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LANDULFO ALMEIDA

AS DUAS FACES DO DESTINO

NOVO SÉCULO2012

Para minha filha Luana Almeida.Quando ouvia as histórias de ninar criadas pelo pai seus olhos brilhavam, repletos de fascinação e curiosidade. Graças a ela redescobri minha criatividade.Aos seis anos decidiu escrever um livro. Ensinou-me desde cedo que não existe tempo certo para se começar.Seu coração cheio de amor e bondade, sua alma sedenta de conhecimento e sua mente sempre ativa são minha eterna inspiração.E para meu cunhado, amigo e irmão Paulo César Ferreira Cunha. Sua presença constante foi sempre acompanhada de apoio e incentivo. Infelizmente não está mais entre nós, mas sua memória nunca nos deixará. De onde estiver, certamente está torcendo por mim.

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Agradecimentos

Sem a tolerância de minha esposa, Patrícia Gomes Barbosa Lima, e minha amada filha, Luana Barbosa Lima Alves de Almeida, que permitiram a minha ausência em inúmeros momentos de lazer, sempre com sorrisos de incentivo e compreensão nos lábios, não poderia ter concluído esta obra. Serei eternamente grato a elas.Gostaria também de agradecer a três pessoas muito especiais que, cada uma a seu modo, encorajou-me a percorrer o caminho entre o primeiro rascunho e uma obra publicada. O doutor em Comunicação, professor Ernani Coelho Neto, leitor ávido e de mente afiada, foi generoso o suficiente para ler o original de As Duas Faces do Destino e, a despeito de suas falhas, encontrar nele virtudes e exaltá-las a ponto de me incentivar a buscar sua publicação. Não esquecerei suas palavras ao dizer: "Landulfo, você é um escritor". Minha grande amiga Ana Karina Tinoco que encontrou tempo em sua agenda de executiva para se envolver com os personagens, afeiçoar-se especialmente à Olívia e ainda ser verdadeira sobre as potencialidades e fragilidades do texto. Marília Bahiense, amiga sempre presente e irmã em meu coração, doou seu tempo à análise de cada parágrafo, contribuindo valiosamente com suas opiniões.

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Por fim, não poderia deixar de agradecer à Editora Novo Século pela oportunidade oferecida a este autor.

Nota do autor

Todos os personagens e fatos aqui descritos são fictícios e em absolutamente nada pertencem à realidade. Dito isso, esforcei-me para entender, até onde minha capacidade de compreensão permitiu, teorias da Física, algumas linhas de pesquisa futurísticas da Medicina e o universo dos investimentos bilionários. Sempre que necessário, moldei-os em favor da história, preservando a proximidade adequada para com a verdade de modo a transmitir ao leitor a sensação de estar diante de uma hipótese fantástica e nunca de um ridículo absurdo.

PRÓLOGO

Após a formulação da Teoria da Relatividade por Einstein, uma grande questão remanesceu. Mais abrangente que as Leis de Newton, além de outros fenômenos, ela traduzia com perfeição as forças exercidas entre os grandes objetos, porém não explicava os fenômenos eletromagnéticos. Um outro conjunto de leis, já consolidadas à época, era necessário para tal. Desde então, físicos de todo o mundo tentam encontrar uma única equação mestra, capaz de ser aplicada tanto às forças gravitacionais quanto às

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eletromagnéticas. Mesmo em seu leito de hospital, nos seus últimos dias, Einstein mantinha um caderno de anotações, lutando furiosamente para descobrir essa equação. Estava certo de sua existência.

13 de abril de 2005 - 02h13

Os pássaros em revoada pareciam dar o alarme geral na floresta de eucaliptos, provocando a atenção dos animais silvestres para os passos humanos, intrusos naquele habitat. Nervosos, os dois homens atravessavam apressados por entre as árvores milimetricamente plantadas. Perdidos e assustados, tangidos pela adrenalina, não tinham noção de onde iam. Estavam apenas feli-zes pela ausência de passos em seu encalço. A diversidade de sons tornava os pensamentos confusos e os movimentos erráticos. Onde estavam exatamente? Não ousavam trocar palavras, temiam serem percebidos. O céu escuro e sem estrelas não lhes servia de guia. Seguiram os sons das máquinas, fugindo do crepitar da floresta e seus perigos desconhecidos, até a chuva indolente tornar impossível distinguir a direção. Sem se intimidar, continuaram. Corriam a esmo cada vez mais rápido, quando, sem aviso, a floresta ficou para trás, como uma cortina gigante plantada pelo ser humano, mas cuja exuberância exalava, em meio ao seu perfume, a onipresença divina. À frente deles, um novo mundo se abria. Em uma rodovia malcuidada, poucos ousavam enfrentar a

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tempestade. Escondendo dos viajantes o perigo, as poças de chuva ocultavam os buracos onde o asfalto cedera, criando verdadeiras armadilhas para os motoristas incautos. Sorrisos largos nos rostos encharcados, entreolharam-se. O que viam era uma paisagem ensolarada, uma estrada feita de ouro e pedras preciosas, repleta de possibilidades, o caminho para o futuro pelo qual tanto lutaram. Era a chance de mudar o destino. Deixaram tudo para trás, família, amigos, carreira e honra, apenas para chegar ali. Não havia retorno nem direito a arrependimento. Um deles verificava na sacola lacrada a integridade de seu conteúdo. O livro ainda estava seco, porém precisavam encontrar abrigo para protegê-lo. Neste momento nada era mais importante.13 de abril de 2005 - 02h17

A poucos metros de distância a mesma paisagem servia de moldura para outra cena. A chuva torrencial canalizada pelas copas dos eucaliptos escorria vultosamente pela mata alagando sua superfície. A cada passo, ela ouvia o som de seu peso espalhando a água, um potencial alerta de sua presença. Não podia ser detectada. Ao se aproximar, a chuva não mais funcionaria como escudo. Só lhe restava parar de correr e aguardar. Enquanto ignorassem sua presença teria uma chance. As seqüências de eucaliptos, a chuva e a noite vazia de estrelas lhe serviriam de manto. Prostrou-se de costas para o tronco de uma das árvores, atenta a qualquer movimento.

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Conforme a adrenalina se dissipava, como que diluída pela chuva, os fortes ventos balançavam as árvores, perpassavam as folhagens e atingiam sua pele molhada. Tirou do ombro a alça da pequena sacola térmica, depositando-a no chão a seu lado e garantindo liberdade de movimentos caso a luta se apresentasse. Instintivamente, os braços envolveram o peito na tentativa de aquecer o corpo. As mãos friccionavam os braços em um esforço inútil para gerar calor. O ar gélido navegava sem cerimônia por sua pele, invadindo indiscriminadamente os poucos redutos protegidos sob a fina roupa. Em pouco tempo os dentes já tremiam sem controle. Uma sensação de desespero lentamente tomava conta de suas emoções. Àquela altura o frio abrira caminho para que outro inimigo, a realidade, penetrasse em seus ossos. Até agora não tivera tempo para pensar em todas as conseqüências relacionadas aos últimos acontecimentos. A verdade dos fatos era como um soco no estômago, deixando-a sem ar, fazendo crescer um vazio em seu peito. A angústia se espalhava por seu ser em velocidade alarmante. A vontade de gritar invadia a garganta e era apenas contida pela certeza de estar colocando a vida em perigo, caso qualquer som escapasse de seus lábios.Não pôde conter as lágrimas descendo desgovernadas sobre a face, misturando-se à água da chuva. Enfim, derrotada, o rosto se transfigurou em dor intensa, refletindo a agonia em sua alma. Jamais se sentira tão só e tão perdida em toda a sua vida. As mãos cobriam o

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rosto em um gesto de descontrole, enquanto seu peso desabava sobre os joelhos e um grito ecoava apenas em sua mente.— Meu Deus... O que foi que eu fiz!

DESTINOS CRUZADOS

A mecânica quântica surgiu após a Teoria da Relatividade e a formulação das leis do eletromagnetismo. Através dela, descobriu-se a existência da Força Nuclear Forte, responsável por unir nêutrons e prótons em um átomo, e a Força Nuclear Fraca, que permite aos Nêutrons se transformarem em prótons, liberando radiação no processo. Dessa teoria nasceu a bomba atômica. Experimentos com o choque de partículas revelaram a existência de "partículas mensageiras", cuja troca entre os corpos explicaria as forças de atração. Foram des-cobertas partículas mensageiras para explicar as forças nuclear forte, fraca e a eletromagnética. Ainda não havia unificação entre essas e a Lei da Gravidade ou a Teoria da Relatividade de Einstein. Para tal, seria necessária uma mudança dramática de paradigma.

1. Coincidências existem?

Mais um dia se arrastava. Às vezes, na maioria das vezes, o exercício de simplesmente permanecer vivendo parecia apenas uma obrigação. Há muito não se sentia realmente

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vivo, apenas passando pela vida. Embora fosse ótima companhia em uma festa, sempre brincando, conversando com todos, no fundo a sensação era próxima das palavras de Raul Seixas: "... ah, mas que sujeito chato sou eu; que não acha nada engraçado; macaco, praia, carro, jornal, tobogã; eu acho tudo isso um saco...". De fato a música Ouro de tolo descrevia com perfeição seu estado de espírito naqueles últimos anos. Fazia boa presença nos eventos e mantinha aceso o contato com os amigos através de telefonemas periódicos e encontros esporádicos, impelido, geralmente, menos pelo prazer e mais por um senso de obrigação, uma necessidade de manter certa estrutura social.Em seu ponto de vista, nada justificava aquele sentimento, afinal tinha tudo, ou pelo menos tudo o que 99% da população não possuía. Um bom apartamento de três quartos em um bairro de classe média alta em Salvador, um SUV Toyota novo, amigos, uma bela conta bancária, saúde. Enfim, racionalmente não podia reclamar.Não desconsiderava sua cota de sofrimento. A morte lenta do pai pelo câncer, três anos antes, em especial as últimas semanas na UTI, tratou de consumir a última parte da esperança inocente de sua juventude deixando em seu lugar um olhar frio e analítico diante do futuro. A tristeza foi agravada pelo fato de nunca terem sido realmente próximos. O relacionamento dos dois sempre foi, no mínimo, atribulado e ele se culpava um pouco por isso. Atingir o posto de senador da República por quatro mandatos

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consecutivos seria um grande feito para qualquer um, mas para um homem nascido na pobreza como o senador César Cortes Lima, representava ainda mais e trazia como efeito colateral uma postura superior e prepotente, propícia a atrair "parasitas" e a afastar os que realmente o amavam. Pelo menos era assim que Bruno pensava e aí estava o cerne das dificuldades entre eles. Contudo, não podia negar o bom coração do pai, sempre capaz de se revoltar contra as injustiças aos menos favorecidos e, portanto, não era merecedor da distância imposta por Bruno em seus últimos anos. Mas isso agora era passado, não havia mais nada a fazer, era tarde demais.Sentindo o peso dos quarenta anos, sem nunca ter encontrado sua alma gêmea e tendo abandonado uma carreira, com a qual jamais se empolgara, para se acomodar atuando de maneira independente como trader da bolsa de valores, sentia verdadeiramente que não existissem mais sonhos. A vida seria uma repetição maçante do que já vivera, um loop infinito. Amante do cinema, lembrava-se eventualmente de um filme dos anos oitenta, "Feitiço do Tempo", no qual o sujeito se via preso repetindo o mesmo dia indefinidamente até descobrir como quebrar o encanto. Em seu caso, contudo, tratava-se da vida real e desta não havia escapatória, apenas o cotidiano e a morte.Ele sabia bem o motivo de tantas divagações, além do normal, mesmo para ele. O telefone desligado mecanicamente na noite anterior

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denunciava a ocasião. Não suportava receber telefonemas na data da morte do senador. O seu falecimento no dia 24 de dezembro estragou as comemorações de Natal para Bruno.Bom, se ia ficar pensando na vida, avaliou que fosse em um lugar mais agradável. Levantou-se da cama, tomou seu banho exageradamente quente, fez a barba, algo raro naqueles dias, talvez umas duas vezes por semana, colocou a sunga mais nova e escolheu o short e a camiseta como se fosse para um churrasco na casa de amigos ao invés de andar na praia. Gostava de se vestir bem quando se sentia "para baixo". Calçou a meia, o tênis, jogou no ombro uma toalha para o caso de ter vontade de dar um mergulho antes de voltar, e se dirigiu à porta. Ao tocar a maçaneta, subitamente se lembrou do sonho daquela noite.

As imagens iam e vinham como quadros recortados em uma película de cinema. Uma casa grande... Um apartamento... Uma criança de seis ou sete anos... Ele reconhecia o corredor onde a criança andava e o carpete sob seus pés descalços. Seria uma lembrança ou um sonho? Em um pequenino hall onde se cruzavam a eyitrada para a sala de jantar, a porta de vidro da cozinha, um lavabo e a porta do escritório de seu pai, uma mesinha de telefone era o único móvel. Era noite, provavelmente tarde, não sabia bem a hora. Sentia que o pai não estava em casa naquela noite. Ele seguia algo... Um choro, bem baixinho...

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— Mamãe?A mãe estava sentada na mesa de jantar. Uma caixa de sapatos aberta revelava ser o depositário de fotos antigas, agora espalhadas sobre a longa mesa de mármore. Com oito assentos, a mesa lhe parecia imensa e não imaginava o porquê de sua mãe estar lá, à noite e sozinha. Passado um instante, virou-se assustada, ao perceber sua presença.— Você acordou meu amor? - enxugava rapidamente os olhos, enquanto abria os braços para o amado filho.Ele a abraçou o mais forte que pôde. Depois mirou seus olhos ainda contendo o abraço.— Por que você está chorando, mamãe?— Estou com saudades de seus avós, meu filho, só isso. Não se preocupe. Nas férias os visitaremos em Salvador e eu matarei as saudades — mentiu.— Por que moramos em Brasília se eles moram em Salvador, mamãe?— Já te expliquei isto meu amor. É por causa do trabalho do papai. Todos os senadores são obrigados a morar na capital do país.Ele fez uma expressão de reconhecimento. Lembrava-se agora. O pai era um homem muito importante, fazia um trabalho nobre e a família precisava estar sempre junta. Era o que lhe diziam.— Quem é este, mamãe?A foto em preto e branco sobre a mesa mostrava um homem caucasiano, usando paletó branco e gravata borboleta escura, montado em uma bicicleta e fazendo pose. Usava um chapéu típico

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dos filmes antigos da década de 1950 e sorria. A praça onde se encontrava era vagamente familiar. Não reconhecia o homem, mas ele certamente parecia muito feliz.— Não é ninguém importante, meu filho. Estava procurando fotos dos seus avós e esta, de um conhecido, estava entre elas — levantou-se enquanto falava e segurou sua mão. — Vamos dormir. Está tarde.

Pensou em anotar para não esquecer, certo de ter sido uma lembrança e não um sonho. Ou talvez tenha sonhado com uma versão de um acontecimento. Perguntaria à mãe depois, embora não acreditasse que ela se lembraria do fato, tivesse sido realidade ou não. Como já estava à porta deixou para lá, não era importante, e saiu trancando a fechadura atrás de si.Abriu o teto solar e as janelas da RAV-4, colocou os óculos escuros e curtiu um CD de Raul nos poucos minutos necessários para chegar ao Jardim dos Namorados, principalmente levando em conta a ausência de tráfego típica da tarde de Natal, onde deixou o carro e iniciou a caminhada programada.Aquele ponto da Avenida Otávio Mangabeira provavelmente ganhara o nome como resultado das dezenas de namorados, os quais, na década de 1970, estacionavam ali os carros para trocarem intimidades. Em frente ao mar, o platô representava no passado um local distante e suficientemente reservado. Hoje o nome não

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fazia mais sentido. Um grande restaurante, uma praça e a ciclovia impediam que qualquer visitante desfrutasse de privacidade. A cidade crescera vertiginosamente nas últimas décadas e hoje podia-se considerar aquele bairro tão denso e vivo como era o centro da cidade quarenta anos atrás. Ainda era, contudo, uma vista bonita e um dos lugares onde mais gostava de correr. Ao lado da ciclovia a calçada margeava o mar, separando-se deste na maior parte do caminho exclusivamente pela extensão da praia e pela diferença de nível. Em vários pontos as ondas chocavam-se fortemente às pedras, garantindo um espetáculo de sons e imagens nas tardes de mar agitado. Naquela quinta-feira decidira apenas andar, espantar suas tristezas e apreciar a natureza.Alternando o olhar entre a via de cooper e o lindo mar à sua direita, checou o relógio. Era 17h25. Não haviam se passado nem quinze minutos e já estava esquecendo a paisagem e pensando na programação da noite, quando a notou pela primeira vez. Cerca de vinte metros à sua frente, correndo, em uma calça leg lilás, típica de ginástica, pochete mínima, emborrachada, cor-de-rosa bem forte, assentada perfeitamente na linha da cintura. Um top tipo biquíni marcado nos contornos em branco, cabelos negros presos atrás, traços finos e pele bem branca. Aparentava ter cerca de l,75m, ao longo dos quais se distribuía um belo corpo. Nada exuberante demais ou chamativo, mas tudo proporcional. Cintura fina, seios médios, coxas

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sem gordura e curvas aparentes nas panturrilhas, mesmo de frente. Se isoladamente os traços não eram chamativos, o conjunto definitivamente jamais passaria despercebido, não naquelas roupas. E quando passou por ela seus olhos se cruzaram. Eram de um azul-escuro diferente de tudo que já vira e, podia jurar, vislumbrou um mínimo sorriso no átimo de segundo quando sua visão periférica ainda a seguia.Por um instante quase se virou e começou a correr também, tentando alcançá-la, mas logo se apercebeu do ridículo que seria. Além do mais, nunca ouvira falar de uma paquera durante o cooper ter funcionado. Certamente não era o perfil dele. Então desistiu, esperando, ou melhor, desejando se encontrarem novamente no futuro.Quase vinte minutos depois, ao chegar ao topo do aclive que marcava o início do Jardim de Alah, percebeu corredores se aproximando por trás. instintivamente obrigou-se a olhar, temendo se tratar de marginais e não de atletas, algo não de todo estranho na área. Embora fosse um bairro nobre era próximo à praia e a praia aceitava todos os públicos. Enganara-se, além de um casal de gordinhos na casa dos cinqüenta, apenas ela vinha em sua direção. Desta vez andando a passos rápidos, logo passaria por ele. Ficou atento, curioso em ver a figura de costas e checar aquela parte do corpo considerada a preferência nacional, para confirmar se a mulher realmente era tão maravilhosa quanto parecera inicialmente.

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Cerca de um minuto depois do casal passar, ainda na expectativa, sentiu uma súbita tontura, que evoluiu muito rápido, faltou o ar, depois o chão, e então... Tudo apagou.Quando abriu os olhos, sentiu terem se passado apenas alguns segundos, estava deitado de costas sobre o gramado, ao lado da via de cooper, e, de cócoras ao seu lado, visivelmente assustada, estava a garota dos olhos azuis. Bruno desejou levantar com um salto, estava envergonhado, mas no primeiro impulso sentiu a tontura voltando e achou prudente não cair duas vezes na frente de uma mulher tão bonita. Felizmente não havia mais ninguém ali, apenas ela. Os poucos transeuntes dispensavam não mais que um rápido olhar à cena, enquanto seguiam seu caminho, retomando o passo ao perceber a situação sob controle.— Você está se sentindo bem? Devia ficar deitado mais um pouco, ou pelo menos sentado. Foi uma queda e tanto.— Estou bem, não sei... O que aconteceu?— Você estava andando, parecia ter tropeçado e sem mais nem menos caiu. Por sorte eu estava bem perto, quase do seu lado, e caiu na minha direção. Tentei lhe segurar, mas não deu, só consegui reduzir um pouco a queda.— Nossa! Mil desculpas por isto.— Não... Não foi nada... Se quiser posso te levar na emergência de algum hospital.Enquanto ela falava, Bruno foi se levantando. No mesmo ritmo ela o seguiu, visivelmente preocupada em ampará-lo caso sucumbisse

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novamente. Felizmente estava se sentindo melhor.— Não, pelo amor de Deus, você já fez muito. Eu não almocei hoje, deve ter sido apenas um mal-estar, uma "fraqueza". Vou ligar para uma amiga médica, se ela achar necessário, vou para algum hospital. - Ao se perceber falando rápido demais, fez uma pausa para respirar antes de retomar a conversa. — Olha... Muito obrigado, se não fosse você eu poderia ter me machucado. Vou devagarzinho para o carro e vai ficar tudo bem. Meu nome é Bruno — estendeu a mão em cumprimento, imediatamente correspondido.- O meu é Adrianna. Com dois "enes" — ao se apresentar exibiu o primeiro sorriso até ali. — Deixe eu te acompanhar até o carro pelo menos, assim fico mais tranqüila, ok?Ele se esforçou muito para não sorrir ao dizer sim. Pelo menos algo de bom parecia surgir daquele vexame. Teria uma chance de conversar com ela. As circunstâncias eram tudo, menos ideais, mas ela não parecia estar com pena, então ele tinha uma chance.Aparentava ter uns trinta anos, era realmente bonita. Não sorria o tempo todo e quando o fazia era sempre um "quase" sorriso, daqueles que se desfazem antes de se formar completamente. Um meio-sorriso, em que um canto dos lábios se contraía ligeiramente mais, formando uma desigualdade instigante. Um sorriso tímido, podia-se dizer. Certamente esse era o único traço de timidez nela, ele pensou. Como um todo, ela emanava autoconfiança e decisão.

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- Nunca lhe vi correndo por aqui. Você vem sempre? - Bruno estava ciente do clichê, mas ausente de idéias a curiosidade levou a melhor. Diante da situação, se não impressionava, também não causaria mais dano a sua imagem. Pior do que já estava não poderia ficar.- Hoje foi o primeiro dia, mudei-me para Salvador este mês.Ao ouvir aquilo percebeu o sotaque, não era mesmo nordestino, embora não conseguisse associá-lo a nenhum outro lugar. A dicção era perfeita, no estilo de âncoras de TV, notavelmente indistinto.- Veio com a família? — Teve até vergonha da tentativa clara de descobrir se ela era casada, mas simplesmente precisava saber.- Minha mãe faleceu há muito tempo e meu pai partiu recentemente - fez uma pausa antes de prosseguir. — Morava em Brasília e resolvi vir para um lugar onde conhecia pouca gente, queria mudar de ares e como sempre tive bons momentos na Bahia... Mudei-me — falou isto dando de ombros sinalizando dar pouco valor ao fato.A história era triste, porém a ferida parecia cauterizada, ou pelo menos ela disfarçava bem. Não pôde deixar de notar nas entrelinhas de seu relato uma informação deveras importante. Não havia mencionado marido ou filhos e estava na cidade havia apenas um mês, logo era provável que ainda não estivesse namorando ninguém. E se estivesse certamente não poderia ser algo muito sério. Ele tinha chances.

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Pensou em comentar o fato de já ter morado em Brasília, mas logo desistiu. Traria à baila o fato do pai ter sido senador e isso poderia ser interpre-tado como pomposo da parte dele, ou pior, o assunto se conduziria ao seu falecimento. Decerto a morte era sempre um assunto a ser evitado em uma paquera. Não ressuscitaria aquelas memórias por opção. Salvando-o do silêncio ela continuou.— Você deve estar me achando doida, não?— Muito pelo contrário. Acredito piamente em mudanças se elas são feitas com o objetivo de nos aproximar da felicidade, de criar um ambiente mais propício a ela. Devemos usar todos os recursos possíveis, todas as forças e caminhar na direção de nossas crenças. Se há alguma chance de sermos mais felizes é nossa obrigação nos agarrarmos a ela com unhas e dentes.Teve vontade de perguntar sobre trabalho. Qual era a sua profissão? Havia conseguido emprego na cidade? Porém sabia onde isso os levaria, às perguntas de mesmo teor sobre ele. Falar já no primeiro contato que vivia de renda não seria muito impressionante, a não ser que ele fosse um playboy milionário e, embora vivesse bem, não era milionário no sentido amplo da palavra, lamentavelmente. Ainda buscava na mente algo inteligente para dizer quando, não por sua escolha, se aproximaram do ponto onde havia estacionado.— O meu é aquele ali. Posso lhe acompanhar até o seu carro? — Ele apontou, se arrependendo logo

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em seguida. Devia ter aguardado chegar mais perto, assim aproveitaria sua companhia por mais alguns metros.— Não, vou correr mais um pouco.— Olha... Você foi excepcionalmente atenciosa, além do que qualquer um poderia esperar, então... Não me leve a mal, mas simplesmente não me perdoaria se não tentasse. Gostaria muito de levá-la para jantar amanhã, se não tiver outro compromisso. Como um gesto de agradecimento - ao falar, manteve o olhar fixo no dela. Estava mesmo decidido.Ela retornou intensamente o olhar, parecia estar analisando-o, decidindo. Depois de alguns momentos retribuiu usando o meio-sorriso que o seduzira.— Ok. Trebisache às 9h da noite.Era um restaurante freqüentado pelas classes alta e média alta da cidade e bastante conhecido por sua atmosfera romântica.— Maravilha — falou com mais alegria e surpresa do que gostaria de demonstrar. Precisou lutar para conter o entusiasmo. Embora tivesse feito o convite com voz firme, transmitindo confiança, não acreditava nas próprias chances de sucesso. Aquilo não acontecia na vida real, não com ele. - Onde eu te pego?— Não precisa, te encontro lá.Ele entendeu. Pegá-la em casa a exporia. E se ele fosse um assassino ou algum tipo de maníaco? Gostou de ela ser cuidadosa.— Me dá seu telefone?

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Ela sorriu de novo, agora de forma marota, de canto de boca e respondeu quase ao mesmo tempo em que se virava e reiniciava o seu cooper.— Não.— Ah! Feliz Natal! — gritou enquanto se afastavam, mas ela só levantou a mão e acenou, ainda de costas. Não se virou.

No carro, Bruno ligou para Márcia, uma amiga clínica geral e normalmente a primeira pessoa em quem pensava quando precisava de conselhos médicos. Caiu na caixa postal. Tentou Mauro, outro grande amigo, cirurgião geral. Nada também. Discou então o número do seu melhor amigo, Natanael, ou Natan, como os mais chegados o chamavam. Natan se especializou inicialmente em cardiologia, migrando logo no início da carreira para a medicina nuclear, especialidade relacionada ao diagnóstico por imagem utilizando partículas radioativas. Embora a particularidade de seu trabalho o tivesse afastado, havia muitos anos da clínica médica propriamente dita, ele ainda constituía a primeira opção de aconselhamento para Bruno quando a situação era grave. Por isso mesmo evitava abusar dele quando considerava o caso de importância menor.— Alô, Zoinho?Hoje em dia poucos ainda o chamavam por esse apelido de infância. No colégio, quando estudavam juntos, amigos desde a quarta série, Natan sofria de miopia grau doze e precisava de

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óculos tipo "fundo de garrafa". Depois da cirurgia, aos 21 anos, ganhou não só a alforria dos óculos e lentes de contato, mas também um incremento na auto-confiança, especificamente no departamento relacionado ao trato com as mulheres. Desde então se tornou um Don Juan inveterado, comprometido a satisfazer o máximo de garotas possível e jurando jamais contrair matrimônio. Brincando, dizia considerar um ato de egoísmo se entregar a uma esposa privando todas as outras de sua selecionada companhia.— Está vivo! Liguei diversas vezes para saber se você queria almoçar na casa dos meus pais, e você, para variar, não atendeu o celular.O tom de voz era irônico e provocativo, um claro indicativo da insatisfação de Natan, uma reação já antecipada por Bruno.— Você está cansado de saber que eu não atendo celular hoje.— Rapaz... Você tem que acabar com isto. Ninguém merece! Tem que superar isto.— Vamos aos poucos, me dê mais tempo, ok? Mas eu não liguei para falar disto, conheci uma supergata hoje e vou jantar com ela amanhã. Isso é importante.— Ela está cobrando quanto?— Engraçado, hahaha.Bruno contou todo o ocorrido em detalhes, ao final Natan foi solene.— Em primeiro lugar, você teve sorte! Segundo, você teve muita sorte. E isso é deveras estranho considerando que normalmente você é

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ridiculamente azarado, o que me leva à seguinte teoria: você desmaiou e imaginou a coisa toda.Os dois riram em uníssono. A amizade deles era leve assim, repleta de intimidade e brincadeiras. Aquele, contudo, era apenas o comportamento superficial, conheciam-se profundamente e trocavam opiniões sobre quase todos os assuntos. De investimentos financeiros a questões familiares, contavam sempre com o outro como balizador de suas decisões. Ao final da conversa, sob pressão, Bruno se comprometeu a aproveitar o incidente para iniciar um check-up geral na primeira semana do Ano-novo. Caso se sentisse tonto novamente ligaria para o amigo, ele garantiu. Natan era um irmão por opção, portanto a insistência não o incomodava. Com mais veemência ainda, fez Bruno prometer que contaria todos os detalhes do jantar com Adrianna.

2. Dona Marta

Em casa, Bruno esquentou um prato de arroz com torta de frango deixado pela empregada na geladeira. Comeu, bebeu um refrigerante e ligou para sua mãe, felizmente de bom humor, ainda sob os efeitos do café da manhã passado juntos quando, de forma implícita e silenciosa, homenagearam a memória do pai. Ela não concordava com sua opção de isolamento nesse dia, porém, considerando os anos de separação antecedendo o falecimento do ex-marido, sentia-se em desvantagem para discutir o assunto. Ele

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deixou o desmaio fora da conversa, não queria preocupar a mãe. Também não se lembrou de perguntar sobre o sonho.Uma hora depois se veria ligando novamente para ela. Tudo começou com um enjoo. Tomou um antiácido e se tranqüilizou. Alguns minutos depois todo o jantar e o antiácido estavam no fundo da privada. Quando não havia mais o que sair pelas vias superiores, começou uma terrível dor de barriga. Em todas as consistências possíveis, ele se esvaiu. Às 21h30, quando cedeu às evidências e se conscientizou da necessidade de ajuda, eventualmente até de um médico, resolveu apelar para a mãe.Dona Marta era uma mulher forte de espírito e não de corpo. Do alto de seus 77 anos era bem conservada, mas lenta. Levou cerca de trinta minutos para sair de sua casa, no prédio ao lado, e chegar ao 14° andar do edifício Pegasus, onde ele morava. Ele exigira sua mudança para um prédio próximo após o falecimento do pai, preocupava-se em poder atendê-la com rapidez em caso de emergência. Ironicamente, a situação agora era inversa.- Ave Maria! Você está horrível - disse quando o viu na cama. Felizmente, para ele, possuía sua própria chave e entrou sem forçá-lo a se levantar. Instintivamente, colocou a mão em sua testa. - Está pegando fogo.O enjôo havia passado apenas para ser substituído por uma estranha sensação de desconexão. Sentia-se zonzo, grogue, como se tivesse bebido além da conta. Ondas de calor

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surgiam com grande intensidade e após atingirem um clímax se amortizavam. Apareciam em intervalos de alguns minutos e duravam apenas parcos segundos. O termômetro confirmou 40°C. Os dois comprimidos de Tylenol não permaneceram mais do que meia hora em seu estômago. A febre aumentou para 40,5°C.- Só pode ser dengue - havia um surto da doença ocorrendo em quase todas as capitais do país. - Vamos para o hospital agora.— Não, mãe... Vamos esperar mais meia hora — o tom era de súplica.— Não, você vai agora.- Pelo menos ligue para Natan e peça a opinião dele.— Você acha que eu não sei tratar de uma febre? Quem você pensa que cuidou de todas as suas febres até você sair da faculdade? Sei quando alguém precisa de um antitérmico intravenoso. Todos os sintomas são de dengue, você vai agora.Bruno chegou a pensar em insistir, mas viu a cara redonda da mãe enfezada e, entre uma explosão de calor e outra, não sentiu energias para a briga. Dona Marta vivia da aposentadoria e da renda gerada pela herança recebida de seus pais. Embora tivessem perdido boa parte das fazendas de cacau quando em vida, ainda restou o suficiente para ser transformado em moeda e deixar ela e o ex-marido relativamente tranqüilos por toda a vida. O casamento em comunhão total de bens, comum à época, garantiu ao senador no processo de separação um belo quinhão do que

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era dela por direito de nascença. Como ele nunca casou novamente a maior parte se transformou na herança de Bruno, uma justiça tardia e bem recebida por sua mãe. Era bem baixa, l,55m, e gordinha. Vestia-se bem, mesmo no dia a dia. Até antes da morte do ex-marido seu programa predileto era visitar os restaurantes da cidade acompanhada das amigas e de uma cerveja, ou mesmo de um bom vinho, conforme a ocasião. Isso mudou depois da partida do senador. Hoje ela ainda se vestia bem, mas seus maiores prazeres eram compartilhar da vida do filho e a leitura.- Tudo bem, mas preciso ir ao banheiro novamente — e correu para a privada.Como último recurso pediu que a mãe embebesse uma toalha de rosto em álcool. Ela não contestou, sabia qual era a idéia. Ele envolveu a toalha no pescoço como vira um amigo médico fazer havia muitos anos, quando precisou baixar a própria febre para não perder uma tarde de Carnaval. Permaneceu assim enquanto estava no banheiro. Meia hora depois, ao sair, disse estar se sentindo melhor. As ondas de calor e a tontura haviam passado. Dona Marta resolveu colocar o termômetro novamente: 39 °C.- Está baixando - disse ele, feliz com a esperança de não ser forçado a ir para o hospital. - Se baixou de 40,5°C para 39°C em meia hora vamos esperar mais um pouco, por favor? Se eu quiser ir ao banheiro no caminho vai ser péssimo!

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Meio a contragosto ela aceitou, ele tinha um ponto válido ali.- Está bem, mas só meia hora! E você toma outro Tylenol, se vomitar a gente sai na hora e vai direto para o hospital.A febre cedeu em meia hora e ele conseguiu dormir sem expelir a medicação. Acordou no meio da noite ensopado de suor, ainda com a roupa do dia anterior. No visor o relógio do celular marcava 4h da manhã. Levantou, vestiu um pijama, ligou o ar-condicionado e voltou para a cama. Sua mãe dormia profundamente ao seu lado na larga cama de casal.Quando abriu os olhos novamente ainda não se sentia bem, mas pelo menos passara algum tempo sem ir ao banheiro, já era um alívio. A mãe não estava no quarto e o dia estava claro. Quando checou as horas tomou um susto, eram 17h30. Imediatamente lembrou-se de que houve pregão da bolsa aquele dia. Considerando não poder mais fazer nada a respeito, preferiu pensar no problema mais tarde. Felizmente todas as ações em sua custódia estavam protegidas por um mecanismo automático de venda. Esse mecanismo, chamado stop, monitora as cotações e aciona a venda caso a queda atinja um valor pré-estabelecido. Assim, mesmo na pior hipótese, não perderia muito dinheiro. Saiu do quarto, atravessou o corredor e, ao adentrar a sala, encontrou a mãe lendo um livro.- Melhorou?- Estou bem melhor mãinha — desde criança ele mantinha o uso do tratamento maternal típico do

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estado da Bahia, único em sua melodia. Como a mãe não falou nada, mas continuava a olhá-lo desconfiada, ele complementou: — Estou 80% bom, só um pouco fraco. — Bruno era quase sempre carinhoso com a mãe, especialmente quando queria agradá-la. - Obrigado por cuidar do seu bebê — ela riu.- Medi sua temperatura durante a noite e o dia. Está normal, mas ainda quero que vá ao médico.- Se a febre ou qualquer dos outros sintomas voltarem, eu vou hoje, se não voltarem, vou segunda. Combinado?- Meu filho, foi uma reação muito forte, você não pode brincar com a saúde.- Se fosse dengue, meningite ou qualquer outra doença mais grave não teria passado tão rapidamente. Se for uma infecção intestinal forte, não vou conseguir segurar nada no estômago. Agora, se eu me alimentar e nenhum sintoma voltar, certamente terá sido apenas uma infecção intestinal leve. Por conta de alguma coisa que comi anteontem provavelmente.-Tudo bem - respondeu a contragosto, o argumento fazia sentido. - Vou para casa agora, você me liga se precisar de algo está bem? Quer que eu coloque o almoço?Lembrou-se subitamente do jantar com Adrianna. Se tivesse seu telefone tentaria adiar. Como isso não era possível, precisava decidir entre duas opções ruins. Ou ligava para o restaurante e lhe mandava um recado, explicando e cancelando o compromisso, o que destruiria suas chances, ou ia ao encontro arriscando ter uma recaída na

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presença dela. Nem queria imaginar as possibi-lidades do quadro. Na melhor das hipóteses não estaria em sua melhor forma. Resolveu decidir depois de um bom banho e de comer algo. A reação do estômago à comida lhe daria uma pista.- Não, vou comer só um sanduíche e ver como me sinto. Pode ir mãe, você já fez demais. - Conscientemente omitiu o encontro. Ela certamente acharia uma péssima idéia e o pressionaria para não considerar, nem de longe, a hipótese. Beijaram-se com muito carinho, como sempre, e ele a acompanhou até a porta.Marta nunca foi uma mulher feliz. Não era segredo para ninguém que o casamento de quinze anos quase nunca foi plenamente satisfatório. Apesar disso a morte do ex-marido a abalou. A sensação de mortalidade a atingiu fortemente. Embora separados, eram amigos e colecionavam juntos muitas memórias. Bruno percebia que ela se segurava por um fio, mas não sabia bem o que fazer para animá-la. Era avessa a qualquer tipo de diversão, os únicos programas em comum eram os almoços e jantares em restaurantes, cuja freqüência ele fazia questão de garantir. Saíam pelo menos uma vez por semana. Detestava preocupá-la e, prometeu a si mesmo, caso fosse necessária ajuda uma próxima vez, aguardaria pelo menos 24 horas antes de pedir socorro.Após comer relutantemente um sanduíche frio de queijo e presunto, monitorando as conseqüências após cada mordida, concluiu que havia

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melhorado substancialmente. Não fosse por uma sensação de exaustão, diria estar 100%. Embora tivesse consciência de serem necessárias algumas horas até ter certeza absoluta de estar realmente apto para o encontro, sabia também que precisava vê-la novamente. Não estava preparado para perder aquela oportunidade.Tomou um banho bem quente e demorado. Ao se olhar no espelho não gostou da imagem. Sua aparência não refletia a recuperação rápida do organismo, remetia mais a um paciente de hospital, possivelmente em estado terminal. Além da barba por fazer, o semblante estava abatido e olheiras generosas foram desenhadas abaixo dos olhos. Torceu para que a noite e a luz indireta do restaurante atenuassem um pouco aqueles efeitos. O cabelo, dotado de vontade própria, não estava colaborando. Apelou para um gel. Fez a barba e foi generoso ao aplicar seu perfume francês predileto. O abuso, na medida certa, da quantidade da fragrância sempre agradou suas ex-namoradas. Contava com o mesmo efeito naquela noite.Optou por um visual clássico, afinal ela havia escolhido um restaurante dos mais requintados da cidade. Calça de linho preta e camisa fina de manga comprida, rosa bem clara, decorada por pontinhos minúsculos formados por costuras no tecido. Cinto, meia e sapatos pretos completavam a escolha.Estava mais nervoso do que o usual. Há muito não se sentia assim, afinal não era exatamente inexperiente. Tivera alguns relacionamentos

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sérios, em especial o último, um namoro de cinco anos. Deixara-lhe feridas, é claro, assim como outros anteriores, porém já estavam cauterizadas e esquecidas no passado, marcas pertencentes a outra vida. Por um segundo, lembrou-se do término daquele período. Assim como tantos outros homens, na época, optara por mergulhar na farra. Mulheres e festas diferentes a cada semana. Mas, isso também fazia parte do passado. Havia abandonado a vida de namorador serial há muito tempo e, nos últimos anos, tinha se acalmado. Considerava-se agora em uma fase mais existencialista, por assim dizer. Não procurava alguém para namorar, para ficar por uma noite, nem muito menos para casar, simplesmente valorizava boas conversas com mulheres inteligentes. Essa ausência de expectativas somada aos anos de experiência lhe deixava normalmente muito tranqüilo às vésperas de qualquer encontro, por isso estranhou aquele sentimento de ansiedade.Às 20h15, garantindo tempo de folga para chegar ao restaurante, se encaminhou à garagem. Ao dar partida no carro, sorriu. Estava realmente animado, como há tempos não se lembrava de ter estado.

3. Vinte e nove horas antes

Como fizera nos últimos quatro dias, passara a última hora observando de dentro de seu carro o portão da garagem do número 23 da Rua Afonso Egídio. Da esquina onde se instalara, do outro

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lado da pequena praça, visualizava com perfeição o movimento dos veículos entrando ou saindo. O muro do prédio ao lado ocultava parte de seu automóvel, dificultando aos porteiros e vigias perceber algo. Ademais, tomara também o cuidado de não utilizar sempre o mesmo veículo. Ao reconhecer o SUV prata torceu para que ele finalmente estivesse retornando à antiga prática. Cautelosamente, seguiu o RAV-4 até a orla. Quando dobrou para a esquerda na Avenida Otávio Mangabeira teve certeza, imaginou até mesmo aonde ele estacionaria. Até então se apresentara metódico e deveras previsível. Nas semanas em que monitorou sua rotina, seus hábitos se mostraram bastante consistentes.Ela parou no próximo ponto de estacionamento, no Jardim de Alah, cerca de um quilômetro além do local onde ele deixara a RAV-4. Trocou de roupa no carro agradecida pela privacidade oferecida pelos vidros escuros. Escolhera uma Toyota Fielder por possuir grande espaço interno sem chamar tanta atenção quanto uma SUV. Quando escolheu correr às 17h no dia de Natal ele a premiou com a oportunidade ideal. Pouca gente na rua e muito menos ainda fazendo cooper.Começou a pensar no que estava prestes a fazer e nos eventos que a levaram até ali. Bastaram alguns segundos para decidir afugentar aquela reflexão, não lhe faria nenhum bem. Nunca estaria 100% satisfeita com a resolução, mas era a correta. Rogava a Deus ter escolhido a pessoa

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correta, o candidato ideal. Era impossível ter certeza.Conferiu a pistola de injeção rápida e parecia em ordem. Cabia perfeitamente na pochete rosa, sem chamar atenção. Carregou a ampola com rapidez e precisão e, principalmente, com muito cuidado. Era a única ampola.Saiu do carro e iniciou a corrida. Logo o avistou. Embora não fosse muito alto ou forte tinha um corpo bem proporcional, resultado não tanto dos seus genes, mas da presença constante em academias de ginástica durante sua vida adulta. Moreno, cabelo farto bem cortado, 40 anos aparentando menos de 35, ela o achava interessante, não bonito, definitivamente intrigante. Traços finos e pele bronzeada formavam um tipo que sempre a agradara.Mas eram apenas pensamentos contemplativos. Nos próximos minutos faria algo terrível e precisaria viver com as conseqüências, boas ou más. Enfrentar o resultado já seria suficientemente difícil sem se afeiçoar, caso isso acontecesse, seria ainda pior. Raciocinar de forma completamente cartesiana era a única solução. Era a atitude correta, ela sempre se repetia.Tomou o cuidado de lhe dirigir o olhar quando cruzaram. Até ensaiou um sorriso. Jamais pensou em intencionalmente seduzir um homem pelo qual não tivesse real interesse romântico. Mas era o certo a fazer, pensou mais uma vez.Cerca de cinqüenta metros depois fez o retorno e passou a ajustar a velocidade, calculando o

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momento exato de alcançá-lo. Era imperativo que não houvesse ninguém próximo. Não foi difícil, poucos corredores disputavam a pista, a maioria dos atletas habituais descansava em suas casas, se preparando para a ceia de Natal. O momento chegou perto da colina no Jardim de Alah. Estava a uns três passos dele. Previu seis minutos até toparem com um corredor no sentido contrário. No seu encalço o próximo pedestre estava ainda a oito minutos de distância. Não deveriam perceber nada. Um casal ultrapassara correndo o seu alvo e já estaria cinco minutos à frente no momento do impacto, com um pouco de sorte nem notaria o evento.Ela saltou com a leveza de uma bailarina, e com a rapidez de um lutador de artes marciais tocou levemente a base de sua nuca. O movimento foi imperceptível para os distantes transeuntes. Quando ele caiu, cambaleando para a direita, ela o segurou completamente. Quem visse a cena de longe acreditaria estarem juntos. Ela se abaixou acompanhando a queda e amortecendo-a, ao mesmo tempo em que o conduzia, estendendo-o na grama próxima à calçada. O gramado formava um parque natural, repleto de coqueiros, separando a cidade e o mar naquele ponto do trajeto. Ali não era estranho encontrar casais namorando ao finai da tarde, o que colaborava com a farsa em andamento. Posicionou-se de modo a amparar a cabeça dele em sua coxa direita. A perna esquerda se estendia por baixo do corpo de Bruno, paralela à sua coluna vertebral, forçando-o a ficar de costas para o

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mar. Assim o corpo bloqueava a visão dos que estavam na pista de corrida para os eventos prestes a acontecer. Apesar do teatro bem elabo-rado, olhares curiosos dos que presenciaram o momento da queda apontavam para eles, exigindo dela todo o cuidado. Ela tirou a pistola da pochete e, com a mão esquerda, aproveitando-se do torso dele virado de lado, espetou a agulha comprida e extremamente fina na região das nádegas sob o short de nylon azul- claro e apertou o gatilho. A agulha rompeu o short, sem deixar vestígio, era fina demais. Escolheu as nádegas não só pela necessidade de injetar o composto via intramuscular, mas principalmente pela necessidade de que ele não percebesse a mínima marca da agulha. Segundo suas observações, ele não estava namorando ninguém, assim era pouco provável alguém notá-la antes que desaparecesse completamente. Embora fosse sentir o local dolorido, provavelmente deduziria ser decorrente da queda. Além do mais, as próximas horas seriam críticas e músculos doloridos seriam sua menor preocupação, ela imaginava.Ágil e cuidadosa, guardou a pistola e se acomodou, assumindo uma posição menos íntima ao seu lado. Em seguida tocou novamente nele, agora na têmpora. Embora pedestres no outro lado da rua mantivessem a atenção em sua direção, estava certa de que ninguém tivera tempo suficiente para suspeitar de nada. Alguns passantes mais próximos, em ambos os lados da pista de cooper, insinuaram se dirigir para o

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ponto onde estavam, provavelmente por curiosidade ou para oferecer ajuda. Felizmente, ao perceberem o rápido restabelecimento de Bruno, voltaram apressados ao seu itinerário original. Tudo se passou em menos de um minuto. Se alguém acompanhou a cena desde o início poderia achar estranho, mas quem iria suspeitar do que realmente aconteceu? Naquela civilização cada vez mais tentavam não se envolver em assuntos alheios. Era a sociedade do isolamento, pensou ela.Durante a breve conversa, seus olhos lhe chamaram a atenção, eram esverdeados, porém de um tom deveras incomum. Um verde-azeitona talvez. Não, não era bem isso, ela pensou. Ficou intrigada pela dificuldade em defini-los e precisou forçar-se a não fitá-los demasiadamente.Após deixá-lo no carro ficou segura do seu interesse nela. Interpretara bem o papel, deixando claro estar sozinha e mantendo a quantidade exata de mistério no ar. Não dar o número do seu telefone foi algo pensado de última hora e agora acreditava ter sido um golpe de mestre. Se ele não fosse ao encontro correria o risco de nunca mais vê-la, seria então pouco provável que adiasse, independentemente do motivo. A probabilidade de ele desejar mover a data do encontro era grande, considerando os efeitos colaterais à sua espera. Assim, qualquer ajuda seria útil. Sentiu-se mal por aquilo, contudo já estava acostumada a esconder em um cantinho os sentimentos e pensamentos relativos a algo impossível de se tratar em determinado

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momento. Sua sanidade nos últimos anos dependera dessa habilidade. Também imaginava que Bruno interpretasse o gesto como provocação, um charme dela, deixando-o ainda mais interessado. Se não funcionasse, daria um jeito de se encontrarem casualmente, provavelmente na pista de cooper na semana seguinte.Dando a tarefa por cumprida, encaminhou-se rapidamente para a Toyota Fielder enquanto expurgava os últimos pensamentos. No caminho para casa revisava mentalmente os próximos passos do plano. Iniciada a primeira fase, já não podia mais se dar ao luxo de reduzir o ritmo, o tempo se tornara seu inimigo.

4. Sedução

Bruno chegou às 20h46 e escolheu uma mesa encostada na parede de vidro, de onde se podia ver o mar. Construído na área de um antigo píer, metade do restaurante se projetava sobre o oceano. Posicionou-se de forma a ficar de frente à porta e contou os minutos enquanto a aguardava. Temendo uma recaída, preferia não beber, mas precisava criar um clima romântico. Escrutinou então o cardápio até encontrar um nome familiar. Sua pedida foi um Chianti Batasiolo. Em sua opinião mostrava certo conhecimento em vinhos, pedir um Chianti e, embora esse conhecimento não estivesse entre seus talentos, considerava-se um observador atento o suficiente para acreditar na aposta. Já

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havia provado e aprovado a garrafa quando cogitou a idéia de ela preferir o vinho branco. Sem outra opção, continuou apreciando a bebida, enamorando pelos ponteiros do relógio.Às 21h20 ela despontou no hall de entrada deixando-o de queixo caído. Usando um vestido preto bem leve, comprido até pouco abaixo dos joelhos, marcado por um decote acentuado, ela chamava atenção. Os sapatos altos, pretos, incrustados com minúsculos brilhantes nas tiras de couro, combinavam com a pulseira e um colar paralelo ao decote, terminando em um pingente em forma de gota, também repleto de brilhantes. O cabelo negro agora solto descia quase um palmo sobre as costas. A atmosfera a sua volta parecia ter paralisado por um instante.- Você veio - disse Bruno, sorrindo, disfarçando um pouco o encantamento e recobrando o ar.- Eu disse que viria - ela parou por um segundo e retribuiu com seu meio- sorriso, ignorando seu efeito sobre Bruno. Representando seu papel, ele se apressou em afastar a cadeira ajudando-a a se acomodar.- Um cavalheiro — Adrianna elogiou. — E então, mais alguma tontura?Em nenhuma hipótese descreveria como havia passado as últimas 24 horas.Entre o sentimento de pena e o medo de uma doença contagiosa, a noite certamente estaria fadada ao fracasso. Preferiu ousar, um elogio encontraria chances muito melhores frente à sensibilidade feminina.

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- Só quando você entrou — fez uma pausa proposital e em meio a um sorriso prosseguiu: - E tenho quase certeza de que não fui o único. Você é uma mulher muito bonita. - A palavra contida no pensamento fora "deslumbrante", contudo tomou cuidado para não exagerar logo no início do encontro, para não assustá-la. Mostrar demasiado interesse poderia estragar suas chances.- Obrigada — agradeceu, fingindo-se um pouco sem jeito, não muito.- Em relação ao susto da tarde passada, estou bem. Melhor agora, que posso retribuir a atenção.- Ah, então é isso que estamos fazendo? - provocou, enquanto sorria.- Também - ficou um pouco espantado, não esperava tanta franqueza, pelo menos não tão cedo. — Gosta de tinto? Se não gostar podemos beber outra coisa.- Gosto de tinto.Aquela altura Bruno já havia sinalizado ao garçom para começar a servi-la. O sorriso e a atenção exagerada dispensada por ele ao decote o irritaram, felizmente ela não percebeu, ou fingiu não perceber. Com requinte, ela degustou o vinho e, após uma pausa mínima, pareceu aprovar a escolha.- Muito bom - sentenciou, retomando em seguida o olhar para seu acompanhante. - E então, você trabalha com quê?Ele odiou falar naquilo logo no início do encontro, temia estragar suas chances. Nem todos

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aceitavam bem sua escolha.- Vivo de investimentos. Pode-se dizer que eu sou um trader individual da bolsa de valores. Basicamente compro e vendo ações cotidianamente - aguardou pela pergunta clássica.- Trabalha em alguma corretora?- Não, como disse sou um trader individual, só opero com meu próprio dinheiro — cada momento naquele assunto era uma provação. Aquela não era uma atividade comum, havia muito preconceito. Era mais fácil ser percebido como um jogador ou um aventureiro do que como um profissional sério.- Não é uma atividade com tradição no Brasil. Qual é a sua história? Como você foi sugado para o mundo dos investimentos e das especulações? - perguntou arregalando os olhos, dando glamour à área. Tentava deixá-lo confortável.Ela sorria ao falar, expondo os dentes branquíssimos e perfeitos. O nariz, nem pequeno nem grande, era de traço delicado. O maneio de cabeça e as expressões faciais a cada palavra iam compondo sua percepção. Era ainda mais bonita do que avaliara inicialmente.- É uma história chata, tem certeza de que quer ouvir? — Torcia por um não, porém já antecipava um sim.- Não posso ficar saindo com um desconhecido não é mesmo? Não pega bem - brincou.- Está certo, mas vou resumir. Sou formado em Processamento de Dados. Trabalhei alguns anos com desenvolvimento de software em São Paulo,

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mas depois de um tempo me desiludi. O Brasil não valoriza profissionais técnicos — ela balançava a cabeça em concordância, atenta à suas palavras. — Além disso, embora eu não fosse ruim, também não era excepcional. De um jeito ou de outro, não era para mim. Aí um amigo me convidou para trabalhar na filial de Salvador da Business Components System (BCS), uma multinacional conhecida, especializada na venda e implantação de sistemas computacionais, como gerente de Conta Corporativo. Fiquei na área de Vendas de Tecnologia por oito anos entre BCS e TelSys, uma multinacional da área de equipa-mentos de telecomunicações. No meio desse caminho cheguei a montar uma empresa em sociedade com um amigo, ele trabalhava e eu planejava. Quando cresceu um pouco precisei optar entre o emprego e o negócio. Como a sociedade já não ia muito bem, passamos a ter visões diferentes sobre o futuro, a decisão não foi difícil - em uma pausa para um gole de vinho sua mente vagou momentaneamente pelas lembranças daqueles dias. — Por uma ironia do destino, pouco tempo depois houve uma reestruturação e precisei decidir entre ser transferido para o Rio de Janeiro ou sair da empresa. Sempre gostei da área de investimentos e naquela época já operava na bolsa fazendo malabarismos com meu tempo livre inexistente. Então pedi demissão, peguei as economias e mergulhei de vez no mercado de capitais. Isso já faz três anos - omitiu propositadamente tanto a morte quanto a

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herança do pai. Não precisava de um assunto triste naquele momento. — E é só isso aí... Pelo menos a versão curta.- Não é pouca coisa — falou em meio a um sorriso.Ela quase não tocava no couvert, mas quando o fazia era com classe e delicadeza, expondo uma educação refinada, sem exageros.- Não é tanto assim vai.- Sua empresa fazia o quê?- A gente instalava redes de computadores e cabeamento estruturado.- Sempre na área de tecnologia então?- Sempre. Acho que está no meu DNA.- Pelo jeito você segue mesmo o que diz.- Como?- Na praia... Você mencionou algo sobre perseguir sempre aquilo em que se acredita, mesmo à custa de grandes mudanças, não foi?- É. Sou movido por isto, pela busca da felicidade - olhou intensamente para ela deixando transparecer suas intenções.Por alguns segundos, ela devolveu o olhar, tempo suficiente para enchê-lo de esperanças, todavia evitou sorrir para não deixá-lo excessivamente confiante. Desviou então os olhos e tomou um gole do vinho.- Mas e você? Quais são seus interesses? — aproveitou para se esquivar do assunto. Preferia não detalhar seu currículo. Não tinha vergonha de nada, contudo não era particularmente orgulhoso de nenhuma de suas realizações.

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- Formei-me em Biologia e me especializei em Biologia Molecular com ênfase em um ramo novo chamado nanotecnologia biológica.- Uau! Eu confesso que nem sabia que isso existia. Onde estudou?- Oxford.Foi de certa forma um banho de água fria em Bruno. Ela era boa demais, não teria a menor chance de conquistar uma mulher com aquelas credenciais. Provavelmente nem ficaria muito tempo no Brasil.- Mas você é brasileira?- Na realidade sou angolana, mas vivi minha infância no Brasil - precisava de uma história difícil de ser averiguada e, além disso, os passaportes angolanos eram fáceis de falsificar, caso precisasse. - Consegui uma bolsa de estudos em Oxford através de amigos do meu pai e trabalhei em um centro de pesquisas em Londres por muito tempo, até ele adoecer.- Aí você foi morar com ele em Brasília?- Isso. Acabei ficando lá quase um ano e precisei interromper minha carreira em Londres. Câncer de pulmão - soltou furtivamente as palavras, ciente de seu efeito em Bruno.- Nossa, sinto muito. Meu pai também faleceu de câncer de pulmão. - Por um momento se lembrou do sofrimento, dos tratamentos longos e de pouca eficácia e se sentiu mais conectado a ela. Talvez tivesse alguma chance, afinal o sofrimento nivelava a todos.- Vamos falar de coisas alegres. Que tal pedirmos?

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Ele concordou imediatamente. Ela aceitou sua dica de lagosta ao limão siciliano e acabaram saboreando os dois o mesmo prato.- Seus olhos... São de um verde muito escuro, diferente... - Acabara de perceber que pronunciou as palavras sob o efeito da lembrança de outra pessoa. Talvez não fossem iguais, mas sem dúvida eram parecidos.- É verdade. Não são muito comuns. Sua cor é quase um verde-musgo - ele respondeu em meio a um leve sorriso repleto de autoconfiança.Já ela sorriu movida por outra motivação, estava verdadeiramente encabulada. Sem intenção havia demonstrado o quanto os achara bonitos. Seu primeiro instinto foi reagir de forma refratária, contudo conseguiu se conter e resolveu pela ambigüidade. A dúvida era o combustível da sedução.- Na minha especialidade a atenção ao incomum é um vício. No processo de pesquisa o resultado esperado, perfeito, é sempre suspeito. Procuramos constantemente por diferenças sutis entre amostras para caracterizar os efeitos de cada teste de forma única. O inesperado é sempre rico em necessidade de estudo e em possibilidades - as palavras escolhidas eram técnicas e distantes, mas foram ditas de forma pausada e com uma expressão facial carregada de dubiedade. Tentava se mostrar atraída e, pela reação dele, estava funcionando.A noite seguiu em um crescente. Olhares cada vez mais significativos e mais freqüentes. Aos poucos Bruno ganhava confiança em suas

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possibilidades. Como ele, ela gostava de vinhos e do mar, de se exercitar e de ciência. Ele falou dos livros e filmes preferidos, ela ouvia atenta limitando seus próprios comentários até mencionarem o interesse comum por documentários.-Assisti a um muito interessante na semana passada sobre física. Explicava a teoria das cordas, string theory. Talvez já conheça, mas para mim foi novidade. Achei fascinante.— Na realidade não conheço, do que se trata?— É uma teoria matemática que explica de forma única tanto as forças gravitacionais quanto eletromagnéticas e atômicas. Aparentemente, existem contradições físicas entre as leis que explicam separadamente esses fenômenos.— Que tipo de contradições?— Um bom exemplo é um buraco negro...— Uma massa gigantesca concentrada em um espaço minúsculo exercendo forças gravitacionais enormes a sua volta, sugando tudo, inclusive a luz - ele a interrompeu em um esforço para se mostrar culto.— Isso mesmo — Adrianna despejou uma pitada de sal na mesa e depositou o saleiro ao lado. — Imagine um planeta - apontava para o saleiro — e um átomo - apanhou um grão de sal entre os dedos. - A lei da gravidade, ou melhor, a Teoria da Relatividade de Einstein, que avançou mais do que Newton no assunto, se aplica bem a corpos grandes — segurou o saleiro com a mão esquerda. - Enquanto as forças atômicas, presentes e bem explicadas no átomo, se

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aplicam perfeitamente a corpos microscópicos - exibia o grão de sal nos dedos da mão direita. - No caso do buraco negro, qual das duas leis deve-se aplicar? Se a equação não é única, algo está errado — recolocou o saleiro na mesa e esfregou os dedos, se livrando do sal.— Entendo - Bruno concluiu, sem muito entusiasmo. - Estranho eu nunca ter ouvido falar nesta teoria das cordas.— A questão é que ela ainda não foi provada fisicamente e talvez nunca seja. Segundo ela, toda a matéria é formada de cordas de energia vibrantes, provavelmente fechadas. Cada tipo de vibração da string representaria uma matéria distinta, como um violino ao ser tocado, fazendo as cordas vibrarem de formas diversas e emitindo sons diferentes. No violino cada vibração produz um som, na teoria das cordas, cada vibração produziria um componente díspar do nosso universo.— Fascinante realmente, mas por que não poderia ser provado?— As cordas são pequenas demais, não temos tecnologia para percebê-las - ela se interrompeu por um instante com uma expressão de curiosidade no rosto. — Você não está achando muito interessante não é?- Não, é muita informação, só isso - sorriu ao responder. Achava interessante, mas, na verdade, nem tanto.- Vamos fazer o seguinte. Depois você faz uma pesquisa rápida na internet e me diz se achou

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interessante ou não. Aposto que vai descobrir algumas coisas incríveis - provocou.— Combinado — ela não parecia chateada, logo achou seguro mudar de tema para algo menos árido.A noite se estendia tranqüila e Bruno já não sabia se ela estava ou não interessada, razão pela qual decidiu ser mais incisivo. Enquanto tomavam um licor ele resolveu dar um passo à frente. Normalmente tentaria beijar sua acompanhante para acelerar as coisas, naquele caso, contudo preferia não se arriscar. Estava à procura de algo mais e, tecnicamente, acabaram de se conhecer. Se ela se assustasse ele nem tinha seu telefone, dessa forma avançou com cautela.- Gostaria muito de te ver novamente amanhã - falou olhando direto no azul profundo dos seus olhos.— Gosto de homens decididos — respondeu, sorrindo. — Que tal um almoço no Bahia Internacional na Barra?— Ótima escolha. Posso te pegar em casa?Ela concordou e lhe deu o endereço. Trocaram também os números dos celulares. No momento de registrá-lo ele perguntou o sobrenome de Adrianna. Era Modrin. Ele fez questão de pagar a conta. Despediram-se quando ela pegou o carro com o manobrista. Foram dois beijos, um em cada face, como era comum entre amigos. Tentando deixar claras suas intenções ele demorou o mais que pôde em cada face, tomando o cuidado de não romper o limite do constrangimento.

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Quando a Fielder sumiu de vista, ele teve vontade de pular, de dar gritos de alegria. Fechou os olhos para esquecer a platéia que também esperava pacientemente por seus carros e soltou um yes em tom baixo, acompanhado do gesto característico com o braço direito.

5. Traumas

A seqüência de disparos e gritos alarmou-a a ponto de quase deixar cair o composto Alpha11, Onan estava tão surpreso quanto ela. Foram apenas alguns segundos entre o susto inicial e a porta do laboratório se abrir permitindo a entrada de seus algozes. Eram três, dois rostos conhecidos e um soldado, todos armados. Ao cruzarem os olhos ela percebeu a surpresa de Kerligan, provavelmente não previa sua presença, ela não era parte da equipe daquele laboratório. A porta automática fechou atrás dele permitindo de relance a visão de outros soldados do lado de fora, guardando a entrada. Adrianna abria a boca para protestar quando ouviu a voz de Onan.— Não faça isso, pelo amor de Deus! - falou movendo-se em direção a Kerligan, a raiva desenhada em suas feições.O tom de desespero sugeria um conhecimento prévio das intenções do grupo. Aquilo de certa forma não pareceu surpreender Kerligan. Eles se encararam por um breve momento, parados a menos de dois metros um do outro. Onan nunca

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obteve resposta. Sem alterar sua expressão impassível, Kerligan fez um movimento rápido e disparou sua arma atingindo a perna direita do cientista. Adrianna gritou ao assistir seu mentor sucumbir à dor e ao próprio peso. Lançou-se ao chão em socorro do amigo dedicando apenas um segundo para, com o ódio refletido em seus olhos, gritar a plenos pulmões:— Você é um monstro!Kerligan não se deu ao trabalho de olhar para trás. Dirigia-se ao outro lado do laboratório, ignorando completamente o insulto.-Todos para este canto, agora! - MJ gritava ao apontar para o lado esquerdo da grande sala, com a outra mão disparava sua arma para o teto.Referia-se aos seis outros cientistas presentes, e não a ela e Onan. Aparentemente Kerligan havia orientado o terceiro homem para vigiá-los. Os cientistas em pânico moveram-se rapidamente em meio a apelos dramáticos por suas vidas. Adrianna arrastou Onan alguns metros na direção oposta a do grupo, para longe da porta, tentando tirá-lo do caminho de um possível confronto. A ajuda deveria atingir aquele ponto em breve. Ele não parecia estar sofrendo, apenas em estado de choque. Retirou o próprio jaleco, dobrou-o e o inseriu como um travesseiro sob a cabeça do amigo ferido. Posicionava-se para examinar o ferimento quando ouviu a terrível seqüência de disparos. Horrorizada presenciou os últimos gritos dos colegas e amigos assassinados a sangue frio e mais uma vez ela mesma gritou, agora com lágrimas nos olhos.

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— Nãããoooo!Ao se levantar bruscamente percebeu a arma do soldado em sua têmpora. Não sabia quem fora o autor dos disparos e isso não tinha importância. Do seu ponto de vista o culpado da chacina era o líder dos terroristas, Kerligan. Naquele momento não havia ninguém no mundo a quem odiasse mais.— Adrianna. Ajude-me!Onan chamava por ela. Apoiando-se em uma cadeira próxima tentava se levantar e precisava de seu apoio. Neste momento o barulho atrás da porta se intensificou, o bloqueio inimigo parecia estar prestes a ceder. Aproveitando a distração do soldado, ela desconsiderou o perigo e agarrou na prateleira a sua frente o troféu mais próximo. Grudada em uma base quadrada, de mármore negro, identificada por uma placa prateada, a representação de um átomo forjado em platina tornava o objeto uma arma improvável. Fora o maior prêmio já recebido pelo laboratório. O soldado havia desviado o olhar dos reféns por apenas alguns segundos para se certificar da integridade da porta. Ao retornar sua atenção foi surpreendido pelo violento impacto na têmpora. Antes de apagar completamente, seus reflexos dispararam a pistola.— Háááá!Ao se virar, percebeu aterrorizada o amigo desabando sobre sua própria mesa, o sangue escorrendo em seu peito. Correu imediatamente em seu auxílio.

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— Me desculpe... - Seu olhar era de desespero, as lágrimas escorrendo descontroladas.— Não, você agiu certo. - Onan já não era mais uma criança e precisou reunir todas as forças para, apoiado nela, se levantar.— Você precisa se deitar, deixe-me olhar este ferimento.— Não! — ele falou em tom grave e imperativo cambaleando até o controle principal do maior aparato da sala, a razão de existir de todo aquele complexo. Com uma mão cobria o ferimento na parte superior do peito, próximo ao ombro esquerdo, tentando estancar a perda de sangue. — Veja! — movia o braço direito em arco, apontando para toda a extensão da sala.Kerligan e MJ haviam fugido na confusão. Os dois eram as únicas pessoas vivas ali. Confusa e atordoada pelos eventos, de súbito ela imaginou outra hipótese. A guerra continuava no lado de fora da porta, chamando sua atenção, a qualquer momento podiam ser invadidos novamente, por amigos ou inimigos.— Preciso lhe contar algo muito importante, Adrianna. Um segredo mantido a sete chaves pelo conselho. Kerligan teve acesso a estas informações — com um esforço patente ele tomou ar e prosseguiu ofegante. — Eu sei o que ele vai tentar, se conseguir será catastrófico, precisa ser impedido a qualquer custo... Ele não entende as ramificações. Elas podem se estender além dos limites da Terra. Estamos lidando com o desconhecido, as conseqüências são

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imprevisíveis! - denunciando seu nervosismo, o braço livre brandia acompanhando as palavras.Foi interrompido pelo som do alarme vindo do equipamento. No monitor um sinal vermelho piscante deixou-o apavorado. Ela nunca o vira daquela forma. Mesmo frente aos maiores desafios e às situações mais complexas ele sempre mantivera a calma, primando pela racionalidade. O homem a sua frente estava completamente desesperado.- Não há mais tempo - o sangue escorria sob suas vestes e o suor pingava de seu rosto quando se virou para ela. Os olhos arregalados.— Você precisa contê-lo, impedi-lo, não tem mais ninguém. Não tenho tempo para explicar, só temos vinte segundos. Acredite em mim, não tem outra opção. Confie em mim — ele segurava firme no braço dela. Sentindo sua hesitação, ele foi enfático. - Vá agora! — ele gritou.Em um microssegundo uma infinidade de pensamentos inundou sua mente. Sem mais tempo, só uma idéia lhe sobreveio. Agarrou a sacola térmica, a alguns passos de distância, onde estavam armazenadas as ampolas do Alpha11 e subiu correndo os lances de escada até o topo. A medida em que alcançava o patamar final seu coração acelerava. No último degrau, sobre o piso forrado de mármore, as duas torres cobertas por gesso esculpido reproduziam o estilo de civilizações ancestrais. Sempre achara magnífica a mistura do antigo com a mais moderna tecnologia. Agora, ao se aproximar velozmente da distância de cinco

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metros separando os pilares, o músculo em seu peito ameaçava explodir, estava em pânico.

