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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO

TEMPO JUBILOSO

Por

ALINE PUPATO COUTO COSTA

Tese de Doutorado apresentada ao Programa

de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da

Universidade Federal do Rio de Janeiro

como parte dos requisitos necessários para a

obtenção do Título de Doutor em Letras

Vernáculas (Literaturas Portuguesa e

Africanas) sob a orientação do Professor

Doutor Jorge Fernandes da Silveira.

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO TEMPO

JUBILOSO

ALINE PUPATO COUTO COSTA

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas, como

requisito parcial para obtenção do Título de Doutor em Literaturas Portuguesa e Africanas, da

Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Examinada e aprovada por:

Professor Doutor Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ) - Presidente

Professora Doutora Luci Ruas Pereira (UFRJ)

Professora Doutora Maria de Lourdes Azevedo Soares (UFRJ)

Professora Doutora Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira (UFF)

Professora Doutora Ângela Beatriz de Carvalho Faria (UFRJ)

Professor Doutor Marcelo Pacheco Soares (IFRJ) – Membro Suplente

Professora Doutora Mônica Genelhu Fagundes (UFRJ) – Membro Suplente

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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Ficha catalográfica

COSTA, Aline Pupato Couto.

“Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso” / Aline Pupato

Couto Costa. Rio de Janeiro: UFRJ / FL, 2017.

xii, 182f. : il., 31 cm.

Orientador: Jorge Fernandes da Silveira

Tese (Doutorado) – UFRJ / Faculdade de Letras - Programa de Pós-Graduação em

Letras Vernáculas, 2017.

Referências bibliográficas: f. 176-180.

1.Literatura portuguesa contemporânea. 2.Maria Gabriela Llansol. I. SILVEIRA, Jorge

Fernandes da. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Programa de Pós-Graduação em Letras

Vernáculas. III. “Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso”.

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta Tese.

________________________________ __________________

Assinatura Data

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VOZ, MEMÓRIA E SILÊNCIO: LLANSOL E A ESCRITA DO TEMPO

JUBILOSO

Aline Pupato Couto Costa

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Área: Literaturas Portuguesa e Africanas

RESUMO

“Nada foi, tudo está sendo”, assim nos fala Maria Gabriela Llansol em Finita. É por

essa perspectiva do continuum, da sua textualidade que é “força de pujança”, e do

registro da imagem como “cena fulgor” trazida em fragmentos que esse trabalho busca

identificar a presença da voz, da memória e do silêncio na escrita de Maria Gabriela

Llansol, assim como os mecanismos pelos quais estes elementos se articulam com vista

à expressão no corpus textual de um tempo jubiloso. A pesquisa que aqui se projeta traz

como foco central os livros Um beijo dado mais tarde, Parasceve, Amar um cão e

Amigo e amiga – curso de silêncio de 2004, além da investigação no espólio em Sintra.

Se a ideia da voz, da memória e do silêncio muitas vezes vem acompanhada de uma

negatividade, de uma melancolia e de um certo niilismo, em Maria Gabriela Llansol não

há angústia, pois “nada foi, tudo está sendo”. O que seria um fim, é apenas

transformação; metamorfose dada pela decepação da memória, aquela que, sem excluir

o já passado, conjuga com o novo uma nova simetria pelos efeitos da dobra que vem em

silêncio, no elo afetuoso entre uma palavra e outra. Acredita-se, portanto, que a ideia do

tempo jubiloso esteja compreendida como resultado de um projeto de escrita cujo

processo de elaboração tenha origem na articulação da voz, da memória e do silêncio.

Palavras-chave: Maria Gabriela Llansol, Tempo, Voz, Memória, Silêncio

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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VOZ, MEMORIA Y SILENCE: LLANSOL Y LA ESCRITA DEL TIEMPO DEL

JUBILO

Aline Pupato Couto Costa

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Área: Literaturas Portuguesa e Africanas

RESUMEN

"Nada fue, todo es" así nos dice María Gabriela Llansol en Finita. Es desde este punto

de vista del continuum, de su textualidad que es la fuerza de la pujanza, y el registro de

imagen como "escena resplandor" traída en fragmentos que este trabajo busca

identificar la presencia de la voz, la memoria y el silencio en la redacción de María

Gabriela Llansol, así como los mecanismos por los que estos elementos están

vinculados a la expresión en el corpus de texto de un tiempo alegre. Los proyectos de

investigación que aquí tiene como foco principal los libros Un beso dado más adelante,

Parasceve, Amar a un perro y Amigo y amiga – Curso de silencio de 2004, además de

la investigación en la finca en Sintra. Si la idea de la voz, la memoria y el silencio a

menudo viene con una negatividad, una melancolía y cierto nihilismo, a Maria Gabriela

Llansol no hay ningún problema, ya que "nada fue, todo es". Lo que sería el fin, es sólo

la transformación; metamorfosis dada por la labranza de la memoria, que, sin excluir el

pasado, conjuga con el nuevo una nueva simetría por los efectos de flexión que viene en

silencio, en el vínculo afectivo entre una palabra y otra. Se cree, por lo tanto, que la idea

del tiempo alegre se entiende como el resultado de un proyecto de escritura cuyo

proceso de desarrollo se haya originado en la articulación de la voz, la memoria y el

silencio.

Palabras clave: María Gabriela Llansol, Tiempo, Voz, Memoria, Silence

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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VOIX, MÉMOIRE ET SILENCE: LLANSOL ET L'ÉCRITURE DU TEMPS

RADIEUX

Aline Pupato Couto Costa

Orientador: Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira

Área: Literaturas Portuguesa e Africanas

RÉSUMÉ

"Rien n´a été, tout est en train de" dit Maria Gabriela Llansol dans Finita. . C'est pour

cette perspective du continuum, de sa textualité qui est la force de la puissance, et de

l'enregistrement de l'image comme “scène d´éclat " mis en fragments que ce travail vise

à identifier la présence de la voix, de la mémoire et du silence dans l'écriture de Maria

Gabriela Llansol, aussi bien que les mécanismes par lesquels ces éléments sont liés à

l'expression dans le corpus textuel, d'un temps radieux. La recherche qu'ici ce projette

apporte comme le foyer central les livres Um beijo dado mais tarde, Parasceve, Amar

um cão e Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, en plus de la recherche dans leur

butin à Sintra. Si l'idée de la voix, de la mémoire et du silence plusieurs fois vient

accompagnée d'un pessimisme, d'une mélancolie et d'un certain nihilisme, dans Maria

Gabriela Llansol n'est là aucune angoisse, parce que "rien n'été, tout est." Ce qui serait

une fin, c'est juste la transformation; la métamorphose donnée par le coupire de la

mémoire, celui qui, sans écarter, conjugue déjà avec le nouveau une nouvelle symétrie

par les effets de flexion qui fruit du silence, le lien affectif entre un mot et un autre. On

croit donc que l'idée du temps radieux est comprise comme le résultat d'un projet

d'écriture dont le processus de développement provient de l'articulation de la voix, la

mémoire et le silence.

Mots-clés: Maria Gabriela Llansol, Temps, Voix, Mémoire, Silence

Rio de Janeiro

Fevereiro de 2017

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DEDICATÓRIA

Dedico essa Tese aos meus filhos, João e Vinicius; a Marcus Vinicius, meu “ambo”, e

a meu pai, Roberto Otávio, porque “o que é grande acontece no eterno e o amor é

assim”:

“Vieste na hora exata

Com ares de festa e luas de prata

Vieste com encantos, vieste

Com beijos silvestres colhidos pra mim

Vieste com a cara e a coragem

Com malas, viagens pra dentro de mim

Meu amor

Vieste a hora e a tempo

Soltando meus barcos e velas ao vento

Vieste me dando alento

Me olhando por dentro, velando por mim

Vieste de olhos fechados, num dia marcado

Sagrado pra mim.”

À Simone Valle e a Jandir Teixeira, porque o afeto nos uniu e “o amor é uma

companhia,” ofertada pelo destino.

Aos meus avós, Maria de Lourdes e Manuel Antônio, e à Regina Celia, minha mãe;

em memória. A cada um de vocês, eu digo: “Não era por egoísmo que eu te queria

vivo” – Era só porque o amor era grande demais e a dor da perda, imensa.

Ofereço-vos, enfim, esse trabalho, em sinal da minha gratidão e

da vida que existe e continua para além dos olhos, pois “há à nossa

volta, uma festa de claridade”.

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AGRADECIMENTOS

A Jorge Fernandes da Silveira, mestre querido, eu agradeço todo o carinho, a

humildade, a exigência e a dedicação na construção da voz que aqui se fez. A ti,

agradeço a partilha do afeto, o amor pela Fiama e as portas abertas da casa e do coração.

À Luci Ruas Pereira, minha “cantora de leitura”, que me levou a amar a Literatura

Portuguesa, agradeço-te hoje e Para Sempre o percurso dos meus dias, pois um dia me

disse: “Deus quer, o homem sonha, a obra nasce”.

A João Barrento e à Maria Etelvina Santos, pelo apoio incondicional. O meu eterno

agradecimento pela atenção, afeto e acolhimento ao longo da minha jornada llansoliana.

À Silvina Rodrigues Lopes, pela presença solidária nessa trajetória.

À Cleonice Berardinelli, pelas leituras e horas plácidas em que estivemos juntas.

À Ângela Beatriz de Carvalho Faria, pelas aulas inesquecíveis em torno dos

“impossíveis”.

À Maria de Lourdes Azevedo Soares e à Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, pelo

carinho legente que nos envolve e aquece.

À Rhea Willmer e a Marcelo Pacheco Soares, pela amizade que há em nós.

À Monica Genelhu, pela presença amiga e serena nos encontros em torno do texto.

À Gabriela Targanski, pela revisão cuidadosa em espanhol.

À UFRJ e ao corpo docente, pela acolhida e formação acadêmica.

À Universidade Nova de Lisboa, pela aceitação de meu doutoramento.

À CAPES, por ter sido a primeira instituição a acreditar nesta Tese e por me ofertar a

bolsa de estudo para cursar o Doutorado Pleno em Portugal.

Agradeço aos amigos do INES, Instituto Nacional de Educação de Surdos, o incentivo,

a partilha e a compreensão nas horas mais difíceis pelas quais passei ao longo desta

Tese.

Agradeço à Prefeitura Municipal de Duque de Caxias, a licença para estudo.

À minha família, sim, e mais uma vez, eternamente.

A Deus, sobretudo, pela força e coragem. Pela luz que se abria quando “a noite” caía.

“aqueles que passam por nós, não vão sós, não nos deixam sós.

Deixam um pouco de si, levam um pouco de nós”

Antoine Saint-Exupéry

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“Nenhuma palavra é poética. Nenhuma. (Nem o verbo ser)

Tudo é hermético... pelos que vieram antes de nós”.

Maria Gabriela Llansol.

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SUMÁRIO

ABREVIATURAS USADAS ....................................................................................... 12

INTRODUÇÃO - “Nada foi, tudo está sendo” .......................................................... 14

CAPÍTULO I - “Pelas fendas da paisagem”

1. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM” ................................................................. 26

1.1. Um beijo dado ao encoberto......................................................................... 26

CAPÍTULO II - “Uma linha que me ata ao sol”

2. “UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL” .......................................................... 48

2.1. Luz Incomum ............................................................................................... 48

CAPÍTULO III - “Um traço para o solo firme”

3. “UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME” ............................................................ 76

3.1. Onde vais? À memória. ................................................................................ 76

3.2. A Senhora decepada e “o puro retrato da família” ....................................... 85

3.3. Ana ensinando a ler a Myriam, ou A Estátua de Leitura ............................. 89

3.4. Aprendizagem da leitura, nascimento e criação: o dois-em-um socrático ... 93

3.5. Parasceve: o lugar obsceno da ressuscitação.............................................. 104

CAPÍTULO IV - “Uma seta para que guardes no coração”

4. “UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO” ............................... 113

4.1. Porque é preciso dizer adeus ...................................................................... 113

4.1.1. Devolve o sol a quem lê ......................................................................... 118

4.1.2. Agora, era a produção da flor do silêncio ............................................... 122

4.1.3. O Golpe (p. 10 a 46) ............................................................................... 123

4.1.4. “Afinal, uma única melodia respondia ao silêncio” (AA, p. 15) ............ 125

4.2. A obra inacabada e as dobras do tempo e espaço ...................................... 127

4.2.1. Um canto órfico na dobra do espaço da obra ......................................... 128

4.2.2. À porta de Parasceve .............................................................................. 129

CAPÍTULO V - “Pelas fendas da paisagem, uma fenda para ver o mar”

5. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O MAR” .. 151

5.1. A Questão do Júbilo ................................................................................... 153

CONSIDERAÇÕES FINAIS - “Um olhar penetrante descido” ............................ 161

BIBLIOGRAFIA ........................................................................................................ 168

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Abreviaturas Usadas1

LC _________________ O Livro das Comunidades (1977)

RV _________________ A Restante Vida (1984)

CJA ________________ Na Casa de Julho e Agosto (1984)

CA_________________ Causa Amante (1984)

FP _________________ Um falcão no punho (1984)

CME_______________ Contos do Mal Errante (1986)

F __________________ Finita (1987)

AC ________________ Amar um cão (1990)

BDMT _____________ Um beijo dado mais tarde (1990)

L1 ________________ Lisboaleipzig 1 (1994)

L2 ________________ Lisboaleipzig 2 (1994)

ICQ _______________ Inquérito às quatro confidências (1996)

ATJ _______________ Ardente Texto Joshua (1999)

OVDP _____________ Onde Vais, Drama-Poesia? (2000)

P _________________ Parasceve (2001)

CLP _______________ O Começo de um Livro é Precioso (2003)

JLA ______________ O Jogo da Liberdade da Alma (2003)

AA ______________ Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004 (2006)

CL ________________Os cantores de Leitura (2007)

LH1 _______________O Livro das Horas I – Uma Data a Cada Mão (2009)

LH2_______________ O Livro das Horas II – Um Arco Singular (2010)

LH3 _______________O Livro das Horas III – Numerosas Linhas (2012)

LH4 _______________O Livro das Horas IV – A Palavra Imediata (2014)

LH5_______________O Livro das Horas V – O Azul Imperfeito (2016)

1 Os livros mencionados estão em ordem cronológica de publicação. O ano referente às edições utilizadas

para elaboração desta Tese está mencionado na “Bibliografia”.

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“Não estamos nas palavras para falar delas, ou

de seus “conteúdos”, mas para falar com elas. Se

assim podemos passar de palavras para as imagens

(relação do verbal com a metáfora), fazemos ainda

outra passagem mais radical, passando das palavras

para o ‘jogo’. É nessa dimensão do significar, como

jogo de palavras, em que importa mais a remissão

das palavras para as palavras – desmontando a

noção de linearidade e a que centra o sentido nos

“conteúdos” –, que o silêncio faz sua entrada. O não-

um (os muitos sentidos), o efeito do um (o sentido

literal) e o (in) definir-se na relação das muitas

formações discursivas têm no silêncio o seu ponto de

sustentação. Desse modo é que se pode considerar que todo discurso

já é uma fala que fala com outras palavras, através de outras

palavras. [...]. Compreender o que é efeito de sentidos é compreender

que o sentido não está (alocado) em lugar nenhum mas se produz nas

relações: dos sujeitos, dos sentidos, e isso só é possível, já que sujeito

e sentido se constituem mutuamente, pela sua inscrição no jogo das

múltiplas formações discursivas (que constituem as distintas regiões

do dizível para os sujeitos)” Eni Puccinelli Orlandi, As formas do silêncio.

“Eu não existe, a perda também não”

Maria Gabriela Llansol

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INTRODUÇÃO

“NADA FOI, TUDO ESTÁ SENDO”

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Introdução

“Nada foi, tudo está sendo”

Maria Gabriela Llansol

Diz João Barrento que ser legente é “ler com o corpo e com outros livros que

trazemos conosco e nos escolhem”, pois “com eles nunca lemos sós” e cada acto de

leitura é um chamamento contínuo a um lugar onde alguma coisa acontece”

(BARRENTO, 2009, p. 143). Talvez seja eu, também, uma legente llansoliana, um

alguém-leitor que segue esse modo de leitura de que fala o especialista e responsável

pelo espólio das obras de Maria Gabriela Llansol em Sintra. Isso porque os livros

llansolianos me convocam a um lugar outro através de um processo de interlocução

afetuosa que traço com as linhas que leio e que, aos poucos, percebo que o substrato que

fica é o de uma densidade outra: o do “não-saber”. Caminho pelo vazio. Do vazio que

há no texto? Pelo meu vazio? Do vazio que é o excesso que trago e resisto em soltar?

Talvez, por tudo isso ou por nada disso. Ou talvez, por tudo e nada. Porque o mais

importante, se é que há, é o de estar nesse vazio aqui conjugado. Sou acolhida no

acolhimento que dou às suas imagens. Nesse “não-saber” me proponho a aprender. E

vou aprendendo a atar-me com o “já lido” ou com o “já visto” de maneira outra, vou

aprendendo a aceitar novos sentidos, vou aprendendo a despossuir-me. Nesse “não-

saber” aprendo a errar, e a saber que todo retorno já guarda um sentido novo – e que isto

é humano. Humanidade que nos liga e nos faz grande na pequenez que nos envolve. E é

nesse “não-saber” o abismo com o qual escrevo essa Tese; escrevo em abismo, no risco

de não ser compreendida. Mas sigo, contudo; em vontade, em escolha; pois tenho a

certeza de ser esse o percurso que me permite ir além, em reflexão, em pensamento.

Assim se dá, então, o modo pelo qual leio e escrevo esse trabalho – através de um “ler-

com”, pois acredito ser esse o caminho dessa comunidade convocada pelo ato de ser

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legente. Comunidade, esta, que se propõe a estar “fora do tempo amnésico dos dias e do

poder”, convocando o passado “para um Aqui e Agora2 do encontro sempre renovado”

ocorrido no espaço de um instante “que se dilata e se furta ao tempo, e que é lugar

único: o do corp’a’screver’’ (Ibidem, p. 144-145).

Cheguei a Maria Gabriela Llansol pelas mãos de Luci Ruas, quando, em junho

de 2009, na PUC Minas, participei de um seminário do grupo de pesquisa De Orfeu e de

Perséfone: figurações da morte nas literaturas portuguesa e brasileira

contemporâneas, uma vez que o meu projeto sobre Inês Pedrosa (dissertação de

mestrado) fazia parte desta linha de pesquisa. Foi neste encontro, a primeira vez que

ouvi falar de Maria Gabriela Llansol. A seguir, li o livro O beijo partido, de Jorge

Fernandes da Silveira. Daí, eu me encantei com a profundidade da temática e da

complexidade da escrita llansoliana. Em julho de 2011, participei do X Congresso da

Associação Internacional de Lusitanistas (AIL), organizado pela Universidade do

Algarve, reunindo pesquisadores de diferentes locais e nacionalidades em torno da

temática da língua portuguesa, o que originou uma troca de experiências muito rica e

proveitosa. Essa ida para Portugal foi extremamente importante para o meu trabalho de

pesquisa, em especial para a definição desse projeto de Doutorado porque foi a partir da

visita a Sintra, ao Espaço Llansol, que tive a certeza de que era ela, Llansol, quem eu

iria estudar. Do lugar lindo e mágico que é Sintra, ao aconchego e simpatia dos que

trabalham no Espaço, tudo me envolvia e me enchia de certeza de que estava no

caminho certo. Lá, no Espaço Llansol, recebi de Maria Etelvina Santos a doação de

todos os Cadernos Llansolianos até então escritos, as publicações de Maria Gabriela e

os livros que falam sobre a obra de Llansol publicados pela editora Mariposa Azual.

Desta forma, ir a Portugal contribuiu significativamente não só, para mim, pelo aspecto

2 As maiúsculas indicam que o “aqui” e o “agora” se dão de maneira única para cada indivíduo.

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investigativo da pesquisa; mas, sobretudo pela compreensão e vivência de um mundo

cultural trazido nos livros como, por exemplo, o simples hábito de se ir a um “café”.

É com muita alegria que digo que a pesquisa aqui apresentada também foi

acolhida e aceita para ser desenvolvida, em 2012, no curso de Doutoramento da

Universidade Nova de Lisboa em Estudos Portugueses, sob a supervisão de Silvina

Rodrigues Lopes, com fomento da Bolsa Capes de Doutorado Pleno no Exterior.3 Para

essa conquista, agradeço, mais uma vez, o apoio incondicional de Luci Ruas, Jorge

Fernandes da Silveira, Silvina Rodrigues Lopes, João Barrento e Maria Etelvina Santos.

“Voz, memória e silêncio: Llansol e a escrita do tempo jubiloso” vem a lume

com a proposição de ser esta investigação um contributo significativo para os estudos

em torno da obra de Maria Gabriela Llansol, ampliando, assim, as bases teóricas da

Literatura Portuguesa do século XX. Interessa aqui investigar a presença da voz, da

memória e do silêncio na escrita de Llansol e estabelecer o modo pelo qual estes

elementos se articulam com vista à expressão no corpo textual de um tempo que é

júbilo, alegria.

Maria Gabriela Llansol Nunes da Cunha Rodrigues Joaquim nasce em 24 de

novembro de 1931, em Lisboa, vindo a falecer em março de 2008, deixando-nos4 um

acervo de trinta obras publicadas e um espólio ainda a ser editado composto por dados

escritos e iconográficos. Este material inédito encontra-se no Espaço Llansol, em Sintra,

Portugal, sob a direção de João Barrento e Maria Etelvina Santos. Ler e compreender

sua obra implica cruzar o literário e o histórico que marcam sua vida em interlocução

3 Por razões pessoais, não pude aceitar a Bolsa Capes.

4 Escrevo esse trabalho oscilando entre a primeira pessoa do singular e do plural, quando considerar que o

dito é amplo e envolve, a nós, legentes. A terceira pessoa do singular, por vezes, será utilizada com

objetivo de enfatizar o distanciamento que há entre a voz que lê e a voz que escreve de modo crítico.

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intra e intertextual5. Daí que se leia em Onde vais, Drama-Poesia?: “______ eu nasci

em 1931, no decurso da leitura silenciosa de um poema. Só havia tecidos espalhados

pelo chão da casa, as crenças ingênuas de minha mãe” (OVDP, p. 11), posto que “ler”

seja já um modo de “viver”. Com Augusto Joaquim, seu marido, Llansol, em 1965, vai

para Bélgica acompanhando-o em exílio, pois Augusto “se recusara a participar na

guerra colonial” (L1, p. 125). Nessa época, deixa um livro publicado e outro ainda

inédito (Os pregos na erva e Depois de os pregos na erva). É, contudo, neste lugar

longínquo que acontece com maior intensidade a produção textual de Llansol6. E Maria

Gabriela, então, escreve as primeiras duas trilogias – Geografia de Rebeldes7 e parte de

o Litoral do Mundo8 e os Diários. Em 1985, regressa a Portugal e continua a escrever

de forma intensa, até a publicação em 2007 de Os Cantores de Leitura – seu último

livro ainda em vida.

Maria Etelvina Santos diz que “Maria Gabriela Llansol é sinônimo de uma

radicalidade dentro da chamada ficção portuguesa, que necessita de ser estudada não só

na sua inserção adentro da nossa literatura e dos estudos literários, mas também como

uma prática de escrita” (SANTOS, 2008, p. 53). Isso porque Maria Gabriela é uma das

vozes da literatura portuguesa contemporânea que concebe o ato de criação de forma

muito particular. Para ela, a ficção é “o encontro inesperado do diverso”, concepção

manifesta no subtítulo de Lisboaleipzig 19, porque o livro é o receptáculo embrionário

do novo, daquilo que, ainda não-sendo, já é percebido e comunicado através do silêncio.

5 Entende-se como interlocução intratextual o diálogo que seus livros convocam aos seus legentes; e

intertextual, o diálogo de Llansol com o mundo que o cerca: objetos, figuras históricas, autores, filósofos,

e etc. Esse percurso de leitura será o modo pelo qual essa Tese se constrói. 6 “Quando soube que havia de vir aqui, tentei evocar, e trazer à minha memória, o meu estado de espírito

de então. (...). Eu procurava evadir-me a escrever” (L1, p. 125). 7 A trilogia “Geografia de Rebeldes” é composta pelos livros: O Livro das Comunidades, A Restante Vida

e Na Casa de Julho e Agosto. 8 A trilogia “O Litoral do Mundo” é composta dos livros: Causa Amante, Contos do Mal Errante e Da

Sebe ao Ser. 9 Livro que une poesia e música, Pessoa e Bach (“uma ficção não pode ser simples, é o encontro

inesperado do diverso” – CA, p. 18).

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Livro que é lugar-mundo. Livro-casa, lugar de afeto por onde há o encontro de

experiências múltiplas e, na coexistência do diverso, torna-se lugar de ascese pessoal.

Para a escrita dessa Tese, tomei como guia quatro publicações: Um beijo dado

mais tarde, Amar um cão, Parasceve – puzzle e ironias e Amigo e Amiga – Curso de

silêncio de 2004. Contudo, pelo viés de interlocução intratextual, outros livros seus

emergem e dão voz à ideia do júbilo.

A Tese está dividida em cinco capítulos. Nos quatro primeiros, apresento leituras

dos livros-guia e, no quinto, apresento considerações em desenvolvimento, mas não

indecisas, sobre a “poética do júbilo”.

No primeiro capítulo, tendo como base Um beijo dado mais tarde, abordo o

lugar de “descoberta e aprendizagem”, relacionando o pequeno espaço da casa à

vastidão do mundo. Experiência, assim, revelada entre a casa e o mundo, entre o micro

e o macrocosmo, por meio da escrita, em que o contínuo se dá por complementação, de

um eu que é suplemento do outro, assinalado “num meio ‘onde pairou um não-dito’

(BDMT, p. 12)”: o aborto do meio-irmão, filho do pai com a criada, obrigada pela lei

paterna a sacrificá-lo. Nascimento e morte que são tramados no jogo entre biografia,

objeto e memória – perspectiva, essa, que acompanha e marca os textos de Maria

Gabriela Llansol. “Estabelecer um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita” (BDMT,

p. 51) expressa o mote desenvolvido neste capítulo, onde “lutar contra a impostura da

língua” – desejo da rapariguinha – se dá no combate à violência que habita o “mau

silêncio”, pela palavra não dita, ou mal dita [maldita] – raiz de todo mal, pelo

significado que se perde do seu significante por lhe faltar o som, de lhe calar a voz, pelo

afeto não trocado, pelo amor não vivenciado. E é contra esse “mau-silêncio” que se

principia a narração, a do livro e a da pesquisa. Contribuem, como aporte teórico, os

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estudos de Walter Benjamin, Marilena Chauí, Jo Labany e Didi-Huberman,

principalmente.

No segundo capítulo, através de Amar um cão, pela figura de Jade, reflito sobre

o princípio da luz em que entre a luz comum e a luz incomum está um tempo em devir.

E Jade é um princípio de luz em seu duplo nascimento. Aqui, o lugar da “luz comum”

cruza-se com o da luz incomum; é um estar na luz, fora da luz, em desvio, por

sobreposição; pois “o princípio da luz é uma arca” (AC, p. 17) que tudo abarca no

encontro com diverso. Amar um Cão reitera e ensina o já proposto em livros anteriores:

aprender é, sobretudo, ler. Neste lugar-livro, nascer é renascer ou “entrar numa linha de

conhecimento”; “é irromper, continuando de forma descontinuada a linha, o traço, que

inicia o texto” (Pena, 2009, p. 11). Procuro, neste capítulo, a ideia do ímpar enquanto

ausência de completude e do conhecimento conjugado por seres híbridos. Penso que

seja este o (um dos) sentido(s) do júbilo: a propriedade única do impróprio. E é, no

aberto do tempo que se dá a expressão do incognoscível porquanto ainda seja sua

materialidade sensível inominável na linearidade e orientação do código verbal;

mostrando-se, apenas, evidenciada quando sentida e partilhada em e por elos de afeto. A

ideia da liberdade de consciência é, neste contexto, trazida pela imagem de se estar na

“perpendicular do ceptro” (AC, p. 14), na qual o “eu” há de seguir “o itinerário da

geografia do seu corpo” e ir avançando em existência própria com e pela “cena fulgor”

(AC, p. 26). Importa observar, para posterior desenvolvimento, que a imagem de

perpendicularidade do ceptro elucida a ideia de decepação10

da memória, do corte que

não anula, mas transforma; cujo fim continua em aberto.

10

Sendo o texto Llansoliano um “ser-enigma”, por “sua vontade de ser escrita nova”, há nele “uma

progressiva decepação” (BARRENTO, 2009, p. 242). Decepação vem de decepar, cortar, talhar. João

Barrento define a decepação como sendo a “eliminação do narrativo, da metáfora, a caminho de um

destino final, com a consciência de que não se decepou ainda ‘o nó do imaginário’, para deixar o texto em

carne viva”. Por isso, a construção textual a partir da cena fulgor, por ser ela “a coisa que emerge e pede

para ser vista” (Ibidem, p. 244). Por isso, o texto é a esse modo imagem, pois “não se decepou ainda o nó

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O terceiro capítulo é motivado pela leitura de Parasceve, título que se refere ao

dia da morte de Jesus e do ritual preparatório do Sábado judaico. No livro, “Parasceve”

é o nome de uma criança que tem o ruah, o sopro, o suspiro de vida. Diz Llansol:

“Numa vida, há sobretudo microvidas independentes que ninguém ouve” (P, p. 88). E

cabe a Parasceve a tarefa de descobrir os caminhos desse “ouvir”. Dessa

forma, Parasceve é aberto diante do reconhecimento e da potência do invisível, vindo

em combate e em complementaridade – por vontade e escolha, pela liberdade de

consciência. Nesta parte há a perspectiva do leitor único de Maria Gabriela Llansol, dos

que comungam entre si o olhar e o ponto de partida em que o caminho se dá

no continuum da decepação. Ler é visto como um “estar com”; com um outro que é

também um si próprio: gesto assinalado na epígrafe da tese. Neste capítulo, procuro

objetivar a questão do júbilo pelo movimento cíclico de nascer-morrer, pelas vozes

textuantes metamorfoseadas; de modo que seja a criança-Témia ou a criança-Parasceve

as que trazem consigo o “ruah”, o sopro da projeção futura do tempo que, no presente, é

ideia em devir. Hannah Arendt é uma das vozes que adoto para investigar a faculdade

do pensar, nos limites compreendidos entre a noção do self e a que abrange a

pluralidade, tomando como base a figura socrática, de Platão. A força textual é

evidenciada no percurso dado no e pelo movimento de uma introspecção deambulatória

em torno de um si. Nesse mergulho interior, Parasceve se revela, sobretudo, uma “doce

esperança” (P, p. 126),

do imaginário”. Decepação, despossessão (termo trazido por Silvina Rodrigues Lopes em Teoria da

despossessão. Ensaio sobre textos de Maria Gabriela Llansol, de 1988, cujo sentido está em des-possuir)

são os instrumentos que unem a mão e texto, sem fronteira entre um e outro. “O fim – termo e finalidade

– da escrita em Maria Gabriela Llansol continua, assim, em aberto, mas cada vez mais próximo daquele

momento em que entre a mão – “decepada” de tudo o que (lhe) é supérfluo – e texto não haverá fronteira”

(Ibidem, p. 242). E o fim é o aberto. Por isso, “o esforço ininterrupto de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler,

depois de ler, lembrando que estava a ler, lembrando a leitura” (BDMT, p. 117).

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No quarto capítulo, sigo pelos caminhos amantes de Amigo e Amiga – curso de

silêncio de 2004. Esse é o livro de uma perda e de uma ressuscitação de um “ambo”11

;

de uma escrita que, vinda em silêncio, é o modo pelo qual Llansol cria a possibilidade

de aceitação do múltiplo do que, em contradição, permite o deslocamento necessário à

órbita da criação. Dessa forma, o silêncio posto no vazio, no elo que une o dito e o não-

dito, é o que vem fundar o novo. Perspectivas de decepação e do eterno retorno do

mútuo são, no capítulo, estudadas. Júbilo que nasce diante do reconhecimento da

relação entre tempo e eternidade; da voz que múltipla é impessoal porquanto caminhe

em transformação. Sob a cena fulgor de “o que o ler ensina, a vida sobre a terra

esquece” (AA, p. 116) abordo o processo contínuo do ir lendo, do ser legente, na ação

ininterrupta de ler, através de uma despossessão memorialística e por sobreposição. E

Amigo e Amiga é uma travessia ao júbilo por via de uma interlocução intratextual,

explicitamente marcada por Parasceve; e por outra intertextual sobre a qual lemos Rilke

e Vergílio Ferreira. Com eles e através deles, Llansol é capaz de conferir vida ao seu

amigo-amante, A. Nómada, tornando-o “matéria figural” (AA, p. 11) através da luz

trazida por seus laços de afeto e linguagem. Desse modo, em “paz subalterna” (AA, p.

245), diz: “Eu não existe, a perda também não, há um rumor revolucionado que entra no

sossego” (AA, p. 184). Rumor que é voz e silêncio a entrar no corpus textual, posto que

voz e silêncio falam em linguagem sensorial e estão no Tempo em processo polifônico.

São contributos e suporte de análise, os trabalhos de Eni Puccinelli Orlandi, Luci Ruas,

Maria de Lourdes Soares, Dora Ferreira da Silva.

No quinto capítulo, as considerações sobre o tempo jubiloso, a poética do júbilo,

expressam a vontade de apurar os conceitos apresentados nos capítulos anteriores.

Desejo aí dizer, em suma, que a escrita do tempo jubiloso se dá, sobretudo, por um

11

“Ambo” que é um duplo, ligados entre si por um elo de afeto com o qual Llansol faz interlocução.

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“Tratado de amor” (CL, p. 95), pela troca afetuosa trazida pela linguagem em

movimento. Júbilo que se refaz sempre em outra paisagem posto que é “fenda”. Daí que

me permito, nesse espaço, uma hipótese de leitura futura na qual a perspectiva do júbilo

põe-se em tensão entre as três poéticas emblemáticas da literatura portuguesa (o

desconcerto do mundo camoniano; a poética do fingimento / o “desassossego” de

Fernando Pessoa / Bernardo Soares; e a poética do testemunho, de Jorge de Sena/ Anès)

metamorfoseada nas figuras dos seus autores, que, mais que personalidades da história

ou da literatura, passam a ser potências criadoras em seu texto, ou melhor, em sua

textualidade.

Importa dizer que foram suporte especial de estudo os trabalhos de João

Barrento, Maria Etelvina Santos, Jorge Fernandes da Silveira, Silvina Rodrigues Lopes

e Maria Lúcia Wiltshire, Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Santo Agostinho, para além

dos pesquisadores que trouxe aqui.

A foto da capa da Tese é uma homenagem da Câmara Municipal de Sintra a

Maria Gabriela Llansol pela escrita do livro Parasceve – puzzle e ironias, à ocasião de

sua morte. É uma placa fixada no chão da serra de Sintra diante da árvore que foi por

ela textualizada como o Grande Maior. Já os rostos que compõem a epígrafe são de

Llansol em dois tempos: na velhice e na infância, aos oito anos.

Por ser a imagem fulgor na textualidade llansoliana, algo que dialoga em

conjunto com a palavra dita e que dá pulsão ao texto, o trabalho que ora se apresenta

traz esse suporte iconográfico como mais uma estratégia de interlocução.

Assim, reitero o que ocorre no texto llansoliano e faço minha a alegria que

percorre o texto; alegria oriunda de um não-finito, de um caminho que se alcança no

percurso do seu andar, no movimento de um estar “quase a chegar” (AA, p. 43). Eis que

se segue o “beijo”, nosso primeiro capítulo.

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CAPÍTULO I

“PELAS FENDAS DA PAISAGEM”

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[O Beijo, Auguste Rodin, 1892/1896, Mármore, 1,84 x 1,11 x 1,19m]

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1. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM”

1.1. Um beijo dado ao encoberto

“Ler é uma práxis revolucionária por excelência.”

Jorge Fernandes da Silveira

“Na casa antiga, cada um de nós levava

consigo um candeeiro, com que arrastava

o seu duplo de penumbra e de sombra.

A chama do petróleo ardia junto à boca,

podíamos devorar a própria luz.

chamas nos queimavam as entranhas

e em archotes vivos nos tornaram,

vagueando por corredores e por escadas

atrás do Outro, que nada nos dizia.”

Fiama Hasse Pais Brandão

Em Um beijo dado mais tarde, Maria Gabriela Llansol relaciona o pequeno

espaço da casa à vastidão do mundo. Lugar de “descoberta e aprendizagem”, como

declara Helena Carvalhão Buescu na orelha da segunda edição, de 1991:

Assim, entre uma morte (de Assafora), um nascimento (da “rapariga que

temia a impostura da língua”) e um nascimento-morte (o do seu meio-

irmão, filho bastardo do “Senhor da casa”), decorre uma história

profundamente familiar, naquilo que o espaço restrito da família pode

encenar do mundo: violência ou segredo, descoberta e aprendizagem (Grifos

conforme o texto.)

Experiência revelada entre a casa e o mundo, entre o micro e o macrocosmo, por

meio da escrita, de uma “continuidade por complementação” (SILVEIRA, 2004, p. 33),

de um eu que é suplemento do outro, assinalado “num meio ‘onde pairou um não-dito’

(BDMT, p. 12)” (SILVEIRA, 2004, p. 13). Nascimento e morte evidenciados no jogo

entre biografia, objeto e memória, onde nascer é renascer no estabelecimento de um elo

entre aprendizagem e conhecimento:

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Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ser a língua

na estátua de um outro, esperar que o mesmo momento se repita. Não o

deixar morrer. Estabelecer um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita.

Voltar-se para Ana, e deitar-lhe um irmão morto dentro de um livro para que

ela o ressuscite (BDMT, p. 51).

Biografia ou romance? Ou, talvez, simplesmente, um romance-biografia. Llansol

parte do espaço da casa familiar para, junto com ela, ir revelando o segredo que ali se

esconde – a de um meio-irmão morto, fruto de uma relação entre o patrão (o filho da

senhora da casa, seu pai) e a empregada (a serva). Anos mais tarde, o jovem senhor

contrai matrimônio e na mesma casa vivem sua mulher e sua filha. Esta criança,

socialmente aceita e a quem lhe foi permitido nascer, é Llansol, crescida aos pequenos

cuidados da serva. É essa a história tecida em Um beijo dado mais tarde. Mas,

sobretudo, é a história de uma violência trazida por meio de uma criança abortada, de

um amor impossibilitado por questões sociais, de uma vida impedida de se concretizar.

Violência geradora do “mau silêncio”, do significado que se perde do seu significante

por lhe faltar o som, de lhe calar a voz. E é contra esse “mau-silêncio” que se principia a

narração, princípio que é suscitado por outro ato de violência: a morte da cabra,

vertendo o seu sangue sem balir. Nessa perspectiva, diz a autora em Um Falcão no

Punho: “Não me reconheço apenas uma mulher, mas um anel, com algumas feridas.

Fundada na luz que se eleva na cozinha, e que desce, condensando-se, [...], junto-me a

Espinosa.” (FP, p. 43). Segundo Marilena Chauí, “para Espinosa, somos seres

naturalmente afetivos, isto é, nosso corpo é ininterruptamente afetado por outros corpos

[...] e essas afecções corporais se exprimem em nossa alma na forma de afetos ou

sentimentos” (Chauí, 2012, p. 400). A ideia de “bom”, segundo Espinosa, é tudo aquilo

que se torna “útil para o crescimento de nosso ser” e “mau”, “o que nos impede de

alcançar algo bom para a nossa existência”. Assim, o silêncio da casa era “mau” porque

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impedia o acesso ao conhecimento e à clareza das ações. Essa era a missão da rapariga:

fazer ressoar o som, ecoando do mau, o bom silêncio.

Deste mistério, e no fim de um trabalho executado a som e a cinzel,

fez-se a rapariga que temia a impostura da língua e que queria”,

através da palavra,

fazer ressoar fortemente,

o seu irmão morto (BDMT, p.12).

E entre morte e vida, a decisão de escrita. Escrita que também é ato simultâneo

de leitura. Escrita, esta, vinda de um lugar de interstício, “herança da rapariga que

temia a impostura da língua”:

O lugar da intersecção da língua arrancada com a outra língua transparente é

a herança da rapariga que temia a impostura da língua. Por isso, eu tenho de

encontrá-la, e trazê-la para fora da sua nostalgia infinita. E não só. Da

intersecção das duas línguas – a que se ouviu balindo, e a que nasceu do

sangue – voou o Falcão, ou Aossê feito ave (BDMT, p.7).

