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Isabel Santiago O ANEL NIETZSCHE-LLANSOL

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Nietzsche em Llansol

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Isabel Santiago

O ANEL NIETZSCHE-LLANSOL

 

   

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Texto da intervenção da autora na sessão sobre «Nietzsche e(m) Llansol», na «Letra E» do Espaço Llansol, em 18 de Abril de 2015.

 

   

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I

«O homem do livro» - A precipitação da escrita em vórtices e torrentes,

andamentos musicais - Llansol é uma legente e ler é um exercício dupla-mente associado ao canto: um legente está num canto do mundo – o menos molhado e sob a abóbada (assim começa uma passagem do caderno 1.53, pp. 171-173) e canta. A par da deslocação do corpo para fora do centro, há uma deslocação da voz do discurso (que, no nosso caso, é tagarelice) para o canto. Ler é um canto amoroso, como diz Nietzsche. E, por isso, tomando como princípio apenas aquilo que um e outro deixaram escrito e que aqui vos trago – como legente – só poderei dizer que Llansol não compreendeu em primeiro lugar Nietzsche, ela partilhou com ele o mesmo sangue e a mesma água. Voltando a cabeça, vi o jorro de água que lisamente saía do bico da fonte e que me sugeriu um segredo instântaneo do meu pensamento. Fugindo à água, encontrei mais água – como se o autor Nietzsche caísse em chuva, torrencial; lembrei-me do seu texto em vagas.

 

   

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E Nietzsche: «Quem escreve com o seu sangue e por meio de aforismos não quer ser lido, mas sim aprendido de cor.» (Assim Falava Zaratustra, «Do Ler e Escrever»). E Llansol continua: E não podia ouvir só o tom do texto, via a pessoa-autor transportando sua experiência de figura. Nietzsche é o exemplo disso, dado que passa de filólogo a músico e a filósofo, que nunca falou para que os do seu tempo o compreendessem – logo, não poderia ser um facto filosófico, ele tem e deixou para os do futuro uma possibilidade de dar sentido à terra a partir do corpo, da experiência da mutação, da anulação de valores predo-minantes e dominantes, criando, como as outras figuras llansolianas, um real-não-existente, mas possível, alguém que foi metamorfose – Nietzsche, a par das beguinas e dos místicos das teologias da negação/despossessão, talvez pudesse ter sido um dos recomeços possíveis da História europeia. Toda a água, a da fonte e a que desabava do céu – ele e o texto – eram a mesma linfa indissociável... (as citações de Llansol, em itálico, estão no Caderno 1.53, pp. 171-173).

 

   

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Assim, Llansol e Nietzsche não se encontraram no mundo, nem se encontrariam, porque cada um solita-riamente andaria, a seu modo, à procura de criar, recriar um mundo que fosse para além do humano e trouxesse um outro sentido à terra. Não sendo do mesmo mundo, mas partilhando o mesmo sangue e fazendo, a partir da água, a sua experiência de figura, diria que partilharam ou se encontraram no mesmo útero vital. Com esta expressão quero, mais do que uma palavra, apresentar um nome, algo que, como diese Benjamin, não tem de facto imagem para nós, mas quer ser visto (não confundir útero com espaço orgânico da mulher), algo que permita, como a água que faz transparecer tudo aquilo que toca, clarificar o modo do seu encontro – Llansol e Nietzsche. Porque útero tem essa força poderosa de uma «imagem» que deixa em aberto a potência genealógica que nos interessa na segunda parte da exposição, e sugere, segundo creio, um lugar imaterial para certos seres se encontrarem e se sentirem mútuos, ligados a uma origem – pertencentes, não a um mundo constituído, à História, mas ao reverso disso, pertencentes a um mundo inconstituído, a um mundo ainda sem História e sem génese, ou a uma génese com formas embrionárias, e se encontram separados/ descontínuos no tempo do que pode ser tomado como uma «infância da origem» do movimento insurrecto no uso da linguagem e no modo de estabelecer relações não

 

   