Acordou completamente banhada em suor, como sempre. O mesmo sonho mais uma vez. Racionalmente confiava no poder curador do tempo, dali a alguns anos não sofreria mais daquela lembrança. Já suas emoções pareciam minar as bases da esperança, levando-a a duvidar da lógica e temer estar presa para sempre aos pesadelos. Não havia mais sentido em tentar dormir. Era inútil. Levantou-se e iniciou mais cedo o dia, certamente não lhe faltaria trabalho.

A INCERTEZA E A DECISÃO

Em 1968, ao buscar uma equação que explicasse a Força Nuclear Forte, um físico se deparou com algo diferente. A equação representava uma "corda vibrante". Daí surgiu a Teoria das Cordas ou String Theory. Envolta em anomalias matemáticas ela ganhou musculatura em 1984, quando foram resolvidas. A teoria explicava todas as forças do universo sob um mesmo conjunto de equações. Infelizmente, havia cinco versões dessa "teoria do tudo". Em 1995 as teorias foram unificadas, foi demonstrado serem apenas cinco formas de visualizar uma equação mestra, tal como acontece em uma sala de espelhos. Essa unificação foi chamada por seu descobridor de M-Theory. Se a teoria for

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verdadeira, além de explicar todas as forças conhecidas da natureza, ela revelará uma realidade chocante. Matematicamente ela comprova a existência de não apenas quatro dimensões, três para o espaço e outra para o tempo, mas também sete outras dimensões desconhecidas. A teoria ainda não foi provada.

6. Rotinas

No sábado, ao acordar, Bruno assumiu sua rotina normal. Depois do banho e de um suco como café da manhã se conectou à internet para checar as notícias nos jornais. Não assinava jornais impressos, seu mundo era virtual. Só as notícias de sempre, sobre o Natal em cada canto do mundo e, presença constante desde meados do ano, a crise financeira. Pensou que em um fim de semana, após o feriado mais importante no país, dariam menos atenção ao mercado financeiro. Contudo, estavam lá: reunião de emergência do G8, novo olano de incentivos à construção civil nos Estados Unidos, apelo ao consumo pelo presidente do Brasil - como se aquilo fizesse alguma diferença, ele pensou — nacionalização de algum banco na Finlândia — achava que todos já estavam nacionalizados lá — enfim "o mundo estava acabando", era "pior que a crise de 1929", e outros potenciais exageros. Achava aquelas comparações inúteis, eram mundos e séculos diferentes, logo as conseqüências dos problemas e as prováveis soluções também.

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Ao finalizar a leitura pensou em começar a análise das cerca de 60 ações que acompanhava cotidianamente e através das quais ganhava seu sustento. Comprava e vendia papéis de empresas cotadas em bolsa de valores tentando conseguir lucro com a diferença de preços nos dois momentos. Realizava operações classificadas como swing trade, ou seja, permanecia com o ativo em custódia por um intervalo de tempo variável, de uma semana a um mês. Gostava de usar os fins de semana para se aprofundar nas análises. Naquele dia, porém, não estava conseguindo se concentrar. Estava inquieto, sentindo-se hiperativo. Ocorreu-lhe a idéia de correr um pouco, liberar a energia. A vontade de se exercitar cresceu rapidamente, não havia corrido no dia anterior e seu corpo parecia necessitar de atividade. Não se sentia assim fazia algum tempo.Como sempre, foi para o Jardim dos Namorados. Ao chegar se alongou e começou a corrida, primeiro andando por alguns minutos e depois acelerando. Fez o percurso habitual, seguindo em direção ao Jardim de Alah. Às 8h30 o sol já estava forte. O verão em Salvador era inclemente e enchia as praias de turistas. Arrependeu-se por não ter trazido um boné ou, pelo menos, ter passado um protetor solar. Trinta minutos depois não estava nem um pouco cansado, ficou feliz ao constatar que o vírus não o havia debilitado. Resolveu retornar em passo acelerado. Chegou ao ponto de partida apenas quinze minutos depois e ficou impressionado

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consigo mesmo, principalmente pelo fato de quase não ter transpirado. Imaginava estar sob um calor de 37°C, um a mais ou a menos. Mesmo assim preferiu não exagerar, aos 40 seu corpo não era o mesmo dos 20 e ele sabia disso. Optou por outro tipo de atividade. Foi ao parque situado no lado oposto ao restaurante instalado no meio da área de estacionamento resolvido a fazer alguns abdominais. Depois de quatro séries de 50 repetições não se sentia cansado, era parte de sua rotina normal durante a semana. Mas achou estranho ter sido capaz de executar quatro séries de 30 repetições de barras e apoios sem nenhum sinal de exaustão ou mesmo suor. Embora malhasse em média três vezes por semana não estava tão em forma assim. Talvez o encontro com Adrianna o estivesse influenciando, afinal já estava começando o que chamava de "síndrome de pavão", tentar parecer melhor do que realmente era para impressionar uma garota, era assim em todo início de relacionamento. Cogitou seguir para a academia, mas ao checar o relógio se surpreendeu. Excedera em muito o tempo usual dedicado ao físico.Decidiu então ir para casa se preparar para o almoço com Adrianna. Embora ainda fossem 10h queria ligar para sua mãe e Natan ainda pela manhã. Pretendia também sair para pegá-la com antecedência, temia ter dificuldade de encontrar o prédio e não gostaria de se atrasar. Detestava atrasos.

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Às 11h30, já estava pronto. Optara por uma bermuda longa de tecido azul- escuro, tênis e uma camisa de malha branca, gola polo, com detalhes em rosa. O dia ensolarado sugeria a parte descoberta do restaurante. Lá, protegidos do sol por duas árvores frondosas, teriam a maravilhosa vista da Bahia de Todos os Santos a seus pés e a brisa do mar para refrescá-los. Embora Salvador contasse com uma temperatura elevadíssima por todo o verão, a brisa constante tornava a sensação térmica agradável se não se expusessem diretamente ao sol por muito tempo. A cidade não era considerada um paraíso turístico à toa.Como ainda era cedo resolveu varrer alguns sites de notícias para passar o tempo. Ao sentar em frente ao computador lembrou-se imediatamente do desafio de Adrianna e passou a pesquisar a tal "teoria das cordas". Na primeira busca simples milhares de respostas surgiram na tela. Escolheu um texto da Wikipédia e alguns vídeos. Fez uma leitura dinâmica do artigo confirmando os comentários de Adrianna na noite anterior. Aparentemente alguns físicos acreditavam que aquela teoria matemática poderia ser a "teoria do tudo", uma equação única para uma série de fenômenos diferentes, como eletromagnetismo e gravidade, porém ela não podia ser testada. A linguagem técnica tornava o assunto árido e se preparou para mentir sobre tê-lo achado interessante quando algo lhe chamou a atenção. Se confirmada, a teoria previa sete dimensões extras na natureza, além das três espaciais e do

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tempo. Não entendeu direito o significado prático daquilo, mas achou curioso.Resolveu tentar a sorte no próximo item pré-selecionado, um vídeo, repleto de imagens bastante didáticas, no qual um físico descrevia rapidamente a teoria com grande ênfase nas tais dimensões extras. Ressaltava que testes com um "supercolisor" de partículas poderiam confirmar a teoria, pelo menos parcialmente se entendeu bem, registrando a fuga de partículas para outras dimensões. Continuava a ter dificuldades em capturar completamente o sentido, a apresen-tação se aproximara bastante da ficção científica. Outras dimensões lembravam universos paralelos, embora isso não tenha sido claramente discutido no vídeo. O assunto era realmente intrigante, especialmente para os interessados em ciência e fãs de ficção científica.O segundo vídeo era uma montagem com imagens e textos sob uma música dramática de fundo, brincando com o assunto da luta entre as teorias comprovadas e a teoria das cordas. Considerou-o inútil e partiu para o terceiro. Seguia um formato parecido, porém sério, para resumir a teoria. Adicionava pouco ao que já havia entendido. O último vídeo da seleção inicial trazia a chancela da BBC e era audacioso a ponto de se intitular "universos paralelos". Proclamava logo no início a possibilidade física de existirem diversos universos em outras dimensões. Segundo concluiu ao final do programa, a chamada "Teoria-M", um refinamento da teoria das cordas, cumpria todos os requisitos de uma

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"teoria do tudo", exceto pelo detalhe de ainda não ser possível testá-la. Os cientistas entrevistados estavam confiantes na transposição desse obstáculo nos próximos anos. A teoria estipulava também, como resultado e parte inseparável, a presença de uma infinidade de universos paralelos associados à décima primeira dimensão. Essa seria como uma membrana nos separando dos outros universos.Bruno estava realmente impressionado, jamais pensara que existissem teorias reais sobre esse assunto. Imaginou que daria um belo filme. Ao checar o relógio do computador se assustou, quarenta e cinco minutos haviam passado. Se quisesse chegar na hora marcada precisava correr. Como já assimilara material suficiente e, felizmente concordara com Adrianna, apanhou as chaves do carro e seguiu apressado para o elevador.

Eram 9h, acordada desde as 5h, já havia checado pela internet o The New York Times e o Washington Post dos Estados Unidos; Times e Financial Times de Londres; Folha de S.Paulo e o Valor Econômico do Brasil e, para se manter atualizada com os assuntos locais, o A Tarde, de Salvador. Depois fez suas pesquisas rotineiras pelos mecanismos de busca utilizando os nomes e codinomes mais conhecidos. Mais um banco ameaçava pedir falência, agora o Staton Union. Ela bem sabia quem era um dos grandes acionistas daquele banco atualmente e não era difícil imaginar qual seria a próxima manchete.

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Era incrível como eles continuavam se movimentando e expandindo seus domínios todos os dias. Cada momento perdido dificultava sua missão, mas ela não podia pular etapas do processo, Bruno ainda não estava pronto. Se ela tivesse outras ampolas, se conseguisse sintetizar mais, talvez se sentisse melhor. Sabia que contar com apenas uma bala na agulha era muito risco, porém não havia alternativas. Mais uma vez a solução era soterrar suas angústias.Sentia também muitas saudades de casa. A essa altura já entendia quão mínimas eram suas probabilidades de conseguir retornar. Ela tomara a decisão que a conduziu até ali e arrependimentos não levariam a lugar algum.Saindo do escritório de paredes verde-água, de onde comandava as três telas contíguas de 20 polegadas que formavam a sofisticada interface de saída do computador de trabalho, se dirigiu para a sala. Olhou em volta, um apartamento repleto de janelas por todos os lados, foi sua única exigência estética para a corretora de imóveis. Ainda se alegrava com a vista mesmo tendo se passado quase seis meses. Um dos prédios mais modernos de Salvador, cobertura, alugada já com a mobília, uma decoração extremamente clean com a maioria dos móveis em combinação de madeira e mármore ou corino branco. Foi uma sorte. Nas paredes, substituíra os quadros por telas de plasma ou cristal líquido com molduras brancas, todas interligadas à rede de cinco computadores da casa e à entrada de TV a cabo através de um servidor específico.

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Tudo comandado por um netbook mínimo através da rede sem fio cujo alcance se estendia por todos os recintos. As imagens das redes de notícias sendo exibidas eram facilmente comutadas por imagens de Van Gogh, Monet, Claude Lorrain, Manet e outros artistas famosos. Apesar de, na opinião dela, o arranjo ter ficado bonito, seu objetivo maior era a praticidade, não a decoração.Do bairro do Horto Florestal, área nobre da cidade, no alto do seu 22o andar, conseguia ver o oceano através de quase todas as janelas. Apreciava muito tudo que a lembrava de sua terra natal, e a linha do horizonte era uma delas. Cogitava ter sido a extensão de seu litoral um dos motivos de Onan ter escolhido aquela cidade tão pouco desenvolvida em relação a outras partes do mundo. Após conhecê-la melhor, considerou também se ele não se encantara pela rara mistura ali representada. Um misto de sistema social provinciano, permitindo ainda a criação de relacionamentos humanos baseados no interesse puro e genuíno pelo próximo e comunidade desenvolvida em diversas áreas do conhecimento com oportunidade de acesso às melhores tecnologias de seu tempo.- Desde que tivesse dinheiro - repetiu para si mesma.Um conjunto sui generis no qual a cultura popular nativa, pujante em música e dança, impregnava o cotidiano e convivia perfeitamente com os diversos níveis de sofisticação da sociedade, em um pedaço de terra cercado e costurado por uma

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natureza magnífica repleta de verde, praias e mar.Talvez fosse Onan de quem mais sentisse a ausência. Ao sair da faculdade, seus pais já mortos, ela lutava para se manter e ainda perseguir seu sonho: deixar sua marca na história, fazer da sua paixão, a ciência, uma ferramenta de reconstrução de uma sociedade condenada por seus erros. Onan percebeu seu potencial, viu o brilho em seus olhos, acreditou nela. Financiou parte de sua formação sem que ela mesma soubesse, fazendo-a acreditar ter conquistado uma bolsa de estudos por pura sorte. Colocou-a sob sua asa direita quando a levou para o centro de pesquisas avançadas Excelcius. Era consciente do privilégio de aprender com uma das mais prestigiosas mentes do século. Era como um pai para ela e por isso não podia decepcioná-lo após aceitar a missão. Embora a tarefa representasse abandonar todos os seus sonhos, não teve realmente opção. Entre a gratidão, a confiança em seu mentor, e o estado de desespero sublinhado em seu pedido, seus instintos e seu raciocínio apontavam para o mesmo sentido e direção.Chegara a cogitar, em seus momentos mais difíceis, a possibilidade de viver ali esquecendo todo o passado. Usando suas habilidades certamente garantiria uma vida boa e farta. Contudo, embora a hipótese fosse sedutora e se sentisse péssima pelo risco inerente a suas ações infligido a Bruno, não podia desistir, imaginava as conseqüências se o fizesse. Respirou fundo e

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sacudiu de leve a cabeça enquanto fechava os olhos, lutando para afastar aqueles pensamentos. Agora precisava se organizar e colocar a próxima parte do plano em ação. O planejamento era simples, mas deveria ser executado com perfeição.

7. Donzela em perigo

Bonito, imponente e dotado de toda a segurança própria dos edifícios daquele porte, o prédio causou em Bruno uma boa impressão. Da guarita de entrada até a pequena fonte à frente do saguão principal formavam-se fileiras de vagas de estacionamento em ambos os lados. Imaginava ter espaço para cinqüenta carros, pelo menos. Ela fizera questão que esperasse no saguão, por precaução, ele supôs, afinal ainda era praticamente um desconhecido. Já havia dado um passo adiante ao permitir que soubesse onde morava e sendo nova na cidade, era natural impor certos limites a favor da segurança. Em sua avaliação o período da sedução estava indo bem, suas chances progrediam a cada dia. Ele não gostava mais de apressar as coisas, também era cuidadoso, mas por outros motivos. Não tinha mais interesse em flertes, buscava alguém com quem pudesse trocar idéias, cujo convívio lhe inspirasse a ser uma pessoa melhor e ao mesmo tempo ampliasse seus horizontes. A despeito da constante tentativa de projetar equilíbrio e satisfação frente aos amigos, precisava encontrar uma nova motivação para sua vida e uma paixão

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sempre imprimia filtros coloridos ao olhar, pintando de entusiasmo o novo e renovando o espírito.Estava no banco do motorista, ainda no estacionamento, quando a avistou. Instantaneamente, incapaz de se conter, teve consciência da transformação em seu próprio semblante. Ela era um espetáculo; inteligentíssima, atualizada, segura de si, mas, sobretudo, parecia haver uma aura de encantamento envolvendo seu corpo. Vestia um shortinho vermelho de comprimento perfeito, não chegava a exibir demais enquanto cumpria seu papel e atiçava a curiosidade, uma blusa estampada com o branco predominando, de tecido leve, tremulando levemente sobre o corpo, formando um decote imaginário e sedutor. Era o retrato da simplicidade e ainda assim parecia uma deusa se elevando sobre os mortais. Talvez o segredo estivesse no jeito de andar, como que pisando em nuvens, tranqüila e poderosa como um felino, de uma agilidade surreal a ponto de parecer desprendida da gravidade. Ou talvez a magia estivesse nos olhos, no porte, na expressão altiva de quem mantém tudo sob controle. Simplesmente fugia de sua compreensão.— Bom dia! — disse ele, enquanto ela entrava no carro.— Lindo dia mesmo, não? — ela respondeu, sorrindo, enquanto trocavam beijos de cumprimento no rosto, dois, como era costume em Salvador.

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— Dormiu bem?- Maravilhosamente e você?- Sonhando com os anjos - de fato ele sonhara com ela. O caráter sensual do sonho o impedia de descrevê-lo. Nesse ponto do relacionamento, ou da falta dele, optava por não revelar o quanto estava interessado.- Desculpe-me por ter marcado nesse horário, morando sozinha me acostumei a almoçar cedo, sei que é meio antissocial. — Na verdade marcara propositalmente de acordo com as preferências dele.- Que nada... Eu prefiro assim, também me acostumei a almoçar cedo, dessa forma acabo comendo menos naturalmente e não preciso limitar minhas opções. Detesto regime.- Parece que está dando certo, você está em forma.Bruno delirou em silêncio com o elogio. Já estava se sentindo um adolescente e odiava isso, mas era inevitável, sempre foi assim.- Obrigado, mas ainda tenho uns pneuzinhos que me tiram do sério.- Estes são os mais difíceis.- Você malha?- Na realidade já malhei muito, mas não ultimamente. À exceção das corridas no Jardim dos Namorados.Ele teve vontade de marcar para fazerem cooper juntos, mas conteve-se, poderia estar forçando a corda, afinal ainda estavam no segundo encontro.- Quer que eu ligue o rádio? - ele perguntou.

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- Se não se importar prefiro conversar sem música — ela respondeu, intuindo ser aquela a opção desejada por ele. Fez a escolha com o único propósito de deixá-lo à vontade.Como Bruno realmente não gostava de conversar competindo com uma música de fundo, considerou a escolha dela mais um sinal de compatibilidade. A mulher estava ficando cada vez mais perfeita segundo seus critérios, até boa demais para ser verdade.- Não consigo deixar de me maravilhar com este mar — ela divagou em voz alta quando alcançaram a orla. O sol, mais luminoso do que quente, deitava seus reflexos sobre as ondulações decorando de brilhantes a superfície do oceano.- É a vista da cidade que mais gosto. Principalmente na descida da Contorno - avenida que liga as partes alta e baixa da cidade. - A visão da ilha de Itaparica e da marina chega a ser intoxicante ao pôr do sol. A luz já branda, dançando no mar enquanto os barcos passam, contrastando com o céu rajado em tons de vermelho... Tenho sempre vontade de parar e tirar uma foto.- Podemos marcar a próxima em algum restaurante por lá, assim você me mostra.Ela já contava com um próximo encontro, isso era excelente — ele refletiu.- Você nunca viu?- Claro que já, mas depois dessa descrição tão apaixonada gostaria de ver com novos olhos... E fazer uma foto, é claro — sorria, brincando.

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- Agora fiquei sem graça, exagerei não é mesmo?- Não, de jeito nenhum. Gostei do jeito que você falou... Mesmo.- Então está combinado — já encostava o carro próximo à calçada quando terminou a frase. - Chegamos.Era um restaurante no bairro da Barra, mais exatamente no Porto da Barra, cujo ambiente e a culinária ele apreciava bastante. O cardápio era variado e de bom gosto e podiam comer de frente para o mar, ideal em um dia tão bonito e não tão quente. Estacionara em frente, na vaga reservada aos manobristas, entregou as chaves para o rapaz imaginando como devia estar quente naquela farda. Pegou o tíquete e deu a volta para encontrá-la. Embora a parte aberta do estabelecimento fosse visível, situava-se em um patamar dois metros acima do chão. Precisariam adentrar seis ou sete metros em um beco, por um calçamento de blocos marrom-tijolo para acessar, à esquerda, a entrada principal da casa. No lado direito outro restaurante, menos movimentado, limitava a viela.Quatro ou cinco passos o separavam dela, aguardando na entrada do beco, quando um rapaz aparentando uns 25 anos, branco, vestindo jeans e camiseta, suficientemente bem-vestido para ser um cliente do restaurante, agarrou a bolsa de Adrianna e disparou para a direita. Com o susto, um grito, mesmo contido, foi inevitável. Atônita, correu o olhar arregalado, inicialmente preso na bolsa lhe escapulindo das mãos, para

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Bruno. Embora assustada, não aparentava descontrole.Agindo por puro instinto, Bruno hesitou por um instante, depois correu para ela colocando-se em sua frente. Segurou seus braços tentando tranquilizá-la, olhou direto em seus olhos assumindo uma posição de comando da situação e falou de forma assertiva:- Espere no restaurante! - disse da forma mais rápida e clara que pôde, disparando em seguida na direção do assaltante.Logo percebeu o custo de sua hesitação. O rapaz tinha a dianteira e era bem rápido, já devia estar quinze metros a sua frente. Se chegasse à esquina, a uns cem metros de distância, daria em uma confluência de becos onde seria fácil despistar qualquer perseguidor. Bruno gritava: "ladrão, ladrão", mas a 13 horas não havia muita gente na calçada naquele sábado de feriado. O meliante começou a correr pela rua para evitar os poucos pedestres. Bruno percebeu que ele próprio estava correndo realmente rápido quando o alcançou em menos da metade da distância até a esquina. Agarrou a bolsa com a mão esquerda e puxou fazendo um cabo de guerra com o assaltante. Não queria forçar demais para não quebrar a bolsa. Então deu apenas um puxão um pouco mais forte e se preparou para desferir um murro na têmpora do bandido quando uma tontura inexplicável o acometeu. Forçado a reduzir o ritmo, manteve o punho esquerdo firme segurando a bolsa pela alça.

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Com o movimento o rapaz foi forçado a desacelerar abruptamente, cambaleou e bateu no carro estacionado no caminho ao seu lado. De relance Bruno estranhou seus olhos, eram vazios de emoção, inesperado para quem estava no meio de um assalto, a adrenalina correndo nas veias e o medo de ser pego percorrendo a mente. Na confusão, avistou alguns bons samaritanos se aproximarem correndo, largou a bolsa e acelerou em fuga, alcançando rapidamente a esquina.Bruno não teve forças para segui-lo, ainda se sentia zonzo. Apoiou-se no carro enquanto um senhor gordo de sunga e chinelo que atravessara a rua, vindo da balaustrada em frente ao mar, o abordou.- Conseguiu recuperar a bolsa — falou antes de perceber algo estranho em Bruno. — Está se sentindo bem?- Estou, foi só uma tontura. Obrigado. Forcei demais na corrida.Outros transeuntes, percebendo o final precoce do evento, desistiram de se aproximar.- Isso aqui já não é seguro há tempos — homem abria o braço esquerdo em arco, referindo-se à rua e ao bairro em que estavam. - Mas nesse horário? E um rapaz tão bem-vestido... É o fim do mundo mesmo.- Você viu? Realmente... - Bruno não conseguia associar a aparência do fugitivo ao roubo. Não combinavam. Porém, tinha consciência de conhecer muito pouco da natureza das pessoas envolvidas no mundo do crime.

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- Se quiser dar queixa vou com você na delegacia, mas não acho que valha muito a pena. Do jeito que anda a violência por aqui eles nem vão dar muita atenção a você, vai acabar se chateando ainda mais.- Com certeza, não vou perder meu tempo prestando queixa. De qualquer forma, obrigado. - Apertou a mão do cidadão e se afastou, caminhando em direção ao restaurante. O senhor ficou parado ainda algum tempo antes de atravessar novamente a rua em direção à praia, aparentemente avaliando se Bruno estava em condições de andar.Retornou para Adrianna feliz por ser o herói do dia, mas achando tudo muito esquisito, dentre outras coisas o fato de não estar sem fôlego, ou mesmo suado. E, embora a tontura tivesse passado, ela também não fazia nenhum sentido. Já havia experimentado no passado a sensação progressiva de tontura causada pelo excesso de exercício em conjunto com a falta de alimentação adequada. Aquilo, contudo, foi diferente, podia descrever como um "ataque", algo agudo que vem rápido, do nada, e vai embora quase tão rápido quanto.Os olhos dela se ascenderam quando ele adentrou o restaurante. O sorriso foi largo, temperado com um abraço apertado e um beijo forte no rosto. Bruno sentiu a pele queimando em torno de onde fora beijado mesmo alguns segun-dos depois dos lábios o deixarem. Nem ouviu direito as perguntas do porteiro, um gigante de quase dois metros, sobre o assalto. Respondeu

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no piloto automático, sem total consciência das palavras.- Se quiser podemos prestar queixa - apesar de ser contrário à idéia, não podia deixar de sugerir.- Se não se importar preferiria esquecer. Tenho dúvidas sobre a importância que o sistema policial daria ao caso. Provavelmente perderíamos nosso tempo.- Você leu meus pensamentos. Acha que ainda tem espírito para o almoço?- Tenho sim. Para ser sincera, estou precisando de uma bebida.- Somos dois — fez sinal para o maitre.Depois de conduzidos à mesa e propriamente acomodados, ambos pediram uma cerveja.

Apesar de Bruno não lhe contar sobre a tontura, ela vira tudo, ficara na calçada quase todo o tempo observando sua obra. A reação era esperada, este era o objetivo principal do teste, saber como seu corpo se comportaria. O pior cenário previsto era um desmaio e o melhor seria não ter sentido nada. Na opinião dela, o experimento estava indo muito bem.

Conforme o restaurante lotava, ele percebia os olhares masculinos sobre ela. Embora permanecesse alheia a esses movimentos, tampouco deixava claro o quanto se interessava por ele. Tomava inclusive o cuidado de nunca deixar a mão a seu alcance, de forma que ele pudesse tocá-la. Resolveu ser mais direto.

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- Sei que é um clichê, mas - e relutou por um instante decidindo, por fim, prosseguir — como uma mulher linda, inteligente e, obviamente de recursos, pode estar sozinha? Estou ficando maluco ou tenho realmente uma chance? — Bruno olhava firmemente para ela ao pronunciar as palavras.- Uau! Você é mesmo direto, não? Não sei se sou tudo isso - moveu a cabeça ajustando os cabelos à posição do vento e olhando de relance para as árvores que compunham a decoração do espaço externo onde estavam. Era uma pausa rápida, para criar expectativa. Ele interpretou como relutância da parte dela. - Acredito que era muito obcecada pelo trabalho. Não pensava muito em relacionamentos sérios.- Humm... Sei - notou a tentativa de "escapar pela tangente". Porém, estava decidido a não lhe dar essa chance. — Então: letra "a", tenho chance de ser um relacionamento não sério; "b", tenho chance se ser algo sério ou "c", eu não tenho chances? - Bruno incluiu um tom de brincadeira na pergunta tentando não tornar o momento sério demais. Ela retribuiu exibindo o charmoso meio-sorriso antes da resposta.- Claro que tem chances, você é o meu herói! - provocou. Em seguida assumiu uma postura mais séria. - Mas você vai ter que ser paciente comigo. Estou no meu período sabático, lembra? Vim para Salvador para me conhecer melhor, repensar meus projetos, não estava preparada para me ligar a ninguém. Preciso de tempo para entender quem sou hoje, quem é esta nova Adrianna. Não

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quero começar nada sem poder me mostrar por inteiro - disse aquilo com uma sinceridade que espantou a ela mesma. Talvez a verdade permeasse sempre a encenação nas boas performances e, pelo olhar dele, estava se revelando uma ótima atriz. O pensamento lhe transmitiu um sentimento incômodo, misto de fragilidade e vergonha.- Acho que vale a pena ser paciente, desde que passemos muito tempo juntos.- Estava torcendo para que você dissesse isso - os sorrisos trocados foram cúmplices.- Tem um dinheirinho pra eu comer, tia?A fala veio de um garoto maltrapilho aparentando uns 12 anos entre os vãos dos bancos que formavam uma espécie de balaustrada na ponta do restaurante, a uma mesa de distância deles. Como o piso era elevado em relação à rua, só o visualizavam do busto para cima. Era o suficiente para saberem se tratar de um garoto de rua. Se houvessem garçons no pátio naquela hora eles o afugentariam. Imediatamente Adrianna levantou, tirou algum dinheiro da bolsa e deu para o menino, que agradeceu e saiu correndo. Na volta seus olhos estavam mareados. Dessa vez não havia fingimento.- Com certeza vale a pena — ele disse, repetindo a fala anterior. Ela sorriu — Poucas pessoas ainda se emocionam com a pobreza e a desigualdade social — ele procurou manter a expressão alerta e atenta de forma a denotar sua admiração pelo gesto.

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- Sei que não resolve o problema, as esmolas não tiram as crianças das ruas e ainda podem estimular aproveitadores, mas não resisto... É tão triste... Tenho algumas idéias amadurecendo sobre como fazer alguma diferença real.- Quer falar sobre isso? — Ele gostou ainda mais dela. Junto à compaixão parecia ter uma consciência clara e madura sobre o assunto.- Agora não. E um assunto muito sério para esta hora do dia - ambos sorriram.- Você estava certa.- Sobre o quê?- A teoria das cordas. É realmente fascinante. Não imaginava que a ciência levasse a sério a possibilidade de outras dimensões e universos paralelos.- Você pesquisou? — a expressão dela deixou claro estar feliz pela confluência de interesses.- Eu sempre faço o que prometo.Trocaram algumas idéias e informações sobre o assunto por breves minutos até serem interrompidos pela chegada dos pratos principais. Depois do almoço tomaram licor, dividiram uma sobremesa, beberam mais licor e conversaram até o pôr do sol. Naquele final de tarde o astro se derretia sobre o mar em um suave mergulho, pintando a água de um amarelo-ouro brilhante e tingindo o céu de laranja vivo. Conforme as cores se igualavam, desaparecendo lentamente em um avermelhado escuro, todo o ar assumia um frescor úmido decretando o final do dia. A vista dali era maravilhosa.

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Conversaram sobre muitos assuntos, permanecendo mais tempo nos mais inusitados. Não falaram de cinema, de política, nem de trabalho. Optaram por temas mais densos, como sociedade e ética. Compartilhavam a mesma visão sobre a deterioração dos costumes e seu papel como catalisador dos problemas modernos. Para ambos a solução envolvia a união das famílias e a capacidade de prover educação de qualidade. Quando falaram de segurança pública, concordaram na necessidade da polícia ser vista como uma carreira desejada, disputada, e para isso precisavam de ótimos salários e melhor treinamento.Ela ficou verdadeiramente impressionada com o entrosamento de suas opiniões, principalmente considerando a natureza inovadora e polêmica de suas idéias. Pregava um novo sistema de ensino de oito horas por dia, com estímulo ao aprendizado de uma atividade profissional desde os 14 anos no próprio ambiente escolar. Propôs um modelo para que as prefeituras e governos pudessem sustentar educação e segurança de qualidade. Empresas de capital misto explorando o turismo na Bahia e outros estados do Nordeste. A criação de cidades em áreas ermas a exemplo de Brasília, contudo financiadas por empresas interessadas em fugir de megalópoles como São Paulo em troca de subsídios fiscais agressivos, acabando com a superpopulação nestes centros e os problemas decorrentes. Autossustentação de prisões por meio do trabalho dos presidiários com parte da remuneração sendo retida pelo

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Estado para os custos do encarceramento e parte liberada após sua soltura, ou entregue a um familiar designado.Foram debates acalorados e ele ficou fascinado. Gostava de pensar naqueles temas. Não concordou com tudo, achou boa parte inviável política ou economicamente, mas adorou o fervor de Adrianna ao discuti-los, sua fé na possibilidade da mudança, na capacidade de cada um em fazer a diferença.Falaram também sobre as artes, os pintores antigos, sobre o Louvre, sobre o Senna e o Tâmisa, sobre a Notre Damme, o Parlamento Inglês e a culinária espanhola. Mentalmente ele já programava as viagens, os dois saboreando juntos os quatro cantos do mundo.Ele tentou diversas vezes encontrar uma brecha para chegar mais perto, para ensaiar um beijo, mas ela era hábil, não deixava lacunas. Escapulia dos momentos românticos evocando temas sérios ou desmontava o clima com algum comen-tário levemente engraçado, tudo com a tranqüilidade de quem lê um script. Ela mantinha sua palavra, deixava-o se aproximar mostrando interesse, porém barrava qualquer confirmação da atração que, ele estava seguro, existia entre eles. O jogo de gato e rato se estendeu pelo caminho até o apartamento dela. Quando se aproximavam do prédio, ela lhe fez um convite irresistível.- Tenho um barco na marina. Não é muito grande, mas podíamos dar um passeio amanhã, isto é, se já não tiver outro compromisso.

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- Acho que posso dar um jeito — sorriu ante a possibilidade de um encontro sozinhos no mar. Era um presente. Também não pôde deixar de imaginar quanto dinheiro ela possuía. A frase: "Uau! Ela tem um barco!", ecoou em sua mente.- Às 11h então? Na Marina Sol?- Ótimo, não quer que eu te pegue?- Não, preciso resolver algumas coisas mais cedo então é melhor nos encontrarmos lá.Os detalhes da localização da embarcação foram passados e já estavam adentrando o pátio em frente ao edifício quando fitou o infinito azul que lhe pareciam seus olhos e disse:- Foi uma tarde inesquecível.- Para mim também - ela correspondeu - espero não estragar tudo fazendo você esperar.- Eu não vou a lugar algum - e se despediram.

Ao chegar em casa, Bruno resolveu não ceder aos apelos do sono. Caso dormisse àquela hora, quase 19h, certamente acordaria durante a madrugada. Nunca conseguira dormir muito e as insônias eram freqüentes. Sua mente sim-plesmente trabalhava demais, recusando-se a desligar. Depois de um banho prolongado lembrou-se de verificar os possíveis prejuízos da sexta-feira. Previra um dia fraco, sem volume financeiro em função do feriado, contudo previsões significavam muito pouco naquele negócio. Sentou à frente do computador, iniciou o Megaprofit, programa utilizado por ele para acompanhamento gráfico de ações, os programas de conexão com as corretoras onde

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possuía conta, e as planilhas de controle desenvolvidas por ele ao longo dos últimos anos. Como esperava o volume havia sido de apenas 846 milhões, frente à média de 2,8 bilhões dos últimos vinte e um dias. Mesmo assim, depois de uma queda de cinco dias a alta de 1,08% era bem-vinda, prenunciando uma recuperação em curto prazo. Partiu para a checagem do seu portfólio. Com apenas cerca de 30% de seu capital separado para renda variável em bolsa de valores investido no momento, distribuído em três empresas, ou "papéis" no vocabulário dos operadores, o trabalho era simples. Nenhum alarme disparara. Nem foi necessário reposicionar os stops e gains, pontos de venda automática caso a ação caia demais, ou atinja um objetivo de preço.Terminada a primeira parte do trabalho, decidiu recomeçar a análise abandonada pela manhã e deixar tudo preparado para a segunda-feira. Diligentemente escrutinou as, aproximadamente, 60 ações acompanhadas diariamente por ele, separando aquelas em que havia pontos de compra ou venda potenciais. Deu ainda mais atenção a esse subconjunto, calculando expectativas ae lucro e margem de perda aceitável em cada oportunidade. Anotou os preços que, se atingidos, disparariam o interesse de compra ou venda, conforme o caso, e as condições especiais capazes de fazê-lo mudar de idéia. Muitas vezes o baixo volume ou a alteração muito rápida dos preços de um ativo geravam desconfiança suficiente e ele retrocedia. "Na

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dúvida, desista", repetia continuamente para si mesmo. Apostava em uma alta na segunda e imaginava boas oportunidades de negócios confirmadas ao final do dia. Tudo pronto, percebeu o cansaço ganhando território. Fechou os programas deixando o computador ligado, como sempre, e foi se deitar, feliz pelo hoje e, especialmente, pela expectativa do amanhã. Naquela noite não teve insônia.

8. O fim da inocência

Estava consciente da importância daquele dia, caso algo desse errado, decretaria o fim de todas as esperanças. O ideal era não ser tão apressada, porém não via outra maneira a não ser seguir com o plano. Não havia como esperar, seu inimigo vinha agindo com uma rapidez impressionante, a cada dia o desafio se ampliava exponencialmente.Desta vez deveria ser mais cuidadosa, não podia permitir a hipótese de ser reconhecida. Para o roubo foi tudo muito fácil, bastara se encontrar com alguns garotos de programa catalogados na internet e selecionar o mais atlético para o trabalho. Não foi difícil encontrar um disposto a simular o furto em troca de uma compensação três vezes superior a de um programa convencional. Difícil foi encontrar um em quem ela confiasse para a tarefa, um que não fosse apenas pegar a primeira metade do dinheiro e fugir. Contava com sua capacidade de ler as pessoas, saber quando mentiam. Em um

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ambiente relativamente silencioso podia ouvir a pulsação acelerar, algumas alterações na expressão corporal os denunciavam, principalmente o movimento dos olhos. Quase todos em algum momento desviavam o olhar para cima ao mentir, formando imagens na mente, criando suas histórias. Ainda assim o esquema não era a prova de falhas. Podiam ficar doentes, se acidentar ou serem presos. No caso anterior havia margem para erro, agora isso não era mais aceitável. De um jeito ou de outro ao final do dia sua posição estaria comprometida e precisava ter certeza se valeria a pena revelar a verdade ou, pelo menos, parte dela. Embora perigoso, o teste era absolutamente necessário. Os reflexos seriam uma indicação crucial do quanto o cérebro fora afetado e não podia prosseguir sem esse dado, contudo, ainda mais importante era perceber como ele se portava sob pressão, quais instintos eram despertados. Precisava de um coração corajoso, capaz de se superar ante aos desafios, e de uma mente disposta a se recuperar rapidamente das surpresas frente à necessidade. Enfim, determinar a real natureza de sua alma. Apesar de complexo e arriscado, não pôde pensar em outra forma de avaliá-lo.Já havia feito contatos no submundo, delegados podres, juizes corruptos, chefes de gangues, sempre com o cuidado de usar testas de ferro temporários. Não podia deixar rastros ou chamar atenção, tudo era transitório. Era meticulosa a ponto de não possuir bens de grande valor em

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seu nome, tudo alugado, nada era comprado se fosse chamar atenção. Cem mil reais era seu limite para compras. Apelara para Ian Borges, um advogado de porta de cadeia que costumava defender traficantes medíocres, normalmente o terceiro ou quarto escalão do crime. Quando o encontrou tinha 55 anos, cabelo grisalho, barriga proeminente que se sobressaía mesmo em seus l,90m de altura e nenhuma auto-estima. Hoje, Ian possuía estabilidade, graças a ela, conseguiu manter a casa, quase perdida para o banco e comprara um Vectra usado. Em razão disso e pelos dois mil pagos mensalmente por ela, muitas vezes sem nenhuma tarefa a ser realizada, ele não fazia perguntas. Ian tinha filhos e os amava, mais um motivo para não ceder facilmente informações sobre ela. Sem aquela renda mensal a subsistência deles estaria em risco. Era um dos poucos peões que a conheciam pessoalmente. Se fosse coagido fisicamente seguramente contaria até da taxinha que colocara na cadeira do professor no jardim de infância, contudo isso de fato não a preocupava. Nesse caso, preferia mesmo que ele falasse rápido e não sofresse. Era este o motivo de ela ter tantas identidades. Quem a conhecia possuía informações sobre apenas uma delas. Para Ian ela era Adrianna Mattos, uma loura residente da Barra, que dirigia um Audi A3 e com um número de celular diferente do divulgado para Bruno. A casa na Barra existia, era alugada e mobiliada, mas nunca estivera lá, usava-a apenas como fachada quando conveniente. O carro alugado

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ficava permanentemente em um estacionamento pago, também na Barra. Ela confirmou os detalhes pelo telefone, reafirmando sua importância.- Adrianna, não posso garantir a segurança dos passageiros, você está disposta a correr este risco? Pelo amor de Deus! Você disse que vai ter uma mulher tá! Quero dizer, sei que não gosta de perguntas, mas me sinto na obrigação de confirmar.- Preciso do colar, Ian, e não posso admitir erros. Faça como o orientei. Garanta que eles abortem a ação em quinze minutos caso percebam que sejam incapazes de completá-la conforme planejado, e estará tudo bem. Eles podem usar força, porém não devem disparar as armas em hipótese nenhuma, não será necessário, não existirão armas no barco, eu garanto. Use três homens, entendeu bem?- Claro. Salvei a pele deles mais de uma vez. Não vão falhar em um trabalho tão fácil. Nunca faltaram com a palavra comigo.- Ótimo. Detestaria deixar de trabalhar com você - após a ameaça, desligou.Ian suou frio. Podia confiar neles até certo ponto, afinal eram bandidos.Embora precisassem realmente do dinheiro, apenas isso não era garantia de acesso. Seu medo era que pegassem a primeira parte do pagamento e sumissem. Preferiu se assegurar. Confirmaria com o segundo grupo, ficariam dois de cada gangue, quatro ao todo, não eram rivais, portanto não haveria problema. Pagaria a cada

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um individualmente e a mistura diminuiria as chances de darem para trás. Não se conheciam tão bem e isso dificultaria um acordo.

Bruno se levantou às 7h. Às 8h, horário de abertura no domingo, já estava na academia. Correu os trinta minutos habituais em ritmo levemente forçado. Não se cansou e não suou. Decidiu levar o frequencímetro para monitorar os batimentos cardíacos no próximo treino. Já sabia de cor, se estivesse na faixa de 150 batimentos por minuto estaria bem, poderia aumentar a velocidade ou aplicar inclinação à esteira. Aparentemente o joelho finalmente lhe dera uma trégua. Uma tendinite antiga o lembrava constantemente de suas limitações ao se esforçar além de determinado ponto. Naquela manhã ela não deu sinal de vida. Nunca transpirara muito, então foi fácil associar a parca sudorese ao forte ar-condicionado. As séries de musculação naquele dia eram com foco no tórax e braços. Conseguiu ampliar a carga em quase todos os equipamentos e ficou feliz. Nunca aumentava a carga demais em cada equipamento por vez, aos 40 precisava ser cuidadoso quanto a possíveis distensões musculares. Não seria a primeira vez que, ao se sentir confortável demais, forçava os músculos e se obrigava a ficar uma ou duas semanas sem malhar por conta de alguma pequena lesão.Às 10h15 já estava em casa, havia tomado banho, se arrumado e estava pronto para sair. Calculando uma folga de trinta minutos, sentou-

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se ao computador para ler o jornal. Na seqüência passou para as notícias do mercado financeiro. Usava um site gratuito bem razoável na opinião dele. Além da agenda da semana, listando datas e horários dos indicadores financeiros nacionais e internacionais relevantes a serem divulgados e do cronograma de resultados trimestrais de empresas brasileiras, viu de relance as manchetes do sistema bancário internacional. Um tal de A. C. Goldwill ampliara em muito sua participação no Staton Union, segundo maior banco da Inglaterra, impedindo, pelo menos temporariamente, sua falência. Ao injetar um bilhão de euros através da compra de novos papéis provocou uma alta da cotação, uma reação em cadeia comum em situações como essa. Paralelamente a operação respaldou o sufi-ciente a instituição junto ao governo para lhe conseguir um empréstimo a taxas aceitáveis. No novo cenário, uma emissão de debêntures, títulos da companhia a serem pagos com juros em datas predeterminadas, foi realizada com sucesso. Esse conjunto de eventos, disparado pelo investimento do Sr. Goldwill, salvara o banco e ganhara um espaço generoso na mídia. Era estranho ele nunca ter ouvido falar naquele sujeito, àquela altura Bruno já conhecia pelo nome alguns dos grandes investidores internacionais, como Soros e Buffet, e outros menos conhecidos. Embora não citasse pelo nome, os reconhecia quando lia, fossem da índia ou do Japão.

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Ao ler 10h40 no relógio do computador, saiu às pressas, conseguindo chegar à marina suficientemente próximo das 11h para se considerar pontual. Procurou no píer "C", conforme orientação dela, pelo barco Yemanjá. Quanta originalidade, pensou, dar a um barco o nome do orixá das águas. Yemanjá era uma espécie de deusa das águas no candomblé, religião africana ainda viva em uma porção da população da Bahia e parte relevante da cultura e do folclore do estado. Em um segundo pensamento, mais benevolente com sua anfitriã, imaginou que o nome teria vindo com a embarcação. Ao avistá-lo ficou mais uma vez impressionado, a marca lida no casco era Intermarine 480 full, porém como não entendia bulhufas de lanchas ou iates, o que lhe chamou atenção foi o tamanho. Já havia passeado de iates antes, mas aquele era o maior. Um belo espaço na popa onde cabia uma pequena mesa e duas cadeiras, afora os is-sentos moldados sobre o casco. No total acreditava ser capaz de acomodar tranqüilamente umas quinze pessoas naquela área. Ao abordar, notou o prolongamento do deck adentrando pelo interior da cabine, formando uma sala de estar moderna.- Pontual como sempre - ele ouviu sua voz vinda do andar de cima, reservado para o comandante, ele imaginou.Ela desceu para recebê-lo. Usava um biquíni vermelho e uma canga laranja com estampados floridos em branco, os pés descalços compunham com perfeição o espírito do dia. À primeira visão,

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ainda no topo da escada, emoldurada pelo azul límpido daquele início de tarde, ele sentiu a respiração parar por alguns instantes. Sob a luz do sol seu sorriso era radiante, realizando o feito ruase impossível de atrair mais atenção que a feminilidade de suas formas. Já no deck, seu corpo contra o mar, reparou nos olhos azuis semelhantes em tom e mistério ao oceano. De acordo com seus sentidos eram únicos em todo o mundo.- É minha marca registrada — ele respondeu e se cumprimentaram com os tradicionais dois beijinhos. Dessa vez ela tocou sua face com a mão direita durante o beijo fazendo seu coração acelerar.- Este é o barco - iniciou fazendo as apresentações de praxe. - Além desta área temos uma suíte e um quarto de solteiro com duas camas - ele a acompanhou enquanto fazia o tour. Era muito bem decorado.- Podemos ir, Seu Manoel — ela gritou para o comandante, quando voltaram para o deck. — Seu Manoel, este é o meu amigo, Bruno.Os dois se cumprimentaram. Manoel era um negro careca de aparência forte embora bem acima do peso. Vestia-se com camiseta gola polo branca, calça jeans velha e um tênis ainda mais surrado, nada tão sofisticado quanto o barco sugeria. Rapidamente ele desapareceu no andar de cima.- Para onde vamos?- Um lugarzinho tranqüilo perto de Caixa Prego, na Ilha de Itaparica. Em uma hora estaremos lá.

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Você não enjoa, não é?- Não, o mar é meu amigo - e após uma pausa sentenciou: - Você está linda. Já estou sendo repetitivo.- Não, eu gosto de ouvir — ela sorriu.Enquanto Bruno despia o short e a camisa e descalçava as sandálias permanecendo apenas de sunga, ela trouxe, sem perguntar, uma garrafa de champanhe e duas taças. Ele já não se espantava com mais nada.— Estou louca por champanhe hoje, se importa em me acompanhar? Se preferir tem cerveja e uísque.— Não me importo, sempre sonhei em tomar champanhe em um iate na companhia de uma mulher maravilhosa, você está realizando um sonho meu - suspendeu as sobrancelhas imitando um ar esnobe para dar o tom cômico ao comentário. — Só estou com medo de acordar — ambos riam enquanto ela servia a bebida e a lancha se afastava lentamente do píer, ganhando aceleração conforme a cidade diminuía às suas costas.— Você não vai acordar — ela disse sorrindo.— Quer que eu passe em você? - perguntou a ela enquanto passava em si mesmo o protetor solar, torcendo para que dissesse sim.— Já passei antes de você chegar, mas obrigado — e deu o meio-sorriso que ele adorava.— Já eu preciso de uma ajuda nas costas - agora ele sorria.— Tudo bem — disse ela, torcendo a boca meio de lado, ciente da armadilha proposital.

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Colocou a cadeira ao lado da dela e se virou de costas. Bebericava o champanhe enquanto sentia o toque suave nos ombros. Ela não se apressou, o que era um bom sinal. Pensou em colocar os óculos escuros dispensados ao entrar no barco, mas lembrou-se do comentário feito por ela sobre seus olhos no primeiro encontro e abandonou imediatamente a idéia.— Deve dar trabalho manter um barco destes.— Vale a pena.— Eu sempre disse que ter um barco é bom, mas ter um amigo que tem um barco é melhor ainda — brincou.— Também é bom ter um amigo para compartilhar o barco.Bruno não gostou de ter sido referido como amigo, mas ele mesmo abrira o caminho, então não podia se queixar. Tentou então mudar o rumo da conversa.— Adoro a vista da cidade daqui, dá para ver partes das cidades alta e baixa - disse mostrando o ponto onde os primeiros portugueses se instalaram na colonização do Brasil. Ainda nas proximidades do porto, um enorme paredão se elevava dividindo Salvador em dois patamares chamados, em ordem de elevação relativa ao mar, de cidade baixa e alta. — É um lugar maravilhoso, um retrato único no país, pena ser tão malcuidado.— Temos tempo para resolver isso.Ele não entendeu bem o que ela quis dizer, mas resolveu interpretar como algo engraçado e sorriu.

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- Pronto, o senhor está protegido.- Ótimo trabalho doutora. - No fundo não estava satisfeito, espalhara o rreme com calma e perfeição, mas não sentiu nenhum carinho especial da parte dela. O toque inicialmente suave e cuidadoso foi substituído rapidamente por movimentos cadenciados e frios. Os sinais dela eram dúbios e se perguntou por que as mulheres em quem se interessava eram sempre assim. Considerou também outra hipótese, a de que ele fosse simplesmente um péssimo leitor das mentes femininas.- Um brinde a novos e verdadeiros amigos - ela disse ao levantar a taça.Ele não se fez de rogado.- Um brinde ao destino e as suas maravilhosas surpresas.Ela sorriu ainda mais enquanto faziam o brinde, pensando na ironia implícita naquelas palavras. Prosseguiram no jogo de gato e rato durante o percurso, ela falando de amenidades, de assuntos vazios, ele sempre lutando para estabelecer um clima romântico. Às vezes ela se entregava, mas só um pouquinho, indo e vindo, ao sabor das águas.Após tantos anos sozinha era consciente da própria carência e não era difícil gostar de Bruno. Era honesto, mais que isso, era verdadeiro. Gostava de suas idéias e confiava no seu caráter. Parecia ser um homem de verdade, amadurecido, decidido quando estava certo de seus objetivos. Contudo, seria um erro gigantesco se interessar por ele e ela detestava

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cometer erros. No ponto em que estavam já podia lentamente se tornar mais amiga e menos sedutora, esse era o plano.

Ao chegarem ao ponto de destino observaram por um instante a destreza de Manoel no manejo da âncora. Ela fora atenciosa ao oferecer ajuda, o que era claramente desnecessário. Enquanto se apressavam a finalizar suas taças de champanhe, preparando-se calmamente para um mergulho, aproveitam para apreciar a vista. O local era bonito, podia-se ver uma praia deserta distante na ilha, cortejada pela vegetação tropical. No lado esquerdo, uma pequena montanha escarpada subia. O quadro lembrava um pouco a praia do Espelho, em Trancoso, situada próxima a Porto Seguro. Bruno fez questão de mencionar a semelhança, deixando implícita uma sugestão para um dia juntos visitá-la. Adrianna limitou-se a sorrir. No lado oposto o mar era a única visão no horizonte. Em sua insustentável vastidão transmitia solidão e completude simultaneamente, roubando por instantes a atenção de Bruno. As águas tranqüilas produziam esse efeito nele.Antes de romper por conta própria o transe, um som alto de motor vindo de sua esquerda cumpriu esse papel. Uma lancha bonita, pouco menor do que a deles, se aproximava. O marinheiro, um rapaz branco e magro, de cabelos encaracolados castanho-claro, aparentando uns 20 anos gritava para Manoel.

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- Boa tarde, capitão. Será que a gente pode usar o seu rádio? O nosso quebrou.- Pode deixar. Eu chamo a Capitania dos Portos para vocês - respondeu Manoel, imaginando problemas com o motor da embarcação vizinha.— Estamos bem, só quero avisar ao patrão que estou atrasado — gritou o rapaz enquanto emparelhava as embarcações.Neste exato momento, três homens negros surgiram do nada e pularam no Yemanjá. Deviam estar deitados no deck, invisíveis à espera de chegarem perto o suficiente, pois Bruno não os percebera até então. Os homens eram claramente hostis e estavam muito nervosos e o fato de estarem vestidos apenas de bermuda ascendeu em Bruno toda a sorte de preocupações com a segurança de Adrianna. Os revólveres em punho, provavelmente de calibre 38, Bruno não tinha certeza, asseguravam que, na melhor das hipóteses, estavam sendo assal-tados. O rapaz magro também tirou uma arma das costas, uma pistola semi-automática guardada na altura da cintura, e apontou diretamente para Bruno.— Ninguém se mexe agora, só queremos o colar de diamantes e a gente sabe que tá no cofre do barco.Ele gritou enquanto o mais velho do grupo, aparentando uns 50 anos, com o cabelo crespo e curto, levemente grisalho, subia as escadas rapidamente, apenas para, em instantes, descê-las apontando a arma para a nuca de Manoel. Um deles, um careca de pele achocolatada, bem

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forte, apontava o 38 para Bruno, o outro para Adrianna. Este tinha a pele mais negra, lábios grossos e os olhos injetados. Usava um cabelo rastafári e sorria com olhos de gula. Ambos, Bruno e Adrianna, estavam em pé, em posição próxima às cadeiras que ocupavam há pouco, ele mais próximo ao barco pirata. O deck parecia bem menor agora e a distância entre todos ali era claustrofóbica.Bruno nunca se imaginou em uma situação daquelas. Eventualmente se questionava se, enfrentando um assalto a mão armada, ficaria paralisado ou se seria vítima de uma fúria incontrolável fazendo-o reagir sem pensar. Finalmente teria a resposta. Embora o coração palpitasse a 160 batimentos por segundo a cabeça funcionava rapidamente buscando pontos para argumentação. Iria tentar se livrar dessa negociando. Era bom negociador, sabia disso. Havia fechado contratos milionários para a BCS e TelSys e agora precisaria ser melhor do que nunca. Mas não houve tempo para que começasse a falar, a seqüência de eventos foi tão rápida quanto inesperada.Adrianna esmurrou a glote do rastafári a sua frente em um golpe tão ágil que Bruno levou alguns segundos para interpretar corretamente. Em um segundo ela estava parada ao seu lado e no outro o rastafári estava segurando a garganta com as duas mãos, deixando cair o revólver, que ela apanhou no ar com a mão direita, enquanto girava o corpo e acertava com um golpe de perna esquerda o pirata mais velho às suas

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costas, jogando-o no mar a uma distância de pelo menos três metros. Ainda completando o giro, com o revólver na mão, acertou um tiro na arma do negro em frente a Bruno e outro na pistola do rapaz branco no outro barco, desarmando ambos.Bruno olhava a cena com os olhos arregalados e sem fala. Não achava fisicamente possível o que acabara de ver. Apesar disso, a adrenalina parecia dominá-lo. Ao ver seu oponente desarmado e desequilibrado, desferiu um soco cruzado em seu queixo fazendo-o bater na borda e cair para fora da embarcação.- Manoel, suba e zarpe para a marina, não informe nada pelo rádio - ela ordenava aos gritos. Manoel estava assustado demais para contra-argumentar.— Você — apontou o revólver para o único bandido ainda no Yemanjá. — Pule! — O negro ainda tossindo, buscando o ar, não se fez de rogado e saltou para longe da mulher, buscando segurança no oceano. — Se vir vocês no meu horizonte ligo para a Capitania dos Portos - vociferou enquanto apontava a arma para o comandante inimigo - meu barco é mais rápido, não sejam estúpidos.O Yemanjá partiu ganhando velocidade rapidamente, deixando os três tripulantes do barco pirata atônitos e paralisados enquanto aguardavam que o quarto nadasse até eles. Nem cogitaram uma revanche, não estava no trato e não tinham a menor vontade também.

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Alguns minutos depois ainda estavam em pé no deck. Adrianna jogou a arma em sua mão ao mar, pegou outra que caíra no chão, depois de atingida, e fez o mesmo. Enquanto fitava os piratas se afastando, apoiado na borda traseira do barco, Bruno não percebeu Adrianna aproximar-se dele, só sentiu a tontura chegando rápido, aguda e tudo ficar escuro.Adrianna segurou-o gentilmente. Colocou-o deitado nos assentos adjuntos ao casco e se dirigiu à cabine. Abaixou-se e pegou na geladeirinha de apoio, mais precisamente no congelador, uma caixa. Nela havia um chumaço de algodão, uma ampola e uma seringa já preparada para utilização. O segundo estágio do composto era muito volátil, precisava mantê-lo o maior tempo possível a baixas temperaturas. Aspirou calmamente o conteúdo da ampola, transferindo-o para a seringa, tomando cuidado para aproveitar ao máximo seu conteúdo. Voltou para o deck e inseriu a agulha com precisão na veia do braço esquerdo dele, pressionando o êmbolo vagarosamente até transferir toda a solução. Ao finalizar a aplicação, manteve o algodão sobre o ponto de entrada por trinta segundos. Quando o retirou não havia sangue, a marca da picada já havia sumido.Guardou tudo e retornou, era a hora da verdade. Ele excedera suas expectativas, mostrara bravura e senso de oportunidade, além dos reflexos condizentes a sua condição. Da forma como tudo aconteceu era de se espantar ter conseguido algum resultado. Odiou-se por não

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ter deixado mais claro para Ian a necessidade de serem apenas três homens. Contava com um no barco inimigo e um indo com ela para o cofre, deixando o último com Bruno e Manoel. Ela anularia o que a acompanhasse e daria a Bruno a chance de mostrar iniciativa. Contudo, a presença de um quarto bandido desequilibrou a sorte, o risco crescera demais e ela preferiu desarmar a todos antes que o pior acontecesse. Mesmo assim, dispondo apenas de uma janela mínima de oportunidade e provavelmente distraído pela visão dela em ação, ele se mostrou forte e decidido. Realmente não podia pedir mais. Tocou com o dedo médio e indicador de cada mão nas têmporas dele. Bruno abriu os olhos e a ouviu falando com uma voz suave, como se nada estivesse diferente de quando partiram do píer "C".— Você desmaiou. Como está se sentindo? — a expressão em seu rosto era amiga e preocupada.Sentou-se rápido, estava confuso, sentiu a cabeça doendo como se estivesse recebendo marteladas a cada batida do barco na água.— Com muita dor de cabeça - respondeu, enquanto comprimia as têmporas. - Desmaiei?— Foi rápido e provavelmente uma reação ao estresse pelo qual passou — mentir e distrair era a opção por enquanto. — A dor vai sumir logo, em cerca de quinze minutos, pelo menos por algum tempo — ela disse com convicção. Depois se encostou ao apoio lateral do deck olhando o mar, de costas para Bruno. Fechou os olhos e aguardou as perguntas.

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— Como você sabe isso? O que foi que aconteceu aqui? Que colar aqueles -homens queriam? - a rispidez na voz era patente. As perguntas, além de questionamentos, eram acusações.Não entendia o que estava acontecendo e queria respostas, nada daquilo parecia surpresa para ela, sentia-se atordoado e assustado. Como poderia ter desmaiado? O nervosismo parecia tomar conta e achou que talvez estivesse exagerando. As pauladas na cabeça não ajudavam.— Tenho muito a falar, Bruno, mas não pode ser aqui, precisamos ir a minha casa — ela ficou de cócoras a sua frente, colocando as mãos sob suas coxas e olhando fundo em seus olhos.Ao se posicionar verticalmente em um nível mais baixo do que o dele ela sabia estar elevando implicitamente a importância da contraparte no diálogo, deixando-o mais seguro e, portanto, mais receptivo. Tocar nele mostrava intimidade e o lembraria da existência de um relacionamento entre eles, reforçando as chances de ele confiar nela. Era boa na arte da manipulação e sabia disso. Não se orgulhava, porém não renegava essa habilidade.— Coisas importantes estão acontecendo e chegou o momento de lhe contar. Mas vou necessitar muito da sua compreensão por enquanto. Não sou uma pessoa ruim, acredite, se lhe escondi a verdade houve motivos suficientes para tal. No meu apartamento vou poder respaldar com provas as minhas palavras.

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Ele olhava para ela desconfiado, reavaliando cada momento que passaram juntos, tentando entender se podia confiar naquelas palavras. Ou melhor, até onde poderia confiar nela. Algo estava muito errado. Neste momento ela usou as duas mãos para conduzir a mão esquerda dele e, suavemente, a colocou sob o coração dela, segurando-a com força.— Meu coração está batendo forte, sinta... Este momento é importante para mim. Dê-me uma chance. Vou lhe contar tudo.Nos olhos dela viu sinceridade, no tocar da pele sentiu a raiva diminuir. Concordou fazendo sinal com a cabeça, levantou-se e foi para o lado oposto do deck. Ficou ali em pé, sem olhar para trás até atracarem. Respeitando o momento, ela não se aproximou.

Conforme Adrianna prometera, a dor passara em cerca de quinze minutos e também, conforme sugerido, voltara, ainda mais forte. Na RAV-4, enquanto se encaminhavam para o apartamento, ele quase se arrependeu de ter decidido dirigir. Queria o máximo de controle possível nesse momento, mesmo se isso significasse suportar o aumento da dor, ampliada pela concentração ao guiar. Concordara em ir à casa dela, mas o faria em seus termos. Utilizando o carro dele o destino estaria garantido e poderia ir embora quando desejasse. Também como precaução, ligou para Natan enquanto dirigia, felizmente ele quase nunca se afastava do celular. Sem mencionar o incidente, comentou sobre o pregão de sexta na

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bolsa, sabia que ele acompanhava, e contou estar indo almoçar na casa de Adrianna. Deixou propositalmente escapar o endereço e prometeu estar em casa com certeza lá pelas 16h30. Natan demandava saber detalhes sobre o encontro e combinaram implicitamente se falarem naquele horário. Desligou impedindo o delongar da conversa. Por meio do ardil garantia saberem do seu paradeiro. Não achava que seria atacado ou algo parecido, contudo estava desconfiado e achou apropriado se precaver. Se Adrianna percebeu algo não fez comentário e seguiram até o prédio mantendo silêncio até ela abrir a porta do apartamento.9. Coisas loucas

A porta da frente dava direto para duas salas de estar, à esquerda e à direita, em frente via-se a varanda. De imediato notou a decoração clean e a diversidade de telas de cristal líquido nas paredes.— Sente-se, por favor - e fez sinal para o sofá branco à direita de Bruno — vou apenas colocar uma roupa mais apropriada e já volto — ela se virou e caminhou atravessando a sala à esquerda para o que ele imaginou ser um corredor de acesso aos quartos.Antes de sentar ele fez uma sondagem na parte visível do apartamento. Entrou na varanda, composta por dois ambientes, uma mesa redonda grande de mármore, rodeada de cadeiras de tubo prateado com assentos e encostos quadrados de vime. Ao lado, um

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conjunto de sofá e duas poltronas de vime com almofada em tecido branco e uma mesinha de centro em mármore. Na sala de estar, agora à sua esquerda, um monitor de TV, provavelmente de plasma, fixado na parede, sofás e poltronas de couro com uma mesa de centro em madeira laqueada formavam a decoração. Nada de plantas. A sala situada no caminho por onde Adrianna passara era muito parecida, apenas um pouco menor.No canto do apartamento, no lado oposto ao corredor dos quartos, formando o ângulo de um "L" com a sala de jantar, um sofá também em couro em curva assentava com a quina da parede. A mesa de centro era de vidro. Janelas seguiam da parede onde finalizava a primeira sala de estar, cerca de meio metro após a TV, até o final da sala de jantar. Próximo à entrada principal havia uma escada para a cobertura que ele só percebera ao se posicionar na sala de jantar. Era parcialmente escondida, fechada com paredes dos lados, exceto aquele. Junto a um pequeno lavabo, formava um quadrado quase no centro do imóvel.Seguiu pela sala de jantar onde apenas uma grande mesa de madeira pesada, retangular, acompanhada de cadeiras de encosto alto, também em madeira, dividia a decoração com um aparador encostado à parede. Acima dele mais um monitor de 40 polegadas. O ambiente lembrava uma sala de reuniões.Dali entrou na cozinha que fazia um "U" desembocando na outra ponta do corredor onde

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Adrianna desaparecera. A cozinha era moderna e aparentemente pouco usada. Calculando mentalmente o tempo gasto até ali com a inspeção, achou por bem voltar e sentar-se no sofá. Pelo menos na área vistoriada não havia mais ninguém. Tinha, contudo, muitas áreas ainda desconhecidas. Ela certamente não devia passar muito tempo ali, parecia mais um apartamento decorado de um lançamento imobiliário que a residência de alguém. Faltava o mínimo de desarrumação necessário para identificar a presença humana. Durante a inspeção notou satisfeito a diminuição da dor de cabeça.Ela voltou. Agora de jeans e tênis, com uma camisa de malha preta colada no corpo, com uma rosa deitada bordada bem no centro, acima da linha dos seios. Sentou-se no sofá a quatro palmos de distância, formando um triângulo imaginário com a TV. Olhou fixamente para ele, respirou fundo e começou.- O que vou lhe contar será difícil de aceitar, eu sei, mas é a mais pura verdade - ela pausou mais uma vez. - A única chance de lhe fazer acreditar é através de algo um pouco dramático então não se assuste, por favor, só preste atenção - dizendo isso pegou um punhal decorativo na mesa de centro, retirou-o da bainha em bronze repleta de símbolos esculpidos, espalmou a mão esquerda e, com um gesto rápido, fez nela um corte de cerca de cinco centímetros. Imediatamente o ferimento começou a sangrar. Largou

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rapidamente o punhal sobre a mesa mantendo a mão espalmada.Bruno não gostou nada daquilo, por um instante, ficou nervoso. Em seguida, acalmou-se, reavaliando a situação. Ela, certamente, não estava bem, devia estar muito perturbada, ele pensou. Talvez ela não tivesse abandonado a carreira por vontade própria. Talvez não tivesse conseguido voltar a Londres, pois se abalara demais com a morte do pai, eram flashes que lhe passavam pela mente. Os acontecimentos no barco foram assustadores, mas talvez a forma como ela reagira fosse apenas resultado da adrenalina potencializando um surto nervoso. Teve pena. Aproximou-se, colocou a mão no ombro direito dela e disse:-Você não precisa me provar nada. Está tudo bem, seja qual for o problema vamos tratar dele juntos, não se desespere, você não está sozinha. Desculpe-me por ter ficado tão nervoso. Se você precisa de ajuda vamos arranjar, está bem? Tem alguma caixinha de curativos em casa? Pode deixar que eu cuido desse corte. Se não tiver nada aqui te levo até uma farmácia e a gente dá um jeito — ele falava pausadamente, com carinho e complacência expressos em seu olhar.Ela não conseguiu interrompê-lo, estava impressionada com a compaixão em seus olhos, não esperava por aquilo. Lutou para se recuperar da surpresa.— Bruno - ela também assumiu um tom carinhoso. - Você é mesmo uma pessoa especial! Obrigada por suas palavras, mas não é esse o caso. Dê

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uma olhada mais de perto no ferimento - Adrianna puxou do bolso da calça um lenço e passou no corte.Ele ficou confuso, uma vez retirado o sangue empoçado na palma, não havia mais ferimento. Ele se afastou um pouco dela, estendeu a mão e pegou o punhal, tocou a ponta e sentiu que estava afiado. Então assumiu novamente o ar raivoso e desconfiado de antes.— Que brincadeira é essa, Adrianna? - falou quase gritando. - Me trouxe aqui para fazer truques de mágica? Você está achando que sou algum idiota? - levantou-se agitado. - Boa sorte para você na sua vida - com raiva ele se dirigiu para a porta.— Não é brincadeira nenhuma, Bruno — e notando que ele não lhe dera ouvidos, continuou: — A chave está comigo você não vai conseguir sair.— O quê? — virou-se, agora verdadeiramente enfurecido. — Acha que pode me prender aqui? — ao olhar para ela parou de súbito, espantado, mais uma vez.Ela segurava uma poltrona acima da cabeça, como se não estivesse fazendo esforço.— Não se assuste, só vou mantê-lo aqui até acabar de lhe explicar, depois você pode fazer o que quiser - percebendo ter causado o efeito desejado, ela abaixou o móvel.Do lado oposto a ela, na ponta da sala próxima a ele, havia uma poltrona igual. Sentindo-se meio idiota ele tentou erguê-la. Conseguiu, apenas até a cintura e já fazendo um belo esforço, nada

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como o que ela fez. Ainda em pé, agora atrás do sofá, ela falou calmamente.- Vamos nos sentar, você me deixa terminar e vai embora se quiser, ok?Cogitou testar a porta dos fundos ou ligar para a polícia, a situação ficava estranha a cada minuto. Depois de um pequeno embate entre a curiosi-dade e a raiva, decidiu ficar só mais um pouco. Sentou-se rígido, mantendo o semblante sério.- Você tem quinze minutos.- Só estou querendo provar que sou diferente. Meu sistema muscular é diferente, meu processo de cicatrização é diferente e outras coisas também. Olhe - ela colocou a adaga na mão dele -, faça um corte em mim onde quiser, só não faça muito profundo.Ele pensou um pouco e, tinha de admitir, estava intrigado, por isso, mesmo correndo o risco de passar algum ridículo, segurou o pulso direito dela com sua não esquerda, e com o punhal na mão direita dele, encostou a ponta na parte de dentro do antebraço dela.- Quer mesmo que eu entre nessa brincadeira sádica? — perguntou sério, com os olhos apertados e a boca contraída.- Fique tranqüilo. Pode fazer.Bruno passou a adaga na pele dela, lentamente, por uns dez centímetros. A região era menos vascularizada e jorrou menos sangue. Jogou a adaga na mesa, pegou o lenço que ainda estava no sofá, entre eles, e foi passando lenta e suavemente sobre o braço dela. Na primeira passada notou restar apenas um filamento de

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sangue coagulado sob o ferimento e o observou sendo absorvido rapidamente sobre a pele. Percebeu-se de boca aberta, pasmado diante daquilo.- Eu só cicatrizo muito rápido, é só isso.- Tudo bem, pode falar, eu vou ouvir — mais curioso do que qualquer outra coisa, Bruno agora queria ir até o fundo daquela história.- Vou precisar um pouco da sua ajuda. Será necessário manter a mente aberta. Até agora - ela fez uma pausa estratégica ali, sugerindo o quanto mais estava por vir - o que você percebeu de diferente em mim?- Além de ser mais forte do que aparenta e ter algum tipo de treinamento em artes marciais? E dessa coisa com a regeneração? — continuava sério, não tinha intenção de aparentar ser fácil convencê-lo de nada.- Vai bem além disso. Pode-se dizer que eu sou uma versão aprimorada do ser humano médio.- Só faltava me dizer que não era humana - seu tom não foi de brincadeira, estava mais para um desafio a fazê-lo sentir-se um idiota.— Sou humana sim, mas não sou como você ou qualquer pessoa que você conheça. Eu enxergo melhor, ouço melhor, processo informações mais rapidamente, tenho um controle bem mais fino sobre o meu metabolismo e meus músculos. E, principalmente, utilizo muito mais as potencialidades do meu cérebro.— Olha, estou lhe dando o benefício da dúvida, mas nada do que você me mostrou prova isso, apenas que planejou e treinou bem alguns

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truques, então não tente me fazer de idiota. Eu quero é saber quem são aqueles caras no barco, onde você foi treinada em combate e por quem.— Não existiu treinamento em combate propriamente dito. Sempre fui apaixonada por artes marciais, treinei desde pequena assim como a maioria das crianças no lugar de onde vim. Ajuda desenvolver disciplina, auto-confiança, consciência corporal e equilíbrio espiritual. Algumas pessoas como eu nunca mais param de praticar. Quanto à familiaridade com armas, foi um treinamento pessoal motivado pela necessidade, é algo recente. Passei por muitas dificuldades assim que cheguei ao Brasil e saber lidar com armas passou a ser útil. Contudo, minha agilidade e precisão não advêm daí e sim do fato de ser especial. Você já deve ter visto lutas na TV, não me refiro aos filmes e sim às competições reais, e sabe que eu fui rápida demais - pausou para tomar fôlego e monitorar as reações dele. O silêncio era difícil de ler, mas estava atento. A próxima parte da história seria a pior. - Aqueles homens estavam lá para que eu pudesse avaliar suas reações. O tal colar nunca existiu, foi só uma desculpa para o trabalho.— Está me dizendo que contratou o bando de marginais? Colocou minha vida em risco? — Bruno estava estupefato. Levantou-se assumindo instintivamente uma postura agressiva.— Sim, mas um risco calculado. Eles não eram páreo para as minhas habilidades.— Eles não sabiam que a mandante do serviço era você, não é mesmo? — estava enfurecido.