Em paralelo, lê-se em Um falcão no punho a fala de Maria Gabriela: “luto entre

o interior e o exterior, sinto-me consciência prisioneira dentro do vidro. Tenho

necessidade de fazer cortesias a Fernando Pessoa sentado à mesa, e de erguê-lo numa

transparência que corre e brinca” (FP, p. 99). Para “erguê-lo”, Llansol diz ser necessário

“alterar a ordem das letras do nome de Pessoa para fazê-lo involuir”. Assim, “Pessoa,

lido da direita para a esquerda, dava AOSSEP.” (FP, p. 81). Ou, simplesmente, Aossê.

Através deste jogo llansoliano com as letras do nome “PESSOA”, inferem-se dois

pontos principais sobre os quais toda a obra de Llansol se pauta: a) a possibilidade da

existência enquanto criação12

– e, sob este aspecto, Fernando Pessoa deixa de ser visto

12

“A criação – ou a existência – não é, de fato, a luta vitoriosa de uma potência de ser contra uma

potência de não ser, é antes, a impotência de Deus frente à sua própria impotência, o seu podendo não

não-ser, deixar ser uma contingência”. Remonta, aqui, por Aganben, a ideia de Spinosa referente ao

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através da ótica de seus heterônimos e passa ser concebido como potência. Potência,

essa, capaz de suscitar o contínuo ato de criação. Daí que se “involua” posto que

involuir é aproximar essência e existência em tensão linguística e fazer coexistir os

opostos onde o “princípio ativo” que os une se mantém mesmo diante de um

deslizamento metamórfico; b) Outro ponto que me sugere é a aproximação das letras

segundo à perspectiva de “diferença” elucidada mais especificamente por uma escrita

fragmentada. Por um dizer estruturado em fragmentos, Llansol traz a “deconstruction”

de Jacques Derrida que é concebida por ele como “obra de amor”, onde por

“différance”, inscreve-se a possibilidade nova do pensar e da experiência, dada na

temporalização do vivido e no entre-espaço dos elementos. É assim “letra amorosa”,

existente somente no corpo textual. “Différance” que é “rastro” e descentramento,

compreendido na Gramatologia de Derrida como: “O rastro é verdadeiramente a origem

absoluta do sentido em geral. O que vem afirmar mais uma vez, que não há origem do

sentido em geral. O rastro é a différance” (DERRIDA, 1999, p. 79-80). Por isso, a

errância convivente do caminho em que “a distância é o percurso”. Ou seja, o que

separa (a distância) é o elemento que leva “ao fulgor”, daí que seja a distância o

percurso, o caminho, a trajetória que se dá por uma “errante intimidade com o dia”13

(FP, p. 50). A “deconstruction” e a “différance”, em seu duplo gesto vem indicar um

“adiantamento espacial” e um “diferimento temporal” dados pela imagem, por cenas

fulgor, à ideia llansoliana, onde os espaços se põem adiante e antecipam a palavra

“bem” e “mal” (já explicado através de Marilena Chauí) posto que “o mal é a inadequada reação frente ao

elemento demoníaco, o recuar amendrontado diante dele. Fugindo diante da nossa própria impotência,

construímos o maligno poder com o qual oprimimos aqueles que nos mostram a sua fraqueza”. E

Agamben acrescenta: “A possibilidade de não ser [é] a única coisa que torna possível o amor”

(AGAMBEN, 2013, p. 38). 13

Herbais, 7 de setembro de 1981: “Errante intimidade com o dia. Passo-o no jardim de Prunus Triloba, à

sombra do arbusto central que é o mais desenvolvido. [...]. Penso em Da Sebe ao Ser e, convivendo com

este livro, no meu Diário. Reparo que, ao fundo, a árvore é um livro que distribui as folhas pelos ramos

de modo que nenhuma escape ao Sol; há um tal fulgor no sol que desce , e se esconde, que dificilmente

posso concentrar-me sempre no mesmo lugar verde. A distância é o meu percurso, e na globalidade do

céu receio não descobrir viagem por mar que me oriente” (FP, p. 50).

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através da construção intervalar. Importa observar que o texto llansoliano é um contínuo

“sobre esse caminho, indo de cena em cena” (L1, p. 129). Por isso, afirma Carlos Reis,

em “A ficção portuguesa entre a Revolução e o fim do século, que o fragmentarismo

“há de ser entendido também como pulverizado modo14

de conhecimento de si, dos

outros e do mundo” e é o que “legitima a oscilação entre continuidades e

descontinuidades textuais” (REIS, 2004, p. 22). Se a descontinuidade se dá pela ruptura

textual, a continuidade é trazida pelo seu sentido, através de uma memória afetiva, no

espaço de uma comunidade, “este espaço-nó, ou semente”; “espaço de perigo pois nele

se desenvolvem grandes mutações de energia que (...) modificam a maneira de ser e de

viver” (L1, p. 142). É Llansol que afirma que “o continuum espaço-tempo seja

‘suspendido’, e que qualquer forma que aí se inscreva assuma o estatuto de figura” (L1,

p. 142). Figuras que “num primeiro contacto, nada mais são do que personagens

históricas ou míticas; plantas ou animais; um dispositivo de companheiros que tomam

parte na mesma problemática” (L1, p. 129). Diferentemente da figura, a ideia do

personagem está condicionada a um determinado enredo, pois “o personagem é um ser

que pertence à história e que, portanto, só existe como tal se participa efetivamente do

enredo; isto é se age ou fala” (GANCHO, 2001, p. 14). Já as figuras trazem uma

origem, mas nunca um fim. Elas unem “paisagens afastadas” (p. 129). As figuras são

“nós construtivos do texto” , como se lê em Um Falcão no punho – o primeiro diário de

Llansol. A figura “vem do mundo, existe no texto e volta a actuar no mundo”, é “um

princípio activo” (BARRENTO, 2009, p. 122). Augusto Joaquim sobre Finita, diário 2,

diz que “figura é todo o agente do mútuo e que nele intervém”. No mútuo,“cada

14

Eduardo Prado Coelho, em A poesia ensina a cair, no texto “A margem de onde avisto o caos”, afirma

que “cada escritor tem o seu modo de escrever, de um certo modo de marcar os ritmos de sua produção

textual e dos protocolos que a rodeiam”. Maria Gabriela seria como “os que utilizam os textos em forma

de blocos e por vezes os deslocam de versão para versão ou mesmo de livro para livro” (COELHO, 2010,

p. 55).

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participante sai modificado15

” (L1, p. 143), “convocados para um acto de recomeço”

(L1, p. 130). Ideia que se clarifica em Um beijo dado mais tarde (1991) com a leitura

que se segue: “Também se chama a este estado ‘A Mutação’ porque, mudando, não

pode ser surpreendido sob nenhuma forma. Este ser mutável, troca de pele, e torna-se

Um” (BDMT, p. 84). Assim, este ser mutável “é diferente (no nome: mas o nome não

importa, é um acidente) e igual (na função e na substância)” (BARRENTO, 2009, p.

124). E se o que importa é a substância, o “ser-humano também se anula (...) porque

toda a presença (...) começa a ser imagem” (L1, p. 140). Mas a humanidade que habita o

ser “é uma forma inconfundível, inalienável, e exclusiva de nós mesmos”. E Llansol

diz: “Por isso eu disse ‘fraccionar a imagem nas suas diversas formas’, e por isso o belo

é o encontro inesperado do diverso” (L1, p. 141). Beleza comunicada em silêncio (“o

encontro inesperado do diverso é assistir o belo a comunicar com o silêncio” – L1, p.

135), no silêncio que fica entre uma palavra e outra, pois “nada foi, tudo está sendo” (F,

p. 220). E é deste eterno continuum que nasce a ideia de júbilo, a alegria de sentir que

nada fica ou se perde; mas tudo se transforma: “quando a tarde cai, reacendo as luzes

que ficaram quase acesas da outra noite” (BDMT, p. 117).

À ideia do rastro, há a ruína e os restos propostos por Walter Benjamin como

mecanismos de compreensão da história por outro paradigma: dos vencidos, dos que

tiveram suas vozes censuradas e/ou suas “línguas cortadas”, como aponta

metaforicamente o texto de Maria Gabriela Llansol.

15

Mútuo que é um duplo onde o “eu” surge em imagem. Daí que, em processo epigráfico de um retorno à

infância, do ser que aprende a dizer, ocorra a relação de duplicidade: eu, Gabi / eu, Témia (a rapariga que

temia a impostura da língua) Perspectiva, esta, convivente; de aprender a ver com o outro, através do

outro. Outro que é também si mesmo. Praxis de luta contra a “impostura da língua”. Trago aqui os versos

de Fiama Pais Brandão, em “Área Branca /17”, poema de setembro de 1976, para ilustrar o que procuro

dizer: “Ensinaria à infância a gravar / no pó de talco a palma das mãos e a considerar as palavras

/modulações da voz pura, sem a mancha embaciada / compacta que paira diante dos olhos sempre

que se fala. / A mancha que se desloca no raio de visão /e desbota qualquer imagem como a chama de

uma vela /com a fuligem constante a torná-la opaca (BRANDÃO, 2010, p. 67).

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Um beijo dado mais tarde está dividido em seis capítulos, iniciados por um

prólogo e finalizados pelo epílogo exposto no sexto capítulo, marcações teatrais não

aleatórias à concepção llansoliana de escrita porque condensa tempo-espaço

cronológico em intensidade narrativa ao modo de Benjamin, em Origem do drama

barroco alemão, quando se assiste às reflexões sobre a intensidade temporal e histórica,

o seu Ursprung. Palavra em que o sentido primeiro de “origem”, de um início

marcadamente cronológico, se desloca metonimicamente para uma amplitude de um

movimento primeiro, trazido por um salto (Sprung) primevo (Ur), de algo posto em

“eterno retorno” por Llansol, por sempre instaurar o novo, por promover uma nova

forma e por propiciar uma nova face na história contada, persistindo contra o paradigma

imposto, contra a “impostura da língua” e a causalidade inexistente. No Ursprung

benjaminiano, a ruptura criadora: a “linha de fuga” de Deleuze ou, com Llansol, o

nascimento da terceira língua. Sobre isso, assim nos afirma Jorge Fernandes da Silveira

em O beijo merecido da verdade, posfácio da edição brasileira publicada pela 7Letras

em dezembro de 2013: “dois aspectos fazem da leitura do livro uma das aventuras mais

fascinantes da Literatura Portuguesa atual”: o primeiro pela “impossibilidade de se ler o

texto como um romance à maneira antiga, como a representação especular de um outro

discurso maior e mais socializante, exemplar, aquele em que se reconhecia a visão de

mundo do Autor”. O segundo, diz o especialista, é o cuidado

à gênese dos corpos humanos e das formas imaginárias, de acordo com os

princípios llansolianos de textualidade: como se fosse uma terceira língua, o

literário é uma linguagem nascida entre o mítico e o histórico (SILVEIRA, 2013,

p. 117-118).

Histórico porque vinculado a um espaço e tempo demarcados; e mítico porque

“preso desde o princípio à luta entre duas forças antagônicas: as fundadoras que dão

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fruto legítimo (os herdeiros) [...], e as transgressoras, contrárias a essa ordem, desejando

implantar outra genealogia (os bastardos)” (SILVEIRA, 2013, p. 117-118). Benjamin

também retoma essa perspectiva mítica ao relacionar o tempo chronos à ideia de kairós,

com ênfase ao instante, ao segundo fugaz, que propicia a transformação e a experiência

do novo. Experiência que reside no trabalho, naquilo que se tem de partilhável, na

palavra comungada trazida ao espaço do comum para que ela, ao ser retomada, seja

também transformada por cada geração, continuamente, como na fábula antiga do

homem velho que diz ser preciso cavar para se achar o ouro escondido na vinha. Essa é,

portanto, a experiência do ouro deixado pelo pai, do verdadeiro tesouro descoberto

quando, deslocado da semântica do capital, passa à ótica do cultural. Lê-se, assim, em

“Experiência e Indigência”: “Os filhos puseram-se a cavar, mas do tesouro nem sombra.

Quando o Outono chegou, porém, a vinha deu uma colheita como nunca se vira em toda

a região. E foi então que os filhos perceberam que o pai lhes legara uma experiência: a

benção não está no ouro, mas no trabalho” (BENJAMIN, 2010, p.73). E com base no

referido texto, Benjamin observa a mudez com que os homens de 1914-1918 voltavam

da guerra e constata que eles “não voltavam mais ricos; mas mais pobres de

experiências partilháveis” (Idem). Contudo, tal sabedoria demonstravam os antigos

através das histórias contadas de modo ameaçador ou benevolente:

Sabia-se muito bem o que era a experiência: as pessoas mais velhas

passavam-na sempre aos mais novos. De forma concisa, com a autoridade da

idade, nos provérbios; em termos mais prolixos e com maior loquacidade,

nos contos; por vezes através de histórias de países distantes, à lareira, para

filhos e netos. Para onde foi tudo isso? Onde é que se encontram ainda

pessoas capazes de contar uma história como deve ser? (BENJAMIN, 2010, p.73).

E, se Benjamin observa que o tempo atual assiste à experiência desmentida

levando o humano a certas indigências, verifica também que é dela a “riqueza de ideias

que se abateu sobre as pessoas” de tal modo que a “pobreza de experiência é apenas

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uma parte da grande pobreza que ganhou um novo rosto – com a nitidez e o recorte

exacto do mendigo medieval” (Ibidem, p.74). E indaga: “Na verdade, de que nos serve

toda a cultura se não houver uma experiência que nos ligue a ela? Pobreza expressada

por uma “barbárie” que, do seu caos, encaminha o novo, leva “a construir algo com esse

pouco, sem olhar nem à esquerda nem à direita” (Idem). É estar, portanto, no lugar

fecundante do entre-lugar, obedecendo “acima de tudo ao que existe no seu interior.

Mais no seu interior do que na sua interioridade – e é isso que as torna bárbaras”

(Ibidem, p.75), dizendo ou gritando em “uma língua totalmente nova”, por contraste do

arbitrário com o orgânico. Tal como se vê em Llansol, no jogo (Spiel) nominal de suas

figuras (PESSOA / AOSSEP / AOSSÊ), Benjamin, citando as pessoas literárias de

Scheerbart e os nomes russos desumanizados, compreende que “não se trata de uma

renovação técnica da língua, mas da sua mobilização ao serviço da luta ou do trabalho –

em todos os casos, ao serviço da transformação da realidade, não da sua mera

descrição” (Ibidem, p. 76). “Ficámos pobres”, afirma-nos Benjamim. E diz: “E agora é

altura de recuar um passo e fazer o balanço” (Ibidem, p. 78). Balanço que Llansol faz

através de uma textualidade própria. É esse o “beijo dado mais tarde”, aquele que se põe

contra a impostura da língua, pela expectativa de encontro a uma nova paisagem e às

linhas refletidas do Horizonte16

de “mar anterior a nós”. Acrescento, aqui, que leio

“impostura” também pelo viés de uma contração sintagmática dos vocábulos

“imposição” e “leitura”, em jogo linguístico muito próprio de sua escrita. Desse modo,

“lutar contra a impostura da língua”, é um ir contra a uma imposição de leitura da

língua, um ir contra a expressão estática dos termos, dos conceitos que, fechados em si,

impedem a palavra nova.

16

Alusão ao poema de Fernando Pessoa.

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Verifica-se, em Um beijo dado mais tarde, “a co-existência de dois tipos de

fantasmas” (LABANYI, 2003, p. 63)17

, apontando o texto para uma posição

espacialmente fronteiriça entre “o pré-moderno” e “o moderno” na medida em que se

assiste ao luto do meio-irmão abortado, conferindo-lhe um lugar na história (aspecto

pré-moderno); mas também por inseri-lo em uma perspectiva à contrapelo, de fundo

benjaminiano18

, à contraluz, congregando no tempo presente a circularidade temporal,

de modo a restaurar a potencialidade uma vez impedida de se manifestar (aspecto

moderno).

Em Um falcão no punho, Llansol escreve: “Perguntar ‘quem sou’ é uma

pergunta de escravo; perguntar ‘quem me chama’ é uma pergunta de homem livre”.

Importa observar, que em “O Narrador”, Walter Benjamin amplia o que escreveu em

“Experiência e indigência” (ou em título brasileiro “Experiência e pobreza”), afirmando

que tal pobreza atinge consequentemente o nível existencial e narrativo do homem,

construindo para si e para o seu grupo a sua própria identidade dada ao modo de sua fala

e de sua textualidade. Identidade que é memória cultural; é “práxis revolucionária” que

está para além do individual, do simples pai da vinha, vindo a transcender no coletivo,

entre seus filhos, na ultrapassagem do limiar entre vida e morte, pois “o sentido da vida

é o centro em torno do qual se movimenta o romance” (BENJAMIN, 2008, p.212). E

Benjamin conclui: “O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que sabe

por ouvir dizer. Seu dom é poder contar a sua vida; sua dignidade é contá-la inteira. O

narrador é o homem que poderia deixar a luz tênue de sua narração consumir

completamente a mecha de sua vida” (Ibidem, p. 221). Consumação que nos leva a

17

Cf. p. 59: Com Jo Labanyi, compreendemos que “os fantasmas são a corporização de um tipo de luto

impossível de realizar porque as condições de luto não se cumpriram”. 18

Com Llansol por essa perspectiva benjaminiana, lemos: “Nas costas do livro, a obra também se torna,

adquire / O andar que lhe é próprio. Dou-te um sinal ___ viverá, se / Se evadir da normalidade canônica

dos gêneros” (CLP, p. 238). E a autora de O Beijo dado mais tarde, indaga: “Quem quer dormir com o

inquieto?” E, pelo espelho de Alice, a imagem do coelho, “S´envole”, adverte: “Sê leve e / Não te

esqueças ___ “Par délicatesse, j´ai perdu ma vie”(Idem).

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pensar sobre a ideia “de combustão” como é dito na epígrafe de Fiama Hasse Pais

Brandão ao se devorar a própria luz que com a chama do petróleo ardia junto à boca. E

é nesse processo “de arder”, de se pôr em “combustão”, que, em Um beijo dado mais

tarde, Maria Gabriela diz: “escrevo, mas não sou escravo” (BDMT, p. 116) posto que

ler/escrever, segundo Llansol, impele o sujeito a um ato de liberdade.

A escrita por imagem dá a ver a violência imposta; pois a barbárie está na

palavra muda. Benjamin, conforme já dito, na primeira metade do século XX, observou

que os sobreviventes voltavam mudos dos campos de batalha por não encontrarem

assimilação possível através do uso de palavras. Vê-se, inclusive, com Baudelaire, na

experiência do choque19

, em As flores do mal, e com a definição do trauma por Freud

(por não haver superação possível enquanto não se encontrar na fala a verbalização do

sentido da dor), a compreensão da palavra em transformação posta em questão no drama

barroco alemão:

A palavra torna-se trágica atuando de acordo com o puro significado de que

ela própria é portadora. A palavra enquanto portadora pura de seu significado

constitui a palavra pura. Ao lado desta, porém, há uma outra palavra que vai

se transformando desde o lugar de sua origem até outro lugar para o qual está

voltada, ou seja, para a sua foz. A palavra em transformação é o princípio

linguístico do drama barroco (BENJAMIN, 2013, p. 65).

Em cena, a palavra em transformação ressoa o som da natureza e do sentimento.

“Para essa palavra, a linguagem é apenas um estágio passageiro no ciclo da

transformação. Ele descreve o percurso do som da natureza até a música passando pela

lamentação” (BENJAMIN, 2013, p. 65). A esse encontro sinestésico20

e linguístico, a

essa comunhão de expressões, em Maria Gabriela Llansol, pode nos conduzir a

19

Refiro-me aqui quanto à “experiência do choque” a experiência de se pôr em paradoxo, como se lê em

“Spleen”: “Je suis comme le roi d´un pays pluvieux, / Riche; mais impuissant, jeune et pourtant trés-

vieux” (BAUDELAIRE, 2006, p. 272). 20

Entende-se por “sinestésico” a comunicação sensorial e gestual ou aquela que é partilhada por uma

troca afetuosa.

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Lisboaleipzig, encontro de Pessoa e Bach, “o encontro inesperado do diverso”. Mas

remete também a um encontro com a ideia textual dada em Um beijo dado mais tarde

quando lemos, no prólogo do primeiro capítulo (“A morte de Assafora”), a presença

afetuosa de diversas formas de comunicação atada por meio da palavra. Assim, se lê:

“cantando [est]as circunstâncias nascentes que sobrevieram” (BDMT, p.7); “uma

melodia cantada por Johann desce no quarto porque ela comigo entra em toda a

parte” (BDMT, p. 8)21

; ou ainda: “Bach canta pela voz de Anna Magdalena” (BDMT,

p.9). E por esse modo de expressão, Llansol vai a caminho do interior da casa – casa

que tanto é corpo de escrita quanto corpo de afeto. Lugar, portanto, de abrigo da

memória: “Talvez Anna Magdalena seja apenas um objecto no meu pensamento”

(BDMT, p.13). Contudo, “a música já não é minha, percorre o corredor do espaço até a

sala de jantar onde, numa certa cena, construí a minha infância” e estou aqui “já não

como filha da casa, mas como neblina muito densa de onde se espera luz” (BDMT, p.

10). Assim Llansol diz: “________ sentei-me junto dela [da estátua de madeira, Anna

de Magdalena], a ler-lhe O Livro das Comunidades que principiava a encarnar num

corpo humano naquela noite de vigília”. Em tom religioso22

, escreve-se como se fizesse

ali uma promessa, como se firmasse o elo entre leitura e escrita por meio de um

sacramento matrimonial: “(recebe – por este movimento de ave – o voo do paraíso)”

(BDMT, p.11). Tratado amoroso sob o qual o “eu se cria” em identidade (“Eu que “sou

a rapariga que temia a impostura da língua e, ao subir estas escadas para tocar as

chamas da entrada em que arde, no presente, o passado, sinto-me Témia, temível e com

temor” (BDMT, p. 8)) e em existência (“crio-me sentada à beira da minha origem,

situação que se repete em vários períodos do ano, quando eu venho aqui” (BDMT, p.

21

Manteve-se o espaçamento entre os termos “ela” e “comigo”, conforme a disposição textual. 22

Religião, daquilo que se re-liga e, ambiguamente, “da crença na existência de uma força ou forças

sobrenaturais, considerada(s) como criadora(s) do Universo, e que como tal deve(m) ser adorada(s) e

obedecida(s).” Cf. Cunha, Antônio Geraldo da. Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Rio de

Janeiro: Lexicon, 2010, p. 555.

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9)) através dos corpos coexistentes trazidos pela força da palavra em movimento.

Movimento que é impulsionado por constantes reflexões. Daí a interrogação: “esta

abertura natural para o paraíso pertence-me?; ou ainda: “estes móveis e objectos de

adorno transfigurados, consumidas as suas carnes, prata, madeiras, ou cristal, serão os

meus bens luminosos?” (BDMT, p. 9). Assim, em obliquidade (porque ‘“a Nuvem

Pairando’ com noite própria, inclinava-se à chuva torrencial”, BDMT, p.11.) e por

suspensão (porque dos objectos companheiros as “asas não batem. Adejam”, BDMT, p.

9), o “eu” compreende “que a Nuvem Pairando” assistida “era a única cúpula do

inverno” (BDMT, p. 13); por isso, Llansol diz: “Eu, eu canto” (BDMT, p. 15),

lembrando que a voz, dobrada sobre si mesma, traz consigo a potência do “cantar, como

vira fazer Infausta, aos pés de Aossê” (Idem), o “falcão peregrino” (BDMT, p. 24), sem

se esquecer que “tudo começou com Témia a ler a súplica que a avó [a] fazia repetir”

(BDMT, p.17). E “Ana, a que ensina”, diz: “Vinde a ler”, “Venham todos a ler” e “foi

assim que Témia, com seis anos, trouxe Ana e Myriam a lerem uma à outra o amor”

rasgando-se “então o véu que cobria um sentimento inteligente e profundo” (BDMT, p.

25). Para assim, “no fim de um trabalho executado a som e a cinzel, através da palavra,

fazer ressoar fortemente o seu irmão morto” (BDMT, p. 12). “Trabalho”, este, enquanto

dever é praxis política: “tinha a obrigação de cumprir a penitência imposta pela

impostura e, sobretudo, de morder a claridade” (BDMT, p.12).

Desta forma, o primeiro capítulo é estabelecido por ideias nascentes: de Témia,

da voz e da palavra que se põem contra a “impostura da língua” e o nascimento de um

corpo textual. Nascimento, esse, que parte de algo jacente: de Assafora, do meio-irmão

morto, da cabra; onde nascer e morrer se completam em estados contínuos: “uma voz

que nasce da extinção da voz de Johann” (BDMT, p. 9). Ou ainda: “Assafora jacente é o

fim de que nasce um ser” (BDMT, p. 10). Nasce, portanto, no drama, na encenação, de

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um embate entre os aspectos sócio-histórico-cultural e a busca por uma liberdade

poética, por uma linguagem sem impostura. Por isso, Llansol, tal como Nietzsche23

,

pergunta: “Quem” (“Quem me chama?”), quando o sentido agregado a valor significa

essência. Essência que reside na descoberta da força (do ser capaz) e que expressa em si

própria, dada a partir das diferenças que levam à ação, um princípio ativo e positivo da

afirmação do múltiplo. Essa é a sua genealogia e o seu júbilo: uma “criação ‘alegre’ (ou

seja: não-rancorosa.)” (SAMUEL, 2002,p. 65). Júbilo que vem enquanto aceitação:

“Não queiras um pai melhor do que o meu; certos pecados são um privilégio sobre esta

terra” (BDMT, p. 96); e enquanto compreensão: “compreendo que a história dos

homens acabou aqui. Incluindo todas as pequenas histórias que eu estava ainda a

contar” (Idem). Júbilo que, assim, permite coabitação dos opostos24

: “Também há

tristeza no paraíso”; “também há alegria sobre a terra” (BDMT, p. 11). Daí a conclusão:

“Concluo que o desprendimento é necessário à órbita da palavra” (BDMT, p. 17) em

“uma tristeza criadora do riso” (BDMT, p. 45). E diz: “sinto que a relação entre a casa e

a rua é a de uma alegria nascente” (BDMT, p. 53).

História, portanto, como afirma Jorge Fernandes da Silveira “tecida à matéria da

maternidade” e “à madeira da maternidade”, por desdobramentos:

Na sua origem, assiste-se a uma trama literal e simbólica atada a duas pontas

que se embaraçam em nó. Uma tecida à matéria da maternidade [...]. Outra, à

madeira da maternidade (a imagem de Sant’Ana ensinando a Virgem Maria a

ler). Uma história em que a lei da textualidade de dar nova vida às palavras e

às coisas vem dobrada numa outra história à primeira vista mais verdadeira,

23

Em Assim falou Zaratustra (In: “O grito de angústia”). 24

Eis a presença do paradoxo na perspectiva do novo em Llansol – já que é o novo aquilo que abre

caminho ao júbilo. No texto “Encontro-me no novo”, à ocasião da atribuição do Prêmio D. Dinis, da Casa

de Mateus, ao livro Um Falcão no Punho, Llansol diz que se encontra “no novo” e em situação paradoxal

por escrever “sem pensar nos prêmios”. Mas explica o que pensa sobre o “paradoxo”: “o paradoxo é,

assim, de eu estar dizendo precisamente aqui, ao aceitar e agradecer o gesto que para comigo

tiveram, continuando eu sempre sem saber porque teve esse gesto em mim um seu destinatário. Tomo-o

na sua acepção radical de fraternidade entre nós diante do sentido, como um momento em que

partilhámos um dos bens da Terra que, para mim, são cinco: O conhecimento, a abundância, a

generosidade, o prazer do amante e a alegria de viver” (L1, p. 84-85, grifos nossos).

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porque vinculada à biografia de quem a escreve: o nascimento abortado do

meio-irmão para que o seu fosse legitimado (SILVEIRA, 20134, p. 118).

No capítulo “Só e Maravilha”, a intersecção entre voz e silêncio; vida e morte e

a construção da casa textual onde o princípio da textualidade, por deslocamento e gestos

de continuidade, segue contra a lei da narratividade: “Principia a contemplar o princípio

das coisas que sobrevém ao início” (BDMT, p. 34) e “havia uma suave continuidade

que não podia dividir-se em nomes” (BDMT, p. 40).

Da ideia de “princípio” atrelada ao ato de leitura e escrita, afirma Maria Alzira

Seixo, em A palavra do romance, no ensaio “Para uma tipologia do discurso ficcional”,

no qual a pesquisadora pensa a obra de Maria Gabriela Llansol a partir da indagação

“Quem há que suporte o vazio?”, fragmento de O Livro das Comunidades, obra da

primeira trilogia llansoliana, “Geografia de Rebeldes”, mencionado, inclusive, em Um

beijo dado mais tarde (conforme já exposto) que “preencher o vazio foi, desde sempre,

o princípio que presidiu à atitude de criação; interpretar esse princípio, tomando-o como

um impulso de elaboração que oscila entre a compensação da falta e o desejo de

produzir sentidos está na origem das literaturas”. E observa: “Pura categorização

teórica, absoluta abolição do corpo, a vacuidade persegue, no entanto, as formas de

produção com o fantasma [...] da hipotética anulação do feito, da inanidade da sua

corporização efectiva” (SEIXO, 1986, p. 28). Didi-Huberman traz tal conceito sob a

ótica de uma “modalidade do visível quando sua instância se faz inelutável: um trabalho

do sintoma no qual o que vemos é suportado por (e remetido a) uma obra de perda

(HUBERMAN, 2013, p. 34). E “a metáfora é uma fuga ao sentido, uma pequena chama

que só permite a compreensão passageira do que está a ler” (BDMT, p. 24), diz-nos

Llansol. É imagem órfica, fugaz, como o lampejo dos vaga-lumes. E faço lembrar, aqui,

um outro título de Didi-Huberman: Sobrevivência dos Vaga-Lumes. Nele, o filósofo

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relaciona a “grande luz (luce) do Paraíso à pequena luz (lucciola) dos pirilampos, dos

vaga-lumes” (HUBERMAN, 2013, p. 11) e afirma que esta “não metaforiza nada mais

do que a humanidade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na noite”

(HUBERMAN, 2013, p. 30). Há portanto um “eu vi” (“Depois escondeu-se e vi [...] a

solidão como o instante presente” BDMT, p. 73;), modalidade de visão dada pelos

sentidos e que “atravessa simplesmente a longa história das tentativas práticas e teóricas

para dar forma ao paradoxo que a constitui” (HUBERMAN, 2013, p. 34). E Didi-

Huberman explica:

Ou seja, essa modalidade tem uma história, mas uma história sempre

anacrônica, sempre a “contrapelo”, para falar com Walter Benjamin. Já se

tratava disso na Idade Média, por exemplo, quando os teólogos sentiram a

necessidade de distinguir do conceito de imagem (imago) o de vestigium: o

vestígio, o traço, a ruína. Eles tentavam assim explicar que o que é visível

diante de nós, em torno de nós – a natureza, os corpos – só deveria ser visto

como portando o traço de uma semelhança perdida, arruinada, a semelhança

a Deus perdida no pecado (HUBERMAN, 2013, p. 35).

Assim, “coisas a ver de longe e a tocar de perto, coisas que se quer ou não se

pode acariciar. Obstáculos, mas também coisas de onde sair e onde reentrar. Ou seja,

volumes dotados de vazios” (Idem). Com Llansol se lê: “Eu aproximo-me deles, estou a

subir por eles, e escrevo, no vazio deixado pelo espaço que os separa ‘o vazio do

beijo’”25

. E continua, em jogo linguístico atravessado pela experimentação criada

através do cruzamento tempo-espacial entre o macro e microcosmo: “Eu não existo

ainda mas, de um olhar trocado entre ambos, corro para o interior desse lenço, de que

conheço a cambraia dos sentimentos” (BDMT, p. 53). Ausência, portanto, que ‘“dá

conteúdo ao objeto’ ao mesmo tempo que constitui o próprio sujeito” (HUBERMAN,

2013, p. 96), num jogo à “dupla distância”, “distância como choque, como capacidade

de nos atingir, de nos tocar” (Ibidem, p.159). Movimento tátil que começa e termina no

25

Espaçamento conforme o texto-base.

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vazio, em “eterno retorno”, por uma “temporização dialética em que a distância podia

ser deduzida de uma relação do desejo com a memória – como duas modalidades

conjuntas de um poder da ausência e da perda” (Ibidem, p.164). Por ambiguidade, a

imagem tanto produz o “efeito de recognoscibilidade”, no choque com o seu passado,

quanto se faz “ilegível e inexprimível enquanto não se confrontar com seu próprio

destino, sob a figura de uma outra modalidade histórica que a colocará como diferença”

(Ibidem, p.183).

No terceiro capítulo, “A chave de ler”, ocorre a mímese da relação de

aprendizagem entre Ana e Myriam através de representação cinematográfica: “Le festin

de Babette” e assiste-se a “pequenas histórias na grande história. Histórias de corpos e

de desejos” (HUBERMAN, 2011, p.17) e a exposição do seu projeto de escrita:

Numa história, há (ou não há) um momento de desvendamento a que se

chama sublime. Normalmente breve. Como penso que um leitor treinado já

conhece todos os enredos, quase só esse momento interessa à escrita.

Esse momento, tornado longa sequência sustentadora da vibração explícita, é

o nome de escrita. É a face escondida – mas que me importa desvendar - , das

técnicas narrativas já tradicionais (BDMT, p.48).

E Témia, aqui, enquanto “elo da escrita e da leitura – , está sobre a mesa em

forma de estátua” (BDMT, p 49), na dinâmica entre saber e sabor; conhecimento

sinestésico a passar pela boca e assim, “mastigar a luz” (BDMT, p 15). Órgão, segundo

Jean Chevalier e Alain Gheerbrant, em Dicionário de Símbolos, que indica uma

“abertura por onde passam o sopro, a palavra e o alimento; a boca é o símbolo da força

criadora e [...] da insuflação da alma. Órgão da palavra (verbum, logos) e do sopro

(spiritus)”, que tanto constrói como destrói: “a boca derruba tão depressa quanto edifica

seus castelos de palavras. É mediação entre a situação em que se encontra um ser e o

mundo inferior ou superior aos quais ele pode arrastar”. Aproximada ao “fogo” e ao

“ovo primordial”, “ela é o ponto de partida ou de convergência de duas direções.” De

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duplo aspecto, a boca “simboliza a origem das oposições, dos contrários e das

ambiguidades” (CHEVALIER, Jean e GHEERBRANT, Alain, 2009, p. 13). Em A

imagem sobrevivente, Didi-Huberman diz que, na Grécia antiga, o “ethos apolíneo” (a

lucidez de Apolo) e o “páthos dionisíaco” (a embriaguez das paixões de Dioniso)

expandem-se mutuamente, “quase como o galho duplo do mesmo tronco enraizado na

misteriosa profundeza da terra nutriz grega.” Acrescenta-se: “O Quattrocento sabia

apreciar essa dupla riqueza da Antiguidade pagã” (HUBERMAN, 2013, p.134). E, ao

contar o filme Le festin de Babette, Llansol inicia retomando as figuras de duas

beguinas: figuras do “misticismo renano”. Conta-nos José Augusto Mourão, em Europa

em sobreimpressão – Llansol e as dobras da história, que “as beguinas são as melhores

representantes de um misticismo amoroso, mais afectivo que especulativo, sem que tal

permita fazer a divisão sexista de, por um lado, um misticismo sensual e, do outro, um

misticismo intelectual” (MOURÃO, 2011, p. 33).

Os três últimos capítulos (“Um companheiro filosófico”, “O globo de contar” e

“As cópias da noite”) se referem ao processo de aprendizagem em si, com perguntas e

tentativas de respostas, através de uma construção por desconstrução, em retorno à

busca de sua essência: “Eu não existo ainda. Sou uma semente no homem amante”

(BDMT, p. 53). E por entre as casas erguidas (a da palavra e da sua história) a luz

brilhante, tal qual a dos vagalumes, vem em luz menor, por uma literatura menor: “vejo

uma ponta de bordado no pequeníssimo pano verde de um lenço” (BDMT, p.52); pois

“haveria uma luz menor possuindo os mesmos aspectos filosóficos”. E Huberman cita

Gilles Deleuze e Félix Guattari: “‘um forte coeficiente de desterritorialização’; ‘tudo ali

é político’; ‘tudo adquire um valor coletivo’, de modo que tudo ali fala do povo e das

‘condições revolucionárias’ imanentes à sua própria marginalização” (HUBERMAN,

2011, p.52).

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E assim, na escrita llansoliana “o pensamento caminha para dentro de si”

(BDMT, p. 103), por um discurso que “não nasce nunca. Sempre recomeça”

(HUBERMAN, 2013, p. 13). Sua escrita reconhece os fantasmas do passado, no seu

registro da perda, traçado por um caminho de uma des-possessão: “Outros objectos

presentes à existência da beleza poderão ainda deixar-me no seu lugar vazio, e partir”

(BDMT, p. 43). No vazio que é potência criadora, porque da “Nuvem Pairando”

fraturada de luz fez-se “uma fenda e avançou para o mar” (BDMT, p. 23). Mar que,

sobretudo, é manancial sobre o qual se deitam substratos de um “eu” que se constitui ao

longo e através de uma experiência de ler/escrever. Mar, esse, de uma casa portuguesa,

de uma cultura portuguesa, de uma geografia portuguesa – mar, esse, simplesmente,

português. Daí que se leia: “E _______é o cheiro do mar que me conduz ao mar”

(BDMT, p. 96):

Fazia frio em casa; o meu espírito pegou em Témia e saímos os três para luz

que envolvia toda a orla marítima numa dupla extensão de mar aéreo; ouço o

bramir das ondas nas faixas dessa luz,

e compreendo perfeitamente que a história dos homens acabou aqui.

Incluindo todas as pequenas histórias que eu estava ainda a contar.

Dei comigo a murmurar para Témia: “Não queiras um pai melhor do que o

meu; certos pecados são um privilégio sobre esta terra (BDMT, p. 96).

E, no tempo, viu-se o “irmão pendurado, palavra indizível” (BDMT, p. 23); mas

foi no próprio tempo que se compreendeu que “o indizível é feito de mim mesma, Gabi,

agarrada ao silêncio que elas representam” (BDMT, p. 113). Assim, “pensar o tempo

significa, portanto, a obrigação de pensar na linguagem que o diz e que ‘nele’ se diz”

(GAGNEBIN, 1997, p.73). Do tempo, Didi-Huberman, em A Imagem sobrevivente,

fala:

O tempo não faz apenas escoar: ele trabalha. Constrói-se e desmorona,

desagrega-se e se metamorfoseia. Desliza, cai e renasce. Enterra-se e

ressurge. Decompõe-se, recompõe-se: em outro lugar ou de outra maneira,

em tensões ou em latências, em polaridades ou ambivalências, em tempos

musicais ou em contratempos (HUBERMAN, 2013, p. 280).

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Com uma trama de “presente sensorial e memória simbólica” (HUBERMAN,

2013, p. 347), Llansol diz que “o tempo é, visualmente, descolorido, e passa de uma

maneira apagada e branca, mesmo quando cobre ‘cenas fulgor’”. E pergunta(-se): “—

Como se passa de uma vida humana a um livro que se leia por entre nós?” (BDMT,

p.26). E ela, talvez, assim responda: na aceitação “sem ver”, pelo “esforço ininterrupto

de ler. Ler, lendo, antes de ler, a ler, depois de ler, lembrando que estava a ler,

lembrando a leitura, lembrando o pequeno tapete, ou quadro, em que pousamos os pés.”

Ou simplesmente: “leio, ela lê” (BDMT, p. 117) com o “medo, um quarto de palavra, e

a descida a esta morada” (BDMT, p. 26).

[Casa dos avós paternos de Maria Gabriela Llansol – Imagem cedida pelo Espaço Llansol]

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CAPÍTULO II

“UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL”

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(Tenho sempre diante dos olhos a imitação da luz com que nasci. A luz é o princípio da palavra,

mesmo se for primeiro grito, ou vagido)

Maria Gabriela Llansol

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2. “UMA LINHA QUE ME ATA AO SOL”

2.1. Luz Incomum

“O princípio da luz é uma arca; [...] Eu fui o primeiro que

afirmei que sou iluminado por ti”.

Llansol, Amar um cão

Em Amar um cão, Maria Gabriela Llansol, em um diálogo a partir de Jade, o

cão “que acabara de nascer” (AC, p. 8), inicia o curto; porém, intenso, texto ressaltando

a brevidade do tempo dado por um espaço de intermédio e de seres híbridos:

_______houve uma breve hesitação da parte de quem transportava o

recém-nascido _______ o meu cão Jade, há muito tempo; muito, e com

grande intensidade, aconteceu durante esse tempo breve em que Jade foi

deixado suspenso sobre um medronheiro, sem mãe visível, num berço nem

celeste,

nem terrestre. No lugar que toda planta acolhe, e que o entregara ao

medronheiro,

sentia sobre si uma incidência animal alada,

que nem era verdadeiramente pássaro,

nem verdadeiramente quadrúpede (AC, p.8).