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sistemáticas com os seres e entre os seres. A origem não pode ser encontrada senão por legentes, só eles conseguem encontrar, quer o fio de entresser, quer as intermitências das manifestações de uma experiência de insurreição e da sua origem, que é diferente de um movimento dominante na cultura ocidental, que é o de ressurreição. Não se trata, com efeito, de fazer nascer o morto – (re)nascer –, mas de dar mais vida, de retomar a vida do que não morreu ainda. Llansol não encontrou Nietzsche como estudiosa de filosofia, nem como historiadora das ideias, nem como diletante que gosta de andar com Nietzsche debaixo do braço. Ela encontrou a sua voz a partir do que entretecia com os que lia e são da mesma génese, ou redemoinho da mesma origem. Ela, ouvindo a voz, num movimento anti-compreensivo, faz confluir o olhar com o dele, partilha o que faz viver, o sangue e a água da vida do tempo por preencher. E por isso este útero, se fosse biológico, seria reprodutivo, seria um útero exclusivamente materno e seria produtor, como predominantemente acontece, de um só ser. Os úteros genealógicos não são desta natureza. Esses que doam a mesma hereditariedade individual e de espécie são bio-lógicos, os que são manifestações da mesma origem são genealógicos. Quando falamos de um útero vital estamos a referir um útero sem género, a falar de um lugar imaterial que é um enredo de relações múltiplas, diversas e

 

   

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inesperadas, improváveis, onde os diversos se sentem nascer sob uma nova forma, não sob a forma de expulsão para fora, para o mundo, e expulsos de um lugar sem retorno, mas sob a forma de inclusão. Há outro mundo, ou outros mundos onde eles podem nascer e sentir-se vivos, e esse mundo é o da voz e o da escrita, esse mundo é um mundo retornável e que recomeça quando recomeçamos o acto legente e ou o acto escrevente. Claro que Llansol não faz uma leitura compreensiva, por alguma razão não se designa de leitora, mas de legente. Um leitor compreende, uma legente desloca e transforma segundo a única lei que conhece, a da metamorfose. Ela está no limiar da poesia e Nietzsche foi, depois dos Gregos, o mais poético de todos os autores da filosofia. A transformação que Llansol dele faz é uma «idealização» tal como o autor a define no Crepúsculo dos Ídolos, quer dizer, ela separa-o desses aspectos que dele todos conhecemos, para destacar certos apontamentos e evidenciá-los como excertos de um diálogo, não como dialéctica, tensão e agonismo, mas como forma de entretecer moradas e reformá-las pelo encontro dos que mutuamente não se podem dirigir a palavra. É um diálogo em que, como legente, ela fala com o que ele escreveu, porque um escrevente é um morto que fala. Diria que, por ser legente, legente de Nietzsche, Llansol fez remoinho com ele e com o que teve uma

 

   

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génese antes dele. Que génese e que origem foram essas (a origem é um remoinho do que teve uma génese)? A dos insurrectos, ou dos «actores imprevistos da História» (Rancière). Os legentes, e ambos o eram, encontram-se nesse outro útero, no âmago da vida que é maior e mais vasta e ampla do que a História – por isso ambos se reconhecem no mesmo ritmo do pulsar vital – e encontram-se, não como vivos ou viventes (a consequência do acto biológico de nascer), mas como conviventes e participantes de um festim que principiou como começa Onde Vais Drama-Poesia?, quando alguém nasce no momento em que a mãe lê o «júbilo do Ser». Ora, o «júbilo do Ser» é o Leitmotiv que os aproxima e causa entre si essa aproximação amorosa, que só pode manifestar-se como acontecimento na linguagem. Porque só a linguagem tem a potência de fazer encontrar os que mutuamente não se podem dirigir a palavra, ela é como o útero vital, um lugar imaterial de retornos sem fim, de metamorfoses e de diálogos incessantes. Os dois, Nietzsche e Llansol, são do mesmo sangue – têm um corpo que dá à luz muitos seres – e fluem, enquanto legentes e escreventes, na mesma corrente de água, quer dizer de sons que formam novos remoinhos em torno da linguagem e da sua infância. Eles sentem que a linguagem e o que ela diz, os seus modos, têm de nascer de novo com eles, a partir do seu corpo que é sempre corpo tatuado,

 

   