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— Não. Contratei-os através de um testa de ferro.— Você deve ser louca. Independentemente de sua superioridade as probabilidades de erro eram imensas.— Eles tinham ordens para não atirar e, como viu, deu tudo certo. Eu precisava saber como você reagiria.— Por quê? — ele andava de um lado para o outro, tentando dar sentido às palavras de Adrianna.— Eu precisava saber se você era capaz de agüentar a pressão, se não segurasse a barra não estaríamos tendo essa conversa — ela preferiu omitir o teste de seus reflexos, precisava prosseguir com cautela.- Você só pode estar brincando, fazendo experiências mortais com a vida de outras pessoas - ele estava pasmo, ela falava com uma tranqüilidade aterrorizante.— Não é brincadeira — ela ponderou com seriedade.Bruno colocou a mão na cabeça ao sentar, a dor voltara e forte. Percebendo que perdia a conexão com ele, Adrianna decidiu tirar uma carta da manga.— Sei que é demais e tudo parece fazer com que confie menos em mim... Mesmo assim me ouça. Eu não tenho mais ninguém a quem recorrer. Eu lhe imploro, escute-me. Quero lhe fazer uma proposta - mais uma pausa estratégica. - Eu transfiro 100 mil reais hoje, agora, para a sua conta. Depois, saímos daqui para qualquer lugar, a seu critério, e você testa as minhas habilidades em um local onde eu não tenha controle, onde

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você quiser. Amanhã você me dá algumas horas do seu tempo e eu lhe digo qual papel comprar e vender na Bovespa e quando. Se eu não conseguir dobrar esse capital ainda amanhã eu sumo e você nunca mais me vê. Mas se eu cumprir a minha promessa, você me dá o resto do dia para ouvir minha história. Que tal?Bruno ouviu e não acreditou. Ela se propunha a fazer o impossível. Ele sabia, afinal operava cotidianamente na bolsa havia quase três anos. Também não achava razoável tentar manipular o resultado, precisaria gastar mais dinheiro para isso. Seria inviável. Uma promessa vazia, sob todos os aspectos. Pressentindo a hesitação dele, ela completou:- Eu te indico as operações por telefone, você nem precisa sair de casa.- Está bem - aquiesceu. - O dinheiro é seu... - ele resolveu pagar para ver. Qualquer coisa para sair logo dali. Ela só podia ser maluca.Sentada no sofá, pegou o pequeno netbook na mesa de centro e acionou a TV. Nela se via o monitor de um computador e as operações sendo executadas, entrou na web e visualizou sua conta em um banco, continha quase 500 mil reais só na conta corrente. Ela iniciou o processo de transferência eletrônica de fundos entre bancos (TED). No momento de preencher os dados da conta de destino, Bruno chegou a abrir a boca para pronunciar os números, quando percebeu que ela digitava os algarismos corretos. Ele não gostou nada daquilo. Adrianna finalizou e fechou tudo muito rapidamente deixando a operação

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rgendada para o dia seguinte. Parecia muito satisfeita enquanto ele se sentia um peão em um tabuleiro de xadrez.- Quer comer algo antes de sairmos? Já são 14h.- Quero, mas aqui não. Vamos, no caminho paramos em uma lanchonete. Pode abrir a porta agora, por favor? — ele não queria baixar a guarda.Ela tomou a frente. Desceram, entraram no carro e deixaram o prédio, parando na lanchonete mais próxima. Ele pediu um hambúrguer e um refrige-rante. Ela um sanduíche mais leve. Ao final pediu um gole do refrigerante dele. Bruno reconheceu a tentativa de ampliar novamente a intimidade. Contra-atacou entregando para ela o resto da bebida, perdera a sede. Foi educado e silencioso, preferiu deixar as perguntas para depois. Não queria falar aquelas "maluquices" em público. Ela não insistiu.Da lanchonete ele os conduziu a um terreno na Avenida Paralela onde pretendiam construir um prédio de 25 andares. Bruno acompanhara o caso pelos jornais. A obra fora embargada fazia dois meses e não havia previsão para a retomada das atividades. Extenso, cercado por tapumes e repleto de materiais pesados, lhe parecia o campo de testes ideal.Estacionou na porta e alegou para o segurança ter adquirido um apartamento do empreendimento, portanto gostaria de avaliar o progresso da obra. Obviamente, sem orientação prévia ou documentação pertinente, o único vigia presente se opôs com veemência até ser

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depositada uma nota de 50 reais no bolso de sua camisa. Quando seu rigor subitamente desapareceu sem deixar vestígios, entraram sem dificuldade. Pelo sorriso do homem, acompanhado de uma piscadela indiscreta, ele acreditava estarem ali para realizar algum tipo de fetiche. Bruno acharia graça caso não estivesse tão tenso.Uma vez do lado de dentro do tapume, avistaram a extensão do abandono. Apenas o primeiro e segundo andares contavam com a laje instalada. Outros três andares mostravam seu esqueleto desnudo. Ninguém mais à vista.- Agora é com você - ele disse.Ela se afastou e mirou a lateral do prédio. Não existia paredes. Posicionou-se a cerca de dez passos de distância e iniciou uma corrida frenética. A aceleração inicial foi incrível, lembrava um tigre iniciando a caçada. A um metro e meio da parede invisível ela saltou. Ainda no ar os braços eram jogados para trás e as pernas se dobravam levantando os joelhos. Os movimentos eram de uma agilidade anormal quase felina realmente. Pousou apoiada firmemente sobre as duas pernas no alto da laje do primeiro andar, a mais de três metros de altura. O coração de Bruno pareceu tentar fugir pela garganta, aquilo era impossível. Embora não fosse fã de salto em altura, estava seguro de ter presenciado um recorde mundial. Sem prestar muita atenção, ela se virou, deu um passo à frente e caiu. As pernas foram flexionadas acompanhando o baque surdo, apenas o

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suficiente, as mãos nunca tocaram o chão. Novamente ereta, não podia haver ninguém mais serena, nenhum esforço parecia ter sido feito. Nenhum truque podia ter sido emulado em um local tão inusitado, era real.Sem comentários ou explicações, mesmo sob o olhar atônito de Bruno, ela se dirigiu para uma pilha de vigas expostas no lado de fora do prédio. Posicionou-se ao lado da que estava isolada das outras no chão, devia ter uns quatro metros de comprimento. Em uma seção horizontal, formava um "H" de vinte centímetros de largura por vinte centímetros de altura. Provavelmente seriam necessários uns três a quatro homens para carregar aquilo. Ela se agachou de frente para a massa de ferro, aproximadamente no meio do seu comprimento, e suspendeu a viga com um impulso, como um levantador de peso em um campeonato olímpico, até a cintura. Permaneceu na posição por alguns segundos, equilibrando a viga, depois desceu largando-a com o mínimo de estrondo possível. Estava convencido, a garota não era normal. Ela pareceu ter dado por encerrada a apresentação.- E então? Convencido? - ela não queria assustá-lo demais.- Tudo bem, não é truque. Vou ouvir o que você tem a dizer, mas quero começar hoje, agora - ele estava uma pilha de nervos, porém ela não precisava saber, então lutou para manter a voz firme.- Talvez seja melhor você dormir com o que já sabe, amanhã conversaremos mais.

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- Não, Adrianna. Amanhã você vai me provar se consegue, e como consegue ser melhor do que qualquer um fazendo day trades — ele acreditava ser inviável cumprir aquela promessa através de operações de compra e venda de ações no mesmo dia. - Veremos se o seu cérebro é tão impressionante quanto o resto. Apesar disso e independentemente do resultado de amanhã, muita coisa já aconteceu. Já vi e me envolvi com essa... - Bruno interrompeu a tempo de evitar a expressão verbal de sua raiva. — Seja qual for a confusão na qual está me metendo, aparentemente já sou parte dela e tenho o direito de saber exatamente que riscos estou correndo. Se pretende abrir o jogo, comece logo.- Certo, mas não aqui. Daqui a pouco o segurança vem nos procurar. Vamos voltar para minha casa.- Não, vamos para um local neutro primeiro - ele não estava disposto a abrir mão do controle tão facilmente. - Vamos para o Jardim dos Namorados, conversaremos no estacionamento em frente ao mar.Ela entendeu a necessidade de controle sugerida nas exigências e concordou. Quanto mais confortável estivesse, mais fácil seria. Enquanto caminhavam para o carro, Bruno se lembrou do combinado com Natan, pediu um minuto, ligou para o amigo informando que ainda estava com Adrianna e agendou um novo contato para mais tarde, à noite. As circunstâncias mudaram dramaticamente e ele precisava ser ainda mais

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cauteloso. Ao entrar no carro, não se conteve e disparou uma seqüência de perguntas.— Por que você é diferente, Adrianna? Por que me envolveu nisso? Desde o primeiro momento você vem atuando comigo, não é? Foi tudo uma farsa, por quê? — as palavras exprimiam a dor da decepção. Havia depositado enormes esperanças nas possibilidades daquele relacionamento, bem acima do usual e agora se sentia um tolo, um grande imbecil. A amargura ditava o tom de seus questionamentos. Ele dirigia devagar, disposto a não deixar que sua emoção aflorasse.— Embora possa parecer nesse momento, eu não sou uma má pessoa, existe um bem maior por trás das minhas mentiras. Você vai entender e com o tempo, espero, vai concordar comigo - infelizmente ela não estava tão certa das pró-prias palavras. Preferiria não responder enquanto ele dirigia. Receava por suas reações ao volante frente às explicações. Por outro lado, ponderou, ele não teria como fugir. — Estamos lidando com algo complexo, para você entender, ou melhor, para qualquer um entender, é essencial contar a história em uma determinada ordem, ou nada fará sentido. A primeira informação relevante está relacionada a minha origem... Eu não sou daqui.— Você nasceu em Angola... — era mais uma pergunta do que uma afirmação, apesar da forma séria com a qual proferiu a última frase — ou isso também foi uma mentira?Adrianna sabia ter chegado ao ponto mais sensível de suas revelações. Seus lábios se

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abriam relutantemente sem produzir som. A pausa de apenas alguns segundos só piorava a situação.— A verdade vai parecer absurda, acredite, eu tenho noção disso. Só peço um pouco de calma enquanto falo. Dê-me tempo para explicar. — Ele a mirou e consentiu com a cabeça. Ela tomou coragem e continuou: - Eu não sou da Terra, Bruno.— É de Kripton então? — Bruno era só sarcasmo, nem por um segundo levou a sério a afirmação.— É bem pior... - engoliu em seco - levantei o assunto da teoria das cordas unicamente para prepará-lo para esse momento.Bruno virou-se lentamente em sua direção. Seu rosto tinha uma expressão séria. Suspeitou imediatamente quais seriam as próximas palavras dela e torceu para estar errado. Seria ridículo.- A teoria está no caminho certo, existem outras dimensões e universos paralelos e eu vim de um deles.Subitamente Bruno ficou nervoso, queria ofendê-la, magoá-la, porém, o próprio absurdo da história o fez se conter. Ela só podia estar brincando.- Por isso eu sou diferente. Somos humanos também e estou sujeita às mesmas limitações dos terráqueos - ela falou de forma veemente, tentando transmitir sobriedade —, contudo, no meu mundo, graças a alguns eventos, conseguimos aprimorar nossas capacidades usando tecnologia médica.

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- Vai realmente manter essa versão patética? — ele transmitia no olhar o seu espanto. — Acha que uma teoria genérica não provada, defendida por alguns físicos, cuja complexidade eu nem de longe sonho em entender, é evidência dessa bobagem que despejou sobre mim? Meu Deus! Você realmente acredita que eu sou um imbecil — o tom de voz se elevava em sincronia com seu humor.- É a verdade. Como você explica o que viu?- É mais fácil acreditar que você é biônica do que de outro mundo - respondeu ele, ríspido.- Pode fazer quantos exames achar necessários em mim. Chame seus amigos médicos, chame Natan, Márcia, Mauro, você escolhe. Minha única condição é de não manterem registros dos exames. Não posso correr esse risco.Ele enlouqueceu. Acelerou abruptamente; desviou o carro para a direita sem sinalizar, quase colidindo com um Monza na pista ao lado; e entrou com velocidade no estacionamento de uma loja de conveniências anexa a um posto de gasolina. Em meio a um festival de buzinas e xingamentos freou cantando pneu e virou-se para ela.- Que porra é essa de você saber o número da minha conta e o nome dos meus amigos? Nunca lhe dei essas informações. Desde quando você está me seguindo e por quê? — ele estava possesso.Ela não se assustou, ao invés disso, virou-se calmamente e com a voz tranquila optou pelo tratamento de choque.

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- Estou lhe seguindo e mapeando seu caráter há seis meses. Eu precisava de ajuda e você foi o único em um ano de testes nos bancos de sangue da cidade compatível para receber as melhorias. De alguém com capacidades parecidas com as minhas e só você possuía o potencial necessário - Adrianna olhou bem para ele enquanto falava, ampliou o ritmo impedindo-o de interrompê-la e aumentou a voz para dar impacto. — A validade do composto ia acabar. Não dava tempo de esperar para saber se iria ou não colaborar. Então tomei a decisão à revelia e apliquei-o em você. Na pior das hipóteses, você não me ajuda e ganha como bônus, de uma forma ou de outra, uma capacidade física e mental aumentada. Agora você tem duas opções, recebe toda a informação e depois faz seu julgamento, e nessa hipótese continua contando com o meu apoio, ou fica brigando comigo e convivendo com essa dor de cabeça sem saber de onde vem.Bruno ficou furioso. Grunhiu baixo, fechou os olhos e tentou se acalmar. Se ela realmente injetara algo nele, e pelo jeito estranho que estava se sentindo desde o primeiro dia no Jardim de Alah, isso era bem possível, o melhor era agir de forma cautelosa. Procurar levantar o máximo de informações, mesmo que sujeito à versão dela. Em um flash ele lembrou-se do desmaio, da febre alucinante da madrugada, das reações estranhas ao se exercitar na praia e na academia, da tontura ao perseguir o ladrão e, por último, a dor de cabeça de hoje. As imagens

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voavam em sua mente. Sentiu-se traído, já não sabia mais quem era aquela mulher, podia ser uma assassina, uma ladra de órgãos, sabia-se lá o quê. Dadas as circunstâncias, só havia um curso de ação a tomar naquele momento.— Tudo bem, você venceu. Conte-me a sua história enquanto vamos para o Jardim dos Namorados, não vou interrompê-la mais. No final, faço as minhas perguntas — ele não estava gritando, porém era impossível anular o ódio envolvendo suas palavras. Ligou o carro e partiu.Adrianna sentiu sua reação contida e rogou internamente por sua compreensão. Bruno era um homem bom e estava cada vez mais difícil para ela carregar sozinha aquele fardo. A responsabilidade era esmagadora. Ensaiou começar, enquanto ele voltava à pista, quando de relance percebeu algo, disparando automaticamente todos os seus alarmes.Em um instante ela estava ao seu lado. No outro, Bruno a viu correndo no estacionamento. A porta estava aberta e o carro ainda em movimento. Freou assustado. Levou alguns segundos para entender o que estava acontecendo. Anormalmente rápida, Adrianna disparava em direção a uma criança. Não devia ter mais de dois anos, absorta perseguindo uma bola de soprar quicando ao vento em direção à pista. Com sua visão periférica, percebeu um caminhão e um Siena emparelhados seguindo em alta velocidade em rota de colisão com o menino, não teriam como desviar.

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— Cuidado! — gritou assustado um frentista do posto, um rapaz magro de uns 20 anos também correndo em socorro da criança, quase tão distante dela quanto Adrianna.— Meu filho! — gritava a mãe irresponsável, agora percebendo que a discussão com o marido teria um preço incalculável. Bruno mal saíra do carro, corria agora por impulso tentando se aproximar do grupo. Em um átimo, o resgate parecia impossível. Adrianna se agachou e com o braço esquerdo conseguiu agarrar o garoto. Girou o corpo em sentido horário e o puxou para o abrigo de seu peito. O Siena tentou desviar, mas não tinha margem de manobra, passou raspando, por milímetros poderia ter atingido suas costas. O retrovisor direito acertou em cheio a têmpora espatifando-se no ar. Quando Bruno piscou, a criança já corria para os braços dos pais chorosos. Gritavam repetidamente o nome do filho, desesperados, só queriam abraçá-lo, tocar em cada pedaço de seu corpo e garantir que o seu rebento havia saído ileso daquele pesadelo. Um segundo depois, Bruno e o pai da criança estavam ao lado de Adrianna, cujo sangue escorrendo do couro cabeludo tingia de vermelho parte de seu cabelo, ela ainda na beira da pista, abraçada a um poste, claramente zonza.— Muito obrigado, você salvou a vida de meu filho... Meu Deus! Obrigado - balbuciava o homem cujos olhos derramavam lágrimas sinceras. Era só um garoto, Bruno percebeu, não devia ter mais de 20 anos.

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- Adrianna, você está bem? - Bruno falou, agora sem nenhum resquício de raiva, estava assustado e preocupado.- Estou bem - respondeu e, virando-se para o pai da criança, disse: - Não precisa agradecer, não foi nada - o rapaz ficou assustado ao se dar conta do estado dela.Não levou muito tempo e um grupo a rodeou: os pais da criança; o garotinho, agora chorando; o motorista do Siena; o frentista e Bruno. Todos insistindo por uma ida ao hospital. Ela prometeu ir, acompanhada por Bruno, mas era mentira, disse não estar tonta e assegurou estar se sentido bem. Isso era verdade. Depois de acalmar a todos, tendo como música de fundo os chavões comuns nessas ocasiões. "Foi Deus que ajudou!" "Foi muita sorte a dela!" "Foi muita sorte para o garoto!" Adrianna foi rapidamente limpar a ferida e o cabelo no banheiro da loja de conveniências. Após uma seqüência infindável de agradecimentos, ela conseguiu retornar ao carro.- Me deixa olhar o corte - Bruno ordenou.— Foi só de raspão - ela comentou permitindo a avaliação. Não existia mais corte, nem a camisa dela havia se sujado de sangue, apenas o cabelo apresentava traços do acontecido. Ele ficou impressionado, de novo. - Não está sentindo nada?— Não, verdade! Sou médica e não sou burra, se houvesse algo eu diria.— Tudo bem. Vamos para o Jardim dos Namorados — e seguiram caminho.

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Poucos minutos depois de deixarem o local do acidente ela recomeçou a contar sua história. Ele parecia anestesiado pelos eventos, dando a Adrianna oportunidade para despejar o máximo de informação sem ser interrompida.

10. A História— Somos uma sociedade muito mais avançada tecnologicamente e socialmente, mas nosso planeta possui apenas 15 milhões 711 mil 272m2

de superfície não submersa - diante da expressão de dúvida em Bruno, achou por bem adicionar comparações. - Isso representa cerca de 10% da área ocupada pelos continentes na Terra, algo como metade do tamanho da África. Noventa e oito por cento da superfície do planeta é composta de água. Já há algum tempo lutamos para conseguir manter viva nossa civilização neste diminuto espaço territorial, a despeito da crescente população. Nessa busca invadimos os mares e criamos instalações subaquáticas. Conseguimos ganhar algum tempo. Mesmo assim existem limites. Não se pode disputar espaço com a natureza indefinidamente e são poucas as áreas adequadas a estas edificações. Plataformas fixas sobre os oceanos, estruturas semelhantes às petrolíferas relativamente comuns nesse mundo, também compõem nosso habitat hoje - não importava por quanto tempo planejara aquele momento, a quantidade de informação era excessiva, nunca haveria uma seqüência perfeita. - O desafio não era apenas sobrepujar o

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ambiente. Nossa espécie não foi feita para viver fechada entre quatro paredes. Precisamos praticar rodízios constantes entre terra e mar para evitar fadiga mental, estresse e até a paranóia. Como pôde perceber, nossa vida não é fácil.Ela pausou e engoliu em seco, parecia cansada. Aproveitou para avaliar as reações de Bruno, ele ouvia atento, o cenho ligeiramente franzido sinalizando uma possível curiosidade. Os movimentos ao volante eram atentos e prudentes, denotando calma e concentração ao cruzarem a cidade. Havia esperança afinal.— Também criamos nossos próprios problemas. A busca por uma vida melhor nos levou a decifrar os mecanismos do envelhecimento celular. Ampliamos em muito nossa expectativa de vida. Embora esses avanços sejam recentes, já há algum tempo sabemos que a sobrevivência em Aqua, este é o nome de nosso planeta, está ro limite. Nossa tecnologia náo vai conseguir garantir a vida nos próximos mil mos. É pouco tempo para nós, são quatro ou cinco gerações apenas. Então buscamos opções no espaço, nas galáxias. Procuramos, enviamos sondas para todos os sistemas planetários conhecidos e continuamos em busca de um local passível le realocação — olhou para baixo, cansada e triste enquanto falava. — Até agora, ou rei o menos até quando deixei Aqua, não encontramos nada.Enquanto Bruno estacionava e saíam do carro ela não parou de falar. Ele agora se mostrava mais tolerante. O episódio na loja de conveniência

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havia servido como prova de sua índole. Ela era, realmente, uma pessoa boa, como dissera. Não hesitara em salvar aquela criança, mesmo colocando em risco sua vida. Ninguém podia prever onde estariam naquele momento, foi decisão dele, não havia chance de aquilo ter sido encenado. O casal com a criança estava claramente saindo da loja, ninguém entrou no estacionamento depois dele.Ele a contemplava agora com um resquício mais forte do sentimento outrora nutrido. Não esquecia a traição ou, como lhe parecia, a manipulação, porém não estava mais disposto a fomentar a raiva em seu peito. Adrianna, observando que Bruno estava mais receptivo, continuou:— Então, há cerca de sessenta anos, uma das melhores mentes de nosso tempo, o professor Onan Zuckman, sugeriu um novo caminho. A busca de opções em estruturas dimensionais paralelas a nossa. Parecia loucura a princípio, como deve parecer para você agora, pois ninguém nunca provara realmente a existência de dimensões adicionais à largura, altura e comprimento - ela parecia hipnotizada pelas próprias palavras, como um professor dedicado encantado ao transmitir seus conhecimentos. - Ele defendia a existência de mundos semelhantes ao nosso. Por hipótese, para cada ação no nosso universo, ações diferentes poderiam ser tomadas em mundos paralelos, gerando infinitas probabilidades de planetas compatíveis com a vida humana. Estes mundos

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coexistiriam como que sobrepostos em camadas diferentes de um multiverso. O exemplo preferido de Onan era o de um grão de areia solto ao vento.Com um movimento rápido, Adrianna se abaixou para pegar um grão de areia. Mesmo no estacionamento onde atravessavam em direção à balaustrada, não era difícil encontrar grãos de areia, fossem trazidos pela brisa ou pelos pés cos banhistas voltando da praia. De forma natural, como um mestre em sala de aula, levantou-o e o soltou no ar.— Nesse plano dimensional ele pode seguir para a praia e se somar aos que lá estão. Em um plano paralelo, ele pode ser levado por quilômetros através do oceano até chegar por obra do acaso até uma ostra, onde, alguns anos depois, se tornará uma pérola. Não existem limites para as diferenças entre os mundos paralelos... Nem para as semelhanças.Instintivamente caminharam até a balaustrada e se apoiaram nela. Adrianna continuou a falar repleta de lembranças, ligeiramente hipnotizada pelo mar. Naquele ponto as ondas eram baixas e freqüentes, quebrando em pequenas formações rochosas nos extremos do curto trecho de praia, formando uma variedade limitada de sons intensos e envolventes. A tristeza ganhava terreno em suas palavras.— Bom... Teria sido pura especulação teórica, como ocorre hoje na Terra, não fosse o fato de, em suas pesquisas, Onan ter feito uma descoberta fantástica. Quase por acaso, ele

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percebeu um efeito surpreendente no momento do choque subatômico de elétrons a uma determinada velocidade. Ao colidirem sob o ângulo adequado, nessa fração minúscula de tempo, os mundos paralelos se fundiam. Ou melhor, criava-se uma fenda na membrana que envolve o nosso universo. As bordas dessa fenda se conectavam imediatamente a outro universo, formando um tipo de "buraco de minhoca" entre os mundos. Buracos de minhoca são...- São como tubos ligando o tecido de espaço-tempo descrito por Einstein. Teoricamente permitiriam encurtar vertiginosamente o percurso entre pontos distantes anos-luz no universo conhecido. Mais uma teoria não provada, embora bastante aceita - Bruno a interrompeu, querendo mostrar conhecimento suficiente do assunto para não ser enganado facilmente. - Descobriu isso usando aceleradores de partículas?— O que você conhece sobre aceleradores de partículas?- São estruturas gigantescas, com quilômetros de diâmetro, construídas abaixo da terra, em formato de espiral, para permitir que feixes de partículas atômicas possam atingir altas velocidades, através da ação de forças eletromagnéticas, e se colidir. Nesse momento é possível estudar detalhadamente os com-ponentes dessas partículas.- Você descreveu apenas um tipo de acelerador, o cíclico. E embora existam outros mesmo aqui, de forma geral, é isso mesmo. A diferença

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principal entre o estágio de evolução desses equipamentos na Terra e os de Aqua é que nossos aceleradores não precisam ser gigantescos. Dominamos, já há algum tempo, a nanotecnologia. Com motores e eletroímãs microscópicos e estruturas de sustentação em tamanho reduzido, pode-se exercer o mesmo efeito nas partículas com resultados ainda melhores, pois é mais fácil controlar o processo. Utilizando esse princípio, Onan conseguiu criar um portal para outras membranas dimensionais.Notando a descrença nos olhos de Bruno, ela achou por bem detalhar mais o processo, apelando para a curiosidade científica do cérebro de programador de seu interlocutor.— Variando o ângulo, a intensidade e outros parâmetros de controle do choque das partículas, Onan conseguiu vislumbrar universos paralelos — o rosto de Adrianna se iluminou por um momento. — Em sua busca por um novo lar para o nosso povo ele viu mundos impressionantes, criaturas inimagináveis. Dedicou sua vida a isso. Aí, finalmente, aconteceu... Ele encontrou a Terra — seus olhos brilharam por um instante, só para, em seguida, assumirem uma leve impressão de tristeza. - Mas havia um problema, o paradoxo da entrada.Espalmando as duas mãos no ar, ele pediu tempo.— Olhe, não estou admitindo acreditar em nada disso, mas nessa história o objetivo era colonizar um novo planeta para morar, certo? E onde está o respeito ao próximo? Você alega vir de uma

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sociedade socialmente mais avançada, não? — Bruno falou em tom provocativo, sem agressividade. A história era inegavelmente bem formulada, absurda, porém com elevado grau de coerência, então uma boa forma de dominar a situação e fazê-la confessar a verdade talvez fosse expor seus raros pontos falhos.— O objetivo era procurar um mundo habitável, não roubá-lo de ninguém, tenha paciência, ouça mais um pouco - ao perceber sua concordância, ela continuou: - O portal deveria funcionar virtualmente como uma janela, permitindo a travessia em uma direção apenas, por medida de segurança. Nesse ponto ele sabia apenas da existência de um planeta com seres, fauna e flora semelhantes a nossa. Procurávamos um planeta com essas condições, espaço e recursos de sobra. Em caso de sucesso, nossa intenção seria negociar junto aos seus habitantes uma convivência pacífica.— Como assim medida de segurança, contra quê? - questionou Bruno.As perguntas dificultavam a narrativa linear, algo didaticamente indesejável, ela sabia. Apenas o entendimento correto da situação faria Bruno baixar suas resistências e considerar ajudá-la. Contudo, aquele era um momento difícil para ele. Adrianna precisava respeitar sua desconfiança respondendo pacientemente a tudo.— Nos mundos observados por Onan havia uma diversidade enorme de seres. Caso atravessassem, eles poderiam simplesmente morrer em nossa atmosfera, como podiam se

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multiplicar muito rapidamente e funcionar como parasitas destruindo nossa civilização, não tinha como saber. Não podíamos arriscar. Assim, o portal permitia a visualização dos outros universos e o transporte até lá. O inverso não era possível.Bruno balançava a cabeça em sinal tanto de incredulidade, quanto de inconformismo. A dificuldade em acreditar nela parecia ser proporcional a sua capacidade de prover respostas para quaisquer perguntas.— Bom... Retomando — continuou: — A observação inicial do seu planeta indicava potencial para abrigar nosso povo. A essa altura, se alguém fosse transportado para outro plano dimensional não poderia voltar. Além disso, não havia como saber se a atmosfera era suportável ou se os seres eram violentos ou mesmo letais.— Não podiam mandar mecanismos robóticos para análise da atmosfera? — Bruno decidiu entrar no jogo de Adrianna.— Podíamos e fizemos, mas foi um dilema ético muito grande. E se algum produto utilizado por nós fosse tóxico para vocês? E se causássemos a morte do seu planeta?— Suspeito não ter sido uma decisão tão difícil — ele disse em tom sarcástico.— Onan foi contra corrermos esse risco. Queria pesquisar mais e, embora sua opinião fosse importante, não era dele a decisão final. Depois de um ano de observação sistemática, o Conselho dos Onze Notáveis votou por maioria pelo envio de uma sonda. Eles chegaram à

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conclusão de que, por semelhança comportamental da fauna e flora, pelos aspectos climáticos e metamórficos observados, a probabilidade de problemas era baixa, da ordem de 1%.— Então tiveram uma chance em cem de destruir a Terra e se sentiram bem com isso? — Bruno falou provocativamente, seguindo o plano de confrontá-la.— Não! Nossa sociedade é baseada na ciência. Sabíamos haver 1% de probabilidade de algo sair do nosso controle. Os agentes físico-químicos, utilizados na análise da sua atmosfera, podiam causar uma gripe apenas nos humanos, qualquer hipótese era válida nessa porcentagem. Não era 1% de probabilidade de destruição para vocês. E mesmo assim muitos de nós fomos contra, mas a certeza da nossa limitação de recursos naturais e a proximidade do caos resultante disso formavam um argumento forte. A super-população não causaria apenas a escassez de alimento, em menos de mil anos ficaríamos sem oxigênio suficiente para viver - Adrianna frisou cada palavra. Sua expressão severa denotava a gravidade da questão enfrentada em Aqua.- Não bastava pararem de reproduzir? - ele falou sabendo o impacto que isso causaria.- Você sabe que não é tão simples assim - a expressão em seu rosto era de cansaço diante de mais uma provocação. — Tudo foi pensado. Criamos leis para imitar o número de filhos, mas uma sociedade sem procriação é uma sociedade sem esperança. E as medidas de controle de

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natalidade vieram tarde, com a população vivendo cada vez mais, nos tornamos parasitas em nosso próprio mundo. Sem uma solução clara Aqua explodiria em uma guerra eterna, cotidianamente brigando por comida e território.- E agora querem ser parasitas no nosso mundo? - ele tentava exceder os limites de sua paciência, tirá-la da zona de conforto. Sociedade evoluída uma ova, ele pensou, desmontaria aquela fantasia em dois tempos.- Não! - respondeu, percebendo seu objetivo. - Você prometeu me deixar contar tudo, espere mais um pouco e pode fazer suas críticas e perguntas, certo? Preciso chegar à parte que explica a sua dor de cabeça, não é?Ele não gostou nada de ser acuado, porém achou prudente concordar e gesticulou com a mão direita, dando-lhe salvo conduto para continuar.- Mandamos uma sonda e ela retornou indicando a compatibilidade de nossas atmosferas, os agentes biológicos presentes eram quase idênticos. O grupo dos Onze ficou exultante. O próximo passo natural era enviar um cientista para coletar informações sobre o planeta, sua população, seus recursos, sua estrutura social.- Mas você disse que o portal não permitia viagem nos dois sentidos, como - sonda voltou? Como alguém voltaria? - Bruno ficou contente. Havia encontrado um grande ponto fraco na história dela.- Ele criou um dispositivo que, anexo ao objeto transportado, permitia o seu retorno. Funcionava como uma chave, ou um miniportal se abrindo

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em um universo específico, com destino pré-programado para o nosso. Uma ponta de um túnel dimensional. Foi essa a solução encontrada para o paradoxo da entrada.- E se algo nocivo acompanhasse a sonda no retorno?- Foi um risco calculado, não havia outra opção.- Você foi a viajante escolhida?- Não — a negativa foi acompanhada por um suspiro de impaciência. Adrianna precisou de alguns segundos para se recompor. - Outro cientista foi enviado muitos anos atrás. Conseguiu retornar munido de informações valio-sas. Usando as informações e estudos decorrentes dela, o Conselho dos Onze, bastante dividido, não posso negar, decidiu por abandonar a Terra como alternativa. Segundo nossos cálculos, mesmo na hipótese de concordarem em trocar abrigo por tecnologia, nosso plano inicial, os recursos do seu planeta não seriam suficientes para alongar muito nossa expectativa de existência. A Terra já era populosa demais. Estaríamos ganhando algum tempo, contudo seríamos parasitas de dois planetas, como você disse. Desistimos, Bruno, desistimos da Terra muito tempo atrás.Não havia falha alguma na fantasia de Adrianna até agora, Bruno pensou, o ângulo explorado inicialmente por ele acabara de ruir. As peças se encaixavam perfeitamente, formando um mosaico surreal, porém coerente entre si. Não fosse pelo fato de ser impossível, e pela conveniente inexistência de provas concretas,

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ele poderia ser convencido. Mesmo assim, restavam algumas pontas soltas e ele estava disposto a explorar cada uma.- E o que você está fazendo aqui então? De férias? — não conseguiu conter o sarcasmo.Ela ignorou o comentário e prosseguiu:- Nem todos no grupo dos Onze se conformaram com a decisão. Um membro ficou especialmente revoltado, era o mais jovem, Kerligan. Decidiu se afastar e instituir um partido político radical. Eles se auto-denominavam "movimento para a salvação do planeta" - chegou a torcer a boca em sinal de desagrado. Seu olhar estava repleto de decepção. - Usava a propaganda política para manipular as massas, defendia uma mudança no modelo de decisão do país. Não fez muito sentido na época...- Por que não? A política não é o meio de mudar as coisas?- As questões sociais e a lei, certamente. Não era esse o caso. Nenhum ato político faria diferença. Seria preciso uma revolução capaz de mudar toda a nossa filosofia de vida.- Não estou entendendo - Bruno interveio. O raciocínio dela parecia incongruente. Talvez fosse aquela a fissura na lógica pela qual ele procurava.- Era uma decisão científica e não política. Como já falei, somos uma civilização baseada fortemente na lógica e na ciência. Os alicerces da racionalidade ajudaram a criar nossas leis e sustentam o sistema de governo, com reflexos na política e na sociedade. Acima de qualquer

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outro projeto, a busca por um novo lar precisava ser regida por parâmetros de segurança e confiabilidade dos mais severos. Todo um conjunto de regras e procedimentos foi estabelecido visando orientar este esforço. O primeiro passo foi dado pela união de recursos financeiros, tecnológicos e humanos dos três países de Aqua, materializados na forma de um centro de pesquisas internacional destinado a ser a principal frente de batalha pela sobrevivência, o Excelcius.— O seu planeta tem apenas três países? E em qual deles foi desenvolvido o portal? - Bruno não podia negar a curiosidade.— Isso mesmo. Aqua possui três países. Quanto ao portal, embora instalado em Eiden, meu país, o controle era internacional. Havendo discordância sobre qualquer item do projeto, deveria ser seguido o referendo do Conselho dos Onze. É como funcionamos.— O que é o Conselho dos Onze? Você tem mencionado isso... Entendi ser algum tipo de órgão regulador, um poder legislativo... É isso?— Não exatamente. É uma entidade internacional também. Funciona como um centro difusor e catalisador das informações científicas relacionadas com a busca de novos locais para a vida do nosso povo. Qualquer estudo produzido no planeta é encaminhado para ele. Foi criado para garantir a melhor utilização possível dos nossos recursos nessa busca desesperada pela sobrevivência. Por lei internacional seu referendo precisa ser seguido em qualquer situação na qual

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a variável científica seja relevante. Eles conduziram o estudo de impacto da realocação e condenaram a viabilidade da mudança. A migração para esse planeta só causaria perda de um tempo precioso trabalhando por uma solução temporária, seria uma ilusão.Todos os questionamentos feitos por Bruno recebiam respostas rápidas e elaboradas. Ou ela havia planejado obsessivamente aquela alucinação ou existia algum fundo de verdade naquilo tudo. Mas era muito difícil de acreditar. Desafiava seu cérebro cartesiano e as verdades mais básicas entranhadas em seu ser.— Como eu ia dizendo inicialmente, o movimento de Kerligan não fazia sentido. O tempo necessário para realizar uma mudança política da magnitude necessária para produzir algum efeito concreto seria grande demais. E, em minha opinião, dificilmente seria bem-sucedido. Ademais, não era o estilo dele. O homem sempre foi absurdamente pragmático. Só entendemos suas reais intenções quando já era tarde demais - agora a face era só ódio, aquelas lembranças açoitavam sua memória. — O partido era apenas fachada para a formação clandestina de um grupo terrorista. Em uma visita do partido às ins-talações do projeto denominado Nova Aqua, responsável pelo desenvolvimento do portal e localizado no centro de pesquisas Excelcius, Kerligan impetrou um ataque surpresa. Seu objetivo real era fugir para a Terra levando um grupo de soldados leais de sua milícia particular.

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Neste ponto ela pausou por um momento, mirou o mar notando o entardecer se esvair e a noite penetrar seus espaços vazios. Uma profunda tristeza abateu-se sobre ela. Tudo lhe voltava como em um redemoinho, o momento caótico responsável por sua vinda, a traição, tão forte e de tantas maneiras, que ela jamais seria capaz de esquecer. Fechou os olhos e suspirou, juntou forças para enxotar aqueles sentimentos. Bruno tinha pouco tempo agora e ela não deveria perseguir detalhes desnecessários.Ele quis apressá-la, sua preocupação aumentava a cada minuto, algo desconhecido estava em seu organismo. E ela nem arranhara esse assunto. Mesmo assim, não ousou interromper aquele momento. O semblante triste o intimidou. Podia sentir seu esforço, lutando para conter as lágrimas iminentes. Não queria admitir, era burrice, ele sabia, mas algo nela o prendia e o mantinha magneticamente próximo. Em seu íntimo ele não acreditava que ela lhe faria mal. Se não fosse por essa certeza já estaria em um hospital fazendo exames e investigando a droga em seu organismo.- Sou realmente uma médica e bióloga molecular. Trabalho, quero dizer, trabalhava com o professor Onan. Quando Kerligan invadiu o laboratório do projeto Nova Aqua, onde fica o portal dimensional, eu estava lá. Ele, MJ, Marvolo James, seu principal aliado, e um soldado, se trancaram conosco na estação enquanto a milícia lutava contra a segurança militar do complexo.

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Mataram todos os cientistas, pouparam só a mim e ao professor.Lágrimas silenciosas corriam livremente por sua face, não havia mais como contê-las. Naquele momento, ela não se importava. O ódio suplantara todas as emoções, transparecendo através de seus olhos quando encarou Bruno e, com a voz embargada, quase com um sussurro, externou um aviso.— Nunca, nunca, se deixe enganar por esse homem. Ele é e sempre será um assassino.A evolução da história, assumindo rapidamente contornos paranoicos, não passou despercebida por Bruno. Preocupado e ao mesmo tempo condoído por suas lágrimas, ele se via dividido. O sofrimento era real, ele não podia negar. Embora parecesse impossível, agora estava ainda mais confuso. Sem saber como reagir ao último comentário de Adrianna, manteve um silêncio respeitoso enquanto aguardava pela continuação.- Kerligan e MJ atravessaram para a Terra enquanto o soldado apontava sua arma para nós - ela conseguira se recompor. - Quando conseguimos dominá-lo já era tarde. Do lado de fora da única porta do laboratório, uma batalha estava sendo travada, não tínhamos a quem recorrer. Eu só podia imaginar o plano de Kerligan. Até aquele momento eu não tinha idéia do quão longe ele podia chegar para perseguir seus objetivos, mas ninguém o conhecia tanto quanto Onan. Ao retomarmos o controle do portal, Onan me pediu que viesse para a Terra

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- Adriana fez uma pausa compulsória. Era preciso recobrar um pouco as forças antes de continuar. — Na verdade, não foi um pedido, foi um apelo desesperado, praticamente uma ordem. Lembro-me das palavras dele como se fosse hoje:- Preciso lhe contar algo muito importante, Adrianna. Um segredo mantido a sete chaves pelo Conselho. Kerligan teve acesso a essas informações. Eu sei o que ele vai tentar fazer. Se conseguir, será catastrófico. Ele precisa ser impedido a qualquer custo... Ele não entende as ramificações, podem se estender além dos limites da Terra. Estamos lidando com o desconhecido, as conseqüências são imprevisíveis! Você precisa contê-lo, impedi-lo, não tem mais ninguém.- A qualquer custo? Inclusive matá-lo? — Bruno inquiriu, provocativamente.- Onan me conhece o suficiente para saber que não sou capaz de matar um ser humano. A expressão só caracterizava seu estado de preocupação naquele momento. Infelizmente, não houve tempo para explicações. A energia do complexo foi desligada e o portal passou a operar em modo de desativação. Era uma medida de proteção. O portal consumia muita energia e não podíamos assumir o risco de ela faltar no meio de um transporte. Assim, quando a fonte principal falhava, um sistema de suporte mantinha o portal ligado por trinta segundos até ser desligado completamente. Eu sabia disso, vi os alarmes no painel, então, quando ele mandou, eu atravessei o mais rápido que pude.

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- Por que o próprio Onan não veio?- Foi ferido, inicialmente por Kerligan e depois na luta com o soldado - Adrianna preferiu não detalhar os acontecimentos e sua culpa pelo feri-mento de Onan, era desnecessário e doía demais. - Não havia mais ninguém, só eu. Na seqüência, ele provavelmente destruiu o portal, pelo menos seria o mais lógico. Assim, se os inimigos penetrassem no laboratório não poderiam seguir o líder.- Obviamente você tem uma teoria sobre os objetivos de Kerligan, digo, além de salvar a própria pele — disse Bruno, curioso.— Ele sempre teve um desejo especial pelo poder. Era considerado um cientista brilhante em uma sociedade mais adiantada em todos os aspectos relacionados à tecnologia. Lançando mão de nossas habilidades superiores, não está sendo difícil para ele usar seus conhecimentos para materializar aqui alguns dos avanços de Aqua. Está conseguindo dinheiro e notoriedade rapidamente. Imagine o dinheiro de Bill Gates e Warren Buffet fundidos a um intelecto digno de um Prêmio Nobel em Ciência. Imagine um sucesso equivalente ao dessas pessoas atingido em poucos anos e dê a esse ser sedento de poder, de moral comprovadamente tosca, tempo suficiente fazendo sua mágica.— E daí? Vai ser rico e poderoso por muito tempo. Pode ser injusto - deu de ombros, mostrando a pouca importância daquilo. - Ele pode se tornar um gangster internacional e cometer crimes -

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deu de ombros mais uma vez. - Já temos muito disso por aqui, se não ficou sabendo.Adrianna riu desanimada do absurdo. Ele não estava entendendo. A noite se consolidara sobre o horizonte, Bruno não tinha muito tempo. Fechou os olhos um minuto buscando inspiração, as mãos espalmadas se juntaram próximas aos lábios em posição de oração. Após respirar profundamente, encontrou a resposta.— Imagine se Hitler tivesse à sua disposição uma tecnologia centenas de anos mais avançada que a dos aliados. Na verdade não precisaria ir muito longe, bastava ter desenvolvido a bomba atômica antes, não é mesmo? Como seria a vida hoje?— É isso? Ele vai tentar ser o soberano absoluto da Terra, subjugando todos aos seus caprichos e dizimando os inimigos? — o tom era de incredulidade e dúvida, simultaneamente, nem mesmo ele podia definir.— Vejamos... Ama o poder, tem os meios para tornar-se dez vezes mais rico e poderoso que qualquer outro homem; poderá controlar o acesso a cada tecnologia superior criada por ele; foi capaz de matar dezenas de pessoas apenas para chegar até a Terra e terá bastante tempo para seu plano evoluir. Alguém assim vai se contentar em ficar rico desfrutando da vida? Se eu não fizer algo a respeito, ele vai dominar o destino das nações e se transformar no soberano absoluto desse planeta.Àquela altura Bruno apenas seguia o fluxo. As perguntas brotavam de sua boca sem

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autorização prévia. Alguém o incluíra em um filme de ficção científica de orçamento barato à sua revelia. Resolvera tratar uma questão por vez.- Pela sua história Onan sabia de algo mais. Tem idéia do quê?- Não, mas deve ser algo suficientemente grave para Onan colocar minha vida em risco enviando-me para cá. Só reforça a importância de contê-lo. Conheço o bastante sobre Kerligan. Ele é um déspota egoísta e alguém assim com imenso poder nas mãos é historicamente sinônimo de catástrofe. Estou decidida a impedir a materialização desse pesadelo. Por isso estou aqui - depois de uma pequena pausa para se recompor continuou: — Onan mandará reforços para nos buscar quando for possível, mas a espera pode ser longa. Vim assumindo todos os riscos, inclusive o de não voltar — em tom grave, ela prosseguiu, mirando-o intensamente. - Coloquei em risco a minha vida. Vim para garantir que o destino do seu mundo não seja alterado pela presença de Kerligan. Vim para livrá-los de um tirano sem pudor capaz de matar os próprios amigos.- E esse sujeito era um dos notáveis de seu planeta? Um dos onze melhores? - Desta vez as palavras não lhe escaparam intencionalmente, foi uma reação espontânea àquele absurdo.- Ele tem uma mente brilhante, é notável nesse aspecto — Adrianna não se deixou abalar pela provocação. — Conhecíamos suas aspirações elevadas, percebíamos uma certa megalomania,

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mas ninguém tinha idéia de que era capaz de transgredir a lei, muito menos de matar. Nunca havia cometido nenhum tipo de violação às normas. Algumas das pessoas naquele laboratório eram amigas dele, Bruno. Ninguém tinha idéia do monstro vivendo disfarçado sob a capa do cientista famoso, inteligente e carismático.Bruno ia argumentar sobre as dificuldades de conseguir se tornar um tirano global, mesmo reconhecendo suas habilidades especiais e a veracidade da história, simplesmente não era algo assim tão fácil e levaria tempo demais. Quando abriu a boca o ar lhe faltou, o único som percebido foi um grunhido abafado. A dor lancinante na cabeça atingiu rapidamente um pico. Enquanto apertava os olhos e levava as duas mãos à cabeça, sentiu um calafrio percorrendo todo o corpo, as mãos tremiam descontroladas.- O que você fez comigo? - disparou trincando os dentes.- Vai passar logo. Seu corpo está se acostumando à segunda dose...- Segunda dose? Você me injetou algo duas vezes? - toda a raiva voltava rapidamente.- Sim. Amanhã pela manhã você vai me agradecer, vai ser apenas uma noite de sofrimento — ela estendeu o indicador em riste, enfatizando as palavras. — Para uma vida inteira de benefícios. Tenha calma. Você não vai gostar, mas preciso te levar para casa. Vai piorar muito

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rápido agora, esta segunda dose é mais... — ela hesitou em busca da palavra adequada. - Forte.Bruno teve vontade de praguejar e o teria feito se tivesse forças para tal. De repente estava com tanta dor, mal podia raciocinar. Ela tentou tocá-lo e ele reagiu com um movimento brusco de ombro. Foi pior. A dor aumentou.— Vou levar você para casa, deixo seu carro lá e pego um táxi. Dessa vez não haverá complicações intestinais nem vômito, só febre e muita dor de cabeça — com firmeza, ela segurou seu braço, sem margem de negociação e como quem encaminha um cego o conduziu até o carro.A contragosto ele lhe entregou as chaves. Enquanto seguiam pensou se não seria melhor ligar para algum amigo médico, como Natan, Márcia ou Mauro. O ideal era ir para o hospital acompanhado por alguém de confiança. De repente sentia-se fragilizado, impotente. Adrianna certamente não concordaria e ele não estava em condições de brigar. Decidiu que liga-ria para Márcia quando estivesse sozinho em casa. No caminho ela continuou falando.— Antes de qualquer coisa, quero lhe garantir que a substância injetada não tem nenhuma possibilidade de lhe fazer mal — ela tentou sem sucesso fazer contato visual para mostrar sua sinceridade. Ele parecia alheio no banco do carona. - É como uma vacina, no passado todos em Aqua foram inoculados, por várias gerações, tenho certeza de todos os benefícios e da temporariedade dos efeitos colaterais - o gemido

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baixo interrompeu seu discurso. Ao virar-se notou os olhos de Bruno fechados. Todo o corpo estava encostado junto à porta e os braços cruzados bem apertados envolvendo o tórax. - Por favor, me descreva exatamente o que está sentindo — o tom era preocupado e atencioso.— Zonzo... Grogue — mantendo os olhos fechados, engoliu em seco, tentando aliviar a dor e buscar fôlego ao mesmo tempo. - Me deixe quieto um minuto, por favor — ele não se importava em ouvir mais nada agora, só queria deitar, esquecer, dormir.— É uma reação normal - Adrianna silenciou e dirigiu o mais rápido possível. Ele precisava dormir. O corpo estava utilizando toda a energia possível para lutar contra os corpos estranhos. Em repouso, os nano agentes acelerariam o processo, vencendo mais rapidamente a batalha e liberando Bruno daquele sofrimento.Os sons do trânsito foram esmaecendo. O balanço do carro causava menos mpacto ao seu corpo cuidadosamente espremido junto à porta. Desejava um travesseiro, queria que tudo aquilo fosse embora, sumisse. Não notou quando chegaram, nem teve consciência de ter subido o elevador em direção ao seu apartamento, muito menos da presença constante de Adrianna o amparando. Sentiu, sim, o prazer e o aconchego conhecido de sua cama e a sensação de poder relaxar e se entregar totalmente à exaustão.

11. Missões

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Pedro era funcionário da Polícia Federal brasileira fazia quatro anos. Todos cumpridos na alfândega do aeroporto de Guarulhos, em São Paulo. Gostava da estabilidade e prestígio que o cargo lhe proporcionava. Naquela manhã, estava especialmente de bom humor, talvez aquele fosse o dia do anúncio da sua promoção. Já não era sem tempo. Extremamente meticuloso e ágil, suas filas eram sempre as mais rápidas e nunca cometera um erro.— Bom dia. Lazer ou negócios? — diante da expressão ligeiramente confusa do estrangeiro e, notando o passaporte indiano, ele repetiu em inglês. — Business or pleasure, Mr. Splitzer?O homem não parecia indiano, embora isso nada significasse considerando a profusão de descendentes ingleses por lá. A barba era bem cuidada, sem volume, cabelos negros curtos, pele branca, compleição física mediana, sem marcas visíveis. Usava jeans e jaqueta de couro sobre uma camisa de tecido azul, todas aparentemente de boas marcas. O relógio era prateado, grande e bonito, nada como os chamativos relógios de ouro preferidos por traficantes. Exceto pelo calor que sentiria ao se afastar dos efeitos do ar-condicionado usando aquela roupa, o sujeito não levantava suspeitas.— Pleasure — respondeu o turista sorridente.— Alone? — era sempre importante saber se o passageiro viajava sozinho. Os traficantes ou fugitivos dificilmente viajavam acompanhados.— I will meet some friends for new year's eve in Salvador.

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O homem respondeu, claramente animado. O inglês era perfeito e se iria passar o Ano-novo com amigos como dissera, ele não poderia averiguar. Porém, a fisionomia sorridente inspirava confiança. Pedro conferiu a passagem de conexão para Salvador. Levando em conta a quantidade de festas embaladas por ídolos do Axé Music acontecendo a todo tempo na Bahia, imaginava se alguém conseguia trabalhar naquela terra antes do Carnaval. Aquilo o fez lembrar-se da disputa anual com a esposa sobre o destino das férias. Talvez, no próximo ano, cedesse aos insistentes pedidos da mulher de experimentarem o Carnaval de lá. De qualquer sorte, era um bom lugar para um turista passar o Réveillon. Praias maravilhosas e sol o ano todo. Como todos os documentos estavam em ordem e a história era coerente, sempre avaliava a história e as feições do imigrante, liberou-o com a eficiência habitual.— Welcome to Brazil, have a nice stay — desejou boas-vindas ao turista, mantendo o sorriso e a cortesia, suas marcas registradas.— Thanks — Splitzer exibiu mais um sorriso e seguiu caminho.

Eram 8h50 da manhã, não trouxera nada além da mala de mão pendurada agora no ombro por uma longa alça, portanto atravessou direto o salão de bagagem ganhando tempo. Marcara uma reunião na sala VIP da companhia aérea às 9h e ainda precisava fazer um check in para outro estado. No caminho rasgou e descartou as

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passagens de ida e volta de Salvador na primeira lata de lixo. Já cumpriram seu papel. Podia ter revelado que estava ali a negócios e utilizado seu português fluente, mas sua natureza desconfiada sempre o conduzia por caminhos menos ortodoxos. De fato, eram negócios particulares e não associados à empresa, quanto menos pessoas soubessem seu objetivo ali, melhor seria.

Maurício Yokomisso era um dos dois sócios da Incógnito - Agência de Informações. Adorava o nome da própria empresa, escolhido por ele mesmo, considerava-o claro sem ser óbvio ou chulo. Tinha muito orgulho dos quase vinte anos de sucesso em um ramo complicado, no qual os ex-detetives de polícia mais chinfrins cobravam migalhas por um trabalho porco, tomando mercado das poucas agências de detetives de real qualidade. Nunca fora policial, por isso se associara a um amigo de infância e o convencera a deixar a estabilidade da corporação e se aventurar no mundo empresarial. Valera a pena, aos 47 anos era responsável por cerca de trinta empregados diretos e uma enxurrada de prestadores de serviço, sem contar as franquias do Rio de Janeiro, Brasília e Curitiba, também boas empregadoras. Por isso não estranhou a ligação do Sr. Splitzer de Londres, não muito, pelo menos. Conhecia seu valor e reconhecia as referências construídas ao longo daqueles anos. Ainda assim era pouco usual.

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Um encontro no aeroporto após um único contato telefônico, exigindo a presença de um dos sócios. Não fosse o fato de ter recebido 5 mil reais de adiantamento, depositados diretamente na conta corrente da empresa, não reembolsáveis e sem nenhum recibo emitido, não se daria ao trabalho.Buscara as informações básicas de praxe, como nome completo, residência, contatos, empregos, escola e amigos, parte da preparação normal para um encontro com um novo cliente. Não fora fácil. Investigações internacionais não eram da sua alçada, contudo prestara serviço duas ou três vezes para empresas americanas e firmara contatos estabelecendo uma relação informal de troca de informações simples, úteis para ambos os lados. Os quatro primeiros itens foram fáceis, os dois últimos eram um borrão. O parceiro americano se oferecera para cavar mais fundo, envolvendo custos, é claro. Ele preferiu aguardar o resultado do encontro.

— Um Sr. Maurício Yokomisso me aguarda, acredito. Sou o Sr. Splitzer. — O semblante sério ditava o tom, não precisava mais interpretar. Estava apressado, já eram 9h15. Como a sala fora pré-paga, acreditou não serem necessárias credenciais.A bela recepcionista deu as boas-vindas de praxe e indicou uma sala ao fundo do corredor. As paredes eram de vidro com listras horizontais em jateado, permitindo certa privacidade. No espaço três por três estava o Sr. Yokomisso, aparentava cerca de 50 anos e, mesmo por trás da mesa

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redonda, notava-se que o sujeito estava visivelmente fora de forma. Mesmo sendo ambos arroximadamente da mesma altura, 1,90m, ele parecia maior. O paletó de qualidade mediana, assim como os sapatos, vestia um homem caucasiano de cabelo parcialmente grisalho, excepcionalmente curto, e barba bem-feita. Um biotipo característico daquele país, exceto pela altura acima da média. Apesar da casca burilada, era claramente um homem de origem simples. De forma geral o aprovou.— Sr. Splitzer? Sou Maurício Yokomisso. - Levantou-se da cadeira estendendo a mão. Pela ligação telefônica já sabia que o futuro contratante falava português fluente.— Sr. Yokomisso — retribuiu o aperto e sentaram-se.— Pode me chamar de Maurício. Fez boa viagem?— Ótima. Se não se importa gostaria de ir logo aos negócios. Preciso pegar um vôo em uma hora.Maurício assentiu com a cabeça. Esperava alguém de paletó, afinal era um encontro de negócios. Certamente era sério e possuía a atitude de um executivo. As roupas denotavam dinheiro, assim como o local de encontro. O bilhete de embarque não estava à vista, portanto não tinha idéia do destino do vôo. Ainda.— Tenho uma missão relativamente simples, se for cumprida a contento, outros trabalhos virão. Preciso localizar esta mulher — Splitzer escreveu o nome no bloco sobre a mesa. - Ela tem hoje algo entre 70 a 90 anos, morava em Salvador há quarenta anos, aproximadamente. Quero saber

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se teve filhos, quando, onde, quem é, ou são, os pais, onde estão hoje, o que fazem, quanto ganham, amigos, inimigos, hábitos, enfim, um perfil completo: financeiro, social e cultural dela e da família direta.— Tem mais alguma informação?— Não. Mande-me um relatório detalhado no fim do próximo mês para este endereço de e-mail — tomou o bloco das mãos de Maurício e anotou o endereço, devolvendo-o em seguida. - Meu telefone de contato continua o mesmo. Só me ligue se for uma emergência, embora não imagino algo que se qualifique como tal. O contato preferencial é o correio eletrônico.— Posso perguntar o motivo da pesquisa?— Particular. Se ela estiver em dificuldades, talvez a ajudemos.A resposta era evasiva e provavelmente falsa. Yokomisso optou por não insistir, descobriria sozinho os motivos.— Uma investigação com esse nível de detalhe pode sair caro. A família pode ser grande, cobramos por hora, 200 reais, além do pacote básico de informações de mil reais - salgara um pouco os preços para testar o cliente, como de costume. — Se forem três filhos, todos casados, daria um total de oito pessoas, dez horas de vigilância seriam o mínimo para traçarmos hábitos, dando um total de 24 mil reais - aguardou ansioso pela resposta, mantendo o semblante mais límpido possível.— Farei o depósito do total hoje na mesma conta usada anteriormente. Caso essa previsão seja

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excedida, me informe pelo e-mail e complemento o valor. Se sobrar mantenha como crédito. Espero um extrato detalhado de horas junto ao relatório final. — A cobrança era excessiva, ele supunha, porém representava pouco para ele. Preferiu deixar o homem satisfeito. - Obviamente renegociaremos o preço no caso de uma relação comercial permanente - disse Splitzer.— E qual seria a natureza desses serviços vindouros? A mesma? — Já calculava mentalmente os lucros enquanto falava.— Esse assunto é pessoal e pode se desdobrar em novos trabalhos. Porém nossas transações correriam majoritariamente por outra área. Meu grupo empresarial pretende desenvolver vários negócios no país e gostamos de conhece: com quem lidamos. Pediremos basicamente investigações de caráter. No mturo, talvez necessitemos de segurança pessoal para alguns executivos e patrimonial para as instalações da empresa.Maurício estava exultante, pela investigação básica sabia o tamanho do conglomerado e entendia o potencial financeiro ali representado. Apesar disso, sentia-se obrigado a levantar certas questões.— Obviamente não deve ser o caso, contudo gostaria de deixar claro nosso código de conduta. Não aceitamos envolvimento em chantagem de qualquer tipo — aquilo não era de todo uma verdade. Na realidade não podiam se dar ao luxo de fazerem parte do crime. Essa observação constava no contrato de trabalho padrão da

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Incógnito e era melhor reforçá-lo em voz alta. Assim ficava estabelecida a política do "você não me conta e eu finjo não saber".— Não esperaria outra coisa. Trouxe os documentos?— Sim — e rapidamente os retirou da pasta que descansava ao seu lado, sobre a mesa.Na revisão do termo de confidencialidade, solicitado explicitamente por Splitzer, não havia problema e assinaram ambos. O contrato de trabalho teve um tratamento diferente. Sob o olhar espantado de Maurício, ele rasurou o documento, eliminando boa parte das informações consideradas inúteis. Habilmente, rubricou ao lado de todas. Ficaram apenas as informações básicas, Splitzer ainda incluiu o valor do adiantamento. Assinou finalmente o contrato e o entregou a Yokomisso enquanto se levantava.— Faça as alterações nessa minuta e assino um definitivo em nosso próximo encontro. Espero ter contratado o homem certo.— Foi um prazer, tenha uma boa viagem — ignorou o abuso, afinal iria pagar adiantado. O aperto de mão foi automático.— Se não se importar prefiro não ser visto acompanhado de um investigador particular. - Não havia constrangimento em seu rosto.Maurício assentiu, fazia parte do trabalho, já se acostumara. Os maiores clientes eram os mais exigentes quanto a essa questão. Após alguns minutos saiu andando pelo aeroporto, circulando pelas filas de embarque doméstico. Identificou o

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novo cliente na fila daTAM linhas aéreas. Era o suficiente, a partir de seus contatos descobriria depois o destino final. Ao se encaminhar para o estacionamento do aeroporto deu outra olhada no papel com o nome escrito pelo Sr. Splitzer.

Marta Silva Lutz

Ao chegar a Brasília almoçou rapidamente no próprio aeroporto. Alugou um Toyota Corolla e seguiu para a BR-060. Com a ajuda do Google Maps fora fácil seguir até o destino, 16°11'54.55", latitude sul e 48°40'40.33", longitude oeste, supondo corretos os cálculos. Pouco mais de uma hora e meia após a partida do aeroporto, estacionou o carro e vislumbrou o local. Uma vasta extensão de coisa alguma. A exceção de uma pequena fazenda alguns metros abaixo, não havia praticamente nada no horizonte. Em hipótese nenhuma poderia ter cer-teza de estar no sítio correto. Retirou a máquina Cannon da mala e tirou uma seqüência de fotos de vários ângulos. Fez o mesmo de outro ponto de vista, alguns metros após a curva seguinte, suportando bravamente o sol inclemente da região. Não gastou mais de vinte minutos. Manobrou o carro na estrada quase vazia e disparou em retorno à capital do país.

O estacionamento inserido no complexo de prédios já estava se esvaziando. Encontrou facilmente uma vaga próxima ao edifício situado no Setor Comercial Sul. De fato não precisaria do

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GPS, embora provavelmente o tenha ajudado a ganhar alguns minutos. A cidade, construída em formato de avião, conforme as breves explicações da moça na locadora de carros e suas indicações no mapa, com uma asa norte e uma asa sul formando conjuntos bem compor-tados de prédios ou casas, era organizada em quadras e setores, acessíveis por vias largas e fluidas, tornando fácil para qualquer criança de 10 anos guiar-se ali. A frente do "avião" era composta pela Esplanada dos Ministérios, um conjunto de prédios enfileirados nos dois lados do corredor de avenidas levando ao Congresso Nacional. As construções, quase sempre baixas e largas de tom predominantemente cinza, conferiam um sentimento árido ao local. Isso não o incomodava, sentia-se bem em estruturas regidas por normas claras, resquício de sua vida militar. Notara as consideráveis distâncias entre os prédios e quadras residenciais se comparado a Londres, algo que proporcionava maior privaci-dade e isolamento, ele supunha. Não fosse a falta do mar, se adaptaria muito bem ali. A atendente mencionara também um grande lago. Talvez uma casa em frente ao lago suprisse a falta. Considerando a importância do país em seus pla-nos e a cidade ser sua capital, decidiu incluir mais um item na lista de afazeres.Eram 18h25 quando adentrou o escritório da Estevez Associados. Os móveis clássicos, todos em madeira escura bem trabalhada, contrastavam com os modernos telefones e

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monitores de tela plana sobre a mesa da recepcionista. Gostou daquilo também.— Boa noite. Tenho hora marcada com o Dr. Paulo Ricardo Estevez — entregou um cartão para a belíssima recepcionista. Ao reconhecer o nome, levantou-se imediatamente. O sorriso a deixou ainda mais atraente no tailleur bege.- Boa noite, Sr. Splitzer. O Dr. Paulo o aguarda. Meu nome é Ana, siga-me, por favor.Ele notou as belas formas enquanto a acompanhava, especialmente as panturrilhas torneadas. Uma pequena tatuagem destacava-se no pescoço, abaixo ao cabelo loiro curto e extremamente liso. Um affair com alguém ligado à companhia, mesmo remotamente, estava fora de cogitação. Sua disciplina não permitiria. Fez uma anotação mental para solicitar uma garota de programa naquela noite, ou melhor, duas, uma com tatuagens. Não nutria interesse por amizades ou relacionamentos, portanto considerava esse tipo de arranjo perfeito. De onde vinha, a prostituição não existia. A sua descoberta ao chegar fora uma agradável surpresa.No primeiro corredor Ana pediu a outra secretária para avisar ao sócio principal da chegada do Sr. Splitzer. O escritório era bem mais amplo do que sugeria inicialmente e passaram por algumas portas e corredores. Todas decoradas no mesmo estilo da recepção. Paulo Ricardo Esteves o esperava na porta. Era um homem alto e certamente muito forte. Tinha fartos cabelos pretos e não aparentava mais do que 50 anos.