Importante observar que, com Jade, Llansol afirma existir uma linguagem para

além da palavra onde “só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca”

(AC, p. 8). Porque “pesa a palavra” e há o desejo “de que ela fique muda” (AC, p. 11).

Assim, no esvaziamento da linguagem, surge o novo, de uma nova e ressignificada

imagem. Percebe-se que a aprendizagem e a memória trazida se constituem “através do

outro, e em face do outro” e por onde, sob o olhar, “um ser sendo forja a sua

identidade.”

Na dicotomia que há entre o diverso, Llansol lança a possibilidade de uma

“aliança”, através da “grandeza luminosa” (AC, p. 13) de se estar com o outro, de tal

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forma que “o princípio da luz é uma arca”, onde, em silêncio, diz: “sou iluminado por

ti” (AC, p. 17).

Neste capítulo, busca-se evidenciar a procura llansoliana por um lugar outro,

fora da luz comum, daquela que ilumina marido e mulher, pais e filhos: “procuro outro

lugar à mesa, o lugar ao lado do outro que me estimule e cause medo [...]26

” (AC, p. 18).

Esse espaço único se constitui “no intervalo do afecto”, “entre perigos e prazeres” (AC,

p. 19), pela ação de leitura e escrita mediada pelo ato aprendiz em constante

movimento; “movimento [que] é a passagem obrigatória para a pupila” (AC, p. 15),

pois dela vem a memória: “a memória vê primeiro o porto de nascer” (AC, p. 9).

Assim, ler e escrever são atividades de uma “alma crescendo”, que tanto parte

quanto obedece, indo por um “caminho seu” (AC, p. 26), pois não há como “ser bom

ser se não estiver na perpendicular do ceptro” (AC, p. 15), na reflexão que permite

“pensar a palavra” (AC, p. 11) e fazê-la desaparecer, em ressignificação, pelas “práticas

do silêncio” (AC, p. 16) e da decepação da memória; pois estar na “perpendicular do

ceptro”, com Llansol, é estar, sobretudo, em equilíbrio; no ponto equalizante e voraz de

uma cena fulgor.

26

Medo, aqui, é o que recai sobre o vazio. Vazio, esse, que estimula e “cria a ficção” (SEIXO, 1986, p.

29). A ideia do “medo” dita, no prefácio ao Livro das Comunidades (Afrontamento, 1977; Relógio

D´Água, 1999) – “A primeira chama-se vazio provocado, a segunda é o dito o vazio continuado, e a

terceira é também chamada o vazio vislumbrado” – é trazida por Maria Alzira Seixo em, A palavra do

Romance (1986) ao pensar sobre a “tipologia do discurso ficcional” através da obra de Maria Gabriela

Llansol a partir do pressuposto llansoliano “Quem há que suporte o vazio? Talvez ninguém, nem Livro”.

Isso porque, segundo a autora, Llansol “é o caso mais revelador de um processo de mutação na

novelística portuguesa contemporânea, perigosamente oscilante sobre esse vazio onde se joga e se não

suporta como livro, que para mais o é de Comunidades, referência aberta à solidão comum. Fortemente

radicado na cultura tradicional de uma religiosidade que se afirma pela heresia, pelo heroísmo e pela

criação literária” (SEIXO, 1986, p. 29). Eis o que diz Maria Alzira Seixo: “No prefácio ao Livro das

Comunidades, de Maria Gabriela Llansol, diz-se que há três formas de vazio, e que são essas as coisas

que metem medo: a primeira é a mutação, o processo de alteração humana de que, diz, se ocupa o seu

livro; a segunda é o Tempo quando o Poder o domina sob a forma do que então se chamará a Tradição, de

que o seu livro também se ocupa, não seguindo em todo o caso a Trama da Existência, que a tradição

organiza, mas a Restante Vida que, ao escapar-lhe, a pode contar; a terceira, finalmente, é ‘um corp ‘a’

screver’, o vazio vislumbrado, onde se jogam os cometimentos da memória e da sua perda, onde existir se

articula com o cenário que lhe cabe e que aqui se chama Paisagem. Suportar o vazio, isto é, prolongá-lo

na sua duração permitida, é tido como acção impraticável de vida ou de escrita. Assim se cria a ficção,

modo de inventar suportes inexistentes, relações de tempo inverosímeis, sentidos de carga impraticável;

ou tudo isso possível, de efectividade assumidamente concreta, mas falível como corpo material que só a

escrita produzida diz, vislumbrando a sua vacilação” (SEIXO, 1986, p. 28-29).

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Jade também é a representação do leitor. Daquele que aprende a ler a partir da

fala de quem escreve; a quem o autor alimenta pela “lei do hábito de servir” e não pela

ordem capitalista, mercantil – mas, cultural; e com quem cria afeto pelo elo construtivo

da interrogação e da busca do lugar enigmático da “luz clara”. A esta “relação de alma

crescendo, [...] nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de um livro [...]” (AC, p.

20). Porque “o seu existe para si”, “seguindo o itinerário da geografia do seu corpo”

(AC, p. 26) e eis que no centro da cena fulgor, não há morte – pois “o teu cão vive,

nela” (AC, p. 27), em imagem, pelo afeto, na voz presente; vivacidade porquanto seja

intensa a permanência da imagem na memória.

Esses são os contornos que percorrem as vinte e três páginas do livro Amar um

Cão, escritas em Azenhas do Mar nos finais de agosto de 1990. Pela edição de 2007,

publicada pela Assírio & Alvim, Amar um cão traz a ilustração de Augusto Joaquim

referente à sua leitura da obra llansoliana e uma adenda textual explicativa da origem

das imagens. Ilustração e texto em comunhão imagética vinda pela comunhão

matrimonial e sinestésica dos autores amantes, especialmente, do ato de criar figuras. E,

assim, o livro dessa edição intitula-se: Desenhos a lápis com fala – Amar um cão; E, na

parte final, há escrito “o tempo na ponta do lápis” – posfácio de João Barrento, unindo

as interrogações às quais as vozes se propõem a cantar: “Nasce-se como? Morre-se

como?” E mais: “Como se age entre estes dois pontos, que relações se tecem entre os

seres, homens ou cães? Como se chega, nesse percurso, a receber o ‘dom poético’ e a

praticar a ‘liberdade de consciência’?” E o autor-ensaísta aponta: “a resposta, que é a de

todo o texto de Llansol, está num dos desenhos: ‘Ficámos no tempo? Sim, ficamos.’

Para viver o Ser no Tempo de forma plena e múltipla.” (BARRENTO, 2010, p. 92).

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Tempo, este, que se volta para o Aberto do infinito27

. Porque, aqui, a morte não

tem lugar já que o texto, em revisitação, a transmuta de lugar e de forma, em direção ao

espaço sempre nascente. É, assim, no aberto do tempo que se dá a expressão do

incognoscível porquanto ainda seja sua materialidade sensível inominável na

linearidade e orientação do código verbal; mostrando-se, apenas, evidenciada quando

sentida e partilhada em e por elos de afeto. Afeto, portanto, que tanto é base quanto

travessia; lugar de passagem, em suma. Lugar que é corpo sinestésico do silêncio: “O

tempo não nos está contado na língua, mas no corpo” (ATJ, 117). Em maio de 1999,

diz Llansol, em um dos seus cadernos ainda a ser publicado que “o silêncio é uma

pedra, um estilete”; “um acto sem sentido de comunicação”:

Data: 09/5/99 – domingo

Nenhum drama me afasta do silêncio que só é poético para quem

não ousa quebrar o silêncio. O silêncio é uma pedra, o estilete que nele

inscreve

________

um acto sem sentido

de comunicação (Espólio de Maria Gabriela Llansol, Caderno 1.54, p.89).

E o que é Jade senão também a nomeação de uma pedra? É pedra e cor. Em

Grafia 1, Fiama Hasse Pais Brandão escreve “a sílaba é uma pedra álgida / sobre o

equilíbrio dos olhos [...] onde as mãos derrubam arestas / a palavra principia”

(BRANDÃO, 2010, p. 34). Em Llansol, Jade é um princípio material e textual, que

caminhando em direção ao aberto entre o Vivo, vem da memória sua imagem primeira:

“[...] caminho através da murta, do aderno, da aroeira, e avistei esta serra em que a

27

A ideia do “Aberto”reside enquanto espaço múltiplo de possibilidade; um “lugar futurante” (Cf.

BARRENTO, 2009, p. 148); ou ainda como afirma Agamben , em A comunidade que vem, no lugar

amplo onde algo é “continuamente gerado” (AGAMBEN, 2013, p. 35); ou, simplesmente, como diz Raul

Antelo na orelha do livro ao definir “Che viene”: “Algo que está sempre chegando”.

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memória vê primeiro o porto de nascer; mal nasci, situei-me, em vida interior, em face

do mar”; e opõe-se à sua dona em duelo afetuoso de escolha, desejo e rebeldia: “ergo

para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza,

me ama: faço-lhe pedidos / luta comigo; dá-me a sensação de ter saído vencido, mas

com rebeldia”(AA, p. 9). Assim, Jade como “a palavra” são princípios fundadores do

Novo, da experienciação aberta sobre o tempo e no duelo travado pelo corpo que age,

por onde “as mãos derrubam arestas” e onde a pedra-Jade é também “estilete”.

Percurso, assim, de corte e de busca em que Jade explica: “________ porque o

movimento ________ é a passagem obrigatória para a pupila. Vou daqui ________

porque este é o ponto onde os meus olhos se formaram”; eis que nesse encontro

textual,“sobre o equilíbrio dos olhos”, está “a perpendicular do ceptro”: “não estou

sujeito ao poder da minha dona por temor; não posso ser bom ser se não estiver na

perpendicular do ceptro” (AA, p. 15). E aqui, ao modo de “Grafia 1”, lê-se um jogo

tensional marcado pela presença da condicional “se” na reiteração do campo sinestésico

trazido pela fruição dos corpos linguísticos em movimentos de réplica. E desta certeza

sensorial, diz Maria Gabriela Llansol no avulso acima: “Tenho sempre diante dos olhos

a imitação da luz com que nasci. A luz é o princípio da palavra, mesmo se for primeiro

grito, ou vagido”.

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(Tudo depende do lugar do olhar)

Maria Etelvina Santos, ao pensar sobre a questão da “luz comum” em Maria

Gabriela Llansol, faz um paralelo entre o quadro de Georges de La Tour, intitulado “A

Educação da Virgem”, de 1640; e a “figura de leitura” banhada em luz que Llansol dá a

ver em seus livros, pois como diz Etelvina: “Esta ‘cena fulgor’ cheia de luz e fora da

‘luz comum’ pode dar a ver toda uma teoria da leitura, também presente em linhas de

Um Beijo Dado Mais Tarde, e cita: “e que leia [Myriam] como se fecha o livro / com a

luz na mão / e sem chegar a um fim”.

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[Educação da Virgem, Óleo sobre tela por Georges de La Tour – 1640]

Eis a possível teoria:

Se o quadro obedecesse ao princípio da “luz comum”,

provavelmente Ana teria nas mãos a vela, e Myriam seguraria o livro –

assim, Ana iluminaria o objecto que Myriam pretende ler; Ana, a que dá a

ler, teria o rosto mais iluminado, e Myriam teria mais perto dos olhos o seu

objecto de leitura. Mas, desse modo, a luz não incidiria fortemente no rosto

de Myriam, a que aprende a ler. E é esse o “lugar da luz”, neste quadro – o

rosto de Myriam (a legente), a figura ímpar nesta cena. Do seu rosto, a luz

prolonga-se até ao livro; mas, para que possa incidir sobre ele, a chama da

vela quase queima a mão de Myriam (como se a mão fosse posta “a arder”

por ele). Literalmente, só os olhos de Myriam e o pequeno dedo da sua mão

esquerda mostram o objecto de leitura. Quanto aos olhos de Ana, parecem

perder-se no ventre de Myriam – o lugar da “anunciação”.

Se traçarmos uma linha que ligue os olhos de Myriam ao dedo

mínimo da sua mão esquerda e, a partir dessa linha, uma outra que se dirija

aos olhos de Ana, veremos surgir, dessa intersecção, um ângulo que é o

espaço-lugar onde dialogam os “elementos de leitura” que figuram no

quadro: a mão direita de Myriam – “mão-chama de vela” a arder – sobre o

livro, nos joelhos de Ana (e, ainda, um “objecto inocente” perdido, ao

fundo). Estas possíveis linhas de construção interna transportam o legente

deste quadro para o lugar de um livro iluminado e da mão que, por ele, foi

posta “a arder” (SANTOS, 2007, p. 34).

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E Amar um cão é esse lugar “a arder”, em combustão imanente das palavras que

vêm à boca em jogo e em voo. Lugar em que a mão traz o “desassossego e o dilúvio” e

faz quebrar “a palavra obediente” em pedaços: “um, para partir ainda; outro, para partir

de novo, e o terceiro para fazer desaparecer no puro espírito, donde resultou

obedescente” (AC, p. 15). Em “partir e obedecer”, através do jogo “obedescente e

obediente” da voz, há o que Llansol vem nomear de “os perigos do poço e os prazeres

do jogo”(AC, p. 14, grifos do texto), estabelecendo que o risco do poço é que se dá em

abismo; no abismo de se estar situado no “ponto voraz” do limite, no movimento em

que o “eu” se põe em circulação por entre as margens do interior e do exterior; no elo

sobrevivente travado entre vontade e normatividade; perigo, este, o do poço trazido pelo

gozo do “prazer do jogo”. Abismar-se em si é mergulhar dentro da própria interioridade

ao qual o eu se estrutura, mas por vontade e desejo sob “a luz do luar libidinal”. E o

Poder exercido sob os corpos, é uma força de afeto, não absoluta porque fragmentada; e

não singular porque nele existe “o encontro inesperado do diverso”28

. Poder, que sendo

uma força múltipla e não hierárquica, se dá pela força de atração de um “ardente texto”,

orientado pelo elo de grandeza luminosa feita, em Amar um cão, por uma Aliança com

o Sol no espaço Aberto do Tempo. Importa lembrar que Jade é um princípio de luz em

seu duplo nascimento: no cão que é ser de vida no corpo pedra-física-Jade, e no vivo em

real não-existente, vindo à lume pelo corpo-textual de leitura e escrita. Singularidade

sobreposta por uma duplicidade, que iluminada por uma chama de liberdade, volta-se

para o interior da casa para com ela evoluir e crescer:

O princípio da luz é uma arca; descobre, Jade, como sobre este jardim se

correspondem, em miniaturas de fogo ao sol, grandes distâncias. ‘Eu fui o

primeiro que afirmei que sou iluminado por ti’. É quase meio-dia, e levanto-

me da minha pedra com Jade nos calcanhares porque, como era natural, o sol

venceu-nos; é visível que há no sol muitos invisíveis, nossos adversários, e

que esse leal combate corpo a corpo é o princípio contrário à luz comum, da

nossa aliança (AC, p.17-18).

28

Referência ao subtítulo de Lisboaleipzig1 – o encontro inesperado do diverso (1993).

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E o “princípio contrário à luz comum” é o da “fraternidade do ímpar”, como

afirma Maria Etelvina Santos: “esse texto dá a ver o lugar e o tempo da fraternidade do

ímpar – um lugar entre e um tempo em devir”; pois o mundo sob o qual se coloca em

diálogo é o mundo da união “dos ímpares, dos híbridos, dos fulgorizáveis, onde escrita,

plantas, animais e letras (trelas de partir) coabitam”, através do deslocamento do olhar,

“habituado à ‘luz comum’ e a ‘lei do hábito de servir’”. E acrescenta que “o drama – a

luta voluntária – a que são chamados é o da mútua não-anulação” (SANTOS, 2007, p.

20). Daí, não existir violência; eis a mansidão pela liberdade do “ser sendo”: “Jade, o

manso, cortou os ares [...]” (AA, p. 14).

(la loyauté envers l´espèce / l´adoration du destin / je suis pris par l´esprit dans l´esprit et je ne connais

pas la liberté d´aller n´importe où, ni n´importe comment: Il me prend dans ses bras et me modèle avec

ses mains. Il ne dira probablement jamais ce qu´il veut que je devienne.)

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Dada a imagem de Augusto Joaquim, é possível inferir em um eu-partícula, que,

ao circular pelo campo magnético, caminha por um fluxo sem saber da direção e nem do

sentido, indo do mais ao menos, do positivo ao negativo; por um fluido onde não se

sabe a origem e nem o final, pois o seu “eu-espírito” está ali aprisionado pelos braços

que o cercam. Contudo, junto ao movimento que comprime, dá-se a forma com as

mãos. Pelo movimento silencioso do toque sinestésico das mãos, o “eu-espírito”, ao ser

tolhido, é também modelado. Nasce-se, assim, pelo trabalho das mãos, órgão-ol[h]eiro

da vida. Forma que não se finda, pois o desvelo buscado se dá em eterna procura: é

enigma verbal, pelo cantar, aqui da “letra” e da “trela do cão”. Junção do diverso que

não funde, mas t[r]oca-se em veste energética de partícula, por processos de mutação,

indo ao Aberto do tempo. Por isso, a advertência final: “Il ne dira probablement jamais

ce qu´il veut que devienne.” É o que diz Maria Gabriela Llansol em um avulso, de 08 de

dezembro de 1980 ao mencionar a transitoriedade sobre o qual o “eu” está inserido

através do vocábulo “viagem”, o espaço de aproximação em que esse “eu” se põe diante

a um referido lugar-espaço em referência ao campo associativo, que aqui, é expresso

pelo dado geográfico “próximo a Bruxelas”, o particular diante do coletivo ao afirmar

“para mim”; “a meus olhos” e à decisão de escrita que, da luz comum, deseja “alargar

um pouco o espaço” – um buscar, assim, da luz incomum:

8 de Dezembro de 1980

durante a viagem, já próximo de Bruxelas

Quando as árvores se tornaram para mim descrições de frases, foi

o efeito da neve de que estavam carregadas e que, a meus olhos, as

tornava duplamente árvores. Árvores de pensamento, como as árvores

genealógicas, não árvores de contentamento.

A neve que não cai sobre as árvores, nasce delas; não vi cair a

neve hoje.

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Anterrosto de Um Quarto Que Seja Seu (Ed. Vega, 1978)

E acrescenta Llansol:

Decidimos, o Augusto e eu, tornar os quartos do primeiro andar,

os que estão voltados à luz directa do sol, quartos de escrita. Basta abrir

um rectângulo na parede de madeira e alargar um pouco o espaço.

Dado que a janela do meu quarto é pequena, precisava de poder

receber a reflexão pelas duas janelas. (Guarda e página de anterrosto de Um

Quarto que Seja Seu, Exemplar da biblioteca de M. G. Llansol)

É, desse modo, que Llansol se encontra “no novo” (L1, p. 84), no espaço

intervalar de uma passagem, posto que o “combate” e o “risco”29

– diante do qual o

“eu”se coloca frente ao aspecto de permanente mutação e que vêm nortear toda a sua

obra – giram em torno de uma perspectiva de “nascividade” por uma escolha decisória

de “uma modalidade nascente”, centrada em “um ser que não é em tal ou tal modo de

ser, mas um ser que é o seu modo de ser e, portanto, mesmo permanecendo singular e

não indiferente, é múltiplo e vale para todos”. Isto é o que afirma Giorgio Agamben, em

A comunidade que vem, ao dizer que “somente a ideia dessa modalidade nascente, desse

maneirismo original do ser, permite encontrar um caminho comum entre a ontologia e a

ética”; ou ainda: “Um tal ser que é continuamente gerado a partir da sua própria

29

Esses conceitos de “combate” e “risco” serão abordados ao longo dos demais capítulos.

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maneira”. E cita sobre a ética: “ética é a maneira que não nos ocorre nem nos funda,

mas nos gera. E esse ser gerado pela própria maneira é a única felicidade

verdadeiramente possível para os homens” (AGAMBEN, 2013, p. 34-35).

Voltado “à luz directa do sol”, e em “Aliança”, Amar um cão segue, assim,

numa travessia da vida à morte e da morte que não se evidencia à vida que prossegue

em escrita. Travessia dada por um duplo nascimento, material e imaterial, que, em

coexistência temporal, dois corpos simultaneamente vem a lume, através da

instabilidade da aposta no desconhecido e da hesitação que sugere toda a expectativa da

espera. Jade vem antes em pensamento trazida pela mão da criança. E com ela deseja

aprender, por meio de uma linguagem outra – que tudo diz através da trela e da letra,

códigos divergentes que se esvaziam para com o silêncio ganharem afetuosamente a

significação comum; e, assim, atingirem, em comunhão e por vontade própria, a

comunicação desejada. Percurso sem fim, que segue em espiral de idas e vindas. Amar

um Cão reitera e ensina o já proposto em livros anteriores; pois, aprender é, sobretudo,

ler. E “ler é nunca chegar ao fim de um livro” (AC, p. 20-21) na textualidade

llansoliana. E se o caminho percorrido é ascese individual; a trajetória vem

compartilhada por mãos alheias; não pelo alheamento que sugere a indiferença; mas

pela essência de alteridade que no termo habita. Pluralidade de mãos que, no impessoal

que lhes acompanha, é singularidade. Desse modo, o caminho vem acompanhado pela

figura do outro, que em Amar um cão, esse outro é definido pela experiência da partilha.

Por isso, Jade nasce de “mãe desconhecida”; pois nasce-se de várias formas. Vivência

que se expande no espaço-tempo humano, encontrando no plano da escrita sua forma

configurada do Aberto. Com Llansol, nasce-se textualmente “no decurso da leitura

silenciosa de um poema” (OVDP, p. 11); nasce-se do sol: “O sol despontou

ligeiramente, e uma pequena vibração circunscrita nasceu” (Caderno 1.40, 56-57); e

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vive-se da memória que ativa a imagem do existente, fazendo-o um vivo em realidade

não-existente: “a memória vê primeiro o porto de nascer; mal nasci, situei-me em vida

interior, em face do mar”. Nasce e ergue-se, em duelo amoroso, com quem ama: “ergo

para a minha dona os meus olhos frágeis, opondo-me a uma adversária que, de certeza,

me ama” (AC, p.9). É na antítese que se dá o crescimento e a perpetuidade; pois “a

morte é dar como verdadeiro o que é” (AC, p. 25). Daí que em Contos do Mal Errante

esteja escrito: “E a mansão infinitamente mais próxima do cântico invernal do que eu

esperava; mas um cântico invernal não é a morte, nem a imobilidade: é o deixar

espalhadas sobre a mesa todas as letras do nome de Amor” (CME, p. 218). Assim, como

nos fala Silvina Rodrigues Lopes, é na dispersão das letras espalhadas que se é possível

a renovação do amor, onde a fala llansoliana de “deixar espalhadas as letras” é um

“dispersar hipóteses”. E acrescenta: “a palavra ‘amor’ não só não tem um significado

próprio como tem por efeito a decepação de significados”; e explica: “pela sua

envolvência num fluido pregnante que aparece como ‘uma não empobrecida linguagem

universal30

’, mas simplesmente uma linguagem desconhecida que penetra as linguagens,

uma escrita secreta e indecifrável” (LOPES, 1987, p. 107). E diante do indecifrável,

“desconhece-se o amor como se desconhece a disposição que leva à escrita” (LOPES,

1987, p. 107). Ainda em Contos do Mal Errante, e de volta à ideia do “ímpar”, Eduardo

Prado Coelho escreve “O amor ímpar” sobre esse livro das Edições Rolim, de 1986.

Nele, o autor cita que “para Maria Gabriela Llansol, o amor não pode deixar de ser um

processo de conhecimento”; e explica: “Por outras palavras, o amor é a resposta a um

apelo (em Um falcão no punho: não interessa perguntar ‘quem sou eu?’, mas ‘quem me

chama?’). E diz que “esse apelo vem de uma realidade que, subitamente, se tornou

30

“Tão certos eram esses seres coloridos e múltiplos, que as formas de fazer amor jorravam de mil fontes,

gestos e palavras, olhares sobre os objectos. Uma não empobrecida linguagem universal estava escrita na

sala debaixo das patas do monstro” (RV, p. 59).

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integralmente igual ao pensamento (isto é, matéria figural a trabalhar) e vive em si

mesma como uma inextinguível forma de atracção: é um pensamento com movimento

próprio” (COELHO, 2012, p. 437) Pensamento que é vida, em Amar um cão; onde nela

se desnuda e se substancia em outra imagem: “Eu apago-me no cão que desejo, e vejo-o

mais longe, ao fundo do Coreto, dirigindo-se para mim mesma, com o seu andar de

levantar nuvens, e conhecer-me” (AC, p. 11) – estrutura coordenada e coexistente em

que a esfera temporal se alonga e se amplia por entre o espaço referido. Cão-

pensamento ou “cão do futuro”, sobre quem Llansol diz em texto:

Lanço, de facto, a imagem de um cão para o meio das outras crianças.

Reparam nele porque não pode estar no parque infantil, mas não o veem

como cão. Esta surpresa é um obstáculo a que o meu eu mais interior se

dissipe, e perca a consciência de ir buscar-me a outro lugar. Há um grande

abalo sob aquele solo onde as outras crianças brincam, projectadas no meu

pensamento, onde o cão do futuro é o meu verdadeiro interlocutor. Uma

sensação envolvente de ter encontrado o meu amigo no seu universo, marca o

meu riso de lugares obscuros e luminosos, sempre constantes (AC, p. 12).

Ainda por Eduardo Prado Coelho, em O texto equidistante, cujo mote é uma

reflexão sobre a Obra de Maria Gabriela Llansol, o autor, com base em Um falcão no

punho, fala que “o lugar e o tempo do presente se deslocam através do lugar e o tempo

do passado, e o que irrompe deste correr de cenários transparentes é uma outra emoção,

a emoção que emerge do próprio esforço de a pensarmos” (COELHO, 2012, p. 427). E

por essa superfície instável, de nada ser permanente, é que reside o texto ardente,

erotizado, pela tensão dos corpos em fruição – texto de sedução, como diz Llansol.

Segundo Angelloz, a simbologia que reside no termo “Livro Ardente”, das Elegias, é a

de ser “revelação”. De forma análoga, pela textualidade de Llansol, o corpo-livro-

ardente é, portanto, um corpo de revelação – um palimpsesto enigmático, onde todo o

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desejo reside em busca e em descoberta, velado pela luz que lhe acompanha. Sobre a

ideia de luz e revelação, diz Agamben:

Ideia da luz

Acendo a luz num quarto escuro; é um facto que o quarto iluminado já não é

o quarto escuro, que perdi para sempre. E no entanto: não será ainda o

mesmo quarto? Não será o quarto escuro o único conteúdo do quarto

iluminado? Aquilo que não posso ter, aquilo que, ao mesmo tempo, recua até

ao infinito e me empurra para adiante, não é mais que uma representação da

linguagem, o escuro pressupõe a luz, mas se renuncio a captar esse

pressuposto, se volto a atenção para a própria luz, se a recebo – então aquilo

que a luz me dá é o mesmo quarto, o escuro não hipotético. O único conteúdo

da revelação é a aquilo que é fechado em si, o que é velado – a luz é apenas a

chegada do escuro a si próprio. (AGAMBEN, 1999, 117)

Em Um beijo dado mais tarde, lê-se:

era o teu quarto, e o das criadas; à noite, seria o único quarto livre da

casa. Perguntas à Maria Adélia se a chama vacilante da lamparina não vai

apagar-se, deixar-te sem uma única referência visual, nem um único

fragmento dos móveis, ou objectos.

ela nunca quer que entres no calor da sua cama de ferro, ao lado da minha;

conta que uma lamparina de azeite nunca se apaga. É uma luz que realiza

sempre a função da luz – extrair objectos iluminados dos objectos apagados.

Faço com as duas mãos, o gesto de partir a luz aos bocados, e ela ri-se de

tudo o que eu digo, ou faço. Sem a luz, não se distingue o que se vê, nem o

biombo, nem o cesto da roupa suja, nem a mala, nem a cômoda, nem o copo

da lamparina. Por vezes, ela profere uma frase obscura, que tememos não

compreender (BDMT, p. 103-104)

Em Llansol, o lugar da “luz comum” cruza-se com o da luz incomum; é um estar

na luz, fora da luz, em desvio, por sobreposição; pois “o princípio da luz é uma arca”

(AC, p. 17) que tudo abarca no encontro com diverso, inclusive o que ainda não

compreende, pois “a vida não é essencialmente nem principalmente humana” diz a

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autora em Onde Vais Drama-Poesia31

? Em Um Beijo Dado Mais Tarde, escreve: “Não

sabia que soletrar se podia também dizer ‘sombras ligeiras’. O tempo passa; trata-se de

mim e do tempo, e da minha opção de vida que me obriga a medir-me inexoravelmente

com ele” (BDMT, p. 112).

João Barrento, em Um berço de perguntas – Amar um cão(1), diz que “a relação

do amor ímpar deixa-nos à beira do abismo, do perigo do poço, d´ ‘o que ainda não sei’,

do presente – e com Jade, diz a rapariguinha, [...], ‘eu sei o que é presente32

’”. E,

citando Barthes continua: “O amor ímpar, esse é como aquele ‘estar com quem se ama e

pensar noutra coisa: e é assim que tenho os melhores pensamentos’” (BARRENTO,

2007, p. 8). A ideia do ímpar é a da ausência de completude; que não tendo par, não

sendo um par perfeito, segue em sua permanente procura: “Só eu fui à sua procura”

(AC, p. 29). Procura que é busca individual; onde a partilha com o outro se realiza como

um bem a si próprio (“para ele se refrescar”) e onde a descoberta da experiência vem

pelo encontro dado em comunidade, revelada em escrita sobreposta de Vivos (“folha de

alface”):

Foi por causa dessa nostalgia que sonhei, esta noite, que Jade tinha

deixado a casa. Só eu fui à sua procura, e um homem, que encontrei numa

aldeia, deu-me uma folha de alface para ele se refrescar; uma mulher deu-me

os seus sinais, e bati a uma parede, do lado da rua. Jade veio-me, e deitou-se,

dando à cauda, num enorme prato de leite. Felizmente, havia a trela, e trouxe-

o para o Coreto do Jardim da Estrela, para o lugar de onde havíamos partido

(AC, p. 29).

E por esse lugar que é espaço de leitura e berço de memórias, Llansol diz: “Eu

sei que, pouco a pouco, passaremos a viver noutro fundo de livro e de linguagem e

31

OVDP, p. 190. 32

(L2, p. 162).

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teremos, então, uma inquietação mais simples”33

. E pela perspectiva de um

conhecimento conjugado por seres híbridos, acrescenta: “A árvore sabe que eu não falo,

com estes termos, nem do abandono da vida, nem do abandono da razão. Falo de vir a

parecer-me com outro, semelhante a mim”. E se há nostalgia, ela passa a ser também

atravessada pelo processo de metamorfose de leitura/escrita: “A árvore tem o mesmo

desejo nostálgico, e é essa mudança, que há-de fazer-se pela sensibilidade, a que se

chama leitura” (BDMT, p. 112), caminho pelo qual se ultrapassa “a abóboda da solidão

humana” (AC, p. 24). Talvez seja este o (um dos) sentido(s) do júbilo: a propriedade

única do impróprio. Única porque ainda que pertencendo a um todo, esse pertencimento

não pode ser representado pelo real: “o pertencimento, o ser-tal, é aqui apenas relação

com uma totalidade vazia e indeterminada” (AGAMBEN, 2013, p. 63). Ou ainda: única

porque é um exercício atravessado por uma experiência que é “semelhante a mim”34

.

Por isso, Jade deseja aprender a ler. E para essa aprendizagem, solicita ao outro a

fala ininterrupta, “partindo a trela”: “Jade, partindo a trela, pediu-me que eu lhe

33

É a noção de “paz subalterna”, de Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004 a ser melhor vista em

capítulo seguinte. 34

Diz Agamben: “Qualquer é a figura da singularidade pura. A singularidade qualquer não tem

identidade, não é determinada relativamente a um conceito, mas também não é simplesmente

indeterminada; ela é, antes, determinada somente através da sua relação com a ideia, isto é, com a

totalidade das suas possibilidades. Através dessa relação, a singularidade confina, como disse Kant, com

todo o possível [...]. Isso significa que nesse confinar está em questão não um limite (Schanke), que não

conhece exterioridade, mas um limiar (Grenze), isto é, um ponto de contato com um espaço externo, que

deve permanecer vazio. Aquilo que o qualquer acrescenta à singularidade é apenas um vazio, apenas um

limiar, [...] o acontecimento de um fora. Importante aqui é que a noção de “fora”seja expressa, em muitas

línguas europeias, com uma palavra que significa “à porta” (fores é, em latim, a porta da casa, thyrathen,

em grego, quer dizer literalmente, “na soleira”, “no limiar”). O fora não é um outro espaço que jaz para

além de um espaço determinado, mas é a passagem, a exterioridade que lhe dá acesso – em uma palavra:

o seu rosto, o seu eidos. (AGAMBEN, 2013, p. 63-64). É nessa perspectiva de “passagem”, no lugar-

entre, que incide o trabalho de escrita llansoliano: “________ estou no meu lugar predilecto de escrever

_______ lugar do solstício de verão. É a entrada, entre a porta da rua e o lanço da escada que me revela

claramente o princípio de isolamento da casa. [...]. Uma luz quente que atravessa a greta da porta deixada

entreaberta cobre a máquina e eu sinto-me, o que tem sido raro agora, a muita distância acima do meu

ermo” (FP, p. 135). Ou ainda: “Depois começamos a desdobrar possibilidades – uma cena, outra cena,

paredes externas do embrião: Não. Os bandos não chegaram à ilha. Perderam-se. De como Pessoa

explicou o seu desencontro com Infausta. Bach não é ouvido em Leipzig. Pessoa não é consolado na

Índia. Mas o grande desejo comum é a viagem para Jerusalém. Bach: — Mais um passo, e estarás em

Jerusalém. Pessoa: — Mais um ser, e estaria em Jerusalém. Eu, fazendo minha exclamação de Pessoa:

— Eu não sei o que amanhã trará. Quem pensa, dispõe-se a um infinito de realidades para além de si

mesmo” (FP, p. 136).

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falasse ininterruptamente para ele aprender a ler” (AC, p.14). Partir, assim, a trela é,

desse modo, dissipar e fragmentar sua própria linguagem. Esvaziamento que será

preenchido pelo ato da fala. É a aprendizagem de leitura trazida pelo jogo de oralidade e

escuta; mas não só pela boca se fala. Com Llansol, a apreensão do significado se dá

pelas diversas formas de se fazer “ouvir”, por enunciados imagéticos e visuais, pelo

toque sinestésico e pelo silêncio que completa e amplifica o espaço do dizer: “________

as actividades práticas do silêncio são o sossego de sair, a alegria de não interceptar as

vozes que me falam, e o sentimento de ter um movimento idêntico ao de Jade: também

é uma actividade prática do silêncio, a própria descrição do silêncio por meio do

silêncio” (AC, p.16).

Esvaziamento que, pela “prática do silêncio” é elo com o futuro:

Principio a recorrer às palavras que anunciam a realidade [...]. Avanço outra

palavra por entre os canteiros, na esperança, afinal, de que ela fique muda, e

eu possa brincar melhor sozinha, com o traço de união que me é próprio e me

há-de ligar, no futuro, à sua imagem – Que cão tão só, vou acompanhá-lo

comigo (AC, 11-12).

Desse modo, Jade, o cão do futuro, conhece o modo pelo qual o aprender se

estabelece,pois diz querer “aprender a ler sobre um texto” que um eu-autor se põe “a

arder” (AC, p. 1435

). E nesse percurso corre, brinca, entra no “reino” imaginário das

palavras, e segue com a criança: “Jade corre pela praia, à minha frente. Corre paralelo às

águas. [...]. Uma criança corre com ele, e partilham ambos o exercício de correr”.

Criança e cão vão juntos e correm paralelos ao fluido movente da vida – no espaço

fecundo do aberto e oxigenado pelo ar renovado e salgado do mar quando “o sopro da

35

Grifos nossos.

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vida é a leitura” (AC, p.14) de um texto ardente36

. É tratado espiritual no convexo do

humano. É Ardente texto Joshua37

. E o texto adverte: “Só param quando o mar começa,

porque não têm membros adequados para sobrevoar o Oceano, nem poder fazer chão

sólido o que é movente e líquido”. Com Llansol, não há fusão; já que é na alteridade

que se dá a possibilidade do encontro – “o encontro inesperado do diverso”.

Criança e cão vão “à frente” de quem lê-escreve. Enquanto isso, nesse litoral,

“um homem velho curva-se para um monte de areia. Observa, e afasta-se”. Das

imagens, observa-se uma sobreposição temporal cujo presente se concentra pela figura

de quem, tendo já aprendido a ler, escreve. O passado é trazido pela figura do velho que

se “curva para o monte de areia”, movimento introspectivo que tem como direção um

conjunto de fragmentos dispostos diante de si; pois a vida se reconstitui em memória tal

como uma paisagem vinda em mosaico, em pedaços que pedem seus elos de ligação. A

criança e o cão são marcas do futuro, que “vão à frente” dos que lá estão. Com eles, se

conjuga o tempo presente de quem escreve, pela limitação imposta ao alcance do seu

olhar; e o tempo passado representado pelo “velho” – que, embora estando, logo “se

afasta”. São eles, pois, que antecedem o tempo futuro no presente e correm através das

imagens de quem escreve e se afasta. Esse é o retorno do mútuo38

em Llansol, pela

perspectiva da metamorfose que não anula a anterioridade que a antecede, mas que a

conjuga e a transforma a partir do encontro no tempo sincrônico da experiência: “ontem,

reunindo o espaço com o tempo, resultou uma criança. (BDMT, p. 70). Daí que a

memória veja “primeiro o porto de nascer” (AC, p. 9), pois ao unir os fios de

36

Escreve Maria Gabriela Llansol em um de seus caderninhos em 30 de junho de 1993: “Não há

verdadeiro pensamento na costura cultural portuguesa. Organiza-se o texto do “como se”, do como se não

houvesse outra realidade. Que fazer? Pôr no mundo crianças de nascer, e não crianças de cópia

__________” (Llansol, Caderno 1.38, pág. 7). 37

Livro publicado por M.G.L. em 1998. 38

A ideia de repetição que há implícita na perspectiva do “eterno retorno do mútuo” indica tensionar a

linguagem, na paradoxal ação de afirmar e negar. É, sobretudo, aprender a “ambiguidade” que “deriva”

no (e pelo) texto que ensina. Aprendizagem que vem em linguagem, atravessada pela voz do sujeito que

lê/escreve num espaço “entre” – o que implica a ação reescrever e reler continuamente, por “mil

combinações” (AMARAL, 2010, p. 145 - Alusão ao poema “Queixas e Resignações”).

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pensamento, por elos de afeto, antecipa o que ainda não tem correspondente verbal, pois

será ela a dar voz o que só é trazido, primeiramente, pelo olhar silencioso de quem ainda

é aprendiz: “Jade que acabara de nascer [...] já pensava. [...]. Ele trazia nos olhos um

instrumento azul para medir o diâmetro do sol, e dos astros; lia-se neles uma linguagem

que só mais tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca” (AC, p. 8). E

“nascer” presume-se “pensar”, refletir, ler.

Segundo João Barrento “o nascimento-aparição [de Jade] é um acontecer que se

insere num espaço-tempo” dado primeiramente “como distante e indefinido (‘há muito

tempo’) – e com isso, anulado em termos de qualquer cronologia precisa – , mas ao

mesmo, no instante desse nascimento-aparição, é breve e intenso”. Desse modo, breve e

intenso, “o tempo foge ao tempo como res extensa e cita, para além do “Agora” de

Kierkegaard, de Migalhas Filosóficas, o “Presente Absoluto”, de Santo Agostinho, em

Confissões:

O que agora claramente transparece é que nem há tempos futuros e nem

pretéritos. É impróprio afirmar: os tempos são três, pretérito, presente e

futuro. Mas talvez fosse próprio dizer que os tempos são três: presente das

coisas passadas, presente das coisas presentes, presente das coisas futuras [...]

– lembrança presente das coisas passadas, visão presente das coisas presentes

e esperança presente das coisas futuras (LIVRO XI, 20).

Com São João da Cruz, lê-se na epígrafe de Depois de os pregos na erva: “A

ascese da memória leva à esperança”; Em Um beijo dado mais tarde, Llansol indaga: “o

que é o tempo circunciso?” E responde: “É a nova fase da minha vida, uma espécie de

apelo retido no meu nome, que entra claramente pelos restos da minha vida de hoje”

(BDMT, p. 71-72). E a cena fulgor seguinte é a de trazer para o centro da imagem a

boneca da infância que já fora de geração outrora; e, então, decepá-la, por mudar-lhe o

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nome; “querer lavá-la” e “tirar-lhe o verniz”, para que, mudando, o espaço possa ser

propício à alegria:

à tarde, trouxe-lhe da casa que atinge o fim dos seus dias, Juta, uma boneca

da infância da minha tia Assafora, de há quase cem anos; mudei-lhe o nome

para Miosótis e, ao querer lavá-la com algodão embebido em álcool, tirei-lhe

o verniz do peito; é nesta sequência de, lentamente, mudar objectos de lugar,

desejando que o espaço que os cerca seja, em extremo, alegre aqui, (BDMT,

p. 72)

E em Llansol, “mudar, ou desaparecer – era o pó do [meu] crescimento”

(BDMT, p. 70).