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escrito e com inscrições de outros corpos textuais. Antígona falava demasiado com Hölderlin, e Nietzsche fazia ouvir a sua voz de água na cabeça de Llansol. A fala, nas suas múltiplas variações no dizer (a tradução é uma variação da língua e é suportada pela mesma lei da poesia, a da metamorfose), criou entre ambos e em ambos os casos, coro. Um coro é um lugar de mistério, de mudez e linguagem nascente como o próprio Nietzsche ensinou em O Nascimento da Tragédia. Um coro é um anel de vozes que arrisca o que não pode ser dito de forma clara, mas anuncia o desastre. A legente Llansol diz que falar é a sua vocação, e a vocação, como o próprio vocábulo determina, é a expressão da voz – acrescentamos nós, a partir da ideia de coro nietzscheano –, relativamente ao que não pode ser tematizado, nem pode ser silenciado. Assim, a voz empresta-se como traição «de natureza sagrada na qual a memória, girando subitamente como um remoinho, descobre a frente de neve do esquecimento.» No seu âmago, este gesto invertido – «trair o que não se pode dizer directamente, mas que consiste em salvar o que é inesquecível» – designa-o Agamben, em Ideia da Prosa, como vocação. Nietzsche não se esquece em parte alguma, desde que começou a escrever, de considerar a voz o elemento musical da linguagem que faz mover o corpo para não trair o inesquecível, o excesso que há na natureza

 

   

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e que nos inclui a nós como humanos e humanos instintivos e animais. Nietzsche e Llansol são, desta forma, para nós, como equilibristas que caminham sobre esse ténue fio, o fio da voz, entre o animal e o humano ou super-humano, que são duas maneiras de dizer o mesmo, alguém que ultrapasse todos os limites ontológicos (ser isto e não aquilo para uma ontologia em que é possível ser isto e aquilo), morais (ultrapassar o bem e o mal), os limites da linguagem que mente, ou é impostura... e caminham sobre um abismo. Mas esses que estão entre o animal e o homem têm diante de si, em altura e profundidade, o abismo, são as crianças, aquelas que têm ânsia, ou estão ansiosas pela fala. Um legente é alguém que está ansioso de entrar em fala com outro, como uma criança, e tem diante de si o abismo do que desconhece e não tem nome entre as coisas do mundo, e está entre o animal e o humano, e tem acima e abaixo da corda esticada da vida mundos complexos de seres e relações. Desta forma, um legente é um equilibrista e, como tem apenas consigo a voz, e nele esse fio inquebrantável e inquebrável, esse estado solitário e indigente (em Caminhos da Floresta, Heidegger escreveu que «ser poeta em tempos de indigência significa: cantar»), isso leva-o a caminhar sobre o insondável que de outro qualquer promontório, cume ou imo, não conse-guiria ver, vislumbrar pela opacidade com que o ser, os

 

   

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rostos e as palavras foram revestidos, ou gastos pelo uso, no caso das últimas. Um legente move a voz e move o corpo em direcção às fontes de onde jorram sons e turbulências que ensandecem, tornando o legente um herdeiro ou um póstumo de Diónisos ou de Zaratustra, ou de Nietzsche embriagado de loucura, escutando os vórtices musicais de Beethoven. Quer dizer que num e noutro o útero vital os faz partilhar sangue e água, os faz partilhar as mesmas vibrações excessivas da linguagem, quando como música, ela se aproxima ou faz genealogia com a música: estremecem e conhecem pontos-vorazes que os retiram do centro do mundo. O útero da vida é um lugar fora do centro e, como a origem benjaminiana, ilocalizável na geografia do espaço e na linha do tempo. É o âmago da geografia imaterial de onde nasce a poesia, e Nietzsche está muito mais próximo dela do que qualquer outro filósofo desde os gregos, do mesmo modo que a escrita de Llansol é mais poética (musical) do que narrativa, como já acima referi. Penso que na qualidade de legentes, equilibrados num fio, e tendo por debaixo o abismo, ambos procu-raram um ritmo que transcendesse a realidade. Ora, um ritmo que transcende a realidade é já musical, porque é sempre uma forma informe que impõe a regra da escuta, condição não apenas suficiente mas necessária, para ler e ouvir – a regra do silêncio. Esta é a única regra que é precisa