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Com um sorriso largo cumprimentou o convidado estendendo a mão para um aperto firme.— Boa noite, Sr. Splitzer. Fez boa viagem?— Excelente - respondeu monossilabicamente com um arremedo de sorriso, durante o cumprimento de mãos.— Entre, por favor. Aceita café ou chá?— No Brasil? Café, definitivamente.A expressão neutra do cliente impedia uma leitura clara. Ou ele gostava do café brasileiro ou detestava os chás servidos no país, Paulo não saberia dizer. Com uma simples indicação de cabeça, Ana entendeu o recado e saiu para providenciar as bebidas, fechando a porta ao sair. A sala era ampla e composta por um conjunto de mesa e cadeiras, formando o local básico de trabalho do advogado. Um conjunto de sofá e poltronas, estantes de livros dos dois lados, tudo em estilo clássico e madeira, como deveria ser. A vista da janela dava para o estacionamento. Ao sentar-se ele foi incisivo.— Antes de fecharmos esta parceria gostaria de me certificar de estarem aptos a atender todo o escopo de nossas necessidades - Splitzer iniciou, sempre direto ao ponto.— Certamente. Nosso escritório atua fortemente nas áreas tributária, empresarial e imobiliária, conforme o material enviado a sua equipe. Contamos com parcerias para servi-lo em outras áreas, caso necessário. Pelo nosso entendimento podemos atender a todas as exigências do seu grupo. Devo acrescentar, estamos honrados por participar do processo de escolha do seu

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representante aqui - adicionou por cautela tentando monitorar as reações do interlocutor. Não esperava haver um processo em andamento, mas gostaria de ter certeza. — Talvez o ideal fosse o senhor expressar suas dúvidas e prosseguirmos a partir delas.— Não tenho dúvidas quanto às capacidades legais de seu escritório, nem sobre as áreas de atuação, obviamente me informei antes de pegar um avião da Europa para o Brasil — o tom levemente sarcástico era proposital, achava importante mostrar logo quem estava com o poder naquela associação e sua baixa tolerância à embromação. - Quero saber se podem nos representar na busca de terrenos e posterior negociação de compra, como deixei claro em meu último e-mail.— Podemos sim, sinto não ter entendido inicialmente a pergunta. — O tom autoritário do Sr. Splitzer não lhe passou despercebido. Embora fosse um homem de pouca paciência, Paulo não arriscaria a representação de um grupo, cujo capital montava em bilhões de euros, em função do temperamento de um de seus executivos. - Fazemos isso em alguns casos para clientes especiais. Temos excelentes relações com as principais corretoras de imóveis do país e escritórios parceiros nas principais capitais. Posso marcar uma reunião com os presidentes dessas corretoras e nosso grupo de direito imobiliário, se tiver tempo.- Não será necessário. Vamos seguir o plano inicial e firmar um contrato de trabalho de um

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ano. Se tudo correr bem, fazemos um aditivo para cinco.- Perfeito - Paulo não esperava ser tão fácil.- Gosto de deixar sempre tudo claro, Dr. Paulo. Tenho uma tarefa para vocês e o grau de excelência do seu escritório ao lidar com ela determinará o futuro de nossas relações. Trata-se de um terreno a cerca de 100 quilômetros de Brasília, em Goiás, próximo a um vilarejo chamado Abadiânia, às margens da 3R-060. Preciso de cerca de 600 mil metros quadrados, mas podemos comprar mais se for necessário. Não sei de quem é a terra e não me interessa. Se for de um fazendeiro, ofereça dinheiro suficiente para tornar a proposta irrecusável. Se pertencer à cidade ou ao estado, compre, organize um lobby para desapropriar, faça o que for necessário. Será pago pela agilidade nesse negócio. Em outros, pelo retorno do investimento. Em cada caso deixaremos claras nossas prioridades. Funciona para vocês?- Certamente. Posso perguntar o objetivo do terreno.- Ainda é sigiloso. Não podemos nos dar ao luxo de sofrer espionagem industrial. Você deve estar ciente da nossa liderança e pioneirismo nos setores dos quais atuamos.- Entendo. É preciso, contudo, esclarecer as dificuldades de nosso país quanto à permissões relativas a determinado tipo de exploração do solo. Se não soubermos o destino final do terreno não poderemos aconselhá-lo quanto à viabilidade de qualquer negócio lá.

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- Correremos os riscos. Mandarei por e-mail fotos do sítio e a coordenada geográfica do terreno. Trace um quadrado em torno do ponto, de forma a contemplar os seiscentos mil metros. Alguma dúvida?- Nenhuma. Podemos partir para a assinatura dos contratos, então? Estão de acordo com o último rascunho enviado por sua empresa - ele também sabia ser seco e objetivo, se esse era o tom esperado.- Sim. Só mais um item, de extrema importância. Os detalhes dessa negociação devem ser trocados apenas entre o seu escritório e eu, ou minha secretária.- Sem problemas - o advogado estendeu a mão para o telefone acima da mesa, acionou o viva-voz e chamou outra secretária: - Dona Alina, por favor, peça ao Dr. Rodrigo que venha a minha sala. Ah, e verifique onde está nosso café. — Neste exato momento a porta se abriu e a copeira entrou com o café e a água em um belo conjunto de xícaras de porcelana e copos de cristal. - Já não era sem tempo - disse o advogado.- Açúcar ou adoçante?A copeira era obviamente simples, de classe social mais baixa, contudo mantinha o padrão de beleza e simpatia notado por Splitzer no breve passeio pelos corredores. Tudo ali era projetado para impressionar.- Açúcar, duas colheres.- O Dr. Rodrigo será o responsável pelo contato com o escritório de vocês. E fluente em inglês,

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embora isso claramente não seja necessário. Seu português é impecável, diga-se de passagem. Já morou no Brasil?- Obrigado, e não morei - explicar os motivos da habilidade em línguas, especialmente o português, estava fora de cogitação. - Ele terá muitos contatos com outros executivos ao longo do tempo, portanto, o inglês será útil.Duas horas depois os contratos estavam revisados e assinados. Dr. Paulo não gostou do Sr. Splitzer, previa dificuldades de relacionamento. O homem possivelmente acreditava ser o dono do mundo. Mesmo assim não podia rejeitar o cliente, seria renegar a possibilidade de ganhar milhões em comissões. Não se rejeita um contrato com o grupo Power.Paulo e Rodrigo acompanharam o convidado até o elevador. Durante as despedidas houve um último pedido do novo cliente.- Ah, quase me esqueci. Encontrem uma casa para mim em frente ao lago. Pelo menos oito quartos, piscina, jardim e um heliporto.Naquele instante a porta do elevador se abriu e Splitzer entrou, deixando dois advogados ligeiramente atordoados contemplando seu fechamento automático.

12. O dia seguinte

Tudo ficara difuso e nublado nas recordações de Bruno. Lembrava-se de Adrianna levando-o para casa, ajudando-o a se deitar, de ouvir algo mais durante a noite sem precisar exatamente o quê,

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do telefone tocando, de sua mãe checando periodicamente sua temperatura, de dor, de gemer e de frio, muito frio. Houvera também um sonho, algo sobre cidades futurísticas e mundos subaquáticos, cujas imagens relampejavam e eram esquecidas quase com a mesma velocidade.Quando abriu levemente os olhos para o dia claro inundando seu quarto, tudo se misturava. Realidade e sonho, em um mesmo devaneio distante. Ouvia-se uma voz bem baixa ao longe.- Bruno, Bruno. É melhor você acordar agora, vai lhe fazer bem. Bruno...Sua mãe não passou a noite velando seu sono, percebeu assustado, fora Adrianna. Conforme essa certeza penetrava rapidamente em sua consciência, levantou-se de um salto, quase tão rápido quanto arregalava os olhos.- O que você está fazendo aqui? - perguntou conferindo rapidamente estava vestido. Exceto pelos pés descalços, usava as mesmas roupas do dia anterior. Sentiu-se apenas levemente aliviado, de qualquer sorte sua privacidade fora invadida.- Cuidando de você? — o tom era irônico.- E eu precisava de cuidados? - Era mais uma insinuação que uma pergunta. Percebeu o quão preocupado estava com os efeitos do soro.- Não "precisava" - ela desenhou as aspas no espaço com as mãos. - Mesmo assim eu preferi ficar. Confio no soro, mas me preocupo com você, fiquei mais tranqüila permanecendo aqui.

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Bruno checou as horas no relógio de pulso, eram 5h30 da manhã.- Fiz café! — falou, sorrindo, como se fossem os melhores amigos.Ele se perguntava se ela acreditava que as últimas 24 horas não tinham existido. Não sabia se ia tomar café ou se jogava o criado-mudo na cabeça dela. Obviamente, jogar o criado-mudo não o ajudaria a esclarecer suas dúvidas e, considerando as habilidades da oponente, ia acabar apanhando. Portanto, optou pelo café da manhã. Fez sinal para que ela liderasse o caminho.- Não estou sentindo mais nada. Passou de vez ou devo esperar por outras rajadas de dor?- Acabou de vez.Entre o alívio duvidoso da resposta e a visão da mesa da sala, farta e já posta, sentiu o apetite se abrindo e o humor melhorando em ondas suaves e rápidas. Enquanto se sentava contemplou o desjejum. Ela preparara sanduíches de queijo e suco de laranja, comprara pães fresquinhos, fizera o café, colocara o leite, a manteiga, o chocolate em pó, o queijo e o presunto na mesa. Havia também peras, mamão e melão, presenças comuns em sua dieta; manga e iogurte, ela certamente comprara ou trouxera da casa dela.- Para quem não é dessa dimensão você prepara um belo café da manhã - o leve tom sarcástico pontuando a frase.- Já estou há três anos e meio aqui, Bruno. Já deu para aprender a fazer um café - respondeu apenas levemente aborrecida com o seu tom

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irônico. Dando de ombros, levou à boca uma colher de iogurte de morango.Havia trocado de roupa, ele percebeu. Certamente teria ido a sua casa em algum ponto da noite. Usava uma camiseta de tecido cor salmão e uma bermuda bege. Ali, tomando iogurte em sua sala de jantar, aquela visão confundia seus sentimentos. Absurdamente ainda se sentia atraído por ela. Malditos olhos azuis.Enquanto comia tentava avaliar a situação. Não podia acreditar na história, não podia ser real. Contudo, precisava admitir que, a despeito de ser algo absurdamente inacreditável, não encontrara nenhum furo. Seus pensamentos foram interrompidos pela voz dela.- Acho que seria uma boa idéia lhe falar sobre o soro agora, não?Ele assentiu com a cabeça assumindo uma postura atenta.- Desculpe-me se vou ser um pouco prolixa. Para uma mente racional como a sua, o melhor é ser detalhista, não é?- Com certeza - assim tinha mais chances de encontrar alguma falha na história. Devia existir alguma. A alternativa o deixaria sem nenhum controle sobre aquela situação, e ele detestava aquilo.Ela se ajeitou na cadeira e pigarreou de leve. Claramente tentava assumir uma postura séria naquele momento. Precisava de credibilidade.- Há cerca de oitocentos anos, na busca incessante da cura para doenças degenerativas,

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encontramos a solução para impedir a degeneração celular e estimular a multiplicação de células sadias — Adrianna fez uma pequena pausa na qual tentou medir o impacto de suas palavras. Se ele havia entendido a importância da descoberta, foi bem-sucedido em não demonstrar, ela pensou.- Na verdade o processo permitia o estímulo à multiplicação ou à destruição de tipos específicos de células. Injetávamos um agente na corrente sangüínea e ele percorria o corpo. Ao encontrar as células alvo, aderia-se a elas, destruindo-as ou funcionando como catalisador e estimulando sua multiplicação. Foi uma ruptura de paradigmas em quase todos os campos da Medicina. Curamos todas as doenças capazes de destruir células ou afetarem o sistema imunológico — apesar do tom professoral na voz de Adrianna, havia em sua expressão certo entusiasmo contido. — Imagine, Bruno, um mundo onde 99% das doenças letais conhecidas pela humanidade não existem...- Você está me dizendo que tem a cura para o câncer e para a aids? - ele a interrompeu com um misto de incredulidade e vontade de ouvir uma resposta positiva.- Minha sociedade tem — pausou fazendo um manejo de cabeça, como quem pondera. — Com alguma ajuda e muito tempo, existe uma boa chance de conseguir reproduzir aqui algo parecido. Mas vamos com calma. Ouça tudo, pois estaremos falando de você agora.

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Apesar da óbvia ansiedade ele se conteve. Sentia até a respiração mais lenta, não queria perder nenhum detalhe.- O estudo desse processo nos fez ir mais além. Percebemos que mesmo pessoas saudáveis se beneficiariam de sua aplicação. As possibilidades eram imensas. Podíamos estimular as células ligadas à formação dos músculos ou destruir as de gordura. Estimular partes do cérebro até então não utilizadas, enfim, nos tornarmos melhores em praticamente todos os aspectos.Bruno já não comia, hipnotizado pela explanação e suas possibilidades, havia se esquecido por um momento de todas as suas dúvidas. Ela dissera ser cima bióloga molecular, não dissera?- Começou assim, a partir desse conceito. Inicialmente apenas adultos podiam se submeter ao processo. Era lento e com resultados de longo prazo. Com o passar do tempo fomos aprimorando a técnica. Passou a ser fácil e rápido. Obviamente muitos dos efeitos levavam mais tempo para serem percebidos, mas também vivíamos mais.- Como assim? Você já tinha dito algo sobre viver mais e no meio de tanta informação acabei não perguntando nada sobre isso. Quanto tempo mesmo vocês vivem? — era um misto de pergunta e desafio.- A longevidade foi um subproduto natural do processo - sua única opção era ser o mais didática possível. - O envelhecimento nada mais é do que a aceleração da destruição celular até atingir um nível insuportável para alguns órgãos.

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Quando eles entram em falência, morremos. Os agentes permaneciam no corpo todo o tempo. Em algumas situações as células saudáveis multiplicadas tomavam o lugar das defeituosas. Em outras, eles penetravam nas células alteradas e eram capazes de disparar determinas "mensagens", fazendo-as retornar ao seu estado natural. A perda óssea e muscular, a deterioração da pele e assim por diante, tudo acaba sendo tratado como uma doença e pode ser evitada em âmbito celular. É extremamente complexo e obviamente estou fazendo uma simplificação gigantesca.— Vocês conseguem impedir a morte? - instintivamente Bruno prendia a respiração à espera da resposta.— Não. Em algum ponto o envelhecimento do corpo ganha o "cabo de guerra". Afinal, o composto utilizado no processo não foi projetado para aumentar a longevidade. O fato é que ganhamos tempo para aproveitar e desenvolver os efeitos da droga.— Está se esquivando da resposta, Adrianna. Quanto tempo?— A expectativa de vida atual é de 218 anos, se não me engano. Alguns poucos chegam até a 300 - a incredulidade era patente em seus olhos, algo já esperado. - Parece muito... Eu sei.— Será mesmo?Adrianna trocou de lugar, sentando-se na cadeira vazia entre eles. Foi um movimento automático, só percebeu quando já havia se deslocado. Sentia necessidade de estar mais próxima.

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Assim, talvez, Bruno percebesse sua sinceridade, a verdade em seus olhos.— Com a evolução, a utilização do processo de enriquecimento celular passou a ser obrigatório, como uma vacina. Ele permitia um funcionamento melhor do nosso sistema imunológico, evitando a maioria das doenças - Adrianna fez outra pausa para dar lugar a um sorriso incontido. - Aí, algo inesperado aconteceu. Os bebês inoculados absorviam os reagentes em um nível mais profundo que os adultos. O efeito, inicialmente, passou despercebido, mas seus organismos passaram a produzir sozinhos boa parte dos compostos que catalisavam os processos celulares benéficos. Foi como jogar uma bola ladeira abaixo. Uma vez iniciada a reação, a ladeira, no caso o metabolismo acelerado dos bebês, se ocupava de manter a bola girando.Ela manteve o sorriso, resquício da adolescente maravilhada, fascinada pelo estudo do corpo humano e suas interações em âmbito molecular, motivo pelo qual se tornou parte daquele mundo. O mundo da Ciência e da Medicina.— Quando esses bebês se tornaram adultos e tiveram seus próprios filhos, ao longo de poucas gerações, as crianças já nasciam produzindo os compostos sem necessidade dos agentes externos. Tinham herdado de suas mães. Foi um resultado inesperado que espantou toda a comunidade científica, como se a natureza estivesse preparada para aquilo, como se

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tivéssemos apenas acelerado a evolução, foi maravilhoso, foi divino.Estava ali, claro como cristal, ela acreditava piamente no que dizia. Toda sua expressão corporal exalava essa certeza. Se aquilo fosse uma farsa nenhuma atriz de Hollywood chegaria aos seus pés.- Foi essa a vacina aplicada em mim?- Uma versão atualizada dela, de efeito acelerado. Por sorte, eu estava mostrando o protótipo para o professor Onan quando tudo aconteceu e pude trazê-la comigo. Só havia uma dose, uma chance e era preciso um alvo pelo menos 50% compatível com o reagente padrão — se arrependeu no momento em que mencionou a palavra alvo, mas achou inútil se desculpar. - No processo original tínhamos diferentes versões da vacina para diversas variações de DNA. Não existia uma vacina universal. Você foi o único nas fontes de dados com características compatíveis.- Que fontes?- Bancos de sangue e laboratórios de exames. Não havia como realizar um estudo de DNA de cada amostra. Aqui na Terra não é procedimento padrão armazenar essa informação. Então precisei improvisar. Certas características identificáveis em exames típicos ampliavam as probabilidades de sucesso, como níveis de leucócitos, plaquetas, colesterol, triglicérides etc. São vários itens... Enfim, muitos deles precisam estar em seus limites máximos. Como eu disse,

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ocê foi o único compatível. O composto acelerador Alpha11 ia perder a validade... Eu precisava de você, Bruno. Precisava de uma identidade válida na Terra para me ajudar a anular as ações de Kerligan. Você pode ser o elemento surpresa. Eles são dois e Kerligan é mais competente do que eu em várias áreas. Sozinha eu não conseguirei.- Um protótipo? - ele falou assustado, ignorando intencionalmente seu papel no suposto plano de Adrianna.- Meu projeto buscava imprimir maior eficiência no tratamento de doenças degenerativas extremamente agressivas relacionadas à exposição a radiação. Basicamente, a diferença está na forma de aplicação. Dividi o composto em duas partes: uma para atuar na estrutura muscular e óssea, aplicada diretamente em algum músculo, e outra para o cérebro e outros órgãos. A última precisava ser aplicada via venosa. A primeira prepara o campo para a segunda. Bilhões de nano robôs biológicos fazem parte da substância levando as enzimas artificiais para os locais certos do corpo, aderindo às estruturas objeto e se dissolvendo depois. É a característica de ação rápida que dispara as defesas do organismo, mas logo o sistema imunológico é sobrepujado pela ação do composto. Você vai ficar bem. Melhor, na realidade - ela sorriu. - Você vai ficar bem melhor.Bruno lutava para colocar "nano", "robôs", e "biológicos" na mesma frase e achar algum

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sentido quando resolveu desistir. Não valia a pena entender aquilo em profundidade. Não era médico nem cientista. Levantou-se para falar, sempre se sentia melhor ao falar de assuntos sérios enquanto andava.- Não vou nem tentar entender em detalhes, verdade ou não, não tenho conhecimento para discutir esse troço - ele parava olhando para ela, demonstrando nas rugas da face sua confusão. — Olha... Eu até quero acreditar, mas não sei como. Não posso provar que é, nem que não é. Estou perdido aqui.Ela se levantou, tocou em seu ombro e na mão dele pousada sobre o encosto da cadeira.- Eu sei. Você pode fazer testes. Pode levar amostras de sangue para seus amigos, mas com a tecnologia daqui, vai ver pouca coisa. Basicamente, os efeitos. Nada será conclusivo.- Esta parte eu deduzi sozinho - ele não estava zangado, estava cansado, frustrado e sua expressão corporal era um reflexo perfeito dessas sensações.— Infelizmente você só pode contar com a lógica e com o seu coração — ela pousou a mão dele espalmada sobre o lado direito de seu peito. - Estou mentindo?Seus rostos encontravam-se a um palmo e meio de distância. A proximidade não o incomodou, tampouco o tranqüilizou. Estava sozinho naquele momento, completamente sozinho. Olhava para baixo quando balançou a cabeça admitindo que não.— E o que acontece agora?

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— Você vai evoluir cotidianamente — Adrianna falou ao se afastar. Ele precisava de espaço naquele momento. — Se fizermos um trabalho intensivo, exercitando músculos e cérebro, pode atingir o pico do seu potencial em um ano — ela explicou, retomando o estilo professoral. Encaminhou-se para a porta da rua pegando a bolsa no caminho.- Ainda tenho perguntas... Eu acho - mencionou, sem tentar impedi-la, enquanto a acompanhava e abria a porta.— Claro... Mas também vai precisar refletir e processar todas essas informações — virou-se para ele, ficaram novamente a poucos centímetros um do outro. - Siga sua rotina, acabe o café, vá para a academia, leia os jornais e analise a bolsa de valores. Mantenha o celular próximo. Eu não me esqueci da minha dívida. Se concordar, almoçamos juntos onde quiser. Lá responderei suas dúvidas. Ah, não se segure na academia, descubra seu potencial — Adrianna sorriu e atravessou a porta.O elevador já estava parado no seu andar e ela se foi rapidamente. Ele parecia estar se acostumando a tê-la no comando e não gostava nada da sensação.

Apesar do sol já pujante às 7h da manhã o vento refrescante invadia o carro através das janelas abertas da RAV tornando o trajeto até a academia não apenas agradável, mas também tão comum como em todos os dias. Era irônico como tudo parecia tão cotidiano quando sua vida

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acabara de mudar de forma tão radical. O futuro, mesmo de curtíssimo prazo, era tão obscuro quanto qualquer mistério do universo. As decisões a serem tomadas pairavam sobre sua cabeça. Nuvens densas de chuva prenunciando tempos ruins. Sentia-se mais confuso a cada momento. De certo, apenas a absoluta certeza de que sua vida não seria mais a mesma, nem de longe.Os pensamentos foram interrompidos pelo toque do celular. O número na tela era o de Natan. Atendeu já preparado para as desculpas, dada a confusão com as ligações no dia anterior. Obviamente o amigo não entendera nada.- Pô, Zoinho, desculpe não ter ligado à noite! - ele se adiantou.— O que aconteceu ontem? Você parecia estranho no telefone.— Rapaz - as palavras lhe faltaram. Os acontecimentos do dia anterior não podiam ser traduzidos por telefone. — Eu queria discutir algumas idéias sobre a bolsa, algumas ações para longo prazo aproveitando as últimas quedas, mas o dia com Adrianna foi meio louco e acabei me perdendo — detestava mentir, principalmente para o seu melhor amigo. - Me desculpe, fiquei até tarde com ela e depois desmaiei na cama - essa parte era verdade, de certa forma.- Com ela? Dormiram juntos? Rápido assim?Percebia-se o sorriso e a curiosidade de Natan bem além das palavras. Era o seu tipo de

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conversa. Fosse positiva a resposta, a falta estaria automaticamente esquecida.— Não e nem sei se vai rolar. — Na verdade tinha certeza do oposto. Decidiu quebrar o clima aos poucos, evitando assim maiores explicações naquele momento, já estava chegando à academia.— Então, por que não me ligou à noite? Liguei e ninguém atendeu. Fiquei preocupado, porra!- Foi mal! Não passei muito bem e acabei me esquecendo de ligar.- Teve febre novamente?Precisava pensar rápido agora, inventar algo convincente o suficiente para livrar sua cara, sem ao mesmo tempo incitar Natan a insistir por uma ida ao médico. Depois contaria tudo ao amigo.- Nem febre nem vômito. Só uma dor de cabeça monstruosa. Deve ter sido o sol e o álcool - bebida era sempre uma boa desculpa já estou legal agora.— Você sempre foi fraco para bebida mesmo! — provocou o amigo. Bruno deu uma pequena risada em retorno. — E o Réveillon na marina, tudo certo? Tô indo comprar hoje nossos convites.Bruno havia esquecido completamente de ter combinado passar o Ano-novo na grande festa da marina. Ambos estavam solteiros, seria uma noite de caça. Diante dos últimos acontecimentos, se decidisse acreditar em Adrianna, os próximos dias seriam imprevisíveis tornando o compromisso difícil de cumprir. Mais uma vez precisava ser rápido.

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- Zoinho... Não me mate, mas não sei se vai dar.— Como não sabe, combinamos já há um mês e você em nenhum momento colocou dificuldade. Vai me deixar sozinho na última hora?— Espera aí. Eu não estava muito animado desde o início. Não quero te deixar na mão também...- E está deixando! - a voz transmitia a exata quantidade da insatisfação dele.— Olha, fique calmo, te ligo no final do dia e a gente acerta.- Ninguém merece. Vou desligar para não me irritar mais. Vou trabalhar - desconectou sem esperar resposta.Uma leve angústia lhe comprimia o peito. Detestava mentiras, ainda mais quando por conseqüência deixava seu melhor amigo chateado. Ele não era o tipo de pessoa que empurrava os problemas para depois, tentava sempre resolvê-los na hora, não importava quanto trabalho isso gerasse ou quanta conversa fosse necessária. Detestava não poder ligar e explicar tudo. Certamente Natan entenderia, porém o obrigaria a ir ao médico realizar todo o tipo de exames. Ele precisava daquele dia e dos eventos por vir para chegar a alguma conclusão. Depois explicaria tudo, ficaria tudo bem, ele tentou se convencer.Depois de deixar o carro no estacionamento da academia seguiu sua rotina. Cumprimentou a recepcionista, digitou seu número de matrícula no computador e se apoderou da ficha de exercícios do dia prontamente cuspida pela mini-impressora. Sabia a lista de cor, afinal eram

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apenas duas séries diferentes. Imprimia a lista apenas para registrar a freqüência. O procedimento garantia um alerta visual na máquina caso fosse o momento de alterá-la. Aquilo era útil. Uma série era composta de exercícios para braço, peito e costas e a outra contemplava pernas, tríceps e ombros.Estava curioso, apressou os exercícios de alongamento e partiu para o supino. Ao atravessar a sala cumprimentou os instrutores conhecidos, procurava assim evitar a atenção deles quando estivesse aumentando as cargas. Quanto menos perguntas melhor. Deitado na prancha, mirando os halteres sustentados pelas hastes laterais, hesitou, dominou a ansiedade e prosseguiu. Trinta quilos em cada lado era seu padrão e já havia ampliado dois quilos na última sessão, no dia anterior. Após três repetições considerou poder aumentar bastante a carga. Confiante, adicionou oito quilos em cada lado, sempre atento aos colegas usuais. Fez dez repetições e parou. Não estava cansado, não atingira o seu limite ainda. Aumentou mais cinco quilos de cada lado e fez mais dez repetições. Começou a chamar levemente a atenção de quem o via usualmente por ali. Eram olhares de relance, mas ele pressentia a curiosidade. Ou talvez estivesse ficando paranoico. Não pôde resistir e ampliou mais a carga, alcançando cinqüenta quilos em cada ponta. Não foi fácil dessa vez. Terminou o último conjunto de dez repetições e considerou ser aquela a carga correta. Guardou os pesos rapidamente ainda no

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esforço para não chamar atenção, lembrando-se, atônito, que ele mesmo pesava apenas setenta e cinco quilos. Deu graças ao pouco movimento entre Natal e Ano-novo.Ao terminar, uma sensação diferente se apoderara dele. Estava ridiculamente orgulhoso de si mesmo, como se fosse uma conquista pessoal. Não havia mérito seu no resultado, mesmo assim não pôde resistir ao sentimento. A energia fluía por todo o corpo. Era natural sentir-se melhor ao final de cada exercício. Os músculos retesados criavam a ilusão de estar instantaneamente mais fortes e a liberação de endorfina se ocupava da sensação de bem-estar. Experimentava agora algo diferente, dez vezes mais potente, seria capaz de fazer qualquer coisa, tudo era possível. Sorriu para si mesmo e continuou.Todos os exercícios seguintes apresentaram a mesma característica. Para manter o nível de esforço usual era necessário quase dobrar a carga. Bruno não conseguia parar de sorrir e foi necessária muita concentração para evitar um comportamento suspeito. Felizmente, nunca gostara de conversar muito enquanto se exercitava. Normalmente chegava, ligava o iPod, malhava e ia embora. Como conseqüência, raramente atraía a atenção dos colegas e, aparentemente, não levantou suspeitas quanto à súbita melhora no desempenho. Mesmo assim, manteve os fones do aparelho nos ouvidos o tempo todo. Quando um instrutor se aproximava ele fechava os olhos ou desviava o olhar. Ficou

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preocupado quando Téo, um dos professores mais antigos, com quem conversava às vezes, se aproximou meio cismado. No momento Bruno estava exercitando os bíceps. Em pé, levantava a barra de pesos perfeitamente da posição de relaxamento até os braços dobrados atingirem seu tórax. Era um peso inconcebível para seu tipo físico e incompatível com seu histórico, eTéo sabia disso. Bruno fechou os olhos quando percebeu que o instrutor olhava em sua direção. Pressentia a sabatina e não queria ser mal-educado. Afinal, não tinha respostas a dar. Por sorte, uma aluna nova abordou Téo, distraindo-o por alguns minutos. Foi o tempo perfeito para Bruno terminar a seqüência e fugir para o bebedouro.Na esteira, correu a meia hora habitual em velocidade quase duas vezes superior. Estava extasiado e quase não suara. O composto não podia ser maléfico. Ele se sentia tão bem, com uma força e vigor jamais experimentados. Aquilo certamente não representava algo ruim. Àquela altura praticamente rogava para não encontrar falhas na explicação de Adrianna. Desejava manter aquela sensação. Não queria que fosse parte de uma farsa. Saiu vibrando. Sentindo todas as possibilidades do mundo abertas para ele. Eram emoções frívolas, tolas. Como podia estar repleto de uma felicidade tão grande apenas por se sentir mais forte? Não era racional, era instintivo e por isso mesmo incontrolável. Decidiu não lutar contra a felicidade. Resolveu aproveitar o momento. Ligou o aparelho de CDs,

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selecionou Twisting by the Pool, do Dire Straits e seguiu pela orla. Ele cantou durante todo o percurso.

13. Segredos

O dia iniciara cedo, mais precisamente às 5h. As idéias explodiam em sua mente. Às 6h30 já estava no galpão onde um dia funcionaria sua empresa mais importante. Hoje era seu refugio exclusivo. O berço de suas criações, em especial, o centro de estudos de seu maior projeto. Do prédio de quatro andares espalhado em um terreno de seis mil metros quadrados, só utilizava o térreo. Uma vastidão de espaço sem paredes. O local era protegido 24 horas por dia por agentes de segurança e pelo melhor alarme contra invasão disponível na tecnologia atual. Sensores biométricos na entrada permitiam apenas a ele penetrar no edifício. Toda a circunvizinhança era monitorada por câmeras instaladas em pontos estratégicos no prédio e na cerca. Além dele, apenas uma pessoa sabia o objetivo daquelas instalações.Uma enorme mesa de madeira, circundada por três gigantescas lousas repletas de fórmulas, contrastava com o conjunto de doze servidores - computadores de alto poder de processamento - espalhados no canto direito do espaço. Em meio a um emaranhado de fios, trabalhavam em paralelo, resolvendo freneticamente os cálculos solicitados pelo laptop sobre a mesa. Quase tão dedicados à tarefa quanto o homem que escrevia

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furiosamente as equações em uma das lousas. Uma tecnologia de telecomunicações chamada de VPN - rede privativa virtual - ligava os servidores à base de dados do mais importante observatório espacial dos Estados Unidos. A conexão permitia a transferência das mais variadas informações sobre os corpos celestes através de um serviço pago e bastante caro.Lamentavelmente, mesmo as melhores informações disponíveis em seu país não eram completas o suficiente para garantir o sucesso de seu projeto. Eram estimativas com erros da casa de dezenas de anos, quando necessitava de uma precisão de segundos. Faltava ainda o mais importante: os dados iniciais para o cálculo de trajetória. Não importa o quão avançada é a ciência, sem o enunciado completo do problema, ele não pode ser resolvido. Contava em obtê-los quando chegasse e, com bastante dinheiro e sua capacidade científica, prosseguir no plano, conquistar seu destino de direito. Infelizmente, a tecnologia, fosse na Europa ou Estados Unidos, ainda era incipiente para suas necessidades colocando tudo em risco. O sabor amargo da derrota era sentido enquanto ruminava os próximos passos. O fracasso tornaria inúteis os gigantescos esforços empreendidos nos últimos anos. Mas, há muito tempo havia decidido a não se dar por vencido. Se a tecnologia não existia ainda, ele a criaria. Ganharia tanto dinheiro quanto necessário e o investiria no que acreditava ser o sentido de sua existência.

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Acontecia de tempos em tempos, mergulhar nos cálculos diante de novos dados, aprimorar as estimativas e redefinir os próximos passos. Além de uma meta era uma paixão. Naquele dia partira para uma abordagem inversa. Estimara os dados finais e desenvolvera as equações adequadas para o cenário hipotético. Assim podia prever corretamente a potência, precisão e alcance necessários dos instrumentos de medição e das armas. Tivera essa epifania naquela manhã e estava positivamente satisfeito por sua genialidade. Agora podia trabalhar para desenvolver os equipamentos adequados. Quando os dados surgissem, estaria preparado. Só esperava haver tempo hábil. O ponto crítico seria desenvolver a tecnologia adequada para os mísseis, tanto os de longuíssimo, quanto os de curto alcance. O poder de destruição necessário teria de ser avassalador. Portanto, os mísseis deveriam estar prontos e em estado operacional o mais cedo possível. Seria um desafio mantê-los em segredo. Precisaria de algum tipo de fachada capaz de conceder legitimidade ao processo. Em hipótese nenhuma poderiam desconfiar de seus reais objetivos.Verificou as horas, eram 15h22. No Brasil seria, aproximadamente, 10h22. A primeira fase do plano deveria estar completa. Teclou na opção "um" de discagem direta em seu celular e a ligação completou-se rapidamente.- E então? - perguntou em sua língua natal.— Após todos esses anos ainda tem dúvidas da minha capacidade de realizar o trabalho?

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— Está se tornando emotivo? — provocou.— Não alimente esperanças.- Sabe o quanto esse assunto é importante para mim.— A primeira fase ocorreu conforme as expectativas. Estou entrando no avião para Brasília agora.- Ótimo. Me informe quando terminar a segunda fase.- Ok, Arthur. Preciso desligar. Estou sentando na poltrona do avião.Apesar de confiar no parceiro temia por seu temperamento frio e distante. Respeitava sua capacidade e acreditava em sua lealdade. Ele era o único amigo de MJ, fosse ali ou em seu país natal. Jamais esqueceria como salvara sua vida e seria eternamente grato. Porém, não podia concordar com todos os seus métodos. A última briga séria entre eles, há mais de três anos, não fora esquecida. Tornara a relação um tanto fria e cuidadosa, dois animais ferozes batalhando entre o sentimento fraternal e o orgulho, mantendo-se unidos pelo ideal comum.De qualquer sorte, precisava dele, não podia se dar ao luxo de perder tempo e MJ, certamente, era ágil e eficiente atingindo os resultados necessários. A próxima etapa de sua tarefa era sem sombra de dúvidas a mais importante. Sem o terreno no Brasil, trabalhariam às cegas, eternamente na dúvida de estarem cumprindo seu destino conforme esperavam.Sentou-se à frente do laptop e passou a disparar e-mails para diversos executivos da companhia.

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Precisava descobrir que empresas ou centros de pesquisas estavam mais avançados em relação as suas necessidades. Depois retornou à lousa, conferindo minuciosamente todas as equações antes de transformá-las em requisitos de projeto. Precisava formar uma empresa. Um centro de pesquisa de ponta para conduzir aqueles projetos especiais capazes de promover a revolução tecnológica da qual precisava. Gostava da simplicidade. Dar-lhe-ia o nome de Revolutions Power.14. Razão versus CoraçãoMesmo ansioso, Bruno esperou até as 10h antes de ligar para Adrianna. Era o horário de início das negociações na bolsa de valores brasileira.- Achei que não ia ligar - ela disparou ao atender.Havia um toque de brincadeira em sua voz. Pensou por um segundo em devolver a provocação, depois desistiu. Sua ansiedade era tão clara?- Achei que você iria ligar!- E ia... Daqui a uns quinze minutos.- Precisa de algum tempo?- Na verdade não. Já está com seus sistemas de acompanhamento e análise no ar?- Tudo on.- Você usa o Megaprofit para análises gráficas e a Corrif como corretora, certo?- Isso. Você fez o dever de casa - o tom de Bruno era sarcástico, embora não estivesse realmente incomodado. De fato sua falta de incômodo era o que lhe preocupava. A cada momento parecia se

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acostumar mais com aquele arranjo no qual ela sempre dominava a situação. Ela ignorou o comentário.Por sugestão dela se conectaram usando um aplicativo para conversação via internet capaz de transmitir tanto voz quanto imagem. Com ele permaneceriam em contato de forma mais cômoda. Em seguida passou a explicar detalhadamente como fariam para realizar o milagre da multiplicação do dinheiro. Ele estava atento. O objetivo final não era o valor monetário em si, mas provar a superioridade sobre-humana da mente de Adrianna.Naquele dia ela lhe mostrou apenas uma ponta do iceberg. Um subconjunto das fórmulas desenvolvidas por ela para ganhar dinheiro com ações. Foi o suficiente para impressioná-lo e especialmente educativo de várias formas. O sistema era tão trivial, quanto impossível para alguém com capacidade de raciocínio normal realizar. Embora conhecesse o mecanismo usado por computadores de corretoras e bancos de grande porte para o disparo de ordens de compra e venda automáticas, achava virtualmente improvável o método usado por Adrianna ser reproduzido por essas máquinas no estágio atual de seu desenvolvimento. Havia um grau de subjetividade suficientemente grande, difícil de transformar em parâmetros de programação.Ela avaliava qual empresa ou empresas listadas na bolsa de valores de São Paulo apresentavam o comportamento mais próximo ao índice Ibovespa - compêndio do resultado de aproximadamente

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66 ações de empresas transformado em índice de referência — naquela porção do dia. Era um estudo baseado em gráficos de comportamento dos ativos. Embora a Vale, antiga Companhia Vale do Rio Doce e a Petrobras possuíssem um peso significativo no índice, a cada dia uma delas ou um setor, como o siderúrgico ou o bancário, eram os responsáveis principais pela alta ou baixa. Baseada nesses ativos selecionados ela criava uma base de comparação utilizando intervalos de quinze minutos. Adrianna embutia em sua análise o preço de abertura, fechamento, preço máximo e mínimo do intervalo. Aí a mágica acontecia. Munida desses dados solucionava as tais equações propostas por ela, definindo exatamente em quais ativos investir e por quanto tempo. Na prática as fórmulas permitiam encontrar as ações com 90% de similaridade, pelo menos, mas ainda atrasadas em relação ao índice. De fato, contava com a repetição do movimento do IBOV refletido no papel específico. Buscava atrasos ideais de cinco minutos, algo nem sempre possível. No momento adequado comandava operações de compra. Três a doze minutos depois se livravam dos papéis. O inverso era reciprocamente verdadeiro. Vendiam ações a descoberto e as recompravam na seqüência. Lucravam com a diferença de preços. Essa era uma operação intradia legítima na bolsa brasileira e bem conhecida por Bruno, embora a realizasse apenas em raras e oportunas situações.

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Embora o fizesse escrever as equações em uma planilha eletrônica, Adrianna calculava quase tudo na mente, registrava os números e não os esquecia. As equações de trabalho eram de complexidade mediana, aplicadas insistente-mente a cada minuto sob as diversas candidatas. Havia uma subjetividade na definição da escolhida dentre as finalistas. Algo como encontrar a opção menos óbvia. Aquela fora do radar dos algoritmos quantitativos dos grandes bancos. Era uma brincadeira de seguir o chefe. Não havia uma correlação direta, nem uma equação linear de causa e efeito. Coexistia apenas em determinados intervalos de tempo. Portanto, a análise precisava ser muitíssimo rápida. O incrível, ele imaginava, era a possibilidade de encontrar essas correlações. Não era garantido que acontecessem todos os dias por muitas vezes. Aparentemente estavam com sorte.Conforme a adrenalina era bombeada em seu sistema, as coisas iam ficando mais claras. Bruno não acompanhava todos os cálculos, mas já se percebia calculando as porcentagens de ganho. O valor a ser reinvestido. O momento exato de sair da operação em alguns casos. Era uma loucura. Com esse processo fazia em média 0,2% de lucro por vez. Em passos de 200 reais por operação, dos quais eram deduzidos emolumentos, taxas de liquidação e corretagem, jamais chegaria a dobrar o capital de 100 mil reais em um dia. Só quando o sistema ficou adequado para operar as ações da Petrobras é

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que a coisa ficou realmente interessante. Era um papel responsável por movimentar por dia cerca de 800 milhões de reais. Utilizando "opções de compra", um sistema muito arriscado no qual se pode ganhar dez vezes o capital investido ou perdê-lo na totalidade com a mesma velocidade, Adrianna o ensinou a reproduzir o modelo de modo a ganhar 10 a 15% em uma única tacada. Se tivesse investido um milhão, teria um lucro de 150 mil em quinze minutos.Resultado da multiplicação vertiginosa do dinheiro ou de sua recém-adquirida capacidade de seguir, mesmo esporadicamente, a agilidade do raciocínio dela, Bruno precisou lutar para esconder a empolgação. Às 14h30 da tarde ela cumprira sua promessa e ele ganhara 100 mil reais em um dia.Embevecido por uma nova gama de possibilidades, Bruno não teve forças para recusar o almoço tardio. Também não conseguiu argumentos lógicos para contestar o fato de a casa dela ser o melhor lugar para conversarem. Além de o assunto ser privado, lá estavam os documentos que ela desejava lhe mostrar. Adrianna se encarregou de pedir um lanche para os dois. Vinte minutos depois a campainha tocou anunciando a chegada de seu convidado.Cumprimentaram-se cordialmente. Ela usava um vestido marrom de algodão, cintura alta de acordo com a moda, repleto de minúsculas rosas estampadas. O modelo espelhava a beleza e simplicidade da dona. Mesmo soterrado pela raiva e pelas dúvidas, Bruno precisava se

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conformar com o fato de que nunca deixaria de achá-la esplêndida. Era uma mulher bonita, sensual e segura de si. A combinação aparentemente o fascinava.- Vamos ficar aqui enquanto esperamos a entrega — ela apontou para o sofá mais próximo.Ele se sentou na ponta apreciando a varanda. O apartamento tinha vista ampla para o mar, apesar de distante dele. Ela sentou-se a dois palmos dele.- E então? Acredita na possibilidade de se ensinar alguém a realizar cálculos tão sofisticados e de forma tão rápida quanto os que me viu fazer hoje?- Não. Mas existem os superdotados. Quem me garante que você não nasceu assim?- Você.— Eu? — Bruno foi pego de surpresa, provavelmente o objetivo da colocação. — Como assim?— Você já sentiu. Percebeu que está fazendo cálculos bem mais rápido também. E você não nasceu assim.Embora contrariado, ele assentiu com um balançar de cabeça. Uma leve distorção dos lábios cerrados comunicava seu desagrado. O clima da conversa agora era bem mais calmo comparado a última vez naquela sala.— Esteróides e anabolizantes também deixam as pessoas mais fortes e ágeis. A cocaína amplia a agilidade de raciocínio. E eu nem sou médico. Deve haver dúzias de produtos capazes de emular esses efeitos. Existem milhões de

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explicações possíveis — complementou dando de ombros.— Você pode checar com médicos e pesquisadores. Não existe aqui hoje nada capaz de fazê-lo mais forte e mais inteligente tão rapidamente. E, no fundo, você já sabe disso. Quanto aumentou de carga na academia hoje? Cinqüenta por cento? Setenta?— Cem por cento - respondeu, embaraçado.— Uau! Acima das expectativas — ela sorriu como uma mãe orgulhosa. — A questão é o quão fantástica minha história é a partir do seu ponto de vista. Não interessa se é real para mim, sempre será difícil de acreditar. Você já tem provas suficientes da presença de algo além do normal em mim. Viu meu braço se curar de um corte em segundos e vai ver acontecendo com você a mesma coisa em questão de dias, isto é, se decidir testar — ela pausou e respirou fundo. — No final das contas vai ser uma questão de fé. Ou você acredita em mim ou não. Mas eu não posso te cobrar isso agora. Não depois de ter mentido e agido pelas suas costas - o interfone os interrompeu, era o lanche, provavelmente.Já na mesa, ao iniciarem o almoço improvisado, ela recomeçou:— Que tal falarmos de assuntos mais amenos enquanto comemos? - ela sugeriu.— Tudo bem.— Você é feliz, Bruno?A pergunta quase o fez engasgar. Não esperava nada tão profundo.— Assunto ameno?

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— Eu acho que você não é feliz — ela despejou a avaliação entre uma mordida e outra do sanduíche. O semblante mantinha-se inalterado diante do olhar absorto dele.— Me conhece há alguns dias e acha que realmente me conhece? - A raiva surgia sorrateira e não completamente compreendida.— Você me conhece há alguns dias. Eu te conheço há meses. Estudei sua vida, Bruno. Você é honrado, honesto, leal aos amigos, aos seus valores e princípios. Tem força de vontade, não desiste dos seus objetivos até atingi-los... Ou perder a fé neles. Nunca perde a fé em si mesmo. Ou seja, você é determinado, não obstinado. É protetor e um ótimo filho - Adrianna pronunciava as palavras com intensidade demonstrando verdadeira admiração. Ela não conhecia muitos homens tão íntegros quanto ele, nem na Terra nem em Aqua. — Você busca incessantemente a felicidade. A todo custo. Procurando sempre não prejudicar ninguém, mas ainda não a encontrou — nem ela sabia o motivo pelo qual abordou aquele assunto. Já se arrependera, pois podia arruinar tudo. Por que estava sendo burra assim? Deixando as emoções tomarem o controle? Aquele não era o momento para improvisos.Enquanto ela falava, seus olhos azuis-escuros penetravam na alma de Bruno. Ele sentiu-se nu. Embora o elogio lhe aquecesse o coração, a invasão de privacidade o magoava. Perdido entre os dois extremos, ele optou pela evasiva.

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— Monitoração à distância e leitura de relatórios e documentos não habilita alguém a julgar o grau de felicidade do objeto de observação — fora propositadamente clínico. Tentou despistar suas emoções dando outra mordida no hambúrguer.Ela aproveitou a deixa para sair do buraco em que se metera.— Você tem razão, desculpe-me.Continuaram a refeição em silêncio. Ao terminarem, Adrianna tratou de recolher as embalagens e sobras e levá-las para o lixo. Quando ela retornou ambos se dirigiram para a sala. Após se sentarem no sofá ela retomou a pregação.— Como eu ia dizendo antes de sermos interrompidos, tudo depende de fé, principalmente fé na verdade de minhas palavras — ela baixou os olhos demonstrando estar levemente envergonhada. - Comecei nossa amizade com mentiras e manipulação, portanto entendo sua dificuldade em confiar em mim - seus olhos eram sinceros. - Mas, juro... Isso acabou. Desde que revelei minha história não houve mais mentiras e, prometo, serei sempre sincera a partir de agora. - Instintivamente usou suas duas mãos para envolver a mão esquerda dele. - Pode perguntar o que quiser e obterá sempre a verdade.— O que você sente por mim? - perguntou de chofre. Era uma armadilha. Se afirmasse possuir sentimentos por Bruno, ele não acreditaria. Confirmaria suas suspeitas. Tudo aquilo seria uma grande farsa. Se ela negasse, além das

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mentiras, ficaria comprovado que usara de sedução para manipulá-lo.Os acontecimentos seguintes desarmaram completamente as defesas de Bruno. Uma lágrima solitária irrompeu do olho esquerdo enquanto ela mordia levemente o canto do lábio. Levantou-se enxugando o rosto ao contornar lentamente a mesa de centro. Recompôs-se rapidamente, observou o mar e voltou-se para ele, ainda de pé.- Bruno, estou há três anos e meio sozinha, em um mundo estranho, sem conhecer ninguém - sua face era a figura da amargura. - Você não tem idéia do que é a solidão. De quantas vezes chorei sozinha em um quarto pequeno de um motel barato. Tudo era difícil. Você pode imaginar quantos homens tentaram se aproveitar de mim quando eu ainda não tinha nenhum dinheiro? Só encontrava falsidade em meu caminho. Tudo que eu sentia era saudade de Aqua e desejo de retornar, mas eu não podia - ela precisou parar um segundo para se recompor novamente. - O dinheiro me deixou um pouco mais fortalecida e protegida. Com ele pude colocar meu plano em andamento. Aqui entra você, Bruno. Encontrei-o através de uma pesquisa. Inicialmente era apenas um nome em um banco de dados. Podia ter 15 anos ou 60. Idade, raça ou credo não eram fatores a serem observados. Minha única regra era a de jamais aplicar o composto em alguém desonesto ou mau-caráter. Não me importaria se fosse mulherengo, gay, mal-educado, nada disso

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comprometeria meu plano. Seria até melhor, pois não haveria possibilidade de me sentir atraída — independentemente de suas vontades seus olhares se cruzaram. — Você não é mulherengo, não é gay, nem mal-educado, muito pelo contrário, é um gentleman, é bem-humorado e é bonito. Eu sou uma mulher. Tenho desejos, anseios, naturalmente alguns sentimentos vieram à tona.Ele a olhava atentamente, quase arrependido da pergunta. Não era encenação, aquilo era real.- Meus sentimentos por você são irrelevantes, um produto da situação - a face de Adrianna agora era dura. — Nada pode acontecer entre nós. Não quero te convencer do contrário. Qualquer envolvimento entre nós comprometeria o objetivo final — ela aproximou-se dele e se sentou ao seu lado novamente. Seu semblante transmitia ao mesmo tempo resignação e expectativa. - Mas quero e preciso ser sua amiga se você permitir.Ao se encararem por alguns instantes, ela esperando uma resposta, um fluxo de sentimentos angustiantes percorreu o corpo de Bruno. Nunca haveria uma resposta satisfatória para a sua pergunta. Ele sabia disso. Os elogios se esvaeceram frente à clara certeza da impossibilidade de estarem juntos. Embora não soubesse se realmente desejava aquele relacionamento, a forma determinada como ela colocou as coisas doeu fundo nele. Resolveu-se por uma saída estratégica, sem comprometimentos.

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- Fale-me sobre o tal Kerligan. Ou melhor, me diga exatamente o que espera de mim daqui pra frente.Ela entendeu a deixa. Com o semblante sombrio, ocultado a todo custo, assumiu o já familiar tom professoral. Uma ótima defensiva contra seus sentimentos.- Antes, em respeito ao nosso acordo de transparência total, gostaria de lhe mostrar algo — Adrianna puxou o braço direito dele, segurando-o pelo antebraço de modo a formar uma linha horizontal entre eles. — Segure-o nessa posição, por favor, com a palma da mão virada para baixo - ele estava visivelmente curioso. Ela tocou levemente seu indicador nas costas da mão dele. Imediatamente sentiu um pequeno choque. Em resposta, sua mão se fechou realizando uma contração involuntária e ele repuxou o braço instintivamente.- Você me deu um choque?- Possuímos um alto nível de consciência sobre nosso corpo a ponto de conseguirmos canalizar energia até a ponta dos dedos - ela franziu um pouco a testa notando a própria dificuldade em explicar o fenômeno. — Deixe-me ver. Podemos dizer, de forma bem simplificada, que os músculos se contraem quando nosso cérebro envia a ordem de liberação de energia sobre determinadas fibras musculares fazendo-as deslizarem umas sobre as outras. Isso é com-pletamente involuntário e inconsciente, claro. O processo de enriquecimento celular nos permitiu desenvolver conexões entre as áreas do cérebro

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responsáveis por essas atividades e áreas das quais temos mais consciência e controle. Assim podemos produzir e canalizar a mesma quantidade de energia de forma voluntária. Muito complicado?- Muito estranho — coçava a mão sem perceber — que voltagem é possível gerar? — Nada mais o surpreendia.- Uma voltagem mínima, varia de pessoa para pessoa. A maioria só consegue um formigamento. Para atingir meu estágio é preciso um pouco de aptidão e muito treinamento. É como participar de uma maratona. Entrar é para todos, ganhar é para os poucos realmente aplicados e com talento. - Não havia presunção em sua voz, apenas a conhecida postura científica.— Se não é para todo mundo talvez eu náo consiga. Qual a importância de me contar isso agora? — Estava intrigado pelo tom usado para mencionar "transparência total". Ela suspirou e franziu as sobrancelhas levemente antes de falar.— Se aplicada nas partes certas da caixa encefálica a voltagem é suficiente para desacordar um homem adulto. Atua como um reboot, um reset em partes específicas do cérebro. Desculpe-me mais uma vez — ela falou com a voz mais suave possível.Ele percebeu de imediato. Aquilo explicava os desmaios. Fossem no barco ou na pista de cooper. Estranhamente não se sentiu traído ou zangado, estava realmente se acostumando com aquilo tudo, pensou.

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— Ok! Registrado — a expressão dele era vazia.— Da mesma forma, se aplicada nas têmporas, é possível reverter com mais rapidez o estado de adormecimento, dessa forma, despertando...-Já entendi - ele a interrompeu levemente contrariado. - Você pode forçar um desmaio e acordar rapidamente uma pessoa, como fez comigo - e fez sinal para que prosseguisse deixando para trás o assunto claramente incômodo para ambos.Tendo retirado mais um peso do caminho, Adrianna pegou o netbook na mesa de centro e ligou rapidamente a TV de plasma à frente deles. Aparentemente tudo já havia sido preparado, pois quando o monitor se iluminou, uma série de janelas de navegador web sobrepostas em cascata já estavam prontas para o escrutínio. A foto de um homem sorridente se destacava na primeira janela. O compêndio era um registro em seqüência das operações de Kerligan desde que ambos, ele e MJ, chegaram à Terra.— Apresento-lhe, Kerligan. Atende na maioria dos casos pelo pseudônimo de A. C. Goldwill.Bruno já ouvira aquele nome em algum lugar. A cada janela explicada e minimizada uma história suspeita era resumida. Um novo empreendimento era discutido. Um avanço inovador no campo da energia era apresentado. Novos nomes eram somados à lista de associados e possíveis identidades alternativas de Kerligan. Obviamente, essas correlações estavam baseadas apenas na palavra de Adrianna. Sem provas, a conexão aparente era o

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rastro de sucesso e a quebra sucessiva de paradigmas tecnológicos. Na verdade, após surgir do nada, em tempo recorde, o Sr. Goldwill construiu um império empresarial ligado ao desenvolvimento de baterias de diversas naturezas. Paralelamente, investimentos realizados sob diversos nomes foram realizados entre os anos de 2007 e 2008 em áreas variadas. Notadamente no mercado de capitais e algo em instrumentos financeiros complexos cujo entendimento lhe escapara. De certo, apenas o fato de sempre auferir ganhos extraordinários.Como as outras histórias relacionadas à Adrianna, aquela também não podia ser provada. Mas era dotada de uma lógica desconcertante. Se todos os fatos pudessem ser atribuídos realmente ao mesmo homem, três coisas eram certas: o sujeito era um gênio em sua área de atuação tecnológica, desonesto e estava ganhando muito dinheiro, muito dinheiro mesmo e muito rápido.Enquanto Adrianna expôs o assunto, Bruno limitava-se a questionar a fonte. Na maioria das vezes, eram públicas. Ele também se esforçava para entender as conexões entre os eventos segundo sua lógica. Fatalmente, precisaria conduzir sua própria pesquisa. Encerrada a apresentação, ela desligou o monitor e o encarou.- Paro por aqui hoje. Vou te fazer minha proposta. Se você decidir que sim, seguiremos em frente, juntos. Se sua resposta for não, vou desaparecer, mudar de estado, me desfazer de

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qualquer referência conhecida por você. Nunca mais vai me ver. Eu prometo. Se menti, como já lhe disse, isso acabou. Agora é a hora da verdade. Não vou me impor. Se recusar minha oferta, você ficará livre de mim para sempre.Uma inesperada onda de emoções indescritíveis o invadiu. Tentou disfarçar. Por um instante seus olhos se arregalaram apenas o suficiente para denunciar sua surpresa. Quais os motivos daquela onda de sentimento? E daí se ele não a visse mais? Odiou-se por ser tão transparente. Sempre fora um paradoxo. Era um perfeito jogador de poker em uma mesa de negociação com clientes, parceiros ou fornecedores e um idiota em situações como aquela. Com amigos ou conhecidos ele deixava seus pensamentos transparecerem pela expressão facial. Porém, aquela não era uma reunião de amigos, ele não devia permitir às emoções aflorarem. Não devia nem ter emoções!- Qual é a proposta? - tentou simular o máximo de sobriedade, como se baseasse sua decisão apenas naquilo.- Durante um ano você será treinado até chegar à maturidade do seu enriquecimento celular. Com minha ajuda fará uma fortuna neste período. Se tornará mais rico do que jamais imaginou - a determinação e certeza em seus olhos azuis-escuros eram indefectíveis. - Então, e só então, começaremos a sabotar, sorrateiramente, os planos de Kerligan. Criaremos a nossa própria "guerra fria", uma paz armada: a única solução pacífica para a situação.

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Esta - abriu os braços em forma de "V", apontando para o mar e se referindo ao planeta - será a minha casa. Eu não tenho como voltar. Quero torná-la melhor. Com os meus conheci-mentos médicos e de biologia molecular, vou tentar disparar o desenvolvimento dos avanços possíveis no estágio atual de tecnologia da terra. E com eles vamos fazer muito dinheiro também, não vou mentir.— E se eu desistir no meio do caminho?— Acredito em sua determinação, em sua vontade de fazer o certo. Quando vir com seus próprios olhos quem é Kerligan, quando confirmar os fatos com seus próprios meios...— Está colocando muita fé em mim — ele a interrompeu. — Seja como for, se quiser desistir, o que você vai fazer?- Não terei muitas opções. Você estará tão forte, inteligente e rico quanto eu. Provavelmente, mais rico. Para ocultar ao máximo a minha presença o plano deixa você em evidência. Colocaremos a maioria dos empreendimentos em seu nome.— Você poderá perder um ano de trabalho e muita informação. Confia tanto assim em mim?- Eu confio em sua integridade e honestidade. Confio em seus valores. Não posso pedir mais do que isso.Ele avaliou sua expressão. Era serena e verdadeira e a proposta, em termos absolutos pelo menos, era irrecusável.

Sentado na balaustrada ao lado do farol da Barra, ele pensava nos recentes acontecimentos, nas

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novas informações e no que estava por vir. Era seu local preferido para assistir ao sol mergulhar no mar e refletir sobre a vida. Remontava a sua adolescência, quando passear pela calçada litorânea nos finais das tardes de domingo era o melhor de todos os programas. Uma época ino-cente, de paqueras à distância e amigos com quem se conversava todos os dias. Ao pôr do sol era difícil desviar o olhar do horizonte hipnotizado pela beleza singular da fusão dos dois elementos em uma aquarela de cores quase indescritível e sempre diferente dia após dia. Pegou o celular e iniciou a ligação, cujas conseqüências já pesavam em sua consciência.- Alô - a voz do outro lado respondeu.- Natan, sou eu.- Eu sei que é você. E aí, vai me deixar na mão?- É minha mãe.- Aconteceu algo com dona Marta? - ele perguntou sinceramente preocupado.- Não. Nada especial. Só acho que ela está cada vez mais triste, a idade está se fazendo sentir. Está a cada dia mais fraquinha e nesses feriados fica ainda mais deprimida. Quero passar o Réveillon com ela — era uma meia mentira. Não conseguira pensar em nada melhor. Pelo menos era uma explicação.- Qual é Bruno? Isso é desculpa. Você pode ficar com sua mãe até à meia-noite, depois vai para a festa! - a voz já denotava irritação.- Não estou com pique, velho. Não adianta forçar a barra. O melhor para todos é ficar com minha mãe. Não fique chateado.

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- E eu vou passar o Réveillon sozinho mesmo? — agora estava realmente enfurecido.- Desculpa irmão. Quer ficar comigo e minha mãe? Vou comprar uma champanhe, alguns salgadinhos e levar um bom vinho. A gente fica vendo a retrospectiva.- Você está maluco?- Pelo menos é uma opção, minha mãe te adora.- Eu também gosto dela. Vou ligar para desejar feliz Ano-novo.- Então, não vai?- É óbvio que não! Vou para alguma festa, mas nunca mais conto com você para esses programas — era o fim da conversa.- Feliz Ano-novo — Bruno falou relutantemente.- Pra você também. Aproveita para meditar e colocar a cabeça no lugar - desligou ainda notadamente contrariado.Sentia não poder ser completamente honesto. Virar o ano com o peso da raiva de Natan não lhe faria bem. Embora pudesse confiar nele, sabia também que encheria sua cabeça de dúvidas e esse tempo já havia passado. Era hora de abraçar sua decisão e descobrir na prática se Adrianna falava a verdade. Previa passar muito tempo longe da mãe, na verdade, longe de todos. Precisava compensar antecipadamente. Os outros podiam esperar, a sua mãe, não.Encarou a última nesga de sol se dissolvendo em um leve tom de amarelo. Era praticamente a última lembrança da pujante estrela vermelha que há pouco dominava céu e mar. O fator decisivo não foi a sensação de poder, as

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possibilidades de ser espetacular em diversas áreas, a riqueza a sua espera, nem o glamour. Nem mesmo a instintiva confiança na necessidade de rivalizar com aquele homem vindo de outra dimensão ou não. Foram os olhos dela. Aqueles olhos azuis-escuros. Um oceano de mistérios brilhando quando falava dos planos de fazer o bem, utilizando seu conhecimento avançado e a soma de suas habilidades. Foi o meio-sorriso que o cativara desde o primeiro momento, furtivo e intrigante, aparecendo apenas nos momentos certos. Foi a expressão de sincera vergonha por ter agido em segredo, enganando-o, manipulando-o a despeito de acreditar com todas as forças estar seguindo o caminho correto.

VERÃOApós ceder mais de 50% em menos de seis meses, o Ibovespa, principal índice da bolsa de valores brasileira, parece ter atingido seu limite. O Dow Jones americano caíra tanto quanto e ainda não dava sinais de cansaço.

OUTONO

O Ibovespa confirmava uma surpreendente recuperação. Um pequeno número de arrojados investidores e especuladores aproveitavam essa reação. O Dow Jones americano permanecia em estado duvidoso, refletindo as dúvidas sob o poder de restabelecimento da economia americana.

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INVERNO

Após subir 100%, desde o ponto mais baixo do ano anterior, a bolsa brasileira estava em festa. A confiança no poder do mercado consumidor pungente impulsionava investidores nacionais e estrangeiros. O Dow Jones alcançara 9.917 pontos, um crescimento de 52% em referência ao seu pior momento em março. Contudo, ainda não se libertara do medo de uma queda abrupta.

PRIMAVERA

O crescimento de 82% do Ibovespa tornou o ano inesquecível para os investidores e especidadores brasileiros e estrangeiros que ali se aventuraram. Alguns souberam aproveitar ainda melhor as oportunidades no Brasil e em outros países causando importantes alterações na classificação dos homens mais ricos do mundo. Em comparação o Dow Jones seguia tímido, assumindo uma elevação anual de 18,82%. Como resultado da soma de todos os medos e esperanças o mundo, afinal, parecia estar se recuperando.

VERÃO

Os mercados mundiais ainda não estavam salvos. Rumores de quebra assombravam a

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Europa e a Ásia, mas como em todas as crises, fortunas foram forjadas e ampliadas. Dow fones e Ibovespa mantinham-se oscilando em patamares elevados, fomentando o coral dos pessimistas. Investidores arrojados ainda ganhavam muito dinheiro.

OUTONO...

Os pessimistas, pelo menos até então, perderam a aposta...

UM NOVO CAPÍTULO, UMA NOVA VIDA...

15. Oito

A noite de terça-feira estava abafada, especialmente considerando que o dia havia começado chuvoso e frio, nada incomum naquela cidade de clima maluco. As quatro estações em um único dia, como diziam quando chegou lá, há dezessete anos. Se no início era uma curiosidade interessante, depois de algum tempo passara a ser irritante, tão logo a novidade virara rotina. Max Templis se impressionava até hoje em como se acostumou a São Paulo. Casou-se, com uma brasiliense. Teve filhos paulistanos. Mudou completamente sua vida profissional. Criou raízes cada vez mais profundas e quando deu por si era impossível voltar. Cargos como o dele, de diretor de Tecnologia da Informação - Divisão de Sistemas — no Banco Um, o terceiro maior do

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Brasil, não davam em árvores. O salário de meio milhão por ano, fora os bônus, dificilmente encontraria em outro estado, pelo menos não em sua área de atuação. Ainda achava estranho um sujeito escrachado como ele trabalhar de paletó e gravata todos os dias, conseguindo manter uma imagem séria, impondo respeito aos seus pares, superiores e subordinados. Embora se considerasse competente, inteligente e de fácil convívio, espantava-se com a capacidade adquirida na maturidade de não fazer piada com tudo e com todos em cada oportunidade. Tinha sido um piadista em boa parte de sua vida, nunca levara nada muito a sério. "O mundo e o tempo mudam a gente. É normal, faz parte da vida", ele tentava se convencer.Sua esposa, Cristiane, era agora uma das mais proeminentes oncologistas pediátricas do país. Era sócia de uma grande clínica e ligada a vários institutos de pesquisa, em especial, aos maiores, todos situados em Sampa. Ela considerava impossível desenvolver seu trabalho clínico e suas pesquisas em outro estado. Ambos aprenderam gradativamente a aceitar a capital econômica do país como um novo lar.Chegou ao edifício no rico bairro dos Jardins. Cumprimentou os moradores que cruzaram com ele enquanto saía do carro e subia o elevador. Eram quase 22h quando destrancou a porta do seu apartamento, chegara tarde para os seus padrões. Sorte ter comido um lanche no escritório, pois Cristiane estava em uma conferência no Rio Grande do Sul e só chegaria

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pela manhã. Os filhos, Pedro de seis anos e as gêmeas Ana e Beatriz de três, já estariam dormindo mesmo se chegasse uma hora antes. Esta parte de sua vida, a de não poder dedicar mais tempo aos filhos, ele realmente odiava. Até as babás já estavam dormindo. Atravessou o apartamento de cinco suítes, ricamente mobiliado, já acostumado com o reflexo de seu sucesso. Beijou os filhos em silêncio, contemplando sua felicidade e seguiu para o banheiro. Um bom banho quente talvez expurgasse as insatisfações e o ajudasse e regurgitar os sapos engolidos no dia.Depois seguiria a rotina e adormeceria em frente à televisão.