E cresce-se como quem costura, amarrando os fios pelo tecido do tempo; de

modo que “uma frase, lida destacadamente, aproximada de outra que talvez já lhe

correspondesse em silêncio, é uma alma crescendo”. Tecido que é nó temporal e

textual, sobrepostos em silêncio. Cresce-se “através do outro, e em face do outro”, no

infinito do tempo. E “sob o seu olhar, um ser sendo forja a sua identidade”. E, pelo

processo de metamorfose e pela coexistência do encontro de híbridos, proporcionada

pela neutralidade advinda do esvaziamento de cada ser, “o cão” é aquele que sendo

animal, é nomeado por um termo mineral; e, nascido de uma árvore, o medronheiro,

vem adquirir dons humanos; aprende a ler, morre e se transforma em escrita, seguindo à

geografia própria do seu itinerário, em devir. Devir que, como simultaneidade, Llansol

explica em Um falcão no punho: “Como ser civil conheço o presente, o passado, e o

futuro. Mas como escritor tenho um olhar que toca sobretudo o espaço, livre de tempo.

Nele não há poder, que é sempre o poder de escolher e de chegar à morte” (FP, p.123).

Por esse devir, nesse tornar-se outro por transubstanciação, a figura do cão – como as de

toda a textualidade llansoliana – , é também figura metonímica da literatura, pois com

Foucault sabe-se que a literatura “não é a linguagem que se identifica consigo mesma

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até o ponto de sua incandescente manifestação”, mas um estar “fora de si mesma”, à

contraluz pela perspectiva de Novalis:

A literatura não é a linguagem que se identifica consigo mesma até o ponto

de sua incandescente manifestação, é a linguagem distanciando-se o mais

possível de si mesma, e se este colocar-se “fora de si mesma” põe em

evidência seu próprio ser, esta claridade repentina revela na distância mais do

que um sinal, uma dispersão mais do que um retorno dos signos sobre si

mesmos. (FOUCAULT, 1990, p.14).

Ou, como afirma Deleuze, a literatura enquanto “possibilidade de vida”.

[…] A literatura é uma saúde não só na medida em que arrasta a língua para

fora de seus sulcos costumeiros, mas também na medida em que está “do

lado do informe, do inacabamento”, como observa Deleuze. A literatura é

uma saúde, na medida em que não se reduz à neurose – ao “papai e mamãe”

– mas também na medida em que não se completa, em que não se precipita

ao ponto de uma psicose. A literatura é uma saúde também, e principalmente,

porque caminha em direção ao que ela é: seu desaparecimento. E, porque é

não-toda, e inacabada, a literatura é sempre porvir. Nisso reside também sua

saúde, que é também o seu delírio. Em não ser completa, em ser não-toda, em

saber que “escrever: não se pode”. Mas em insistir, sempre, em avançar em

direção à impossibilidade da escrita (DELEUZE, 1997, p. 15).

Jade, enquanto figura, acompanha os livros de Maria Gabriela Llansol desde A

Restante Vida, publicado em 1983. E Jade é, então, ser e não-ser, no sentido imaterial

do vivido; ou seja, é matéria-animal e pensamento-escrita imaterial. Conjuga consigo o

espaço atemporal do Cronos humano; é letra, palavra, memória. E neste percurso de

ascese individual, por meio da ação e vontade de ler/escrever, Jade ultrapassa o limite

físico da morte e retorna para o lugar de convívio em “espuma do texto” (AA, p.11) – já

em energia outra; pelo impulso sinestésico que há entre a letra e a trela. E, assim, segue

a “geografia do seu corpo” que, metamorfoseado por vários planos, vai em direção ao

caminho seu; onde “o seu existe para si”. Percepção dada em “cena fulgor” sobre a qual

ele próprio avança. Lugar onde a morte não existe; pois, em imagem, o cão ainda vive;

no e pelo vórtice de uma cena fulgor:

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Depois desses dois dias de grande dor, Jade partiu de Colares seguindo o

itinerário da geografia do seu corpo. Porque ele próprio tinha verificado que

o melhor caminho era o seu. O seu existe para si. E ele encontrou-se no

centro de uma cena fulgor. Avançando com a cena fulgor, chegou a uma

povoação onde havia uma mulher que tinha o cão doente, deitado num

relvado. Às portas da morte, como se diz dos humanos.

– Espera. E vem aqui, antes que o meu cão morra.

– Vai – respondeu-lhe Esse. – Em nome da cena fulgor que me acompanha,

aqui, ou ali,

o teu cão vive, nela (AC, p.27).

Eis o modo de ressuscitação Llansoliano, em que a “cena fulgor” tanto é clímax

quanto catarse; estado de sublimação; de vibração e alegria pela possibilidade de acesso

a um lugar outro: “Entremos então na palavra como vale encantado, não entre duas

montanhas, mas entre os humanos para que possa fazer de nós vivos no meio do vivo”

(L1, p. 120).

E sobre o tempo, a autora escreve junto ao livro “A restante vida”, no original o

fragmento abaixo que não é publicado:

________ a jovem Myriam pergunta-me:

— Ana, o que é o infinito?

Só posso mostrar-lho:

— O infinito tenha piedade de mim, e reze.

Quando em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, escreverá em

complementação: Há que se “rezar a leitura” (AA, p.). E que se leia, enfim, “como se

fecha o livro com a luz na mão, e sem chegar ao fim” (BDMT, p. 89) – um crepúsculo

de paz39

, em hora intervalar. Esta é a sua Ca(u)sa Amante, pois o eu que lê-escreve diz:

“e eu sonho, balouçando pelo espaço as recordações de hoje /e de amanhã – meu lugar

futuro” (Caderno 1.58, pp. 126-131, em 6 de Março [2000] / segunda). E por palavras

39

“Estava o pensamento diante da vela fazendo uma observação crítica da luz; certos textos, ainda os não

concebeu, mas é como se já os tivesse imaginado; é a realização de mais um passo; um crepúsculo de paz

– sua hora preferida [...]” (BDMT, p. 88).

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outras, (re)vê-se Amar um cão em livro-outro, de 1996, esvaindo-se em pura imagem

silenciosa de escrita:

era um vez um animal chamado escrita, que devíamos, obrigatoriamente,

encontrar no caminho; dir-se-ia, em primeiro, a matriz de todos os animais;

em segundo, a matriz de plantas e, em

terceiro,

a matriz de todos os seres existentes.

Constituído por sinais fugazes, tinha milhares de paisagens,

e uma só face,

nem viva, nem imortal. Não obstante, o seu encontro com o tempo

apaziguara a velocidade aterradora do tempo,

esvaindo a arenosa substância da sua imagem (CA, p. 160)

Na certeza de que “o tempo há-de voltar aqui, [...]; e há-de encontrar a [nossa]

mão bárbara, e a [nossa] mão amena” (BDMT, p. 27), Llansol, diz da sua “aliança com

o Sol” (AC, p. 13), ao “legar a vida” (BDMT, p. 26) sua Causa Amante, seu

Scriptural40

:

Aqui

É Tudo,

Nada

Entre Tudo e Nada.

Movimento

Gosto

E

Quando

Mais

Fim,

Causa Amante (Prefácio de CA).

40

Referência feita ao escrito inédito de M.G.L que se lê a seguir.

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21 de Julho 2003

Scriptural é mais que escritural. Não o

sabia. Avancemos por essa vereda. A

lua, esta noite, será breve leve.

Scriptural. […]

1 Um dos primeiros dos meus afectos

é aos livros abertos,

que se suicidam em cada página,

para renascer na próxima linha______

2 Um livro é uma assembleia de

vozes,

um banquete de muitos convivas – ou

de alguns. Isto é um livro para mim.

Não talvez para os outros. Mas eu só

quero falar do ponto de vista da minha

experiência pessoal. Sem

generalizações,

Porque onde está o suposto

todo, eu, do ponto de vista da minha

experiência, suponho que está a pedra.

3 Nestes cadernos eu deponho,

escritos à primeira mão da madrugada,

a base de meus textos. É este

verdadeiramente

o impulso estruturador do

trabalho subsequente.

4 É um desses cadernos que vos dou

hoje a ler. Simples reflexo, ou reflexos

desorganizados, da sua gestação.

(Caderno 1.66, 50-52)

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CAPÍTULO III

“UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME”

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“Onde vais?”

“À Memória”

“Porquê?”

“Procurar o Excerto Dessa Possibilidade.”

“Onde Vais?”

“A um encontro de amor”

“Com quem?”

“Com a Minha Condição de Vaso Quebrado.”

[...]

A imagem tinha as mãos cortadas rentes pelos punhos, de um só golpe e,

no alto da cabeça, o véu descolorido deixava à mostra uma zona circular de

madeira. Era impossível definir o seu ritmo de andar. Usava sandálias ou

ia descalça, pois a mulher via mal, por ela ter a ponta do pé direito também

cortada. A saia caía em pregas e, movendo-se, o ramo aí bordado, ou

desenhado, tomava-se um ramo coleante e andante Foi vindo da janela,

enquanto tomava banho, que lhe surgiu um impulso no seu corpo dizendo-

lhe que a imagem representava a Senhora decepada.[...] (Parasceve, p. 21)

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3. “UM TRAÇO PARA O SOLO FIRME”

3.1. Onde vais? À memória.

Décrire, c´est voir et revoir, bien sûr, mais c´est aussi et

peut-être sourtout aller voir.

Pierre Ouellet

Interrogação e caminho: “Onde vais? À memória” (P, p. 21). Esses são os modos

de interlocução pelos quais o texto nasce e vai “à beira do rio da escrita” em percurso

memorialístico (P, p. 175). São lugares-movimentos, espaços de passagem, que

conduzem Parasceve, em “lápide e versão”41

. Se Parasceve significa o dia da morte de

Jesus e do ritual preparatório do Sábado judaico, textualmente é o nome de uma criança,

um menino, que traz consigo o ruah – “a parte mais íntima e activa do som” (P, p. 177).

Ruah que é “o sopro, a linguagem elementar” (BARRENTO, 2009, p. 242) que tudo

comunica no tempo Aberto da experiência. Parasceve, tendo como subtítulo “puzzles e

ironias”, termina de ser escrito em Sintra42

, no dia 24 de novembro de 2000; e é

publicado, em abril de 2001, pela Relógio d´Água Editores. Em maio de 1999, Maria

Gabriela Llansol escreve em um dos seus caderninhos:

O DIÁRIO DA OBRA

4 de Maio / 99 – terça

Estou no Café da Lurdes (por detrás da Estação),

depois de ter estado das 5 às 9 da manhã a beber o meu

Diário ________ para não beber imagens com inquietação e

amargura. Decidi, numa decisão súbita que irrompeu

enquanto tomava banho,

reunir aquela dispersão e montar um Diário – o Diário da

Obra. Montar – montar, o cavalo transporta. É a este

41

Todo cantar é “Lápide & Versão” (SILVEIRA, 2010, p. 145), em um estado entre o literal e o

simbólico, no ritmo da “linha descendente / ou [e] ascendente” do poeta em que o equilíbrio se dá “em

disjunção” (AMARAL, 2010, p. 134), em precipício. 42

Região serrana de Portugal onde morava Llansol à época.

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montar e desmontar que me refiro. O texto escrito espalha-se

sobre mim, e sinto o seu bálsamo sobre as feridas que

afluem das imagens textuais sobre as outras.

Ainda bem que vivo em Sintra, onde, um dia, pressenti

que deveria chegar. É meu sítio escolhido textualmente.

Parasceve derruba-me________. Ao ir na rua, uma mulher

baixa e de meia idade pergunta-me se, em Sintra, sei onde

há uma ervanária. Queria alecrim. Em plena Serra, onde o

alecrim desponta. (Caderno 1.54, pp. 76-77)

Importa observar neste fragmento de 1999 relevos que se configurarão no

projeto-livro a ser lançado em 2001, como a decisão da escritora em não querer trazer

para si “imagens com inquietação e amargura”; a ideia-puzzle de “montar e desmontar”

dispersões para reuni-las, posteriormente, em escrita nova; ideia que é transportada por

um movimento de híbridos e apresentada em jogo linguístico do vocábulo “montar” –,

em que a ambiguidade tanto sugere o ato passivo do eu-alguém que pratica a montaria

pelo movimento ritmado do cavalgar do animal; como a ação de construir, tal um

montar de quebra-cabeças. Eis a perspectiva de construção do “Diário da Obra”, em que

a matéria figural (texto) estando “espalhada”, dispersa, no meio comum do quotidiano

encontrará em seu “eu-escrevente” o elo de reunião; onde a escrita nascente vem da e na

reciprocidade do ler e escrever por um saber oriundo de um apelo. Saber, esse, sentido

de modo sinestésico e com força balsâmica; e em sobreposição: sobre “as feridas” e

sobre “as imagens textuais” que, em dobra, afluem. Escreve-se sob um tempo-espaço

presente em que o instável é matiz do estar: “Estou no Café da Lurdes (por detrás da

Estação), depois de ter estado das 5 às 9 da manhã a beber o meu Diário”, escrevendo-se

como quem se nutre. Leitura que é escolha e decisão de escrita. Observa-se que a

compreensão das decisões só ocorre num tempo futuro, oriundas de um pressentimento

ou de uma intuição, realizadas como uma resposta a um apelo interior. E o lugar tanto é

tópica textual quanto espaço de fruição linguística: “Ainda bem que vivo em Sintra,

onde, um dia, pressenti que deveria chegar. É meu sítio escolhido textualmente”; e lugar

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súbito da reflexão/inspiração: “Decidi, numa decisão súbita que irrompeu enquanto

tomava banho”. E se Parasceve “derruba”, no sentido hipotético do ser vencido; ergue-

se em escrita, para além do puzzle, pelo viés da ironia colhida no quotidiano da

observação: “Ao ir na rua, uma mulher baixa e de meia idade pergunta-me se, em

Sintra, sei onde há uma ervanária. Queria alecrim. Em plena Serra, onde o alecrim

desponta”.

Parasceve – puzzles e ironias, assim denominado somente na contracapa, traz

como ilustração a imagem distante de uma alta e imensa árvore, com sua vasta

folhagem a compor sua grande copa. Árvore que, em texto, é nomeada enquanto

“Grande-Maior”, um ser a princípio “muito estranho”, um “Alguém-vegetal que, num

momento extremo, salvou uma criança humana de perder o seu ruah” (P, p. 177).

Com 180 páginas, sem apoio de sumário, o texto é dividido em quatro grandes

partes em que a escrita narrativa é trazida por cenas-fulgor, com variações discursivas,

ora com predominância do discurso direto, ora com ênfase no discurso indireto e

indireto livre.

Segundo João Barrento, é a partir de Onde Vais, Drama-Poesia?(2000) e de

Parasceve (2001), que o modo de escrita llansoliano passa por “uma viragem” no que

tange à configuração da Obra de Maria Gabriela Llansol, dada a ideia do continuum que

nos livros se evidencia. O ensaísta mostra que o agora visto é “a distância que vai de um

espaço de escrita ocupado por figuras da História, com nomes próprios, a um outro, em

que as figuras passaram a ter nomes comuns” e afirma que Llansol, em Parasceve,

intensifica e renomeia “um projecto de escrita e de existência que vem já do Lugar 1 de

O Livro das Comunidades” (1977) (BARRENTO, 2009, p. 241); livro em que se lê,

sobretudo: “Quem há que suporte o Vazio? Talvez ninguém, nem o Livro” (LC, p. 10)43

43

Em diálogo ao que já foi exposto sobre a ideia do vazio, “ao que mete medo”, segundo Giorgio

Agamben e a Maria Alzira Seixo, em A palavra do romance (1986), importa ressaltar que “livro” é, para

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Mas, especificamente, em “Lugar 1”, Llansol já traz a figura da “mulher”, única e

plural; e com ela escreve [sobre] a cena sobre a qual o seu projeto de escrita se

desencadeia e se desdobra entre a experiência do vivido e da vivência da experiência

pela condução do olhar em elo afetuoso com os punhos dos quais as mãos se

movimentam. Eis um fragmento de “Lugar 1”:

Lugar 1 –

nesse lugar havia uma mulher que não queria ter filhos de seu

ventre. Pedia aos homens que lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para

educá-los numa grande casa de um só quarto e de uma só janela; usava um

xaile preto junto de seu rosto; tinha uma maneira distante de fazer amor:

pelos olhos e pela palavra. Também pelo tempo, pois desde os tempos de sua

bisavó, voltar a qualquer época era sempre possível. A mover-se, olhava por

vezes com fixidez um sítio o mais belo de sua casa a casa toda

porque toda a casa era bela e começava nesse olhar ora o tempo das crianças,

ora o tempo dos homens. Mulheres, não havia outra, além dela, nunca

ultrapassavam a entrada, que dava para a terra, terra de jardim onde se

podiam dar passeios (LC. p.11).

Nesse “Lugar 1”, Llansol inaugura sua comunidade amorosa e filial unida não

pela linhagem tradicional marcada pelo laço consanguíneo, mas pelo laço em nó

Llansol, uma representação do macrocosmo, sendo a sua comunidade aquela capaz de contornar esse

vazio. Daí que em A palavra imediata – livro das horas IV (2014), diga na secção 6 – “O começo de um

livro” – onde se documenta o nascimento e momentos da gênese de alguns livros. De O Livro das

Comunidades, há: “Os portugueses malditos/ O país concebido como vazio/ Proposição de uma nova

mitologia”. Em destaque, M.G.L escreve: “— tentar apanhar o ponto de referência que está aquém e além

das divergências das esquerdas e direitas, isto é, o vazio poético do poder sobre um território (ou um

território que ao dizer-se fronteira e estremadura abre o espaço, o abismo, onde do fundo, se chama o

poder e as gentes). Aquém e além da política. // — esse território não é fechado. Há um contínuo

contrabando. Somos pais de que filhos incógnitos? Somos os filhos de que pais malditos? Por isso

aparecem as figuras de Descartes, Müntzer, Eckhart, Spinosa, etc.” (LHIV, p. 134-135) Para nós, aqui,

importa ressaltar que a ideia do júbilo recai no reconhecimento do vazio, na revelação (pela linguagem)

do irreparável. Com Agamben, “o irreparável é o fato de que as coisas sejam assim como são, deste ou

daquele modo. [...] Revelação não significa revelação da sacralidade do mundo, mas apenas revelação do

seu caráter irreparavelmente profano. As duas formas do irreparável segundo Espinosa, a segurança e o

desespero (Eth, III, def. XIV-XV), são desse ponto de vista, idênticas. [...] A raiz de toda a alegria e de

toda a dor puras é que o mundo seja assim como é. [...]. O mundo do feliz e o do infeliz, o mundo do bom

e o do malvado contêm os mesmos estados de coisas, são quanto ao seu ser-assim, perfeitamente

idênticos. O justo não vive em um outro mundo. Aquele que se salvou e aquele que se perdeu têm os

mesmos membros. O corpo glorioso só pode ser o mesmo corpo mortal. O que muda não são as coisas,

mas os seus limites. É como se sobre elas estivesse agora suspenso algo como uma auréola, uma glória. O

irreparável não é uma nem uma essência nem uma existência, nem uma substância nem uma qualidade

[...]. Ele não é propriamente uma modalidade do ser, mas é o ser que já sempre se dá nas modalidades, é

as suas modalidades. Não é assim, mas o seu assim” (AGAMBEN, 2013, p. 85). E “assim significa: não

de outro modo” (idem, p. 88). Daí que “a linguagem não pode dizer, mas apenas mostrar” (idem, p. 89). E

Llansol traz à luz esse pensar através das cenas fulgor, através da exposição da relação de reciprocidade

implicada entre as imagens.

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compartilhado da aprendizagem atravessada pela luz e espaço da casa em comum. Há

aí, a inscrição da figura gerativa e fecunda da “mulher” que tanto é única quanto plural,

no percurso em dobra que faz sobre si; movimento pelo qual se dá o ato criativo de

força entrópica, pois o que se busca é “obter uma resposta”; mas ela, a “rapariga” sabe

porque “lembra(va) que não há (existiam) precedentes”; no entanto, põe-se a “pensar,

estar com algumas crianças e os papéis, e talvez com São João da Cruz (carmelita

descalço), que encontraria em qualquer parte” (LC, p. 12). Ainda nesse Lugar “de

subida”, lê-se: “a porta fechou-se com uma ligeira deslocação de ar que agitou o xaile”.

O “xaile da mente” (AA, p. 56), certamente; assim derivado em adjetivação em Amigo e

Amiga – curso de silêncio de 2004. E a mulher com ele “escrevia para procurar o livro”;

mas a “pequena frase, uma vez encontrada, voltou a perder-se”; buscada a pergunta

“então esquecida; olharam em sentido inverso” e “a pergunta surgiu na mulher sob a

forma de um sorriso” (LC, p. 12-13), silenciosamente – em movimento sinestésico da

cópula entre olhos e palavras.

Em diálogo, Parasceve diz: “Não há portas”. “Há caminho”. Eis o júbilo que

advém do “jogo da liberdade da alma” (P, p. 76); pois ao “eu” é cabível viver em

“alternativa”. Essa é a liberdade dada pela possibilidade de escolha: ou o indivíduo se

torna ativo enquanto “ser real” ou se coloca em passividade, em submissão, objeto de

um Poder “de realeza” (LC, p. 12). Alegria que se dá pela constatação de se saber

humana e, ainda assim, saber-se capaz de tocar o diverso e o ainda não-visto pelo viés

da criação. Ou seja, compreender-se “humana” significa saber-se ser finita, falível, e

circunscrita por um corpo limítrofe fixado em um dado tempo-espaço; mas também,

enquanto um “ser-alguém”, a mulher de Parasceve sabe ser a ação a sua condição

humana. Ação que dá e origina a possibilidade da obra como criação do novo,

coincidindo o “Há” pela potência da palavra em movimento, em modo de leitura e

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escrita motivado pela imagem vista/sentida44

. Celebração, enfim, da palavra pela

poética do olhar45

: “Com um simples olhar, eu própria deslocava o meu corpo. E o

corpo estava onde estava o meu olhar” (P, p. 11).

Olhar, esse, que condicionado às experiências vividas/sentidas/lidas é

direcionado por “restos” de uma memória individual, tornando o ler uma afirmação de

“os seus afectos intemporais”, segundo José Augusto Mourão; e “não uma maneira de

responder a um contexto”. E onde “escrever é sensualizar o invisível”; pois “abre a

linguagem caminhos que o narrativo obliterou” (MOURÃO, 2003, p. 192-193), diz o

autor citando o livro O jogo da liberdade da alma46

.

Diz Llansol: “Numa vida, há sobretudo microvidas independentes que ninguém

ouve”(P, p. 88). E cabe a Parasceve a tarefa de descobrir os caminhos desse “ouvir”.

Dessa forma, Parasceve é aberto diante do reconhecimento e da potência do invisível,

vindo em combate e em complementaridade – por “graça e generosidade”, vontade e

escolha de uma “liberdade [gozada] da alma”:

O invisível, naquela clareira, é duro e indestrutivelmente colorido.

Todo ele me deixa a sós comigo, na expectativa da metamorfose que não o

desnature, nem o anule. Pede-me um suplemento

“sê, por graça e generosidade, o meu pássaro poético traficante”

sedento de batalha (P, p. 88).

44

Maria Lúcia Wiltshire de Oliveira, em “Uma narrativa em mutação recepção e produção de Causa

Amante de Maria Gabriela Llansol” propõe a seguinte interrogação: “Onde nasce a escrita de Maria

Gabriela Llansol?” E responde: “Certamente não chegaremos a um resultado palpável sobre este lugar

porque um corp ‘ a’ screver, apesar de ter um cérebro pensante, é muito mais do que “ele” sabe em razão

da filogênese que se espraia rizomaticamente não só para o passado e o futuro, mas também para todas as

direções do presente. Isto quer dizer que não há uma semente primeira onde repousa e germina a

linguagem e o pensamento, mas ao contrário, para além de um inconsciente individual ou coletivo, a

mente humana se cria e se alimenta de associações múltiplas vindas de tudo à sua volta, produzindo

registros em permanente fluxo através de encontros e capturas, apropriações e reterritorializações, como

nos ensina Deleuze” (In:http://www.gragoata.uff.br/index.php/gragoata/article/view/181, acessado em 1/12/2016). 45

“Olhar é completamente diferente de analisar e de compreender, é apanhar o que flui num instante

único, sem tempos, sem crítica, fazendo coincidir o acontecimento com o seu espetáculo. Penso que para

mim não existe tempo, vivo num único momento em que o que ficou para trás e o que ficará para adiante

se projecta” (s.d. [Lovaina, anos sessenta]; LHIV, p. 23). 46

JLA, p. 11.

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Parasceve traz a imagem de uma mulher que tira uma página do seu dicionário –

é a primeira; porém é a 33, já que “o dicionário está rasgado e sem capa”. Contudo, o

mesmo dicionário é também um alguém-agente, pois “como um croupier dá-lhe três

palavras” – palavras que, “sobre a página”, “estão a andar, acumulam-se como num

baralho, sobrepõem-se, deslizam, e tomam banho num mar que ali apareceu” (P, p. 11).

Desta cena inicial é possível ler o modo de textualização de Maria Gabriela Llansol,

tendo em vista que o mesmo objeto funcional e utilitário (o dicionário) que traz

“palavras mortas”, pois estão sem movimento, pode assumir uma outra função – a de

agente/ “croupier” – se, assim, o “eu” desejar ver; se trouxer consigo o potencial e a

sensibilidade do olhar. Olhar que é atravessado pelo atrativo exterior e pela experiência

interior; onde o passado individual é trazido pelo viés da memória e o tempo presente se

configura em possibilidade posta em ação para a abertura do novo. Mas se, e somente

se, houver o constante movimento do “banhar-se”; que é, sobretudo, a ideia da

“decepação”, do corte, da limpeza a propiciar sempre o frescor do novo. Somente,

então, por este desvio será possível se romper com a palavra útil, pragmática e “morta”

do dicionário, se o dicionário se puser em metamorfose pelo olhar de quem vê e se esse

alguém que vê quiser e desejar. Essa é a perspectiva do leitor único47

de Maria Gabriela

Llansol, dos que comungam entre si esse olhar e esse ponto de partida em que o

caminho se dá no continuum da decepação. Daí o pensamento de Pierre Ouellet em que

descrever é “ver e rever; mas, sobretudo, um ir ver”, movimento constante de busca,

desejo e ressignificação. Com Llansol, o descrever decorre no espaço fecundo e diverso

(jardim) de onde emana o pensar: “Descrever um lugar indescritível é torná-lo

47

A perspectiva de “leitor único” pode também ser lida através do conceito de Giorgio Agamben, já

exposto em capítulo anterior, sobre “a nascividade”, em A comunidade que vem, ao se ler: “uma maneira

nascente é também o lugar da singularidade qualquer, o seu principium individuationis. Para o ser que é a

sua própria maneira, esta não é, de fato, uma propriedade que o determine e o indentifique com uma

essência, mas, antes uma impropriedade; mas o que o torna exemplar é que essa impropriedade é

assumida e apropriada como o seu único ser. O exemplo é apenas o ser do qual é exemplo: mas esse ser

não lhe pertence, é perfeitamente comum. A impropriedade, que expomos como o nosso ser próprio, a

maneira , que usamos, nos gera. É a nossa segunda, mais feliz natureza” (AGAMBEN, 2013, p. 35).

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inamovível para o resto da minha vida, que certamente decorrerá ao lado da árvore,

como sempre tem decorrido no jardim que o pensamento permite”. E acrescenta: “O

jardim não é criado pelo pensamento, o jardim permite pensar, tem a sua própria forma

de pensar o pensamento” (P, p. 12). Jardim, esse, que é único.

Em intensificação à ideia de comunidade vista em “Lugar 1”, Parasceve traz por

uma revisitação ao modo imagético e memorialístico visto em O livros das

comunidades a filiação da criança-ruah através de um “voltar a ver”, por uma estratégia

de rememoração de quem narra:

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Voltei a ver-me lá, sentada na Fonte do Plátano, e aparece, a subir a vereda,

que é um pouco íngreme, um grupo de pessoas com ar de pertencerem à

mesma família em passeio. Trazem consigo um rapazinho que se chama

Parasceve, como creio ter compreendido, e que é um ser muito delicado,

embora firme, com uma pala de tecido forte apertado por detrás da cabeça, a

proteger-lhe os olhos. O pai enchia garrafões que a mulher lhe ia entregando,

tirando-os de um carro de mão, um a um, devagar, como quem deseja reter

sem esforço a compreensão de um fio de água que se renova

ininterruptamente. Eu pensei, sem maldade, creio, que o rapazinho era o puro

retrato da família (P, p.15).

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3.2. A Senhora decepada e “o puro retrato da família”

“Esta figurinha de madeira, sem atractivos de beleza, mas com a beleza

contraditória que deforma os criadores, é da mesma família do que eu”

(AA, p. 18).

“A minha figurinha de madeira, uma Senhora de catorze centímetros

(medi-os), no contraponto de Ana ensinando a ler a Myriam, continua a

existir no início da rua de uma frase perdida.” (AA, p. 18).

Ser da mesma família é, para Llansol, conjugar entre si perspectivas

“textuantes”: “Eu e ela éramos textuantes” (P, p. 10). Lê-se em Parasceve:

A mulher, para se salvar do perigo iminente que corre, diz “O Meu

Dicionário de Hoje”, e, se dissesse o meu destino de hoje, teria dito

exactamente o mesmo. É uma expressão paralela que me ocorre e peço ao

Grande maior que me deixe subir até ao alto da sua copa, tentar compreender

a linguagem das suas folhas. Há palavras afins com determinadas regiões do

corpo, há vidas intimamente unidas e para sempre paralelas porque o

dicionário lhes distribuiu exactamente as mesmas palavras. São parceiros e

ignoram-no. Eu, por exemplo, sentia-me livre no interior da liberdade que me

ocorre (e me dá passagem), sem saber que a mulher corria um perigo

inevitável. Há uma palavra para esta estranha relação. Eu e ela éramos

textuantes (P, p. 10)48

.

A partir do olhar e do apelo que une o que já em exposição segue em paralelo, o

“eu” se evidencia em liberdade que “dá passagem”. Essa é a forma do ver llansoliano;

do ver enquanto modo de pensar e imaginar: “O mais difícil para ti vai ser não imaginar.

48

Ao dizer “Meu dicionário de hoje”, Llansol une “dicionário” à “diário”. Sendo “diário” anagrama de

“dicionário”, os dois termos em Llansol se completam e se iluminam na proposição que há em Amigo e

Amiga – curso de silêncio de 2004 “O que o ler ensina, a vida sobre a terra esquece” (AA, p. 116). Se o

que o ler ensina é o movimento, o frescor da continuidade trazida sempre pelo novo, das palavras que vão

e que se abrem em caminhos outros através de constantes ressignificações; a vida, por sua vez, recai no

hábito do dia-a-dia, na constância que mecaniza as ações afastando a possibilidade de reflexão sobre o

todo. Daí que seja preciso pôr as verdades, as ideias pré-concebidas do “diário” a andar, como faz a

mulher de Parasceve com as palavras do dicionário. A aproximação entre os termos indica a saída do

lugar-comum, indo em direção ao rompimento do sempre-assim.

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Tu és uma textuante”. Essa é a condição da partilha textual, de estar em troca e em

aprendizagem constante. Cada qual que chega à comunidade traz consigo o “ponto de

vista” que lhe cabe, conforme o pensamento que lhe é próprio: “O Grande Maior tem as

mesmas propriedades. Apenas não pensa do mesmo modo”. E Llansol diz: “Falo do

meu ponto de vista de visitante, porque ali não havia morte”. Nascer-Morrer, dois

opostos que não se excluem, mas se complementam; pois “aprofundar a intensidade de

viver e deixá-la à natureza, é morrer menos”. Porque o “espaço é (era) sem fim”, dentro

do percurso de decepação em que o “ponto de apoio” (P, p. 13) é o lugar último de onde

se deita em brevidade. Espaço, esse, também fronteiriço (divisória), de perigo – a

lembrar o “abismo do poço”, de Amar um cão – em que o risco da prova é a queda

quieta da palavra morta pelo “pouso da mão sobre o texto”, em que a palavra movente

volta ao estado permanente do dicionário. Esse é o “embate” e essa é “conjectura

grave”; pois é sutil o limiar do movimento na mecanização da ação rotineira

(“tradução”):

foi muito brusca essa aparição

e que, junto das rochas, embate furioso contra a falésia. A mulher

corre perigo. Senta-se no dicionário, que é um banco sólido de papel e, de

mim para ela, escorrem duas cenas. Ora a cena do plátano, a que chamo

Grande Maior, ora as palavras se aproximam de mim em fuga, rodando num

turbilhão que sucumbe quando pouso a mão sobre o texto.

Este livro é leve e jubiloso, embora tente abrir caminho através de

uma conjectura grave. É provável que mal se dê por isso, como quando

traduzi O Alto Voo da Cotovia (P, p. 9).

Queria a mulher tentar “transpor para a consciência quotidiana o que, durante

séculos, fora atribuído ao êxtase” (P, p. 10). Mas, nesse lugar, onde o corpo e o olhar

estão, a mulher diz que não deve se preocupar “com a credibilidade do testemunho”;

pois “era uma cidade invisível” – só vista por ela própria (P, p. 11). O que aqui se

estabelece é o lugar dessa textualidade llansoliana que vive entre o testemunho e a

ficção, a partir da intensidade de uma experiência pessoal em que, como afirma Jorge

Fernandes da Silveira, em O Tejo é um rio controverso (2008), o “hipotético repertório

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das imagens [...] vai, progressivamente, expandindo-se numa espécie de conteúdo

arbitrário, imotivado a priori e motivado a posteriori” (SILVEIRA, 2008, p. 69): “O

texto é livre, e anterior a sim mesmo, e posterior a si mesmo __________ a substância

narrando-se” (JLA, p. 12). É por esse mote que Parasceve, através da voz da mulher e

do Grande maior, modalizado pela interface de uma terceira voz identificada como

“eu”, um eu-mulher, se apresenta e se mostra como estratégia de escrita e reafirmção do

já assinalado em “Lugar 1” de O livro das comunidades. A comunidade llansoliana

conjuga dessa troca de conhecimentos com a qual cada um participa trazendo para o

âmago textual a sua voz e o seu apelo, tal como um chamado que vem a partir do ângulo

de onde se está e de onde, ainda, a visão se dá em alcance. “Nada foi, tudo está sendo”,

como diz Llansol em Finita. Num ir em sobreposição, o processo de renascimento:

“Havia pés por cima de mim, [...] e eu senti que, naquele instante, muitos seres

‘nasciam’, porque chovia e aqueles pés eram particularmente leves”. E acrescenta a

mulher: “Mesmo que um apontasse o meu coração, o meu coração continuaria a bater,e

talvez renascido” (P, p. 12). Pelo jogo semântico da água: “mar”, “fonte”, “chuva” – há

a imagem da água alada, quando “água significa ave” (SILVEIRA, 2008, p. 68); fluido

que limpa e lava “as mãos” e move-se em decepação e em frescor quando, no lugar-

limite, dada “a uma divisória sem fim”, o “eu” é posto no “riacho”, estreito de mar, rio

menor, para ali se lavar e novamente pôr-se a andar; “eu” que não fica em evidência

posto que a chama movente é força entrópica de estar voltado para si no contraponto de

um outro. Referindo-se a O livro das comunidades, José Augusto Mourão indaga: “Que

é uma comunidade senão um corpo acordado para a linguagem e para a percepção

através da percepção de um outro corpo que fala? Não é comunidade um lugar de

recepção, um corpo em devir, um lugar de mutações, transversal ao tempo?” E continua:

“Um diálogo dos mortos e dos vivos? O livro das comunidades regurgita de

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‘nascimentos’ e ‘mutantes’. É um livro dos começos, [...], um lugar de constituição de

um ‘nós’; [...]. O livro é um lugar de incubação e a palavra é alteridade da carne”.

Citando O senhor de Herbais, diz o ensaísta: “O facto é que o corpo muda” (OSH, p.

18). “Os sentidos do texto coincidem com as fronteiras do corpo em que fazer o sinal e

o fazer sentido se encontram. Quando o corpo muda, tudo está a mudar; o Logos não é

só Palavra, mas também Acto”. E termina: “No Logos há acto, energia, e não apenas

sentido. A obra do Logos está ligada à carne e ao movimento. E à libertação. O Livro

deve cumprir-se no corpo daqueles que um mesmo corpo liga” (MOURÃO, 2003, p.

198). Daí que a figurinha de madeira, como é dito na epígrafe, tenha “a beleza

contraditória que deforma os criadores”, pois segue na contramão do belo da Tradição,

de modo que trazer esse contraditório da forma que tudo “deforma” em direção ao novo

é condição sine qua non de pertença à comunnitas llansoliana; pois exige do olhar dos

seus legentes a leitura da beleza “sem atractivos” já consagrados. Por sinais de oposição

em complementaridade e de decepação, diz Llansol: “A minha figurinha de madeira,

uma Senhora de catorze centímetros (medi-os), no contraponto de Ana ensinando a ler

a Myriam, continua a existir no início da rua de uma frase perdida”.

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3.3. Ana ensinando a ler a Myriam, ou A Estátua de Leitura

Arde ali a substância onde Ana está ensinando a ler a Myriam,

Ana sentada numa cadeira, com o livro aberto no colo, Myriam de pé, a

olhar um dos primeiros textos (…)

Maria Gabriela Llansol

Diz Llansol em suas primeiras anotações: “Levanto dos joelhos o diário que

imaginei de mim para mim mesmo [...]” (Diário de 1949-50, cadernos de escola, p. 23).

Ou ainda, anos mais tarde dirá:

Por vezes, o meu animal doméstico toma-me por outro animal. É quando, à

noite, nada se vê e ele principia o seu sono, afastado de mim, num sítio

atractivo da casa. Passadas poucas horas – e a noite é jovem –, ouço os seus

passos que se deslocam. Ele me procura e, com um sopro de júbilo, sobe para

onde me deito e, por se encostar à curva dos meus joelhos, pressinto que me

toma por um animal maior que o envolve e protege. Assim seja. (1.75, 44-45)

Sendo ler movimento deambulatório em torno de “mim” e “mim mesmo” ou

ainda, lugar-acolhimento forjado por um outro; ler é, em suma, um estar com. Com um

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outro que é também um si próprio, a lembrar Rimbaud ao dizer “J´est un autre”. Ou

ainda, um “ser sendo”, de Amar um cão. Ler é se pôr em ação e em movimento; junto

a, e em torno de. E não só: em Amar um cão, Jade “quer aprender a ler sobre um texto

que ‘eu’ porei a arder [...]”. Segundo Maria Etelvina Santos, “ler um texto não é o

mesmo que ler sobre um texto. Como escrever sobre não é o mesmo que escrever com.

Quando leio um texto, escrevo sobre ele; mas quando leio sobre um texto, escrevo com

ele”. E diz: “Este aparente jogo de palavras tenta mostrar um possível caminho para a

leitura da textualidade llansoliana, caminho já sugerido no início d´O livro das

comunidades pela expressão um ‘corp ‘a’ screver” (SANTOS, 2007, p. 25). A leitura

que se faz “sobre” é uma leitura em devir pelo modo de compreensão a posteriori,

traçada pela linha de afeto pelo qual os textuantes entram no texto. E “entrar no texto” é

“quando escrevente e legente têm o mesmo desejo e interagem nesse combate, não para

que este acabe, mas para que eles e o texto perdurem na leitura e na escrita de um texto-

futuro” (SANTOS, 2007, p. 26). Ler, assim, é se mostrar atento; não ao texto, mas no

próprio olhar que percorre o texto; para com ele ir num mais além, em derivação e em

projeção do novo. Essa é a perspectiva de liberdade proposta pelo ato de ler; pelo

movimento livre do ir e vir sob a “sensualética” (P, p. 81) tensional da luz libidinal. “É

um dar-se em corpo ao texto; luta como ‘causa amante’, num processo em que tudo se

joga, mas donde não se sai vencido nem vencedor” (SANTOS, 2007, p. 25). Ler, assim,

é atravessar o vazio que “mete medo” (LC, p. 10).