 

   

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para se fundar uma comunidade de falantes; mas um falante que não tagarela, é e escreve sobre a fala do outro uma teia, ou faz (um efeito de) palimpsesto. Porque andar em cima da teia, estremecendo, é não conseguir tecer num só livro tudo o que ouve, tudo sendo o mesmo livro em que as vozes se pulverizam para se reunir, ou se separam para se reunirem e o efeito de anel poder recomeçar com outros aventureiros que, como Llansol e Nietzsche, são leitores exímios de livros e do seu tempo, gostam de enigmas, andam no lusco-fusco, se entregaram a labirintos sem fio condutor – de onde a imagem poderosa da aranha – e não se especializaram em deduções, mas preferiram adivinhar, como os cegos das tragédias, o que parecia indecifrável (vd. Ecce Homo). Parece-me ainda relevante sublinhar que ambos são escritores de um só livro ou de um livro incessante, porque ambos se libertam da coercitividade da linguagem e, consequentemente, do limite, o que acontece com a frase e com o que tradicionalmente chamamos obra, texto..., com o limite e sentido das palavras. Se o sentido das palavras está sempre a mudar, a verdade é que o sentido da ideia também é irrequieto e insurrecto, e salta e aparece noutro ponto da teia, porque está sempre como a roda. A roda é para Nietzsche o elemento que torna o homem criador – a fiar e a tecer os fios da voz e da água das fontes

 

   

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que correm no seu espírito e nos fios de luz que todo o solitário tem à sua volta, mesmo quando deseja a noite. A ideia da aranha com que Nietzsche aparece no texto de A Restante Vida é disso mesmo um exemplo paradigmático: aquele que caminha sobre um fio esticado, o legente que se torna escrevente, dada a reversibilidade de um acto no outro, não tece num só livro, há fios que se prolongam para lá do núcleo ou do corpo da aranha. Esses fios, como os da teia produzida sob o signo do inesperado e do coro que é indómito, são designados por Llansol de misteriosos e hieroglíficos, porque no seu texto as palavras estão constantemente a mudar de sinal e de significado. Essa insconstância e intermitência de sinal e significado são uma forma de dilatação, de idealização, ou embriaguez, se tomarmos esta palavra «idealização» no sentido com que a ela Nietzsche se refere em Crepúsculo dos Ídolos, a saber: a palavra que muda de sinal é como a nota musical na mudança da sua escala, ou seja, a língua incoercitiva é sempre musical e forma correntes, não forma corpos estanques ou cristalizados. Assim irrequieta, insurrecta, a língua fica entregue às coisas, a forças e a idealizar, quer isto dizer, deixa de querer separar a língua e as palavras das pequenas coisas e do trivial da vida e do acontecimento. Significa acentuar os rasgos principais de um ser, objecto, como lhe chama Llansol, de modo a que outros desapareçam. Relembraria que, de acordo com

 

   

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Benjamin, a palavra tem um núcleo intensivo incan-descente que provoca, em alguém, resposta. Essa resposta, que é diálogo não agonístico, pode prolongar-se noutro texto, pela mesma voz ou na voz de outro, na trans-formação do mesmo no outro. Assim, Llansol afigura-se como a verdadeira legente de Nietzsche, porque ela não o compreende no sentido de reproduzir ou mortificar os seus sinais e significados, ela usa o mesmo processo de idealização, não só em relação ao modo de olhar para as coisas como elas aparecem, mas para o próprio autor que logo se torna figura, ou seja, Llansol torna-o, enquanto figura, num hieroglifo, num animal, num mistério que cria uma nova forma de vida, e se junta à sua comunidade. Mas ela já nos tinha advertido disso, antes de o ter metamorfoseado em figura da comunidade: ao dizer que, quando se baixa os olhos, ou se escreve numa página em branco, ou numa página escrita. Ou em teia, com aqueles com quem falamos mesmo não lhes dirigindo a palavra mutuamente, ou em palimpsesto (recordemo-nos de que Myriam «aprende a ler sobre um texto que já arde nela»). Llansol não escreve sobre ele, Nietzsche, mas sobre o que está escrito, cobrindo o escrito com outras metamorfoses, mas seguindo o ritmo; ouve-o e ele forma com outros o seu coro de vozes, porque de Nietzsche ela apreendeu a força, a capacidade de dilatar, de lapidar os seres e as relações até as coisas revelarem o