No mesmo horário, no Rio de Janeiro, em um apartamento mais modesto, Wagner Matos e Milena, assistiam TV deitados na cama. Alice, sua filha de um ano, já dormia há muito, afinal eram mais de 22h. Estavam novamente conversando sobre o futuro profissional dele, até então, apenas parcialmente cientes aos acontecimentos na tela. Ambos estavam em boa situação. Ele trabalhava na Seguros Latina, o maior plano de saúde do país, atuando na implantação, gerenciamento e melhoria do sistema de relacionamento com clientes. Apesar ce ganhar razoavelmente bem, isso não tranqüilizava a esposa. Trata-se de uma atividade encontrada apenas em companhias de grande porte, empresas menores contratavam consultorias e Milena acreditava ser interessante a migração

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para uma delas. Não havia mais como crescer onde estava. Ela acreditava nele, achava-o talhado para muito mais. Ele também pensava da mesma forma. Seu grande entrave era a falta de ambição. Não por falta de coragem e sim por excesso de uma felicidade intrínseca que diminuía seu apetite por mudanças. Milena era radiologista em início de carreira e possuía ambição suficiente para suprir a cota de ambos.

Quase uma hora depois, em Salvador, em um bom apartamento de quatro quartos, no bairro da Graça, Marco Meltezer abandonava o computador do escritório e ligava feliz o televisor do quarto. Estava orgulhoso. Embora sentisse a falta de contato, sabia muito bem como era se envolver em diversos projetos simultaneamente e não ter tempo para mais nada. Desde a formatura em análise de sistemas, há quase vinte anos, iniciara ou participara de alguma forma em uma dúzia de negócios. Em todos suou sangue, doou todas as suas energias, e, quando as coisas estavam bem, pulava para outra empreitada. Era da sua natureza, começar coisas novas, vê-las crescer e deixar a perpetuação para outro. Era bom naquilo e ganhara algumas cifras. De agências de fornecimento de mão de obra especializada a sistemas de software, ele nunca perdera dinheiro. O fluxo de caixa irregular não o incomodava. Solteiro, tinha o bastante em reserva para pagar as contas e conseguira atingir uma excelente qualidade de vida.

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No momento apenas um projeto consumia a pequena empresa: um sistema de data mining — mineração de dados. Um tipo de pesquisa computacional extremamente sofisticada envolvendo diversos bancos de dados de forma-tos diferentes acessados simultaneamente. O objetivo era extrair, das diversas fontes de informação do governo, as melhores correlações entre as avaliações independentes de desempenho das secretarias e os percentuais dos orçamentos municipais utilizados nas áreas correspondentes. Assim os governantes pode-riam decidir melhor onde alocar os parcos recursos disponíveis. O sistema deixava-o orgulhoso. Tanto por suas características técnicas quanto pelos benefícios potenciais à população. A empresa fora criada especificamente para sediar o desenvolvimento do software vendido para o governo da Bahia e o trabalho já estava em sua fase final.Já buscava outro ramo, outra inovação a perseguir. Deitou na cama, de frente para o televisor. O momento agora era o de se deliciar com o sucesso de seu amigo.

Também em Salvador, em um apartamento bem próximo dali, acomodada confortavelmente no sofá de sua sala de estar, Rachel Martinez lia um livro, TV ligada, função mu te ativada e a atenção dividida. Gerente de Marketing do maior complexo hoteleiro do Brasil, ela tirara merecidas férias. Viajara e se divertira até chegar a hora de voltar. Seus vinte dias findavam-se dali a uma

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semana e estava decidida a utilizar o tempo restante descansando. Em seus 32 anos admirara poucas pessoas profissionalmente e na medida do possível acompanhava atentamente suas carreiras. Nunca, porém, com tanta ansiedade e curiosidade quanto naquela noite.Tornaram-se amigos dez anos antes, quando recém-formada iniciou seu MBA em Marketing. Ficara muito interessada nele. Aos 22 anos, loira, de olhos azuis, dona de um corpo bem torneado, sabia que era quase irresistível. Infelizmente para ela, ele estava apaixonado por outra. Tornaram-se então grandes amigos. Chegaram a ter um caso relâmpago alguns anos depois. Já eram amigos demais e isso, de certa forma, atrapalhou. Não era para ser. Hoje estava sozinha, cansada de relacionamentos longos e vazios, destinados a preencher o tempo e não o coração. Ela dedicava a maior parte de seu tempo livre e seu carinho aos amigos. Orgulhava-se de ter cultivado amigos de verdade, e, apesar da distância e da falta de contato, ele era um deles. Não perderia o programa ror nada deste mundo.

Meia hora depois, em sua casa na Ladeira da Barra, Natan começa a assistir a um programa de entrevistas. Estava magoado, decepcionado mesmo, sentia-se traído. Ouviria tudo atentamente. Tentaria entender o inexplicável, ou cuja justificativa ele se negava a dizer em voz alta. De todos os seus amigos, aquele era o único

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por quem daria a própria vida. Ele sabia disso. Ainda assim, decidira afastar-se sem aviso.A uma da manhã, naquela mesma noite, o eclético grupo recebia, a intervalos de aproximadamente cinco minutos, uma ligação bastante estranha, não apenas pelo horário, mas principalmente pelo teor. Todos dormiram pensativos.

16. Memórias

Uma platéia seleta aguardava o início do talk show de Ricardo Catatau, um dos programas com maior audiência naquele horário no país. O apresentador, cuja estatura e o fato de ter migrado de uma carreira bem-sucedida como comediante há dez anos lhe rendera o apelido de urso de desenho animado, entrou no recinto sob aplausos acalorados.- Vamos iniciar nosso programa hoje com um homem que realizou o que todos nós em algum momento de nossas vidas já sonhamos, tornar-se um bilionário da noite para o dia. E vamos prendê-lo aqui até ele nos dar a fórmula! - anunciou Ricardo Catatau. Sua expressão decidida e os olhos arregalados arrancaram risos da platéia. — Bruno Cortes Lima... Vem pra cá — convidou o apresentador. O auditório respondeu imediatamente saudando o convidado com uma salva de palmas.Bruno o cumprimentou e sentou-se na poltrona ao lado da mesa reservada a Ricardo. Ele trajava um blazer azul-escuro combinando com a calça

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jeans de corte reto, uma camisa de seda rosa, cinto e sapatos pretos, formando um conjunto despojado e ao mesmo tempo elegante. O relógio Patek Philippe de ouro branco denunciaria a realeza de suas vestes para um observador mais atento.- Bruno, conta para nós o seu segredo. Em apenas um ano você saiu do anonimato para se tornar um dos maiores aplicadores individuais da BM&FBovespa e ainda é o realizador do mais bem-sucedido IPO da América Latina dos últimos dois anos! A gente quer saber tuuuddooo - falou o entrevistador com seu jeito brincalhão de metralhadora de palavras. — Antes de qualquer coisa, me diga: você está solteiro? Porque se estiver, eu estou disponível, tá? - Catatau olhou para ele de soslaio e fez um gesto engraçado com a boca para compor a piada.Catatau não era homossexual, mas brincava muito com a idéia, manipulando a imaginação do público. Aos 60 anos e com três casamentos no currículo, estava mais para uma mistura de bon-vivant e intelectual. Os óculos redondos no rosto leitoso e a cabeleira farta, cacheada e grisalha dava a ele um ar cômico por natureza. O terno azul-marinho de risca de giz, acompanhado da tradicional gravata borboleta vermelha e a camisa clara, completavam o ar exótico. As mulheres, contudo, eram atraídas por sua inteligência e bom humor e, sobretudo, por sua conta bancária. Catatau aprendera desde muito cedo a separar o joio do trigo. Era astuto demais para se deixar enganar, fosse pelas mulheres ou

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pelos entrevistados. Sabendo disso, Bruno havia se preparado bastante para aquele dia. Era a sua primeira aparição pública, ao vivo, após sua vida virar de cabeça para baixo.Bruno sorriu e respondeu:- Eu não tenho namorada. E se você estiver livre depois daqui... - os risos continuaram. - Brincadeiras a parte, eu não planejei nada disso, as coisas foram acontecendo. Comecei a operar na bolsa em 2007 e aos pouquinhos fui me apaixonando pela coisa. Estudei muito e fui ampliando minhas investidas. Dei sorte, filtrei quando as coisas estavam boas e elas ficaram ruins quando eu ainda não tinha muito dinheiro. Perdi bastante e aprendi com isso. Precisei estudar mais. Eu tinha abandonado toda uma carreira para me entregar ao mercado de capitais. Dessa forma, eu não tive outra escolha senão me tornar razoavelmente bom.— Razoavelmente bom? — caçoou. — Além de bilionário ele é modesto, gente! - Catatau brincou dirigindo-se à platéia.- A questão é que tive de me dedicar muito. A bolsa de valores é um jogo de probabilidades. É importante ressaltar isso para os telespectadores. Obtém mais sucesso quem faz excelentes análises, é rápido na tomada de decisão e tem um excepcional controle de risco.— E você é bom nisso? — Catatau o desafiou.— Acho que sou razoável — Bruno sorriu e não entrou no jogo do ex- comediante. — Criei um modelo e ele tem funcionado muito bem para os meus propósitos. Mas é um modelo de análise e

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atuação de curtíssimo prazo, operações de clay trade e swing trade no máximo, ou seja, operações nas quais se compra e vende na bolsa ou no mesmo dia ou no espaço de uma semana a um mês. Por conta desses prazos os valores envolvidos precisam ser limitados. Não dá para comprar 100 milhões de um papel hoje e vender no mesmo dia utilizando o sistema.- Você quer dizer que ganhou muito, mas de agora em diante os ganhos percentuais vão diminuindo gradativamente?— Exatamente. Vê como a gente se entende rápido? Estou ansioso por nosso encontro... - ele simulou um olhar malicioso despertando gargalhadas tanto na platéia quanto no apresentador. Estavam conquistados. Bruno pensou.- Você ganhou muito dinheiro com a aquisição da... - checou rapidamente seu roteiro de entrevista — Fênix Farmacêutica. Depois fez a abertura de capital na bolsa, o tal IPO, quadruplicando o preço que pagou. Essa dinâmica não tem limites? Deus do céu!Graças a um acordo de confidencialidade a imprensa e o público em geral desconheciam as cifras pagas pela Fênix. Catatau tinha ciência do acordo, mas estava jogando verde. De fato, o valor de mercado da empresa havia sido multiplicado por dez. Apesar do interesse em enaltecer o próprio sucesso, Bruno se viu forçado a respeitar o termo firmado e limitou-se a deixar a informação errada do apresentador transformar-se em fato.

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- Tudo na vida tem limites, mas é um modelo no qual acredito. Na realidade, trata-se de um projeto muito interessante. Procuro companhias inovadoras, capazes de realizar um salto gigantesco em suas áreas. Sejam no ramo farmacêutico, tecnologia da informação, combustíveis alternativos, enfim, todo o tipo de empresa determinada a mudar o panorama em seu campo. Vou garimpar essas preciosidades. Injetar capital, buscar dentro e fora as mentes capazes de catalisar uma mudança de patamar, estimular a cooperação entre elas e devolver ao mundo algo melhor.- Ganhando algum dinheiro com isso, é óbvio - comentou maliciosamente Catatau.- Ora, Catatau? É só porque tenho um coração puro — usou um timbre suave, quase como o de uma criança mal compreendida, enquanto colocava a mão direita sobre o peito, no lado do coração, conquistando alguns risos. - Quero ganhar dinheiro, claro, mas o bonito da história é a peculiaridade do projeto. Gosto de chamar de "sinergia do bem". Como só trabalho com empresas cuja visão é gerar algum benéfico para a humanidade, se ela consegue fazer os avanços prometidos, eu ganho dinheiro e todos se beneficiam do produto final. O segredo será fazer boas escolhas no momento inicial da compra. O caso da Fênix é um ótimo exemplo. Uma companhia farmacêutica nacional lutando para ganhar dinheiro com as patentes de medicamentos liberadas para cópia. Nesse ambiente competitivo internacionalmente, um

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pequeno time de cientistas idealistas da equipe de desenvolvimento de novos produtos tentava conseguir algo notável, inovador o suficientemente para assegurar o futuro da empresa. Em parceria com a universidade de Tókio, fazia testes com uma droga inibidora da aceleração do mal de Alzheimer em pacientes jovens. Meu time percebeu consistência no caminho escolhido por eles e precisavam de dinheiro para continuar. Comprei a briga e agora estimamos a disponibilidade do produto em apenas dois anos. Não é fantástico? - os olhos brilhavam, trazendo à tona os vestígios do vendedor nato. A carreira na área comercial fora curta, porém servira para potencializar seus talentos. Apesar das iniciativas não serem o objetivo principal, o fato não empalidecia sua crença nos maravilhosos efeitos colaterais do plano.— Na teoria parece fantástico, Bruno. Todos leram sobre o sucesso da Fênix. Os pacientes de Alzheimer estão ansiosos. De fato teremos ainda essa semana uma entrevista com três especialistas no assunto, incluindo um de seus pesquisadores. Mas essa é apenas uma empresa, alguns podem considerar um golpe de sorte, você tem outras perspectivas em andamento?— Ah... Tenho sim. Várias. E para investir nelas estou lançando o fundo APMM, junto a minha gestora de fundos. Abriremos as portas ainda essa semana. Guardei esse furo para você, Catatau. — Pronto, o primeiro dominó fora empurrado. A partir daí o plano se desencadearia

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em velocidade acelerada. Era o que ele esperava.— Cada minuto gosto mais desse rapaz! Qual o significado da sigla APMM? Associação de Pais e Mestres Motivados? — Ricardo brincou, respondendo à própria pergunta. - Com tanto dinheiro eles definitivamente ficarão motivados - ele arregalou os olhos transmutando o rosto em uma comédia viva, um costume transformado em marca registrada nos tempos de comediante.— Ações para um Mundo Melhor - respondeu Bruno em meio às próprias gargalhadas. — Não é bonito? — não resistia a fazer gracinhas. Era parte de sua personalidade, principalmente agora quando começava a relaxar, acostumando- se ao novo estilo de vida e seus percalços.— Uau! Então agora quem quiser construir um mundo melhor e ainda ganhar dinheiro no processo vai ter uma opção?— Uma opção de longo prazo. Nossos melhores resultados podem só aparecer em vinte anos. Nosso objetivo é nos tornarmos o melhor fundo de investimento dos próximos dez anos - Bruno respondeu, ignorando o tom malicioso na pergunta de Catatau.— Qual o nome da sua gestora de fundos e das pessoas que estão por trás dela?— Hoje a Fênix e a Lima Investimentos são as organizações à frente dos projetos, isto é, carregam o piano. Esta semana a Lima Gestora de Fundos se junta a elas e no futuro muitas outras virão. Os líderes de projetos, um seleto grupo de talentos, serão revelados à medida que

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ocorrerem as aquisições nas suas respectivas áreas.

Do outro lado do Oceano Atlântico, Adrianna acompanhava orgulhosa o transcorrer da entrevista de seu sócio. Ele sabia ser cativante e carismático e demonstrava intimidade com as câmeras. No dia seguinte, choveriam ligações das corretoras desejando se associar. Ela estava certa.Distraindo-se por alguns instantes observou através da janela do hotel, na outra margem do Tâmisa, o Big Ben marcar 5h30. Dali a pouco iria ao aeroporto e retornaria ao Brasil. O escritório de Londres estaria pronto para operar em menos de um mês. Sentia-se angustiada com a possibilidade de confrontar Kerligan Amnael. Esperava poder evitá-lo. Quanto mais tempo ele ignorasse sua presença na Terra, mais vulnerável ele estaria. A cada dia sentia um aperto mais forte no peito. O compartimento criado na mente e no coração para os sentimentos nutridos por Bruno já não conseguia conter a sobrecarga. Não obstante ela lutava, não podia ser justo que ela fosse o elo fraco, ademais acreditava que ele superara com louvor a atração por ela, tão forte quando se conheceram. Agira demais pelas costas dele. Embora ele entendesse seus motivos, não havia perdão. Tinha sido só isso, uma atração.Recuperando-se daqueles devaneios, ela se virou novamente para o computador onde assistia on-line a entrevista. De alguma forma as perguntas

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de Ricardo Catatau haviam se desviado para a vida amorosa e familiar do convidado. Ela não entendia a fascinação dos terráqueos por aqueles assuntos, detalhes da vida particular dos famosos. Seguindo o roteiro, Bruno agia conforme combinado. Suas respostas tentavam estimular a criação de uma aura de sedução e glamour, afinal fora esse o motivo pelo qual aceitara o convite do programa. Funcionaria como garoto propaganda do próprio fundo de investimentos. Chamaria a atenção de possíveis parceiros e obteria a simpatia da imprensa. Mais tarde precisaria do apoio de ambos. A guerra estava apenas começando. As peças ainda estavam sendo posicionadas no tabuleiro.

— Ótima entrevista ontem, Dr. Bruno — comentou o motorista, contente em trabalhar para alguém tão famoso.- Muito obrigado, Carlos. Não fiz muitas piadas sem graça, fiz?- De jeito nenhum, doutor. Estava excelente. Todo mundo do escritório estava comentando.— Bondade de vocês. Mas obrigado assim mesmo.Encaminhando-se ao aeroporto de São Paulo, no banco de trás do Jaguar verde-musgo blindado, Bruno parecia à vontade na companhia do motorista e do segurança sentados no banco da frente. No entanto, ele não estava. Nunca estaria. Não fazia parte da sua natureza aquele tipo de ostentação. Checou o relógio, eram 19h10. Havia tempo. Durante o trajeto chuvoso ele recordou aquele último ano. Um ano e cinco

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meses após o dia que reformatou sua vida, para ser mais preciso.O dia 29 de dezembro de 2008 ficara marcado a fogo. Foi quando começara a acreditar em Adrianna. Uma coisa foi vê-la fazer todas aquelas coisas espetaculares usando a força, a agilidade, a rapidez de raciocínio. Contudo, quando aconteceu com ele, ao se perceber capaz de realizar o mesmo, transformou-se em uma nova pessoa. Não necessariamente melhor. Entendia seu pai agora, quando discursava em tom solene, por vezes teatral, sobre a força inebriante do poder. E, talvez, pela memória dele, conseguisse manter-se íntegro aos seus valores. Não cometeria os mesmos erros do senador, não confiaria em novos amigos. Voltar-se-ia para aqueles que, o amavam, que confiavam nele.O som estridente da buzina do Jaguar o fez voltar ao presente. Um motorista apressado atravessava a Marginal do Tietê em alta velocidade quase colidindo com o seu carro. O motorista foi obrigado a realizar uma manobra brusca para evitar um acidente grave.— Desculpe-me, Dr. Bruno.— Sem problemas, Carlos — seu motorista recebia um bom salário e se preocupava muito em agradar. Estava sempre se desculpando por algo.Checou o relógio novamente, eram 19h45. Chegaria atrasado. Nem com o seu talento adquirido para realizar cálculos matemáticos avançados conseguia prever corretamente o tempo necessário para atravessar São Paulo. Ninguém conseguia, o trânsito caótico destruía

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qualquer modelo preditivo. Fez uma anotação mental. Já era hora de ter um helicóptero à disposição.A monotonia da rodovia levou-o novamente às lembranças de seu treinamento e, portanto, à Adrianna. A rotina os aproximara. Embora ainda tivesse dificuldade em definir para si mesmo a natureza do seu relacionamento, certamente a amizade agora fazia parte dele. Misturada entre a mágoa, a atração, a admiração e o respeito, estava a confiança no seu caráter e a certeza de que ela nutria algum carinho por ele. Seria de se estranhar não terem desenvolvido algum tipo de amizade após um convívio tão intenso.Para o treinamento montaram uma mini-academia no apartamento de Adrianna. Das 6h às 8h ele malhava sob a orientação dela, aumentando gradativamente as cargas, correndo cada vez mais rápido na esteira. Seu corpo se alterava rapidamente. A gordura diminuindo e a massa muscular ocupando seu espaço. A progressão era assustadora. Em menos de um ano estava quase tão forte quanto Adrianna. O mais importante para ele era a sensação de energia refletida em todas as suas ações. Andava agora em ritmo acelerado, quase correndo. Se o objetivo fosse chegar ao terceiro andar de algum prédio, preferia as escadas aos elevadores. Despertava rapidamente, quase pulando da cama e passava o dia inteiro eletrizado, sem nenhum resquício de sono.Das 8h às 9h estudava artes marciais substituindo o estilo a cada dois meses. O básico

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de cada uma. Primeiro Kung Fu, depois Jiu-jitsu e por fim o Krav Magá. Tudo era planejado. O Kung Fu dava ênfase ao ataque frontal à distância. O Jiu-jitsu o preparava para levar o oponente ao chão e imobilizá-lo, enquanto o Krav Magá, na realidade um conjunto de técnicas de defesa pessoal usado pelo exército israelense e difundido a posteriori pelo resto do mundo, oferecia os melhores meios de desarmar o inimigo. Os professores contratados ficavam aturdidos com o desproporcional avanço do aluno. Seus reflexos rápidos, às vezes, os pegavam desprevenidos. Bruno sentia-se orgulhoso nessas ocasiões, quase exageradamente presunçoso.Embora Adrianna jurasse não esperar nenhum confronto físico com Kerligan e MJ, segundo ela, o estudo de artes marciais era importante para o desenvolvimento de toda a musculatura, aumentando a agilidade e os reflexos, ajudando o cérebro a se acostumar com o novo corpo. Contudo, era também uma medida de prevenção, ele sabia. Se as coisas não acontecessem como planejadas, o embate seria provavelmente inevitável e ela não escondia essa possibilidade. Parecia comprometida com a promessa de não haver mais mentiras entre eles, mesmo quando a realidade pudesse afastá-lo do projeto. Apesar de reconhecer essa hipótese, recusou-se a aprender a atirar, sempre fora contra. Segundo sua opinião, a única situação na qual uma arma seria verdadeiramente útil seria aquela quando fosse necessário usá-la para

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matar e ele não estava preparado para aquilo. Esperava nunca estar.Das 9h até as 11h estudava as mais diversas disciplinas: xadrez, matemática aplicada, biologia, medicina, não havia fronteiras. O objetivo era ler o mais rapidamente possível cada livro e depois ser sabatinado. A cada dia conseguia ler mais rápido e acertar mais as respostas. Seu cérebro estava sendo exercitado tanto quanto seus músculos.Depois de um almoço rápido, normalmente com entrega em casa, operavam na bolsa, faziam milhares de reais por dia cada um, sempre aprimorando a técnica e desenvolvendo novas estratégias. Os volumes aplicados cresciam diariamente conforme o aumento no montante de dinheiro acumulado. Freqüentemente, quando grandes oportunidades se apresentavam e o capital deles estava comprometido, operavam alavancados, ou seja, utilizavam dinheiro emprestado da corretora. Quanto mais ganhavam, quanto mais crescia o patrimônio, mais as corretoras se apressavam em aprovar maiores limites de alavancagem. A certa altura, já trabalhavam com três em paralelo. Uma para operações iniciadas e finalizadas no mesmo dia, o chamado day trade, que lhes proporcionavam ganhos generosos em dias de alta volatilidade, especialmente no mercado de derivativos. Outra era usada especialmente para as operações de swing trade, cuja duração se estendia por alguns dias. A terceira concentrava uma quantidade inicialmente menor de capital e era usada para

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compra de ações que seriam vendidas algumas semanas ou meses depois.Bruno evoluía rapidamente absorvendo as técnicas de Adrianna e se divertindo no processo. Adorava navegar nas ondas do mercado e a sensação de realização ao constatar o sucesso de uma operação meticulosamente planejada. Como sinal de boa-fé Adrianna depositou 10 milhões de reais em sua conta apenas três semanas após o início do treinamento. Uma clara tentativa de amenizar as dúvidas de Bruno sobre ela.Adrianna não possuía conhecimentos específicos sobre ações ou avaliação de empresas. Muito menos sobre o mercado de capitais e suas nuances. Não fazia parte dos conhecimentos adquiridos em sua vida pregressa em Aqua. Obviamente, havia estudado o assunto quando decidiu se aventurar por aqueles mares. Leu uma quantidade enorme de livros e conduziu suas próprias pesquisas antes mesmo de disparar sua primeira compra. O que a fazia bem-sucedida, e a ele por conseqüência, era sua capacidade de analisar matematicamente as tendências das variações de preço dos ativos. Tal como qualquer outro fenômeno, o tratamento estatístico e probabilístico, utilizando-se técnicas matemáticas avançadas, a permitia fazer projeções dos valores a serem atingidos pelos papéis com ótimos graus de acerto. Desenvolvera equações sofisticadas e modelos preditivos ainda muito além das capacidades de entendimento de Bruno, resultado de toda uma vida dedicada à ciência e do constante exercício de uma mente

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privilegiada. Valeriam bilhões para os grandes bancos de investimento. Utilizando a própria experiência no desenvolvimento de software, programou algoritmos para execução das fórmulas como ferramenta de apoio. Embora ainda fosse necessária a intervenção humana na tomada de decisão final, o trabalho foi bastante simplificado. Sua mentora não podia estar mais satisfeita com o pupilo.Quanto menor o prazo da operação mais eficiente era o processo. O principal motivo para realizarem operações envolvendo dias ou semanas era a possibilidade de aplicação de maior volume de capital. Assim, mesmo os ganhos percentuais sendo menores, o valor em dinheiro resultante era extremamente relevante. Além disso, o valor possível de se aplicar em operações de day trade era limitado pelo próprio mercado. Se utilizassem dinheiro demais em uma operação de compra, por exemplo, podia não haver interessados suficientes quando desejassem alguns minutos depois vender os papéis obrigando-os a oferecê-los por um valor menor e prejudicando a operação. Por esse motivo, por excesso de capital, abriram contas em três grandes bancos, investindo em fundos de renda fixa. Ao final do segundo mês ele já conseguia lucrar, em média, um milhão de reais por dia útil. Imaginava quanto Adrianna havia ganhado no ano anterior.Das 18h às 20h estudavam os movimentos de Kerligan. Esboçavam estratégias e afinavam o plano. Por insistência dela, às 21h ele já estava

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em casa. Precisava repousar muito para facilitar o trabalho do organismo na absorção das mudanças. A necessidade de sono diminuiria com o tempo. Era hora de deixar os nano robôs biológicos trabalharem.A rotina nos finais de semana se diferenciava apenas pela ausência do pregão. O tempo era preenchido entre o estudo de operações específicas, como a abertura de capital de empresas na Bolsa de Valores, o estudo do funcionamento das bolsas dos Estados Unidos e da Inglaterra e o planejamento de suas ações futuras.A pior parte fora evitar os amigos. Como explicaria suas atividades e as transformações em sua vida? Quem acreditaria? Além disso, não precisava de mais alguém alimentando suas dúvidas. Estava bem ciente delas. Fizera uma opção, pagara para ver e iria até o fim. Não podia dar aos amigos a merecida atenção sem prejudicar o andamento do plano. O tempo era curto, Kerligan ampliava seu império a cada minuto. Se fosse tudo como Adrianna dissera, seu grau de periculosidade crescia na mesma proporção. Especulava sem sucesso como ele ganhara tanto dinheiro tão rapidamente. Embora não soubesse na ocasião o montante do capital acumulado pela sócia, Kerligan sem dúvida tinha ido muito além. Enquanto Adrianna navegava na casa dos milhões, o outro, dos bilhões.Sua mudança de comportamento fora drástica. O celular permanecia desligado a maior parte do tempo, assim diminuía o número de recusas aos

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convites para jantares, festas e passeios. Os números novos, usados nos contatos comerciais e com Adrianna, ele não divulgara. Nos raros momentos em que os amigos o contatavam em casa, encontravam um Bruno evasivo, escorregadio, bem diferente do brincalhão comunicativo de sempre. Se no início essa postura defensiva lhe doía intensamente, o tempo tratou de fazê-lo se acostumar. A transformação acontecia na mesma velocidade da diminuição das tentativas dos amigos em recuperá-lo. Um mecanismo de auto-preservação. Evitava assim ver- se pelos olhos deles. Convencera-se da possibilidade de se redimir no futuro, explicar tudo, quando as certezas superassem em quantidade e convicção às dúvidas, ou quando os fatos comprovassem a verdade. A única exceção fora sua mãe a quem manteve o mais próxima possível levando-a para almoçar a cada quinzena e telefonando constantemente. Esforçava-se para parecer feliz, mostrar o quanto estava sendo bem-sucedido na nova carreira e, principalmente, para esconder todo o resto. Nesse particular, a dor nunca cessou, nem mesmo diminuiu. Esconder suas dúvidas e incertezas de dona Marta não era tarefa fácil. A culpa e a angústia o afligiam cotidianamente e ele apenas aprendera a lidar com elas.Passados seis meses deram foco ao objetivo final. O corpo já não necessitava tanto de descanso. Mesmo quando se deitava após a meia-noite despertava ativo antes das 5h da

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manhã. Das 7h30 às 8h30, três vezes por semana, praticava artes marciais. Impreterivelmente a partir das 9h estudavam juntos, intensamente, as empresas ligadas à área de farmacologia e engenharia genética, áreas de expertise dela. Iniciavam a busca partindo das universidades, rastreando linhas de pesquisa consideradas promissoras, consistentes com os conhecimentos de Adrianna. Buscavam as empresas patrocinadoras tentando encontrar as mais desconhecidas e de capital fechado, ou seja, ainda fora da bolsa de valores. Sem Adrianna aquelas pesquisas trariam resultados, talvez, dali a trinta anos. Mas, seguindo as orientações certas poderiam florescer em um terço do tempo. À tarde continuavam a ganhar dinheiro. Ele, um nome legítimo, perfeitamente apto a realizar qualquer operação financeira de porte no Brasil ou em qualquer outro país. E ela, utilizando também codinomes e empresas de fachada, produzindo ainda mais dinheiro. Em paralelo, estudavam sobre a medicina e farmacologia atual. Ela lhe ensinava e lhe ajudava. Embora representasse leitura iniciante para ela, precisava se familiarizar com o estágio atual de desenvolvimento. Esforçava-se para transmitir parte de seus conhecimentos. Pontos chave capazes de ajudá-lo na escolha das empresas a serem financiadas, um seguro, caso algo lhe acontecesse.Àquela altura Bruno já se considerava um especulador invencível. Acreditava ter dominado o sistema de Adrianna tão bem quanto ela. As

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operações em bolsa de valores, outrora responsáveis por bombear quantidades maciças de adrenalina em seu sangue, agora realizava impassivelmente, de maneira quase autômata, como deveria ser. Reservara algumas horas no final de semana para gastar dinheiro. Comprou um apartamento novo de 2 milhões de reais. Gastou 500 mil na decoração. Colocou um Jaguar e um LandHover na garagem, tudo à custa de uma única semana de trabalho. Sem sucesso, tentou dar à mãe um novo apartamento decorado. A muito custo conseguiu deixar um Mercedes com motorista a sua disposição. Sentia-se o dono do mundo. Ao contrário da expectativa inicial, Adrianna o incentivara, por vezes, até o acompanhara. Ele era a face visível da operação, portanto era importante esbanjar sucesso. Essa imagem seria crucial nos contatos futuros.Criaram a estrutura formal de trabalho para dar suporte as suas operações: a Lima Investimentos Ltda. Formada inicialmente por um escritório em Salvador e outro em São Paulo. O grupo de funcionários principal era formado por três equipes. Uma implantava a estrutura de Tecnologia da Informação apta a suportar grandes bases de dados e se conectar diretamente à bolsa de valores; outra se ocupava de apoiar as pesquisas sobre empresas, seguindo as orientações de Adrianna; a última operacionalizava os contatos, agendava viagens e administrava os escritórios. Passaram a viajar

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muito, visitando indústrias, centros de pesquisa e universidades, no Brasil ou fora.O resto virou história. Encontraram a empresa ideal, adequada ao modelo, pagaram caro, utilizaram quase todo o dinheiro ganho por ele. Ela secretamente conduziu os testes em andamento para colocá-los no caminho certo. Não podia simplesmente dar-lhes a resposta. Para todos Adrianna era apenas a vice-presidente da Lima Investimentos. Por vezes entrava nas bases de dados de pesquisas alterando a ordem dos testes, incluindo componentes na programa-ção de misturas, manipulando de todas as formas possíveis, entregando graciosamente nas mãos dos pesquisadores as respostas às questões mais complexas.Os chefes dos laboratórios de pesquisa da Fênix Farmacêutica estavam extasiados, reconheciam os ventos da sorte, ao mesmo tempo em que demandavam salários maiores e participação nos lucros, considerando a comprovada competência e os avanços conquistados por eles em favor da empresa. Demandas atendidas com moderação após uma fingida relutância, culminando em uma dose estimulante de congratulações pelos novos proprietários. Tudo precisava parecer legítimo.O IPO — abertura de capital de uma empresa na bolsa de valores — foi divulgado estrategicamente após o anúncio da descoberta da nova droga, um bloqueador à evolução do mal de Alzheimer em adultos jovens. Todos queriam uma fatia daquele bolo. No início do ano de 2010 era detentor de 2 bilhões de reais em ativos e

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dinheiro. Adrianna atingira um bilhão, sempre priorizando Bruno nos negócios, conforme prometido.Chegara a hora de se reconectar ao mundo. De dar uma face visível aos empreendimentos. Uma face de sucesso, projetada para atrair investidores e ajudar a formar parcerias sinérgicas. Precisavam ampliar o ritmo do crescimento se queriam rivalizar com A.C. Goldwill em capacidade de investimento. Nestes momentos, quando a sombra da dúvida ainda pairava sobre sua cabeça, não podia se cercar de desconhecidos. O poder e suas conseqüências à alma já havia penetrado demais em suas entranhas. Teria dificuldades em tomar decisões que colocassem em risco seu império em ascensão. Algo inevitável e ninguém no mundo, ao qual pertencia agora, seria capaz de fazê-lo mudar de opinião. Sabia bem quem eram aqueles com tal poder.Por isso estava prestes a encontrar seus melhores amigos. Aqueles a quem tanto negligenciara. Era hora de pagar a conta. Brigara com Adrianna defendendo esse objetivo. Estava nervoso. Precisava deles para manter sua sanidade, chumbá-lo ao chão novamente, conectá-lo aos seus sentimentos e a sua huma-nidade. Algo de que se distanciara perigosamente no último um ano e cinco meses.

- Chegamos, Dr. Bruno. Informaram-me que os dois primeiros convidados já estão esperando

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pelo senhor no avião - alertou Carlos enquanto estacionava em frente a um hangar.

17. Infinito

Rachel estava impressionada, mas pensando bem, não devia esperar menos de um bilionário. Cogitara inicialmente que seria levada pelo motorista ao aeroporto internacional de Salvador, ao invés disso se encaminharam a um hangar onde se lia: Pardal Linhas Aéreas. Lá a conduziram ao jatinho, diminutivo injusto para aquele monumento à engenharia aeronáutica. Gulfstream G650 era o nome impresso nas laterais. Não lhe dizia nada, não conhecia nenhum usuário de jatinhos, ela própria nunca havia voado em um. Se por fora achou bonito, ao vislumbrar o interior lhe deu vontade, pela primeira vez na vida, de ser rica... Muito rica. Havia espaço para receber oito pessoas confortavelmente, sem mencionar os dois sofás para três pessoas cada. A cabine era forrada nas laterais por um tecido macio, bege claro, combinando com os assentos em couro e sofás em veludo da mesma cor. Duas almofadas vinho em tecido brilhante, jogadas sobre o sofá, davam o tom mais chique. As primeiras quatro poltronas, duas em cada lado da aeronave, eram casadas com mesas individuais em madeira escura, na mesma tonalidade do friso longo horizontal divisando a cabine. A mesma madeira era usada em uma espécie de rodapé alto que protegia as laterais de choques ocasionais.

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Depois dos dois sofás formando um corredor, havia mais quatro poltronas encostadas no lado direito e uma mesinha entre elas. Um móvel de apoio do lado esquerdo completava o quadro. Nunca vira um avião com móvel de apoio, achou o máximo.A porta aberta deixou o som de passos se aproximando atravessar o hangar e atingir a cabine. Pela janela avistou o mesmo funcionário baixinho, há pouco também seu condutor, acompanhando um homem alto usando calças jeans e camisa de malha. Àquela distância notou a pele bem branca, a altura, cerca de 1,90m e os cabelos negros encaracolados. Ao se aproximarem mais, reconheceu o sorriso franco e o andar relaxado de quem só faz o que gosta na vida. Escondeu-se na entrada para a cabine do piloto. Quando ele, de costas para ela, parava momentaneamente contemplando o luxo da aeronave, sentindo o mesmo deslumbre experimentado por ela apenas minutos atrás, surpreendeu-o com um pequeno empurrão.- Bú! - ele não se assustou muito.- Rachel! - Estava verdadeiramente surpreso. Virou-se para Jorge, o funcionário do hangar. — A loira vem com o avião? - o sisudo Jorge simulou um sorriso.- Vou deixar vocês a vontade e verificar se o piloto precisa de algo - e adentrou a cabine.- Você está maravilhosa como sempre — o elogio foi sincero.- E você? Não envelhece?

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- Sabe como é, sou contra, por princípio — ambos sorriram.O declarado interesse de Marco, anunciado falsamente como vício de paquerador e o charme de Rachel, fingindo não entender a verdade por trás da máscara, sempre fora parte do relacionamento dos dois.- Estou aqui - apontou para a primeira poltrona próxima à janela, à esquerda, de frente para o nariz do avião. Ele se sentou em frente a ela.- Bruno me ligou ontem, na verdade hoje de madrugada. Disse que tinha uma proposta irrecusável para fazer, mas não entrou em detalhes. E você?- Tipo a mesma coisa, só que eu perguntei quem mais estaria aqui. Ele só disse rostos amigos, todo cheio de mistério. Também, depois daquela entrevista no Catatau, quem ia dizer não. Você sabia daquilo tudo?- Nem tudo. Achei surreal. Um dia o cara sai para comer pizza com você... Um ano depois quase sem se falar e ele vira o Warren Buffet! Loucura total.- Você acha que ele mudou? — perguntou apreensiva. Instintivamente o corpo se inclinou para frente em sinal de preocupação e sincero interesse na opinião dele. Embora conhecesse Marco há muito tempo, não eram íntimos. Ele, contudo, era um dos melhores amigos de Bruno, ela sabia, haviam sido amigos desde o colégio.- Claro né, Rachel! Mas, duvido que tenha se tornado alguém desonesto ou tenha deixado de ser um amigo. Deve estar meio afetado,

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deslumbrado com tanto dinheiro, só isso - fez uma careta de desaprovação. - Fazer uma reunião em pleno voo, pegar a gente aqui e encontrar com ele em São Paulo. Mandar motorista pegar a gente em casa. Qual é? Parece com o Bruno de antigamente?- Tá muito mais sexy! — eles riram juntos.- Esqueci como seu riso era bonito. Ainda ilumina uma sala sabia? - ele podia nunca ter conseguido conquistá-la, mas não iria perder duas horas repletas de oportunidades.- Você não desiste, não é?- Eu tenho duas horas livres, e você?Ela riu balançando a cabeça de um lado para o outro. De relance, notou alguém subindo as escadas do Gulfstream. Era caucasiano, levemente bronzeado e de cabelos castanho-claros perfeitamente cortados.— Posso entrar na festa? — o novo membro do grupo falou com ares de quem já é íntimo.— Zoinho, quanto tempo! — Marco falou se levantando para apertar sua mão.Natan usava um paletó azul sem gravata e camisa de tecido predominantemente branco realçando sua tez bronzeada. A camisa, com suas finíssimas listras azuis, o cinto de marca e o sapato fino, porém na última moda, denotavam a sofisticação e o estilo já conhecido dos amigos.— Quanto tempo, Natan — Rachel falou abraçando o amigo enquanto fazia careta para Marco. — Não sei por que você ainda usa esse apelido horroroso.

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— Mas, eu falo com tanto carinho — Marco retorquiu em meio à risada curta, freqüente em seus maneirismos.Neste momento o piloto adentrou a cabine enquanto Jorge se despedia e deixava a nave.— Boa noite, sou o comandante Zanichelli - cumprimentou os passageiros enquanto o colega tratava de fechar a porta da aeronave. - Estamos partindo em instantes, esse é o comandante Queiroz. Ele será nosso co-piloto hoje e seu atendente durante o vôo. Apertem os cintos, em duas horas estaremos em São Paulo.

Precisamente às 8h09 o jatinho pousava no aeroporto de Congonhas, em Guarulhos. De uma janela do escritório da diretoria, no hangar da matriz da Pardal Linhas Aéreas, Bruno e Adrianna permaneciam incógnitos esperando o grupo de São Paulo se juntar ao da Bahia. Seria mais fácil se todos se encontrassem antes. O grupo de expatriados já estava acostumado a manter amizades à distância e, certamente, não perceberam o afastamento imposto por Bruno. Com sorte apaziguariam o coração e as desconfianças daqueles que o viram desaparecer da noite para o dia, saltando de um convívio semanal, para quase um ano e meio sem notícias. Desejava ardentemente desligar as defesas deles, não sabia se conseguiria lidar com a alternativa. A idéia havia sido de Adrianna, ela pensava em tudo realmente. Às vezes isso era assustador, embora também o acalmasse. Sentia como se estivessem juntos em tudo, ela o

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apoiava além dos limites da sociedade imposta. Mesmo agora, quando o odor do seu perfume nublava seus pensamentos, ele a percebia firme ao seu lado, observando através da janela de vidros escuros os convidados se aproximandodo avião já estacionado. Certamente estava avaliando a situação, analisando o comportamento de cada um, filtrando os diversos sons, preenchendo a distância entre eles, tentando ouvi-los em meio às rajadas de vento, buscando encontrar maneiras de influenciá-los caso fosse necessário. Bruno não tinha dúvidas de sua dedicação ao sucesso do encontro. Não apenas em função do plano, mas também por saber o quanto aquilo lhe era importante. A partir do momento quando toda a verdade fora revelada, Adrianna tinha sido aberta, honesta e verdadeira. Estava certo disso, assim como estava certo da paixão crescendo em seu peito a cada dia, um amor não correspondido. Se em algum momento Adrianna demonstrou interesse por ele, foi fruto da primazia. Executara com perfeição o papel assumido no teatro de sedução, palco de seus primeiros encontros. Ela era assim, comprometida e dada a extremos.Os primeiros a despontar no hangar em direção ao Gulfsream haviam sido Max e Wagner. Max em um terno azul-marinho impecável mantinha o peso de dez anos atrás, transmitindo uma silhueta elegante nos seus 1,85m. Seu cabelo curto sob a pele extremamente leitosa e seus traços duros contrastava com a delicadeza do rosto de Wagner e sua pele negra. Bem-vestido

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com calça social preta e camisa azul de manga comprida, Wagner parecia ter envelhecido mais, embora mantivesse o corpo magro e os mesmos cabelos curtos dos tempos de escola. Era um pouco mais baixo do que Max. Nenhum dos dois usava mais óculos graças ao milagre das cirurgias rápidas de miopia.Logo atrás, quase na mesma linha, vinha Cristiane. Com um tailleur marrom bem claro, sapatos altos fechados e jóias bem distribuídas nos lugares de costume. Estava elegantíssima, como era de se esperar. Os cabelos encaracolados até o pescoço mantinham o tom castanho-avermelhado fazendo um belo par aos olhos azuis-claros. Continuava uma linda mulher, embora perdesse em comparação a Rachel, e, na opinião de Bruno, não se comparava a Adrianna. Era incrível como conseguia distinguir os detalhes das feições e a cor dos olhos àquela distância, deviam estar separados por pelo menos quinze metros.Bruno não se acostumara inteiramente com algumas nuances das mudanças em seus sentidos e ainda se surpreendia ao notar a extensão do seu alcance. A visão e a audição foram aprimoradas mesmo sem as ter exercitado explicitamente. Esses sentidos pareciam responder espontaneamente ao processo de enriquecimento celular. Talvez por serem utilizados ao máximo de suas potencialidades cotidianamente sem mesmo nos apercebermos disso. Já com o paladar e o olfato a história era

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diferente. Praticamente não percebera mudanças.Atribuía o fato a não os exercitar com a intensidade devida. Se ele fosse um gourmet, cozinheiro ou profissional da indústria de perfumes, talvez o resultado fosse diferente.Para aquela noite Bruno escolheu um meio termo entre o casual e o traje padrão de trabalho, algo muito semelhante à opção de Wagner. A exceção da camisa rosa, pareciam fazer propaganda da mesma loja de roupas. Adrianna, por sua vez, precisaria lutar para ser aceita no grupo e isso dificultava as coisas para as mulheres. Precisava parecer bonita, sóbria e inteligente, porém não muito bonita, ou atrairia a atenção dos homens para o lado errado e dispararia os alarmes de seus pares. Optara por um terno feminino em tom azul sob uma camisa de seda rosa-escuro, cujas abas se sobrepunham à parte de cima do terno. Um pequeno colar de brilhantes e poucos anéis compunham elegância com beleza. Atingira apenas metade de seu objetivo, Bruno repetiu para si mesmo.A algazarra se ouviu além dos portões do hangar quando Bruno, cerca de quinze minutos depois, adentrou o Gulfstream. A intimidade esquecida por um ano voltara sob a forma de abraços, brincadeiras, passadas de mão no cabelo e beijos, quase como deveria ser se não pairasse sobre suas cabeças o peso de um bilhão de reais.- Chegou o gostosão do pedaço! - sempre fora espalhafatosa nos comentários. Rachel brincou enquanto o abraçava e lhe aplicava um forte

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beijo da bochecha. Adrianna o seguia e arregalou os olhos sob a visão daquela loira deslumbrante, cujo vestidinho preto ressaltava as pernas esculturais, beijando Bruno.- Achei fraco esse aviãozinho - gracejou Max em meio a um forte abraço.Somado ao abraço vindo de Marco do outro lado, Bruno deveria sentir-se bem espremido não fosse por sua nova musculatura.- Tava em promoção, fazer o quê? - respondeu Bruno, complacente com a brincadeira, já se adiantando para abraçar Natan. - E aí meu amigo, quanto tempo.- É, tem tempo. Bom ver que você está bem - Natan sorria, enquanto a expressão corporal denotava relutância.- Fica bonito na televisão esse homem - Cristiane comentou em meio a um abraço. Distintamente parou por um segundo forçando o olfato na região do pescoço — e continua cheiroso.- Diga aí, meu amigo. Tá precisando de faxineiro para o jatinho, não? — Wagner provocou já sorrindo. Não havia maldade em sua voz. Só o mesmo jeito sem graça que sempre tivera quando exposto a aglomerações.- Rapaz, que saudades! - Bruno respondeu e, depois de abraçar Wagner, contemplou o grupo. - Que saudades de vocês!- Deve ser solitário lá no monte Olimpo - a brincadeira de Natan provocou risos curtos, mas carregava um ranço de mágoa.- Hum, hum - Adrianna pigarreou.

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- Falha minha. Quero lhes apresentar, Adrianna. Minha amiga, sócia e responsável por boa parte do meu sucesso. - Gostaria de dar-lhe o devido crédito, ou seja, a totalidade de seu sucesso, mas traria mais desconfiança ao ambiente, segundo concordaram. E, afinal, ele havia trabalhado bastante no último ano, algum mérito lhe era devido.Todos a cumprimentaram cordialmente. Marco manteve o máximo de contato visual possível, admirando sua beleza e tomando o cuidado de não estragar os possíveis avanços com Rachel. Entre essas duas as fagulhas pareciam cruzar o ar, tornando-o denso e pesado, apesar dos sorrisos falsamente amigáveis. Bruno, perdido nas emoções do reencontro, não percebeu. Muitas amenidades e uma decolagem depois ele fez uma interrupção. Pediu a todos para se sentarem nos sofás enquanto ele e Adrianna permaneciam de pé em frente ao grupo.- Amigos, muito obrigado por desarrumarem a agenda de vocês por minha causa. Estou muito agradecido, mas, como vão ver, valerá a pena. Como disse ontem rapidamente por telefone, tenho uma proposta para cada um de vocês. Não sei se assistiram minha entrevista no Catatau ontem - em tom de brincadeira todos fizeram cara de muxoxo e alguns chegaram a disparar piadas insinuando estar se autopromovendo. — Ok, ok, já entendi. Vocês viram — comentou em tom jocoso, aceitando e ao mesmo tempo emendando em tom mais sério. — Bem, tenho um plano para multiplicar por dez o patrimônio

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conquistado até agora, em dois anos, e quero vocês fazendo parte do bolo - pelo silêncio notou ter causado o impacto pretendido. Pausou por alguns segundos, deixando a atmosfera pesar.- Detalhes, please! - Max estava sério e atento, como todos.- Primeiro eu vou precisar contar algumas coisas para vocês e, obviamente, peço sigilo. - Adrianna queria a assinatura de um acordo de confidencialidade antes, ele jamais pediria isso àquele grupo. Os amava e sabia que a despeito da distância eles ainda o amavam. Este ponto não foi negociável.- Gostaria de falar com o editor do Valor Econômico, por favor? — Max falou ao celular, fingindo uma ligação para o conhecido jornal de circulação nacional.Após algumas risadas e um tapa na cabeça de Max dado por Marco, Bruno continuou.- Estou criando uma holding, a Lima World Investments, um guarda-chuva para a Lima Investimentos, a Lima Gestora de Fundos, a Fênix e seis novas empresas em estágio de prospecção para compra. Todas as novas empresas seguem a filosofia que descrevi no Catatau, ou seja, vão trazer avanços estrondosos em diversos campos. Companhias à beira de realizar descobertas espetaculares, capazes de fazer desse planeta um mundo melhor, se me permitem o clichê. - Naquele momento Adrianna distribuía uma folha de papel impresso para cada um dos convidados. — Todas ainda fora de qualquer bolsa de valores. Quase todas com valor de mercado hoje de

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menos de 300 milhões de dólares. A idéia, como devem ter depreendido da entrevista de ontem, é utilizar os recursos do fundo APMM, Ações para um Mundo Melhor, para adquirir estes negócios, realizar os investimentos necessários, divulgar seu potencial e abrir o capital na bolsa multiplicando por dez os ganhos.O silêncio era palpável, por trás das palavras de Bruno ouviam-se apenas as turbinas do avião. Apesar do horário, em uma noite de trabalho, nenhum dos convidados exibia sinais de cansaço.- A primeira é a Bio Tech, da Índia, está à beira de desenvolver uma forma eficiente de armazenar dados utilizando agentes biológicos. Imagine um chip de memória do tamanho da minha unha, capaz de armazenar um Terabyte. Algo entre três a quatro vezes mais que o HD do seu laptop - completou ao perceber Cristiane franzindo as sobrancelhas. - Imagine isso a um custo de produção inferior em 50% ao necessário para se produzir um Gigabyte de memória RAM, basicamente mil vezes menos informação. A economia no consumo de recursos naturais e a redução na produção de lixo informatizado são inimagináveis. Dez anos, só dez anos para chegarmos lá.Wagner fez menção de querer perguntar algo, mas Bruno sinalizou, pedindo paciência.- Na folha em suas mãos existe um resumo dos dados sobre este projeto, mas depois falamos mais disso. Antes quero falar para Cristiane sobre a Cellular Growth, uma empresinha de São Francisco, Califórnia. Cris — fitou-a com os olhos

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repletos de promessa. No rosto a emoção do momento. — De acordo com nossa avaliação eles estão a menos de vinte anos de curar a leucemia se detectada nos estágios iniciais. — Um mínimo sorriso escondendo a última informação. Era um momento genuinamente feliz, sua emoção perceptível ao apresentar o melhor lado de sua nova realidade. - E o processo tende a ser mais bem-sucedido em crianças.Agitada, Cristiane praticamente arrancou o segundo resumo das mãos de Adrianna, já pronta para distribuí-lo. Estudou-o com atenção, sob os olhares pacientes dos amigos.- Eu não conheço esse centro de pesquisa — comentou. — Não quero parecer prepotente, mas se não conheço não deve estar tão avançado assim.- Eles estão - respondeu Adrianna com firmeza, atropelando a conversa. - O motivo de nunca ter ouvido falar da Cellular Growth é sua origem. Seus trabalhos mais conhecidos relacionam-se ao tratamento de queimados, mais precisamente à pesquisa de regeneração de tecido. Apenas recentemente diversificaram seu campo de atuação e passaram a aplicar protocolos análogos para reprodução de células sadias em pacientes com leucemia. Embora estejam despendendo muita energia, perseguindo diversas soluções paralelas, segundo nossa avaliação, estão no caminho correto. E nós temos a solução para aperfeiçoar os testes, afunilar as pesquisas, por assim dizer. O trabalho do Dr. Taub Schiller - entregou nas mãos apenas de

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Cristiane um calhamaço contendo cerca de 60 páginas — é complementar ao deles, algo aparentemente ignorado pela empresa até então. Obviamente, precisaremos incluir Taub de forma a viabilizar o projeto.-Alguém fez o cruzamento dos dados das pesquisas? — perguntou Cristiane.- Eu fiz — respondeu Adrianna, exalando confiança por todos os poros. — Sou médica, especializada em biologia molecular.Enquanto Cristiane era só curiosidade, Natan exibia uma expressão intrigada, subitamente conectando aquela Adrianna à mulher que Bruno conheceu há um ano e meio, quando iniciou seu afastamento.- No devido tempo vão poder investigar em detalhes cada negócio - Bruno interrompeu. Não havia sentido em aprofundar a discussão. A noite era curta e a semente já tinha sido plantada. - Estes são apenas dois dos seis projetos em fase de planejamento, um para cada um de vocês.- Qual é a proposta oficial, Bruno? — Natan canalizava a pergunta na mente de todos.- Não tem jeito fácil de dizer isso, então, lá vai. Quero que vocês larguem suas atividades atuais, suas carreiras como a conhecem hoje e venham ser meus sócios na holding - o ar pareceu imobilizar-se entre eles. - Vocês não precisam de dinheiro, mas precisam se comprometer em dedicar dez anos a esses projetos. Terão ótimos salários, bem melhores do que tem hoje, mesmo você, Max

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- olhou firme para Max e Cris, deixando implícito o conhecimento de seus níveis de rendimentos e assegurando suas palavras. - Além de um percentual de bônus atrelado à lucratividade do negócio, receberão como parte do pacote, um milhão de reais em ações da empresa cujo projeto estiverem à frente. Quando abrirmos o capital vocês terão este valor multiplicado por algo variando entre três e dez vezes. Também terão ampla liberdade de participar financeiramente do projeto de sua escolha antes da abertura de capital, se houver interesse. Quero oferecer a liderança de um projeto para cada um de vocês, alinhado com suas afinidades e experiências.Os olhares cruzaram o avião, ninguém arriscava denunciar seu pensamento. Não sabiam bem como responder. Natan se incumbiu de varrer o silêncio.- Você vai garantir o futuro da gente, é isto, está nos dando um presente de milhões de reais? — não havia um tom feliz na fala de Natan. A voz firme e as palavras pausadas, acompanhadas pelo leve balançar de cabeça enquanto as pronunciava, formavam uma cortina de fumaça, escondendo seus reais sentimentos.Fora Natan quem mais sentira sua falta. Estava confuso, e provavelmente desconfiado. Cabia a Bruno compreender e reconquistar a confiança de todos.- Não. Quero que vocês me deem de presente um grupo no qual eu posso confiar. Um grupo cujos valores éticos e morais estão acima do

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dinheiro, cujas mães me chamam pelo nome e tem intimidade para me dar uma bronca, se assim desejarem. Quero do meu lado seres humanos, atados a mim por laços de amor e amizade, quero a certeza de nunca ser traído. Sem vocês não consigo realizar esse sonho — a expressão no rosto de Bruno era de humildade. Embora suas feições tivessem endurecido com o tempo, seus olhos ainda espelhavam suas emoções e diziam a todos o quão sincero estava sendo. Virou-se para Natan ao desferir a frase seguinte. - É muito solitário no monte Olimpo, sim.Enquanto estudava o grupo, Adrianna não podia deixar de admirá-lo. Quanta verdade, quanta emoção. Ali estava um homem sem medo de se expor, confiante nos seus sentimentos, confiante no seu coração. Teve vontade de beijá-lo na frente de todos, especialmente de Rachel. Torcia para que ele estivesse certo e realmente pudesse confiar naquele grupo.Max e Cristiane se entreolhavam. Natan e Wagner circulavam o ambiente, cuidadosamente evitando os olhos de Bruno. Rachel baixava o olhar, avaliando as alternativas, até Marco quebrar o silêncio.- Tô dentro, onde assino? — todos se espantaram com a rapidez da resposta.- Estão estranhando? — E deu de ombros rindo, desconcertado, sua forma típica de enfrentar a pressão. — Não me conhecem, não é? A proposta é o jardim do Éden para mim, em espírito, é basicamente o meu jeito de operar, com uma

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única diferença... Dessa vez eu fico rico - e mais uma vez repetiu a risada contida, emulando um sorriso.- Pô, Bruno. É claro que estamos lisonjeados, mas isso não está fazendo muito sentido. Você consegue contratar executivos de primeira para tocar esse negócio sem precisar gastar tanto - Natan argumentou. - Além do mais, com exceção de Max, ninguém tem experiência gerenciando negócios tão grandes. Se você quer nos ajudar, e não estamos pedindo, existem outras formas.- Você tem alguma razão no argumento, mas não toda a razão — respondeu Bruno. — Obviamente ficarei mais feliz se investir dinheiro em vocês ao invés de em um desconhecido. Contudo, não é este o objetivo final, eu não prejudicaria um negócio para ajudar ninguém. Como você mesmo disse, existem outras maneiras. Depois de descobertas as empresas potenciais, não posso me dar ao luxo de perder tempo. Se outro comprar o negócio eu estou fora. Se a informação vazar, estou fora também. Se alguém souber do meu interesse nessas empresas ou se fizerem propostas, o preço delas sobe muito rapidamente. Como conseqüência, as negociações se tornariam mais difíceis, haveria perda de lucratividade na operação e precisaríamos drenar fundos destinados a outros projetos. Estou em um momento crítico, preciso de agilidade, competência e sigilo e só conseguirei isso trabalhando com pessoas de total confiança. Para encontrar profissionais com

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tais características no mercado desperdiçarei pelo menos seis meses. É risco demais para mim.- E nossa falta de experiência, não é igualmente arriscada? - Natan retrucou.- Não me levem a mal, todos aqui são competentes e tem alta capacidade de realização - respondeu Bruno. - Mas, não tenho grandes expectativas quanto à capacidade gerencial de vocês. Não se tornarão executivos de primeiro escalão da noite para o dia, sei disso. O essencial neste momento são pessoas de confiança para validar, em campo, as informações já garimpadas sobre as empresas. Um time de auditores e consultores apoiará vocês, especialistas em contabilidade, tecnologia e nas áreas específicas do negócio em questão. Na negociação final, se necessário, eu ou Adrianna estaremos com vocês. Se toparem vão trabalhar em projetos ligados a área de expertise de vocês. É com este conhecimento e com a certeza de serem capazes de guardar a informação que estou contando, o resto vem com o tempo.Faltaram argumentos a Natan, embora parecesse ainda muito incomodado com a proposta. Bruno achou melhor aproveitar sua feliz eloqüência e finalizou o raciocínio no melhor estilo empresarial.- Além do mais, não estou gastando muito na proposta. Considerando os bônus utilizados hoje em dia para atrair executivos de primeiro escalão a uma empresa nova envolvida em uma iniciativa pioneira, avalio estar investindo basicamente o mesmo montante. E não posso esperar que

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abdiquem de seus projetos profissionais da noite para o dia sem uma compensação à altura não é mesmo?- Eu estou entendendo bem, Bruno - Rachel media as palavras tentando administrar a situação da melhor forma possível. - Mesmo assim a gente vai precisar conversar mais um pouco, não é assim tão fácil para o resto de nós.- Desviou os olhos dele apenas por um momento, enquanto mirava Marco.- Wagner precisará discutir a questão com a esposa. Max e Cris terão milhões de detalhes para considerar, eu... Confesso, estou levemente tonta - e sorriu, pouco à vontade. - De quanto tempo dispõe para nos convencermos? — Todos se viraram para o anfitrião. O efeito pareceu o mesmo de acompanhar uma partida de tênis de mesa.- Bom... É uma situação complicada. Veja bem...- Agora vem a pegadinha - Natan provocou.- Não tem pegadinha. Quanto mais circulo com estas informações - Bruno brandia levemente as folhas de ofício contendo o resumo das empresas distribuído anteriormente — mais próximo fico de um vazamento. A espionagem nesse tipo de operação não é pequena e existem os jornais tentando a todo custo encontrar um furo de reportagem. Por isso estamos fazendo esta reunião aqui. Não foi para mostrar meu poderio financeiro. Eu preferia mesmo ter essa conversa na casa de um de vocês, mas não dá. E a briga para a compra de algumas das empresas já começou. Sempre existem interessados,

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independentemente da agenda de cada um. Entendam-me... Quando quiserem, em qualquer momento da vida, trabalhar comigo, as portas estarão abertas. Agora... Em relação a este pacote, para esta proposta específica, vocês têm até a próxima segunda para decidir — calculava o impacto do ultimato.- Que diferença faz um dia, uma semana ou mesmo um mês? — perguntou Wagner.- São três motivos básicos - Adrianna interrompeu. Era imperativo iniciar sua interação com o grupo e aquele era um momento tão bom quanto qualquer outro. - Motivo número um: o fundo APMM vai ser lançado na sexta. Precisamos colocar o motor em movimento. Querem saber quem vai liderar os projetos, confiança é a palavra chave no mundo da renda variável. Um nome como o da Dra. Cristiane Templis faz toda a diferença no projeto da Cellular Growth, por exemplo. Motivo dois: algumas destas empresas, apontou para a pasta em suas mãos, podem fazer sua descoberta crucial a qualquer momento. Motivo número três: embora conte com sua dedicação neste sentido, vocês não vão poder se desligar imediatamente de todos os seus afazeres. Será necessário um tempo mínimo entre a resposta de vocês, caso positiva, e o real momento quando iniciarão as atividades na holding.- E por que ela aceitou oferecer para nós um pacote tão benéfico? Ela não tem amigos ou pessoas de sua confiança para o trabalho? -

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Rachel nunca primou pela sutileza e o ambiente repleto de amigos a estimulava a ser bem direta.Adrianna notou a simetria de sentimentos entre elas, a desconfiança e um senso de proteção territorial faziam parte do cardápio. Pega de surpresa, hesitou apenas um segundo, antes de iniciar sua resposta.- Meu... - Bruno não lhe deu chance de responder. Atropelou a resposta com a sua própria, em tom educado, porém incisivo.- Adrianna é a mente científica por trás do projeto Fênix e da Cellular Growth, dentre outros e por isso sou profundamente agradecido, mas a maior parte do capital envolvido é meu, portanto ela não tem poder de decisão neste assunto. São as bases da nossa parceria. — Adrianna se sentiria diminuída, ele sabia. Contava com sua sobriedade para entender que aquela era a resposta perfeita para apaziguar os ânimos. - Além disso, vêm de uma origem humilde, passou a infância e boa parte da vida adulta no Acre e infelizmente seus relacionamentos, no patamar profissional de que precisamos, ainda são escassos. Não tem a quem indicar — essa fora a história combinada. — Tenho fé que com o tempo vocês também se tornarão amigos.A farsa fora elaborada por Adrianna três anos antes. Tivera bastante trabalho para forjar uma formatura em medicina e toda uma história de vida no estado do Acre. Sua melhor identidade alternativa guardada para este momento. Por ele, teriam inventado uma origem Croata ou algo do gênero, porém as dificuldades eram incríveis

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e poderiam encontrar mais ainda quando a participação dela nos negócios começasse a chamar mais atenção. Usara a certidão de nascimento de alguém da mesma idade, uma órfã morta ainda bebê. A partir dali construíra um rastro de mudanças de cidades e estados pelo país. De transferência em transferência, a cada passo seu histórico escolar se tornava mais legítimo. O último semestre foi cursado realmente, em uma faculdade particular de Belo Horizonte, legitimando o curso e criando testemunhas de sua atuação. Ao final, alterou na justiça o nome na certidão de nascimento por seu nome verdadeiro, Adrianna Modrin, um capricho pessoal, ela reconhecia.Incapaz de anular a desconfiança, já preparada para os futuros questionamentos quanto a sua competência, Adrianna optou por neutralizar a expressão e encarar a todos. Evitaria ao máximo qualquer demonstração de fraqueza. Inibida pelo ímpeto da resposta de Bruno, Rachel não a encarou, baixou os olhos no segundo em que seus olhares se cruzaram. Adrianna sentiu algum prazer naquilo.- Tenho um escritório pronto em São Paulo e outro em Salvador para quem topar. Para falar comigo sobre este assunto se apresentem lá a qualquer hora no horário comercial. Se precisarem falar em horários alternativos basta ligar antes informando e poderão entrar a qualquer hora - enquanto Bruno explicava as opções, Adrianna passava o cartão com o endereço. - Mencionem seus nomes na recepção

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e eles encaminharão vocês até uma sala segura onde poderemos falar via videoconferência. Entrem em contato quantas vezes precisarem para decidir.Cris olhou para o cartão, nele não havia nome de empresa ou logomarca, além do endereço e telefone, apenas um símbolo: "" Bruno percebeu a expressão intrigada.- Enquanto estudamos os projetos, estes escritórios não podem ter ligação formal com a Lima Gestora de Fundos ou qualquer outra empresa do grupo, então me permiti uma liberdade criativa. O símbolo do infinito representa as nossas possibilidades. Coincidentemente - não era coincidência. - Também representa o número oito, deitado. - Com o indicador ele fez como se estivesse contando, apontando para cada um. - Oito pessoas rumando para o infinito de possibilidades.Adrianna fora contrária àquela escolha e ao discurso teatral, contudo ele acreditava na própria capacidade de envolvê-los na idéia ao longo do tempo e insistiu no gesto.A pieguice ocasional do amigo, assim como seu gosto pelo exagero, eram bem conhecidos e, portanto, ninguém estranhou a escolha. Bocas torcidas e sons indistinguíveis, em tom levemente zombeteiro, não contaminaram o silêncio que se seguiu. Olhares furtivos e cochichos emergiram sendo substituídos gradativamente por questionamentos prontamente respondidos pelos anfitriões.