Em Um beijo dado mais tarde, há: “— ‘Ana é outro nome’ — diz. O nome da

estátua policroma em madeira em que Sant´Ana ensina a ler a uma jovem nitidamente

desproporcionada nesse conjunto”. E ainda: “Esta cena da aprendizagem da leitura está

também expressa noutro quadro a óleo – e eu nunca esquecerei esta terna reciprocidade

feminina de companhia que tinha origem ________ na origem de ler” (BDMT, p. 24).

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Nomeação, derivação e sobreposição. Troca e mutação onde identidade e ipseidade49

correm em paralelo pelo modo de decepação:

— “Venham todos a ler” — diz Ana, a que ensina. — Um de cada

vez, e durante longos anos, para que o prazer dure. A jovem volta ao seu

lugar, na estátua, e quebra o que lê em mil pedaços, sem quebrar o livro onde

o ler circula. O testamento que leu foi-lhes lido; todos os objectos são agora –

imagina – móveis por si mesmos _____ herdados _____ e estão presentes no

acto permanente de ler (BDMT, p. 25).

“Foi assim que Témia, com seis anos, trouxe Ana e Myriam a lerem uma à outra

o amor que reciprocamente se dedicam; [...] está a ouvi-las”, pois “o que se esconde está

escrito; levanta-se para dividi-lo em pequenas folhas de caderno e anota que o que está a

passar-se, de superfície perceptível, ou invisível, é para todos lerem”, na obediência ao

“livro aberto nos joelhos e à tranquilidade – ainda sem escrita – da criança que lê”

(BDMT, 25-26). Criança-Témia ou criança-Parasceve50

, ambas trazem consigo o

“ruah”, o sopro da projeção futura do tempo que, no presente, é ideia em devir; tal como

a metáfora da criança que se põe a correr com Jade para no espaço da leitura encontrar

breve e instável abrigo já que ao “sopro de júbilo”, o encosto encontrado se dá “à curva

dos joelhos”, como nos fala Llansol em anotação de epígrafe.

Há nesta linhagem escritural e figural uma “geometria do amoroso”, pela

perspectiva do corpo d(o)ado em tábua de aprendizagem:

49

Ipseidade em relação à identidade (a mesma coisa) significa “a coisa mesma”, “a coisa que transcendeu

em direção de si mesma” (AGAMBEN, 2013, p. 89 – 90). 50

Nesta interlocução atravessada pela infância, trago a possibilidade de se estabelecer um diálogo com os

versos de Fiama Hasse Pais Brandão, em Teoria da realidade, tratando-a por tu, onde se lê: “(...)

realidade do mar, palavra minha. / Criança, a tua mão de areia /construiu a praia. Os teus dedos

sonoros chamam-me agora. / Chamei-te, outrora, eu, no transe / do som a pousar no meu mar. /Aceita a

água que vem / para os teus pés, recebe a luz, colhe /as pequenas algas. São-te dadas

pelo passado tempo, ainda / recordado, em ti, por mim, realidade” (BRANDÃO, 2010, p. 168).

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3 de Novembro de 1992 / terça

_______ também há a geometria do amoroso

[...]

_____ introduz-me no teu espaço por eu ser alguém que

também traz para o espaço a tua narrativa. Deixa que as

minhas proposições,

as minhas demonstrações,

os meus escólios

sejam o apoio que desfaz a tua solidão.

(Caderno 1.36, pp. 35, 37-38)

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3.4. Aprendizagem da leitura, nascimento e criação: o dois-em-um socrático

Ainda estás muda, mas ouves

cantar um nome, ouviste já

dois nomes, tu queres dizê-los,

tacteias, sugas, redizes.

A primeira palavra já a dizes,

encastoada na substância do mar,

agora que puseram o mar todo

a teus pés, e ao dizer-te a palavra,

alguém a poisou e ao mar

debaixo dos meus passos. Alguém

é outra voz, além das vozes

ocultas, maternais, de outrora.

Alguém não é um eco, é a terceira

fala, mensageiro sem início,

apenas boca presente, junta,

que veio nascer contigo. Nunca

teu gémeo, ou duplo, apenas de um lugar,

ali, alguém no espaço, contigo, a ouvir.

Fiama Hasse Pais Brandão

Em O jogo da liberdade da alma, diz Llansol: “__________ aprendi com a

linguagem de Haallâj que, onde / há nada, há muito para dizer, / que onde há muito para

dizer, há nada” (JLA, p. 11). Talvez esse fragmento dê conta de elucidar o que

Parasceve encena com a imagem da mulher sobre o dicionário e das palavras, que

soltas, se põem a ir – a ir sempre adiante, em um caminhar constante ao mais além. São

somente três palavrinhas (“actriz, actual e actualidade”) que abrem percurso na luta

contra ao “não-uso” das palavras, das palavras utilitárias e já canonizadas pelo Poder,

pela Tradição. Não à toa, as palavras-pássaros já trazem consigo imagens-formatos com

as quais partirão: de “actriz”, o campo semântico introduz “máscara”, “personagem”,

“um eu-outro” ou, mais precisamente, ser a palavra “actriz” o duplo da mulher-

Parasceve, daquela que forja um “eu-alguém”, um “eu-criança”, para que sendo um

outro e decepando o nó que há no imaginário, vá em busca da consciência de si própria,

ao encontro consigo mesma pelo intermédio da palavra e da memória. Memória que se

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dá por processos de decepação e de “des-possessão”, como mostra Silvina Rodrigues

Lopes. Des-possessão que permite se tornar transparente; transparência dada por

esvaziamentos que, no espaço aberto e sem fronteira desse corpo “nu”, uma nova forma

ali venha habitar; e com a imagem anterior, se transmutar. Efeito de transubstanciação,

pois em cada nova forma resta ecos dos já idos. Processo que a “mulher” sabe ser

doloroso; mas reconhece que “a luta chispante é o (meu) deslumbramento” (JLA, p. 8).

Luta que se dá “perante o homem nu sentado ao piano no combate consigo mesmo”

(JLA, p. 8); no tempo “actual”, da “actualidade”; ou seja, no tempo presente do agora –

no estar absoluto da hora em que tudo decorre no pressuposto que “o instante é a

escrita” (JLA, p. 49). Desse modo, por esse código, é que “a mulher” e seus textuantes

procuram descobrir o puzzle. Jogo que o Grande Maior, um ser-alguém-vegetal, ajuda a

desvendar com o seu “olho de árvore”, a partir do ponto de vista que lhe é próprio,

enquanto árvore; enquanto axis mundi,que tudo vê da altura de sua copa; já a “mulher”

só ainda lhe cabe enxergar com seus olhos de humana, mesmo híbrida do espírito bravio

do lobo. Essa é a comunidade dessa geometria desenhada por cenas A451

, por cenas

fulgor; comunidade, sobretudo, amorosa porque híbrida; porque tanto é múltipla quanto

única. Comunidade que traz a geografia dos rebeldes, aqui não mais saídos por figuras

da História – porque desse espaço “a mulher” já se libertou; mas através da

territorização do espaço textual fora do cânone – “lugar onde o texto aprende a

materialidade do lugar por onde corre” (JLA, p. 12). Lugar de passagem, de troca e de

metamorfoses; de modo que o que importa na textualidade llansoliana é o processo,

apresentado no “decorrer de” uma cena, em um caminho-origem – perspectiva, essa,

que coloca em brevidade o espaço conquistado, qual um canto órfico; nunca plenamente

51

Cenas A4 remetem ao desenho representado na folha de papel em tamanho A4.

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alcançado. À luz que ilumina em parte, o já “um-outro”; propriedade do “ser-enigma”,

cabendo-lhe as dobras de sua revelação:

Evidentemente que eu estou no decorrer de uma viagem de comboio.

A palavra forte não é viagem de comboio, mas no decorrer de. O sol ilumina

metade do livro, cortando a página em luz e sombra. Com a trepidação, a

minha mão transportada no comboio treme, e a pequena garrafa com água

para beber, tomba.

Do ponto de vista dos meus olhos, esta é uma história não humana,

entre coisas, uma menos-valia que decidi contar, porque pô-la a nu equivale a

libertá-la da sua morte inglória e banal.

Não verteu a água, mas mudou a posição dentro da garrafa. Oscilou,

estendeu-se à superfície tendo por horizonte apenas os meus olhos. Esse

fenômeno simples foi visto por um outro que escreveu.

O universo multiplica-se com a descrição minuciosa e atenta da

viagem (JLA, p. 13).

Segundo Hannah Arendt, em A vida do espírito, ao refletir sobre a faculdade do

pensar, nos limites compreendidos entre a noção do self e a que abrange a pluralidade,

toma como base a figura socrática, de Platão. Sendo Sócrates tanto o cidadão da polis

quanto o homem que detinha uma consciência ética-moral-filosófica sobre o seu tempo,

Arendt passa com ele a analisar o modus operandi do discurso e considera que o método

dialógico usado por Sócrates é o que permite a faculdade do pensar. Diálogo dado em

silêncio entre “mim” e “mim mesmo”; voz que, muda, tudo diz no aberto do

pensamento, no ainda sem nome conceitual que o defina. A essa forma de diálogo

mudo, Platão diz ser o “dois-em-um” – o dois-em-um socrático, portanto (two-in-one).

Segundo Hannah Arendt, esse modo singular da atividade do pensar pressupõe um dado

de pluralidade em potencial: Diz ela: “O fato de que o estar-só [solitude], enquanto dura

a atividade de pensar, transforma a mera consciência de si [...] em uma dualidade é

talvez a indicação mais convincente de que o sujeito exista no plural” (ARENDT, 2003,

p. 135). Dualidade que faz do pensar uma atividade dialética, crítica e aberta à

renovação; já que a cada estágio do diálogo, alcança-se um outro horizonte hipotético da

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ideia inicial. É, assim, em similitude, a perspectiva llansoliana do “decorrer com”, da

multiplicidade do universo pela vertente da água que muda o modo da queda do líquido

no interior do corpo, dada à experiência passada/(sen)tida. Em Onde vais, drama-

poesia? lê-se: “Que a história do universo é a sua história do universo e que o seu Há é

todo o Há que existe” (OVDP, p. 34). Ser em si “leitor único” na e pela multiplicidade

de vozes que permitem a ação do pensar; já que todo o universo está no Há que lhe

cabe. Ou ainda, como diz Fiama Hasse Pais Brandão em “Homenagem à literatura”:

“Que à medida que os anos e os vocábulos se acumulam / mais incompreensível me

torno para os detentores de outras técnicas / e que só deve ler-me quem não tema

reconhecer-se como leitor único” (BRANDÃO, 2010, p. 46).

É, assim, a “menos-valia” llansoliana, trazida por uma praxis política vinda na

contramão do já instaurado; ao modo revolucionário dado pela ruptura da palavra morta,

da voz que vai à contrapelo dos usos mecanicistas da palavra. Ação política do modo

linguístico da textualidade de Maria Gabriela Llansol em pôr na narração a condição

humana ou a vida do espírito, que o clássico platônico já concebia: “Falemos mais dos

gregos, /que amaram o mar com a boca / do canto dos aedos e da escrita, / e com os

barcos, que apontavam / pelas linhas dos códices, na singradura” (BRANDÂO, 2010, p.

175) Eis a esperança trazida com Parasceve, na ironia de ser ele-ela a representação de

um ser menino, a criança, que diante da “mulher”, ambos devem aprender a ir adiante,

compreendendo, em máxima temporal aorística, o absoluto do tempo: “— Quem disse

que era infantil? / — Falo apenas do que experimentei” (P, p. 120). Daí que em Um

beijo dado mais tarde se leia: “___________ é o cheiro do mar que me conduz ao mar;

[...] o meu espírito pegou em Témia e saímos os três para a luz que envolvia toda a orla

marítima numa dupla extensão de mar aéreo; ouço o bramir das ondas nas faixas dessa

luz [...]” (BDMT, p. 96). E, novamente, com Fiama Hasse Pais Brandão, em “Teoria da

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realidade, tratando-a por tu”, a ideia ampliada em poesia, onde a conjunção “se”

condiciona o “novo” à figura atemporal da criança (“crianças repetirem crianças”),

sendo elas-ela, a criança, a que vai encher o mar:

Falaram-te os poetas gregos, poetas lidos.

Ler faz embater a fala nas palavras

que são ouvidas no ouvido.

Ouves palavras-eco que vêm

para mim de novo, se essas

crianças repetirem crianças.

Elas levam o balde cheio de água

para encher a maré, levantam

a barbacã de areia, seguindo o plano

dado pela voz de alguém do meu início

ou de um livro de páginas abertas

rente ao mar. Por vezes, tu,

realidade, és um livro, aberto

numa página com o mar.

E a pura mãe folheia-te?

(BRANDÂO, 2010, p. 175)

Por “esse arcanjo do espírito bravio ser menino” (P, p. 125), a ideia da criança

associada a essa busca impele a uma suposta necessidade de retorno à origem – origem

que só poderá ser alcançada pelo viés da memória. João Barrento, em Na dobra do

mundo (2009) diz que a memória aí referida é uma “memória mítica, arcano”. E explica:

“A ironia está no ter de “voltar a ser”, no facto de aquilo que se busca poder estar numa

origem. [...] O ruah é essa origem. É o sopro que não pode vir de nenhum corpo, mas

permite que todos os corpos sejam Vivos.” Origem que vai ao encontro da conceituação

de Walter Benjamim no sentido de ser essa origem a “emergência, livre e não

determinada, de um facto, de uma ideia, de uma experiência, a partir de qualquer

momento do passado ou do presente”. E “por mais distante que essa origem possa estar,

por mais que se perca nas brumas míticas da história, do mito ou do Ser, ela poderá

saltar a cada momento para o (meu) Agora” (BARRENTO, 2009, p. 248). Memória

vinda em imagem, tal qual Santo Agostinho escreveu em Confissões:

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O grande receptáculo da memória – sinuosidades secretas e inefáveis, onde

tudo entra pelas portas respectivas e se aloja sem confusão – recebe todas

estas impressões, para as recordar e revistar quando for necessário. Todavia,

não são os próprios objetos que entram, mas as suas imagens: imagens das

coisas sensíveis, sempre prestes a oferecer-se ao pensamento que as recorda

(AGOSTINHO, 2000, p. 267)

Hannah Arendt complementa as proposições de Santo Agostinho ao afirmar que

através do pensar (“tornar presente o ausente”), “a memória quase sempre guarda e

mantém à disposição da lembrança tudo o que não é mais; e a vontade antecipa o que o

futuro poderá trazer, mas que ainda não é” (ARENDT, 2003, p. 60). Desse modo entre o

“não mais” e o “ainda não”, está a memória e desejo (vontade). Daí que Llansol

escreva: “Desejo profundamente (para isso escrevo)” (P, p. 100); modo em “que o texto

vai adiante” onde “criar possibilidades é sempre alargar o leque das probabilidades” (P,

p. 101).

Ser um e ser múltiplo. A “mulher” de Parasceve sabe que a “identidade é

precária”; por isso, o que deseja é aprender “a ser figura com as figuras que o texto vai

possibilitando” – figuras que “se tornem cada vez mais anônimas” – postas a “nu”. Por

isso, “também não é verdade que a mulher se reconheça em todos os mundos para onde

vai ou se lembre de todos os lugares onde esteve” (P, p. 100) porque tudo “é uma

constante” e “a mulher” ou, simplesmente, um “eu”, é apenas “um reflexivo que se

recorda” (P, p. 101).

Sobre o modo de tornar as figuras nuas, “mais anônimas”, “não portadores de

nomes ou de obras que a cultura reconheça”, diz Llansol: “Vejo nesse anonimato

crescente o fruto do trabalho figural de muitos que tiveram nome, nome que, por vezes,

não silencio. A cultura sabe desses nomes, mas não saberá jamais mais do que isso”

Porque “quando diz o nome, ignora o combate”. De modo que nomear é uma forma de

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pré-estabelecer, de fazer morrer as palavras; pois conceder-lhes um conceito é deitá-las

em um fim, condenando-as, assim, ao esquecimento pelo lugar comum. E o desejo da

“mulher” de Parasceve reside na decisão do querer “viver, vencer a morte, e saber se se

confirma que só o amor é maior do que esse colapso”. Amor que é canto, leitura-escrita.

E a voz diz: “Gostaria que, nesse momento, nos reconhecêssemos textuantes, gente que,

no mistério da realidade, não tem necessariamente muito a partilhar, salvo esse pequeno

diálogo que transportamos de lugar em lugar” (P, p. 100). Daí que páginas à frente, se

leia: “Dizê-lo é voltar lá. Sim. Lá e tralalá” (P, p. 125). Em um voltar que já é um-outro,

inomeável “lá e tralalá”. Movimento de eterno retorno do mútuo52

, em dobra e por

sobreposição, que por força decisória e efeitos de decepação do “eu” segue em errância.

E lê-se: “Errar, aqui, é apenas o movimento da inteligência duvidosa que coloca sobre

os (teus) joelhos um pensamento que seria parado, se não fosse um auditivo”. Som que

é ruah, promessa; corpo que, infantil, é aprendiz; que, “varrido pelo silêncio”, se põe a

“nu”.

Em O jogo da liberdade da alma, a cena primeira é a de “dois homens nus ao

piano” (JLA, p. 7). Nudez que precisa de um equivalente para ser vista / reconhecida.

Em Parasceve, a “mulher” diz que o “equivalente era um domador do medo” (P, p. 16);

de modo que a “equivalência” aqui assumida é aquilo que impele o sujeito a prosseguir,

pondo-o em ação, tornando a vida ativa; ou com Hannah Arendt, “vita activa”.

Para Arendt, a vita activa designa três atividades humanas fundamentais:

trabalho, obra e ação. E diz que “todas as três atividades e suas condições

correspondentes estão intimamente relacionadas com a condição mais geral da

52

“Tudo, desde sempre esteve no modo. Que tudo quanto deva advir, se manifeste no modo humano,

entre seres que não temem, nem se sintam feridos no seu narcisismo por a realidade ser o que é: vamos

para onde ignoramos, por caminhos que desconhecemos. E eu sobre o real não sei mais, mas nessa

verdade me desejo manter, à imagem de uma das figuras que mais amo, “a rapariga que temia a impostura

da língua”. Quem escreve e quem lê, em mútuo, encontrarão o como seguir a linha da nova colina.

E, nesse processo, me sinto muito feliz” (L1, p. 87, grifos nossos).

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existência humana: o nascimento e a morte, a natalidade e a mortalidade”. Contudo,

“das três atividades, a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da

natalidade; o novo começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo

somente porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo, isto é, de

agir” (ARENDT, 2016, p. 11). Princípio, esse, de natalidade que traz a “criança nua”.

Ou ainda o “homem nu” –, já que no tempo absoluto, de acordo com Santo Agostinho,

ou pela perspectiva do tempo aorístico, segundo os gregos clássicos, a linearidade

cronológica se apaga em escrita llansoliana. Princípio em que o nascer remonta uma

origem, a origem de ler. Pois ler é ato contínuo do ir lendo, do ler sobre, do ler com; em

processo de decepação e de des-possessão – pela perspectiva do nada ter, do nada

possuir, pois “tudo está sendo” no instante da leitura e da escrita que encerra. Princípio

errante, de tentativas e continuações por corpos híbridos de ser e de ser-obra: a nudez do

homem ao piano não era física; mas era vista “através do andamento musical”, em

corpo misto de homem e obra. Imagem “que reflui sempre sobre em imagem”; por

desdobramento que oculta o sexo; posto que, sendo neutro, andrógino barthesiano – é

ímpar llansoliano que, como Orpheu, vai à procura de seu par. Uma vez achado,

“desfaz-se em espuma de texto” (AA, p. ).

Sendo a ação a atividade que “corresponde à condição humana da pluralidade”

(ARENDT, 2016, p. 09), M. G. Llansol escreve em O jogo da liberdade da alma:

“Vozes, ao meu lado, formam igualmente palavras; e escrevo como Há; vejo, ao fundo

do corredor, o homem nu que me toca” (JLA, p. 15); e na página seguinte, prossegue:

“toca um texto que leio em voz alta no meu espírito. Para mim, sem voz audível.

Rememorada. A energia não pensa mas, se eu me colocar aberta no seu caminho _____

ela pensa. Eu é o outro que eu vejo em mim” (JLA, p. 17). Daí que o “nu” ponha “em

evidência o homem” e sua música seja tocada “a quatro mãos com o seu companheiro

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que lhe entregou voluntariamente”; porque ao eco de Rimbaud, Llansol elucida o modo

pelo qual o indivíduo vai tomando consciência de si a partir do modus operandi

socrático do “dois-em-um”, ou “a partilha de nós mesmos”53

e da premissa dialética que

há no diálogo, no qual a “mulher” de Parasceve “vai aprendendo a perguntar” (P, p.

100). Nesse sentido, por ser a ação do pensar intrinsecamente ligada à consciência de si

(de um “eu” múltiplo já caracterizado pela pluralidade que o envolve), Hannah Arendt

traz a perspectiva política da natalidade54

ao ato desse agir, considerando a natalidade

não apenas como categoria biológica; mas, sobretudo, como categoria política. Por esse

mesmo viés, vale lembrar a escrita de Llansol já em “Lugar 1”, mais uma vez: “nesse

lugar havia uma mulher que não queria ter filhos de seu ventre. Pedia aos homens que

lhe trouxessem os filhos de suas mulheres para educá-los” (LC, p. 11). Ou ainda: “a

escrita era as vozes em coro dos trinta mil camponeses que depois de abolirem os juízes

53

“A palavra consciência (conscience), empregada por Arendt, tem origem no grego syn-eidenai, cujo

significado original remetia apenas à noção de consciência de si (consciousness), sem qualquer conotação

particularmente moral, mas sim descrita como con- scientia: “Conheço comigo mesmo, ou, na medida em

que conheço, estou consciente de que conheço” (I know with my self, or while I know I am aware that I

know). Como tal, a consciência é retratada como confirmação da própria existência. Na sequência, Arendt

aponta para o conceito de conscientia em Cícero, que lhe atribui uma conotação de testemunha ao que

está oculto, introduzindo o dois-em-um ou a partilha de nós mesmos: “Quando estou sob juramento

acerca de algo que está oculto a todos, devo relembrar que Deus é minha testemunha, e isso de acordo

com Cícero significa ‘my mind is my witness’”. Desse modo, importa saber que “a autora apresenta

quatro momentos recorrentes da noção de consciência: ‘consciência: como testemunha; como a faculdade

de julgar, isto é, de distinguir o certo do errado; como aquilo que dentro de mim, e sobre mim, se submete

a julgamento; e, finalmente, como uma voz interior, como, por exemplo, a voz bíblica de Deus que vem

do exterior”’ (Assy, 2015, p. 67-68). 54

Em A origem do totalitarismo, Hannah Arendt, diz que “cada fim na história contém necessariamente

um novo início; esse início é a promessa, a única ‘mensagem’ que o fim pode produzir. O início, antes de

se tornar um evento histórico, é a suprema capacidade do homem; politicamente, é idêntica à liberdade do

homem. Initium ut esset homo creatus est – ‘para que houvesse um início, o homem foi criado’, disse

Agostinho (A cidade de Deus, Livro XII, cap. 20). Esse início é garantido por cada novo nascimento; é,

de fato, cada homem” (ARENDT, 2016, p. 531). Em nota do texto de abertura de A condição humana,

“Pensar o que estamos fazendo”, Adriano Correia diz que “em suma, nascer é já ser capaz de instaurar

novidade no mundo através da ação, e o nascimento é a aparição inaugural de uma singularidade, que

pode ganhar realidade no domínio político. Os homens, como entes do mundo, são politicamente não

seres para a morte, mas permanentemente afirmadores da singularidade que o nascimento inaugura.

(CORREIA, 2016, p. XVII). Já em A condição humana, Hannah Arendt escreve: “Das três atividades

(trabalho, obra e ação), a ação tem a relação mais estreita com a condição humana da natalidade; o novo

começo inerente ao nascimento pode fazer-se sentir no mundo somente porque o recém-chegado possui a

capacidade de iniciar algo novo, isto é, de agir. Nesse sentido de iniciativa, a todas as atividades humanas

é inerente um elemento de ação e, portanto, de natalidade. Além disso, como a ação é a atividade política

por excelência, a natalidade, e não a mortalidade, pode ser a categoria central do pensamento político, em

contraposição ao pensamento metafísico” (ARENDT, 2016, p. 11).

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se dirigem para o massacre de Frankenhausen e cujas pegadas ficaram perdidas no

deserto” (LC, p. 42); porque “a fecundidade do dom é a única retribuição do dom” (LC,

p. 43), tal qual la fête de Babette em Um beijo dado mais tarde.

Assim, “recordar é quase, de certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de

longe, preferível”, onde “o puzzle dessas proximidades é o equivalente exacto do

enigma” (P, p 148). Enigma vindo por perspectiva órphica e erótica, dado o viés oculto

e amante que em cena faz-desfaz, se sensualiza, fricciona e funda:

A mulher, que no texto procura o corpo amado e desaparecido, por

pouco que não encontrava a sua textuante. Também é verdade que, se tivesse

chegado mais cedo, teria dado com o seu corpo morto, em vez de

desaparecido. Ou, então, teria assistido ao seu renascer iluminante. Talvez o

atraso fosse positivo (P, p. 148).

É bem possível que Llansol com Sá-Carneiro, em Apoteose, diga: “Desci de

mim. Dobrei o manto de Astro, / Quebrei a taça de cristal e espanto” (SÁ-CARNEIRO,

1991, p. 197); mas talvez, ela, Llansol venha dizer no último verso: “Talhei o Oiro com

a sombra do meu rastro” porque traz consigo a perspectiva convivente e movente de um

discurso que se dá não por uma estabilidade produzida por um “em”55

; mas o “ir com”

ao modo da decepação: “Se a tua mão te escandalizar, corta-a”, e acrescenta:

O escândalo é acreditar o humano como exclusiva sede de saber. A

mulher fez bem em lançar fora a estatueta. Não conseguia desprender-se da

sua matéria de madeira. Claro que o gesto da mulher não fora impecável. Não

percebera que, ao lançar fora a estatueta como lixo, a fizera entrar no ponto

do espaço onde as suas mãos decepadas estavam destinadas a executar

melodias admiráveis.

No espaço textuante todos os corpos são, afinal, híbridos. Cismar,

transmuta. Permite alcançar nomes novos e locais de caminho (P, p. 150).

55

Diz Sá-Carneiro no último verso: “Talhei em sombra o Oiro do meu rastro” (SÁ-CARNEIRO, 1991, p.

197).

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Daí que ela, a escrevente, a mulher híbrida de lobo e de perguntas, ou Llansol,

vá à memória para “procurar o excerto dessa possibilidade.” E mencione que o caminho

é um “encontro de amor” com a sua “condição de vaso quebrado”:

E como sabe a mulher que é híbrida? Como sabe que é uma

viajante? Como sabe que o seu percurso equivale a uma busca consequente?

Tem um corpo de perguntar, a mulher. Deve ser por isso. Assim o sabe, e não

de outro modo. Nenhum interlocutor lhe dirá, se lhe perguntar. Não querem,

aliás, dizer. Querem ficar. A mulher olha para si. Tem olhos de lobo, os seus

dedos são lápis, a sua mão esquerda é um candeeiro sempre aceso. O seu

corpo não excita qualquer desejo sexual. A alegria que suscita, nua, é a de um

Corredor a correr mais veloz do que o seu volume. Está nua? Está. Deixou os

seus vestidos noutro lugar. Mais uma vez, à beira de.

São seus, esses vivos que encorporou. Como ela é deles. O caminho

é um puzzle indissolúvel. Não se deram uns aos outros como ajuda. Correm,

de ponto em ponto do espaço, em busca do nome que impeça que o novo, o

estranho, funcione como um explosivo deflagrante da consciência.

Medo? Medo de quê? Não há puzzle sem ironia.

Há, no entanto, algo de extremamente curioso no corpo que corre à

procura de um semelhante. Não corre ele à procura de um perdido? De modo

algum. A maior parte dos semelhantes está por achar (P, p. 150).

Em “apaixonadamente”, índice dois da terceira parte, “a mulher tem um

pensamento que ascende à consciência, no momento em que espalha as cinzas da lareira

sobre a terra, num movimento muito próximo a joeirar”. Nesse instante, “o pensamento

separa-se do pó e sobe. É poalha”. E “as cinzas caem na terra”. Pensamento, esse, “que

é sempre alguém, força pujante56

, quando se quer pensar” (P, p. 152,153). Um alguém-

Jade a correr com a criança defronte ao mar; um alguém-mulher que vai à adiante. Ou

simplesmente, um alguém-outro, assim dito no poema de Fiama Hasse Pais Brandão,

“Teoria da realidade, tratando-a por tu”, trazido em epígrafe:

[...] Alguém

é outra voz, além das vozes

ocultas, maternais, de outrora.

Alguém não é um eco, é a terceira

fala, mensageiro sem início,

apenas boca presente, junta,

que veio nascer contigo. Nunca

teu gémeo, ou duplo, apenas de um lugar,

ali, alguém no espaço, contigo, a ouvir [...] (BRANDÃO, 2010, p. 169).

56

“Sentiam uma pujança enorme no pensamento” (P, p. 65).

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3.5. Parasceve: o lugar obsceno da ressuscitação

Onde o desejo der com o túmulo

dará com essa presença a que chamas anjos.

Maria Gabriela Llansol

“Se o amor vence a morte, é forçosamente no túmulo que se combatem”, diz

Llansol em Parasceve. Nesse livro de continuantes, no sentido de um sempre

prosseguir, Maria Gabriela Llansol afirma a escrita do amor que vem na eminência de

uma perda; pois, “dar a vida não chega”. É preciso “ressuscitar”57

(JLA, p. 21). Sendo

“ressuscitar” um chamar outra vez à vida, um fazer ressurgir; o termo traz a ideia do

aparecer-desaparecer porquanto haja vida em latência. Ou seja, “ressuscitar” pressupõe

a não transcendência entre os estágios de vida e morte, na perspectiva que morrer é um

apagamento de um não mais viver. Assim, nascer-morrer, aqui, caminha na percepção

de uma existência baseada sobre o anterior, à semelhança de O texto de Joan Zorro, de

Fiama Hasse Pais Brandão, em que “a mutabilidade da grafia” é, sobretudo, um

escrever-ler continuum “sobre”, centrado no tempo presente de onde se vê/ fala/ sente:

Levando ao limite, homenagem, o gesto da escrita, posso atribuir os

meus textos

a joan zorro. Existimos sobre o anterior. O movimento da escrita e

da leitura

exerce-se a partir da menor mutabilidade aparente da pedra

e da maior mutabilidade da grafia. O progresso dos textos

é epigráfico. Lápide e versão, indistintamente

(BRANDÃO, 2010, p. 34).

57

“O que aprendi com Teresa? Que a ressurreição não é um acto de potência divina, mas a suprema

manifestação de amor. Dar a vida não chega, não é um acorde consonante com a substância. Ressuscitar,

sim, é o acorde perfeito” (JLA, p. 21).

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Eis que Llansol diga: “Escrevo-as [lembranças] tal como elas me recordam.

Continuo a escrevê-las tal como elas continuamente me recordam. Do mesmo modo que

os legentes. Continuarão a escrever do mesmo modo que a substância os recorda” (JLA,

p. 19); pois o que “a mulher” diz é: “Eu não sou a tua palavra. Tu também não é a

minha. Precisamos ambos de escrita, de imagem, de pensamento. E na imagem,

precisamos vitalmente da música. A palavra é daqui, a música não. O som é a parte

mais secreta do oxigênio” (P, p. 175). Em um artigo publicado no jornal – “Expresso

(actual)”, em matéria intitulada “O mundo reencantado”, de 8 de Novembro de 2003,

António Guerreiro escreve:

Há uma razão interna à própria obra de M. G. Llansol, a que é

necessário prestar atenção. De todas as artes, a música é aquela que vem

ocupar o lugar mais essencial. Se a leitura é aqui um motivo tão importante, é

porque a revelação deve ser ouvida, não basta o espaço surdo da escrita. E o

modo acústico do olhar é, para M. G. Llansol, a leitura.

Desse modo, a partir do sensorial que aproxima corpos, em O jogo da liberdade

da alma, a “rapariga desmemoriada” que está em busca de uma recordação que a faça

cruzar “as linhas da consciência” (JLA, p. 20) também diz querer alguém para

ressuscitar para ela. E fala: “— Alguém que tenha para comigo essa memória” (JLA,

21). Porque quando “o invisível” se tensiona, abrindo à linguagem caminhos obliterados

pelo narrativo, “o por escrever” é infinito e “a nova linguagem se reproduz por si

mesma, contendo em si o próprio princípio de existir” (JLA, p. 12). Ou ainda: “Se for

realmente forte e sensual, vive e dá vida”; “anima e ressuscita” (P, p. 112).

O texto adverte que diante da perda, há que se entrar “na memória e tratá-la por

alguém” (P, p. 114), lugar onde “fósforos inflamam a imaginação” (P, p. 111). Com

Hannah Arendt, sobre o papel da imaginação se lê:

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A imaginação, portanto, que transforma um objeto visível em uma

imagem invisível, apta a ser guardada no espírito, é a condição sine qua non

para fornecer ao espírito objetos-de-pensamento (thought-objects) adequados:

mas esses só passam a existir quando o espírito ativa e deliberadamente

relembra, recorda e seleciona do arquivo da memória o que quer que venha

atrair seu interesse, a ponto de induzir a concentração; nessas operações o

espírito aprende a lidar com coisas ausentes e se prepara para “ir mais além”,

em direção ao entendimento das coisas sempre ausentes, e que não podem ser

lembradas, porque nunca estiveram presentes para a experiência sensível

(ARENDT, 2003, p. 60-61)

Sem conseguir dizer até mesmo o próprio nome, a “rapariga desmemoriada”

deverá encontrar na memória esse ser “eu-alguém”, de modo que é / era “nesses

momentos, a personificação única do espírito infantil” posto que nomear é já um mais

morrer; onde, assim, também se inscreve na textualidade llansoliana a ideia da “pessoa

única, voltada para o seu rosto de brincar” (P, p. 115) – “brincar” que é puzzle

linguístico de montar e desmontar texto-palavra-ideia, vindo por “um jogo muito

perigoso” – “o jogo da liberdade da alma” (P, p. 117), em que “brincar cura” (P, p. 114)

porque dá vida através da “voz [que] fará o seu caminho” (P, p. 116). Caminho traçado

de encontros e de trocas afetuosas já que “o amor é uma saudação de caminhantes” (P,

p. 117). E o amor é “a alegria acompanhada” não por uma causa exterior; mas “por uma

causa interior. De outro modo, morreria” (JLA, p. 68).

Ao romper com estruturas fixas, Llansol escreve Deus sive legens dobrando com

o conceito de Baruch Spinoza “Deus sive natura”, e parte o absoluto ao mencionar

“natura sive deus” (JLA, p. 65), tornando-o “deus”, plural, e trazendo-o para o espaço

do comum (de sua comunidade) de modo que a santidade una será, agora, múltipla e

partilhada por aqueles que comungam do “Luar libidinal” (JLA, 91), do sexo de ler,

pela poética do olhar. E Llansol questiona: “Que afecto é a sanctitas? E ela narra o

momento da morte do pai:

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levantei-me da cama e fui ___________________________ estamos

indo,

no dia em que meu pai morre,

ao 64 da rua Domingos Sequeira, com uma saia azul, de peitilho. É o mesmo

vestido, lido de outro modo.

Na sala onde agonizava só se ouvia a sua respiração, tudo

o mais estava opresso, pesava.

reconhece-me,

a rapariga que sempre fui, a seus olhos, o rapaz que

não sou

vai morrer sem deixar varão, porque esse mandar abortar à

criada que amara,

sobre o meu vestido pousava o não-dito, um texto que haveria

de ser dito,

que, dizendo a vida, fosse capaz de abrir a morte, porque os últimos

momentos são estranhos,

uma espécie de realidade incognoscível que, a partir de um dado instante

imponderável,

se torna conhecida ___________ o seu vivo trémulo deixara de oscilar, caíra.

A sala ficou uma placa de cobre gravada nesse instante

breve,

soubesse eu ver onde tombara

aquela vida

onde, ao deixar de ser meu pai, me estava escrevendo que éramos

simplesmente irmãos,

depois de tantas lutas familiares, perdidos nos intestinos da parentela, o que

ali estava a tombar em fezes

era o centro solar de um conflito, um tu rei a desfazer-se em pó,

e dir-se-ia que Témia avançava com o seu dedo,

e tocava num interruptor que faria disparar todo o seu sentimento de opressão

(JLA, p. 90-91)

Afeto, este, em que a santidade vai ao acolhimento do narrado, da palavra dita,

em silêncio e voz. Voz que não tem como direção “o outro” senão “o outro” que é,

somente, “si mesmo”; um eu-linguagem; um eu-pensamento onde “anjos” nada mais

são do que textuantes nessa comunidade llansoliana de legentes; sendo “um alguém-

mão que vem ao (meu) encontro e fica (comigo) a conversar” (P, p. 180). Alguém, esse,

que permite a experiência do viver, porquanto traga consigo a potência de uma

transcendência divina pela faculdade comunicante com o Aberto e com o infinito que

tudo sabe porque dá a ver: “—Anjos é um nome meu (disse o olho da árvore, o Grande

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Maior); As gravações (de voz) não eram para os anjos. Eram para a tua memória-

alguém. Para que conseguisses viver” (P, p. 116).

Daí que Llansol jogue com as palavras “túmulo” e “tálamo”58

em Parasceve, por

conjugarem entre si de aproximação fonética e semântica ao pensamento desenvolvido.

“Tálamo”, lugar híbrido de multi significação, traz três acepções; podendo ser:

“leito conjugal”, “receptáculo das plantas” e “parte encefálica”, localizada no

intermédio cerebral sendo responsável pelas funções de transmissão motora e regulação

dos estágios de consciência, sono e atenção. Imagens, essas, distintas; mas que

contornam Parasceve em complementaridade porque o que em suma o texto mostra é o

movimento, o processo de tomada de consciência de um “eu” em seus estágios de

apreensão do conhecimento pelo viés do amor e do acolhimento, estando esse “eu-

alguém-outro” sempre em lugar de intermédio que é a posição gerativa. É a narração de

uma aprendizagem pela voz de quem aprende. De quem duplamente aprende: pois tanto

aprende a dizer o que aprende, como a reconhecer o modo como se aprende.

Aprendizagem que é busca, na procura de um “como”. Eis a força textual evidenciada

neste percurso – dada no e pelo movimento dessa introspecção deambulatória em torno

de um si. Nesse mergulho interior, Parasceve se revela, sobretudo, uma “doce

esperança” (P, p. 126), onde “o candeeiro, a luz e o rasto caminham num único

movimento solidário” (P, p. 129).

E assim, Parasceve vem a ser o lugar obsceno da ressuscitação; “onde” - diz o

texto - “o desejo der com o túmulo dará com essa presença a que chamas anjos” (P,

123). E “o lugar obsceno” é, especialmente, aquele que, estando fora de cena, fora de

foco, passa em perversidade por dentro do verso, implicitamente, em tensão entre o dito

e não-dito. Ou, simplesmente, um “cone de luz e sombra” por onde “as presenças

58

“Túmulo também lhe sugere tálamo”; “É certo que num quarto, num tálamo feito de chão [...]” (P, p.

149).

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surgiam” (P, p. 119) e onde “nenhum objecto era disponível para censura”.

Obscenidade, essa, que tanto propaga quanto é fruição e pulsão do próprio desejo. Diz o

texto que “o ruah vive apenas no silêncio interdito, obsceno. Nesse túmulo vivo de que

te fala o desejo; e era isso que traziam os anjos” (P, p. 120-121).

Decepação e voz são aqui trazidas enquanto movimentos de busca, de modo que

a palavra dita é “apenas uma parte da (sua) respiração”: “Era certamente o desconhecido

desconhecida que eu viera buscar no beijo que me abrira a porta da vida” (P, p. 179);

em que o conhecer só poderá ser trazido por um “movimento inverso do habitual” (P, p.

180), em um “ler ao contrário a sua vida”(P, p. 89) onde o “conhecido” é alcançado por

“mãos decepadas” (P, p. 87). Descobrimento, esse, que vem tensionado por um

processo de esvaziamento e ressignificação da palavra; já que, como dito, “recordar é

quase, de certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de longe, preferível” (P, p. 148).

Neste capítulo que se objetiva ressaltar a questão do júbilo pelo movimento

cíclico de nascer-morrer, pelas vozes textuantes metamorfoseadas e híbridas, como a do

“lápis [que] quer a noite” (P, p. 50) para com ela ver a luz; e onde, sobretudo, “a

angústia que (a) invade é sem importância” (P, p. 45), deixa-se inscrita a voz da

rapariga-mulher-Témia:

e, se escrevo esta breve passagem autobiográfica,

é para indicar onde nasce uma palavra livre,

como nascida de uma morte, escreverá para lhe retirar, um a um, todos os

atributos perecíveis, como estes não são do corpo, mas de um Luar libidinal

inadequadamente punitivo (JLA, p. 91).