 

   

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seu poder de reflectirem a sua insondável perfeição ou beleza. Neste processo não há apenas sons e sinais de sentido desconhecido que aparecem e desparecem e voltam a aparecer: há também ondas de cor. A figura é um complexo processo metamórfico no corpo do texto, no corpo do escrevente e do legente, e é ainda um complexo processo metamórfico da escrita que se correlaciona agora com a música e com a pintura, é a escrita que devém, na sua velhice e desde a sua invenção pelos sumérios, outra coisa, a saber, infância. As figuras falam estranhamente, são manchas, não são seres definidos, ou próximos das personagens e dos seres, ou dos seres humanos comuns. As figuras são devires. Ora, esta ligação de Llansol a Nietzsche talvez nos permita dilatar e lapidar um pouco mais o sentido da «figura» em Llansol. As figuras, parece--me a mim, são aquelas que chegam à linguagem como infância, ou aquelas que abrem o espaço edénico, aquelas que vão falar o que os outros homens não entendem (Llansol diz mesmo que Nietzsche nunca será claro no sentido de ser compreendido), mas que estabelecem pontes e passagens, quando falam, com os outros seres e com o que ainda não existe, ou existe e nunca foi dito, o real-não-existente. As figuras, como as crianças, partilham com eles essa ânsia de falar, de falar com tudo o que existe; e quando não há palavra, há mancha, há uma cor que se expande e toca o existente e ele fica diferente, muda,

 

   

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transfigura-se. Na infância da linguagem e na linguagem da infância, a imagem é apenas imagem, e é isso que o escrevente, que nasce do acto legente, consegue em cima da corda esticada: manter-se de pé; quer dizer, pela vontade e pela sua pujança, nasce a imagem como imagem, sem perda de energia e sem desquilíbrio (ela nunca se torna conceito, ela tem que estar tensionalmente em dilatação com o que o olhar encontra diante, acima e abaixo). O legente e o escrevente são dançarinos que exprimem as coisas mais elevadas e não conseguem exprimir o seu interior. Não querem ouvir-se a si mesmos, querem apanhar, no movimento de som e cor, o nome. Porque só onde há abismo o legente-escrevente pode e sente a vontade de saltar e mergulhar para o «há».

 

   

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II O desaparecimento da verdade e da verosimilhança

- A genealogia metamórfica e o encontro dos irreconciliáveis -

Llansol encontra-se como legente num útero comum com Nietzsche, a que chamei útero vital e considerei antes, com outras palavras, que o texto por si lido se afigurou como o «umbigo de Parasceve», um útero de infância da origem, um útero-lugar-de-entresser que é diferente de um útero biológico, dado que neste apenas há trocas entre pares de genes fortes. Se dominantes e fracos, se recessivos, estes que parecem marginais não fazem triunfar nada do que transportam dentro de si se não encontrarem outro recessivo – o que por sua vez se repete na história das sociedades, em que os fracos se unem para vencer os mais fortes gerando estados de vingança e ressentimento de que a história humana é o palco. Um útero biológico é um lugar de transmissões e deter-minações que condicionam e impõem, desde a nascença, uma cadeia limitativa e mimética. O que nasce de um útero biológico traz semelhanças com o anterior, preserva--as com variações não heterogéneas, tende a mimetizar o ascendente e, por isso, se chama descendente. Um útero

 

   