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Não durou muito. Quando, às 11h, após sobrevoarem São Paulo e Rio de Janeiro apenas para passar o tempo, pousaram em Guarulhos novamente, muitas conversas paralelas já haviam acontecido. Um observador atento teria notado o clima flutuando entre ansiedade, surpresa e confusão. Superado o momento inicial, o grupo atingiu a calma necessária à análise mais profunda da situação. Todos esmiuçaram a proposta o máximo possível, organizando-se primeiro em um grupo grande, depois em grupos menores, divididos por projetos de interesse ou afinidade pessoal. Cris e Natan ficaram impressionados com os conhecimentos médicos e científicos de Adrianna, principalmente considerando sua formação precária. Ao final uma proposta escrita foi entregue individualmente com os valores de cada oferta de trabalho.Wagner previa a reação de Milena após entregar-lhe aquele papel. A esposa ficaria extasiada e, provavelmente, fariam sexo ainda naquela noite, a despeito do horário previsto para sua chegada. Outro avião fretado o esperava para levá- lo ao Rio de Janeiro. Tudo cortesia de Bruno, obviamente.Max e Cris haviam sido levados ao aeroporto por um carro contratado pela Lima Investimentos e agora o mesmo veículo os levaria até sua residência. Adrianna se ofereceu para acompanhá-los, assim poderiam avançar nas discussões iniciadas durante o vôo. Ela percebeu a necessidade de ambos por informação e

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encorajamento. Ficou ligeiramente incomodada quando imaginou Rachel ao lado de Bruno por mais duas horas. Ele seguiria com o grupo de Salvador, pois desejava conversar com Natan separadamente.A 1h15 da madrugada já havia se despedido de Rachel e Marco. Em sua avaliação, foram os mais receptivos até agora. Não era uma surpresa. Marco sempre fora relaxado, no melhor sentido da palavra. Mesmo se esforçando Bruno não se lembrava de qualquer situação envolvendo algum tipo de cobrança por parte dele. Não era seu estilo. Não se prendia a detalhes. Embora ele nunca se lembrasse do aniversário dos amigos, jamais faltava quando eles realmente precisavam. Era o tipo de pessoa capaz de dedicar dias de trabalho apenas para fazer um favor, caso solicitado e sempre o realizava com total boa vontade.Com Rachel a questão era outra. O relacionamento deles nunca primou pela constância. Os contatos eram disparados por um ou pelo outro aleatoriamente. Telefonavam-se para desejar Feliz Natal, se encontravam em festas de aniversário, marcavam encontros esporádicos com a turma dos tempos de MBA, ou almoçavam juntos após alguns meses sem contato. Embora os laços de amizade fossem bastante fortes, o grau de intimidade náo era tão grande. Quando se conhece alguém já em idade adulta tende-se a ocultar ao máximo suas inseguranças e medos. O relacionamento amoroso ajuda a quebrar estas barreiras

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invisíveis. O deles não chegou a esse ponto. Já o respeito, a confiança e o carinho se enraizaram formando uma ligação poderosa. De qualquer sorte, somando todos os ingredientes, não poderia haver para Rachel o mesmo sentimento de perda vivenciado pelo resto do grupo.Obviamente, estas reações iniciais não eram sinônimas de aceitação da proposta. Aquilo representaria uma guinada de 180 graus em suas vidas e só abraçariam a oportunidade se tivessem confiança no potencial de sucesso do projeto. Considerando a magnitude da empreitada e a necessidade de rapidez da resposta, basicamente, precisavam ter confiança nele. Estava pedindo muito para alguém que sumiu do radar por tanto tempo. Por isso fizera uma proposta tão boa. Teria feito uma ainda melhor caso não receasse levantar suspeitas por conta de um interesse excessivo, causando ainda mais estranheza. Além disso, oferecer uma pro-posta irrecusável financeiramente podia levá-los a aceitar o encargo pelos motivos errados. Precisava motivá-los, tornar o trabalho interessante e desafiador o suficiente, ingredientes obrigatórios não apenas para convencê-los a aceitar se juntarem a ele, mas principalmente para mantê-los no projeto pelo tempo necessário.Ambos compreenderam com facilidade seu pedido para conversar com Natan a sós. Eram como irmãos, seria natural terem mais a discutir. Após as despedidas permaneceram no avião

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apenas os dois amigos. Os pilotos aguardavam pacientemente no hangar.- Bruno, já está muito tarde. Não dá para conversarmos outra hora? Pode ser via videoconferência, se for o caso.Ele pausou e comprimiu ligeiramente os lábios enquanto olhava decidido para Natan, sinalizando o quão difícil seria a conversa.- O que eu tenho para falar você só vai acreditar cara a cara, e, algo me diz, vai perder o sono logo. Você vai ser o único do grupo para quem vou contar isso, Natan. Pelo menos por enquanto. Só peço para não me interromper até o final. Vai ser difícil, mas, por favor, faça um esforço.- Tudo bem - fez um aceno de cabeça. Não pode evitar a curiosidade.Parecia mais interessado agora ao sentir-se mais prestigiado, Bruno percebeu.Usando o máximo de cuidado com as palavras o anfitrião contou absolutamente tudo, a verdade detalhe por detalhe, não queria deixar nada livre para interpretações. Espantosamente seu interlocutor não o interrompeu. Limitando-se a expressões que variavam do espanto à incredulidade. Por fim lançou mão do laptop guardado no móvel de apoio e apresentou um resumo das atividades de Kerligan, seus codinomes, empresas, interesses e associados, guiando o ouvinte à interpretação feita por ele dos objetivos de longo prazo do seu inimigo virtual.- E isso nos leva ao verdadeiro objetivo da sociedade que chamei de Infinito

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- pausou. - Seria melhor responder a suas dúvidas antes de continuarmos? - o questionamento visava quebrar o silêncio do amigo. Natan estava muito calado considerando a história contada na última hora.Ele se ajeitou na poltrona, fez menção de falar e se retraiu algumas vezes tentando decidir por onde começar. Então fez a pergunta que Bruno menos esperava.- Você pode reproduzir este Alpha11?- Sim e não. Não tem como criarmos os nano robôs biológicos, quero dizer, estamos muito pouco desenvolvidos ainda nessa área, faltariam materiais básicos de trabalho, mas podemos fazer uma versão light que levaria mais tempo para fazer menos efeito. De fato tem uma divisão da Fênix trabalhando nisso. Embora, é claro, acreditam trabalhar em um caminho paralelo para a cura do Alzheimer.A mente de Natan parecia trabalhar freneticamente sem conseguir chegar à conclusão alguma. Seus olhos dançavam sempre apontados para baixo, acompanhando a digestão das informações enquanto buscava respostas. Após uma breve pausa continuou.- Você faria uma bateria de exames para confirmar o que está me dizendo?- Perguntou Natan.- Se você prometer não guardar os registros - Bruno deu de ombros - mas te alerto que, dificilmente, com os equipamentos disponíveis hoje na medicina, encontrará alguma coisa diferente em mim.

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- Vou poder notar os efeitos da droga... Se houver algum.- É provável.- Iria comigo agora na clínica fazer uma ressonância magnética do cérebro? E só do que preciso — Natan se referia à clínica de diagnósticos onde trabalhava e da qual era sócio minoritário, a DiagIm.- Iria.Ele levantou, andou para um lado e para outro pensando, então parou e olhou intrigado para Bruno.- O que realmente quer de nós? — sua expressão era indefinível.- Em primeiro lugar, que me ajudem a impedir Kerligan de ganhar controle político sobre qualquer nação. Depois quero discutir com vocês como usar os conhecimentos de Adrianna para ajudar o planeta, torná-lo mais rico e equalizado. Não desejo poder, vamos agir em segundo plano, oferecer a tecnologia de forma mais barata e rápida, só isso. Preciso de gente confiável para vencer esse inimigo e para tomar as decisões certas.- Para isso vai precisar de tempo e de falar a verdade para todos. Vai falar? Quanto antes fizer isto mais tempo vai ter.- Não acho que estejam preparados para ouvir tudo. Francamente estou espantado por você ainda não ter me chamado de maluco ou idiota...- Talvez eu chegue lá — falou sério. No fundo não conseguia formar uma opinião, contudo estava diante de um bilionário, cuja fortuna foi

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construída em pouco mais de um ano, e de um amigo. E ele esperava que Bruno não fosse capaz de lhe infligir uma brincadeira tão cruel.- Bom, quanto ao prazo, espero conseguir sintetizar o soro em uns dez a quinze anos. Com sorte talvez menos. Isso vai nos dar algum tempo.- Por que a gente vai viver mais, certo?- Certo.- E como vamos rivalizar com Kerligan? Ele parece já estar bem mais poderoso que você, considerando ele e o tal do...- MJ — gostou de ele ter usado o verbo no plural.- Isso. Pelo que você me mostrou, já devem possuir... Sei lá... Uns 10 bilhões de euros, entre os negócios na Inglaterra e Estados Unidos. Tem muito poder de fogo.- Você prestou mesmo atenção. Não chega a tanto e está distribuído em vários negócios diferentes. Como nem todos são realmente legítimos a utilização do dinheiro se torna sujeita a limitações. Simplesmente não se consegue movimentar grandes quantias sem despertar alguma investigação sobre seu dono. Toda grande movimentação financeira agora precisa ser lenta e extremamente cuidadosa. Eu sou um nome legítimo, com um passado legítimo, posso usar meu dinheiro como quiser. Além do meu próprio patrimônio, que não é desprezível, Adrianna já tem cerca de meio bilhão para aplicar em nossos fundos. Temos capital para começar.- O dinheiro de Adrianna não é como o de Kerligan, isto é, sujeito a levantar especulações

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sobre sua origem?- É. Mas é menos dinheiro o que levanta menos suspeita. Vamos usar uma parte nos custos de consultorias, pesquisas e serviços em geral. Onde der para não levantar suspeitas. São custos altos no processo de estudo e aquisição das empresas. Também usaremos nas operações sigilosas, pagamentos em dinheiro sem deixar pistas para Kerligan. A partir de agora, com negócios em conjunto, o acréscimo de capital será feito basicamente em meu nome. Com vocês no barco podemos ser mais rápidos. Já temos projetos engatilhados o suficiente para permitir nosso crescimento de forma a rivalizar em capital com ele em, digamos, um ano, um ano e meio. Além do mais, se ele tentar dominar alguma tecnologia, como a fusão a frio, por exemplo, e criar regras e barreiras para chantagear indiretamente nações em troca de poder, nós contra atacamos cerceando o uso dos medicamentos revolucionários de nossos projetos. Quando ele perceber nossas moedas de barganha vou procurá-lo e tentar forçar um armistício.- Faz sentido, mas o interessante sobre os planos é que na prática os acontecimentos tendem a frustrar nossas expectativas. Se o sujeito é violento como Adrianna lhe contou...- Por isso preciso de vocês, principalmente de você, Natan. Você é meu irmão, é em quem eu mais confio. Sei que ficou magoado com a falta de contato, mas seria impossível a gente se falar

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e eu mentir o tempo todo. Eu precisava ter certeza antes de te envolver nisso.- Você podia e devia ter contado — manifestou sua mágoa em cada mínima expressão do rosto. - Vamos por partes — esfregou as duas mãos espalmadas no rosto enquanto fechava momentaneamente os olhos tentando organizar as idéias. - Vamos para a clínica - saiu do Gulfstream sem olhar para trás seguido de perto por Bruno.

Na ressonância Natanael confirmou estar na presença de um fenômeno. O cérebro de Bruno apresentava atividade extrema em todas as áreas, algo como jamais vira. Se fosse qualquer outro paciente aquilo se transformaria em um caso para os jornais médicos. Naquela noite, quase sozinhos na clínica - aberta a pacientes apenas durante o dia — incógnitos a não ser pela presença do segurança, visivelmente incomodado por deixá-los entrar, aquela não era uma opção. Não trairia a confiança do amigo.Além da ressonância fez testes simples de reflexo e deixou o paciente mostrar suas habilidades físicas, levantando maças, sofás e qualquer objeto pesado no qual podia colocar as mãos. A despeito das dúvidas e dos pontos da história impossíveis de serem confirmados, estava diante de um espetáculo médico e sabia apreciar as possibilidades. Levando em conta a preocupação com a saúde de Bruno e certo da compensação financeira pelo tempo despendido, percebeu qual seria sua única opção. Ficar

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próximo pelo menos até ter certeza do que estava acontecendo.

Todos esperaram até a segunda-feira para dar retorno à proposta. Houve negociações, algumas conversas demoraram mais, outras foram especialmente difíceis e ele precisara fazer algumas grandes concessões. Porém, a resposta final foi sempre a mesma. Às 18h Bruno singrou as salas de escritório da Lima Investimentos, no 15° andar do edifício Antares, na Avenida Paulista. Entrou na sala de Adrianna sem bater e lhe deu um beijo no rosto. Mesmo o tendo visto entrar sorridente, foi pega de surpresa pela demonstração de felicidade e carinho.— Todos toparam. Não te falei? — em sua mente uma esperança se materializava, o infinito começava ali, naquele momento.

18. Olívia

Sem se importar com o atraso saiu lentamente da limusine saboreando o momento. Gostava do ritual, pessoas abrindo as portas e estendendo o tapete vermelho. Eles o esperariam. Em cinco anos conseguira dinheiro e sucesso além dos sonhos da maioria dos mortais. Obviamente, ele não se considerava como a maioria dos mortais.O arranha-céu não era o mais moderno da Quarta Avenida, mas seria o endereço mais quente de Wall Street para a nata da sociedade financeira naquele dia. Ele falaria para 500 convidados especiais do Staton Union em Nova

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York. Empresários, políticos, banqueiros, homens e mulheres que valiam mais de 100 milhões de dólares por cabeça, responsáveis diretos ou indiretos por decisões capazes de movimentar bilhões de dólares.O grande Arthur Covet Goldwill, cientista brilhante e visionário da indústria de baterias para eletrônicos portáteis, de celulares a laptops. Órfão indiano nascido na cidade de Bombaim, cujo fenótipo ocidental denunciava uma provável descendência inglesa, fato jamais comprovado uma vez que nunca conhecera os pais, lutara para sobreviver, para comer e para estudar. Persistente e determinado navegara pelos precários sistemas de financiamento estudantil e bolsas de estudo enquanto trabalhava conseguindo se formar em engenharia eletrônica. Aos 45 anos, tendo esgotado suas possibilidades no país natal, frustrado pelas limitações estruturais, vendera o pouco que possuía e migrara para a Inglaterra com apenas algumas centenas de libras no bolso e um projeto para o qual dedicara todas as horas vagas desde os tempos de faculdade. Fora a história ideal, carismática, inspiradora, e, sobretudo, difícil de rastrear.O projeto prometia ampliar a autonomia das baterias de lítio para celulares rompendo a média de uma hora de conversação nos padrões da época, para uma hora e meia. O grande salto no desempenho era importante, contudo a verdadeira revolução estava no processo de produção. No modelo Goldwill os custos podiam

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ser substancialmente reduzidos tornando as baterias além de melhores, mais baratas. Semeou a aura de gênio científico atribuída a ele a partir de então.Vendeu o projeto a peso de ouro e com o dinheiro fundou sua própria empresa. Em menos de um ano a Covet Power passou de desconhecida a ícone do segmento de baterias. O nome Power, energia na língua inglesa, não fora à toa. Tinha como missão o desenvolvimento de tecnologias relacionadas, não apenas ao armazenamento de energia através de baterias carregáveis e recarregáveis de todos os tipos, como também à captação e geração, fosse ela de origem solar, eólica, ou de outra natureza ainda a ser descoberta. Baseado inicialmente no lançamento de novas versões de baterias para celular, com autonomia de conversação de seis horas, o IPO da Covet, um dos maiores do continente Europeu em 2008, garantiu a ascensão de A.C. ao estrelato do mundo corporativo.No ano de 2009, em plena crise econômica mundial, as ações subiram 200%, graças ao adiantamento em seis meses do prazo de entrega das novas versões de baterias para notebooks com autonomia de seis horas. Com os mesmos parâmetros de peso, dimensões e custos de produção, a concorrência era capaz de fabricar baterias com autonomia média de duas horas apenas. Estava consolidada a imagem de empresário de sucesso. A fama de visionário

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crescia a uma taxa apenas menor que a da multiplicação de sua fortuna.Naquela noite, embora quisessem ouvir seus segredos e suas origens, estavam ainda mais interessados em para onde ele iria. Entender por que gastara no final de 2008 um bilhão de euros ajudando a salvar o Staton Union da falência. Como previra ser aquele o momento certo? Seis meses após a aquisição das ações, o seu valor de mercado duplicara. Hoje seu investimento já havia se multiplicado quatro vezes. Abraçaria sua chance de iniciar a fama de financista infalível, explicaria como preconizara o fim da chamada "crise do subprime", vilã do maior colapso financeiro da década. Mostraria os principais pontos de referência para a tomada de decisão e o racional intuitivo por trás da lógica. No fechamento da apresentação, para o gran finale, revelaria ter desenvolvido equações matemáticas capazes de antecipar os períodos de euforia e depressão no mercado financeiro, sem obviamente desvendar seus detalhes. Através de modelos preditivos complexos, trazidos em sua bagagem de Aqua, ainda não desenvolvidos no estágio atual de evolução da Terra, ele avaliara as probabilidades de retorno ao crescimento no primeiro semestre de 2009 e eram enormes.Divulgaria uma parte dos milhões de ações das melhores empresas dos Estados Unidos e da Europa que comprara utilizando o mesmo raciocínio e os retornos percentuais auferidos. Infelizmente, seria impossível divulgar tudo, pois boa parte das aquisições fora feita através de

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uma dezena de testas de ferro. Porém, o subconjunto reservado para a apresentação seria suficientemente impressionante.Jamais saberiam o quanto lucrou com a crise em si. Seria desinteressante uma imagem como profeta do caos. Vislumbrara a bolha de crédito imobiliário e, munido de seus algoritmos, escolheu o momento certo para apostar na catástrofe. Convenceu alguns gestores a criarem fundos específicos baseados na crença da falência iminente do sistema, um intrincado modelo de securitização possível apenas nos Estados Unidos. Ele e MJ, através de uma série de empresas de fachada, auferiram bilhões de dólares no período.Seu histórico de engenheiro, matemático e físico brilhante, com especialização em geração de energia, sempre foi fonte de orgulho. Fora apaixonado pelo que fazia e agora se sentia completo, causa e conseqüência se unindo na forma de poder e sucesso. Ele atingiria todos os seus objetivos. Esperavam que ele morresse calado em Aqua, sujeitando-se à extinção. Desprezaram seus conselhos, as alternativas propostas, em nome de uma ética absurda estavam dispostos a deixar morrer toda uma civilização. Cabia então a ele construir um mundo novo e do jeito certo.Sentia-se cheio de vida naquele final de tarde. O terno negro, perfeitamente cortado, caía-lhe como uma luva. Seus precisos um 1,87m, a silhueta alongada e os cabelos castanho-escuros, levemente grisalhos, pintavam uma figura jovial,

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porém de destaque. Seu andar firme e rápido, de passos largos, completava o estilo imponente. O rosto másculo e duro se abria em charme quando sorria. A boca larga permitia ao sorriso transformar a retidão militar de seus traços em um caloroso abraço, fazendo estranhos se sentirem em casa, acolhidos.Foi recebido pelo presidente do banco no lobby do prédio, um homem parcialmente careca, cabelos brancos bem curtos apenas nos lados da cabeça. Os óculos redondos e o corpo em forma de ovo lhe pareciam uma combinação démodé sob o terno claro. Certamente não refletiam alguém em cujos ombros se depositavam as esperanças de milhões de acionistas e clientes pelo mundo.Não havia tempo para delongas. Chegara estrategicamente durante o intervalo de quinze minutos separando sua apresentação da de Daniel Zubin, um economista renomado em Wall Street, convidado especialmente para a palestra de abertura. Ele acreditava que daquela forma potencializaria a importância de sua presença. Seu respeito pelo trabalho de Zubin não era suficiente para fazê-lo perder a oportunidade.O enorme salão abrigava mesas para doze pessoas cada. Ele as atravessou driblando, habilmente, a audiência, singrando o corredor em direção ao palco enquanto era anunciado. O rufar de aplausos o saudaram. A sensação era inebriante. Conquistaria a todos. Ah, sim. Conquistaria. Eles seriam seu exército, suprindo

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dinheiro influência e informação a sua causa. Seriam sua corte.Em uma das mesas próximas ao palco, reservadas aos funcionários da Covet e a um seleto grupo de VIPs, uma brilhante diretora de projetos escutava embevecida o discurso visionário. Ouvia sobre novas fontes de energia, baterias para automóveis com autonomia de uma semana, sistemas para drenar energia de correntes subaquáticas, transmissão de eletricidade sem a necessidade de fios e as possibilidades do planeta convivendo com energia limpa, enfim, o projeto de um mundo melhor. Se a inteligência sempre a atraíra em um homem, associada à beleza, energia e ao poder, era irresistível. Estava ali por conta de suas ambi-ções profissionais e fora surpreendida pelo magnetismo do palestrante. Decidiu então ali, naquele momento, conhecer o homem por trás do mito.Finalizando seu discurso sob a ovação dos presentes, Arthur Covet Goldwill desceu as escadas do palanque sorrindo. Iniciou imediatamente a procissão de apertos de mão e congratulações, saltando de mesa em mesa sempre acompanhado por Samuel Klingelman, o presidente do banco, que o expunha como um troféu. Após marcar presença nas mesas mais importantes, distribuir e receber cartões dos mais ousados ou poderosos, dirigiu-se à mesa reservada para a companhia. Em sua direção um homem baixo, de cabelos pretos bem aparados e cavanhaque, aparentando jovens 50 anos, se

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apressava para cumprimentá-lo. Era Alvin Stone, presidente da Covet, que avançava em sua direção, mas foi interpelado a meio caminho por uma mulher loira, alta, vestida com um terno feminino preto de riscas brancas com o corte mais moderno entre seus pares àquela noite. O sorriso largo era forte e confiante, os olhos cor de mel eram corajosos e firmes. A estratégia de atravessar a reta imaginária entre os dois, prostrando-se em frente à Goldwill e estendendo a mão, gerou um pequeno sobressalto, nele e em Stone. Klingelman quase se chocara com Arthur.— Sr. Goldwill, é uma honra estar aqui - quando lhe estendeu a mão, ela utilizou a esquerda para fechar o aperto de mão contendo a palma dele entre as dela em sinal de força. Não insinuou carinho. Manteve a posição apenas tempo suficiente para surpreendê-lo e desfez o fecho — meu nome é...— Olívia Whitelman, nossa diretora de Projetos em Londres, Arthur. Acabamos de roubá-la da Latnox Devices — interrompeu Stone, quase sorrindo frente à impetuosidade dela. Aproveitou o momento para apresentá-la a Klingelman.— Olívia, este é Samuel Klingelman, presidente do Staton Union - eles se cumprimentaram.— Não sabia que a diretoria estaria presente aqui hoje — Arthur falou em tom inquisitivo.— E não está. Jamais autorizaria gastos dessa ordem. É só Olívia. Ela fez questão de pagar a passagem e estadia do próprio bolso.— Tenho por hábito conhecer ao máximo e o mais rapidamente possível a empresa na qual

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trabalho. Infelizmente ainda não existe muito material sobre o senhor...— Pode me chamar de Arthur, não sou tão formal - ele a interrompeu. Na verdade ele era, contudo a situação merecia uma exceção.— Obrigada, Arthur - mantinha firme contato com os olhos esverdeados dele - como ia dizendo, procuro saber o máximo e, no caso da Covet Power, para conhecer a empresa é preciso conhecer a visão por trás dela. Conheça seus exércitos e os exércitos do inimigo e vencerá a batalha.- Sun Tzu — Kerligan emendou, reconhecendo o autor de "A arte da guerra".— Exatamente.— Antes da guerra precisamos comer, não é mesmo? - interrompeu Stone, lembrando-os do jantar prestes a ser servido. - Vamos sentar?Na mesa, além de Kerligan, Olívia, Klingelman, Stone e Zubin; estavam Steve Pulton, presidente do conselho e principal acionista da maior produtora de software dos Estados Unidos, considerado o homem mais rico do mundo segundo a Forbes; sua esposa e também membro do conselho da JuiceSoft, Samanta Pulton; John Neelman, presidente da Business Commotions, uma das maiores consultorias corporativas dos Estados Unidos; o prefeito de Nova York, Pedro Rodriguez; sua esposa, Manuela; Jennifer Melrose, principal colunista do Financial Times; e, como não podia deixar de ser, o assessor direto de A.C., Milton Jacobs Splitzer, ou simplesmente MJ.

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Obviamente Goldwill já conhecia a todos. Nos poucos casos necessários os convidados e titulares da mesa haviam sido apresentados entre si durante a palestra. Assim os cumprimentos foram rápidos se seguindo dos sinceros parabéns pela apresentação, desembocando em uma natural polarização da conversa entre A.C., Steve e o prefeito, sem dúvida os ícones da mesa. Fazendo seu trabalho, a sedutora Jennifer espremia uma pergunta a cada brecha oferecida.- Ouvi dizer que vai me roubar o posto de homem mais rico do mundo — disse Steve, sorrindo ao se dirigir a A.C. — falam de um projeto super-secreto guardado na manga, é verdade?Kerligan retribuiu o sorriso e iniciou uma resposta no que foi antecipado pelo complemento de Jennifer.— Correm rumores sobre o lançamento pela Covet de baterias para carros tão poderosas a ponto de minar a dependência ocidental do petróleo. Bem mais avançadas do que os projetos descritos em sua palestra. É verdade?- A Covet não tem nenhum projeto desse tipo em andamento — Kerligan sorriu ao responder. Tinha o objetivo claro de deixá-los intrigados.- Então o projeto existe, só não é tocado pela Covet! — questionou Jennifer.Kerligan abriu um sorriso largo antes de tomar um gole de vinho para ganhar tempo. A semente estava plantada. Não importava o que dissesse, a notícia sairia nos jornais no dia seguinte. Os

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outros ocupantes da mesa fizeram um silêncio atípico enquanto aguardavam a resposta.- Digamos que cuido pessoalmente de uma meia-dúzia de projetos especiais e este pode ser um deles. O mercado terá notícias tão logo tenhamos previsões confiáveis a apresentar.- Estes projetos especiais são tratados pela Revolutions Power? - Samanta quis saber.- A Revolutions foi fundada este ano e fica responsável pelos processos de ruptura, ou seja, todos onde a mudança da tecnologia é tão grande a ponto de merecer medidas especiais de sigilo - explicou MJ.A dinâmica na mesa passou a ser composta pela perseguição pouco velada do assunto por Jennifer, os devidos desvios por A.C., e uma vergonhosa tentativa de Neelman para cavar uma reunião de negócios com Steve Pulton, Goldwill, ou Pedro Rodriguez, de preferência os três. Na esteira Klingelman tentava angariar uma brecha para oferecer os serviços do banco à JuiceSoft. Foi talentoso ao dar mais atenção à Samanta e conquistou pelo menos uma reunião a ser marcada através das respectivas secretárias.Olívia tentava participar do máximo de conversas paralelas possível. Precisava ser percebida, era sua natureza. Em mais de uma ocasião, comprovou seus conhecimentos sobre a JuiceSoft, mencionando casualmente seu histórico e seus planos futuros com a dose certa de admiração no tom de voz para ganhar a atenção de Samanta sem parecer bajuladora, a

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ponto de provocar uma brincadeira de Alvin Stone.- Não está tentando arrumar um emprego melhor está? — brincou.Foi a deixa de que precisava. Olhando fixamente para A. C. falou em tom levemente acima do normal, o suficiente para ser percebida.- A JuiceSoft é uma empresa fantástica e qualquer um estaria feliz em trabalhar lá. Minha intenção, contudo, é construir uma carreira duradoura e bem-sucedida no grupo Power. Estou exatamente onde sempre quis estar. A Covet é a materialização de uma visão inspiradora do futuro, uma força motriz de transformação. Faço questão de participar dessa... Revolução — pausou, levemente, antes e depois da palavra, dando ênfase - e tenho certeza de poder contribuir ajudando-a a produzir seus efeitos mais rapidamente - ao finalizar notou o olhar fixo de Arthur cujo pensamento, ela imaginava, foi confirmado pelo sorriso certo nos lábios. Atingira seu real objetivo.A partir daí conseguiu estabelecer uma conversação maior com o homenageado da noite. Felizmente conseguira sentar próxima, entre eles apenas Stone se interpunha. O fato dos três pertencerem à mesma empresa facilitava, fornecendo uma ampla gama de assuntos de interesse comum.Quando A.C. foi ao toalete aguardou alguns instantes e também se levantou sob o pretexto de retocar a maquiagem. Aguardou à distância

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sua saída do banheiro dos homens. A meio caminho da mesa interpelou-o.- Arthur.- Sim, Olívia — ao ouvir seu nome, virou-se garantindo-lhe a atenção. Era difícil não tentar parecer simpático frente a uma mulher tão bonita.- Seria abuso de minha parte se lhe pedisse permissão para agendar uma reunião? Através de sua secretária, é claro. Gostaria de ter uma visão de todo o conglomerado. Do estágio atual e, se possível, das expectativas para o futuro a partir do seu ponto de vista. É imperativo evitar um choque entre estratégias de desenvolvimento de novos produtos. Também seria útil descobrir possíveis sinergias entre as diversas ramificações da companhia. Estou certa de poder obter as informações de outra forma, contudo ficaria extremamente agradecida se pudesse contar com meia hora da sua agenda em algum momento. Não creio que alguém mais na companhia tenha como traduzir com total perfeição sua visão - treinara o discurso antes, precisava ser rápido e bem embasado.- Alvin não vê problemas?- Não. Ele não vê problemas — ela pensara naquilo. Antecipara a preocupação em não sobrepor a autoridade do presidente da Covet.- Então eu também não vejo. Diga a Louise, minha secretária, para abrir uma brecha na próxima semana.Ao finalizar, Kerligan seguiu para a mesa. Contendo em seu íntimo uma explosão de

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alegria, Olívia se dirigiu ao banheiro feminino de forma a alimentar seu álibi.A noite transcorrera como planejado e Kerligan fora o centro das atenções. Começara a ganhar a confiança dos homens de negócios e rapidamente galgaria posições no ranking de relevância pelo qual classificavam seus contatos, referências e líderes. Dar-lhes-ia o que mais queriam: lucros, previsibilidade e poder. Seriam importantes no seu golpe final. Atordoados pela rapidez dos acontecimentos, apontariam para ele na busca de soluções, saberiam de sua capacidade para realizar o impossível, não hesitariam em lhe dar carta branca quando fosse a hora.O encontro com Olívia, precisava admitir, fora uma grata surpresa. Embora aparentasse cerca de 30 anos, devia ser mais velha ou não ocuparia uma função de diretoria, exceto fosse realmente brilhante, algo ainda melhor. Era ousada e lhe parecia - a palavra lhe faltou por um instante - desafiadora.Na mesa Olívia tomara cuidado de não transmitir a atração inesperada sentida por Arthur. Seguira à risca o plano inicial de impressioná-lo sem recorrer à bajulação. Quando as oportunidades se apresentaram mostrou estar atualizada com os conceitos tecnológicos mencionados por ele na palestra e ainda expressou algumas idéias interessantes para movimentar ainda mais o dinâmico departamento de projetos. Delineou de forma sutil, porém clara, a importância do casamento entre formação técnica em tecnologia

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e profundos conhecimentos em administração. Tais crenças estavam incrustadas em sua formação, após a graduação em Engenharia Eletrônica completara um MBA em Oxford. Teve o bom-senso de não discutir apenas assuntos relacionados a trabalho, inserindo comentários oportunos sobre todos os temas pertinentes, desde a crise financeira de 2008 até o degelo da calota polar. Ausentava-se das discussões por breves e calculados momentos, apenas para ter seu retorno devidamente valorizado.A nova executiva da Covet Power terminou a noite certa de ter conhecido o homem mais inteligente, ambicioso e charmoso com quem jamais sonhara. Ela alimentava a esperança de trabalhar próxima a ele e absorver o máximo de sua experiência. Arthur Covet Goldwill saiu decidido a convencê-la de se encontrarem para um jantar na semana seguinte. Nenhum dos dois tinha real idéia do quanto representariam um para o outro. Seus destinos foram atados naquela noite e não se separariam mais.

19. Comemoração

O sol derretia sobre o mar naquela tarde de sexta-feira parecendo mais exultante do que de costume. Sentia como se há um ano não se encontrassem da maneira correta, ele e o sol, ele e o mar. Por isso fizera questão daquela comemoração ali. Além de ser o lugar perfeito para aproveitar a oportunidade e quebrar o gelo entre eles e seu novo eu. Ficariam no local até o

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domingo e contava com o charme de Adrianna para fazer-se aceitar por todos. Estava lhe dando uma grande oportunidade e estava certo, ela não a desperdiçaria.A casa típica de fazenda contrastava com o mar calmo e sorrateiro a apenas quarenta metros de distância. Telhas cobriam o teto e a varanda, uma verdadeira extensão do edifício principal, circundando-o completamente. Grossos pilares de madeira escura, dispostos a intervalos regulares e em cada extremidade, serviam de suporte a convidativas redes rendadas de dormir. Elas delimitavam cada face da gigantesca varanda e desenhavam saletas virtuais decoradas por poltronas, sofás e mesinhas de centro. Janelões de madeira nas paredes brancas davam o toque final na visão bucólica. A propriedade era imensa, quinze suítes, somando-se as dependências de empregados. Bruno apenas alugara a ilhota particular, em Angra dos Reis, para um final de semana e fizera questão de contar a todos. Não havia motivo para ostentação ou teatros, de fato se esforçava em demonstrar transparência esperando com isso amenizar os receios de seus novos sócios. Optara pela ilha apenas para garantir a privacidade.As 18h em ponto, apenas alguns dias após o aceite oficial do grupo, a lancha atracava no pequeno píer trazendo consigo o aparentemente eclético, porém coeso, grupo. Natan fora o único solteiro a trazer uma acompanhante. Thais era uma morena de cabelos curtos e formas atraentes. Aparentava estar na casa dos 30, mas

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talvez fosse menos. Max e Cristiane trouxeram os pequenos Pedro, Beatriz e Ana, devidamente acompanhados pela babá. As crianças estavam excitadíssimas pelo passeio de lancha e a visão da ilha. Wagner e Milena seguiram o modelo trazendo a filha, Alice e sua babá. Mesmo com um ano apenas Alice parecia se divertir tanto quanto as outras crianças. "Talvez fosse da natureza delas absorver alegria de toda e qualquer novidade mesmo quando não se é capaz de compreendê-la completamente ainda", pensou Bruno. Animados, Bruno e Adrianna recebiam o grupo, ele estava realmente feliz. Em poucos minutos o anfitrião se percebeu fazendo sozinho as honras aos convidados. Adrianna se transformara junto às crianças. Rapidamente se afastou do grupo principal para lhes mostrar a propriedade e suas possibilidades. As crianças a adotaram rapidamente, em um claro sinal de terem encontrado um adulto verdadeiramente disposto a brincar. Ela contava histórias, corria e brincava com Pedro, Ana e Bia em tal estado de alegria e jovialidade que surpreendeu Bruno. Observava-a pela primeira vez em sua versão "sem cortes", desprovida de filtros conscientes e inconscientes. Quando pensava ser impossível, descobria uma nova faceta dela, humana, calorosa e verdadeira. Um lado do qual gostou imensamente.A noite foi calma e agradável. Depois de ocuparem seus quartos e colocarem as crianças para dormir, um jantar no salão principal da casa regado ao melhor vinho, fez brotar memórias do

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passado, histórias engraçadas em sua maioria. Carregavam consigo o conforto do reconhecimento, da cumplicidade, trazendo à tona os motivos pelos quais todos ali eram amigos e se amavam.Era difícil para Adrianna estar tão próxima àquele grupo. Sentia-se como um corpo estranho, forçando ao coração as sensações e à mente as lembranças de toda uma vida abandonada quando, de forma impulsiva e seguindo seus instintos, decidiu vir para a Terra. Nunca deixou de questionar se fizera a coisa certa. Nunca fora tão altruísta, se houvesse tempo para pensar talvez não tivesse vindo, foi tudo tão rápido. O pior era a sensação de que algo mais estava errado. Todas as suas terminações nervosas apontavam para algo intangível. Um peso lhe comprimindo o peito. Um campo de força lhe circundando e apertando segundo a segundo seu abraço mortal. Não sabia de onde vinha aquela sensação angustiante que tantas vezes a arrebatava. Algo negligenciado em seu plano? Um potencial problema desconsiderado? Fatos percebidos por seu inconsciente ainda ocultos do banco de dados acessível por sua mente tão lógica e detalhista? Infelizmente a solução seria mesmo relaxar um pouco, assim a resposta lhe viria, era como funcionava sua mente e lutar contra isso, forçar-se a entender seus sentimentos só iria adiar a descoberta. Uma das vantagens de se viver muito era ter mais tempo para se descobrir, se entender. Seus

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pensamentos foram rompidos pelo tom convocatório nas palavras de Bruno.— Pedi para colocarem cadeiras e mesas na areia, um "sonzinho" e outras garrafas do melhor Bordeaux que pude conseguir. A noite parece perfeita. Vamos?Acomodados em frente ao oceano, Bruno se distraiu momentaneamente. O mar calmo se prateava apenas com a força das estrelas. A lua minguante não era suficiente para lhe prover seu resplendor. Bruno adorava aquele som do quebrar das ondas, mesmo tendo como pano de fundo a algazarra produzida pelo grupo.— Vocês fiquem aqui e tomem conta de tudo eu vou ver se nosso chefe tem medo do escuro - Rachel disse em tom de brincadeira enquanto entrelaçava o braço de Bruno no seu e o puxava em direção à praia.— Pobre rapaz, não tem a menor chance - brincou Cristiane enquanto ecoavam as risadas.Marco forçou uma risada enquanto notava Adrianna, ainda pior atriz do que ele. Considerou tocar no assunto com ela, ou talvez com Bruno. Achou prudente aguardar o retorno da caminhada antes de qualquer conversa.O vestidinho vermelho de malha transmitia simplicidade, mas nela poucas peças de vestuário conseguiam não chamar atenção. De fato, quanto menos tecido melhor, ele pensou. Quando tirou os sapatos com a mão esquerda, enquanto segurava a taça de vinho na direita, cujo braço ainda se entrelaçava ao dele, Bruno imaginou uma cena de filme. Rachel era uma

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mulher deslumbrante. Ela deixou os sapatos ali, no início da praia e seguiram acompanhando o quebrar das marolas, em silêncio por alguns minutos. O som da casa sumia gradativamente permitindo ao mar e ao vento dominarem seus sentidos. A brisa os envolvia aproximando seus corpos à busca de calor enquanto o deslizar das ondas funcionava como música sob o efeito do vinho.- Fiquei muito feliz de você ter topado, Quel - como a chamava quando estavam sós. - Tenho certeza que seu coração vai nos manter honestos - comentou ao caminhar para o lado direito da praia, em direção ao píer.- Bruno, Bruno... Por que ficou longe tanto tempo? Deixou a gente preocupada, sabia?- É. Eu sei. Tudo aconteceu tão rápido, Quel... Fui atropelado pelos acontecimentos sabe...- Não deu nem para responder as nossas ligações? De repente nós não tínhamos nem seu número de telefone. Precisamos pedir para sua mãe!- Fui um idiota, eu sei. Deixei-me levar pelo dinheiro e pelo sucesso. Dormia e acordava pensando nas minhas técnicas de tracle. Tornaram-se uma obsessão. Eu precisava adaptá-las ao mercado de derivativos, realizar testes operando com moedas, enfim, foi muito louco - mentir lhe deixava um gosto amargo na boca, mas não havia alternativa.Ela parou e se virou para o mar, ainda segurando seu braço. Tomou um gole de vinho e falou sem desviar o olhar do horizonte.

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- E agora? Está realmente de volta? E você mesmo? — havia relutância em sua voz. Ele a fez se virar de modo a ficarem de frente um para o outro.- Estou sim. Sou eu, Bruno. O mesmo que você conheceu há dez anos - ele estava preso aos olhos dela. O azul intenso estava agora temperado pelo cintilar das estrelas. Uma melancolia parecia preenchê-los. - O que você tem? Está triste? Alguma coisa aconteceu nesse tempo em que estive distante? Alguém te magoou?- Não. Nada disso. Acho... A solidão está começando a ganhar terreno, só isso — o rápido sorriso era uma tentativa de minimizar seus sentimentos. — Não me entenda errado. Estou superanimada com esse projeto. Juro! Eu nunca pensei em ganhar tanto dinheiro, ainda mais para fazer algo tão bom para todo mundo. Amei meu projeto. Foi só a emoção de encontrar todo mundo, me deixei levar.Ela fez um carinho no seu rosto com a ponta dos dedos. Desceu suavemente pelo pescoço até encontrar seu peito. A palma deslizando como fogo rasteiro sobre a pele, a despeito do tecido impedindo o contato direto. Ela sentia a rigidez de seus músculos e ele ouvia ambos os corações acelerar em um rufar mais alto que as ondas se rompendo na areia.— Por que a gente não deu certo, Bruno?Ele sentiu o desejo forte tomar seu corpo, porém já era maduro o suficiente para saber como proceder diante desses impulsos.

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— Neste momento só consigo pensar que eu fui um idiota - aproximou-se fechando a mão livre sobre seu braço. A pressão suficiente para fazé-la intuir a vontade fluindo em suas veias. Um momento de hesitação se passou. Nenhum dos dois ousava se mover. Então Bruno deixou a mão cair e fechou os olhos, demorando um instante a mais antes de abri-los.— A verdade é que nos amamos, Quel. Mas como irmãos. Existe desejo, porém ele se extinguiria logo, conforme a gente se acostumasse com a presença constante do outro. Foi assim da última vez - alisou de leve seu cabelo, pousando a mão em seu rosto em forma de concha, dando-lhe alento. Ela inclinou levemente a face e tocou sua mão também. Ele se inclinou e beijou de leve seus lábios. Ela retribuiu entendendo o gesto de conforto, um sinal de intimidade e carinho, não de paixão.— É. Eu sei... Mas seria divertido — e sorriu. — Estou mesmo solitária — deu um enorme gole na taça dessa vez. Ele sorriu.— E Adrianna? Qual a história? — Arguiu ao retomarem a caminhada.— Não tem história — mentiu. Tomava um gole de vinho quando Rachel soltou uma risada.— Ah, tá - despejou sarcasticamente.— Teve um momento no início quando achei que podia haver algo, mas hoje isso já morreu. Ela só pensa em trabalho. É uma máquina - ele se res-sentia daquilo. Abandonara tudo pelo projeto dela. Fora envolvido involuntariamente, pelo

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menos a princípio e hoje eram mais que colegas, cúmplices, contudo não amigos de verdade.— Bom... Pelo seu tom de voz não morreu, não. E, vamos ser sinceros, se você não estivesse interessado em alguém, e muito, nós estaríamos agora fazendo sexo aqui mesmo, sobre a areia. Errado ou certo a gente só ia descobrir depois - ela pensou rapidamente no que acabara de dizer e se arrependeu...Bastante. — Isto é, se eu topasse e eu, provavelmente, não toparia — balançava a cabeça em forte negação apesar de saber da inutilidade do ato àquela altura.— Claro que não - ele exibiu uma risada marota, sabia que ela não era fácil nem vulgar, mas não podia perder a oportunidade da brincadeira. - Talvez você esteja certa, mesmo assim não comente isso com ninguém, ok?— Posso não comentar, Bruno. Mas até a namorada de Natan já percebeu e ela não parece ser um gênio!— Tá assim tão óbvio, é?— É. E qual o problema? Não me diga que é por vocês trabalharem juntos. Você já não tem dinheiro demais para abdicar de felicidade por causa dele?— Que é isso Rachel. Eu não sou assim — ele pausou. Nunca havia conversado sobre aquilo com ninguém e não podia exatamente ser detalhado com Rachel. Mas, decidiu fazer uma tentativa. - No início do nosso relacionamento ela fingiu ser alguém que ela não era. Usou de

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artimanhas para se aproximar e no final ela só queria um sócio.— Mas, ela abriu o jogo, senão, pelo que te conheço, vocês não seriam sócios.— É verdade.— Bruno. No início de um relacionamento nunca somos nós mesmos. Sempre queremos impressionar, ressaltamos nossas melhores qualidades, ou, pelo menos, aquelas as quais achamos serem valorizadas pelo outro. Minimizamos nossos defeitos. É normal.— Mas não foi assim, Quel. Ela só queria um sócio, não havia interesse romântico.— Não posso saber como era no início, mas hoje...— É impressão sua. Ela acha que qualquer relacionamento é ruim para os negócios. Esse projeto é tudo com o que ela se importa hoje. E eu não posso culpá-la, afinal lutou muito para chegar aqui, você nem imagina as dificuldades pelas quais ela passou — era uma boa analogia, ele imaginou.Rachel enroscou seu braço no dele enquanto o encaminhava na direção do grupo ainda distante.— Saíam fagulhas do olhar dela quando me viu te abraçando. Com certeza ela sente algo por você. Pode acreditar, uma mulher sabe. Preste atenção em como ela fica quando estou perto de você - ele torceu a boca, sem querer acreditar enquanto ela continuava. - Quando você não está prestando atenção ela te olha com um quê de admiração. Parece deslumbrada. Ela é cuidadosa, tenta disfarçar, mas eu sou mestra nessas artes,

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ninguém me engana. Você já se declarou de verdade? Ou só insinuou?- Não. E nem sei se quero, Quel. A manipulação dela no início, a forma...- Você confia nela para ser sócia de todos os seus empreendimentos, o suficiente para nos colocar sob a supervisão dela e não confia para ser sua namorada? É isso que você está dizendo?— Quando você coloca dessa forma fica meio estranho. Eu sei, mas...— Mas, nada. Você está é com medo e dando desculpas. Você é hiper cuidadoso. Se não confiasse sua vida á essa mulher, os seus negócios não estariam tão entrelaçados, nem colocaria a gente no mesmo barco que ela! - firmou o pé, impedindo o avanço de ambos. Virou-se séria para Bruno.- Seja homem e assuma seus sentimentos. Seja homem e se declare para ela. A vida é muito curta para a gente desperdiçar as oportunidades de ser feliz!Ele odiava quando ela ficava mandona assim, principalmente quando estava certa. Perguntou-se por que ele gostava tanto de mulheres mandonas.— E faça isso ainda neste final de semana!Ele mirou as estrelas, pensativo e fez um muxoxo baixo. Rachel entendeu aquilo como uma confirmação. Continuaram caminhando até o grupo. De certa forma, ele tirara um peso das costas, ela estava certa e agora sabia o que devia fazer. O problema, contudo, não era a teoria e sim a prática.

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Em pé, um pouco afastada do grupo maior, Adrianna os observava. Com visão diferenciada, vislumbrava o casal na ponta da pequena praia, próximo ao píer. Desejou não ter podido enxergar. No momento quando os lábios se tocaram sentiu como se uma mão fantasmagórica atravessasse seu peito e espre-messe seu coração. A película de água lutava para se desprender de seus olhos. Com rapidez, passou o indicador pelas pálpebras expurgando com raiva a gota indesejada, quisera fosse tão fácil assim se livrar de seus sentimentos.- Eles não vão ficar juntos - a voz ao seu lado pegou-a desprevenida. Era Marco.Ele não podia enxergar tão longe. Tudo o que via eram dois pontos no horizonte. Ao perceber a comoção de Adrianna não pôde se conter. A oportunidade lhe parecia boa demais para ser desperdiçada.— Quê? —se fez de desentendida.- Eu também estava prestando atenção quando eles foram para a praia. Vias, confie em mim. Não vão ficar juntos. Não é para ser — havia dois terços de vontade e um de convicção em suas palavras e para ele aquilo bastava.- Eles quem? - sabia estar forçando a barra. Tentou assim mesmo. Talvez ele desconversasse e ficasse por isso mesmo.-Adrianna. Vamos todos ser sócios. Estamos passando este final de semana aqui para te conhecer melhor. Eu tenho certeza. Bruno não é de festas. Não faria isso se não fosse por você.

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Minha contribuição é me adiantar e já considerar você íntima — ao terminar a frase serviu o cálice dela e dele com mais vinho e fez sinal para se sentarem nas cadeiras mais próximas. Felizmente havia cadeiras espalhadas por toda a pequena baia em frente à casa. - Você estava hipnotizada na direção que Bruno e Rachel tomaram. Qualquer cego percebe a tensão entre vocês. Embora você seja uma boa atriz, se trai de vez em quando e Bruno, bom, ele é um péssimo ator. Sempre foi.Ela se sentou, o rosto tentava não transmitir sentimentos. Olhou atentamente para ele. Marco parecia ser o mais bem adaptado ao arranjo deles. Embora fosse verdade que seu perfil de empreendedor serial, sempre a procura da próxima inovação, se encaixasse perfeitamente no projeto Infinito, não fora isto o maior facilitador. Ele era o mais puro, com menos defesas armadas. Carregava consigo a certeza de que os amigos verdadeiros são para sempre. Estes não traem, só querem o seu bem. Uma fé inabalável como a das crianças e mesmo assim similar apenas àquelas cuja infância passou incólume ao sofrimento. Não era ingênuo propriamente. Era um adulto confiante. Certo de sua capacidade de julgar as pessoas. Decidir quais eram amigos e quais não eram, a partir daí optava por não fazer julgamentos. Marco parecia não esperar o pior nem o melhor das pessoas, simplesmente não criava expectativas. Transmitia sinceridade, parecia incapaz de conter os pensamentos, havia uma ligação direta da

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mente com a língua. Falava o que lhe vinha ao pensamento, fosse com assertivas diretas, fosse através de brincadeiras sarcásticas. Essa última forma parecia ser sua marca registrada. Jamais seria um bom vendedor. Ela pensou. Adrianna gostara dele desde o primeiro momento.- Você está enganado. Somos apenas sócios, mas aprecio a atenção — tentou fugir mais uma vez.- É seu direito não falar do assunto se não quiser. De qualquer forma vou te dar de graça três informações. Primeiro: Rachel foi feita para mim. Nós vamos acabar juntos e embora ela ainda não saiba disso, vai acontecer - completou com um sorriso, acompanhado por Adrianna. — Segundo: ele gosta de você, e muito, acredite. Já vi aquele olhar antes, muitas vezes nos vinte e cinco anos que nos conhecemos. Terceiro: você gosta dele. Pode negar o quanto quiser. Está se esforçando para não deixar transparecer, porém é inútil. Essa atração de vocês é o comentário da festa, sabia?Aquilo a pegou de surpresa. Não sabia o que fazer com aquela informação. Pensou rápido, uma mentira com uma pitada de verdade era sempre plausível e com boas chances de sucesso. Se aquilo chegasse a Bruno, principalmente agora quando dava provas claras do seu interesse por Rachel, isso poderia distraí-lo, confundir seu julgamento. Pobre Marco, não tinha chances, estava se iludindo.- Marco - simulou um olhar condescendente para combinar com a mentira. — Quase aconteceu algo entre nós, mas decidimos, há algum tempo

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que negócios não se misturam bem com prazer. Talvez um olhar ou outro traiam a nossa imaginação do que poderia ter sido, contudo tomamos a decisão de forma consciente e madura. Além do mais, ele está claramente interessado em Rachel - não podia falar do beijo, pois não teria como justificar tê-lo visto. - Se você gosta dela, vá à luta, mas eu vi como eles se olham e se abraçam. Até os beijos de cumprimento no rosto são diferentes.- Tse, tse, tse — fez em tom de desprezo pela observação. — Que nada. O que você viu foi o olhar dela, o abraço dela, o beijo dela. Bruno só devolve na mesma moeda. Ele adora o contato físico, até com nós homens. Sempre que tiver chance de fazer um carinho e receber de volta um, vai abusar, principalmente das mulheres. Não tem nada sexual nisso. Eu garanto. Rachel nunca se conformou com o término do namoro deles, foi ele quem acabou. Ela ficou com um gostinho de quero mais. Vou dar um jeito nisso. É a mim que ela ama. Eu já te disse.— Só falta ela saber — Adrianna emendou brincado.— Isso mesmo. Agora, vocês podem até tentar se enganar com essa conversa de trabalho, porém estão se iludindo — sem saber se estava conseguindo a reação desejada, optou por exagerar na dose. — E o futuro virá cobrar o preço dessa decisão. Pessoalmente sigo outro modelo, arrependo-me do que fiz, nunca do que deixei de fazer - ao observar a aproximação de

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Max e Wagner, obrigou-se a interromper repentinamente a argumentação.A conversa na roda agora fluía sobre projetos, pesquisas, as dificuldades enfrentadas pelo estado do Acre e afins, com brincadeiras diversas pipocando aqui e ali. A mente de Adrianna estava em outro lugar. Não esquecia o beijo, a visão lhe doera demasiadamente. O debate com Marco também não ajudara. Deu uma desculpa e se dirigiu para o quarto. Não estava disposta a fingir, ser cordial, ou fazer esforço para impressionar. Ao entrar, fechou a porta atrás de si, sentou na cama e tentou se acalmar, limpar a mente e meditar um pouco. Os soluços involuntários traíram sua força e sua capacidade de restringir as emoções. Lágrimas brotaram descontroladas. Em poucos segundos já precisava se esforçar para impedir o som do seu choro de ecoar fora do quarto. Lutava para que ele não refletisse acuradamente sua dor ou seria impossível contê-lo nos limites da ilha, que dirá nas finas paredes da casa. Afundou o rosto no travesseiro como uma garota de colégio sentido ao mesmo passo dor e vergonha. Não havia chorado assim desde os primeiros dias na Terra, considerava esgotadas as suas lágrimas. Estava redondamente enganada.

A manhã era de céu azul. A ausência de nuvens tornava tudo ainda mais claro, quase reluzente. A maré baixa fazia a areia do pequeno trecho de praia se estender bastante antes de encontrar a superfície calma do mar. A ausência de som,

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exceto pelo livre escorrer das marolas, e a brisa salgada impregnavam o ambiente de paz e tranqüilidade. Bruno ia acelerando o passo, sentindo o vento deslizar sobre a face, saboreando o momento. Eram 6h da manhã quando Natan se uniu a ele, conforme combinado. Ele já corria há uma hora.- Bom dia — Natan cumprimentou animado enquanto Bruno reduzia a velocidade e caminhava em direção a ele.- Boa tarde! Isso são horas? - perguntou já batendo a mão na dele, em um aperto típico dos jovens, a mesma pegada dos jogos de queda de braço. A mesma desde que se conheceram.- Se eu tivesse um supersoro correndo nas veias tinha chegado mais cedo também!- Desculpas, desculpas — falou meio que brincando e começaram imediatamente a correr.- Como é a sensação?- Que sensação?- De não se cansar, de conseguir correr mais rápido, ser mais forte. Dá para notar que você não tem um pingo de gordura no corpo, só músculos. A galera comentou. Deve ser uma sensação boa, não?— É. É sim. Não penso muito nisso. Não mais. No início era viciante, me pegava testando os limites a toda hora - Bruno pausou, calculou que não era uma boa política ficar se vangloriando daquilo, seria indelicado - me acostumei.— O melhor é não envelhecer, eu acho.— Em primeiro lugar, eu vou envelhecer. Eu só vou viver mais que a maioria. Segundo, eu não

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sei de quanto tempo estamos falando. Eu recebi a fórmula muito tarde, não é nada parecido com Adrianna, por exemplo. Até onde eu sei, ela pode viver uns trezentos anos. Na minha situação, qualquer cálculo é especulação.— Ainda assim quero ser o primeiro da fila quando a fórmula estiver pronta.Bruno freou bruscamente a corrida e se virou para Natan com a expressão séria.— Natan. Nós estamos trabalhando no Alpha11. Bem, no caso vai se chamar, AlphaT-11, já que é uma variação do Alpha11 para a Terra. Mas, não podemos prever o grau de sucesso, isto é, do quão parecido vai ficar com os efeitos do Alpha11 original. E ainda assim precisaremos realizar diversos testes. Não temos a fórmula exata e não temos os equipamentos para analisar o meu ou o sangue de Adrianna na profundidade necessária. Vai levar algum tempo... Sem garantias - fez questão de alertá-lo. - Não estou tentando te desanimar. Só não quero gerar falsas expectativas.— Quanto tempo?— Eu não sei. Uns dez anos, talvez?Natan olhou para o chão, em seguida para o mar e forçou um sorriso.— Ok! Mas vocês estão fazendo o melhor que podem, certo? - Bruno fez que sim com um movimento de cabeça. - Lembre-se que estou no início da fila - deu um tapa de leve nas costas de Bruno, impelindo-o a voltar a correr, e arrancou assumindo a dianteira.

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— Por que esta preocupação agora? Você está com algum problema de saúde, meu velho? — tentou um tom ameno, denotando preocupação.— Não! — Natan fez uma careta como quem ouve um absurdo. — Eu também quero viver muito. Só isso. E já não sou mais criança, não é mesmo? E não vai doer ter... - procurou pelas palavras corretas e não as encontrou. -Mais habilidades. Sem stress, só estou perguntando - depois de um ou dois minutos de corrida silenciosa ele recomeçou. - Tem outra coisa que quero falar com você.— Fala.A respiração forte de ambos, cortando a brisa fria da manhã já ensolarada, ensaiava suplantar o som do vento e do mar enquanto Natan tomava coragem.— Então?— Não acho que devia confiar tanto em Adrianna. Pronto, falei — Natan não sabia bem que reação esperar, mas, felizmente, pelo menos a princípio, não houve nenhuma.— Ok. Fale mais.— A verdade é que você não sabe nada sobre ela além do que ela lhe contou. Embora a história faça algum sentido e ela pareça dominar uma tecnologia inexistente hoje, ainda assim pode haver um oceano de mentiras envolvendo tudo isso - falou apontando para o mar. - Até onde sabemos, ela pode ser o vilão e esse tal de Kerligan, o mocinho da história — Bruno permanecia calado estimulando Natan a

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continuar. — E tem algumas coisas me intrigando na seqüência de eventos...— Como, por exemplo... — Bruno interrompeu.— Bem. Ela contou ter vindo atrás de Kerligan para proteger a Terra e que o tal Onan destruiria o portal para evitar que mais soldados rebeldes o seguissem para cá, certo? - Bruno assentiu com a cabeça. - Ainda, segundo ela, as forças de Kerligan não eram suficientes para tomar o poder. O ataque estava mais para uma ação de guerrilha do que uma guerra, não? - mais uma vez ele assentiu com a cabeça enquanto mantinham um passo reduzido. — Então qual o motivo de, cinco anos depois, ninguém ainda ter vindo ajudá-la? Não deveria haver uma força tarefa de Aqua aqui e agora?— Isto também me intriga — fez uma pausa, refletindo o assunto. - Pode ter acontecido muita coisa. Adrianna pode ter subestimado as forças de Kerligan...— Ele teria reforços agora se fosse o caso...— O Conselho dos Onze pode ter decidido não enviar mais ninguém para não interferir ainda mais na Terra...— Não faz sentido, senão por que a teriam mandado inicialmente?— Quem a mandou foi Onan e não o Conselho. Podem muito bem ter sido contra a decisão dele. Ou podem estar em guerra até hoje e impedidos de reconstruir a máquina por falta de materiais necessários. Ou o tempo lá pode correr de forma diferente do nosso. Um ano nosso pode representar só um minuto para eles. Quem sabe?

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Neste momento Natan foi reduzindo a marcha e parando. Arfava e dobrou o corpo um minuto com as mãos apoiadas nos joelhos em sinal de cansaço.Bruno parou em seguida, retornando e se colocando em frente a Natan, sem demonstrar o menor cansaço.— Olha! Você sabe tão bem quanto eu que essas são possibilidades remotas...— Tão remotas quanto Adrianna estar mentindo.— Precisamente. São as mesmas chances! Ou seja, tudo é possível e nada é certo. Escute, só estou dizendo para tomar cuidado. Não se envolva emocionalmente. Separe bem seus bens dos dela, proteja-os. Envolva-me mais, envolva também Marco e Max pelo menos. Deixe mais amigos seus conhecerem a história. Assim, todos nós estaremos atentos caso uma situação suspeita se apresente e poderemos te alertar.Embora não quisesse admitir, Natan estava correto. Era um conselho sensato. Na teoria era perfeito. Na prática significava enterrar de vez suas esperanças de algo acontecer entre ele e Adrianna. A idéia lhe comprimia o coração. Além disso, não estava certo se era possível prosseguir o plano sem confiar inteiramente nela. Mirava o mar, seus pensamentos conflitantes como as ondas que, ao encontrar seu ápice, mergulhavam rapidamente se quebrando em turbilhão. Fingindo prosseguir apenas para recuar mais rapidamente à posição original.— É uma situação difícil, eu sei - Natan recomeçou. - Vamos por partes. Conte tudo a

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Max e a Marco...— E como eles vão reagir? Vão se sentir enganados por terem tomado a decisão da vida deles sem saber exatamente os meus planos. Vão se sentir traídos.— Isso você vai precisar enfrentar mais cedo ou mais tarde.— É... Eu sei. Neste caso mais tarde é melhor. Se eu ficar sem eles agora vou estar ainda mais vulnerável. Depois que ganharem muito dinheiro e eu tiver mais provas sobre Kerligan vai ser mais fácil.— Nunca vai ser mais fácil. Eles são seus amigos, confie neles.— São, porém a família vem em primeiro lugar. Max e Wagner não podem arriscar o futuro dos seus filhos em uma cruzada liderada por alguém que os traiu. Suas dúvidas sobre Adrianna vão tornar o ambiente insuportável. Vão ficar inseguros e pular fora enquanto podem.— E é justo deixá-los confiar em Adrianna?— Eles não vão confiar em Adrianna imediatamente. Ninguém é mais criança. Vão ganhar o seu dinheiro e ficar felizes. Na verdade, quanto menos souberem mais protegidos estarão. Seja de Kerligan seja de Adrianna. Se as coisas não derem certo garanto que eles, pelo menos, serão donos de uma fortuna bem superior às expectativas. Não. Eu não vou contar. E arriscado para mim e para eles.— Eu não concordo...— Está registrado - Bruno foi firme, limitando os planos do amigo de continuar a preleção. Natan

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endureceu as feições transparecendo sua decepção.— Então pelo menos me prometa tomar cuidado e não se envolver com Adrianna — continuou em tom firme e quase agressivo.— Vou ser o mais cuidadoso possível.— Não me enrole, sei que ainda está interessado nela, não adianta fugir do assunto.— Ela não quer nenhum relacionamento. Ok? Foi clara sobre isso mais de uma vez.— E se mudar de idéia?— Não sei, Natan - sua voz agora era mais calma e suas feições transmitiam o cansaço e a confusão causada pelo assunto. - Não vou lhe prometer o que não posso. Prometo ser cuidadoso, independente do caminho a seguir e lhe deixar sempre a par de tudo - ao terminar a frase colocou a mão no ombro do amigo em um gesto de apelo e união.— É um erro, Bruno — Natan respondeu brandamente. Diante do gesto do amigo resolvera arrefecer. — Vamos voltar andando — deu a ordem em tom brando, preparando terreno para a brincadeira. - Pelo menos finja que está cansado! — ambos riram enquanto se dirigiam a passos lentos para a casa.— Me fale da garota... Thais? É sério? É uma gata.— Sério não é para mim. E só diversão. E ela não é só gostosa. É um furacão na cama. Não ouviu os gritos ontem à noite?— Acho que os navios que passaram próximos à ilha ouviram, meu amigo! — ambos gargalharam.

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No caminho, continuaram conversando amenidades, trocando indiscrições como apenas os mais íntimos companheiros de jornada podem fazer. Uma amizade forjada por trinta anos de convívio, confiança e benquerer mútuo.Bruno sentiu uma súbita alegria inundar seu peito, já não estava mais sozinho.

O restante do fim de semana fora excepcionalmente agradável para Bruno. Na maior parte do tempo se sentia novamente como nos tempos de faculdade, entre amigos e distante das preocupações. O excesso de álcool e brincadeiras baixou a guarda de todos, aproximando-os, fazendo relembrar o quanto eram amigos. Durante as manhãs ou no final de tarde surgiam aleatoriamente conversas sobre os projetos a serem assumidos por cada um e faíscas de entusiasmo eram percebidas aqui e ali. Freqüentemente Adrianna se inseria nesses bate-papos. Sempre animada e solícita, foi aos poucos se aproximando de todos. Cristiane não escondia sua admiração pelos conhecimentos médicos-científicos da anfitriã. Adrianna precisava tomar cuidado. Queria impressionar sem revelar o quão realmente superior era sua formação. Conseguira se aproximar de quase todos. Em diferentes graus seus amigos agora se sentiam mais à vontade junto a ela. A exceção era Rachel, mais pela própria Adrianna, que parecia evitar os grupos onde ela se encontrava. Um movimento nada ostensivo, embora claro e cristalino a qualquer bom observador. Na maior

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parte do tempo, porém, ela se doava às crianças. Fosse na praia, construindo castelos de areia, fosse correndo pela casa em brincadeiras de esconde-esconde. Aquela visão não parava de impressionar Bruno e, certamente, encantava seus convidados. Emitia um tipo de alegria quase impossível de se fingir, adicionando dúzias de pontos positivos à avaliação que interiormente a submetiam.Entre uma coisa e outra, Bruno não ficara a sós com a sócia em momento algum durante o fim de semana e estava ansioso para obter sua avaliação dos amigos. Após conhecê-los melhor esperava contar com sua aprovação por tê-los inserido no projeto. Também gostaria de saber sua teoria do porquê ninguém de Aqua viera ao encontro dela nesses cinco anos. Não sabia explicar o motivo de nunca ter obtido a justificativa dela para isso. Talvez temesse a sua reação. Seria capaz de perceber alguma mentira em sua voz? Uma pequena indecisão ou um olhar furtivo seriam suficientes para abalar sua confiança? De qualquer forma estava decidido a tocar no assunto após a partida do grupo. Voltariam de barco, como chegaram, enquanto ele e Adrianna abandonariam a ilha de heli-cóptero com destino ao hangar da Pardal Linhas Aéreas de onde seguiriam para a Inglaterra por dois dias. Ele, finalmente, conheceria a operação de Londres. Nesse ínterim teria tempo suficiente para arguir Adrianna e avaliar suas reações.Em pé no píer observando o horizonte límpido, levemente pincelado por tons avermelhados

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prenunciando o final do dia, Bruno se admirava com a excepcional tranqüilidade do mar e a total ausência de nuvens. O belo cenário lhe remetia às descrições literárias das calmarias que antecedem às grandes tempestades. Intimamente temia a verdade desta analogia. Foi despertado do transe pela algazarra produzida por Pedro, Bia e Ana as suas costas.— Boazinha esta ilha. Você devia comprá-la - brincou Max. Ele, Bruno e Cristiane riram juntos.— Se eu comprasse tudo que me dá vontade não teria dinheiro para contratar vocês — retorquiu, aderindo à brincadeira.O resto do grupo se juntou a eles para as despedidas. Premidos pela necessidade de chegar logo ao aeroporto, não se delongaram. Embora contassem com jatos fretados pela Lima Investimentos, tanto para São Paulo quanto Salvador, ainda assim levariam quatro a cinco horas para chegar em suas casas.Bruno contemplava a perceptível diferença de tratamento de todos com Adrianna. A distância encurtara. Eram agora mais calorosos, certamente um bom começo para um relacionamento. E ele precisava que este funcionasse. Queria todos alinhados, sinérgicos ao objetivo, motivados e, de preferência, felizes. Isso só seria possível se confiassem nela. Ela precisava conquistar o respeito do grupo e, mais ainda, a sua aceitação. Ironicamente as últimas palavras de Natan, jogadas furtivamente através da brisa que ricocheteava no barco enquanto se

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desprendia do píer em direção ao mar aberto, foram:— Lembre-se do que me prometeu! - falou, sorrindo, sem dar a entender a seriedade do recado, acenando para Bruno e Adrianna.Foi o suficiente para restabelecer o compromisso assumido consigo mesmo. Aproveitando o fato de estarem sozinhos no píer, virou-se disposto a confrontá-la naquele momento. Exigir melhores explicações e ficar atento as suas reações. Contudo, subitamente percebeu-se sozinho. Ela já não se encontrava ao seu lado. Estava a meio caminho da casa se deslocando rapidamente. Chegou a abrir a boca para chamá-la, apenas para retroceder em seguida. Seria indelicado e iniciaria a conversa da forma errada. Ao adentrar a varanda, instintivamente, olhou para trás em direção ao oceano. O céu escurecia rápido e nuvens pareciam ter surgido instantaneamente. Sentindo uma rajada de brisa gélida na face, pressentiu a mudança de clima. Em outros tempos, se preocuparia com os efeitos da inversão térmica e a possibilidade de lhe provocarem um início de resfriado. Naquele momento, tudo o que lhe vinha à mente era um mau presságio.

20. Mudanças

Cerca de uma hora depois, às 17h48, descia a escada principal quando ouviu a voz de Adrianna vinda da varanda da frente.

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— O helicóptero não vem. Mau tempo no Rio de Janeiro. Só poderão nos pegar amanhã pela manhã às 7h. Segundo a meteorologia, teremos chuva à noite toda e pela rapidez com que o tempo fechou deve ser forte. Mesmo que a lancha retornasse, o mar provavelmente não daria condições para atravessarmos, será mais seguro partirmos amanhã - sua voz era seca, fria e mecânica. - Já fiz as alterações necessárias no trecho de Londres para partirmos do hangar às 8h — ao finalizar não aguardou réplica, voltando imediatamente a contemplar o horizonte chuvoso na noite que se derramava velozmente sobre a paisagem.Estava usando uma camisa fina cor pérola com minúsculas listras verticais douradas em relevo. As abas longas e a semitransparência lhe davam um toque chique e ao mesmo tempo sensual. O jeans de grife, desenhando seu corpo, mantinha a mesma sensação adicionando uma pitada de jovialidade também pontuada pelas botinhas pretas finalizando o conjunto. Ele se dirigiu à varanda resolvido a confrontá-la, não conseguiria mais adiar aquela conversa.— Queria conversar com você.— Pode falar — respondeu sem se virar. Sentia sua presença as suas costas.— Estive pensando... Sobre Aqua... A essa altura não deviam ter vindo lhe ajudar? Ou pelo menos lhe levar de volta?— Como? - ela se virou confusa. Era a última coisa que esperava ouvir naquele momento.