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CAPÍTULO IV

“UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO”

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(4 de Out. [2004]

___________ eu experimento a luz; tiro uns objectos, ponho outros, afasto uma cadeira______ e sei

que a luz tem uma incidência imediata no meu espírito________ conforme as partes que ilumina,

estabelece-se uma ponte e, quando leio, a leitura passa por essa luz, regulo as gradações e a

sensibilidade ao grande texto de um autor que começo a conhecer é imediata.)

Maria Gabriela Llansol

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4. “UMA SETA PARA QUE GUARDES NO CORAÇÃO”

4.1. Porque é preciso dizer adeus

“Devolve o sol a quem lê”

Llansol, Amigo e Amiga

Eis um pedido de Textualino: “Devolve o sol a quem lê” (AA, p. 166). E devolver

“o sol a quem lê” é, sobretudo, um ato de amor. É conferir ao outro, seu legente, uma

nova chance; possibilidade que, dada pela luz vinda em retorno, é modo de

ressignificação. Pois “luz” é aqui anunciada enquanto “o único leito da linguagem”

(AA, p. 169) quando “o silêncio que silencia o silêncio cresce” (AA, p. 175) – silêncio

que vem em dobra posto (em) que é curso. Silêncio, este, que “não fala, ele significa”

(ORLANDI, 2007, p. 42). Segundo Eni Puccinelli Orlandi, “o silêncio não é o ‘tudo’ da

linguagem. Nem o ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco o abismo dos sentidos.”

E afirma: “Ele é, sim, a possibilidade, para o sujeito, de trabalhar sua contradição

constitutiva, a que o situa na relação do ‘um com o ‘múltiplo’, a que aceita a

reduplicação e o deslocamento”. E que, portanto, “nos deixam ver que todo o discurso

sempre se remete a outro discurso que lhe dá realidade significativa” (ORLANDI, 2007,

p. 23-24). É nesta perspectiva que se diz que o “silêncio cresce” (AA, p. 175); onde

silenciar o silêncio não se remete ao não-dizível ou a um estado de censura, mas ao

movimento que ultrapassa a relação da dicotomia entre o dito/não-dito, na qual fala o

sentido.59

59

Segundo Orlandi (2007), “há uma dimensão do silêncio que remete ao caráter de incompletude da

linguagem: todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer. Essa dimensão nos leva a apreciar a

errância dos sentidos (a sua migração), a vontade do ‘um’ (da unidade, do sentido fixo), o lugar do non

sense, o equívoco, a incompletude (lugar dos muitos sentidos, do fugaz, do não-apreensível), não como

meros acidentes de linguagem, mas como o cerne mesmo do seu funcionamento. Movimento, mas

também relação incerta entre mudança e permanência se cruzam indistintamente no silêncio. Nem um

sujeito tão visível, nem um sentido tão certo, eis o que nos fica à mão quando aprofundamos a

compreensão do modo de significar do silêncio” (ORLANDI, 2007, p. 12-13).

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Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 vem a lume em 2006. E “curso”, aqui,

tanto remete a fluxo quanto à aprendizagem de silêncio. E Llansol indaga: “— O que é

o texto em face do silêncio? O seu receptáculo” (AA, p. 156). Lugar de atenção e

acolhimento, portanto: “A chave era simples – era o silêncio” (LHV, p. 676). Isto

porque aprender o silêncio, silêncio que é fundador60

, é, sobretudo, compreendê-lo em

sua relação com a palavra. Buscando compreender a materialidade simbólica do

silêncio, diz Enni Puccinelli que “estamos nas palavras para falar com 61

elas”

(ORLANDI, 2007, p. 15), transfigurando-as em imagens e estabelecendo com elas um

“jogo”, como está registrado na epígrafe da Tese.

Amigo e Amiga emana a dor da morte pela vivência da perda irreparável que

representou o falecimento de Augusto, seu “ambo”62

. Com, 253 páginas, o livro é

dividido em quatro partes: “O Golpe”, “Delírio em Parasceve”, “estere” e “______

Estou bem; além de mais uma adenda onde escreve: “Hoje, terminei o ciclo do dia”

(AA, p. 243) “das operações divinas” (AA, p. 245). Assim, através do percurso traçado

por entre os caminhos de Parasceve, chega-se à fala, na última parte: “________Estou

bem.” Na e pela vivência do luto de um ambo, o curso é uma meta-aprendizagem, aonde

o conhecimento vem com e através do texto: “Porque presumo que há de ensinar-me o

dobro das palavras que sei” (AA, p. 73).

Em fragmentos e por cenas fulgor, características da escrita llansoliana, a

textualidade é assim tecida. Nota-se que o sumário vem nomeado por “Tábua de

matérias” onde cada capítulo, numerado em ordem crescente por algarismos romanos (o

60

“Silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido pode sempre ser

outro, ou ainda que aquilo que é mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e

do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’ [...] – princípio de significação: o silêncio

como fundador” ((ORLANDI, 2007, p. 14). 61

Grifo nosso. 62

Segundo Maria de Lourdes Soares, em “Um torvelinho de intensidades”: o texto-querubin e daïmon da

escrita, o “ambo” é visto enquanto “nó de afeto que une Amigo e Amiga em um só corpo, como o laço

que une Ana e Myriam na sua estátua. In: http://www.revistaabril.uff.br/index.php/revistaabril/article/view/169/108

(Acessado em 15/10/2016).

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uso desses numerais vêm sugerir uma aproximação ao antigo Livro das Horas no que

tange à escolástica do medievo, além de ser possível se pensar na anulação dos tempos

pela sobreposição entre o passado e o futuro, existindo apenas o presente pela

intensidade e continuidade do instante), traz a linha de pensamento sobre o qual a

palavra dita se amplia. Se assim se estrutura o elo da textualidade do livro exposto; há

uma outra textualidade implícita, porque não-convencional, submersa nessa “tábua de

matérias”; textualidade também transparente, porque não se mostra nem se evidencia;

mas que se insinua em camada lírica, tensionada pela força atrativa e sinestésica vista

pela sequência das frases/versos pontuados no índice. Desta forma, é possível ler em

verso o que diz cada capítulo, em sentido e direções diversas, conferindo ao legente o

seu próprio caminho de deambulação e descoberta no espaço não marcado da “matéria

figural”, pelo curso ainda silencioso da escrita. Para isso, entretanto, caberá a quem ler

que leve consigo a partilha afetuosa da leitura por fragmentos e a abertura necessária a

fim de se descobrir novas pontes. Eis uma trajetória possível onde cada verso aqui

escrito é um enunciado capitular de Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004:

Do amor

Hoje, terminei o ciclo do dia

das operações divinas.

Do corpo para a prata,

os despejos do presente

no lento lendo,

o silêncio.

uma esfinge

do amor

na espuma do texto,

esquecimento?

Alguém,

o adulto,

não desaparece

onde se enterra o mar.

Debaixo do seu véu,

uma rosa insustentável

se desvanece.

Folhas a cair

de Parasceve.

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A copa da grande árvore

dizia como brisa

na noite obscura

do liberto

que se abrisse,

que se destacasse

o homem enfermo

à porta. Na sua vida?

Encontro meus irmãos

das imagens curativas.

Musiquia,

“tsi-z-li”,

numa toada musical,

Era um Textualino

de pregas invisíveis

um convívio

atento

para as figuras.

A dissonância dos tempos e das fases.

Este crepúsculo antigo

do flutuante

humano Bach.

Debaixo da língua

Modos de morrer

Se assumiam a si mesmos

No transparente

A ouvir ler

Um livro mais remoto

Curso de silêncio: é isto.

________ e suspendi.

Este é o Jardim que a ausência permite

Um paradoxo inexplicável

Numa reminiscência difícil de quebrar.

À hora preliminar da tarde,

entra na minha vida

para transformar

meu timbre

que o revelará.

Na primeira parte intitulada “O Golpe”, Maria Gabriela Llansol, ao dizer da

imensa dor sentida, vai aliando a esse sentimento de vazio à relação do fazer escritural.

Do vazio da perda física ao vazio fecundo sobre o qual a arte se funda e se alimenta.

Assim, ao expressar o vazio que o luto sugere, a autora traz à tona o processo pelo o

qual a escrita nela nasce, “quando o negro chumbado da noite” cai e se desfaz em

“espuma do texto” (AA, p. 11). Escrita de amor em canto órfico uma vez que é pela

matéria figural que o seu amor humano se corporifica e se desvanece. O texto se abre ao

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caminho de Parasceve, por essa linha de aprendizado que é, sobretudo, o movimento

cíclico do nascer-morrer, pela constante decepação da memória. Esse é o curso. Essa é a

aprendizagem desejada, trazida ao e pelo fio da leitura (ou das leituras). Há que se

“rezar a leitura”, aprender a grande mensagem dos textos antigos, pois “o que o ler

ensina, a vida sobre a terra esquece”63

(AA, p. 116); Há que se recordar “Ana ensinando

a ler a Myriam”, Há que se retornar ao “Drama-Poesia”, indo ao encontro de si pelo rio

da escrita e, assim, se reencontrar com Jade, com quem divide a esperança de um “amor

crescendo à semelhança do que fora uma alma crescendo” (AA, p. 15). Percurso interior

necessário para que seja ela a sua “Casa de Saudação”. Ela, a autora, ora textuante, diz

no que nomeia “ver-me”, capítulo XXXV: “O que foi casa, não importa onde e como,

desde ‘que sou casa’ de Hölder, de Hölderlin à Casa da Saudação ______”; sendo, desse

modo, ela própria, o seu abrigo. E acrescenta: “A finalidade da Obra terá certamente o

seu selo no cume da árvore”, ao som, enfim, da copa de Parasceve, pelo interstício

silencioso que vem em folha: “Entre duas, ou mais folhas, o Nómada fala de mim:

‘julga que precisa de companhia, /quando o que precisa/ é de matéria figural/ para

transformar” (AA, p. 49). Assim, “Casa de Saudação” é a casa também onde a saudade

é posta em ação. Lugar-abrigo do movimento, da história e da tradição reinventada.

Lugar mítico64

por excelência por onde Eduardo Lourenço tece sua “Mitologia da

saudade”, já que “com a saudade, não recuperamos apenas o passado como paraíso;

63

Cabe aqui ressaltar a ideia possível de sobreposição: “o que o ler ensina [sobre] – ou seja, acerca de –, a

vida sobre a terra esquece” (AA, p. 116, grifos nossos). E o que se ensina está sobre a terra, o que remete

à ideia de Mestre Eckhart sobre o “homem humilde”, originário do étimo latino húmus, que quer dizer

“terra”. Ou seja, o homem humilde é aquele ligado à terra. 64

Segundo Junito de Souza Brandão, “o inconsciente coletivo é constituído pela soma dos instintos e dos

seus correlatos, os arquétipos. Assim, como cada indivíduo possui instintos, possui também um conjunto

de imagens primordiais. Assim, tem-se o mito como exteriorização de conteúdos do inconsciente

coletivo” (BRANDÃO, 2011, p. 14). Desse modo, o “lugar mítico” é o espaço por onde emana esse

inconsciente coletivo não definido no tempo-espaço e de que o livro se ocupa. Diz ainda Junito, com base

em Arcângelo Buzzi, que “harmonizar logos e mythos, ao mostrar que ‘o discurso linguístico enuncia

intensamente esse espetáculo de solidariedade dos opostos, procurando aproximá-los e integrá-los

pacífica e conflitualmente, então o discurso, mesmo que use palavras-de-ciência, é mítico e

consequentemente literário” (idem).

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inventamo-lo”, e onde “a saudade parece modulada pelo ritmo universal do mar”65

.

Desse modo, diz Eduardo Lourenço, “descobre-se, sem bem o saber ainda, que a

eternidade é feita de tempo, e o tempo de eternidade. Tudo aí, simultaneamente, passado

e presente” (LOURENÇO, 1999, p. 14). Lugar, enfim, infinito de aprendizagem e de

escuta, posto que “ninguém morre no país da Saudade66

. Como nos sonhos”

(LOURENÇO, 1999, p. 15). Com Maria Gabriela Llansol, percebe-se a passagem desse

tempo saudoso ao tempo do júbilo pela aceitação e reconhecimento da relação de

reciprocidade que há entre tempo e eternidade, convocada por Eduardo Lourenço, já que

o projeto de leitura e escrita levantado por Maria Gabriela, implica a clareza desse

saber. Llansol se dobra à morte, ao fim pressuposto, na medida que não nega e não teme

o vazio; mas contorna-o, levando-o ao limite o seu sentido gerador. Com Maria

Gabriela, não há recusa67

; há um rio contínuo de escrita, metáfora gráfica da não recusa

à realidade material.

4.1.1. Devolve o sol a quem lê

Devolver “o sol a quem lê” sugere que o processo de leitura/escrita ocorre num

continuum, em modo hiperbólico de desdobramento. Amigo e Amiga – curso de silêncio

de 2004 é assim definido por Llansol: “Estes fragmentos, curso de silêncio de 2004,

estão desprovidos de um elo lógico. Eles contêm a maior experiência de dor de uma

65

Retoma-se o fragmento llansoliano de Um beijo dado mais tarde: “É o cheiro do mar que me conduz ao

mar” (BDMT, p. 96) para expressão ampla da acepção de que “mar” agrega no imaginário português. 66

Destaque de Eduardo Lourenço no livro Mitologia da saudade (1999). 67

Eduardo Lourenço nos fala que o povo português, “imemorialmente rural, absorvido por fora em

afazeres desprovidos de transcendência, mas levados a cabo como uma epopeia, com o seu talento do

detalhe, da miniatura, é um povo-sonhador. Não especialmente por ter cumprido sonhos maiores do que

ele, mas porque, no fundo de si, ele recusa, o que se chama a realidade. Ou, se se prefere, a ordem do

tempo, rio sem regresso. [...] os portugueses suportam-na (a realidade), mas não se dobram diante de

nenhum desmentido da realidade”. Daí que o autor diga: “É esse lugar de sonho, esse lugar ao abrigo do

sonho, esse passado-presente, que a ‘alma portuguesa’ não quer abandonar” (LOURENÇO, 1999, p. 14,

grifo nosso) – Lugar, esse, sobre o qual Llansol abandona e busca nova ressignificação.

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mulher resistente.” (AA, p. 35) A ausência de “elo lógico” vem negar a prática dos

discursos feitos por processos de verossimilhança e de linearidade do discurso,

compreendidos segundo as estruturas do cânone literário; pois, em Llansol o

encadeamento da ideia se dá por uma escolha afetuosa, pela construção de laços de

afeto. Os elos firmados são sinestésicos, trazidos na escrita pelo “princípio da imagem”

(AA, p. 30), por cenas fulgor escritas em fragmentos. Ainda sobre os fragmentos,

Llansol traz voz e silêncio em convergência como matéria figural: “Serviram de matéria

de ensino oral sobre a ferida da morte nas escolas do vale – e o aberto silêncio

envolvente”. E a autora acrescenta: “uma pequena aluna disse a outra pequena aluna que

estudava o que tem sete dobras ou sete lâminas, num nevoeiro claro. Quem o disse não

fui eu, foi aquela outra, talvez minha constante semelhante” (AA, p. 35). Essa imagem

da criança, do infante aprendiz que vem “com um odor na mão a amparar o adulto”

(AA, p. 25), inferem as dobras pelas quais o “eu” em travessia é convocado a passar:

“vejo tudo, sobre sobretudo” (AA, p. 188)68

. Travessia dada pelo processo de

revisitação, se a voz de Textualino for lembrada: “Devolve o sol a quem lê”. Importa

mencionar que o “eu” é voz múltipla, impessoal, porque é ser em transformação.

Metamorfose e deambulação pelo constante modo de decepação da memória, já que

“dobra” é “lâmina”. E a autora finaliza o fragmento: “ela chorava, porque sofria a

resistir. Depois, deixou de sofrer, numa alegria de decepação. Melhor que lágrimas”

(AA, p. 35). Eis a expressão do júbilo a que se objetiva demonstrar trazida pela

memória, voz e silêncio. Alegria que em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004 é

atravessada pelo percurso silencioso da aprendizagem da convivência da dor da perda

68

No afastamento que o exílio lhe confere, Llansol se põe diante da experiência singular que nasce entre

vivência e experiência. Nesse distanciamento geográfico, linguístico e social aprofunda-se a sua noção do

júbilo, posto que não se põe em nível ficcional (No “eu” que é “ele”), nem em nível circunstancial (No

“eu” que é um “outro”), pela perspectiva do ser-cultural. Mas, a ideia do júbilo nasce a partir da

compreensão de que o existir se dá na dimensão do seu “ser-assim”; da não exclusão de opostos; naquilo

que se mostra pelas dobras de sua especificidade: “Eu não sou jamais isto ou aquilo, mas sempre tal,

assim. Não posse, mas limite; não pressuposto, mas exposição” (AGAMBEN, 2013, p. 90).

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de um “ambo”, seu “amor humano”, o seu também “companheiro filosófico”69

. É dor e

silêncio. Silêncio, luto e ressuscitação. Silêncio que se faz ponte nesse caminho que

vem amparado e sustentado por seus textuantes-familiares, convivas que com a mulher

compartilharam nós de afeto: “Para consolar da perda irreparável, digo à mulher que

este Curso é um convívio” (AA, p. 229). Foi assim escrito em “atento”, capítulo que

sugere o modo pelo qual quem lê/escreve devem estar: em atenção; pois “Não se lhe

confere o Curso, mas nele estão implícitas as promessas invasoras que a figura

desenhou na densidade” (AA, p. 229); ou ainda: “O céu dos interlocutores que se

estimulam e entendem está presente” (AA, p. 29). Assim, Llansol diz: “Partilho com

eles a grande dor oculta de não sermos abertos nunca mais. Entre seus livros, encontro

meus irmãos” (AA, p. 148). Daí que se encontra, no corpo de escrita, uma invocação de

figuras de outrora ao modo de uma revisitação a tudo que lhe deu ou fez sentido ao

longo da jornada. Tal como um funeral, seus textuantes-familiares lhe concedem

amparo e acolhimento: “Esta figurinha de madeira [...] é da mesma família do que eu”

(AA, p. 18). Pela voz do Nómada, lê-se:

julga que precisa de companhia,

quando o que precisa

é de matéria figural

para transformar.

Ainda sobre o processo de deambulação e metamorfose brevemente exposto, lê-

se abaixo o movimento de “liberdade da alma”, enquanto ação consciente, movido e

alimentado pelo próprio desejo e vontade:

a vocação do homem é a de fazer confluir

o ser e o não-ser no entresser.

Nesse movimento, a mulher não será mais

passagem, nem mediadora, mas o ser de entre.

69

Figura que se remete a Vergílio Ferreira, no Diário III, Inquérito às Quatro Confidências.

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Tudo de nada. Não serão o poder e o medo que

lhe imporão o seu movimento.

Mas será ela mesma que animará o movimento (AA, p. 172).

“Sei e seio”, sei-o; é jogo que Llansol nos mostra na página 16, “Sei” nosso e

“seio” nosso – o meu”(AA, p. 16), ao unir linguagem, alimento, desejo. Saber que vem

da boca, do desejo, da necessidade, da dependência, do outro – pela partilha e pelo

trabalho solidário da troca: “Compor este curso em que os ouvintes gozam, como eu, de

liberdade de consciência e do dom poético, é seguir um cardume de peixes, que me

procurou quando eu o vi evoluir no fundo do mar” (AA, p. 26). Saber, em suma, que

vem pelo toque sinestésico da língua: “É isso, a língua sente a perda da língua

companheira. _________ é essa a descoberta do dia. Quem não sente esse contato

directo _________ ficciona. Ficcionar é repulsivo para o silêncio” (AA, p. 26)

Sobre o silêncio, Maria Gabriela Llansol diz: “palavra vem, palavra vem, por

favor”’ indecisa, mal decidida ainda, é uma recém nascida no lento lendo” (AA, p.

27) Silêncio é, aqui, a palavra nascente – o rumor, nascido do desejo e da vontade. É o

que vem com “o tambor da clorofila” nascido do seu “corpo corruptível”. É a palavra

“recém-nascida” que, à imagem da criança-bebê (por entre o “sei” e o “seio”), é

aprendiz. Aquela que só tem expressão pelo corpo, pelo campo sinestésico dos sentidos,

porquanto ainda lhe falte a linguagem comum, verbal (canônica e paradigmática) do

adulto70

. Silêncio que é espaço de comunicação dado pelo olhar: “O lugar de alguém é

fundamentalmente o olhar _________ e o olhar da gruta é o teu, Musiquia. ‘É a cadeira

do lume?”’ (AA, p. 83). Luz e voz, a dizer e a amparar no lento lendo movimento de

transformação e transfiguração ao que o texto convida e diz: “eis um berço aqui

presente, a casa transparente de um tambor por construir; eis uma emoção intelectiva

que reabre, e se vira para a árvore” (AA, p. 27).

70

Ou seja, para a criança vem primeiro a imagem, depois o nome / palavra.

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Pelo processo silencioso de escrita, há, no enlevo das linhas, o bordado que se

mostra e diz; e em face deste, do que aparece, existe, ao mesmo tempo, aquele que

desaparece, nunca sendo totalmente concluído. Esse é o texto llansoliano, é tecido

aberto que, no tempo de sua construção, segue em direção ao sempre novo, um ciclo

inconcluso, um “ser sendo”. E a autora diz: “Agora, era a produção da flor do silêncio;

depois, seria a maturação do seu fruto; depois a sua música; depois a sua cacofonia71

;

depois, o seu conhecimento por vias rápida72

; depois, o seu desejo sexual, realçado em

luar libidinal73

” (AA, p. 12).

4.1.2. Agora, era a produção da flor do silêncio

Eis que a imagem da capa é um bordado, tecido onde há várias flores

ramificadas, de diferentes formas e tamanhos. O tecido é recortado em forma de um

pássaro a apontar para cima, para o alto da página. Essa figura de pássaro está

sobreposta a um outro tecido, liso, mas onde nele é possível visualizar ondulações e

manchas que sugerem um modo de flor. A capa é uma fotografia de Duarte Belo e o

bordado retratado foi feito pelas crianças da Escola da Rua de Namur sobre um desenho

de Augusto Joaquim.

O texto se abre pela fotografia tirada em uma ocasião de alegria pelo

recebimento do prêmio por Maria Gabriela Llansol. Nela, Llansol e o marido, Augusto,

estão de mãos dadas, sorrindo, felizes, juntos. Curioso notar que o casal dirige o seu

olhar para baixo, para a terra, para um dado humano presente, contrapondo-se ao

sentido da ave da capa. Busca-se com isso elucidar que os dados iconográficos

demonstram o modo tensional da composição por efeitos de oposição, em dobra

71

A imagem / o imagético, imaginário. 72

A palavra / o nome / o nominal, designativo. 73

O símbolo / o simbólico.

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imagética. Se o bordado que a antecede é um colorido em verde e lilás (símbolo do

advento, segundo preceitos da filosofia católica), a imagem fotográfica se dá em preto e

branco, no choque entre o claro e o escuro. E se a foto é leve e jubilosa74

, dada a alegria

envolvente; na página seguinte, o punctum é desviado e uma quebra se realiza pela

palavra “o golpe”, primeira parte do seu curso.

4.1.3. O Golpe (p. 10 a 46)

Diz Llansol: Estes fragmentos, curso de silêncio de 2004, estão desprovidos

de um elo lógico. Eles contêm a maior experiência de dor de uma mulher

resistente. Serviram de matéria de ensino oral sobre a ferida da morte nas

escolas do vale — e o aberto silêncio envolvente; (AA, p. 35)

Quando o azul desce, e se transforma no negro chumbado da noite acende-se

sobre ele uma densidade que o protege, e lhe permite continuar a vaguear.

(AA, p. 11)

É pela página 11 que se inicia o “curso de silêncio”, trazido, assim dito por

Maria Gabriela Llansol, a partir do momento em que tudo ao seu alcance se imobiliza e

um alguém, um “trilhador dos mundos”, se senta à “soleira de um barraco de cristal” e

se localiza “sobre um objeto deixado” por ele próprio que é “o estudo do texto” por

onde nasce a escrita, conferindo-lhe “o estatuto de nómada”. Ele, sem situação social

conhecida, um homem quotidiano, partido em fragmento, move-se, flutuando por

impulso no ar. O movimento é de vagueação. Ele, como as folhas do plátano, agora, são

“vagamundos”. Um convite dado pelo entrelaçamento de olhares, entre mundos, em

silêncio, no jogo das aparências que se desfazem na e pela “espuma do texto” (AA, p.

11).

74

Diz-se que a foto é jubilosa porque é única; onde a ideia de unicidade llansoliana parte do conceito de

que o único “em mim” é aquilo criado “por / em mim” – noção de criatividade implícita a partir do

deslizamento do verso camoniano “engenho e arte”.

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a partir do momento em que tudo ao meu alcance se imobiliza, sinto

a copa da árvore verdejante, à entrada de um ramo; vindo de um ponto

movimentado de vila próxima,

um trilhador dos mundos senta-se na soleira de um barraco de

cristal. Está centrado sobre um objecto que deixou __________ o estudo do

texto em que escrevo e que lhe conferiu (necessitaria ele?) o estatuto de

nómada. Sem situação social no conhecimento. As folhas adoram

vagamundos. A vagueação. E as daquele plátano, e árvores limítrofes, não

são excepção à regra. Assim, ele, partido em fragmentos, move-se, flutuando,

por impulso do ar. É um homem quotidiano, sem nenhum sinal de ilustração

nas mãos e/ou no rosto. Os olhos percutentes encontram os meus. Quem diria

que são olhos dormentes? O silêncio. O silêncio.

[...]

Convido-o para o meu quarto,

que se desfaz na espuma do texto.

A ondulação textual traz e desfaz o lugar fronteiriço de onde as vozes se

entrecruzam; pois o que une os espectros nesse espaço é a “afinidade espiritual”, “ponte

e palavra”: “________ entre aquele homem, e aquela fonte ________ havia uma

afinidade espiritual ________ ponte e palavra”. O percurso de um a outro ficava sem

linhas, rapidamente, por instinto e, independentes, se sobrepunham no mesmo lugar. A

fonte movia-se, o homem parava, e eu observava a caríssima forma de se estimarem”

(AA, p. 12). Pois, ler é o mesmo que escrever – é ato de amor, forma (modo) de se

estimarem.

Em Amigo e Amiga, o ser e o estar são postos lado a lado, em constante jogo de

presença e ausência, trazidos à luz da escrita, por efeito de dobra textual pelo viés do

silêncio75

: “Sem estarem em Parasceve, tudo decorria muito próximo do tronco (...)

onde os silêncios diversos que existiam pairavam e construíam ninhos”. E quem lê,

escreve: “Agora, era a produção da flor do silêncio” (AA, p. 12).

75

Segundo Luci Ruas, em Na paz subalterna da de criar figuras – uma leitura de Amigo e amiga, de

Maria Gabriela Llansol diz que “o silêncio desse curso é uma forma permanente de insurreição. Falar aí

implica silenciar”. In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016).

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4.1.4. “Afinal, uma única melodia respondia ao silêncio” (AA, p. 15)

O trabalho de escrita de Llansol se realiza por uma atividade de escuta, trazida

por uma oralidade dos seus textuantes reais e não-reais. É escuta, afeto, leitura. Leitura

e decisão de escrita. Assim, escreve-se: “ouvi-o fazer a pergunta/ injuntiva/ amorosa por

excelência // ‘mata a minha sede’ Ou // dá-me de beber”. “Matar a sede” de outro e “dar

de beber” a alguém que sente a sede não são a mesma coisa. A ação de “matar a sede”

torna quem bebe um ser passivo; enquanto o “dar de beber” a outrem, dá a possibilidade

do autoconhecimento; pois permite a quem bebe conhecer o limite de sua sede, em

encontrar por sua própria mão o caminho do equilíbrio necessário à saciação. E o texto

responde na página seguinte: “dá-me de beber” pela figura de linguagem leixapren,

oriunda das Cantigas medievais. Pelo jogo anelante das palavras que nunca se tocam,

mas se desdobram, há o espelhamento dos corpos físicos agora divididos pelos dois

planos: material e espiritual. Vozes que se buscam e que só encontram abrigo pelo viés

das mãos. Essas são as vozes ou, simplesmente, a voz agente do texto.

É voz sem tempo, polifônica porque impessoal, mas que canta ao pé e à soleira

do “barraco de cristal” de quem lê e escreve, porque assim se escuta, pelo som do afeto

que vem à margem de uma página e outra. Vozes que dialogam sem se tocarem no

mesmo espaço, tal qual “os ambos” que ora se encontram. É canto órfico a dizer essa

cantiga de aprendizado na espiral do tempo e espaço; canto que tudo diz em dobra, por

sua mancha de incompletude e silêncio. É a impossibilidade da obra; é a continuidade

da vida. Lugar tensional da escrita que prediz o júbilo pela aceitação da entrega.

Fazia escuro, fazia luz, as praias rodeavam o silêncio na aceitação do

descalabro das ondas e suas vagas mínimas que circulavam em fúria redonda.

Mas não era o caos, era a caótica natureza da sua carne em marcha que,

rodando mais uma vez sobre si mesma, se aquietava,

em resposta ao Amigo

________ oculto no mar ________

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Não seria sonho,

ou delírio; ou disfarce

________ era a realidade

absoluta. (AA, p. 13)

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4.2. A obra inacabada e as dobras do tempo e espaço

O que vai seguir, esta manhã, é percorrer, de novo o meu desejo de

todos os dias,

permanecer no inseguro, subtraí-lo de algumas das suas partes,

atirar-lhe o salva vidas dos fragmentos.

Maria Gabriela Llansol

É nesse “golpe” que vem a ideia (vontade) de “marcar neste Curso 25 de julho

de 2023” (AA, p. 14). O dia 25 remete, em especial, à Revolução dos Cravos, momento

emancipatório na História portuguesa; mas também é a representação de um estado em

confluência, ao agregar os instantes limítrofes entre exílio e liberdade, entre dor e

alegria. Tudo ainda sugere a mesma data: com a soma não convencional do ano, é

possível se encontrar 25 (20 +2+3 = 25). Julho e Agosto são meses de verão que

marcaram intensamente Llansol, como ela própria afirma. Mas, em Amigo e Amiga, o

salto pro futuro é o desejo incessante do reencontro com o amado, ao tempo feliz que

um dia viveu; já que o hoje é marcado pela certeza da impossibilidade do pleno

encontro. Tentativa de driblar a morte pela escrita, eis o jogo trazido por essa linhas que

se dobram à esfera tempo (“Somente, o futuro hoje me envolve tão presencialmente que

quase asfixia como um véu lançado sobre os olhos. Ou, então, tão ligeiro e recuperável

que não paro de regular a circularidade concêntrica dos lugares” (AA, p. 14)) e espaço,

pela flexão “à coroa solar de Parasceve”, assim expresso em os despejos do presente:

hesitei entre enfrentando (o gerúndio) e enfrentar, mas achei que

enfrentando caracterizava uma ação, o movimento que, felizmente ou

infelizmente, demorava a percorrer ________ mas percorrer o quê?

________

um certo espaço,

que era a coroa solar de Parasceve

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É dessa forma que o fio do texto (pensamento) percorre a obra. Obra que se faz

aberta, pelo fulgor das imagens que nascem no cotidiano e são postas em fragmentos.

Leitura e escrita, em reciprocidade. “Por que me veio a ideia súbita de marcar neste

Curso 25 de Julho de 2023, quando certamente aí não viverei? Deve ser um

sentimento de permanência antecipado que, de qualquer modo, se realizará por uma

abertura que eu não delimito, (...)” (AA, p. 14).

4.2.1. Um canto órfico na dobra do espaço da obra

“E julguei que para rir com alegria (quando?) toda a criação chorava e o

nosso amor humano também; todavia crescia indestrutível.

Na experiência do abandono que fazia ________” (AA, p. 15).

“No nosso caso, a perda era um amor crescendo, à semelhança do que fora

uma alma crescendo, no interior de um texto já escrito amar um cão”

(AA, p. 15, espaçamento e grifos conforme o texto).

Aqui, a autora faz uma revisitação à imagem trazida no seu livro Amar um cão,

de 1990, para confluir no espaço presente a ideia tensional da perda aliada à força

motriz de escrita, ora corporificada no texto atual, como um ser nascente. O amor que

cresce é o texto que nasce, é a corporificação de Nómada76

, fugaz, possível agora

somente de ser tocado pelas linhas que se enlaçam na “espuma do texto” (AA, p. 11), à

semelhança de Orpheu à procura de Eurídice. Uma “alma crescendo” é também

caminho de autoconhecimento; pois, na diferença de planos, o caminhar da descoberta é

feito pelos sentidos (“eu sentia”), tal qual a criança, aprendiz, a “rapariguinha” que um

dia fora. Nessa busca, Llansol traz para o espaço do não-lugar (solo) outras revisitações,

76

Ou “A. Nómada”; figuras llansolianas que indicam Augusto Joaquim. Luci Ruas, em Na paz subalterna

da de criar figuras – uma leitura de Amigo e amiga, de Maria Gabriela Llansol, escreve que “Orfeu

dilacerado pelo tempo, desfeito em tempo para acolher-se a uma gruta de onde podem emanar os sinais de

um amor que busca vencer as limitações do tempo e os impulsos ambíguos de Eros e Tánatos, para

tornar-se ágape. Orfeu dilacerado é A. Nómada”

In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016).

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flexionando no tempo presente o passado pela sobreposição de elementos de teor

imaginativo sendo estes de cunho verbal e não-verbal, plástico e sonoro, vivo e não-

vivo:

Tracei no solo do parque, como já fizera em rapariguinha para

brincar aos aviões, a árvore do silêncio que não era (eu sentia) o reverso da

árvore da vida. “Meu amoroso silêncio”, disse pulsando, qualquer ponta de

um coração criativo. E julguei que para rir com alegria (quando?) toda a

criação chorava e o nosso amor humano também; todavia crescia

indestrutível. Na experiência do abandono que fazia ________ (AA, p. 15).

4.2.2. À porta de Parasceve

Inquieto-me porque, quotidianamente,

devemos fazer os despejos do presente.

Maria Gabriela Llansol

Aqui, há o esforço de quem sabe ser necessário o permanente esforço de

decepação: “Inquieto-me porque, quotidianamente, devemos fazer os despejos do

presente” (AA, p. 14) onde há, por efeito de desdobramento, “uma dor vitoriosa” (da

decisão de escrita) que “cobria outra dor” (AA, p. 16), em “paz subalterna77

” (AA, p.

245), dependente de outra, e de outra, e mais outra... pois, a única certeza que

permanece é a do movimento continuado78

. Aventura que é experiência de escrita vinda

à contraluz79

: “e já o corpo, moderado pela placa da inteligência” (AA, p. 16).

77

Com Luci Ruas se lê: “A paz subalterna é silêncio libidinoso em busca da “outra paz, que o quarto

procura”’ (In: http://www.omarrare.uerj.br/numero13/luci.html (Acessado em 12 / 06 / 2016). 78

Continuação dada por sobreposição como se lê, também, em Os Cantores de Leitura: “A paz brilha na

tranquilidade. A tranquilidade brilha no sossego, o sossego brilha na provocação insólita deste sol, a

provocação da luz repousa no abscôndito, [...]” (CL, p. 272). Daí que diga: “A paz não existe” (LHIV, p.

24) posto que ela não se completa. Assim, em sentido pleno e absoluto, ela perde sua existência. Mas vive

por derivação como o ler que, a certa temperatura de escrever, “funde-se em outra escrita” (CL, p. 272). 79

Lembro, aqui, Novalis ao mencionar o conceito de Besonnenheit.Termo que significa “clareza de

consciência proporcionada por uma instância crítica – o que remete à ideia de “contraluz”, pelo

conhecimento trazido em luz e sombra.

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A experiência textual é aqui moderada pela “placa de inteligência”, esse é seu o

vazio fecundante, sua luz trazida em desvio; pelo choque térmico entre a emoção, “fogo

que arde”, e a “placa fria da inteligência”; porque entre a mão que escreve e o corpo

textual que ora se forma, a luz que vem é a experiência nascente, moderada em desvio

pelo anteparo racional. Experiência luminosa que nunca finda, pois os raios refletidos

sempre se refazem ao jogo das imagens e sensações. Esse é mote e o modelo de criação

de Maria Gabriela Llansol. Tal perspectiva se apresenta no quadro renascentista “A

criação de Adão”, de Michelangelo, século XVI, que, ao pintar os afrescos da Capela

Sistina, retrata o exato momento em que Deus estabeleceu a criação do homem. Importa

observar que o Deus de Michelangelo se projeta em direção ao homem.

Geometricamente equilibrado pela extensão dos braços, o quadro traz em imagem

central os dedos alinhados que querem se tocar, mas há um espaço, o vazio, entre eles.

Se o braço estendido valoriza a associação entre Deus e o seu poder criativo, tanto mais

demonstra o interstício que existe entre as pontas de cada dedo. Por esse vazio se

evidenciam toda a tensão existente na criação. É o vazio fecundo dito por Llansol em O

Livro das Comunidades, nele há o poder da criação oriunda do desejo nunca atingido; é

a jouissance80

barthesiana como força motriz; desejo que é movimento pela completude

nunca atingida. Imagem que se remete ao livro Amigo e Amiga, de Maria Gabriela

Llansol, pois as mãos que se desejam também encontram esse vazio. Pequena distância

que é força atrativa, sendo desse quase lá a emanação de toda a força criativa. Esse

quadro, de 280 cm x 570 cm, de 1511, está no teto da Capela Sistina. A cena representa

um episódio do Livro do Gênesis no qual Deus cria o primeiro homem: Adão.

Deus é representado como um ancião. Seu braço esquerdo está abraçado a uma

figura feminina, normalmente interpretada como Eva – que ainda não foi criada e,

80

Força tensional do texto movida pelo prazer da escritura.

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figuradamente, espera no céu para ganhar uma forma humana. O braço direito de Deus

está esticado para criar o poder da vida de seu próprio dedo para Adão, o qual está com

o braço esquerdo estendido em contraposição ao do criador. Em Michelangelo, Adão é

capaz de alcançar Deus mesmo antes de ter ganhado vida. Pela mesma razão, Eva é

vista representada antes de sua própria criação. As posições de Deus e Adão, a pintura

do braço direito de Deus e esquerdo de Adão são quase idênticas e representam o fato

de que, como diz o Gênesis 1:27: "Deus criou o homem à sua imagem e semelhança".

Ao modo llansoliano, a imagem criada corresponde ao que cada um pode compreender

à luz de sua própria leitura, pelo afeto travado entre os corpos ao modelo de um

processo de imanência Spinosista81

. Por outra perspectiva, há estudiosos que dizem que

Deus estaria envolto de um cérebro e que seu o manto branco sugeriria um útero, assim

como a echarpe verde,que sai de seu ventre, poderia ser um cordão umbilical.

81

Imanência: Do latim (im + manare). Juntos agregam significado original de “existir e/ou permanecer

no interior”. A imanência Spinosista invoca aquilo que tem em si o próprio princípio e fim. Não

considera, para tanto, o aspecto de transcendência que atribui ao externo as causas daquilo ao qual se

designa. Isso, em contexto llansoliano, ganha especial relevo na compreensão do mundo para Llansol.

Para ela, não há causa externa que promova o bem, exceto o próprio trabalho e esforço humano alcançado

pela atividade do pensar. Daí que deslize metonimicamente a afirmação de Espinosa DEUS SIVE

NATURA para DEUS SIVE LEGENS . Ou seja, Deus não está fora do mundo; mas, sim, no mundo, entre

os homens e por eles sentido através de um corpo de afeto em que tudo é capaz de compreender através

do “olhar”. Em O azul imperfeitto – Livro das Horas V, se lê: “Se insisto na linguagem é porque ela é o

espelho do ser; e se eu atravessasse uma casa escura, ou uma época do conhecimento da minha evolução

particularmente difícil, escolheria a linguagem como guia. Voltei-me para a Quimera, minha amiga e ali

sentada, e com o profundo sentimento dos caminhos e desvios que iria atravessar, disse-lhe e disse a mim

mesma: — A linguagem te guie” (LHV, p. 508).

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[A Criação de Adão, Afresco de 280cmX570cm por Michelangelo,1508-1512, teto da Capela Sistina,

Roma]

Da força que conduz o processo de criação, diz Llansol: “hesitei entre enfrentando

(o gerúndio) e enfrentar, mas achei que enfrentando caracterizava uma ação, o

movimento que felizmente ou infelizmente, demorava a percorrer __________” (AA, p.