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vital que inclua a totalidade do que somos («...é o teu corpo a tua grande razão: ela não diz “eu”, mas faz o “eu”» – Assim Falava Zaratustra, «Dos que desprezam o corpo») é um lugar metamórfico e está ligado à teia e ao palimpsesto. Porquê? Porque foi nesse útero-lugar-texto que Llansol aprendeu a responder aos ecos e nunca se esqueceu de os prolongar, porque nesse útero não se partilha apenas a mesma água, o mesmo sangue, partilha- -se uma ânsia de falar. E o que ouve e o que quer falar não troca informações como as genéticas, também como o conhecimento, em dialéctica e tensão, transforma o seu eu a partir do seu corpo – aquele que lê tem, como vimos, uma disposição corporal que repete quando se torna escrevente: baixa os olhos e tem diante de si a folha em branco ou a folha escrita, parte da voz que o chama e prolonga-a e gera efeitos como os de Indra e a sua teia que tudo deixa reflectir, sem longe nem distância, ou escreve por cima, a partir de, e retomando, forças convulsivas, interpelativas, repetitivas, como um refrão no texto, à espera de mais som e de mais mancha ou cor. A partir dessa disposição corporal e com a mão, um dos gestos da escrita, começa o lento ofício de ourives (imagem que Nietzsche utiliza em Aurora para se referir ao trabalho do leitor), ou o trabalho, não de mortificação compreensiva de um texto – como lhe chamaria Benjamin –, mas a sua

 

   

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vivificação transformativa e transmutativa. Nesta fase já o legente e a legente: A – Abominam o verosímil e a verdade – porque, como diz João Barrento, «a mimesis não é o objectivo. O que conta é a presciência do invisível» (Europa em Sobreimpressão. Llansol e as dobras da História). B – Reuniram com a restante comunidade, que evidencia marcas intermitentes de uma origem a partir de sinais vitais como a respiração e a inspiração, que são os dois movimentos vitais da leitura e da escrita. A. Aquele que lê, o legente, só pode ter uma repulsa natural pelo conhecimento e pela forma operativa como o mesmo se constituiu no Ocidente. Com efeito, conhecer foi uma forma de dominar a realidade, aparentemente o homem domina a realidade, por meio de categorias e de um trabalho judicativo que torna essa realidade constante e imutável, tão eterna quanto a própria ideia de Deus. Conhecer é uma forma lógica e predicativa de impedir, ou bloquear, a revelação da vida na coisa conhecida, que uma vez sendo «isto» é «isto» até resistir a todas as falsi-ficações, ou ser provada, reiterada e reificada por todas as verificações, ou corroborações técnico-científicas. O conhecimento, como Kant percebeu muito bem, é a imposição de limites ao fenómeno, ou seja ao que aparece

 

   

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no tempo e no espaço. Falar de limites é falar de identidade, consistência, potência e contorno. Um legente, como Nietzsche e como Llansol, na plena posse das suas capacidades de leitora como de si ela mesma diz, quer ir para além da identidade de tudo, da sua, do texto, e quer ir ao encontro do que está para além desses limites. A sua forma de ler situa-se fora do limite e espreita aquilo que é já o limiar. Desse lado, com um pé fora desse interesse em saber o ser de cada coisa, fechada num juízo, ou presa a uma categoria, ou conceito, a legente pro-blematiza o abismo, o espaço vazio à volta do qual a coisa, o objecto, o texto pairam, no sentido da idealização de que fala Nietzsche. Rapidamente o que era familiar e próximo se torna estrangeiro, estranho, não identificado e hetero-géneo. Porque ler é dirigir-se para a imagem escondida ou pairante, escapar à dialéctica pela transformação da vontade de apropriação em vontade de respiração com o mútuo que não pode falar directamente com aquele que lê e a que vai responder, escrevendo. Essa vontade encontra naturalmente resistência, mas onde a voz encontra resistência, como um corpo, encontra a vida, e o legente sente que começa a viver, e isso torna-o vigoroso, colérico, desesperado, revoltado e sofredor. Acontece que sem sofrimento não desperta, no homem que caminha sobre a corda esticada, que é o limiar da sua condição finita, a vontade da criação; aquele quer ir além, ultrapassar o

 

   