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— Nunca falamos disso. O que chega a ser estranho. Mas, passados cinco anos, não haveria tempo suficiente para reconstruírem o portal dimensional? O que acha que aconteceu?Ela se virou para o mar, novamente, tomando o momento para armazenar forças. Sabia o motivo de não ter jamais tocado naquele assunto. As lembranças lhe traziam dor e suas especulações angústia. Então, se virou novamente em direção a Bruno.— Muitas coisas podem ter acontecido, não tenho como saber. Contudo, não é uma surpresa não terem aparecido.— Como assim? - agora ele estava confuso.— A tecnologia com a qual estávamos lidando era muito avançada e perigosa. Era guardada militarmente por uma força conjunta das três nações. Mas o know how era de Eiden e nunca aceitamos compartilhá-lo com os outros países. Embora houvesse cientistas de todo o planeta trabalhando conosco, os melhores, apenas meia dúzia de pessoas conheciam o projeto como um todo. Mesmo com as especificações e os desenhos esquemáticos detalhados armazenados em nossos bancos de dados levaria tempo para reconstruir o portal.— Reconstruir? Quando você disse que Onan destruiria o portal eu imaginei que ele o incapacitaria apenas. Você acha que ele o destruiu completamente? Como?— Ele não podia arriscar um meio termo. Não sabíamos quem mais estaria do lado de Kerligan. Alguém do próprio projeto pode ter sido aliciado

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por ele. Também não havia como prever quanto tempo ficariam sitiados no complexo até debelarem a rebelião. O único jeito era inutilizar o portal — seus olhos marejaram. - Seria fácil para Onan sobrepujar as rotinas de segurança. Ele tinha autorização para tal. Podia elevar os níveis de energia nos nano-aceleradores a um ponto crítico, até a instabilidade, causando um pequeno incêndio, talvez até uma explosão em pequena escala. Na melhor das hipóteses a coisa toda fritou por dentro.— O portal não desligaria logo depois de você passar. Não estava funcionando em energia de reserva?— Sim. Quando as luzes se apagaram no laboratório, acionando as de emergência, eu atravessei o portal. Calculo uma sobra de cinco segundos no tempo de desligamento. Seria o suficiente para atravessar os níveis de proteção usando as senhas de Onan e iniciar o processo de superaquecimento. A partir daí ele poderia utilizar toda e qualquer energia, das diversas fontes reserva do complexo, não apenas a direcionada originalmente ao dispositivo.— Então ele pode ter morrido? - Bruno falou com a voz fraca, sabia o quanto Onan representava para ela.— Estou absolutamente certa disso — uma lágrima escorreu de seu olho. — Ou ele já teria entrado em contato de alguma forma. Jamais me abandonaria. Talvez tenha morrido na destruição do portal. Talvez pelo fogo inimigo. Ou pelos ferimentos à bala. Ou uma combinação qualquer

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destes fatores. E, como não havia testemunhas, se Onan não conseguiu se comunicar com alguém antes de morrer, ninguém saberá de nossa presença aqui, nem minha, nem de Kerligan ou MJ - lentamente ela baixou os olhos, enxugou a lágrima e se voltou para o horizonte. Agora completamente enegrecido e repleto de sons arrebatadores da chuva rigorosa que açoitava os coqueiros.— Eu sinto muito - ele pousou a mão direita em seu ombro. Sua vontade era de abraçá-la, acalantá-la e protegê-la. Garantir-lhe que não estava sozinha e prometer nunca abandoná-la. Na busca mental por uma esperança para animá-la, lhe sobreveio uma idéia. - Eles devem ter imaginado o objetivo de Kerligan. Muitas pessoas devem tê-lo visto entrando no local onde estava o portal. Podem ter deduzido o seu plano. Certamente, reconstruíram o portal e devem estar monitorando os acontecimentos na Terra. Se perceberem a presença dele, irão intervir, não?— São muitos "se", Bruno — ela não chegou a se virar. — Mesmo tendo percebido essa possibilidade não há garantias de que despenderão recursos nisso. O tempo é curto para Aqua. Entre perseguir novos mundos para salvar o planeta ou gastar tempo monitorando a Terra por causa de apenas três pessoas me parece claro qual caminho seguirão, não acha?— Ainda há esperança. Caso encontrem uma alternativa para seu planeta e tenho fé que isso vai acontecer, talvez passem a investigar a Terra

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a procura de vocês — lutava para dar-lhe forças, embora soubesse ser remota aquela possibilidade.— Tão ansioso assim pela minha partida? — as palavras e o tom sarcástico surpreenderam a ela mesma. Não planejara provocá-lo.— Desde que assumi essa empreitada com você alguma vez lhe dei a entender isso? - com o espanto se colocara na borda da varanda, no limite entre a segurança da casa e violência da chuva. Forçou levemente seu braço de forma a ficarem face a face.— Não. Desculpe-me - baixou o olhar em sinal de sincero arrependimento.- Fiquei um pouco emocionada. Só isso.— Não é, não. Desde nossa chegada aqui você está estranha, distante, me evitando. Se eu lhe fiz alguma coisa, me diga. Se eu te magoei de alguma forma...— Não aconteceu nada, Bruno. Esqueça, por favor — ela o interrompeu voltando a face para o horizonte.— Somos amigos ou não? Converse comigo — sua voz foi meiga, acompanhada por um leve carinho em seu braço. Queria demonstrar sua preocupação.— Você não está sozinha.Aquilo funcionou como um gatilho para Adrianna. Toda a emoção contida naquele fim de semana e a solidão armazenada daqueles cinco anos romperam as barreiras de seu autocontrole. Virou-se para ele tomada pela raiva.

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— Tudo bem. Estou ciente de ter te envolvido em algo difícil. Transtornei seu cotidiano. Alterei seus paradigmas. Você se afastou dos amigos, da família, enfim, da vidinha confortável tão fácil de ser mantida sob controle. Mas, ganhou algo em troca, não? No final das contas não te obriguei a nada.— Claro que não — ele confirmou espantado.-Vi como ficou feliz com seus amigos, especialmente Rachel. Você não me deve nada, Bruno. Pode seguir seu caminho e ter tantos finais de semana como este quanto quiser. Pode esquecer tudo e passear pelo mundo com ela. Ser feliz, casar e ter filhos. Não quero ser um peso. Se for necessário vou lutar sozinha contra Kerligan.— Que diabo é isso? Não estou entendendo nada! Ter um final de semana de relaxamento é proibido? Significa que eu não quero mais ser parte do seu projeto?-Até hoje é o meu projeto, não? É a Terra que estou tentando proteger, não é mesmo? Devia ser o seu projeto ou o nosso projeto. Pensa que não percebo suas dúvidas? Seus amigos estão aqui como uma proteção para você, não é mesmo? Outras preciosas fontes de avaliação sobre mim, mais opiniões sobre minha história. Considera-me imune aos olhares acusadores de Natan ou simplesmente cega? Não precisamos passar por isso. Siga seu caminho — Adrianna estava fora de si. As palavras saltavam de sua boca sem controle. Ao enfrentar a expressão dele

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percebia o quanto assombrado estava ao testemunhar tamanha explosão.— Meus amigos estão aqui porque confio neles para me manter honesto e por me sentir sozinho. Já te expliquei isso. Não tenho culpa de Natan ter dúvidas. É natural. Ele ainda não a conhece como eu conheço. Dê tempo a ele. Também já lhe disse minhas dúvidas. Nunca menti. Mas também lhe disse quanta confiança sinto em você, independente dos questionamentos e racio-nalizações de minha mente cartesiana. Para quem viveu o que você viveu tudo parece claro e cristalino. Para quem está na minha posição é difícil — percebeu a alteração na própria voz e pausou para se recompor. — Não tenho intenção de desistir. Tenho sido honesto com você, não?— Então por que não me revelou que o objetivo deste final de semana era um encontro romântico. Não somos amigos? Teria lhe apoiado - seu rosto, contudo, transmitia tudo menos aquela certeza. O olhar de raiva estava anuviado pela película de água se acumulando rapidamente em sua superfície. Precisava fugir dali. Quando ele ensaiou reagir e abriu a boca para retorquir, ela foi mais rápida. - Preciso de um tempo, Bruno. Vá para Londres sem mim, nos encontramos na quarta — ao finalizar, saiu andando lentamente na chuva, dando permissão ao temporal para envolvê-la em toda a sua violência. Manteve o queixo para cima e o olhar fixo na ponta direita da praia para onde se encaminhava. Com passos largos e rápidos pretendia se afastar da casa o mais rápido

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possível. A tormenta seria uma aliada, a ajudaria a se controlar.Já estava há quase 10m de distância, próxima a praia, quando foi puxada pelo braço direito e forçada a se virar. Bruno a alcançara. Estavam ambos ensopados. A violência da chuva e do vento era tanta que o obrigava a proteger os olhos com a mão direita, a outra firme segurando o braço dela. Estava decidido a mantê-la próxima a si.— Eu não tenho nada com Rachel!— Grande amigo. Mentindo por uma bobagem dessa — ela gritava para suplantar a ferocidade da água se derramando. Forçou o braço até se libertar. - Eu vi vocês se beijando na praia na sexta. Foi sem querer. Tomei cuidado depois para não seguir os seus passos. Não queria atrapalhar o romance.Dito isso prosseguiu para a praia decidida a dar um fim na conversa. Ele não permitiu. Puxou-a novamente e segurou firme, agora nos dois braços, seus olhos fixos nos dela, a menos de um palmo de distância, a chuva inclemente agulhando seus rostos.- Foi um beijo de amigo. Ela estava triste. E me disse com todas as palavras o que eu já sabia e não queria assumir.— O quê? — apesar do tom de desafio, a curiosidade se estampava em seu olhar.- Eu e ela jamais poderíamos ficar juntos porque eu estou apaixonado por outra pessoa.Ela não esperava por aquilo. Estava apavorada pelas possibilidades. O conflito entre a vontade

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de se libertar e a esperança envolvendo suas próximas palavras a fez hesitar. Deu a Bruno o tempo necessário para tomar coragem. Ele sabia que não haveria retorno a partir dali. Era tudo ou nada, não tinha idéia de como ela reagiria. A missão seria mais importante? O sentimento que percebia nela seria apenas resultado de sua solidão? Inundado pelo medo ele continuou, decidido a ignorar a razão e a seguir apenas as ordens do coração.- Estou perdidamente, loucamente, apaixonado por você, Adrianna. Conheço sua opinião sobre isso e juro... Tentei esquecer, desviar meu pen-samento, encontrar justificativas para abandonar este sentimento... No final, quando deito a cabeça no travesseiro, não é em dinheiro, em planos, em criar um mundo melhor, ou em Kerligan que eu penso... Só penso em você, seu rosto, seus olhos — ao falar soltou seus braços e alisou sua face com as costas da mão, dedicando a pele mais lisa e suave de seu corpo para acariciá-la. - Seu sorriso é a conquista de cada dia. Ouvir sua voz, admirar suas idéias, a maneira como pensa é o que torna meu dia feliz. Eu te amo, Adrianna. Com todas as minhas forças.Mesmo sobre a chuva grossa e implacável, a mudança no rosto dela foi flagrante. Como uma máscara se dissolvendo, lavada pelas águas, suas feições se transformaram. Ela, como ele, chorava profusamente sem que nenhum dos dois percebesse o outro. Suas lágrimas invisíveis sob a torrente lhes escorrendo sobre o corpo. Seus

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olhos assumiram uma posição de súplica e medo, acompanhados pelos lábios tremendo de emoção. Ela se jogou sobre ele, abraçando-o na altura do pescoço e se beijaram. Finalmente, os seus desejos eram infinitamente superiores a qualquer capacidade de se conter. Naquele momento ele não possuía dúvidas, apenas a certeza de precisar ficar ao seu lado, agora e sempre. Os corpos colados não percebiam mais a tormenta. O beijo voraz saciando a sede de mil anos no deserto. E o calor. O calor emanava de dentro deles com a força de um sol alimentando uma profusão de sensações de alegria, esperança, euforia e, sobretudo, felicidade. O trovão distante parecia a eles um sinal de aprovação dos deuses. Nada poderia ser mais correto, mais justo, mais perfeito que os dois juntos, para sempre.Bruno sentia como se a magia houvesse invadido sua vida. Tudo parecia perfeito, mais bonito, mais brilhante, como se sofresse o efeito de algum tipo de encantamento. Jantaram a luz de velas sentados em uma quina da grande mesa de jantar, o mais próximos que conseguiram. Com a partida mais cedo dos empregados ficaram convenientemente sozinhos. À exceção do caseiro, toda a propriedade estava a sua disposição, dando-lhes a privacidade ideal para recuperarem o tempo perdido. Longos olhares eram trocados durante o jantar, interrompidos por tímidos sorrisos incontidos. Representantes singelos dos sentimentos há tanto tempo presos no fundo de seus corações, cujos portões abertos

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agora permitiam voar livres, se expressando em cada pequeno gesto.Nestes momentos, a memória lhes pregava peças impregnando a retina com flashes de imagens da paixão que os arrebatou após o primeiro beijo. Adrianna se comovera com a delicadeza de Bruno. Ele a carregara até o quarto e a despira lentamente. A cada peça retirada, a pele desnuda era coberta de carícias. A cada passo adiante, um olhar era oferecido repleto de devoção e carinho. Ela sentia a força de seu desejo sobrepujada por uma aura de amor. Quando, finalmente, invadida pela paixão dele ela teve certeza que explodiria de felicidade, apenas para ser novamente dominada pelo amor no momento seguinte.

Os dois dias em Londres, inicialmente indesejados por Bruno, por afastá-lo dos amigos nos seus primeiros dias na Infinito, se revelaram uma bênção. Longe dos problemas e dos olhares críticos a sua espera se permitiram namorar como qualquer casal apaixonado. No primeiro dia Bruno levou Adrianna para assistirem "Mamma Mia", um belíssimo musical cheio de alegria e humor. Nostalgia nas canções do Abba para ele e o entusiasmo da descoberta para ela. Jantaram no quarto do hotel. Bruno agradecia, mentalmente, por sua nova condição necessitar de tão poucas horas de sono, permitindo-lhe aproveitar cada momento da noite com Adrianna. No segundo dia, fez questão de tirarem à tarde de folga. Simplesmente precisava lhe mostrar as

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belezas de seu mundo, testemunhar a novidade e o deslumbramento nos olhos dela. Estava certo de que ela amaria vivenciar o rebuscamento da arquitetura antiga tão viva em toda a Europa. Aproveitando um passeio de barco pelo Tâmisa, ele lhe mostrou o Big Ben, o parlamento inglês e a London Eye. Vislumbraram a cidade de dentro das abóbadas translúcidas da roda gigante mais famosa do mundo. Visitaram a abadia de Westminster e o palácio de Buckingham, finalizando a tarde sentados na grama do parque St. James admirando a bonita lagoa sob o sol fraco do verão inglês. Sentada a sua frente, apoiando as costas em seu peito, envolvida por seus braços, eram a perfeita visão da felicidade.Ao retornarem para o hotel, ele a surpreendeu. Havia feito todos os arranjos. Partiriam imediatamente para Paris. Um dia na França, incógnitos. Para o escritório, seria uma viagem exploratória secreta. Para eles, um dia de sonho. Contava com a resistência de Adrianna, facilmente vencida pelo argumento forte de que, provavelmente, não teriam uma chance como aquela tão cedo novamente. Com a formação do grupo os trabalhos e as dificuldades se intensificariam vertiginosamente nos próximos meses. Após um banho rápido e duas horas e meia de traslado, adentravam ao Taillevent, um dos seus restaurantes prediletos, bem próximo a Champs Elysies onde finalizaram a noite com um passeio descompromissado e romântico. Pelo brilho nos olhos ele percebeu que as mulheres de Aqua não eram tão diferentes das da Terra.

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Gucci, Prada, Luis Vitton. Todas atraíam sua atenção. Ele ofereceu um tempo no dia seguinte para compras, porém ela preferiu declinar. Queria manter o plano original, assim ficariam mais próximos, pertencendo integralmente um ao outro. Pelo menos naqueles dias. Um oásis em meio aos sacrifícios de sua missão.No dia seguinte ele a levou para um café da manhã em um pequeno bistrô ao lado da Notre Damme. Ela ficou fascinada pela catedral. Bruno tentava, ao máximo, preencher as lacunas da apressada educação de Adrianna sobre os assuntos gerais da Terra. Ela possuía registrada em sua poderosa memória as informações; ele tentava apresentá-la à aventura, às lendas e o romance por trás dos fatos históricos. Bem além do parco estudo formal, seu conhecimento advinha dos filmes e dos romances em cujo enredo os fatos históricos se entrelaçavam. Após sua primeira visita à França, muitos anos antes, o interesse por esse gênero havia se intensificado, ampliando a quantidade de obras visitadas e, principalmente, conquistando nele um olhar mais detalhista e interessado. Passearam às margens do Senna. Beijaram-se sob a pirâmide do Louvre. Emocionaram-se juntos admirando as esculturas francesas dos deuses Greco- Romanos.Sinceramente emocionada, ela admirava quadros de Monet, Manet, Claude Lorrain e outros impressionistas. Aproximando-se as suas costas, Bruno a abraçou com força e carinho e beijou a sua face. Em determinado momento, ela se virou. Seus escuros olhos azuis, profundos como o

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oceano, retribuíam seu amor. Seus finos lábios sussurraram: — Obrigada — por um breve segundo, quando se beijaram furtivamente, uma lágrima ameaçou se libertar.Almoçaram na Torre Eiffel e finalizaram a tarde admirando a cidade a partir do Mont Parnase, após visitarem a Sacre Creur, sob promessas mútuas de voltar e aproveitar a cidade luz como ela merece, quando sua missão estivesse cumprida.No táxi, a caminho do aeroporto, sob o anoitecer de Paris, as mãos dadas e os olhares apaixonados, Adrianna sentia medo do retorno. De quanto tempo a magia daqueles dias poderia resistir à realidade e aos desafios a sua frente. Sobretudo, temia a reação de Natan, Max, Rachel e os outros. Ele falou primeiro.— Pode ligar o celular agora.Após um olhar de interrogação, uma pequena alteração em seus lábios mostrava que ela entendera. Em algum momento ele havia desligado seu celular. Estava feliz demais para se zangar. Enquanto religava o aparelho, resolveu externar suas preocupações.— Vai contar para seus amigos?— Tenho que contar. Não existe espaço para mais mentiras.— Não contou na videoconferência de segunda?— Este tipo de coisa precisa ser feita pessoalmente. Não posso largar uma bomba dessa e ficar dois dias fora de contato.— Bomba? - falou arregalando os olhos.

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— Você entendeu. Pedi uma mudança drástica na vida deles. Falei que o plano era meu. Eu era o chefe. Roguei para confiarem em mim. Garanti ser sempre minha a última palavra em tudo. Respondi aos diversos questionamentos assegurando não haver nada entre nós, e, de repente... Estamos juntos. É normal terem dúvidas. Questionarem meu julgamento. Suspeitarem ser uma estranha a verdadeira timoneira do navio onde estão embarcando para a maior mudança profissional de suas vidas - ela aparentou compreensão.— E como pretende tranquilizá-los?— Com muita conversa e sinceridade. Afirmando, veementemente, não ter previsto de nenhuma forma me apaixonar. Deixando claro minha posição hierárquica como o líder de todos os nossos empreendimentos, e meu profissionalismo — fez uma pequena pausa receoso das próximas palavras. — Na verdade nossa maior aliada será Rachel.— Como é? - Não fez uma cara feliz. Ciúme era algo poderoso e ela não tinha intenção de esconder aquele sentimento. Pelo menos não naquele momento.— Ela aconselhou fortemente a me declarar para você — sua expressão era a de quem fazia um ponto especialmente difícil em um jogo de sinuca. - Disse que seria louco se não fizesse tudo para conseguir minha felicidade.A expressão de desconfiança no rosto dela não superava a derrota. O argumento era forte.

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Ficaria de olho na loira, mas por enquanto a vitória era dele.— Quando vai falar?— Amanhã pela manhã, na primeira hora, já marquei a reunião com pauta indefinida. Quando acabar te ligo — beijou-a de leve tentando transmitir confiança.Suas mãos se apertaram mais fortemente. Nada duraria entre eles se seus amigos se opusessem, ela sabia. Desejava ter tido mais tempo para conquistar a confiança deles.

21. O início da Utopia

Às 8h30 da manhã Rachel já estava no escritório de São Paulo se preparando para a reunião. Voara na noite anterior com Marco e Natan e, após deixarem as malas no hotel, jantaram em um delicioso restaurante na rua Nove de Julho. A presença de Natan fora uma benção, pensou ela, não apenas pela indicação primorosa do local, como também para minimizar as investidas de Marco. Trabalhando em salas contíguas no escritório de Salvador, ele parecia obstinado era conquistá-la. Nos três dias no novo trabalho náo deixara de receber flores em nenhum deles. "Esteve linda no final de semana", "Uma aura de sucesso emana de você", "Que tal jantar esta noite?", sempre frases curtas e de bom gosto. Os convites para almoço eram também cotidianos. Nestas oportunidades era galanteador sem jamais exceder os limites. Nunca o tomara pelo

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tipo insistente. Embora tivesse conhecimento de diversas namoradas em seu passado, nada parecera intenso, pelo menos até onde era de seu conhecimento.Começava a acreditar que ele estava realmente apaixonado.

Quando Bruno chegou, vindo diretamente do aeroporto, todos já estavam na sala de reuniões. A tela de 60 polegadas dava a dimensão da sofisticação tecnológica. Totalmente preparada na acústica e nos equipamentos, a sala fun-cionava para reuniões ao vivo ou videoconferência, sendo ideal para um misto das duas. Uma mesa de madeira escura em formato elíptico era o móvel mais imponente. Ao centro um círculo de madeira quase preta continha o símbolo "" gravado bem ao meio. Nela exatos oito lugares bem espaçados deixavam claro quem seriam seus ocupantes habituais. Na parede oposta à tela um aparador repleto de salgados acompanhados de sucos e café garantia a manutenção da reunião sem interrupções.Max, Natan e Wagner conversavam sentados um ao lado do outro no hemisfério esquerdo da mesa. Em pé, ao lado dos salgados, Rachel, Marco e Cristiane conversavam amenidades.— Bom dia! - Bruno adentrou calmamente o recinto mal contendo o sorriso largo de alegria. Embora levemente nervoso, ver os amigos reunidos ali, o deixava profundamente feliz.— Bom dia, europeu - retorquiu Max em meio ao coro de saudações do grupo.

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Bruno fez questão de abraçar um por um como uma saudação de boas-vindas oficial, já que não estivera presente no primeiro dia deles. Propositalmente mandara sua secretária, Mirela, deixar lembranças compradas na viagem para cada um em suas respectivas salas. A surpresa, ele esperava, ajudaria a amenizar o estresse após a divulgação de seu romance.— Vamos começar? — iniciou enquanto o grupo se sentava.— Adrianna não vai participar? — Cristiane questionou.— Excepcionalmente pedi que se ausentasse. Vocês vão logo entender o motivo — enquanto tomava fôlego o grupo assumiu uma postura profissional, concentrados em Bruno, alguns já fazendo anotações.— Quer que eu redija a ata da reunião? — Raquel se prontificou.— Não é preciso. Esta será uma reunião de assuntos gerais — Rachel assentiu com a cabeça. - O objetivo principal da reunião é deixar todos a par dos projetos uns dos outros. Dessa forma, possíveis parcerias e alianças estratégicas poderão ser formadas se julgarem oportuno. No resto do dia eu e Adrianna vamos conduzir reuniões individuais por projeto. Antes, contudo, gostaria de fazer um anúncio provavelmente inesperado — como um rastro de eletricidade a tensão se espalhou por todos, instigada provavelmente pelo tom e pela expressão de Bruno. Os olhares se fixaram nele. — Não era minha expectativa nem estava nos planos... De

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fato, talvez, fosse melhor se tivesse acontecido antes... — ele estava enrolando. Precisava ir direto ao assunto. - Eu e Adrianna estamos namorando - no momento da notícia Bruno tentou capturar a emoção de cada um. O riso de Rachel demonstrava triunfo. Wagner, Max e Cristiane sorriram, embora claramente ainda avaliassem a notícia. A expressão de deboche de Marco, minimizando o assunto, era um indicativo claro de satisfação. Natan, como Bruno já esperava, demonstrou claramente o seu descontentamento endurecendo suas feições instantaneamente. — Isso não muda nada em nosso trabalho, posso garantir. Mas, é importante vocês saberem, tanto como amigos quanto acionistas.— Eu já sabia que isso ia acontecer. Fico feliz, Bruno. Vai te fazer bem — Rachel comentou.— Desde que não fiquem se esfregando nas reuniões - Wagner, Marco, Rachel, Cristiane e Bruno riram da galhofa de Max.— Obviamente isso muda tudo - o tom de Natan era uma oitava acima do adequado. - Confiança foi a chave de nossa escolha. A oportunidade continua a ser boa, motivo pelo qual a aceitamos. Contudo, esse fato novo não deixa de ser uma mudança gigantesca para todos nós. Se falirmos vai ser quase impossível para a maioria recuperar o status atual.— E meu namoro com Adrianna vai nos levar à falência? — Bruno se preocupou em usar um tom calmo e não provocativo, precisava atenuar emoções e não instigá-las.

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— Claro que não! Mas existe uma diferença... Eu acredito que você nunca ia deixar o barco afundar para nós sem afundar para você também. Não podemos dizer o mesmo dela. Podemos? - Natan retorquiu.— Com o que conhecem dela, não — Bruno respondeu.— Você a conheceu há um ano! — Natan o interrompeu, provocativamente. Suas feições traduziam fielmente a própria raiva. Nunca pôde se conter. Ao invés de seguir seu conselho, Bruno fizera exatamente o oposto.— Um ano e meio — Bruno corrigiu. — Mas, isso não é tão relevante. Importante sim é quem tem a palavra final relativa às empresas e este sou eu, não ela. E em cada projeto vocês serão também parte do processo decisório.— Vamos organizar as coisas - Cristiane virou-se para Natan. - Deixe-me falar um pouco — sem aguardar por uma resposta a médica tornou os olhos confiantes na direção de Bruno. - Uma coisa é verdade. Nossa decisão levou em consideração sua total autonomia nos projetos e isso, pelo que eu entendi, não muda oficialmente. Eu compreendo. Só não dá para fingirmos que o grau de influência dela não mudará drasticamente. E em tudo. Estamos comprometidos por dez anos, Bruno. É normal que nos preocupemos.— Olha gente, eu sou testemunha de que eles não estavam juntos até o último final de semana. Eu o aconselhei a se declarar. Ele já havia desistido e eu disse que não se pode desistir de uma

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chance de ser feliz - Natan virou-se para Rachel como se desejasse estrangulá-la. Era palpável o esforço empreendido por ele para conter o impulso. A atenção de todos na mesa se voltou para Rachel quando ela prosseguiu. — E se ele tivesse se apaixonado por mim ou pela secretária? Ou por alguém ligado indiretamente à empresa? A dona de uma das empresas que queremos comprar, por exemplo? Bruno deixou de ser livre para amar porque estamos trabalhando com ele? Talvez fosse melhor se não tivesse acontecido, mas aconteceu. Alguém aqui acha que ele vai colocar o interesse pessoal acima do empresarial?Bruno sempre fora neurastenicamente comprometido com suas funções profissionais e todos sabiam disso. Fora diversas vezes alvo de críticas pelo fato de perder festas e viagens por motivo de trabalho. Bastava um projeto ou uma proposta importante para fazê-lo trabalhar noite adentro esquecendo o lazer ou o descanso até finalizá-la com perfeição. Natan era o primeiro a criticá-lo naquelas ocasiões. Para ele era difícil aceitar que o trabalho tomasse tanto espaço em sua vida. Aquela era a grande diferença entre os dois. Por isso, ao escapar dos lábios de Rachel, o argumento tornou-se imediatamente um trunfo para Bruno.— Estou com Rachel. Pelo que sei, podemos ter problemas, ou melhor, dificuldades na tomada de decisão tanto com Adrianna quanto entre nós. Cada um aqui tem interesse em priorizar o seu projeto. O grau de amizade entre Bruno e cada

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um de nós pode influenciar o seu julgamento? Claro! Contudo, acreditamos na competência de Bruno e em sua capacidade de separar as coisas. Todos sabemos quem é o amigo mais antigo de Bruno e quem se manteve mais próximo — Max falou se dirigindo a Natan. — Mas confio nos dois para manter as decisões no campo profissional.Um momento de silêncio se seguiu, rápido e pesado. O racional se sobrepôs e a expressão de Natan se acalmou. Alguns respiravam fundo, aliviados, enquanto o sorriso se insinuava entre ele e Bruno.— Para mim está ok. Estava antes e continua — Marco afirmou — Wagner?- Ok, sem problemas para mim também - Wagner respondeu.— Cris? — Marco continuou disposto a encerrar a questão.— Vamos para frente — Cristiane falou sorrindo. O gesto desmanchou qualquer final de tensão ainda flutuando entre eles.- Natan? Convencido? - Marco finalizou.- Tudo bem. Talvez eu tenha exagerado um pouco - os sorrisos preencheram a sala assim que Natan terminou a frase.- Foi importante que todos externassem suas dúvidas. Assim fica tudo esclarecido. Vamos à pauta então? - Bruno perguntou, levando o grupo a se aprumar assumindo uma postura mais profissional. O quanto antes deixassem o assunto para trás, melhor.— Nestes três dias todos tiveram o primeiro contato com seus projetos. Basicamente,

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gostaria que cada um fizesse um breve resumo para os demais, se predispondo a responder a eventuais dúvidas. A idéia é buscar possíveis sinergias. Realizaremos uma reunião dessas todo mês na qual atualizaremos os progressos individuais. Ao final prosseguiremos com a reunião individual sobre o projeto específico. Algumas serão conduzidas, de acordo com o projeto, por Adrianna. Podemos iniciar em sentido horário começando com você, Max?— Bruno, provavelmente, preferiu começar por mim porque vocês já conhecem algo do meu projeto. Foi-nos apresentado no nosso primeiro encontro — Max esclareceu, enquanto abria o arquivo contendo o material para sua apresentação.- Tomei a liberdade de listar alguns pontos importantes - disse Max projetando o primeiro de um conjunto de slides. — E só um rascunho. Perdoem-me a crueza das imagens - após alguns cliques e o apoio de Bruno ligando a TV as suas costas, a imagem apareceu. O primeiro slide, sob um fundo com imagens de chips de computador em nível microscópico, mostrava quatro tópicos: "Alvo", "Objetivo", "Potencial Financeiro" e "Obstáculos". - Nosso alvo é a BioTech. Como vocês devem se lembrar, a empresa, situada na índia, está à beira de estabilizar o processo de armazenamento de informação usando agentes biológicos. A expectativa é conseguir armazenar um Terabyte, ou seja, aproximadamente mil Gigabytes por centímetro quadrado.

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— Para substituir HD ou memória RAM? — Marco o interrompeu.— Ambos — olhando para os demais, Max explicou. — A questão de Marco é: as informações se perdem quando desligamos o computador? A resposta é não. Ou seja, teremos apenas um tipo de memória no computador. Os custos de produção seriam inferiores aos associados ao HD. Hoje mais barato por byte que a memória RAM, tornando desnecessário qualquer tipo de armazenamento alternativo.— E a questão da velocidade? A RAM é bem mais rápida que o HD, por isso precisamos dela — explicou Wagner. Sua formação em engenharia eletrônica lhe permitia falar do assunto com propriedade.— A velocidade de acesso, tempo necessário para ler a informação na memória, crucial no desempenho de um computador - Max tentava explicar nos termos mais simples possíveis, considerando a heterogeneidade da sala - é bem menor que a referência de hoje para as memórias RAM, cerca de metade, com potencial para chegar a dez vezes menos - Marco e Wagner, os mais versados em relação a computadores, estavam visivelmente impressionados. - Os estudos preliminares apontam para a produção efetiva em dez anos. Obviamente, isso está considerando os recursos disponíveis para a empresa hoje e, certamente, poderá ser reduzido bastante — enquanto falava, os slides apresentavam os números precisos na tela. - Nosso objetivo é fornecer a BioRAM, nome

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provisório do produto, em cinco anos por meio da aquisição de 80% da empresa. Hoje ela vale cerca de 300 milhões de dólares. Após a aquisição, seguir com um aporte imediato de 100 milhões. Pelos estudos preliminares acredita-se ser este o capital necessário para reduzir o tempo de disponibilização da tecnologia em 30% . Em seis meses, já com novos dados atualizados, lançamos o IPO e utilizamos parte dos recursos para acelerar ainda mais o processo, lançando uma segunda oferta pública um ano depois. Se tudo ocorrer como previsto, em cinco anos podemos começar a vender. E, obviamente, essa é uma previsão pessimista.— Quais são os obstáculos? — Rachel questionou, pragmática.— Basicamente o fato dos dados que temos não serem conclusivos. Diversas linhas de pesquisa estão sendo desenvolvidas em paralelo hoje no mundo, memristors, matrizes em 3D, holografia, matrizes proteicas e por aí vai. Não tem como saber quem será a campeã, qual será mais eficiente e o mais importante, qual vai realmente ficar. A história está cheia de tecnologias superiores sucumbindo frente à melhores estratégias de marketing das concorrentes.- Isso será uma constante para todos os nossos projetos — Bruno interrompeu - se fosse algo totalmente testado e seguro não precisaria de nós ou o preço seria inviável. Nosso trabalho é pesquisar todos os concorrentes em estágio de evolução e potencial similar. Com os dados fazemos comparações e avaliamos a melhor

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aposta - o maneio de cabeça, acompanhado de um leve encolher de ombros, transmitia a simplicidade do raciocínio e sua tranqüilidade. - Você teve chance de avaliar estas pesquisas, Max?Adrianna já havia validado aquele como o caminho mais eficiente entre as diversas linhas de pesquisas. Embora não fosse sua especialidade era de conhecimento de todos os princípios da tecnologia de armazenamento utilizada em seu mundo. Tanto quanto hoje a maioria das pessoas nos países desenvolvidos sabe que é baseado no silício o núcleo do funcionamento dos processadores e memórias RAM. Lamentavelmente, não era algo passível de ser revelado naquele momento.- Ainda não - Max respondeu. - Mas, a tirar pelo índice aparentam ser bem detalhadas. Do que conheço está tudo lá. É preciso dizer... Estou muito empolgado, realmente parece promissor. Estamos falando de uma indústria capaz de movimentar 30 bilhões de dólares por ano! Com os IPOs vamos recobrar nosso investimento em menos de um ano e começar a lucrar no segundo, bem antes do lançamento do produto. Se der certo vai ser uma loucura.- Vai dar certo! Maravilha, Max. Parabéns pela apresentação. Alguém gostaria de fazer perguntas? - Bruno não esperava questionamentos. Todos tiveram muito pouco tempo para estudar seus projetos e entendiam que aquela era uma apresentação sintética e

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genérica. - Rachel, se importaria em ser a próxima?- Bom... Não preparei um PowerPoint - a autoconfiança dela fez daquele comentário apenas uma observação e não uma desculpa. Mostraria estar tão ou mais afiada em comparação a Max. — Nosso objetivo aqui é produzir roupas autolimpantes em dois a três anos — havia pouca surpresa nos rostos ao seu redor mostrando a rapidez com a qual as conversas de corredor com Marco e Natan se espalharam entre os colegas. — A base da tecnologia já existe. Foi desenvolvida pelo exército americano para diminuir a necessidade de lavagens, especialmente de roupa íntima, para os combatentes em campo. Esta tecnologia foi licenciada por uma empresa inglesa, a Axiom. Nosso trunfo é ter encontrado um projeto paralelo, uma variante independente do utilizado pela Axiom desenvolvido por uma empresa francesa chamada ADe cujo licenciamento não depende da patente americana. Adicionalmente encontramos um projeto em andamento em uma universidade de Milão capaz de agregar eficiência ao processo.— Qual o diferencial desse projeto em relação ao americano e qual a garantia de que a combinação dos processos francês e italiano vai funcionar? — Marco arguiu.— Ótima pergunta. Eu já estava chegando lá. No projeto americano pode-se ficar algumas semanas sem lavar a roupa. Desde que não se deixe cair quantidades significativas de

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elementos sobre ela, como: pingos de sorvete ou mostarda. No nosso, teoricamente, uma camisa de malha poderia passar a vida inteira sem ser lavada e respingos de alimentos, em pouca quantidade, podem ser removidos apenas passando água corrente e secando à sombra.— Qual a base da tecnologia? — o maior interesse de Cristiane, comparada à apresentação de seu marido, era inevitável. Afinal, embora sempre uma cientista, juntar França e roupas em uma mesma frase despertariam o interesse de qualquer mulher.— Bactérias. Variações criadas em laboratório de bactérias conhecidas. Elas, literalmente, comem a sujeira. Quem validou as pesquisas e indicou o prognóstico da junção do projeto francês e italiano foi Adrianna.— Ela é tão boa assim? - a pergunta de Natan foi claramente direcionada para Cristiane.— Ela é certamente uma expert em Biologia Molecular — Cris se apressou em responder. — Isso dá para perceber pelas nossas conversas. Quão boa? Não sei. Nunca publicou um artigo sequer, eu chequei. Considerando suas origens não chega a ser inesperado, embora também não me deixe segura.— Já encomendei para a Siensen — uma das maiores consultorias da Europa - uma pesquisa secundária detalhada do mercado de moda no mundo - Rachel achou melhor intervir rapidamente a deixar ressurgir o assunto cuja polêmica fora controlada há tão poucos minutos. - Os números preliminares eu mesma levantei e

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são animadores. Temos um mercado total de, aproximadamente, 15 bilhões de dólares só no Brasil. Certamente, estamos falando de 500 bilhões a um trilhão em âmbito mundial. Em uma aproximação grosseira de um plano de negócios, extremamente preliminar, gastaríamos cerca de 100 milhões de dólares para adquirir a ADe e o projeto italiano. Com os resultados testados, em dois anos, poderíamos lançar um IPO levantando de 500 milhões a um bilhão. Em cinco anos, sendo pessimista e apenas licenciando marcas ao redor do mundo, poderemos obter um faturamento anual de 5 bilhões — após uma pausa calculada, sorriu. — Basta combinar direitinho com a concorrência.O sorriso puxava pela brincadeira e ressaltava o clima ameno no qual a reunião agora transcorria. Rachel estava claramente animada com tudo aquilo. Jamais estivera em uma posição tão importante e jamais tanta confiança fora investida nela. No íntimo, estava exultante. Encontrara um projeto perfeito. Interessante, ousado, grandioso, ligado à moda, uma de suas paixões e que traria enormes benefícios à humanidade em termos de economia de água.— Bravo Quel, bravo! - Bruno estava feliz e não queria esconder. Suas feições traduziam livremente o sentimento. — Dúvidas?— Só uma — Max interveio — qual o significado de ADe? É uma sigla ou uma palavra em francês?— Nem um nem outro — disse Rachel. - É o nome do fundador, Allain Dennon. Pode? — ela e os outros riram da semelhança com o nome do

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famoso ator. - Mas não estou certa se devemos mudar. Soa bem aos ouvidos - ela repetiu o nome em voz alta sob os olhares condescendentes da platéia.— Wagner, pode ser você agora? - Bruno completou, premido pelo tempo, dando por finalizada a participação de Rachel.— Claro. Quanto mais demora maior a expectativa — o próprio Wagner deixou escapar o riso. Jamais fora capaz de evitá-lo em momentos tensos. Algo rápido, apenas para tomar fôlego. - Aparentemente hoje o menor equipamento de ressonância magnética ocupa boa parte de uma sala e, uma vez instalado, o transporte é dificílimo, quando não inviável. O custo de um equipamento varia entre um e 2 milhões de reais. A Universidade de Paris conseguiu desenvolver campos magnéticos de três Tesla utilizando uma estrutura mínima através da utilização de nanotecnologia. Com esta solução um equipamento de ressonância pode ter o tamanho reduzido a ponto de ser portátil. Um container pequeno pode permitir o transporte do núcleo, camas retráteis e os computadores de apoio e processamento de imagem.— Certamente essa pesquisa já está sendo subsidiada por alguma indústria como a Siemens ou Phillips, não? — Natan destacou. — Eles dominam o mercado e não vão dar colher de chá para ninguém.— Na verdade, não. A descoberta foi acidental. Ocorreu quando os pesquisadores franceses trabalhavam no LHC, o acelerador de partículas

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na fronteira franco-suíça. Quando o trabalho foi publicado, todos se interessaram, mas o custo de adquirir a patente é muito alto em função da legislação em torno do laboratório que conduziu o trabalho. Não tanto o custo financeiro e sim as exigências protecionistas. A tecnologia não pode ser fabricada fora da França. Essa restrição dificulta muito o acordo com os gigantes do setor já estabelecidos em diversos países. Somado a isso existe um problema de consumo de energia. É necessário o triplo da energia utilizada por um equipamento padrão.— Felizmente para nós existe uma solução para isso tudo, certo? - Marco interrompeu.— Temos três empresas brasileiras no radar em condições de associar a tecnologia francesa à de um equipamento de RM - Wagner continuou, atropelando em um movimento calculado, a pergunta de Marco. - Com menos de 100 milhões de reais ficamos com a mais promissora. Mais uns 50 milhões de dólares para adquirir a patente francesa. Os custos da criação de uma fábrica matriz na França são de 150 milhões de euros. Estamos falando em utilizar a tecnologia também para tomografias computadorizadas e utilizar a linha de produtos já existentes na empresa brasileira escolhida. É um mercado de 5 bilhões de dólares por ano. Ainda não sabemos o quanto disso podemos captar. A boa notícia é que o mercado pode crescer exponencialmente com uma solução portátil e mais barata. A tecnologia francesa permite a redução de custos em pelo menos 50%.

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— Desculpe-me, Wagner, me perdi - Max interveio. — Dá para fazer um resumo dos números e das projeções?— Claro. Basicamente devemos gastar cerca de 400 a 500 milhões de dólares ern dois anos. O plano preliminar é produzir o primeiro equipamento nesse prazo. Contudo, diferente de outros projetos, estaremos vendendo em âmbito mundial os equipamentos da linha atual da empresa que adquirirmos já no final do primeiro ano. Certamente, conseguiremos alguns contratos como contrapartida do governo Francês. Contamos com cerca de 300 milhões em encomendas no segundo ano. Um bilhão em vendas e serviços no quinto ano, quando poderemos reduzir o custo de produção e venda a um quinto do atual, isto é, se penetrarmos nos mercados hoje completamente desatendidos. Podemos captar investimentos no primeiro ano, embora seja mais prudente aguardarmos para o segundo, quando já estivermos vendendo na Europa. Isso dará maior tranqüilidade aos investidores.— Você pulou a questão do problema de energia — assinalou Max.- Foi proposital - comentou sorrindo para Marco. - O objetivo é criar uma sinergia com o projeto de Natan. - Virou-se para ele solicitando com um gesto de mão o início da apresentação do parceiro.- Uma empresa do Arizona, a Sun&Light Technologies desenvolveu um sistema de painéis solares extremamente mais eficiente que os da

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concorrência. Conseguem o triplo do aproveitamento através de um artifício de retro-alimentação — as expressões de confusão fizeram Natan retroceder. — Também não entendi direito. Aparentemente, ao ligarmos a energia capturada pelos painéis em algum motor, a energia gerada pelo mesmo pode ser reaproveitada para amplificar o resultado final. Em suma, a eficiência do sistema depende da sua utilização em larga escala em ambientes industriais extremamente controlados. Não é uma boa notícia para a Sun&Light, pois eles ficaram com um produto bom direcionado a um mercado pequeno. Já para nós é uma excelente notícia. Segundo o laudo de uma empresa de engenharia especializada, o esquema de retroalimentação funciona perfeitamente com eletroímãs. Ao invés de um ambiente industrial grande e complexo, podemos utilizar o esquema nas ressonâncias magnéticas e tomógrafos do projeto de Wagner. De quebra a Sun&Light ganha um fluxo constante de dinheiro para ampliar suas pesquisas e vendas de painéis. Planejamos utilizar a energia solar como fonte alternativa em todos os empreendimentos da Lima World Investments onde for pertinente. Com essa sinergia, a empresa avaliada hoje em, aproximadamente, 100 milhões de dólares pode se transformar em líder do seu segmento e dobrar o faturamento anual para 200 milhões por ano ao final de dois anos. Ela pode chegar a um bilhão nos próximos cinco se contabilizadas as reduções de custo, as políticas de incentivo, cada

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vez maiores, nos governos ao redor do mundo e a evolução da tecnologia. Considerando, é claro, os projetos em andamento.- É possível captarmos recursos antes disso? - a dúvida de Rachel era a mesma de todos.- Provavelmente em dois anos, logo após o IPO de Wagner. A previsão é captarmos algo em torno de 500 milhões a um bilhão de dólares.- A utilização compulsória de painéis solares não vai prejudicar os outros projetos? - a pergunta de Max era direcionada a Bruno.- Não — Bruno assegurou com convicção. — Embora a utilização de energia solar encareça a implantação das fábricas, cada projeto tem um potencial grande demais e pode absorver o impacto. Os benefícios são maiores a longo prazo. A menor dependência das flutuações de preço e qualidade da energia nos dará um diferencial competitivo e só a utilizaremos onde for coerente com a abundância de sol. Do ponto de vista dos investidores é patente hoje a prefe-rência por empresas verdes que utilizam mais racionalmente a energia. Isso vai ajudar os IPOs e a valorização das ações a longo prazo.Todos se voltaram para Natan, distraído na discussão de detalhes com Wagner. Diante do pigarrear propositalmente estridente de Max, ele se voltou para a mesa.- Não tenho mais a acrescentar agora. Tecnologia não é meu forte e precisarei de mais dados antes de formar uma visão mais clara.- Para mim está ótimo, Natan - garantiu Bruno, preocupado em demonstrar seu suporte ao

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trabalho do amigo. — O principal está aí. Querem uma pausa para o café?Ninguém achou necessário. Já haviam se servido na mesa de apoio de tempos em tempos e estavam todos excitados demais com a primeira reunião. Após o seu final, diria a verdade a Natan sobre seu projeto. Não o fizera antes por absoluta falta de tempo e contava com a compreensão dele.- Marco?- Também não fiz PowerPoint. Para falar a verdade esqueci. Fiquei tão empolgado com as informações e pesquisas... - Marco ria levemente, desconcertado. Sempre fora difícil falar em público. Seu trunfo era não se intimidar, mesmo quando a gagueira ameaçava dominá-lo. - Bom... Que tal um sedan ou uma station wagon funcionando a energia elétrica, recarregável em tomada caseira e com autonomia de seiscentos quilômetros, capaz de atingir cento e vinte quilômetros por hora? Que tal se o preço final for equivalente aos similares à gasolina? — claramente causara o impacto desejado. Todos o encaravam com profundo interesse. Afinal, era um assunto de alta repercussão na mídia do qual todos tinham algum conhecimento. Marco sorriu. — Temos como adquirir o controle acionário da Yenioio Automotives, uma indústria chinesa em ascensão. Seu projeto precisa de caixa para lançar este modelo em um ano, logo estão dispostos a negociar. Com a tecnologia da Sun&Light do projeto de Natan podemos ampliar a autonomia para quase dois mil quilômetros,

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atingindo velocidades de duzentos quilômetros por hora.- Impressionante! — Rachel deixou escapar. De todos, ela e Marco pareciam os mais relaxados, mais felizes e a atitude os aproximava, gostasse ela disso ou não.Àquela altura o ambiente exalava energia. Apenas o interesse claro em cada novo projeto apresentado impedia a eclosão de conversas paralelas. Mesmo ao levantar para se servir de salgados ou tomar um café, ninguém desviava a atenção da mesa. Era como se um jogo de pôquer de altas apostas estivesse acontecendo. E ninguém parecia estar perdendo.— Temos algumas alternativas de trabalho. A mais promissora aproveita o fato de Detroit estar em frangalhos. A oportunidade é única. Nunca tantos entrantes penetraram o mercado automobilístico. Normalmente a Yenioio seria uma aposta tão boa quanto uma dezena de outras surgindo pelo mundo. A tecnologia da Sun&Light transformam esta realidade. Com um investimento de um bilhão de dólares no primeiro ano podemos lançar um IPO e captar de 2 a 5 bilhões após o lançamento dos primeiros modelos utilizando a nova tecnologia. No terceiro ano, se tudo der certo, podemos fazer um segundo IPO absorvendo de 10 a 15 bilhões do mercado.— Vamos ter capital para todo esse investimento? — Max apresentou a questão a Bruno, cuja semente estivera em cada membro do grupo desde as primeiras incursões em seus respectivos projetos e, embora a preocupação

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fosse grande, ninguém tivera a coragem para fazer a pergunta. — Que nível de endividamento pretende assumir?— Não vamos nos endividar. Bem... Provavelmente não será necessário.A afirmação pegou quase todos de surpresa, Max e Marco se mostraram especialmente incomodados, inquietos, ajustavam a postura e a posição das cadeiras no aguardo de maiores explicações. Eram suficientemente conhecedores dos trâmites do mercado para reconhecer a incoerência da afirmação. Não se endividar normalmente significava não crescer. Todos começaram a falar ao mesmo tempo até serem interrompidos pelo som mais alto da voz de Bruno.— Calma! Deixem-me explicar! - a voz ampliada e a entonação séria fizeram efeito. - Eu e Adrianna vamos usar todo o nosso capital particular. Isso deve animar os investidores. Precisaremos casar os cronogramas de trabalho de forma que os projetos com menor tempo de retorno sejam utilizados para financiar os outros. Parte da captação dos IPOs será utilizada para investimentos em outros projetos. Nem eu nem Adrianna retiraremos dinheiro da empresa, nem salário nem bônus. Tudo será revertido para novos projetos. Se for necessário recorreremos a empréstimos — o grupo parecia ainda ter dúvidas. — Senhoras e senhores já fiz as previsões financeiras e não há com o que se preocupar por enquanto. As contas da Lima World Investments estarão abertas para a

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consulta de vocês a qualquer momento, Angeluce lhes mostrará o aplicativo. Só nós oito e a diretoria Financeira tem acesso. Mais tranqüilos assim?- Não se trata de confiarmos ou não na sua avaliação - Max fez questão de esclarecer — contudo sempre é melhor avaliarmos por nós mesmos, nos dá confiança para discutirmos os projetos internamente e com os parceiros.- Claro... Quanto mais transparência melhor. Dúvidas sobre o projeto do Marco? — após uma breve pausa, sem a menção de perguntas, ele continuou. — Se importa em finalizar Cris?- De modo algum - ela abriu também seu laptop. - Não ia fazer uma apresentação, mas quando vi Max preparando não ia fazer por menos...- Aí pediu para ele fazer uma para você! - Wagner brincou. Todos riram.- Obviamente! — Cris assegurou. Imediatamente apareceram os mesmos tópicos da apresentação anterior na tela denunciando a cópia do modelo. Todos riram mais uma vez. — Como vocês também devem se lembrar, a Cellular Growth, empresa de São Francisco, Califórnia, possui um estudo extremamente avançado sobre regeneração de células epiteliais. Os experimentos deles têm relação estreita com a teoria geral de regeneração celular do Dr. Taub Schiller, residente na Coréia do Sul. Contudo, para nossa felicidade, esta relação não é óbvia. De fato, preciso enaltecer os conhecimentos da Dra. Adrianna. Ao se aprofundar nos dois trabalhos ela encontrou uma subcadeia de

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proteínas comum aos dois trabalhos. Tudo aponta para a possibilidade do trabalho da Cellular Growth confirmar a teoria do Dr. Schiller. Se isso for verdade pode-se expandir o processo, corrigir os rumos da sua pesquisa e atingirmos o objetivo final. A cura da Leucemia.- Há incertezas demais aí, não? — Marco ressaltou.- Trata-se de uma mostra apenas de que era humanamente impossível confrontar os dados e dar um parecer médico em tão pouco tempo. Não queria parecer ufanista. Seguindo estritamente o relatório final da Dra. Adrianna, e não posso dizer que encontrei falha alguma no processo utilizado por ela, a combinação tem alto grau de probabilidade de funcionar — suas feições se contraíram de forma indescritível denotando a dúvida sobre como prosseguir. Inesperadamente ela se levantou e, calmamente, circulou a mesa criando uma atmosfera de expectativa quanto as palavras seguintes. — Meus amigos, não se trata apenas de um negócio. É ciência médica. Não há como estimar neste momento o potencial quantitativo de sucesso. É certo, contudo que essa é uma oportunidade de ouro. Vou mergulhar nela de cabeça. Faria isso mesmo não havendo um tostão de lucro envolvido. As probabilidades são fortes o suficiente para que eu acredite no projeto. O benefício é maravilhoso demais! - sua voz ganhou um tom enfático e seus lábios denunciavam a excitação. Apressou o passo, sentando-se e acionando o próximo slide.

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Um pequeno resumo dos dados da doença no mundo foi detalhado por Cristiane. Números atuais, progressão, taxa de sucesso no tratamento e expectativa de vida. Eram recheados por fotos de pacientes, especialmente crianças, acompanhando cada nova informação apresentada em uma seqüência projetada propositalmente para sensibilizar a platéia. Fora concisa e emblemática. Por fim, chegou aos dados do negócio.— A expectativa de chegarmos a um medicamento eficiente é de vinte anos, contudo as perspectivas não param aí. A mesma base protéica pode dar resultado em vários tipos de câncer. É temerário estimar um número como o potencial financeiro para uma droga como essa. Não existe paralelo. Um medicamento capaz de curar o câncer em um conjunto de aplicações. Certamente, estamos falando de bilhões de dólares.— Qual o valor de mercado da Cellular Growth, hoje? Temos indicação de que seja possível trazer o Dr. Taub para o nosso lado? - Wagner inquiriu pragmático.- A empresa tem participação do governo americano, através de incentivos tributários, o que dificulta as coisas.— Eles têm leis protecionistas fortes nessa área — embora receoso por Adrianna, o projeto também empolgava Natan. Ele não podia negar.— E verdade. Nosso trunfo é o fato do negócio principal da Cellular Growth ser o fornecimento de bandagens especiais e equipamentos para

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conservação de peles artificiais. Teoricamente não deve ser considerada estratégica. Este é o primeiro ano deles na indústria farmacêutica com patentes relacionadas à atenuação da rejeição de enxertos de pele e a alguns antibióticos específicos. Não deve ser tão complicado. A empresa está avaliada hoje em 250 milhões de dólares. Quanto ao Dr. Taub, tomei a liberdade de marcar uma reunião na próxima semana em Seul. Estou confiante em sua empolgação quando liberar algumas informações sobre o projeto.— Qual o principal revés passível de enfrentarmos? — Rachel perguntou.— Vamos gastar pelo menos 300 milhões e um ano antes de termos um plano de negócios decente — olhares levemente preocupados se cruzavam sobre a mesa - e eu não trocaria este projeto por nenhum dos de vocês - Cris sorria, a empolgação traduzida em suas feições.— Muito obrigado, Cris. Excelente apresentação! - Bruno virou-se para o restante da mesa. - Este tipo de projeto nos define como organização. A incerteza não é um defeito, é a virtude que nos recompensará. A indústria farmacêutica movimenta trilhões pelo mundo. Com este projeto teremos a chance de mudar a vida das pessoas no nível mais básico possível, o da vida versus a morte. Os benefícios valem o risco — seu olhar era intenso. A idéia lhe transmitia energia, principalmente pela certeza dada por Adrianna de que aquela proteína era a base do Alpha11. Se necessário, ela interviria para

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corrigir o rumo da pesquisa. A certeza de estarem no caminho da disseminação de um bem tão grande aquecia seu coração apaziguando suas incertezas. - É para isto que estamos aqui. Não é por acaso que o fundo de investimentos se chama Ações Para um Mundo Melhor. Teremos revezes, é claro. Talvez um ou dois projetos aqui deem prejuízo e sejam abandonados. Não há como fugir dessa realidade. Os outros terão a missão de compensá-los financeira e emocionalmente e estou seguro de que as probabilidades estejam a nosso favor. O importante é a empolgação de vocês em torno de cada negócio. Isso já é meio caminho andado na direção do sucesso - Bruno fez uma pausa iniciando um sorriso para quebrar o clima sério. - Mas, só por precaução, sugiro a distribuição do capital próprio de vocês entre todos os projetos.A mesa em coro sorria em retribuição. As palavras foram interpretadas corretamente. Um misto entre auto-confiança, ufanismo e pés no chão. A mensagem foi recebida individualmente de forma diferente, porém sempre positiva. Independente do peso dado por cada um ao sonho ou à segurança, estavam diante de um empresário de visão e extremamente competente.- Gostaria de relembrar o motivo maior disso tudo — ele continuou. — Na busca pela objetividade deixamos de ressaltar alguns benefícios importantes de cada projeto. A BioRAM, de Max, é biodegradável. Estaremos contribuindo para reduzir em milhares de

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toneladas o lixo eletrônico, ajudando o planeta a voltar a ser habitável. As roupas autolimpantes gerarão milhões de litros em economia de água, um dos maiores problemas para o futuro da humanidade. Ao estimular a utilização de luz solar e eletricidade, reduzimos a emissão de poluentes gerados pelos carros, usinas termoelétricas e nucleares, contribuindo decisivamente para um mundo mais limpo. Com equipamentos médicos portáteis e baratos, apoiaremos sobremaneira o processo de melhoria das condições de vida, seja em cidades do interior da Bahia ou nos recantos da África. Sem mencionar o que a Fênix Farmacêutica e a Cellular Growth farão pelos milhões de doentes de Alzheimer e Leucemia pelo mundo — fez uma pausa de efeito encarando cada um, olhos nos olhos. — Talvez nenhum outro grupo empresarial no mundo tenha a oportunidade de realizar tanto pela humanidade quanto nós nos próximos dez anos.Sua voz era grave e perene. A energia permeava suas palavras com a certeza de quem acredita. Seus olhos brilhavam ressaltando sua convicção. E um a um cada membro da mesa se sentia tocado. Era impossível permanecer descrente diante das possibilidades. Não era preciso ser idealista, bastava ser humano. As palmas e sorrisos irromperam naturalmente.- Obrigado, gente. Como já são 12h30 podemos começar as reuniões individuais à tarde. A partir das 14h30 farei uma reunião individual com Natan, uma com Wagner na seqüência,

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finalizando com Marco. Em paralelo, Adrianna vai se reunir com Cristiane e depois com Rachel. A reunião com você - dirigia-se à Cristiane - deve demorar. Adrianna pretende te envolver no projeto da Fênix sobre o Alzheimer se for do seu interesse.- Com certeza! — Cristiane respondeu com um sorriso nos lábios.- Eu imaginei que sim.- Eu e Natan queríamos falar com você antes do início das reuniões, pode ser? - Wagner inquiriu.- Claro. Preferem agora ou às I4h30?- Duas e meia é melhor - disse Natan.- Fechado. Fiz reservas para almoçarmos todos juntos no Alfredo's aqui perto. Topam?

O convite já era esperado, afinal era o primeiro dia de trabalho contando com a presença de todos os membros do projeto Infinito. No restaurante, Adrianna já os esperava. Foi bem recebida por quase todos, contando com especial e inesperado carinho vindo de Rachel. Um abraço e uma mensagem em voz baixa. - Estou muito feliz por vocês - desconcertou a namorada de Bruno. A sinceridade da loira era perceptível. Sentiu-se desarmada e um pouco envergonhada pelos pensamentos que nutrira até então. Natan foi forçadamente agradável, mal escondendo seus reais sentimentos. O leve constrangimento inicial se dissolveu rapidamente e o almoço transcorreu normalmente. As conversas invariavelmente navegavam sobre os negócios discutidos na reunião da manhã. Cris e Rachel

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eram as mais empolgadas contaminando Adrianna com sua felicidade. O clima era animado e confiante. Tudo parecia transcorrer de acordo com os desejos de Bruno. Ao final do almoço, quando atravessavam as portas do Alfredo's Rachel se aproximou dele. Conseguira um momento a sós quando ainda estavam suficientemente distantes dos outros.— Bruno, gostaria de te agradecer — ficaram frente a frente a poucos passos do jaguar verde-musgo. - Estou muito feliz e empolgada com o projeto. Obrigada pela confiança.- Isso me deixa muito feliz, Quel. Eu também agradeço pela confiança em mim.Logo todos se aproximaram dissolvendo naturalmente o assunto. Bruno se sentia feliz. Era verdade. Da mesma forma a sombra da mentira pairando sobre ele impedia sua plenitude. Por mais que minimizasse a culpa estava lá, provocando suas mazelas.

No escritório, Natan e Wagner seguiram Bruno atravessando a porta de sua sala onde ocorreria a pequena reunião. A quantidade de monitores e televisões chegava a confundir a visão. O ambiente era dividido virtualmente em duas partes. Imenso, se considerado o seu propósito. A primeira era uma sala de estar, composta por três poltronas, uma mesa de centro e um sofá. O conjunto formava um "U" confrontando uma TV de plasma de 50 polegadas e um móvel de apoio onde equipamentos de DVD e video-conferência podiam ser identificados. No extremo oposto do

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"U", uma porta dava acesso a um pequeno closetz um banheiro totalmente equipado. Mais adiante uma mesa em "L" criava duas estações de trabalho distintas. Uma "perna" do "L" formava a mesa de trabalho propriamente dita com caneta papel e alguns porta-retratos. Nas costas da cadeira a parede era totalmente de vidro transparecendo a visão acinzentada da cidade e do rio Pinheiros. A outra perna do "L" formava uma estação de trabalho para a operação em bolsa. A cadeira dava acesso ao computador e três monitores de 20 polegadas onde gráficos desenhavam as movimentações dos papéis selecionados. Atrás deles, colado à parede, um móvel de apoio parecia servir para guardar arquivos e materiais de escritório. Sobre ele alguns enfeites e porta-retratos compunham juntamente com os quadros de pinturas modernistas na parede uma imagem agradável e condizente com a parafernália eletrônica. No lado oposto mais um móvel de apoio repleto de equipamentos para reprodução de vídeo encimado por outras duas TVsLCD de 40 polegadas. Uma ligada na Bloomberg, canal direcionado ao mercado financeiro e outra apresentando diversas linhas com cotações de diversos papéis da bolsa. Bruno se sentou na poltrona de cabeceira no ambiente da sala de estar, Natan e "Wagner em cada lado.- Caramba! E eu pensando que meu escritório era grande. - Wagner falou em tom de brincadeira, quase rindo.

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- Precisa ser grande. Às vezes passo dias aqui sem ir para casa.- Então precisa de uma cama - Natan comentou.- Na verdade este sofá é um sofá cama — sorriu.- Não admira você ter ficado tanto tempo sem namorada — todos riam acompanhando o bom humor de Wagner.- E então? - Bruno perguntou aos amigos.- É o seguinte - Wagner iniciou. - Os projetos designados para nós são ótimos e por estarem correlacionados conversamos algumas vezes nestes três dias. Pareceu-nos ser mais sinérgico se Natan trabalhasse no projeto da ressonância magnética portátil, afinal ele é médico. E, considerando minha formação em engenharia eletrônica, eu ficaria mais a vontade no projeto dos painéis solares. Também estaríamos mais alinhados aos nossos interesses pessoais.- Para falar a verdade a gente não entendeu os motivos por trás da escolha. Talvez se você nos explicasse... - Natan foi cuidadoso e profissional na argumentação. Não gostaria de criar imposições desse tipo apenas em função da amizade.- Na verdade eu peço desculpas. Houve um pequeno mal-entendido com Milena, minha secretária. Ela deveria ter dado ambos os projetos para os dois estudarem, informando que trabalhariam juntos. A decisão sobre quem ficaria a cargo de cada um seria de vocês. Só percebi o problema quando vocês iniciaram a apresentação. Então decidi acertar tudo nas reuniões individuais. Felizmente vocês se

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adiantaram. Como é imperativo conhecerem ambos os projetos, podemos trocar sem maiores problemas. Não acho necessário demitir a Milena — ele ria do próprio exagero, acompanhado pelos outros.- Não, de jeito nenhum... Agora faz sentido. Fica certo assim então. Você toca o negócio relacionado aos aparelhos portáteis de ressonância e eu o da Sun&Light. - Wagner se dirigia a Natan- Perfeito para mim. Essa era a minha intenção inicial - Natan respondeu.- Agradeço a compreensão, gente. Só peço uma exceção - Bruno detestava enganá-los mais uma vez, mesmo em algo tão inocente, contudo, após iniciadas as mentiras náo podiam mais ser paradas se tornavam uma verdadeira bola de neve. — Eu soube esta semana de uma proposta de aquisição da Sun&Light oriunda de uma empresa inglesa. Será necessário contra-atacar com urgência. Preciso que voem para o Arizona o mais rápido possível. Hoje ou amanhã. E como Natan está mais a par de tudo o ideal seria ele conduzir essa negociação.Ambos concordaram e passaram então a tratar dos detalhes da negociação e a esmiuçar cada projeto. Preferiram trabalhar em trio. A reunião se estendeu por, aproximadamente, três horas. Ao final, Bruno pediu a Natan para permanecer na sala alguns minutos. Ao ficarem a sós, Natan tomou a palavra.- Você é um idiota! - Estava chateado, porém calmo.

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- Pode ser. Tem certas coisas contra as quais podemos lutar, Zoinho e outras em que a luta é inútil. Resisti o quanto pude. A verdade é que estou perdidamente apaixonado, meu amigo. Não fosse isso não teria me envolvido. Acredite. Não fique com raiva.- Estou com raiva, sim. E espero total transparência daqui para frente. Não quero mais surpresas.- Ok. Conte com isso — estendeu a mão pedindo um sinal de amizade. Natan cedeu a contragosto.- Foi para isso que você me segurou?- Também. Tem outro assunto. Milena não se enganou. Eu troquei os projetos de propósito em função de uma notícia de última hora. Não dava para falar por telefone então usei este artifício. - Natan estava intrigado. — Quem está querendo comprar a Sun&Light & Kerligan, ou melhor a Covet Power, controlada por ele. Não esperava um movimento tão rápido por parte deles.- Pelo jeito já tinha uma expectativa do interesse deles.- Sim. Tanto este quanto o projeto de Marco existem basicamente para atrapalhar os planos de Kerligan. São bons projetos. Tão bons quanto os outros analisados por nós. O diferencial é atrapalhar os planos de crescimento dele. Como disse, eu só não esperava uma ação agora. Preciso de você nessa negociação porque você sabe a importância e os motivos reais por trás das minhas iniciativas. Gaste quanto for preciso, só náo o deixe levar a empresa. Entenda Natan, esta é mais uma peça do quebra-cabeças para

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ele. Segundo nossas análises, ele está montando uma estrutura com diversas empresas voltadas a estabelecer uma independência das fontes de energia não renováveis.- Mais ou menos como estamos fazendo?- A diferença é o objetivo maior. Ele deseja ser um rei na Terra. Vai usar esse conhecimento para dominar a economia e a política de diversos países. Chantagem, intimidação, o que for necessário. Aí vai ser impossível vencê-lo.- Se tudo o que Adrianna diz for verdade.- Vamos trabalhar com esta hipótese até ela deixar de ser verdadeira, não é mesmo? Além disso, nós temos certeza de nossos objetivos. Faremos o bem à humanidade através desses projetos. Não vamos trocar o certo pelo duvidoso, ok?- Tudo bem, faz sentido. Por que você não vai?- Perceberiam claramente o quão grande é o nosso interesse. Poderia chamar a atenção de Kerligan para nós. Além de, fatalmente, aumentar o preço da negociação exponencialmente. Ligue-me a qualquer hora se precisar. Não se preocupe com a lucratividade da operação. Com a Fênix Farmacêutica e a Cellular Growth vamos curar todo tipo de câncer. Vamos fazer uma coisa maravilhosa e não vai faltar dinheiro para subsidiar os outros negócios.- São vinte anos para o medicamento para a Leucemia se tornar efetivo...- Imaginei que você havia percebido. Aquilo tudo é conversa. Não podia dizer a verdade para eles. A Fênix e a Cellular Growth são apenas uma

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fachada. Adrianna vai direcionar as pesquisas para a solução de todos os cânceres, é a área dela. Pode não ser capaz ainda de criar um soro para evitar uma variedade enorme de doenças, mas possui conhecimento suficiente para utilizar as drogas e tecnologias disponíveis hoje e desenvolver os medicamentos adequados a tipos específicos de enfermidades. Ela não pode chamar atenção. Então vai alterar os protocolos e dar idéias aos cientistas como fez na Fênix. Em menos de dez anos teremos tratamento para praticamente todas as doenças degenerativas. Vai ser lindo, meu irmão. Vamos ganhar tanto dinheiro que poderemos distribuir medicação gratuita para os países mais carentes - ele sorriu diante da perplexidade do amigo. — Pode colocar todo seu dinheiro no nosso fundo APMM sem susto. Você será um bilionário, meu velho.Natan não conseguiu segurar o sorriso. Mesmo desconfiado de Adrianna e chateado com Bruno reconhecia o conhecimento dela e acreditava na verdade das palavras do amigo. Pelo sim, pelo não, pressionaria Adrianna por resultados parciais, isto colocaria à prova suas promessas e garantiria retornos financeiros a todos. Se Bruno queria se descuidar, ele não cometeria o mesmo erro. A conversa terminou rapidamente em torno dos detalhes para a viagem. Marco já esperava na antessala por sua reunião e ele precisava se arrumar para a viagem.Na sua sala Natan fez as ligações necessárias e partiu para o hotel disposto a arrumar as malas. Mal notando um inusitado envelope azul sobre a

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mesa. A equipe de apoio já havia marcado uma reunião para o dia seguinte em Tucson, sede da Sun&Light e lhe enviado os documentos pertinentes acompanhados de uma bela apresentação sobre a Lima World Investments. Teria de estudar os detalhes com Wagner no avião ainda naquela noite. O Gulfstream os levaria ao destino. Um tradutor, um advogado e um membro sênior da equipe de apoio os acompanhariam. Lá, um advogado americano completaria a comitiva. Natan estava nervoso e estranhamente feliz. Aparentemente gostava de ser poderoso.