15); pois “este é o instante que não se mede pelo instante seguinte. Isto é o tempo” (AA,

p. 62). Dessa forma, pelo imperativo do dado referencial e da intensidade remetida pelo

aspecto memorialístico, os tempos se entrecruzam e ferem a linha marcadamente

cronológica e, assim, “das cinco horas” (AA, p. 40), chega-se às “quatro da manhã”:

“Mudou a hora para a hora de inverno, e são quatro da manhã e já tenho oito

horas de sono” (AA, p. 41, espaçamento conforme o texto base). Observa-se que há

espaços de distanciamento gráfico entre uma palavra e outra, indicando reflexão, tempo

de maturação, pensamento em desenvolvimento. Para além das estruturas de oposição

que constroem a tensão textual e vão percorrendo todo o texto, esses espaços se

mostram enquanto força atrativa e pulsão movente do ato de criativo. Espaço, esse,

fecundo como demonstrado a partir da tela de Michelangelo. Vazio que ainda não foi

nem mesmo preenchido pela mancha gráfica (_________), pois dela e com ela lê-se a

presença do silêncio, que já é um rumor de voz, uma expressão de um lento lendo da

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palavra recém-nascida. Espaços que são, contudo, “um textualino – a qualidade

cristalina que guarda o espaço entre as folhas” (AA, p. 53).

Em Amigo e Amiga – curso de silêncio de 2004, escreve-se a possibilidade de um

retorno à luz, que é essencialmente expressão jubilosa. Mas, “a luz que aí faz é o duplo

do gelo” (AA, p. 189), luz que vem em tensão e por ondas de desdobramentos. Escrita

solidária que se faz enquanto gesto de amor. No permitir que o outro siga seu itinerário,

beija-se a dor e percorre-se Parasceve, “Esperança”, que banhada pela luz própria é

trazida no “leito da linguagem” (AA, p. 169): “mal bate a manhã, o nevoeiro desponta

___________ o dia seguinte dispersa o nevoeiro” (AA, p. 69). Movimento cíclico em

que nele há luz e paz: “Paz dependente de uma outra paz, que o quarto procura; paz

subalterna _______” (AA, p. 245).

Ao consolar a mulher da perda irreparável, o Curso, que “é um convívio” (AA, p.

229), traz não só os textuantes llansolianos, como outras vozes que percorreram o

itinerário autoral de Maria Gabriela Llansol. Há um repertório envolto nessa trajetória

de silêncio e marcadamente expresso nas páginas finais da primeira parte quando

Llansol escreve: “Preciso de luz afirmativa à minha cabeceira. Evoco Rilke”. E revela,

em íntimo, que o seu texto nasce por “uma aprendizagem de leitura”, onde há “a

tessitura cerrada dos dois” mundos, analítico e sintético; texto que vem em

desdobramento, portanto. Lê-se:

Hora das cinco da manhã. Preciso de luz afirmativa à minha cabeceira.

Evoco Rilke. Qualquer coisa como “um anjo à minha mesa”.

No compartimento ao lado, destinado ao trabalho de ler e de escrever , a

estante de torcidos e tremidos, sonha:

“o texto, construído com pregos e martelos, transformou-se numa estante

de leitura; a segunda desconhecia atentamente o que era ler, mas quando a

claridade da manhã penetrou a casa na claridade do escritório, uma emoção

de aprendizagem de leitura, acompanhou-a.”

Do candeeiro irradiava

não ouvir vozes dispersas que tentem a luz à análise ______ há o mundo

analítico e o mundo sintético, a tessitura cerrada dos dois revela o texto

(AA, p. 40, espaçamento conforme o texto base).

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Llansol nos indica estar “lendo a nona elegia de Rilke” (AA, p. 55) e diz: “Como

diz Rilke agora, saindo inteiro da nonagésima folha que recorda um verso da nona

Elegia: ‘é entre martelos que o nosso coração sobrevive”’ (AA, p. 59). Já por entre as

linhas da segunda parte, Delírio em Parasceve, a figura de Rainer Maria Rilke reflete a

presença da cultura alemã na obra llansoliana; pois, com Rilke subjaz a vivência da

experiência biográfica, da história do casal em exílio – motivo pelo qual Llansol sai de

Portugal e assume residência na Bélgica, lugar onde Augusto foi causa e efeito – pois,

por ele e com ele teve início, talvez, o seu primeiro modo de “decepação” – ao deixar

para trás a pátria, a família, a língua. Contudo, a figura literária de Rilke também vem

representar a sensação do desamparo existencial e uma busca de afinidade com a

natureza. A presença do poeta e da árvore nas Elegias de Duíno aproxima Rilke e

Llansol do exposto em Parasceve. A compreensão entre os autores sobre os conceitos de

vida e morte se assemelham já que Rilke observa no movimento uma eterna circulação

entre a vida e a morte. Segundo Dora Ferreira da Silva, são os anos entre a publicação

do Livro das Horas (“Tu, Deus vizinho... Entre nós há apenas uma delgada parede”) e a

publicação das Elegias de Duíno que ocorre a transformação espiritual no poeta de

modo a alterar “radicalmente sua relação com a divindade: é como se a tênue parede se

adensasse cada vez mais, impossibilitando qualquer contato ou comunhão entre Deus e

o poeta, relegando-o a um desesperado insulamento”; se antes Deus era obscuro e

presente, hoje o espaço do poeta nas Elegias é de solidão e de ausência onde o apelo

humano é sem resposta: “Quem se eu gritasse, entre as legiões dos Anjos me ouviria?”

E onde nem mesmo a morte reconforta, pois o abandono transcende a esfera do visível:

“Todo Anjo é terrível”(RILKE, 2013, p. 11). Nesse mundo sem-abrigo, Rilke afirma

que o único meio possível do homem se redimir é o da tarefa poética, como diz Dora:

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Nesta ideia do homem como ser ameaçado, desligado e estranho reside a

afinidade profunda, apontada por Heidegger, da posição rilkiana com sua

filosofia. E Rilke passa a evocar tudo quanto exaspera o sentimento da

solidão: o vento portador dos espaços cósmicos, a noite “ternamente

enganosa” que vem ampliar a nossa acuidade íntima, tornando ainda maior o

nosso desamparo. E nem mesmo o amor liberta o homem desse confinamento

essencial, pois os amantes apenas ocultam “um ao outro seu destino”.

Somente as grandes amorosas, essa plêiade de mulheres ardentes celebradas

anteriormente nos “Cadernos de Malte Laurids Brigge”, despojando o amor

de todo caráter transitivo e dual, convertendo-o em anseio infinito, num

lamento por ser um ser eterno, chegam, através da doação plena de si

mesmas, à transcendência anelada, como a flecha que ultrapassa “a corda,

para ser no voo mais do que ela mesma”. Mas há outros caminhos e a tarefa

poética é logo apontada em seu caráter de redimir as coisas efêmeras: “Sim,

as primaveras precisavam de ti. Muitas estrelas queriam ser percebidas...

Tudo isto era missão”. E assim como os santos ouviam outrora o chamado de

Deus, o poeta deve ouvir o apelo das coisas transitórias, essa música

imperceptível gerada pelo silêncio. Tudo acena para o poeta, tudo é símbolo.

À semelhança de Amigo e Amiga em “O Golpe”, a primeira elegia, seguindo

ainda os pressupostos de Dora, termina com a evocação de um lamento pela morte de

Linos, deus grego da natureza; dessa forma, Rilke vem a escrever o luto e o desespero

humano diante da morte e com a dor sentida, há o entoar da música, fonte de “êxtase,

consolo e amparo”. E o que é a lamentação para Rilke? “Uma semente de júbilo que

tomba, imatura. Agora, porém, em meio à tempestade, desabrocha em mim a árvore do

júbilo, minha lenta árvore do júbilo”, assim escrito pelo poeta no poema Klage, de

1914. Se na primeira elegia, há a união da vida e morte através de um processo

memorialístico (“lembra-te, o herói permanece; sua queda mesma foi um pretexto para

ser: nascimento supremo”), na sexta elegia o poeta retoma o ciclo vida-morte através da

imagem do florescer, sob o ritmo e ascensão das metamorfoses; na sétima, há afirmação

da vida, a lembrar Zaratustra, de Nietzsche, quando escreve a parte final (XII):

“Profunda é a dor, mas a alegria é ainda mais profunda. A dor diz: Passa! Mas toda

alegria quer eternidade, quer profunda eternidade”. Na elegia, há um retorno às águas

das fontes como “jogo promissor” a verter revelações e à imagem da ave que, “erguido

pela estação que ascende”, o poeta se abre ao abandono da amplitude das sensações e

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das visões da vida. Do alargamento do tempo, Rilke escreve: “Não, não acrediteis que o

Destino seja mais do que a infância e do que ela contém”. Para Dora, o tema da infância

é uma constante na obra do poeta onde “a duração esquiva às medidas do tempo, eterno

presente em que se é com plenitude, ‘as veias túmidas de ser”’(SILVA, 2013, p. 91). E

o mundo passa a existir no movimento de dentro para fora: “o mundo existirá senão

interiormente”, o Weltinnenraum rilkiano – espaço interior do mundo expandido através

de todos os seres. (RILKE, apud SILVA, 2013, p. 92). Com Dora, lê-se:

As pedras que se amontoam em desordem, os frontões semidestruídos, as

colunas partidas, as estátuas mutiladas, tudo isto persiste misteriosamente em

nossa imaginação, como se o tempo não tivesse passado sobre eles. E são os

homens criadores, os homens de coração pródigo que os reconstroem

milagrosamente, devolvendo-lhes o antigo esplendor (SILVA, 2013, p. 92).

Com Llansol, cabe aqui lembrar o pedido de textualino: “Devolve o sol a quem

ler”. E a perspectiva do híbrido trazido por Maria Gabriela Llansol, é vista coexistindo

em Rilke quando afirma na oitava elegia sobre o animal: “ele vê tudo onde nós vemos

futuro, em tudo se vê e salvo para sempre”. Assim, o animal vive em comunhão com o

Todo, na abundância do “Aberto”, para além da morte. Já ao homem, resta-lhe “estar

em face do mundo, eternamente em face” (RILKE, 2013, p. 32). Pois, diz Dora:

A relação de conhecimento supõe sempre um sujeito e um objeto – daí a

condição humana “de estar em face” das coisas, irremissivelmente. O tempo

existe para nós que dividimos a realidade em porções e enquanto vemos a

parte, o animal participa do todo, “salvo para sempre”, pois sua história é a

história do Cosmos. Porém, adverte o poeta, até mesmo no animal há uma

profunda nostalgia, a nostalgia da “primeira pátria”, pois que “o ventre é

tudo”. No pássaro, há uma “quase certeza” porque pertence, pela origem, aos

demais domínios “como se fosse a alma liberta de um entrusco, que o espaço

acolheu, mas com a imagem repousando a recobri-lo (SILVA, 2013, p. 95).

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Mas, Maria Gabriela diz estar na nona elegia; não sob a primeira onde se canta a

dor. Na nona parte, assim como na sexta, na sétima e na décima, como menciona Dora,

Rilke vem afirmar “a consciência terrestre do homem e sua capacidade de superar a

angústia e o desalento inerentes à condição humana” (SILVA, 2013, p. 75). Eis a

perspectiva de júbilo. É na nona elegia que ocorre a mais forte expressão da experiência

pessoal do poeta pela crença centrada no percurso da existência pessoal, entregando-se à

vida tal como um “cavaleiro andante das coisas efêmeras que estranhamente nos

solicitam. A nós, os mais efêmeros”. Com Llansol, essa jornada do seguir sempre

adiante é proporcionada pela decepação da memória na aceitação do novo; pela não

exclusão do paradoxo, mas pela possibilidade de sua coexistência ao caminho do

Aberto. E diz Dora sobre Rilke: “Como o seu bem-amado Kirkegaard, Rilke não teme o

paradoxo: é no coração frágil do homem, o mais efêmero de todos os seres, que se

cumpre a transmutação do finito em infinito, do transitório em eterno”; e explica: “em

seu coração a “externalidade” será enfim devolvida ao Absoluto. Como? Através da

aceitação plena do terrestre, afirmando apaixonadamente o “aqui e o agora”’; pois o

poeta vê “na morte não o ‘outro lado’, a promessa da transcendência, mas a mais íntima

e sagrada inspiração da terra”, e assim “nessa imanentização os opostos se coincidem, o

finito se infinitiza, o efêmero se eterniza” (SILVA, 2013, p. 98).

À semelhança de Rilke, há, no canto llansoliano, o combate à escrita utilitária ao

qual o poeta cabe escapar; é ele que precisa transformar o modelo planfetário das

palavras sem imagens, das palavras cruas “em peça de ourivesaria, mesmo no

confronto. Esse é o convívio” com que ambos os poetas trabalham; através de “uma

lembrança descida do céu – o céu dos interlocutores que se estimulam e [se] entendem”.

Margem, essa, textual, “exterior à saudade” (AA, p. 29):

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XVIII – exterior à saudade

________ a inteligência do convívio é uma pessoa única que, segundo a

minha experiência, raramente se apresenta sob a forma humana, mal existe

entre os humanos; a inteligência do convívio é, de facto, muita inteligência.

Falou-me ela de quanto necessitava ter a memória do outro, uma memória

detalhada e ampla que, tirando-o do seu próprio espaço, o projectasse num

belo espaço de convívio ________ refiro-me aos céus da inteligência ampla.

(AA, p. 29)

E assim, lê-se com Llansol: “Humanamente, [...] sou textuante” (AA, p. 53); um ser

em metamorfose que, como em Rilke, procura transformar “casa, ponte, árvore, porta,

cântaro, fonte, janela ___ e ainda: coluna, torre...” em coisa íntima, pelo acolhimento

trazido não só pelos sentimentos humanos, esse “punhado de terra do indizível, mas

pela palavra colhida pura [...] em terra silenciosa” (RILKE, 2013, p. 35); onde dizer,

canta o poeta, é também compreender: “Mas para dizer, compreende, para dizer as

coisas como elas mesmas jamais pensaram ser intimamente”, pois “entre malhos

subsiste [nosso] o coração, como a língua entre os dentes [...] permanece a exaltadora”

(RILKE, 2013, p. 35). Desse modo, pelas cordas do coração e pelos fios que tecem o

invisível, “é a metamorfose” a “desesperada missão” e das “obscuras distâncias”, diz

Rilke: “consagrei-me todo a ti...; Terra, ó minha amada; não é este o teu desejo:

renascer invisível em nós?” para que nos “[nossos] corações invisíveis se cumpra a sua

metamorfose – infinitamente, quem quer que sejamos!” (RILKE, 2013, p. 36). E

Llansol escreve que “o inesquecível esperado há de vir e será ele o grande afinador do

piano (os pedais de toda a Terra textuando)” (AA, p. 71).

Assim, por todo o exposto, torna-se possível dizer que Amigo e Amiga segue

com as Elegias de Duíno82

, na partilha da dor, da linguagem e da alegria. Em diálogo

com a literatura Portuguesa, Fiama Hasse Pais Brandão, também conjuga desse

pensamento que vem mesclado pelo modelo alemão. E juntas caminham pelo

82

Segundo Maria de Lourdes Soares, “a leitura de Rilke é ‘luz afirmativa’, Anjo textual que a acompanha

e que lhe permite abrir passagem à penetração no invisível, notadamente a Oitava Elegia (leitura

implícita, apesar de não referida no livro), sobre o olhar das criaturas, com todos os olhos, para o Aberto

[...]” (JADE - Cadernos Llansolianos 9, p. 51).

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movimento de ave que delineiam em escrita. E Llansol pergunta: “Uma ave é um

animal?”, ao rememorar a hipótese de ser o livro um homem (AA, p. 84). Na página

posterior, há: “Nada é tão simples como sonhar com um ramo. Já é mais difícil

caligrafar sobre ele. Mas levá-lo a pairar num interstício de Parasceve e reconhecê-lo

como interlocutor no cerne espiritual desta aventura é um trabalho que tem muito de

ave” (AA, p.95). Em voo, o jogo llansoliano de fonemas e imagens nos termos

assinalados ave/ aventura. E sob as “folhas das obras completas de João da Cruz” por

onde ela, a autora/textuante agora ouve o seu renovado cântico: “É uma aventura que

tem muito de ave”83

(AA, p. 95).

Assim, “as manchas do puzzle” (AA, p. 57) são trazidas pelo enlace afetuoso

que há no som que quer “ser tocado”(AA, p. 58) e o no desejo de quem busca “limpar-

lhe o silêncio84

” (AA, p. 56). Por isso, Llansol diz que “ler era repleto de silêncio e da

fascinação dos sons” (AA, p. 55); síntese do silêncio interior de quem aprende a falar e

dos sons que percorrem os “ritmos”; que, sobre “o teclado das emoções”, vê(e)m em

vozes diversas; sons, enfim, que falam com “a palavra desdobrada em xaile da

mente”(AA, p. 56): “como, se não a podes ouvir. Somente olhar. / Somente a olhas

quando, num textuante, ouves. / E não vês a sua construção. Apenas o vago olhar / de

que padeces / olhar de olhar o que se ouve” (AA, p. 56).

Talvez seja esse “o delírio” a nomear a segunda parte: da sensação de suspensão

criada pela certeza de ter sido Parasceve uma escrita em/ao Aberto. Delírio que é

suspensão trazida, sobretudo, pela celebração da palavra: “Delírio dava a volta à

83

Em 13 de dezembro de 1996, durante um Colóquio sobre Rilke realizado na Faculdade de Letras de

Lisboa (12 e 13 de dezembro de 1996), onde lá também estava Fiama Hasse Pais Brandão, Llansol

escreve: “O que eu escutei foi o ponto de confluência das línguas. Tinha um sentido inexplicável. Olho a

Fiama; ela olha-me. O olhar os textos – descubro – é o nosso corpóreo olhar. Da distância?” (LHV, p.

701; LHIV, p. 189). 84

“O silêncio faz com que o dia de hoje seja sempre diferente do de amanhã” (LHV, p. 676).

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manivela da máquina do dicionário, e o que explodia em cor verbal no ecrã, por

projecção de um ramo de linguagem, indescritivelmente soprava e existia” (AA, p. 176).

E Maria Gabriela afirma: onde se escreve “com a porta aberta para a rua, não há

uma única livraria” (AA, p. 84). Caminho que se segue acompanhado pelo viés

memorialístico (“Ficámos a ver o rio, vindo à memória de ambos as correntes do vento”

(AA, p. 80)):

Evoquei Parasceve: ─ Que espécie de sinal gráfico de pessoa? Ou de figura?

Ao menos, se eu te tangesse ______ Sim; o espírito roça-me; inclino a cabeça

para essa presença espessa, e entro na gruta de facto, entramos, porque vou

acompanhada por quem desceu comigo a rua, até aquela Praça que faz recuar

as árvores (AA, p. 81).

A criança tocava nas folhas como se fossem as teclas de um piano vivo, o

violento sopro musical do nascimento. Mandaram-na para Parasceve, onde se

tornou a madeira sonora de uma porta, em face da qual eu contornava o que

andava a escrever. Assim, conseguíamos cercar a memória e o futuro

lateralmente. (AA, p. 58).

Em tom intervalar entre o material e o espiritual, a presença do sonho marca a

condução da obra: “E eu sonhei que ensinava a ler aos animais que acordavam, aos que

nunca tinham dormido, e aos que entravam no adormecido” (AA, p. 55); “Eu precisava

de sonhar o dobro, não inclinar a cabeça ao que esmagasse e revelasse nossa origem, e a

razão por que eu escrevia sempre sobre nada” (AA, p. 58). E “nada” era, sobretudo, “um

textualino”, um canto órfico ao ritmo de Rilke:

XLII. nada

Se eu não ouvir o oxigénio das folhas,

a música é cega para mim.

Como diz Rilke agora, saindo inteiro da nonagésima folha que recorda um

verso da nona Elegia:

“é entre martelos que o nosso coração sobrevive”

Lembrei-me então que a criança me estava a mostrar os contornos da terra

apetecível à sensibilidade do anjo, que deixara de ser o definido no

implacável de Rilke.

Era um textualino (AA, p. 59)

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Escreve Llansol: “Juntas mãos e mãos, ficamos votados a uma cavidade onde,

mas só a grande distância deste horizonte, nos é permitido ler. O que conhecemos dança

sobre fios suspensos das recordações [...] e o sono pisa-me no amplo chão” (AA, p. 63).

Assim, no espaço intervalar do sono, entre a consciência e inconsciência, e na

configuração do não-lugar, o “amplo chão”, sugestivo do plano bidimensional de

escrita, reforça-se a tarefa da Amiga, poeta, narradora, textuante, em dar voz/corpo ao

seu “ambo” não por simples ato de amor, fruto da paixão humana; mas pelo gesto de

amor traduzido pela tarefa sagrada da transfiguração da coisa simples em extraordinária;

de tornar dizível todo o indizível que há na palavra comum.

Delírio em Parasceve é, assim, um caminho aprendiz que persegue as páginas

49 a 106 do livro, por onde Llansol vem afirmar a persistência do seu ambo “em existir,

agora mais liberto e agudo”, restando-lhe, à narradora,somente entregar-se ao abandono,

que é o deixar “vir ao espírito [as] linhas evoluentes” (AA, p. 85), por onde o efeito de

decepação da memória chega em travessia de leitura/escrita pelo silencioso e sinuoso

movimento do nunca finito, no interstício dos entreditos.

Diz Llansol: “Entre ti e a tua imagem há um hiato, e é nestas circunstâncias de

ausência que te falo ________ a quem falo? (AA, p. 84); eis a escrita epistolar que vem

em Amigo e Amiga; um texto em dobra, nascido das várias vozes textuantes, sem

destinatário definido. É uma carta que “lendo, não se sabe do que se fala. “Mas,

demorando a ler, verifica que se lê” (AA, p. 102-103). É, portanto, uma carta

indecifrável ainda; um enigma aberto ao tempo da decodificação amorosa, pois “há

palavras que são [...] uma reverência ao desconhecido”; “porque a História, [...], faz-se

sempre com os intervalos do que se fez e onde não está ninguém” (FERREIRA, 2009,

p. 162-163). Cabe aqui invocar, nesta intertextualidade proposta, a Carta ao Futuro,

ensaio de Vergílio Ferreira, onde o autor que é figura llansoliana, o seu “companheiro

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filosófico”, de O inquérito às quatro confidências, diário III, se dirige também ao

“amigo”, metáfora da geração futura; mas que, em semelhança ao Curso de silêncio de

2004, verifica-se o registro da escrita a um ausente em que a pujança a que se serve o

impulso do ato criativo subjaz da necessidade interior de pôr à lume a incandescência

das ideias: “Escrevo pelo prazer de comunicar”85

(FERREIRA, 2010, p. 11). Esse é o

legado, essa é a sina; “porque o sentimento estético é uma comunicação original com a

essencialidade da vida”; e “é dentro da emotividade que o mundo tem sentido”

(FERREIRA, 2010, p. 101). Sentimento estético que “não é um exclusivo das obras de

85

Com Vergílio Ferreira há, sobretudo, a perspectiva do corpo convergente em matéria e em palavra. Do

nascer e renascer pela “celebração da palavra” – “porque uma consciência só se exerce, só realmente

existe, se encarnada na palavra” (FERREIRA, 2011, p. 294). Na segunda parte de Invocação ao meu

corpo, Vergílio reflete sobre o “eu”, espaço gerador de uma identidade onde se conjugam o tempo, a arte,

a liberdade, a razão, Deus, língua, verdade, dialética, o sim e o não. É, sobretudo, uma “descida a zona

original de nós”: “o estrume que tu és, agora é o prodígio que o habita e o transmigra à grandeza de ti. O

teu corpo de podridão é o facho que o ilumina, é o combustível que só existe como a chama em que ele

arde.” Em “Subjectividade do corpo”,em Invocação ao meu corpo, é onde o autor de Aparição escreve

sobre o regresso do homem a si próprio: “Porque eu sou o meu corpo”. E diz: “No puro acto de estar vivo

ele é o absoluto que eu sou” (FERREIRA, 2011, p. 255) E “o absoluto do nosso corpo é o absoluto do

nosso eu – nós o podemos verificar nas experiências mais simples”, porque “estou sendo [...] no instante

em que [...] vejo.” E explica: O meu desdobramento é portanto do tipo daquele em que me desdobro entre

o “eu” e o “mim”, entre aquele que observa e o que é observado. Porque o “eu” que observa está ainda no

“eu” observado, o “mim” que contemplo inclui aquele que contempla. Assim, a observação que de mim

eu faço é sobretudo compreensível quando a faço não sobre aquilo que estou sendo, mas sobre aquilo que

fui; como a observação do meu corpo o desprende particularmente de mim quando o penso no acto que

realizei, quando o objectivo como ao corpo de outrem e o vejo por exemplo numa fotografia ou num

filme. [...] A realidade última do meu ser é o corpo que sou, ou seja, o “eu” que ele é (FERREIRA, 2011,

p. 255). Ou seja, o corpo, para Vergílio, “é essa pessoa efectivada”, por ser “um corpo que pode dizer eu.”

E pela ação do dizer, há a relação da arte com a vida, na aparição do “eu” pelo continuum do tempo dado

pela voz, que é a “projeção de nós próprios através da palavra” (p. 260). Tal perspectiva é trazida nas

obras llansolianas pela simbiose conceitual que há entre corpo e casa. Corpo, enquanto receptáculo da

vida, é compreendido pelo viés do literal, metafórico e bibliográfico. Assim, lê-se em Inquérito às quatro

confidências:“Texto ortopédico é feito de uma procura da língua, de uma voz, de uma ária, de que modo

evitar ou corrigir um texto que não é tal qual um texto, mas uma simples descrição de um corpo visto do

exterior. Texto não-ortopédico seria o que eu procuro compreender e não entendo (IQC, p. 119). Ou

ainda, na “necessidade de se refrescar”, Llansol ouve de Vergílio que “também há um álbum de fotografia

na APARIÇÃO: “Entre a minha alma e a água o corpo estava despido, incógnito na sua natureza – obra de

autor desconhecido; à medida que lavava o chão, vinha-me à memória a classificação das partes do corpo

em coração, membrana, entranhas, núcleo, âmago, sangue [...], afastei a água e mergulhei, já mais livre,

no álbum de escrever; é assim que eu desejaria escrever, apurando o álbum da fotografia do corpo sem

tópicos, flash sobre flash, deslocando o braço que segura a máquina de escrever para todos os ângulos

possíveis. Chamo a este texto a fotografia ________ [...]. Que importa o lugar da representação na água

se a nudez é a nascente do corpo, o próprio efeito de escrever [...]? — Também há um álbum de

fotografia na APARIÇÃO – diz-me ele, a meio do corredor: — Não se lembra? (IQC, p. 99-100). Nudez

que é esvaziamento e decepação. Assim Maria Gabriela Llansol escreve e se inscreve no corpo de escrita,

em e por imagens, tal como fotografia. Expressão por impressão infinitamente; luz sobre luz; “flash sobre

flash”.

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arte”, mas também é sabido “das horas silenciosas em que a sua face se adivinha e não

há ainda uma obra de arte a traduzi-la, a integrá-la numa manifestação” (FERREIRA,

2010, p. 100); silêncio que vem em voz e em escuta; é um apelo vindo “desde os

confins da memória” (FERREIRA, 2010, p. 101). Por isso, diz Vergílio, “sempre

estimei a epistolografia, é porque é ela a forma de comunicação mais directa que

suporta uma larga margem de silêncio”; e acrescenta: “porque ela é a forma mais

concreta de diálogo que não anula inteiramente o monólogo” (FERREIRA, 2010, p. 11).

Observa-se que o monólogo dialogal visto na escrita epistolar llansoliana não anula o

Curso textual da história narrada; são textualidades que coabitam o espaço da narração,

ampliando o processo deambulatório do “eu”, pois em “o silêncio”, capítulo XVI de

Amigo e Amigo, Llansol diz que “o que nós somos é um ponto espiritual” (AA, p. 27);

elo de afeto, portanto; pois, a profunda fraternidade, diz Vergílio, “não é uma cadeia de

braços, mas uma comunhão do silêncio, uma comunhão do sangue” e “toda a vida que

se cumpre esgota a comunicabilidade onde quer que se anuncie. Assim, a hora da sua

verdade não é uma hora de comício, mas de solidão final” (FERREIRA, 2010, p. 18).

Verdade, essa, que move à mulher que escreve a dizer ao seu “ambo”: “a nossa primeira

forma estética de amor acabou” (AA, p. 224). E é o amor “o único lugar da relação

entre sujeitos, que é uma relação de perda, apelo que atira os amantes para o vazio de si,

hipótese de renovação. Do lugar de uma possessão mútua à despossessão” (LOPES,

1988, p. 109). Desde os livros da primeira trilogia, como observa Silvina Rodrigues

Lopes, o amor em Llansol é uma força-agente que liberta o “eu” “da escala humana para

uma escala cósmica” (LOPES, 1988, p. 108) e nele se alia “a vontade de amar” e a

“vontade cintilante do saber” (CME, p. 31). Amor que vem “através do coração da

inteligência” (CA, p. 91) figurado no plano de escrita; porque, segundo Silvina

Rodrigues Lopes, “toda a escrita vive do dizer, expansão de uma subjectividade anterior

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à consciência de si e à representação” (LOPES, 1988, p. 110). Ainda com Silvina, “a

escrita de Maria Gabriela Llansol aparece nitidamente como espaço onde se dramatizam

as ideias-forças da passagem do poder ao desejo, o que faz de todos os livros uma única

Causa Amante” (LOPES, 1988, p. 109). Eis aqui também seu Drama-poesia, ao unir

voz, gesto, ao lirismo da fala. Narração lírica posta em ação no decurso da escrita pelo

movimento das imagens intercaladas, vindas em fragmentos. Acrescenta a

pesquisadora: “as ideias-forças de que aqui se fala partem de onde brota o pensamento e

o desejo – a relação entre linguagem e os corpos – e organizam-se num pensamento da

diferença” (LOPES, 1988, p. 110), que não se excluem, mas se complementam em

alteridade. Da subjetividade presente ao elo afetuoso da escrita enquanto ato criativo,

Silvina, pelas mãos de Lévinas, afirma que a “despossessão”, como movimento de

abertura, é a exposição que possibilita a ampliação do sentido:

Esta subjectividade é primordial para um pensador como Lévinas que, na

linha da tradição judaica e fora da oposição animalidade ou sensualidade /

espírito, concebe o corpo feminino como misericórdia e generosidade,

passividade de onde irrompe todo o movimento para o outro, despossessão

que é exposição, abertura da possibilidade do sentido. (LOPES, 1988, p.

110).

E diz: “Abertura de sentido correspondente à dilaceração do corpo feminino”

A abertura do sentido corresponde à dilaceração do corpo feminino, pré-

originária em relação a um sujeito consciente de si mas nascimento de uma

subjetividade inseparável da corporeidade, aquém do saber e da formação de

imagens; sensibilidade ou proximidade que não significam percepção ou

tomada de consciência no contacto mas movimento para o outro,

independentemente de qualquer troca de informações, compreensão,

conhecimento” (LOPES, 1988, p. 110).

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Em O começo de um livro é precioso, Llansol escreve:

Toda a escrita representativa vive do impensado da

Representação. É quase incompreensível como as

Estações giram em torno da rosa-dos-ventos. São

Pássaros que voam convergindo para onde brotam

Nascentes. E, no entanto, ninguém detém as águas.

Andam a monte e, só cansadas, caem na rosa como

Versos livres num poema (CLP, p. 347).

Da imagem llansoliana, de O começo de um livro é precioso, é possível ir ao

princípio do verso em Fiama Hasse Pais Brandão: “Água significa ave”. Verso-chave de

sua escrita, sua “Chave de ler”86

, dito em “grafia 1”, Poesia 61 – como se fosse, sendo,

um modo de princípio verbal, de preenchimento do vazio que preside à “atitude de

criação”87

(SEIXO, 1986, p. 28).

“Água significa[ndo] ave” é espécie de “textualização da palavra no poema”

(SILVEIRA, 2006, p. 53), como afirma o maior especialista de sua obra no Brasil, Jorge

Fernandes da Silveira, quando o Verbo em Fiama principia e não se esgota, tampouco

se retém, pois “ninguém detém as águas”, como afirma Maria Gabriela Llansol.

“Textualização da palavra no poema” ou, simplesmente, em outras palavras, “o real

modo fictício de estar no poema” (SILVEIRA, 2006, p. 53), como se o espaço, o modo

e o tempo convergissem em cenas vivas, por “Cenas Vivas” (2000)88

, “onde brotam /

Nascentes”. Assim, dado o movimento giratório da “rosa-dos-ventos” na juissance “do

impensado da Representação”, pelo continuum processual de leitura e escrita, seguindo

86

Título do terceiro capítulo de O Beijo dado mais tarde, de Maria Gabriela Llansol. 87

Diz a autora: “Preencher o vazio foi, desde sempre, o princípio que presidiu à atitude de criação;

interpretar esse princípio, tomando-o como um impulso de elaboração que oscila entre a compensação da

falta e o desejo de produzir coisas, entidades, sentidos, está na origem da formação das religiões, das

literaturas, das ciências e das várias outras formas de adequar o homem ao seu espaço de viver e de

pensar”. 88

Aqui, compreende-se “Cenas Vivas” como imagens vivas, sobrepostas no tecido de um poema; e como

referência ao penúltimo livro da Poeta. Assim, a convergência se dá em imagens vivas pelo objeto-livro,

através do processo de leitura e escrita.

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a fluidez do seu “rio demorado”, pela temática fundacional da água, há novamente

expressa a relação ave/aventura, em ampliação semântica do anagrama AVE/EVA.

Coincidência e coexistência de opostos; e a duplicidade no UNO evidenciados

circunstancialmente89

, em dis-curso, na origem que é feminina à luz do jogo mútuo de

duplicidade: AVE – EVA. É “água íntima dos lábios” (BRANDÃO, 2010, p. 8), dito em

grafia 2. E assim, “repetem-se os melros [...] a debicar sempre nas pedras húmidas”

(BRANDÃO, 2010, p. 165), por meio de uma interlocução intratextual que se alarga e

se amplia por figuração cênica quando o rio de escrita de “grafia 1” se estende à “grafia

2”: “Está no rio / o embrião da noite // O rio livre / com apenas o princípio evidente / de

todas as formas // A água íntima dos lábios”. Logo, a água em curso em Fiama é práxis

e poiésis; palavra em movimento, onde a grafia se situa no modo de olhar, como um

“teorema de pálpebras” (BRANDÃO, 2010, p. 9) e em réplica, “na grafia dos espelhos”,

à maneira de Nietzsche, em eterno retorno.

E “água”, em Llansol, nesse Curso de silêncio, é “lágrima especial” (AA, p.

186), a pequena lágrima que “coube em sorte”; pois, após atravessar as folhas em

Delírio em Parasceve, percurso de encontro com as vozes e com a Voz de “Prunus

Triloba”, árvore da vida; vozes que tudo dizem “montadas no silêncio” (AA, p. 153), ao

ritmo do afeto, que o “eu” que agora canta é “estere”, grafada com letra minúscula,

depois de ter sido ela a “mulher decepada”, a “cortada a cerce”, a “escrevente”, a

“mulher da noite obscura”, entre tantos outros “eus”. E “estere”, grafada com letra

minúscula, também fende o absoluto do “eu”, que esvaziada “existia”, onde junto a

“Nómada ausente, resta o jardim da ausência; que este seja – o jardim que a ausência

permite”. “No concreto das horas”, ela, a mulher, diz: “devo atenção às jovens flores

preteridas que são a imagem de um ocultamento – o seu”. (AA, p. 177). Modo de

89

“Onde”

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evidenciar o esvaziamento em que tudo se contrai e se expande em simultaneidade por

meio de uma coexistência de opostos que se complementam na imagem traçada: “digo

eu, digo ele, dido ela, encontro outra forma de referir-me a alguém que coincida

com o tempo e a pessoa _________ concentro-me na imagem, e desço a ela.” (AA, p.

178). E ao dizer que “é o concreto que interessa à porta”, Llansol invoca, para além da

ideia da dor que se transmutará em alegria; ou da noite obscura que virá encontrar, pelo

amanhecer, a claridade do dia – a imagem da importância do estar voltado para si, não

no sentido narcísico de estar no centro do mundo; mas a interioridade que permite a

abertura ao autoconhecimento; caminho que parte de dentro para fora, que como num

duelo no fundo do mar de si, o mergulhador retorna à superfície após ter-se defrontado

com os medos e angústias mais intrínsecos escondidos por entre seus corais, que

dispersos ao longo do espaço e do tempo devem ser resgatados e devolvidos à

superfície. Epopeia não coletiva, mas do próprio homem; uma narrativa cantada em voz

lírica, que é apelo afetuoso entre Eros e Tanatos – elo de força não externo; mas,

sobretudo, interno.

Amor e morte em epopeia breve90

: “Eu digo, em borboleta: — Eu sou uma

borboleta. Mas queria ter um sabor breve dos sentimentos humanos. É, de toda a

evidência, [...] o que aqui fica escrito seja o sentido na minha alma de borboleta”;

“Preciso de estudar, perto e longinquamente, sobre mim mesma – e a sua perda. A

minha vida é arriscada e breve” (AA, p. 174).

Processo único de aprendizagem, de chegadas e partidas; que, pela decepação da

memória, o “eu” que lê/escreve caminha em evolução “até a luz” através do silêncio que

90

A ideia de brevidade se liga à concepção de uma “literatura menor” definida por Giles Deleuze e Félix

Guattari, em Kafka – Por uma literatura menor, na qual contrapõe essa forma de literatura (a menor) a

uma “literatura maior”. Segundo os autores, a “literatura maior ou estabelecida segue um vetor que vai do

conteúdo à expressão: [...] O que se concebe bem se enuncia... Mas, uma literatura menor ou

revolucionária começa por enunciar, e só vê e só concebe depois. [...] A expressão deve quebrar as

formas, marcar as rupturas, [...] adiantar-se à matéria” (DELEUZE, Giles; GUATARI, Felix, 2014, p. 58).

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habita o “espaço errante entre os olhos e as letras”. Do “rosto projectado na folha”,

contempla, agradece e partilha “as páginas com lágrimas”. E “é isto” (AA, p. 175):

CXXVII. é isto

________ tudo me agrada num livro – a maleabilidade, a companhia fechada

e que se abre, o espaço errante entre os olhos e as letras, a concentração da

cabeça, o meu rosto projectado na folha, os caminhos que dele evoluem até a

luz da janela, ou lâmpada – e da partida. [...].

Agradeço-lhes o que eles contribuem para que eu escreva este Curso.

O consolador na dor – hoje – , multiplica-se pelos volumes dispersos pela

casa que se entregam à mim e à lembrança do cão que se deita e suspira por

Nómada ________ seu mestre-de-procura, que aqui morreu.

Sinto que não sou capaz de, sozinha, contemplar o dom de tantas

páginas com lágrimas e, à noite, quando o silêncio que silencia o silêncio

cresce,

alguns deitam-se a meu lado e, entre a acutilância da leitura e o elevado

erotismo da escrita, eu fico de vigília

__________________ e eu sonho. (AA, p. 175).

Assim, em metamorfose, o “eu”, agora “estere”, mas que também no percurso

do ser/do ter sido uma “pessoa de silêncio”, ou um “eu-livro, ou um “textualino”; ou

simplesmente, um eu-outro(s) de mim mesmo, diz: “reiniciei-o [me] várias vezes e

inseri-o[me] na coluna dos textos feridos”, uma expressão de libertação “na construção

maior de outra sombra” (AA, p. 152), “em paz subalterna”, em “desvelo amoroso” (AA,

p. 152), onde a onda de luz que vem é luz encantatória “sobre a toalha de leitura” – eis a

“outra sombra”; uma luz à contraluz, luz que “esbate os contornos e o tesouro do

arbusto esconde-se” – tesouro “inacessível” (AA, p. 153), porque é canto órfico. Nesse

movimento deambulatório de “desassossego” e de encontro com a Voz do mundo e dos

tempos; de encontro e desencontros consigo e com seus textuantes de leituras ao ritmo

sonoro da poiesis e de Bach; pelo sussurro à contrapelo de Benjamin; pela evidência do

Aberto na trajetória de ascese do voo em linguagem, junto ao seu Nómada e na dor da

perda, a amiga-amante, “cantora de leitura”, escreve – porque assim lê: “________

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estou bem”, capítulo final de Amigo e Amiga em que realiza a síntese dos dois tons

trazidos: a dor da perda e a sua possibilidade de reencontro através do corpo de escrita.