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limiar, depois de liberto dos limites. Assim, torna-se possível o nascimento num universo incompreensível e irracional, num universo não dominado e desinteressante para os que detiveram o poder de conhecer e de, pelo conhecimento, dominar. É preciso sofrer para criar – «para que o próprio criador seja criança que nasce de novo é preciso que ele queira ser também a parturiente e ter as dores da parturiente.» É preciso que o que nasce não se torne mortal e não se separe do acto de nascer, acto continuado e pré-figural do que dele nasce ou nascerá, porque só aquele que esqueceu o seu nascimento é impotente como criador, aquele que desse instante faz memória e, mesmo com dor, continua a reverberar dentro de si: só esse, eternamente, desejará esse instante criador, parturiente e natal. O desejo do eterno retorno é um desejo de amor desta natureza, não só pelo que nasce, como pelo próprio movimento de nascer que de tanto se desejar o faz rodar a roda do tempo que doba, como as Moiras do destino, o fio da vida imorredoura e perpétua; ou o perpétuo devir do que nasceu e pode fazer nascer para que o outrora seja um agora. Se o parto ou acto de nascer são parte integrante do acto criador – que por sê-lo não pode ser reprodutor ou próximo do existente e do criado –, então ele só pode estar gerando figuras que são modos convergentes entre o acto de ler e o acto de escrever, dois actos de nascimento e dor, de respiração e

 

   

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inspiração, partos de modos do ser se desmultiplicar em séries metamórficas que não se fecham em identidades, ou com elas se confundem, porque as figuras são, como o acto sexual, transgressivas de todo o princípio da individuação e da individualidade. B. Diferentemente do conhecedor ou do intérprete hermeneuta, o legente é o que está diante do limiar que é um texto, e como tal ler é já estar um passo à frente do embuste que são os limites. Liberta a razão e o pensamento das cadeias lógicas, o pensamento olha e encontra imagens que nunca deixarão de o ser, porque onde não há conhecimento não há conceito, que é a operação que estanca o devir da imagem em outra coisa, já que a natureza da imagem é a sua pura deveniência e o instante fulgurante da sua aparição, instante, devir e vontade de (re)ver, regressar a essa experiência da vida que surge como declinação do inesperado, do invisível, do insondável, do mistério do «há» que se expande em movimentos que só um leitor filólogo entrevê: leitor lento que olha para trás, para diante, com pensamentos ocultos, com portas abertas, dedos e olhos subtis para o que aparece e se transforma no que não tem nome. Llansol reconhece que lamenta nunca ter olhado assim para os seus próprios textos, o seu texto único,

 

   

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diríamos, como olhou e leu o de Nietzsche. O que fazia ela com os textos do autor de Zaratustra e da Aurora? Respondia aos ecos e nunca se esquecia de os prolongar, e prolongar é responder àquele que se transformou em ave e canto de pássaro; a esse canto e a essa voz musical Llansol responde e torna-o a ele em ave intermediária entre Luís M. e os restantes. Os restantes, os que lêem, encontram-se no que Nietzsche designou como «ilhas», comunidades de seres migrantes – todo o leitor é um ser sem morada certa e essa incerta morada dá-lhe a possibilidade de fazer genealogias e viver diacronicamente com os que aprende a amar, ouvindo sem cessar, porque se há texto incessante é porque há voz ininterrupta ou rumor que pode vir da dor, ou do desastre de só haver, como diria Blanchot, «ruína da palavra» ou o que «resta sem rasto». A voz que canta é poderosa e sedutora, sabemos isso desde Orfeu e Eurídice, sendo que a regra numa comunidade de seres desta natureza nunca é «não olhar» para resgatar o vivo da morte, é a regra do silêncio para que o canto ensine a falar aquele que tem ânsia de falar e, muito antes de Benjamin, Nietzsche e depois Llansol, nos digam que todos os seres têm essa mesma ânsia e «todo o ser quer ser verbo e o próprio devir quer aprender a falar» (Nietzsche, em Aurora). Aprender a falar quer aqui ainda dizer aprender a fazer comunidade. É por isso que Celan diz que o poema

 

   

