percepo animal. Por esse termo eu entendo que o mundo no visto simplesmente em cor e forma, mas tambm como um mundo com sentido e significado.

    No vemos simplesmente algo redondo e preto com dois ponteiros; vemos um relgio e podemos distinguir um ponteiro do outro. Alguns pacientes com leso cerebral dizem, quando vem um relgio, que esto vendo alguma coisa redonda e branca com duas pequenas tiras de ao, mas so incapazes de reconhec-lo como um relgio; tais pessoas perderam seu relacionamento real com os objetos. Essas observaes sugerem que toda percepo humana consiste em percepes categorizadas ao invs de isoladas.

    A transio, no desenvolvimento para formas de comportamento qualitativamente novas, no se restringe a mudanas apenas na percepo. A percepo parte de um sistema dinmico de comportamento; por isso, a relao entre as transformaes dos processos perceptivos e as transformaes em outras atividades intelectuais de fundamental importncia. Esse ponto ilustrado por nossos estudos sobre o comportamento de escolha, que mostram a mudana na relao entre a percepo e a ao motora em crianas pequenas.

    Estudos do comportamento de escolha em crianas

    Pedimos a crianas de quatro e cinco anos de idade que pressionassem uma de cinco teclas de um teclado assim que identificassem cada uma de