Um trabalho de mãos e mente a cortar o passado memorialístico, de modo que vazia,

“estere”, possa vir a receber o novo, estando pronta para ser preenchida pelo Aberto do

Tempo – eis o seu júbilo. Júbilo que nasce na interface do fingimento pessoano e do

testemunho de Sena, pois na vivência do desconcerto escolhe como acolhimento o

caminho da leitura-escrita posta em fulgor. Fulgor que vem tensionado pelos processos

desassossegados e deambulatórios de Pessoa e de Sena transfigurados à imagem de

AOSSÊ e JORGE ANÈS, enquanto potências criadoras91

. Isto porque há, em Llansol, o

modo pessoano de uma deambulação interior, da viagem92

entre mim e mim mesmo,

em complementaridade com o modo seniano do testemunho deambulatório em torno do

mundo, enquanto marca de sua presença crítica no tempo que lhe é conferido. Daí que

sua escrita viva no limite da autobiografia, porquanto seja real93

o fingimento. Real,

esse, trazido em fingimento pelo apelo afetuoso de acolhimento do diverso, pela

celebração da palavra e do movimento sempre contínuo do ir. De tal modo que todo “ir”

é, sobretudo, um retornar para si, no autoconhecimento que permite a ascese do voo

pelo mundo exterior. Movimento vindo em espiral de desdobramento. Luz que

transcende por chama incandescente – energia que, de dentro para fora, tudo suspende

em silêncio, tal como a “poalha”94

no ar. Assim, sem negar “o golpe”, pelos caminhos

91

No capítulo seguinte essa ideia será brevemente retomada. Contudo, eu a trago aqui como hipótese de

investigação posterior tendo em vista que o estudo do júbilo no entre-lugar das poéticas do fingimento e

do testemunho diante do desconcerto dos “seus mundos” façam por merecer ou, até mesmo, venham

exigir, para além do júbilo, a conceituação, a partir do cânone, das emblamáticas supracitadas através dos

autores que as definem (Camões, Fernando Pessoa e Jorge de Sena) e o seu diálogo com as figuras de

Maria Gabriela Llansol que a eles se remetem (COMUNS, AOSSÊ e JORGE ANÈS). 92

“Escrever, indo de um quarto a outro, é uma forma de viagem” (LHV, p. 239). 93

“O toque do real é sempre um momento de suspeita. Suspeita de que a vida se prolonga na morte”

(COELHO, 2010, p. 53). 94

Maria Gabriela Llansol nos remete à imagem de “poalha de luz" ou "poalha dourada" em deslizamento

à ideia canônica expressa em Gênesis (3, 17-19). Trago abaixo, nos fragmentos citados, a passagem de

“poalha” em que na obra se apresentam: “Repara que nós nascemos numa civilização que afirma que

todos viemos a este mundo, onde nos encontramos a falar, desterrados do paraíso, não ousando, todavia,

incluir as crianças, enquanto tais, nesse desterro. Seja como for, as imagens edénicas estão presentes na

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delirantes e encantatórios de Parasceve, ela, a amante, a mulher que perde seu “ambo”,

pela decepação da memória, de ser ela, agora, a mulher que “cortada a cerce”, é “estere”

– que só pelo vazio de si será capaz de ver/sentir o novo pelo “encontro inesperado do

diverso”. E por essa via de silêncio e de aprendizagem; de metamorfoses e vozes, é ela a

“cantora de leitura”, capaz de ressuscitar pela força do Verbo o amigo-amante, seu

Nómada, agora Tual, para assim, acolhê-lo na forma possível do “beijo dado mais

tarde”.

inocência, embora, devido ao pecado original, inventado para o efeito, sejamos obrigados a crescer para

as perdermos e as voltarmos a encontrar, depois da morte. Repara ainda que toda esta fantasia foi mais

especificamente elaborada, a partir do momento em que o poder político se apoderou do lugar de onde era

emitida, com autoridade, a interpretação das escrituras. Aliás, o livro do Génesis, de que nos servimos,

está cheio de erradas (para não dizer, conscientemente falsas) traduções. Para te dar um exemplo: onde

está dito “Sois poalha de luz e em seres luminosos haveis de vos tornar”, foi traduzido por “Sois pó e

em pó vos haveis de tornar”. Mas não é meu trabalho discutir com livros mortos. Basta dizer que o texto

evoca outra realidade” (In: “O Espaço Edénico”, Na Casa de Julho e Agosto, p. 147). Em O Livro das

Horas 1, há dito: “Mas há por perto uma outra linhagem, a linhagem dos seres humanos e não-humanos

sem natureza temporal, apanhados num momento da sua imortalidade passageira. É um olhar que vê o

fim e o começo de todas as coisas, poalha e mais poalha que de novo toma consistência, como uma

semente. E não é tudo, é ainda o facto de imaginar estes seres, de os completar, de os esquecer (História

das pequenas histórias)” (LH1, p. [20 de Novembro de 1976]). Ou ainda: “O logos desfaz-se em

múltiplos entenderes (ficou- me um cabelo nos lábios), despe-se do seu significado perfeito; embora

imóveis, nós não somos um quadro; e, nos restos da conversação ou da memória (Johann dirige-me um

olhar de estímulo surdo), deposita-se a sua poalha dourada, quando houve dizer verdade... (L1, p. 74);

Ou como se lê em Lisboaleipzig 2: “Elisabeth desvanece-se no ar. Anna dirá tão somente que nem na

idade juvenil, nem na idade madura, nem agora, jamais este poeta foi feito da substância dos que se

anotam à margem. Se tal estivesse em seu poder, nunca como naquele instante, desejou que voltasse, no

seu ventre, a nascer de novo. Por isso,e por, sem saber o alcance, continuar a mostrar aos cacilheiros de

gente e à imensa multidão de automóveis que amanhecea palavra que anuncia______ tu és poalha

dourada, e em poalha dourada te hás-de tornar, ao som imperioso do órgão que os chama. (L2, p. 115,

grifos nossos).

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CAPÍTULO V

“PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O

MAR”

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[A Catedral, Auguste Rodin, 1908, pedra 60x34 cm, Museu Rodin].

“Queria mostrar-te que todo este conjunto, que eu defino por criação, está fechado na mão de Ana,

sob a primeira linha de leitura que ensino a Myriam” (BDMT, p. 50).

“Cada um tivera o seu Amante; o Amante que lhe ensinara o Canto, e o Amante que a ensinou

a separar-se dele. O jovem rosto e o rosto envelhecido que teriam mais tarde estavam ligados por

um idêntico princípio de fulgor” (BDMT, p. 47).

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5. “PELAS FENDAS DA PAISAGEM, UMA FENDA PARA VER O

MAR”

5.1. A Questão do Júbilo

O signo é uma fenda que se abre sempre sobre a

ruptura de um outro signo.

Roland Barthes

Todo o júbilo está na nuca,

na cerviz indobrável do humano.

Desde que nuca seja anel.

Maria Gabriela Llansol

Diz Llansol em O jogo da liberdade da alma, que “o texto é a alegria que me

espera na linguagem” posto que “em linguagem, [o] cão está junto à porta, encostado ao

muro, e a ladrar de alegria ao texto ________ em figura de Jade” (JLA, p. 88). Alegria,

essa, que é jubilo, propiciada pela fruição da palavra em corpo textual trazida pelo signo

verbal (cão) em desdobramento (Jade).

Sendo a alegria uma emoção, importa, aqui, pensar o modo desta poética

llansoliana a partir das reflexões propostas por Didi-Huberman na conferência

pronunciada em 13 de abril de 2013 no teatro de Montreuil, nos arredores de Paris, e

que estão publicadas no livro Que emoção! Que emoção?. Neste trabalho, Didi-

Huberman procura entender as emoções humanas, suscitadas por diferentes imagens,

através do olhar hipotético de quem sente, daí a exclamação (!) e; em seguida, por um

distanciamento necessário indo a caminho da indagação. Percurso, esse, também

llansoliano visto que a trajetória do júbilo perpassa por experiências outras, mas segue

mediada pelo pensar incessante de quem se põe a olhar95

. Desse modo, toda experiência

95

Em “Qualquer coisa que muda a escala do olhar”, Eduardo Prado Coelho diz: “O olhar através da

janela dá-nos a linha infinita do horizonte” (COELHO, 2010, p. 49).

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vai em desdobramento do olhar e se torna única em percepção e análise, pois carrega

consigo marcas e gestos do(s) “eu(s)” por onde passou. E se a rapariga de Um beijo

dado mais tarde temia a impostura da língua, “o falcão temia a impostura do olhar (RV,

p. 65). Olhar que move, comove; é e-moção – “quer dizer, uma moção, um movimento

que consiste em nos pôr para fora (e-, ex) de nós mesmos” (HUBERMAN, 2016, p. 28).

Sobre a importância do olhar na textualidade llansoliana, lê-se:

“É dentro do Tratado de amor que se encontra o precioso papel que

tu me deste. Não vás perdê-lo por negligência do teu olhar ______ abertura

tua para a tua memória. O que me deste, deixo-o contigo, para que, de novo,

mo entregues quando me reencontrares nessa velhíssima próxima vez” (CL,

p. 95).

Há nesse fragmento um tratado amoroso feito em elo de leitura e escrita. Papel,

que sendo anel, vem reafirmar a aliança de uma comunidade que se entrelaça pela

aproximação afetuosa do cruzamento de olhares. Olhares que comungam de um ponto

de convergência, sabendo-se ser único no múltiplo. Coletividade que acolhe e que

integra, se não houver “negligência do olhar”. Nisso reside a perspectiva do leitor único

em Maria Gabriela Llansol e a alegria que dela advém por saber que “nada foi, tudo está

sendo” a partir do movimento que abre os sentidos, e põe sempre o sujeito a caminho

de. Na textualidade de Llansol, o importante não é o caminho, mas o caminhar. E entre

a tensão de vivência e experiência, há o eterno retorno por onde advém o frescor (o

sopro, ruah), a leveza (o exercício de ser ave), o júbilo (a alegria de estar em passagem).

Didi-Huberman lembra que segundo Merleau Ponty “o evento afetivo da

emoção é uma abertura efetiva – um tipo de conhecimento sensível e de transformação

ativa de nosso mundo” (HUBERMAN, 2016, p. 26). Assim, a imagem llansoliana

enquanto júbilo, trazida por cena fulgor, se dá na fenda, pela abertura do signo

linguístico “que se abre sempre sob a ruptura de um outro signo”, como afirma Roland

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Barthes, em O império dos signos (BARTHES 2010, p. 70). Essa é a sina e o frescor da

criação. É o vazio que “mete medo” (LC, p. 9) e que propicia a escrita e dá a vida, já

que “nós vivemos de imagens” (LHIV, p. 82). Ou seja, diz Huberman que

a emoção é um “movimento para fora de si”: ao mesmo tempo “em mim”

(mas sendo algo tão profundo que foge à razão) e “fora de mim” (sendo algo

que me atravessa completamente para, depois, se perder de novo). É um

movimento afetivo que nos “possui” mas que nós não “possuímos” por

inteiro, uma vez que ele é em grande parte desconhecido para nós

(HUBERMAN, 2016, p. 28).

Desse modo, se é o vazio que move a ação de ler/escrever, fazendo dessa escrita

uma escrita nova onde ela “é o ponto de partida de uma espiral” (LHIV, p. 142),

importa falar que a perspectiva do júbilo, em Llansol, é “uma metamorfose escritural”

em meio ao leito de uma língua com águas já definidas; ou ainda: aquilo que vai

rompendo com estruturas “sem qualquer imagem vital” (LHIV, p. 138):

s.d. [1980-81?]

Represento-me que, ao ser publicada, vão colocar A restante vida

num cadinho e submetê-la à prova do fogo. Se eles fossem mestres na arte de

provar os metais, que enorme inquietação para mim, confrontada a uma

conclusão final. Será A restante vida ouro, isto é, metamorfose escritural,

força metálica de uma língua que, pouco a pouco, vai sendo dissolvida na

água? Águas ambíguas, ora águas de Tejo-rio, ora águas já definitivamente

poluídas. Sem qualquer imagem vital (LHIV, p. 138).

Contudo ela diz, partindo de uma coincidência a uma coexistência afetiva

porque implica em uma escolha; única, portanto:

________ Aprendi, então, a ler de uma maneira que eu achava / que

devia ser extraordinária [...] ; conhecendo eu os autores que emergiam do

texto para mim, aprendiz de legente antes de ser escrevente, decidi uma

manhã, fui levada uma manhã, não sei como dizê-lo, a colocar a meu lado,

sobre o braço da poltrona, alguns dos maiores nós do texto (em livros) que eu

considero – por tecerem, uns nos outros, o meu próprio ser. Faltavam ainda

alguns, faltariam sempre, [...] (LH IV, p. 100)

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Nesta perspectiva, de uma leitura coberta por outras leituras96

, e de um olhar

que, “pelas fendas da paisagem”, busca “uma fenda para ver o mar” (CA, p. 156), do

olhar que é, sobretudo, português97

; importa observar98

que a ideia de júbilo vem a lume

em meio às três poéticas emblemáticas da literatura portuguesa (o desconcerto do

mundo camoniano; a poética do fingimento / o “desassossego” de Fernando Pessoa /

Bernardo Soares; e a poética do testemunho, de Jorge de Sena) com as quais Llansol

dialoga e transfigura seus autores em imagens99

, que não deixam de ser figuras, se assim

fosse não seriam cenas fulgor llansolianas; deixam, sim, de ser personalidades fixadas

na/pela história e literatura, e passam a ser potências criadoras em seu texto. Daí que

venhamos a ler COMUNS, AOSSÊ e JORGE ANÈS em sua obra. É possível dizer que

o tempo do júbilo circula no seu próprio tempo, em interlocução, atravessando verdades

instauradas ou institucionalizadas, rompendo com o já-dito, na medida em que ela,

Llansol, “poalha de luz”, se despossui. Em meio ao múltiplo, o júbilo coexiste no entre-

lugar de desconcertos que, através da arte e da literatura, preenchem o vazio de suas

épocas.

Assim, se a poética do fingimento tem como base a escrita em heterônimos; de

um sujeito que, fragmentado em si, se ficciona e, em máscara, passa a ser “um outro”;

“um outro” que se multiplica cada vez mais sobre/de si mesmo desassossegadamente

em desconcerto entre “entre mim e mim mesmo”, de modo que o “eu” é já “um outro” a

96

Procura-se, aqui, trazer a ideia de corpus legentes / escreventes que são, sobretudo, corpus coexistentes. 97

E que, portanto, a figura do mar preenche um imaginário cultural. 98

Reitero o foi dito no capítulo anterior de que não faz parte desse trabalho o estudo do júbilo diante das

emblemáticas que o cercam. Contudo, o que deixo aqui é uma hipótese de leitura futura para quem

comigo compartilha desse mesmo olhar. 99

“ ______ da água a Leipzig há o percurso da viagem, e os pontos deixados por AOSSÊ; [...]. Em

AOSSÊ, não há plural; eu deslizo na sua língua, e o tom monocórdico do seu chapéu cobre-o com a

imagem de alfaiate que o defende? Quem será o alfaiate de AOSSÊ em Leipzig? Onde conserva ele o

meu jardim, entre os óculos e os olhos? Evanescente, evanescente, evanescente é o último sussurro da

trajectória que nos liga. Somente se eu soubesse onde se encontra , ou em que mundo habita a próxima

liquidez que há-de __________” (LHV, p. 251).

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partir de um dado imaginário (dada a uma motivação geográfica / histórica que o mar de

Portugal propõe e o “mar” português, da cultura e do sonho português, levantam100

) em

que, por espelhamento, o indivíduo se vê, imaginando-se. E se a perspectiva do

testemunho é a do sujeito que se vê à semelhança de “um outro”; um outro que consigo

compartilha o espaço comum; são, desse modo, indivíduos sociais, inseridos em um

tempo sobre o qual conjugam responsabilidades. Daí o modo testemunhal da escrita

seniana por ser o “eu” um “outro” implicados circunstancialmente no tempo-espaço. Em

Llansol, o “eu” é “um outro” pela condição humana; porém, pelo viés do afeto e da

experiência individual que o acompanha e o distingue dos demais, esse “eu” passa a ser

“um outro” a partir do olhar que lhe é próprio, em linguagem sinestésica (gestual /

sensorial); por isso, em Llansol, o silêncio não é voz muda; é voz que sensorialmente

comunica – não a todos, mas com quem lhe compartilha do mesmo apelo; por isso, a

possibilidade do diálogo, dada à distância de quem lê/aprende/vê com um outro; ou seja,

no necessário afastamento para que na relação possa existir o outro.; ou ainda: saber-se

ser singular diante do todo. Diálogos, assim, possíveis, entre “mim e mim mesmo” (eu-

Gabi-Témia-mulher-rapariga desmemoriada); e entre as vozes que compõem seres reais

e não-reais (Grande Maior, Jade, Textualino...), todos eles “textuantes” pois vão para o

espaço da escrita com o que lhe é único: o pensamento – pensar que traz a perspectiva

do “leitor único”101

para dentro dessa comunidade “de rebeldes”, onde toda a rebeldia

dita se põe a favor do pensar.

Diz Ernst Bloch, em O princípio da esperança, que “pensar é transpor”.

Transposição que em escrita jubilosa permite o tempo sem angústia, fruto de um

100

A passagem sugere uma referência à saudade com base no já comentado estudo de Eduardo Lourenço,

em Mitologia da saudade. Vale lembrar que a escrita de Maria Gabriela Llansol também habita esse

entre-lugar. 101

Imagem, essa, de ecos camonianos quando se lê: “Verdades puras são e não defeitos; / E sabei que,

segundo o amor tiverdes, / Tereis o entendimento de meus versos” (CAMÕES, 1980, P. 221).

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continuum processo de “decepação”, e de “des- possessão”102

. Tempo sem peso, onde a

dor sentida se transforma em “espuma de texto” (AA, p. 11), para logo ser desfeita e o

movimento se perpetuar em escrita nova. No tempo jubiloso, a força pungente ficcional

é motivada pela circunstancia de um tempo-espaço que desliza filosoficamente para um

processo reflexivo, segundo a dialética do “dois-em-um” em termos socráticos, pois

toda a ação posta em cena vem pelo pensamento. Pela ação do pensar, Llansol faz de

sua escrita praxis política e caminho derivatio para alcançar o desconhecido. Percurso,

esse, órfico e será o legente, segundo Augusto Mourão, quem cumpre a promessa do

novo; pois nele que está a palavra em movimento103

; nele reside a esperança; o “legente

é filho”; é quem se senta no espaço “entre” – entre a mão que escreve e o texto que diz;

é ele quem vai à frente; “que corre à frente” de quem ali pôs as palavras que

prosseguem em escrita/leitura nova “até chegar a hora propícia da travessia”; nele está o

“ruah”, o sopro, que no tempo-espaço trazido por Parasceve guarda o ar vital. Esse é o

olhar llansoliano diante do texto, da sua escrita aberta, do seu inacabado texto, ao modo

de o Livro do desassossego, de Fernando Pessoa/Bernardo Soares; textualidade também

testemunho daqueles cuja voz não se ouve na história, dos abortados da história que no

sangue derramado tiveram suas vidas cortadas104

; ouviu-se a voz dada aos não-

humanos, aos “objetos” servis do Poder e aos excluídos. Textuantes que foram (são) voz

102

Ao se afirmar que em Llansol não há angústia, não se nega nela a presença desse sentimento; pois ela

diz por volta dos difíceis anos de sessenta: “Eu olho sempre, e vejo tudo, imodificável, imobilizado,

embora transformado, compreendes? E isso angustia-me extraordinariamente”. Contudo, é nesse vazio

que ela volta para si para, ao modo de decepação, vir a ser “estere” em devir: “Vivo para dentro, para a

cena, na minha maneira de ser que é possuir um palco dentro, e uma plateia”. E, em linhas adiante, diz:

“O que eu ignorava é que, nessa altura de purificação, tudo me ocorre, me pertence, ‘em luxúria’” (LHIV,

p. 23-24). 103

Movimento, este, que é ritmo poético, movimento que trazido ao campo da linguagem se faz enigma.

João Barrento em um ensaio intitulado‘“Um ritmo poético fugindo...’ Hölderlin-Llansol-Hölder relaciona

esse movimento ao “enigma do ritmo”, citando Blanchot, em A escritura do desastre, “que não é cadência

regular, mas pulsação inquieta de algo de vivo ou música im-perfeita que tem o dom de lançar o sentido

para a distância” (BARRENTO, 2012, p. 21), como num lançamento de dados à maneira de Mallarmé.

Completa-se a isso o que diz Jorge Fernandes da Silveira ao afirmar que “o movimento é a única

realidade essencial” (SILVEIRA, 2006, p.19). E cito, entre movimento e pensamento, o verso de Ana

Luísa Amaral: “É mental o destino” (AMARAL, 2010, P. 145). 104

Referência à figura do meio-irmão trazida no livro Um beijo dado mais tarde.

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política. Daí que Maria Gabriela venha dizer: “Eu sou. Sou a fonte e o túmulo de muitos

irmãos” (LHV, p. 259). Texto que é pensamento e que vai à frente; é ave. Daí que

Llansol siga por desdobramentos: “meu pai foi um homem nu, o homem nu do piano

não é meu pai, assim, posso amá-lo neste Outono” (JLA, p. 95). E diz: “nudificar é dar à

luz, desovar no rio onde se nasce” (P, p. 81). Assim, em leitura e escrita, Maria Gabriela

Llansol faz da imagem comum a sua própria imagem, pois sabe que a imagem vista

vem105

do desvio do seu olhar e nasce na fenda do seu apelo; é ela, assim, quem lhe dá a

luz (pela ação de escrever). Mas, a imagem quando vista é já uma imagem outra (pela

ação de ler); já não mais lhe pertence, e segue em caminho próprio106

, “a caminho da

ponte” (P, p. 179). Texto que é assim “fluxo e fluxo. Ruído e som. Emanação e ruah”.

Eis Parasceve, em uma “respiração dispersa que sopra” (P, p. 180).

Diz Fernando Pessoa que “entre alma e alma há o abismo de serem almas”

(PESSOA, 2009, p. 337). E acrescenta: “Minha alma é uma orquestra oculta; não sei

que instrumentos tangem e rangem, cordas e harpas, timbales e tambores, dentro de

mim. Só me conheço como sinfonia” (PESSOA, 2009, 298); ou seja, em realização

musical, em imagem, no seu “assim”107

– em sua “relação expositiva entre a existência

e a essência, a denotação e o sentido” (AGAMBEN, 2013, p. 90), no ser tal-qual108

que

em abismo põem-se como força seminal de toda arte; que, por sua natureza109

intermediária, comunica luz e sombra – opostos que não se excluem, mas se

complementam em significação.

105

Nasce /é gerada. 106

Imagem que segue em travessia ao encontro do futuro, do seu legente-único. 107

Segundo Giorgio Agamben, “assim significa: não de outro modo; [...] Não de outro modo nega cada

predicado como propriedade (no plano da essência), mas os retoma a todos como im-propriedade (no

plano da existência). Um tal ser seria uma existência pura, singular e, todavia, perfeitamente qualquer”

(AGAMBEN, 2013, p. 88). 108

A existência como exposição é o ser-tal de um qual. A categoria da talidade é, nesse sentido, a

categoria fundamental, que permanece impensada em toda qualidade (AGAMBEN, 2013, p. 91). 109

Diz Llansol: “Toda a natureza reverbera, e se suicida em mim para renascer” (LHV, p. 377).

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Daí que, por letra llansoliana, se leia que todo o júbilo esteja na nuca, em lugar

intermédio entre corpo-espírito; “na cerviz indobrável do humano” (P, p. 180), em

aliança; na certeza de que “o tempo há-de voltar aqui, no próximo verão; e há-de

encontrar a nossa mão bárbara, e a nossa mão amena, fazendo um anel com os dois

polegares, e os dois indicadores” (BDMT, p. 27) para que caminho prossiga. Sempre.

“Ler. Nascer. Morrer. Aprender a viver com a leitura que morre. Ser a língua na estátua

de um outro, esperar que o mesmo momento se repita. Não o deixar morrer. Estabelecer

um elo entre a lei e a leitura, e querer a escrita. Voltar-se para Ana, e deitar-lhe um

irmão dentro de um livro para que ela o ressuscite” (BDMT, p. 51), onde o júbilo é o

beijo que se levanta após o enfrentamento com mar.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“UM OLHAR PENETRANTE DESCIDO”

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Comuns confessa-lhe que sabe que ela é a rapariga que temia a

impostura da língua, que agora também teme o desprezo das línguas, e que

todos, afinal, hão-de vir a escrever numa língua em que ninguém se vinga.

Pelas fendas da paisagem, tornou-se perceptível um curso de ar que

agitou de contentamento os ramos do dom arbusto:

daqui faço uma linha que me ata ao sol,

um traço para o solo firme,

uma seta que guardes no coração,

uma fenda para ver o mar.

Comuns aceitou-o logo na sua língua, mas só Úrsula assistiu a, em que

momento da queda, ele deixou de ser uma sombra que se abriga no calcanhar,

ou um perigo prometido ao nascer ou, talvez ainda, um olhar penetrante

descido.”

Maria Gabriela Llansol, grifos nossos.

Entre o passado e o presente, a escrita de um tempo em que o futuro nele se

inscreve; escrita que nasce do vazio fecundo que promove a passagem de ecos, vozes,

experiências que vão ao caminho do Aberto em deslize metamórfico. Essa é, sobretudo,

a Causa Amante, ou A restante vida de quem, na paisagem, busca “uma fenda” e que

tenha sobre ela “um olhar penetrante descido” de modo que a “linha” tecida seja um elo

“com o sol”, e onde o “traço” firme guarde sentido “no coração” (CA, p. 156).

Em Amar um cão, Maria Gabriela Llansol, em um diálogo a partir de Jade, o cão

“que acabara de nascer” (AC, p. 8), inicia o curto texto ressaltando a brevidade do

tempo dado por um espaço de intermédio e de seres híbridos. Importa observar que,

com Jade, Llansol afirma existir uma linguagem para além da palavra onde “só mais

tarde, muito mais tarde, encontraria equivalente na boca” (AC, p. 8). Porque “pesa a

palavra” e há o desejo “de que ela fique muda” (AC, p. 11). Assim, no esvaziamento da

linguagem, surge o novo, de uma nova e ressignificada imagem. Interessa perceber que

a aprendizagem e a memória trazida se constituem “através do outro, e em face do

outro, sob o seu olhar, um ser sendo forja a sua identidade.” E na dicotomia que há entre

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o diverso, Llansol lança a possibilidade de uma “aliança”, através da “grandeza

luminosa” (AC, p. 13) de se estar com o outro, de tal forma que “o princípio da luz é

uma arca”, onde, em silêncio, diz ser “iluminado por ti” (AC, p. 17). Neste capítulo, há

considerações importantes sobre a procura llansoliana por um lugar outro, fora da luz

comum. Espaço, esse, único, por isso “incomum”, constituído “no intervalo do afecto”,

“entre perigos e prazeres” (AC, p. 19), pela ação de leitura e escrita mediada pelo ato

aprendiz em constante movimento – “movimento [que] é a passagem obrigatória para a

pupila” (AC, p. 15), pois dela vem a memória de onde se vê “o porto de nascer” (AC, p.

9). Assim, ler e escrever são atividades de uma “alma crescendo”, que tanto parte

quanto obedece, por um “caminho seu” (AC, p. 26), pois não há como “ser bom ser se

não estiver na perpendicular do ceptro” (AC, p. 15), na reflexão que permite “pensar a

palavra” (AC, p. 11) e fazê-la desaparecer, em ressignificação, pelas “práticas do

silêncio” (AC, p. 16). Jade também é a representação do leitor. Daquele que aprende a

ler a partir da fala de quem escreve; a quem o autor alimenta pela “lei do hábito de

servir” e não pela ordem capitalista, mercantil – mas, cultural; e com quem cria afeto

pelo elo construtivo da interrogação e da busca do lugar enigmático da “luz clara”. A

esta “relação de alma crescendo, [...] nesta ordem de ler, ler é nunca chegar ao fim de

um livro [...]” (AC, p. 20). Porque “o seu existe para si”, “seguindo o itinerário da

geografia do seu corpo” (AC, p. 26) e eis que no centro da cena fulgor, não há morte –

pois ali, a exemplo do cão110

, há algo vivente, em imagem, pelo afeto, na voz presente.

Iniciar a conclusão com as considerações sobre Amar um Cão implica dizer que

para a elaboração da Tese a sua leitura foi fundamental para a compreensão do que na

textualidade llansoliana é o jogo, a tensão entre opostos, estendendo a linguagem a

situações-limites sem ainda ter encontrado equivalente na boca, como, por exemplo, ao

110

“o [teu] cão vive, nela” (AC, p. 27).

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modo de “lá e tra-la-lá”, em código outro. Daí que, em Causa Amante, leia-se “um

animal chamado escrita” (CA, p. 160), posto que ao relacionar leitura-escrita ao Vivo,

Llansol vem enfatizar a memória cultural que se faz e refaz no instante que se lê e

escreve pelo movimento contínuo de apreensão do conhecimento. Desse modo, a figura

de Jade nos traz a chave de ler, nos convoca a uma perspectiva de leitura que se dá

através do silêncio. Do silêncio que é, sobretudo, um elogio à eloquência posto que, em

introspecção, nos leva à atividade do pensamento. Pensar que permite o dizer –

conferindo voz a quem não tem. Dizer que vem combater o “mau silêncio" da casa, ao

fazer fluir a palavra dita.

Em Um beijo dado mais tarde, assiste-se à violência do interdito – lugar-

nascente da figura da “rapariga que temia a impostura da língua”. E é isso que Llansol

busca combater: a impostura da língua, da língua falsa, da autoridade que apaga vozes.

Essa é a imagem do livro, do beijo que só é dado – símbolo da aliança entre ela e o pai;

do passado e do seu presente – após a palavra dita. O que Jade e a rapariga nos mostram

é que o caminho da aprendizagem vem pelo silêncio. No dizer que primeiro se põe em

diálogo consigo mesmo, na memória que o habita, para depois ganhar o espaço exterior.

Dessa forma, o enfrentamento não se dá de fora para dentro, pelo derramamento do

sangue jorrado de uma língua cortada; mas pela via do pensamento derramado por elo

de afeto. Nele e por ele corre o sangue vital capaz de reconstituir a vida e fazê-la

progredir no percurso de nascer-morrer.

Por isso, em Parasceve, leio o desejo como força motriz no percurso ao novo:

“Onde o desejo der com o túmulo, dará com essa presença a que chamas anjos” (P, p.

125). Pois, “se o amor vence a morte, é forçosamente no túmulo que se combatem”. E

“túmulo” lembra “tálamo”, como afirma Maria Gabriela Llansol. Parasceve é,

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sobretudo, essa “doce esperança” (P, p. 126), onde “o candeeiro, a luz e o rasto

caminham num único movimento solidário” (P, p. 129).

De cena em cena, procurei mostrar que o texto llansoliano fulgura por

fragmentos onde o sentido advém do entrelace de uma memória afetiva no espaço de

uma comunidade111

que se apresenta em incompletude por saber que tudo está em

passagem, em constante processo de transformação. Na certeza de um sempre

prosseguir, por uma perspectiva nunca conclusiva, residem a força e a vitalidade de sua

escrita. Pela ideia do continuum, Llansol elege figuras para atuarem no texto em

detrimento de personagens. São elas que, sendo “nó construtivo”112

, atravessam o

tempo-espaço trazendo para a escrita a ideia do ininterrupto que se atualiza com o

momento presente. Se muitas vezes, voz, memória e silêncio são portadores de uma

negatividade, de uma melancolia ou de um certo niilismo, em Maria Gabriela Llansol

não há angústia posto que são passagens, pois “nada foi, tudo está sendo” (F, p. 220).

Decepação e voz foram interpretadas como modos de expressar movimentos de

busca, de forma que a palavra dita é “apenas uma parte da (sua) respiração”: “Era

certamente o desconhecido desconhecida que eu viera buscar no beijo que me abrira a

porta da vida” (P, p. 179, grifos do texto). Descobrimento, esse, tensionado por um

processo de esvaziamento e ressignificação da palavra, visto que “recordar é quase, de

certeza, um ainda-mais-morrer. Ler o novo é, de longe, preferível” (P, p. 148).

Objetivei ressaltar o tempo do júbilo pelo movimento cíclico de nascer-morrer,

pelas vozes textuantes metamorfoseadas e híbridas, como a do “lápis [que] quer a noite”

(P, p. 50) para com ela ver a luz. E onde, sobretudo, “a angústia que (a) invade é sem

importância” (P, p. 45). Importa dizer que a obscuridade do não dito é “a noite” à qual

111

Digo “comunidade” no sentido de uma coletividade. 112

Sendo a figura o “nó construtivo” do texto llansoliano, Maria Etelvina Santos diz que compreender a

noção de figura no que se refere à “sua consistência e devir” (SANTOS, 2010, p. 106) permite estabelecer

o modo como a escrita pode desde este aspecto implicar o novo, o atual e o vivo.

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devemos ir. Pois é através dela que se dá a luz. Esse é o combate. Esse é o jubilo, em

voz, memória e silêncio, objetivo principal da Tese.

Com Amigo e Amiga – Curso de silêncio de 2004, o mote veio centrado no

verso/frase “Devolve o sol a quem lê”; pois, devolver “o sol a quem lê” (AA, p. 166) é

essencialmente expressão jubilosa. É ato de amor. É permitir que o outro siga seu

itinerário, é beijar a dor e lembrar Parasceve, “Esperança”, que banhada pela luz própria

é trazida no “leito da linguagem” (AA, p. 169): “mal bate a manhã, o nevoeiro desponta

___________ o dia seguinte dispersa o nevoeiro” (AA, p. 69).

Amigo e Amiga é um curso de silêncio datado em 2004. E “curso”, aqui, tanto pode

ter o sentido de fluxo como de aprendizagem de silêncio. De “O golpe”, pelo caminho

aprendiz de Parasceve, chega-se à fala, na última parte: “________Estou bem”. Na e

pela vivência do luto de um ambo, o curso é uma meta-aprendizagem, aonde o

conhecimento vem com e através do texto: “Porque presumo que há de ensinar-me o

dobro das palavras que sei” (AA, p. 73).

Encontramos no seu corpo de escrita, uma invocação de figuras de outrora ao modo

de uma revisitação a tudo que deu ou fez sentido ao longo da jornada llansoliana. Tal

como num funeral, seus textuantes-familiares lhe concederam amparo e acolhimento:

“Esta figurinha de madeira [...] é da mesma família do que eu” (AA, p. 18). Pela voz do

Nómada, lemos:

julga que precisa de companhia,

quando o que precisa

é de matéria figural

para transformar.

Ou seja, o necessário não é estar em companhia do sujeito ou do objeto real

existente, mas sim em sua presença como “matéria figural”, transformada em potência

de escrita. E diz Llansol: “Partilho com eles a grande dor oculta de não sermos abertos

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nunca mais. Entre seus livros, encontro meus irmãos” (AA, p. 148). E “para a consolar

da perda irreparável, digo à mulher que este Curso é um convívio” (AA, p. 229). Logo,

o “(...) Curso é um convívio” (AA, p. 229). E nele há luz e paz: “Paz dependente de uma

outra paz, que o quarto procura; paz subalterna _______” (AA, p. 245).

Amigo e Amiga nos mostra a aceitação de um adeus. Um ensaio-aprendizagem para

o seu último livro, Os cantores de leitura, onde se lê, em suma, o próprio adeus,

envolvido “no silêncio de nem sequer escrever” (AA, p. 245). E nele há:

Que me esqueçam, mesmo os mais próximos, e me deixem estar sozinha

________ não há texto autobiográfico. Que os humanos,

ao ler-me, não falem de mim,

pois tenho presa à borda [...],

um raio de sol,

[...] (CL, p. 11).

Entre o “texto autobiográfico” e a “matéria figural”, há a vontade, em forma de

pedido explícito, de que a Figura da Criadora sobreviva à pessoa histórica e socialmente

datada e localizada num tempo e espaços definidos. Desejo que, em suma, é a expressão

radical da reivindicação do Tempo Jubiloso. Tempo de júbilo que, entre tantas outras

vozes, canta através da figura da “rapariguinha que temia a impostura da língua”:

eu sou feliz, na alegria não sentimental que se manifesta; o que me

aprisionava, partiu; o que tende para um limite finito, desapareceu; a mata

espessa e o grande bosque florescem; dobro-me conforme o número, gênero,

grau, modo, tempo, e pessoa que sou vossa. E passo a leitura. (CL, p. 26)

E, em sua companhia, em jogo anelar, passamos todos nós a leitura.

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Livretos de Jornadas e Colóquios

Rara & Curiosa – Os papéis avulsos de Llansol. Segundas Jornadas Llansolianas de

Sintra: Maria Gabriela Llansol – A liberdade da alma. Portugal, Espaço Llansol,

Centro Cultural Olga Cadaval, 25 e 26 de setembro de 2010.

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Vivos no meio do vivo. 3° Colóquio Internacional Maria Gabriela Llansol ( Mourilhe,

20-24 de julho 2005). Portugal, Espaço Llansol, 2007.

Livro 1: Em busca da troca verdadeira / Quem somos?Quem nos chama?

Livro 2: Cem memórias de paisagem / Um fio de voz

Livro 3: A imagem repentinamente sabe...

Livro 4: Recriar as densidades e os materiais... / O mesmo vestido, lido de outro

modo...

DVD interativo – Álbum do encontro.

Cadernos da “Letra E”

Hölderlin, Poemas lidos na Letra E em 3 de Novembro de 2012. Traduções de Maria

Gabriela Llansol, Bruno Duarte, Tomás Maia e João Barrento. Espaço Llansol, 2012.

Maria Gabriela Llansol / Teresa Huertas, Da Paisagem (26 de Janeiro 2013). 12 p.

Llansol. Uma vida de escrita. Espaço Llansol, 2013, 12 p.

O Regresso de Jade. Amar Um Cão, de M.G. Llansol, lido aos mais pequenos por Hélia

Correia. Espaço Llansol, 2013, 22 p.

Dickinson em Llansol. Espaço Llansol, 2013, 20 p.

O Ambo - Maria Gabriela e Augusto Joaquim. Espaço Llansol, 2013, 24 p., com

extratextos a cores (desenhos de A. Joaquim)

PROENÇA , Pedro. Alguns Manifestos para Gabriela, acompanhados de certos livros

que se desenrolam da sua Obra. Espaço Llansol, 2013, 52 p., com 30 colagens de Pedro

Proença em extratexto a cores. (esgotado)

VIEIRA, Helena (Org.). Llansol na Imprensa Portuguesa. Meio século de crítica. 2013.

Escola do Tempo e do Olhar. Llansol e o cinema de Abbas Kiarostami. 2014. 12 pp.,

com poemas de A. Kiarostami

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A Solidão Essencial. Llansol versus Blanchot. 2014. 32 pp.

A Ilha de Ana de Peñalosa ou “a imagem com que se resiste”. Llansol e a crise do

mundo contemporâneo. 2014. 24 pp.

Os Cafés de Llansol. 2014. 48 pp.

Llansol e os Rostos do Tempo. O Almanaque Llansol. 2014. 12 pp.

Um Quarto que seja nosso… Llansol e Virginia Woolf. 2014. 24 pp.

O Império dos Fragmentos. Llansol e a escrita fragmentária. 2014. 32 pp.

O Ofício de Crescer. Lugares e tempos de Llansol. I: A infância. 2014. 20 pp

O Lugar do Entresser. Crónica da Letra E. CD com 20 Cadernos da Letra E e 29

sessões da Letra E. 2014.

A época sem segredo. Lugares e tempos de Llansol. II: Adolescência e juventude. 2015.

36 pp., extratexto a cores em formato A3.

Llansol e Clarice Lispector. 2015. Folheto, 4 pp.

As escolas da Bélgica. Lugares e Tempos de Llansol III. 2015. 36 pp.

Uma Nova Geografia. Llansol e as escolas da Bélgica (ateliers de música, pintura,

escrita). 2015. 24 pp.

“O homem do livro”. Nietzsche e Llansol. 2015. 32 pp.

“A viagem infinita”. Llansol e a experiência da morte. 2015. 16 pp.

O “companheiro filosófico”. Vergílio Ferreira e Llansol. 2015. 36 pp.

“Um alvoroço de imagens”. A iconografia llansoliana. 2015. Desdobrável A3, com

textos e imagens.

Maria Gabriela Llansol, O Caderno do Exílio. Outubro 2015. 72 pp.

Sintra “em passo de pensamento” (Maria Gabriela Llansol). Espaço Llansol, 2016.

Rostos / Aparições / Desaparecimentos (Maria Gabriela Llansol / Teresa Huertas).

Espaço Llansol, 2016. 24 pp. Com 8 pp. de fotografias em extratexto.

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Um livro numa frase. O Bloco 06. 2016. 32 pp.

A Criança, a Mulher e o Lobo. Fábulas para educadores inquietos (Maria Gabriela

Llansol/Paulo Sarmento). Espaço Llansol, 2016. 32 pp. Com 8 pp. de extratexto.

“Em contraponto”. Llansol e a música. Espaço Llansol, 2016. 32 pp.

“Uma estética literária para a geometria” (Llansol e Espinosa). Espaço Llansol, 2016.

52p.