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não é senão o que vai a caminho e foi lançado numa garrafa. Mas esse lançamento espera uma intersecção por parte de alguém, que é o leitor que passa a respirar ao mesmo ritmo, porque o legente é alguém que prolonga sons, canta, e uma comunidade de leitores é uma comunidade de cantores de leitura. Mas alguém que põe a sua voz em uníssono com os outros sem a apagar e aguardando a sua vez é alguém que, como se lê em O Senhor de Herbais, luta pela inenarrável beleza de viver que não é sentida como uma humildade cosida ao peito, mas como uma urgência de dizer mais o que se sente do que aquilo que se sabe (pp. 243-244). Essa urgência torna estes lugares imateriais, de nascimento e parto, comunitários, de confluência entre legentes e escreventes, lugares de inspiração e de dom poético que podem co-pertencer-nos, a nós e a ancestrais parentes que se juntam a nós e que estão muito atrás no tempo e na voz. Unidos pelo mesmo sangue, correndo nas mesmas correntes e respirando com eles o mesmo sopro do canto, criam-se genealogias sem fenomenologia, genealogias amorosas – criar amores novos é o meu maior desejo, diz Llansol, e di--lo a si mesma e na plena posse das suas potencialidades como legente. O legente constrói moradas em lugares incertos e intranquilos, ilhas, para além do tempo e do lugar, e não pode senão ansiar pelo espaço edéncio a que tem acesso pela voz, para se entregar a uma forma de vida

 

   

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segundo a necessidade de tornar audível, visível, o que o abala e transtorna, ouvir sem procurar, viver segundo um pensamento que reluz e não lhe coloca qualquer hesitação ou necessidade de escolher, sentir-se livre e incondi-cionado, aceitar o carácter involuntário da imagem (vd. Aurora). A comunidade ilumina a nossa noite mas não nos redime desta necessidade de sermos uma voz sem eco quando escrevemos (Llansol nem a si mesma se leu como leu Nietzsche, foi uma voz sem voz para si mesma), quando a voz que lê se torna voz escrevente – por meio da inspiração, nas palavras de Nietzsche na Aurora, ou do que Llansol chama o dom poético (captar a substância do belo). Por isso eu diria, para terminar, que é da solidão da ilha que se antecipam as figuras, esses seres que, anunciando o futuro, são os irreconciliáveis com a História tal qual ela nos foi contada. Nesse sentido, todas a figuras de Llansol são herdeiras e metamorfoses de Zaratustra, que declarou:

Em verdade, meus amigos, eu caminho por entre os homens como por entre fragmentos e membros soltos de seres humanos! O que é terrível, a meus olhos, é que eu encontro o homem despedaçado e espalhado, como que através de um campo de batalha e de carnificina.

 

   

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E se o meu olhar fugir do agora para o outrora, encontra sempre o mesmo: fragmentos, membros e acasos atrozes... mas não seres humanos! O agora e o outrora deste mundo... Ah! Meus amigos, isso é para mim o que há de mais insuportável! E eu não seria capaz de viver, se não fosse também um vidente daquilo que há-de vir. Um vidente, um querente, um criador, um futuro, por si próprio, e uma ponte para o futuro... e, infelizmente, também de certo modo um aleijado junto desta ponte: tudo isto é Zaratustra. E também vós perguntates muitas vezes a vós próprios: ”Quem é para nós Zaratustra? Que há- -de ele significar para nós?” E, tal como eu próprio, destes como resposta as vossas perguntas. Ele é alguém que promete? Ou alguém que cumpre o prometido? Alguém que conquista? Ou alguém que herda? Um outono? Ou uma charrua? Um médico? Ou um doente curado? É um poeta ou um homem que fala verdade? Um libertador ou um domador? Um bom ou um mau? Caminho por entre os homens como por entre os fragemntos do futuro: daquele futuro: daquele futuro que eu vejo.

 

   

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E todo o meu interesse consiste em juntar e reunir todo aquilo que é fragmento, enigma e acaso atroz. (Assim Falava Zaratustra, «Da redenção»).

As figuras são manifestações e antecipações do que o homem pode ser. Reunião de fragmentos e do desastre, declinações de Zaratustra, a reconciliação possível que nasce prematuramente no olhar de Myriam, ou a que se dedica ao ofício de ler. A legente também não tem outra identidade senão a do fragmento que aporta à ilha dos amores, e descobre que a sua miséria é a condição da sua salvação como existente que ainda não é plenamente real.

Almada, 17 de Abril de 2015

 

   

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(Crepúsculo dos Ídolos)