22. Quando menos se espera...

Eram 20h quando sua limusine parava em frente ao apartamento dela. Abriu a janela ao percebê-la se aproximando. O vidro fumê impedia a perfeita contemplação de sua silhueta. O vestido dourado colado ao corpo ressaltava duas características marcantes naquela mulher, ele pensou. Certamente, é segura de si, pois não tem medo de chamar atenção para sua beleza. E tem um corpo maravilhoso. Uma combinação perfeita de sofisticação e sensualidade. Simplesmente deslumbrante.A primeira reunião, uma semana após o primeiro encontro, durara apenas meia hora, como previsto. Fora o suficiente para perceber sua paixão pelo trabalho, sua inteligência e a energia própria da juventude. Havia muito se esquecera como era conviver com espíritos jovens. A

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senioridade dos seus conhecimentos e sua idade faziam-no conviver necessariamente com indivíduos mais velhos em Eiden. Embora aparentasse 45, segundo os padrões da Terra, já era um homem centenário. Os atributos de Olívia ascendiam a fagulha da emoção perdida desde que se separara da única mulher para quem se doara verdadeiramente. Embora não contasse com um final feliz, ainda lembrava-se dela com carinho. Outras reuniões se seguiram, agora por solicitação dele. Pediu que ela o acompanhasse em alguns negócios. Apresentou-lhe os projetos da Revolutions Power, se divertiu observando o brilho e a fascinação nos seus olhos. Solicitou uma apresentação das idéias de sinergia e integração entre projetos e empresas comentadas por ela. Olívia não decepcionou. Expôs com propriedade sua visão. Definiu de forma objetiva possíveis linhas de trabalho. Traçou planos, prazos e resultados bem determinados para cada uma. Nada novo para ele, porém destacava o intelecto dela. Afinal, não contava com o "processo de enriquecimento celular" para maximizar suas funções cerebrais. Ele não teve dúvidas, convidou-a para presidir a Revolutions Power. Uma decisão baseada no seu currículo. Nas teses defendidas, e, sobretudo, na confiança em sua capacidade pessoal de ler as pessoas, de revelar o potencial daqueles com quem trabalhava. Estava seguro da escolha.Aquela noite seria uma espécie de comemoração pela promoção. Definitivamente não pretendia se envolver com ninguém na Terra e MJ deixava

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claro sua desaprovação pela proximidade com Olívia. Marvolo não era tão experiente e temia a distração. Ele, ao contrário, era senhor de si. Se decidisse se envolver, e sabia da predisposição de Olívia para tal, os sinais eram evidentes para um observador treinado como ele, a despeito das óbvias implicações profissionais, se divertiria um pouco e pararia quando necessário.O ruído da porta sendo aberta por seu motorista o despertou do transe.- Boa noite, Arthur - ela disse enquanto entrava e o cumprimentava com um leve aperto de mão. Precisava deixar claro seu profissionalismo, embora intimamente estivesse profundamente confusa sobre o que fazer. Jamais encontrara um homem capaz de fazê-la colocar de lado sua carreira.- Simplesmente estonteante — o sorriso cativante estava lá, colocando em ação todas as suas armas de sedução.Ela sorria enquanto baixava levemente os olhos, não por vergonha ou timidez, era apenas seu jeito. Dava-lhe charme e impedia desvendarem facilmente seus sentimentos. Chegaram rapidamente a um dos mais exclusivos restaurantes de Londres. A iluminação fraca pedia as velas acesas sobre as mesas e compu-nham, ao lado da decoração clássica, um ambiente especialmente romântico. A vista para o Tâmisa completava o quadro. Definitivamente não era o local para uma comemoração de negócios.

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- Boa noite, Sr. Goldwill... Senhorita... Como vão esta noite? - perguntou o maitre educadamente.- Muito bem. Obrigado. Por favor, nos traga uma garrafa de Cristal safra 99.- Ótima escolha senhor, como sempre - e se retirou.- Nada melhor para uma comemoração, não é mesmo? — quando ele falou já estavam a sós.Ela sorriu, mas dessa vez olhou diretamente para ele. Os olhos cor de mel e sua beleza congelaram Arthur por um segundo. Ambos decidiam como prosseguir a partir dali. O momento foi quebrado pela chegada do Champanhe. Claramente já estava tudo preparado quando ele chegou, provavelmente por ser sua bebida usual e pelo tratamento VIP condizente com a estatura do cliente. Quando o garçom se retirou ele imediatamente fez o brinde à nova aquisição da Revolutions Power. Ela o acompanhou educadamente.A conversa fluiu com intensidade a noite toda. Ele evitando declaradamente falar sobre negócios, não se importando o quanto insistente Olívia fosse. Desviava habilmente qualquer referência a sua história. Havia há muito desco-berto que, independente de suas habilidades, ele cometia erros e a chance de ser pego em uma contradição não existiam quando não se falava nada sobre o assunto. Ela não estranhou. Nada mais natural para alguém na posição de Arthur Covet Goldwill que evitar falar da pobreza e dificuldades sofridas no passado. Compensava largamente a lacuna detalhando,

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empolgadamente, como construíra seu império. Perdia-se nas próprias palavras quando falava dos planos para o futuro. Era cativante.Olívia imaginava se ele era tão descontraído e aberto com todos. Nas suas oportunidades de contato anterior, fossem em reuniões de negócios ou no jantar onde o conhecera nos Estados Unidos, fora sempre sedutor e carismático, nunca aberto. Ela se contagiava com suas paixões, seus projetos de hoje e do futuro. Tudo parecia possível para ele e ela acreditava em cada palavra. Não havia como duvidar da certeza em sua voz. Da confiança em sua postura e suas expressões e, sobretudo, na energia em seus olhos. Seu sonho, um mundo melhor, independente de energias poluidoras, seria bonito em qualquer um. Nele, um dos homens mais ricos do mundo e, certamente, um gênio no campo da energia, era como uma realidade palpável. Ela estava profundamente entu-siasmada de fazer parte daquele sonho através da Revolutions Power. Porém naquele momento, inundada pela emoção, abandonaria tudo para se entregar em seus braços. O que não podia e lutava com todas as suas forças para garantir, era abandonar uma posição privilegiada como aquela por uma aventura. A despeito de seu claro interesse, ele a respeitaria caso se entregasse a uma paixão tão facilmente? Colocando em risco sua credibilidade como profissional antes mesmo de provar seu valor? Certamente não.

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Evitou suas investidas. Quando tentava tocar sua mão, ela fazia algum comentário no qual o gestual era necessário, livrando-se da possibilidade. Ao penetrar no campo dos assuntos do coração, ela desviava se descrevendo como uma mulher de negócios, cujo único interesse era obter resultados em suas funções, apoiar os exércitos e dirigi-los para a vitória. Sempre adorou metáforas relacionadas à guerra. Era estudiosa das estratégias empresariais e se considerava uma executiva agressiva. Os olhares e a linguagem corporal contradiziam suas palavras. Na maioria das vezes, de forma intencional, despejava mais sorrisos e maneios que de costume.Kerligan não estava exatamente confuso. Vivera demais e conhecera muitas mulheres. Ele reconhecia o jogo. Estava, contudo, impressionado com o talento dela em conduzir os dois papéis de forma tão competente. A executiva e mulher convivendo no mesmo corpo, no mesmo momento, de forma tão graciosa. Resolveu não insistir. Iria conhecê-la melhor e ver até onde aquilo tudo iria.Em certo momento ele recebeu uma ligação. Pediu desculpas e atendeu. Por um momento sua expressão tomou forma de um ódio profundo. Foi rápido o suficiente para não assustá-la, embora a deixasse em alerta. Pensou ser aquele o final da noite. Errou. Ele mostrou auto-controle e retomou o bom humor. Depois de ouvir bastante, sem dar uma palavra, falou uma única frase e desligou: "Paciência, gostaria de poder evitar isso.

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Infelizmente não vai dar. Inicie o plano "B". Comece pela opção mais à mão".- Algum revés? - perguntou Olívia.- Nada para discutirmos agora. Amanhã trabalhamos. Hoje vou apenas desfrutar da companhia de minha belíssima líder da Revolutions Power - voltava ao estilo sedutor, levantando a taça para mais um brinde. Ela aceitou o elogio e cedeu ao gesto.A noite terminou cedo e, como um bom cavalheiro, deixou-a em casa. Na despedida, novamente o aperto de mão. Dessa vez ele manteve o aperto e usou a esquerda para fechar um abraço em torno da mão dela.Kerligan manteve o pensamento preso na inteligente e linda mulher com quem passara uma agradabilíssima noite por boa parte do percurso até sua casa. Olívia por outro lado, envolta em fantasias mais apropriadas a uma adolescente segundo seu próprio conceito, demorou horas até finalmente ceder ao sono.

Três dias haviam se passado quando o celular tocou. Pelo identificador de chamadas Bruno percebeu que a ligação era internacional. Sua expectativa estava correta, era Natan. A despeito da insistência de Adrianna, havia se contido e não ligara para o amigo. Queria demonstrar confiança.- Fechado. Termo inicial de contrato assinado!- Maravilha! Fácil assim?- Óbvio que não. Tive que aumentar nossa oferta em mais de 40% para evitar o encontro dele com

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a concorrência. Ameacei que seria a última oferta e se recusassem, sairíamos do páreo.- Movimento arriscado.- Depois da apresentação que fizemos e preciso dar o crédito à equipe de apoio, eles ficaram entusiasmados. Quando mencionei a possibilidade de colocarmos em contrato a utilização dos painéis solares em toda fábrica nova das outras empresas do grupo localizadas em áreas com abundância de sol, ficaram extasiados. Não se preocupe, mencionei a utilização apenas como energia de apoio e reserva.- Isso vai ser um baque nos outros negócios. Colocar por escrito... O conselho vai considerar má governança corporativa garantir um fornecedor pré-definido. Tem margem para incluirmos a necessidade de uma tomada de preços com concorrentes como forma de garantir preço de mercado?- Desde que não tenham que ser sempre os mais baratos...- Não. Basta que a diferença com relação à média não exacerbe 10%.- Dá sim.- Parabéns, meu amigo. Estou impressionado com a rapidez e eficiência.- Ótimo, ligue para Wagner, ele está possesso. Não entendeu por que precisávamos oferecer tanto. Mencionei ter sido pré-aprovado por você e isso o deixou ainda mais irritado. Sabe como ele é, calmo, não estoura, mas dá para perceber quando está bem chateado.

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- Pode deixar comigo. Quando voltam?- Wagner volta hoje. Eu vou ficar mais uns dois dias ajustando detalhes.- Me avise quando estiver voltando. Vamos comemorar com estilo!- Ok. Vou indo.- Tchau.A voz do amigo náo continha entusiasmo. Era normal, ele pensou. Nunca havia interagido profissionalmente com Natan e a posição dele, tendo que mentir para Wagner não era confortável. Mais um motivo para uma celebração em estilo. Ligaria primeiro para Wagner, depois para Adrianna e, por fim, para cada membro da Infinito. Estimularia o espírito de equipe. O sucesso de um é o sucesso de todos. Afinal, ao investirem no fundo APMM estariam ganhando com o sucesso dos outros membros também. Queria que se ajudassem. Agissem como uma única entidade devotada a construir um mundo melhor. Torcia especialmente pela felicidade deles. Esperava que se encontrassem naquele trabalho.Não apenas pelo amor dele por cada um, mas também por sua consciência. Mentir para os amigos era um peso eternamente presente e razoavelmente doloroso. Natan era a maior lembrança daquilo. Portanto fazê-lo feliz era prioridade zero. Uma tarefa não muito fácil, ele reconhecia.

Apenas duas semanas como presidente da Revolutions Power e Olívia já se sentia

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embriagada pelo trabalho. Em todos os sentidos. Adorava fazer parte da mudança associada àqueles projetos. Desenvolver tecnologia de ponta e levar produtos inovadores ao mercado. Em contrapartida, a quantidade de informações com as quais lidava era assustadora. Para Arthur nada parecia demais. Não apenas mantinha sempre na memória todas as informações necessárias a cada reunião, sem necessitar consultar qualquer material, como liderava pessoalmente o direcionamento de cada projeto. Quando consultado, a tomada de decisão era rápida e objetiva. Nunca era preciso repetir o histórico do assunto se já o houvesse discutido anteriormente. Era fascinante assisti-lo nas reuniões com os gerentes de projeto. Dava a direção e sugeria os meios deixando apenas os detalhes para a equipe. Quando algum obstáculo parecia intransponível, e os cientistas e engenheiros se debatiam discutindo visões diferentes dos possíveis caminhos a seguir, ele normalmente encerrava a discussão abruptamente e indicava qual delas era o caminho adequado. Era curto e grosso, literalmente. Uma face totalmente diferente da apresentada ao público e da que conhecera até então. Mesmo assim nunca houve reclamações ou questionamentos quanto às soluções oferecidas. Era realmente um gênio e todos sabiam disso. Tudo o mais era amenizado pela aura de admiração ao seu redor. O jeito decidido e ríspido com as equipes não a incomodava. Era objetivo, como devem ser os grandes homens de

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negócios, respeitado acima de tudo. Não estava ali para fazer amigos e sim para fazer história.Ficou logo claro que aquela era a empresa do grupo para a qual Arthur dedicava mais tempo e isso, implicitamente, intensificava os contatos com Olívia. Não fora escolhida ao acaso. Ele realmente acreditava em seu potencial senão jamais a teria colocado no comando de seus principais projetos. Em duas semanas, além das reuniões semanais, se encontraram duas vezes para almoçar. Nessas ocasiões o clima era ameno e o assunto os negócios. Era, contudo, excessivamente delicado e galanteador. Também saíram duas vezes para jantar.A situação estava perdendo o controle. Ela já não sabia se resistiria a uma investida maior. Ele era charmoso, engraçado, inteligente em cada comentário e profundamente sedutor. Ela mantinha a estratégia original, dando-lhe margem para avançar apenas até certo ponto. Suas muralhas, entretanto, estavam prestes a ruir. Gostaria de poder recusar os convites, mas não seria polido considerando a relação profissional e, não fosse este o caso, mesmo assim dificilmente teria forças para tanto.A aura de mistério, inicialmente razoável considerando o status alcançado por Arthur, era muito superior ao considerado normal. Era determinado a não falar do passado. Jamais demonstrara qualquer saudosismo em ralação à terra natal. A única ligação com o passado ainda presente em sua vida parecia ser MJ, seu assessor, amigo e única pessoa a quem confiava

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seus segredos. E nem essa relação era completamente clara. Aparentemente se conheceram na Índia e se reencontraram na Inglaterra. Tudo indica que a família de MJ ajudara Arthur. Nunca tivera oportunidade de perguntar sua nacionalidade. Corria o boato de que era filho de missionários mórmons e de origem australiana. Nesta questão ela assumia parte da culpa. Nunca tocava no assunto, pois algo em Milton Jacobs Splitzer a assustava. Era provavelmente mais jovem que Arthur. Um homem bonito segundo os conceitos atuais. Olhos castanho-escuros, barba bem cuidada, cabelos negros e de altura um pouco superior a do amigo. Não era tão esbelto e não chegava a ser gordo. Se fosse forçada a emitir uma opinião diria que era ou fora, na juventude, um homem musculoso. O uso constante do paletó dificultava uma avaliação apurada. O problema não residia na aparência e sim na atitude, ou mesmo na falta dela. Parecia analisar eternamente tudo e todos. Era educado, porém jamais o vira sorrir esponta-neamente. Não discutia assuntos pessoais. Com os subordinados era claro e conciso nas ordens e absolutamente intolerante nas falhas. Certa vez o ouvira repreender uma secretária, e estava a duas salas de distância. Não parecia ter amigos além do próprio chefe. Sua influência sobre Arthur a incomodava profundamente. Bastava um olhar para fazê-lo abandonar uma reunião. Os assuntos sob sua tutela eram sempre mais importantes. Também não parecia gostar dela. Algo de certa forma irrelevante, pois não parecia

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gostar de mais ninguém. Dadas estas características, a metamorfose nas reuniões com clientes ou em locais públicos era impressionante. Tornava-se uma pessoa comum, agradável e sorrindo ocasionalmente. Alguém com tal controle de suas emoções certamente merecia, no mínimo, cautela.Se o passado era um grande vazio, o futuro era igualmente uma incógnita. Embora a Revolutions Power fosse o epicentro dos novos negócios, todos os projetos eram tratados de forma independente, aparentemente não havia relacionamentos entre eles. Cada um em si era inovador de alguma forma e não precisaria de maiores justificativas para existir. Mesmo assim ela imaginava algo maior permeando o futuro desenhado por Arthur. Além de sua percepção aguçada, a qual muito valorizava, certamente as medidas de segurança do complexo onde trabalhavam representavam uma pista da relevância do lugar. Scanners ópticos na entrada dos laboratórios. Senhas de segurança em cada andar. Câmeras em todos os laboratórios e corredores. Revistas pessoais e raios- -X nas entradas e saídas de cada funcionário ou visitante. O conjunto de recursos e procedimentos aplicados impedia o acesso indevido ao prédio e evitava a extração de qualquer mídia contendo dados dos projetos. Para garantir a segurança da informação pertinente aos projetos, sistemas redundantes de energia e telecomunicações, gerador próprio e armazém de dados no próprio local com réplica

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em outro prédio localizado em Cambridge garantiam autonomia em caso de panes. Mas, sobretudo, isolavam os dados em ambiente seguro. O banco de dados de projeto e o administrativo não se comunicavam para evitar a ação de hackers. Qualquer dado de evolução nos projetos precisava ser recadastrado no sistema administrativo. Eram cuidados excessivos se considerados os projetos individualmente.Descobrir o objetivo maior da Revolutions tornou-se um desafio pessoal e uma forma de provar, não apenas sua capacidade, mas também iniciativa para o chefe. Passava horas avaliando cada projeto individualmente, cogitando a área comum onde se sobrepunham ou se complementavam. Descartara logo de início a premissa levantada pela imprensa da criação do "carro elétrico do futuro", aquele cuja autonomia, desempenho e preço jogariam por terra a dependência mundial do petróleo. Era certo que estavam investindo naquela área, mas nada perto de ameaçar a hegemonia dos combustíveis fósseis. Além disso, muitos outros projetos heterogêneos recebiam orçamentos bem mais generosos. Chegou a se ater especialmente em dois projetos de grande orçamento cujos objetos destoavam da maioria e não combinavam em nada com os discursos de Arthur. Um, de apelido Precision, se propunha a desenvolver sistemas de controle extremamente precisos para mísseis de longuíssimo alcance, atuando inclusive em gravidade zero, permitindo o lançamento de projéteis a partir de estações satélites. O outro, o

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Space Vision, um radar de alcance igualmente longo, permitiria a detecção de corpos em movimento em velocidades supersônicas. Sem dúvidas uma bela fonte de dinheiro. Um era o antídoto para o outro, daria para ganhar nas duas pontas de uma guerra. Nada estranho con-siderando as atuais tensões geopolíticas. Mesmo assim chamavam atenção por serem estes os únicos projetos sequer remotamente ligados a área militar. Eram projetos de longa duração. Com objetivos desafiadores e capazes de fazer muito dinheiro. Contudo não o suficiente para justificar uma ruptura de paradigmas. Após horas de estudo entendeu que estava no caminho errado. Precisava mudar a perspectiva.Certa noite resolveu abandonar o ponto de vista inicial da pesquisa. Ao invés de buscar projetos, cujo o todo se destacava de alguma forma, passou a avaliar os detalhes de cada um procurando algum elemento destoante do seu objetivo geral, algo que não se encaixasse. Acreditou que esta era uma abordagem interessante. Se achasse algo fora do lugar, talvez isso representasse um objetivo oculto. Uma ponta da trama interligando as dispersas iniciativas da Revolutions Power. Arthur não apoiava a ciência pela ciência. Era um homem de resultados. Perseguia objetivos bem precisos. Abandonava os erros logo no início. Dessa forma, não sustentaria uma iniciativa por muito tempo sem que ela estivesse adequada às suas premissas.

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A tarefa se mostrou ingrata, longa e cansativa. Como subproduto passou a entender nuances de cada projeto a ponto de causar espanto e admiração nos subordinados e gerentes de equipe. Abençoou a formação em engenharia. Graças a ela conseguia acompanhar os relatórios sem a necessidade do apoio de terceiros.No final da quarta semana encontrou algo no mínimo curioso. Um dos projetos pretendia conceber um sistema eficiente, do ponto de vista técnico e econômico, para gerar água potável a partir dos oceanos. O projeto tinha o codinome de Planeta Água. Tecnicamente era perfeito, contudo se avaliado do ponto de vista da viabilidade econômica poderia ser considerado um escândalo. Questionara Arthur e recebera em troca um "confie em mim", e em outra ocasião, um "estou a par". Prometeu discutir mais detalhadamente a posteriori. O assunto surgira nas últimas duas semanas e não se encontraram pessoalmente no período em função de viagens constantes dele. Não era assunto para tratarem por video-conferência, portanto aguardava a reunião da próxima semana. Aquele distanciamento em nada refletia um comportamento atípico. No ínterim, outro elemento chamou sua atenção. Um subproduto do processo. As turbinas oceânicas por onde a água era conduzida como parte do tratamento eram alimentadas por geradores a diesel. Todo o sistema funcionava em plataformas marítimas semelhantes às petroleiras. Olívia percebeu que o consumo de energia do processo era baixo no

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momento inicial e se tornava gigantesco a partir daí. Aquilo não fazia sentido. Seria um dos principais elementos encarecendo o produto final, além do custo inicial da plataforma em si. Resolveu intensificar sua pesquisa naquele ponto. Do ponto de vista técnico não fazia sentido. Se os projetistas não fizeram comentários sobre isso nos relatórios, certamente ou foram orientados por Arthur ou era um erro escondido até agora. Teve uma iluminação. Avançou sobre o telefone em sua sala. Não se importava se eram 22h de sexta-feira. A secretária, de plantão até àquela hora, fez um conjunto de ligações inoportunas e mal recebidas. Todos os engenheiros, físicos e cientistas de outro projeto, completamente não relacionado ao Planeta Água, foram convocados. Passariam o final de semana em reclusão. Venderia o peixe como análise crítica de projeto. Teoricamente estariam ajudando a encontrar pontos fortes e fracos no empreendimento sob uma nova perspectiva, livre dos vícios do olhar contínuo daqueles em contato cotidiano com o mesmo.Sempre fora de arriscar e confiava em seu olho clínico.

No domingo de manhã passou pelo laboratório. Os mesmos cientistas mal-humorados e reticentes da reunião inicial no dia anterior pareciam em êxtase. Andavam freneticamente de um lado a outro consultando colegas e pesquisando informações. O mais velho deles, o

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líder de projeto, doutor Jacob Asperson Doyle, um rechonchudo senhor de 60 e poucos anos, era o mais frenético. A careca lustrosa agora suava apesar do ar-condicionado. O tom revoltado do dia anterior e semblante sério foram substituídos por um sorriso exultante.- Olívia! Fizemos uma descoberta fantástica - disse o homem enquanto se dirigia a ela -, acho... Não, tenho certeza. Vamos ser extremamente úteis.- Bom dia para você também, Jacob - ironizou sorrindo da eloqüente introdução. - Vejo que a raiva passou - brincou. Era parte de seu trabalho manter equipes felizes e precisava compensar de todas as formas o ambiente criado por ela mesma para aquela tarefa.— Desculpe-me. Estou tão empolgado que me esqueci dos modos. Bom dia.— Vamos ao meu escritório. Ê melhor conversarmos lá sem distrair sua equipe.— Claro... Claro.Ambos seguiram calmamente e só começaram a falar quando Olívia se sentou. Jacob mal se continha. O sorriso de lado a lado bem poderia ser acompanhado de gritos de eureca. Olívia morria de curiosidade, porém precisava manter a imagem de executiva fria cujos passos eram certeiros e calculados.— Para falar a verdade não sei como isso passou pelos meus colegas do projeto "H2ALL"...— H2ALL?!— É um apelido — explicou o homem. — Planeta Água é muito comprido não acha? - ela

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aquiesceu. - Continuando, eu não sei como os colegas não perceberam... - Encenou certo desconforto em tratar do assunto antes da alfinetada. Jacob sabia que os colegas tinham alguma razão para não colocar suas descobertas claramente no relatório, mas isso não interessava. Ou Olívia sabia da descoberta ou não sabia. Se fosse a primeira opção eles ganhariam pontos por ter percebido. Se fosse a segunda e ele torcia por ela, a equipe H2ALL estava em apuros. Ele daria quase tudo para liderar um projeto como aquele e náo hesitaria em levantar dúvidas sobre os colegas se fosse necessário. — Talvez seja a maior descoberta dos últimos sessenta anos. - Ele sorria e balançava a cabeça olhando as anotações no bloco em sua mão direita.Adrianna percebia o jogo, Jacob queria entender se ela já sabia da descoberta. Apesar da pouca idade em comparação, se considerava anos luz acima do oponente no teatro corporativo. Manteve o rosto firme e calmo. Como o efeito desejado não acontecia, Jacob iniciou a explicação.— Bem. O projeto está perfeito, dentro do prazo e apresentando resultados técnicos consistentes. A viabilidade econômica não existe ainda o que em si não significa nada. Escala, novos estudos, aperfeiçoamento, tudo está previsto no projeto. Chama atenção, contudo, um subproduto do processo de turbilhamento da água — pausou calculadamente medindo a reação da chefa. Nada, seu rosto era impassível, então continuou:

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— Depois de iniciado o processo notamos o aumento do consumo de energia em níveis exponenciais. Investigamos a fundo e descobrimos o motivo. As correntes marinhas geram seu próprio fluxo, sua própria velocidade ao passar pelas turbinas. O rotor passa a trabalhar para compensar a diferença. É quase como se deixássemos um carro na primeira marcha descendo uma ladeira íngreme, o motor funciona como um freio, dificultando a descida, entende?Um bilhão de sinapses extras pareciam ocorrer no cérebro de Olívia. A adrenalina percorria o seu corpo. De repente estava alerta. O coração batia acelerado. Suas energias foram subitamente direcionadas para manter o rosto impassível fingindo estar ciente de tudo. Ela começava a entender o significado daquilo e suas ramificações. Resolveu presentear o interlocutor com um sorriso de satisfação, uma pista falsa insinuando contentamento por Jacob ter descoberto algo já de seu conhecimento. Como se o trabalho fosse um teste das habilidades de sua equipe.- Na verdade estamos atrapalhando - ele continuou. - O sistema não apenas pode rodar sozinho utilizando a força das correntes marinhas, como deve poder gerar, com pequenas modificações, três a cinco vezes mais energia do que está consumindo hoje. Cada plataforma dessas teria potencial para iluminar uma cidade como Londres! E, considerando os custos, teríamos energia mais barata que a Atômica,

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Hidrelétrica ou Térmica, com mínimo impacto ambiental. Fora a água! — o riso se libertava espontâneo em meio às palavras. — A água sai de graça! Existem dificuldades, é claro. São estudos. É preciso confirmar dados, desenvolver protótipos, principalmente a utilização de micro turbinas para estabilizar os equipamentos em alto mar. É necessário também prever melhor o comportamento das correntes e condições meteorológicas. Enfim, não é para amanhã...A cabeça de Olívia girava. Estava espantada, entusiasmada, e, um pouco decepcionada. Espantada com o gigantismo da descoberta e entusiasmada com as possibilidades, com a relevância para a vida da humanidade. Sentia, contudo, que Arthur não a tivesse envolvido mais no projeto. Pelo jeito ainda teria muita confiança a conquistar. Impressionada com a própria capacidade de manter o teatro, emendou uma pergunta na qual deu a entender que conhecia a resposta, o que, obviamente, não era verdade.- E a transmissão da energia para Terra? Entendeu como será feita? - O rosto transmitia serenidade, como se Jacob houvesse passado em alguma prova e faltasse apenas a última questão.— Não, mas como aparentemente você já sabia de tudo, poderia me explicar? - ele agora não aparentava mais os sinais do entusiasmo inicial. Não conseguiu empolgá-la. Aparentemente tudo fora apenas um exaustivo teste.— Infelizmente ainda não posso lhe informar. Por enquanto é só Jacob. Pode liberar a equipe.

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Apenas me prepare um relatório resumido com suas principais sugestões e me entregue até o final do dia.- Como é? Não estou entendendo. Não quer maiores estudos, juntar as equipes? Pela grandiosidade do projeto pensei que estávamos falando de uma ampliação de escopo...- Calma, Jacob. Segure os cavalos. Sua equipe passou no primeiro teste. Pretendo ampliar o intercâmbio entre os projetos e a empolgação do time provou que estou certa. Só temos a ganhar - diante da frustração do interlocutor resolveu jogar um osso. - Arthur ouvirá muitos elogios relativos à disponibilidade e competência da equipe e quando decidirmos pela ampliação não tenha dúvidas de quem encabeçará a lista. Muito obrigada por tudo - apertou sua mão enquanto o conduzia à porta o confuso e frustrado cientista. — Há, e lembre a todos da nossa exigência quanto ao sigilo. Não comentem com abso-lutamente ninguém sobre o que aconteceu neste final de semana, sobre pena de contaminar novos testes.Olívia fechou a porta e sorriu. Avançou voraz sobre o computador pesquisando um projeto específico, de baixo orçamento e por isso ignorado por ela até agora. O projeto era chamado Supervia de Energia e se tratava de transmissão de massivas quantidades de energia em cabos ultrafinos feitos com uma liga especial desenvolvida a partir da teoria dos supercondutores. O problema era o custo altíssimo. Para funcionar bem os cabos

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precisavam ser submetidos a uma pressão gigantesca. O problema em terra era a solução no mar. Estruturas submarinas teriam sobre elas pressão suficiente para a operação sem custos extras. Bastava conectar as plataformas com a terra através de cabos lançados ao mar. O custo provavelmente se diluiria no projeto como um todo e vários cabos poderiam ser lançados para evitar transtornos em caso de ruptura. O sorriso de glória lhe veio instintivamente ao rosto.

A.C. Goldwill recebeu a ligação durante uma reunião com banqueiros em Tóquio. Fosse outra pessoa não hesitaria em ignorar. No caso em questão poderia pensar em duas ou três boas razões para atender. Educadamente pediu um minuto e se afastou ciente do quão mal-interpretada seria sua reação para os orientais.- Boa noite, Olívia.- Noite? Onde você está?- No Japão.- Sinto muitíssimo. Seria preferível ligar em outro momento?- De forma alguma, preciso estar disponível para minha CEO predileta - para ela, sempre sua face mais sedutora. — Só não posso me delongar.- Preciso muito de um jantar com você, apenas nós dois — disse ela.Arthur sorriu. Aparentemente o planejado sumiço de duas semanas dera resultado. O jantar só podia significar a rendição dela aos seus sentimentos por ele.

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- Coincidentemente estarei em Londres amanhã. Pego você às 20h em sua casa.Fácil demais, ela pensou. Sem perguntas? Decidiu não questionar a sorte e concordou. Desligaram logo em seguida.

Tinha a intenção de surpreendê-lo. Tratar daquele assunto em um jantar a dois cumpriria seu objetivo além de poder elogiá-lo e enaltecer suas qualidades sem parecer bajulação. Demonstraria sua competência deixando-o sem opção senão desnudar seus planos. Resolvera vestir algo menos sensual. Calça preta e sapatos prateados incrustados de brilhantes. Na camisa de manga comprida, branco e prateado se misturavam em minúsculas estampas de fino gosto sobre o fundo azul bem claro. As mangas eram largas e se estendiam até o meio dos antebraços. Combinavam com colarinho longo em estilo moderno. Um colar de brilhantes adornava o decote formado pela gola semi-aberta. No lugar do cinto uma corda de brilhantes circulava três vezes a cintura. Ao se mirar no espelho ficou satisfeita com o resultado. — Menos sensual, sim, menos bonita, jamais — repetiu para si mesma. O telefone a despertou do transe. Era ele.- Sempre pontual.- Existem pessoas a quem devemos fazer esperar. Por outras, vale a pena esperar - falou em tom provocativo.- Sempre lisonjeiro. Desço em um minuto — e desligou.

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Um pequeno sinal amarelo apareceu em sua mente. Como ficariam aqueles jogos velados de sedução quando o confrontasse? Sabia que estava apostando fichas altas no campo profissional ao conduzir uma investigação relativa a negócios cuja abrangência ele preferira não comentar ainda. Com aquele tipo de aposta ela estava acostumada. Subira na hierarquia corporativa a base de lances como aquele e estava pronta para pagar o preço. Não lhe ocorrera até então o risco de perder a intimidade conquistada junto a Arthur. E se ficasse ressentido pessoalmente com a atitude? Se sentisse traído, decepcionado? Incrivelmente aquela hipótese lhe secou subitamente a garganta e acelerou o coração. Fosse como fosse, não era mulher de se conter, era audaciosa e confiava em si. Deveria seguir seus instintos.Ao abrir a porta do prédio avistou-o ao lado do carro. Rosas na mão e um maravilhoso sorriso nos lábios.- Parabéns — disse ele enquanto lhe entregava o buquê.- Qual a ocasião? - comentou sorridente.- Um mês de sua mudança para a Revolutions Power. Bem, tecnicamente um mês se completou no dia 21 passado, mas como não nos vimos desde então...- Não esperava que você se lembrasse. Muito obrigada, são lindas - deu-lhe um beijo de leve no rosto em agradecimento. Foi instintivo, não sabia se tomara a atitude correta à ocasião. A escolha

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das flores certamente dava um ar dúbio à coisa toda. Em seguida adentraram o carro. Passados alguns minutos trocando amenidades ela passou a conduzir a conversação. - Antes do restaurante gostaria de lhe falar em um ambiente digamos... Mais reservado. Podemos parar uns minutos? Pode ser logo ali - apontou para as margens do Tâmisa, em um ponto próximo ao Parlamento Inglês.- Aqui?- Gostaria do máximo de privacidade possível. É um assunto delicado. Ali não haverão ouvidos curiosos nos espreitando.- Tudo bem. Você ouviu a moça Albert. - Arthur estava sorrindo por dentro. Tinha dúvidas entre misturar seus planos com um romance, principal-mente pela insistência de MJ, mas aproveitaria o momento. Sempre poderia encontrar outro CEO, outra mulher como aquela já não era tão fácil.Saltaram e iniciaram a caminhada em direção ao parapeito. Albert, o motorista, recebera instruções para circular até ser convocado pelo celular. O clima era ameno, apenas uma leve brisa soprava sobre o rio e sua superfície cintilante refletindo as luzes da metrópole. À exceção de alguns turistas fotografando o Big Ben podiam se sentir sozinhos diante da romântica paisagem. Caminharam em silêncio até chegar bem próximos ao rio. Lá Olívia se virou, o sorriso confiante e o olhar firme pontuaram sua fala.- Desde que assumi a presidência da Revolutions Power fiquei intrigada com o excesso de medidas

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de segurança e com a diversidade de projetos, especialmente com aqueles cuja pesquisa não parecia trazer resultados em médio prazo... Não parecia seu estilo. Em alguns casos mais se assemelhavam à pesquisa de base que à ciência aplicada. Você foi sempre evasivo quando questionado sobre estes projetos e percebi sua intenção de manter uma agenda maior em segredo - conforme se aproximava do objetivo da conversa sua expressão mostrava relutância, oscilando entre o olhar fixo e o sorriso temeroso.Ele se limitava a observá-la o mais atentamente possível. Aquela não era nem de longe a sua expectativa para a noite. A experiência lhe ensinara a ter paciência, entender o cenário antes de agir.— Entenda — ela retomou. — Preciso saber todo o escopo do trabalho, só assim farei real diferença. Respeito sua necessidade de sigilo, contudo se eu não tentasse entender por mim mesma, em minha opinião, não seria uma profissional à altura de suas necessidades - tentou interpretar as feições dele enquanto falava, captar algum sinal de desagrado. A tarefa era ingrata, o homem sabia esconder suas emoções. - Estudei, analisei cada projeto e acredito ter entendido seu objetivo. Arthur, eu sei de tudo!Kerligan lutava para manter as aparências. Estava nervoso a ponto de estourar. A raiva lhe inundava as veias. Como ela podia ter feito aquilo? Mantivera tudo oculto sobre camadas e camadas de distrações. Além disso, ela não pos-suía o conhecimento necessário. Ninguém

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naquele planeta tinha. Precisava ter calma, pensou, ouvir tudo e só então definir um curso de ação.— Sinto que não tenhamos suficiente tempo de convívio para lhe mostrar o quanto pode confiar em mim. Estou maravilhada Arthur. Um mundo no qual a energia atômica não é necessária. Onde os recursos naturais não precisam ser consumidos para nos aquecer. Onde geração de energia e poluição não são sinônimos. Um mundo em que rios não precisam ser desviados destruindo ou modificando ecossistemas, onde os oceanos serão a fonte primária de toda a energia que a humanidade necessita — sua expressão era exultante. — Eu percebi... Os projetos Planeta Água e o Supervia de Energia se combinam para formar a melhor e mais barata usina de energia do mundo. De quebra podemos fornecer água potável a custos baixíssimos. Arthur, você vai resolver o problema de energia e a escassez de água da terra e ganhar trilhões no processo. Será o homem mais poderoso e admirado do planeta - ela sorria e gesticulava enquanto falava. Seu coração batia mais forte ao final. Era hora de saber a reação dele. O rosto impassível a assustava. Parecia radiografá-la.Kerligan estava aliviado e ligeiramente indeciso sobre como proceder. Ela não havia descoberto seu segredo. Obviamente aquilo seria quase impossível. Contudo, certamente penetrara fundo em seus domínios e aquilo era perigoso. Não podia deixar de admirá-la. Chegou onde ninguém havia chegado. E aquela energia, aquela

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excitação? Há tempos não via aquilo em alguém, principalmente em uma mulher adulta e absurdamente inteligente. Sem mencionar a beleza. Era linda... Seus olhos, seu sorriso... O desejo era inegável. Como resistir àquele corpo? A classe e bom gosto apenas faziam arder ainda mais a chama dentro dele. Ela o lembrava de alguém em seu passado. Entre todas a única retida com clareza em sua memória.- E então Arthur? Estou demitida? — Olívia falava sério. Depois de um silêncio tão prolongado já se preparava para o pior.Foi apenas um instante. Numa rapidez impressionante, ele a puxou para perto de si. Uma mão em sua cintura e outra na nuca. A fez colar seu corpo ao dele mantendo uma distância ínfima entre seus lábios. Ela se assustou, o cora-ção quicava no peito, os olhos arregalados fixos nos dele.- Você é uma mulher impressionante.De forma gentil, porém firme o suficiente para fazê-la prisioneira, ele a beijou. A bolsa caiu ao chão deixando ambos os braços livres para brandir desordenados por rápidos momentos enquanto as muralhas, construídas por tantos anos para protegê-la, ruíam em torno de suas emoções. Suas mãos agora acariciavam os cabelos dele libertando a paixão latente desde o primeiro dia que o vira. Ao se separarem ele foi o primeiro a falar.- Demitir você? A única pessoa competente o suficiente e com visão para perceber minha agenda? Só vou te demitir se me disser que

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nossa relação de trabalho é um empecilho para ficarmos juntos - as palavras foram acompanhadas de um sorriso maroto, digno de uma brincadeira, contudo falava a mais pura verdade. Era a única solução, ou a afastava ou ficava próximo o suficiente para monitorá-la.Olívia sentia que lhe faltava a voz, temia gaguejar. O coração ainda parecia participar de uma partida de tênis de mesa. Seus corpos permaneciam colados. Fechou os olhos e respirou fundo antes de falar.- Você vai me respeitar como CEO depois disso? Vai ouvir e debater minhas idéias da mesma forma? Sem favoritismo nem protecionismo?- Não cheguei aqui de forma fácil nem sendo emocional, Olívia. Jamais deixaria minha agenda ser prejudicada. Acredite — seu olhar era sério e suas feições rígidas como uma rocha. — Tenho absoluta certeza que resistirei — um pequeno sorriso para mostrar que fora sério, sem quebrar o clima. - E você? Vai conseguir brigar comigo quando necessário, digo, para defender suas idéias na companhia e também respeitar as minhas decisões?- Esta parte é fácil. O difícil será mantermos a relação de negócios intacta se e quando nos separarmos.- Algo me diz que se alguém pode fazer isso somos nós.Uma frase colocando os dois no mesmo patamar em relação a qualquer coisa era lisonjeiro e promissor. Preenchia-lhe com a segurança necessária. Ela já não podia voltar no tempo. Os

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muros haviam caído. Precisava avançar e encarar o desafio.- Ninguém deve saber por algum tempo. Precisamos manter segredo ou perderei a confiança da minha equipe e dos meus pares antes de ter tido a chance de conquistá-la. Concorda?- Respeito isso. É prudente. E, de algum modo, acredito que seja capaz de manter segredos - ambos sorriram.- Acabou de ganhar uma namorada — ao dizer aquilo o beijou novamente. Um beijo intenso e demorado.Nas sombras, a um quarteirão de distância, uma figura de paletó, camisa e gravata pretos, observava descontente o desenrolar dos fatos. Não precisava mais segui-los por hoje, o mal estava feito.

23. Sincronia

O mar calmo e a brisa da manhã produziam um efeito revigorante nela. O dia estava belíssimo. As poucas nuvens transformavam o horizonte em uma imensidão azul. Como de costume, Rachel iniciava sua corrida matinal às 6h30 no estacionamento do Jardim de Alah. Dali variava o trajeto correndo para o norte, em direção ao Aeroclube, ou para o sul fazendo o retorno no Jardim dos Namorados. Enquanto corria pelo calçadão, ora contemplando o oceano ora voltando a atenção para o caminho à frente e os outros corredores, pensava no quanto sua vida

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mudara nos últimos meses. Dez para ser exata desde o convite de Bruno. Graças ao salário quase quatro vezes maior, se comparado ao seu emprego anterior, fora os benefícios que eram muitos, ela havia mudado radicalmente seu estilo de vida. Morava agora em um apartamento de quatro suítes, varanda gourmet com vista para o mar e dirigia uma SUV novinha. Viajava uma vez por mês para a Europa a trabalho. Entre Paris, tratando com a ADe e a universidade de Milão, sempre encontrava tempo para experimentar a cultura, a culinária, e, principalmente, as compras. Uma mulher não podia ir à Europa, especialmente nas cidades onde se hospedava, sem comprar alguns mimos, pensou ela. Ainda tinha a sorte de se encontrar esporadicamente com Natan por lá. Ele também viajava muito para a França tratando da implantação da filial francesa da Alpes Tecnologias Médicas, empresa brasileira adquirida pelo fundo APMM e pela holding.No entanto, nada daquilo rivalizava com a sensação de autorrealização presente a cada manhã. O trabalho era exaustivo. Não havia limites de horário e ela respondia a um chefe profundamente exigente... Ela mesma. E nenhuma experiência anterior se igualava a que vivia agora. Sentia-se construindo algo extremamente relevante. Criando empregos. Ofertando para o mundo uma tecnologia repleta de benefícios e, no processo, vencendo desafios a cada dia. Os duros erros de aprendizagem neste mundo das grandes realizações, dos

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grandes negócios, a faziam sofrer, mas sempre saía fortalecida de cada experiência. Bruno estava sempre pronto a lhe aconselhar, apoiar, intervir quando solicitado e nunca a criticara. Nunca mencionava os erros, não parecia se pre-ocupar. Sempre acreditava no sucesso a despeito de qualquer problema, dificuldade ou erro que ela vivenciasse. Não podia imaginar ninguém com quem gostara mais de trabalhar. Subira de status em uma velocidade vertiginosa, de amigo de quem gostava e admirava como pessoa, até um ídolo profissional. Alguém a ser imitado, um lugar aonde se quer chegar. Embora sempre o achasse inteligente e capaz de grandes realizações, o Bruno de hoje crescera visivelmente. As experiências vividas por ele pareciam ter despertado o melhor de suas capacidades. A rapidez de raciocínio e a memória eram impressionantes. Sem contar a energia com a qual conduzia o seu dia. Sempre alerta e hiperativo, parecia até mais jovem.Bruno escalara um executivo experiente para acompanhar cada um durante os primeiros seis meses funcionando como coaching, um treinador empresarial, em tempo integral. Esta "sombra" foi, ao seu tempo, estrategicamente movida para as empresas correspondentes compradas no processo de aquisições do APMM. Dessa forma, o elo formado entre pupilo e treinador tornou-se uma ponte de comando fluida e com alto grau de confiança mútua. Uma consultoria de renome fora contratada para prepará-los, através de cursos especiais de final de semana, trabalhando

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pontos importantes da carreira como organização e liderança; envolvendo em seguida o básico de temas como análise financeira e planejamento estratégico.A energia positiva fluía nos escritórios de São Paulo e Salvador. Todos os oito pareciam profundamente entusiasmados. Natan, sempre mal-humorado no início, agora era o espelho da felicidade. A troca da liderança de projetos entre Natan e "Wagner fora revigorante para ambos. Wagner vivia um momento especial. Finalmente sairia do hotel onde morava em São Paulo e se mudaria com a família para um belo apartamento nos Jardins, um dos endereços mais nobres da capital Paulista. Só agora Milena e Alice deixariam o Rio de Janeiro em definitivo. Levou tempo demais para ela sair confortavelmente do emprego lá e assumir um cargo na radiologia do Hospital Albert Einstein em São Paulo. Fora duro para ambos, especialmente Wagner. A ponte aérea não era suficiente para matar as saudades da filha e as constantes viagens de supervisão da Sun&Light para o Texas eventualmente os mantinham separados até nos fins de semana. Agora tudo parecia em ordem, animado com sua vida pessoal e as perspectivas profissionais. Talvez fosse o menos ambicioso e audacioso de todos e por isso mesmo, provavelmente, o mais feliz e realizado.Max se sentia em casa, de todos era o único com experiência prévia em um alto cargo de uma grande corporação. Afogava-se de tanto trabalhar e ainda assim era o mais brincalhão,

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sempre animando a todos. Passava horas conver-sando com Bruno sobre detalhes técnicos da BioTech. Nestas horas pareciam duas crianças brincando, ou dois colegas discutindo sobre um projeto de escola, especialmente envolvente, uma conversa espontânea entre amigos, nunca entre dois CEOs. Quando acontecia em um jantar ou almoço, acabavam por isolar a todos, provocando as incessantes piadas de Marco, prontamente estimuladas por Wagner. Rachel imaginava se eram assim quando fizeram faculdade juntos. De algum modo tinha certeza da resposta.Cris náo escondia o entusiasmo. Provavelmente era quem mais trabalhava no grupo. Por afinidade hoje era a mais próxima de Adrianna, depois de Bruno, é claro. Era patente a admiração pela colega. Em vários momentos citara Adrianna como a "mais brilhante mente médica que conhecera". Vivia incentivando-a para se dedicar mais à pesquisa. Adrianna desviava prontamente o assunto. Parecia muito mais interessada em ser uma projetista geral, uma designer de novos rumos. A despeito da diferença de opinião naquele ponto específico, as afinidades foram se acumulando e, de repente, as duas já saíam para almoçar e fazer compras juntas, como duas verdadeiras amigas. Quando possível levavam Pedro, Bia e Ana. As crianças adoravam a tia "Dri". Ela brincava com eles o tempo todo. Rachel fora em um daqueles passeios. Embora Adrianna parecesse muito feliz

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ao lado de Bruno, era ali onde se mostrava mais solta, mais espontânea e mais alegre.Nada se comparava, contudo, à presença intensa de Marco. O escritório de Salvador era razoavelmente grande. Um andar inteiro em um dos mais modernos prédios comerciais da Avenida Tancredo Neves, nervo comercial pulsante da capital baiana, comportando cerca de 60 funcionários. Em outras circunstâncias, muitos deles seriam companhia para os almoços e bate-papos de corredor. Infelizmente, como Diretora de Novos Negócios a hierarquia dificultava aquele tipo de relacionamento. Mesmo se considerando bastante acessível havia uma barreira invisível dificílima de ser transposta. O pouco tempo de lazer tornava os finais de semanas curtos e muitas vezes dedicados ao descanso. O dinamismo da fase atual das negociações e as viagens a distanciavam do convívio com os amigos de sua antiga vida. Entendia bem melhor Bruno agora, acreditava que todos entendiam. Por todos os motivos Natan e Marco passaram a ser seus mais próximos amigos. Como Natan estava quase sempre em viagens, a maioria para a França e algumas investigando novos negócios para Bruno, Marco se tornou seu par constante para almoços e eventos. Nada o deixava mais feliz, exceto é claro, se começassem a namorar, uma situação cada dia mais difícil de evitar.Gostava de Marco, eram amigos e nos últimos meses confidentes. As investidas continuavam intensas, embora em intervalos de tempo

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diferenciados, evitando assim maiores constrangimentos. As flores vinham agora em momentos especiais o suficiente para diferenciá-los dos cotidianos, pelo menos na imaginação dele. Podia ser um vestido novo ou uma negociação concluída com sucesso. Tudo era um excelente motivo para uma visita da floricultura acompanhada de presentes eventuais. Ainda conseguia resistir aos convites para jantar não relacionados ao trabalho, porém ela se sentia solitária e estavam vivendo juntos um momento único de novidade e entusiasmo. Ele era inteligente e um amigo maravilhoso, fosse para ela ou para qualquer um de seu círculo. Também descobrira nele um filho atencioso, bom irmão e tio carinhoso. O fato de conseguir vencer a timidez natural de sua personalidade ao manter os galanteios e convites por tanto tempo, dava ainda mais valor a seu esforço. Ao observar seu trabalho cotidianamente passara a admirá-lo. Adorava ser responsável pela gênesis de um modelo de negócio, levantar as estruturas do zero e possuía uma criatividade inerente. Seus conhecimentos gerais eram espantosos, de tecnologia a publicidade, passando por uma infinidade de áreas. Navegava com fluência em reuniões discutindo com especialistas em cada assunto como se fosse um deles. Uma combinação única de autoconfiança moldada pelos sucessos e fracassos das empreitadas de que participara. Lamentavelmente não estava apaixonada. Jamais arriscaria a amizade entre eles sem estar certa de seus

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sentimentos. Apreciava-o demais para cometer tal ato de ingratidão.

Em seu escritório de Wall Street, na mais longa de suas visitas aos Estados Unidos desde sua ascensão à presidência do Staton Union, Samuel Klingelman se preparava para seguir para o aeroporto, finalmente retornando à Londres. Embora houvesse alguns relatórios ainda a avaliar, poderia fazê-lo no avião. O tempo não estava bom, impedindo-o de usar o helicóptero. O jeito seria enfrentar o engarrafamento de Nova York.O trânsito se mostrara pior ainda do que previra e resolveu iniciar já a leitura do material pendente, quarenta e cinco minutos depois, ainda distante do hangar onde o jatinho do banco o aguardava, se deparou com uma pequena joia. O relatório da concorrência preparado pela diretoria de marketing de produto na regional americana continha uma seleta coleção de empresas ainda novatas no ramo financeiro e seus produtos. O ponto comum era o potencial de crescimento acima da média. Todos originários de países emergentes como Índia, Rússia, China e Brasil, países conhecidos pela sigla Bric e por comungarem de um futuro promissor. As empresas e fundos de investimento não representavam propriamente concorrência ao Staton Union, principalmente agora quando o fantasma da falência que o rondara três anos atrás já estava exorcizado. O objetivo maior do relatório era identificar

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potenciais parceiros ou objetos de uma futura aquisição. Na maioria do Bric, o Staton Union possuía presença tímida. Motivo pelo qual estavam constantemente buscando alternativas de penetração de forma rápida, segura e com baixo investimento. As corretoras e financeiras se destacavam como alternativa alinhada àquele objetivo. O diabo era encontrar boas oportunidades, leia-se de grande potencial, grandes o suficiente para justificar o nome do banco e que ainda não estivessem nas mãos das grandes instituições locais.Na lista do marketing uma empresa saltava aos olhos. Fundada há menos de um ano, e este ponto era tão negativo quanto positivo, uma gestora de fundos brasileira com escritórios em Nova York e Londres, captara cerca de 2 bilhões e meio de dólares para seu fundo de private equity, o APMM. Em um olhar mais detalhado, percebia-se que a maior parte do dinheiro vinha de empresas e pessoas de alguma forma vinculadas à World Investments, holding mãe da gestora de fundos. A informação era clara nos prospectos, portanto não representava ilegalidade e sim uma confiança enorme no empreendimento. O fundo fizera aquisições de uma miríade de empresas ao longo do planeta, em si um diferencial em relação a qualquer outro na lista. Normalmente, os fundos de gestoras desvinculadas dos grandes bancos não conseguiam atuar fora de suas fronteiras. Não aqueles originados em países emergentes. Era necessário competência e conhecimentos acima

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do comum, além de muito capital para executar tal feito. O impressionante, diria mesmo excepcional, era uma novata conseguir agregar tanto dinheiro em tão pouco tempo. Descontando os valores de capital próprio e de terceiros vinculados ao negócio, ainda foram captados cerca de 700 milhões de dólares de terceiros independentes. O segredo parecia estar, pelo menos segundo o relatório do marketing, no tipo de ativo escolhido para aquisição pelo fundo e na qualidade dos relatórios publicados. A tal Lima Gestora de Fundos, batizada Lima Private nos Estados Unidos e Inglaterra, apostava em inovação. Encontrava pérolas raras, quase amadurecidas o suficiente para serem colhidas, inseria o capital necessário à maturação do negócio e então apresentava aos investidores. Como ela fazia aquilo, qual o processo de escolha, parecia ser o seu segredo, seu know how por assim dizer. Os relatórios apresentados a cada aquisição, validados por cientistas de renome e auditorias de primeira linha, comprovavam as boas escolhas. A gestora contava ainda com um fundo tradicional de perfil arrojado, ou seja, de alto risco. Apresentara bom desempenho desde a sua fundação com ganhos de 30% em menos de um ano. O curioso era o fato de sua captação já estar fechada, tendo angariado cerca de 500 milhões no período. Na opinião de Samuel, aquilo somava um ponto a mais para a novata.Klingelman era desconfiado por natureza e não se metia em empreitadas com parceiros

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iniciantes e sem tradição. Contudo, desde a posse de Arthur Covet no conselho do banco, muita coisa mudara. Covet era adepto da inova-ção e experimentação e não o perdoaria se este se provasse um bom parceiro e um concorrente do Staton Union chegasse primeiro. Discou para a secretária do escritório que acabara de deixar.- Melanie?- Sim, doutor Klingelman. Em que posso ser útil?- Me conecte com David Wheatford — David era o diretor de Incorporações do Staton Union. Poucos segundos se passaram.- Conectando o Dr. Wheatford, Dr. Klingelman.- Samuel? Pensei que já estivesse no avião — David falou bem-humorado.- Com o trânsito de Nova York?- Como se Londres fosse muito melhor. Pelo menos não pagamos pedágio.- Provavelmente estaria melhor se pagassem - riu da própria piada. Na verdade uma risada sarcástica. Não era homem de bons humores. - Olhe... Já avaliou com detalhes o relatório da concorrência?- Trabalhei nele junto com o marketing. Estou bem familiarizado. Do que precisa? — sabia que Klingelman dificilmente ligava para pedir opiniões. Deixava o assunto para as reuniões de diretoria onde, mesmo a contragosto, precisava ouvir a todos e mesmo assim até certo ponto.- A tal Lima Private atiçou minha curiosidade. Sabe do que estou falando? - era um teste para David. Costumava testar aqueles a sua volta. Alardear competência e conhecimento era algo

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perigoso perto dele, para tanto o indivíduo necessitaria estar realmente apto para a prova.- Claro, a brasileira com capital de dois e meio bilhão. Não me pareceu ter o perfil adequado para interessar você. Refiro-me ao fato de estar há menos de um ano no mercado - sabia ter acertado na mosca quanto às informações.- E não me interesso. Arthur por outro lado... Quero um relatório financeiro e análise de risco preliminar no final da semana. Mande também um dos seus garotos lá conversar com o CEO, low profile, sem chamar a atenção da imprensa. E envie já este relatório para Arthur com um sumário indicando nosso interesse e os próximos passos. A propaganda é a alma do negócio.- Considere feito.- Nos falamos quando eu estiver em Londres - desligou sem mais delongas. Era uma forma de indicar poder.

Deitado na cama de seu quarto, barriga para cima e mãos sob a cabeça, fitava a janela e a chuva fina que escurecia a paisagem. Na mansão, recentemente adquirida nos Jardins, bairro nobre de São Paulo cujos casarões não são apenas raros como representam o metro quadrado residencial mais caro do Brasil, Bruno avaliava os eventos daquele último ano. Sentia-se feliz. Não pelo sucesso alcançado ou dinheiro acumulado. A casa e outros bens eram apenas uma exigência do trabalho. Chamar atenção para o sucesso atraía clientes e abria seus bolsos, condição necessária na etapa atual do projeto

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deles. A felicidade emanava do fato de não mais se sentir sozinho e por começar a enxergar, de fato, o potencial do trabalho desenvolvido pelo programa Infinito. Os amigos estavam ao seu lado e felizes e ele encontrara em Adrianna mais do que jamais sonhara, fosse como mulher, como amiga ou parceira na jornada, onde seguiam de mãos dadas.— Sonhando acordado?Ela o envolvia, metade do corpo sobre o dele, o calor gostoso de cada manhã emanava uma felicidade outrora considerada impossível de obter. Graças ao metabolismo diferenciado dormiam pouco, mas passavam um tempo considerável na cama, aproveitando ao máximo cada minuto de intimidade. Não fosse pela conseqüente atenção indesejada sobre ela, já estariam casados hoje. Sentia Adrianna como uma alma gêmea. Pensavam da mesma forma, comprometidos ao extremo, racionais, e, sobretudo repletos de emoção e sensibilidade sob a capa tecida para protegê-los e fazer cumprir o senso de dever, de responsabilidade. Ria-se das dúvidas do passado. Embora nenhum fato realmente novo tivesse sido apresentado, sentia conhecê-la por mais do que uma única vida. Hoje confiaria a ela seu corpo e sua alma, inteira e completamente entregue ao seu olhar, ao oceano azul de seus olhos.— Ainda me espanto com o quanto conseguimos. Quero dizer... Uau! As conquistas... O quanto você fez nestes últimos dois anos... Às vezes parece mesmo um sonho.

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- Nós fizemos e não se esqueça disso. Sem sua energia, sua paixão, eu nunca teria conseguido. Tenho muito orgulho de você.Sua voz era suave e verdadeira. Enquanto falava fazia carícias em seu peito. Ele acariciou o cabelo dela enquanto beijava-lhe levemente a testa em um gesto de amor e agradecimento.- Sei que o mais difícil ainda está por vir, não estou me enganando, mas preciso celebrar nossa sorte. Tudo tem dado tão certo.Ele parecia ler sua mente. Amava o fato de estar tão feliz, tão realizado. E, com a mesma intensidade, temia os perigos e as eventuais decepções esperando-os nas esquinas do futuro. De certo modo haviam passado pela etapa mais fácil. Kerligan ainda não os considerava inimigos, não sabia da presença dela neste mundo. Quando soubesse, tudo seria diferente. Estavam em uma maratona e não em uma corrida de cem metros rasos. Bruno sabia daquilo e não havia motivo para relembrá-lo. Como dissera, a comemoração era importante, alimentava as energias e o espírito.— Captamos mais dinheiro nos fundos que o previsto — contava nos dedos as realizações. — Conseguimos comprar todas as empresas em nosso planejamento, gastando um pouco mais, é verdade, porém nada fora de controle. — Dois dedos em riste representavam os feitos listados. - Todos estão empolgados e felizes com seus projetos - três dedos. - Felizmente todos decidiram colocar as ações do pacote de benefícios no APMM, assim vão ganhar dinheiro e

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crescer igualmente, independente de cada projeto — quatro dedos. Decisão que o deixava mais tranqüilo. Sabia que os projetos de Cris, Adrianna e Max eram os mais promissores e não gostaria de ver ninguém em desvantagem. Aplicando no fundo, o sucesso de um seria o sucesso do grupo. - Natan, além de feliz, nos ajudou a frustrar alguns planos de Kerligan comprando ações suficientes da NGD para impedir a oferta hostil de aquisição pela Revolutions Power - cinco dedos.A New and. Green Detroit era a mais promissora indústria de carros "verdes" dos Estados Unidos. Usava motores movidos a células de energia e eletricidade. Um modelo flex de motor com grande potencial. Para Marco, a justificativa da aquisição fora criar uma salvaguarda no caso da tecnologia ser mais aceita a longo prazo do que a da Yenioio. Esta sim era a principal aposta e fazia parte do projeto de Marco. Nele, o modelo de automóvel do futuro se baseava apenas em eletricidade. Na verdade, Kerligan deveria saber, como Adrianna, que o barateamento da energia elétrica pelas tecnologias alternativas já em desenvolvimento na Terra e largamente utilizadas em Aqua tornariam o modelo puramente elétrico o mais interessante. Kerligan, provavelmente, ao assumir a NGD, redirecionaria o projeto. Depois da Yenioio, a NGD possuía a melhor tecnologia de motor e a Covet Power já desenvolvia baterias para automóveis consideradas revolucionárias.

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Não havia dúvida para Adrianna do caminho seguido por seu nêmesis para obter controle político na Terra. Se conseguisse reproduzir na Terra as formas de geração de energia utilizadas em Aqua e, ele era um dos maiores especialistas de Eiden naquele campo, ganharia não apenas dinheiro, mas decidiria quais regiões, países e continentes teriam acesso à tecnologia. Isto era poder político! Há algum tempo contrataram investigadores para seguir os passos dos executi-vos das empresas Covet tentando prever qualquer aquisição importante e atuar no sentido de sabotar a compra a qualquer custo. Tomaram cuidado de excluir A. C. Goldwill e Milton Jacobs da espreita. Eram capacitados e desconfiados demais. Portanto, espioná-los diretamente seria ariscado. Aquela altura possuíam dossiês completos dos principais colaboradores de Goldwill. Foi assim que souberam da Sun&Light e depois da NGD, duas sabotagens vencedoras. Embora Kerligan fosse especialista no assunto, muitas tecnologias de base para o desenvolvimento dos modelos de geração de energia de Aqua, ainda não existiam na Terra. Era como um brinquedo do tipo "lego", sem as partes não era possível construir o todo. Se alguma empresa, direta ou indiretamente, criava algo que representasse uma peça deste "lego", logo os braços da Covet se estendiam para tomá-la. A não ser, é claro, se Bruno e Adrianna pudessem evitar.Infelizmente eles não eram sempre bem-sucedidos. Buscando evitar uma superexposição

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de Natan, o que poderia chamar atenção para o plano e, aproveitando o fato da empresa alvo se situar nos Estados Unidos, enviara Wagner para uma das missões. Como ele já passava boa parte do tempo no país por conta da Sun&Light, era uma solução óbvia. A empresa de interesse da Revolutions Power desenvolvia sistemas de predição meteorológica utilizando um método bem particular. Chamava-se Blue Skies. Utilizava um tipo de radar de longo alcance e precisão para medir as mínimas alterações de movimento da Lua, e com isso, avaliar seus efeitos sobre as marés. Aparentemente aquilo permitia um ajuste fino das previsões climáticas melhorando seu resultado. Teoricamente, de acordo com as avaliações de Adrianna, a aquisição ajudaria Kerligan a prever locais ideais para a instalação de um sistema de geração de energia baseado em correntes marinhas. Bruno se encantara com a hipótese e não podia deixar de admitir a beleza do projeto de Kerligan. Infelizmente, a empreitada não fora bem-sucedida. Wagner não acreditava na compra, razão pela qual não se empenhou. Ao atingir uma fração do limite de gastos determinada, abandonou a disputa julgando ter feito um bom negócio. A desculpa de Bruno para a aquisição não fora das melhores, portanto ele assumia parte da culpa pelo fracasso. Como a empresa fornecia dados para diversas agências governamentais, tentara convencer Wagner da sua importância estratégica. Ganhar trânsito junto ao governo do maior consumidor mundial facilitaria futuras

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empreitadas. Além disso, o valor da empresa ainda era baixo e o potencial de crescimento alto. Bons motivos é verdade, não bons o suficiente para justificar o ágio a ser pago quando a disputa com a Revolutions se acirrou.- Natan tem sido muito gentil comigo. Não nos tornamos melhores amigos, mas definitivamente não me vê mais como uma inimiga - Adrianna não gostava especialmente dele, afinal nunca dera abertura para se conhecerem melhor. Mesmo assim, estava feliz pelo clima ameno entre eles. Sabia o quanto era importante para Bruno. - Ele nunca mais pressionou sobre o Alpha11. - este havia sido por muito tempo motivo de angústia para seu amado. Não conseguiram reproduzir o soro com sucesso até agora e ela sabia como aquilo era importante para ele. Era uma promessa para Natan e ele faria o possível para cumpri-la.- Faz meses desde a última vez que tocou no assunto. Ele entendeu as complexidades do processo de replicação...- Estamos fazendo o possível. E difícil direcionar as pesquisas sem os cientistas desconfiarem. Toda semana vou à Fênix durante a madrugada e altero a ordem das amostras. Nas reuniões técnicas faço sugestões, aponto caminhos e já criei três linhas de pesquisa diferentes para acelerar...- Eu sei — ele interrompeu, gentilmente. — Você está fazendo o impossível, eu sei disso...- Estou mesmo. Contudo, minha previsão continua a mesma, mais ou menos dez anos até

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atingirmos uma fórmula confiável...- Eu sei amor... Natan está ciente e por isso mesmo está menos ansioso. Sabe que você não manteve nada do soro utilizado em mim, das dificuldades técnicas de se reproduzir a substância sem as proteínas sintéticas comuns em seu mundo, das diferenças entre a fórmula usual de seu tempo e o modelo original necessário para gerar um processo seguro de enriquecimento celular. Sua idéia de enviar relatórios mensais sobre este projeto para ele foi sensacional. Ele agora tem total consciência das dificuldades. Relaxe.- Gosto de ser detalhista porque sei o quanto a felicidade de Natan é importante para você.- E esse é apenas mais um motivo pelo qual eu te amo — beijou-a e se levantou. Já era hora de se arrumar. Aquele seria um grande dia.

Uma semana depois, ao final da manhã, na sede da Power Innovations, holding controladora das empresas Covet, mais uma reunião mensal ocorria entre Samuel Klingelman e o mais atuante membro do conselho do Staton Union, Arthur Covet. Na mesa de reuniões da sala de A.C., além dos dois, estavam MJ e David Wheatford, diretor de Incorporações. Milton era presença constante nas reuniões periódicas e Samuel sempre trazia um executivo graduado para participar. Um gesto simbólico relacionado à filosofia do banco cujo objetivo era ressaltar a importância de se preparar substitutos. Não era algo a que Klingelman dedicasse muita atenção,

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evitaria se possível. Chegara ao topo da carreira e já não era mais um garoto. Ao deixar o posto atual, o caminho mais provável seria ladeira abaixo. Portanto, se agarraria ao topo com unhas e dentes. Não obstante precisava daqueles gestos esporádicos. Serviam de argumento contra seus detratores quando o acusavam de centralizador e déspota. E, no dia em questão, David poderia até ser útil.Já avançavam no horário previsto. Klingelman iniciaria o item "outros" da pauta e Arthur se mostrava inquieto desviando o olhar, repetidas vezes, para contemplar o Tâmisa, através da parede de vidro, em sinal de tédio. Goldwill gostava de falar e ser ouvido. O inverso, decididamente, não era verdade. Samuel sabia daquilo. Portanto, buscava ser direto e conciso. Precisava do aval de A.C. para permanecer no cargo. Lamentavelmente, todas as batalhas travadas no conselho pelo líder das empresas Covet, não apenas haviam sido vencidas, como os resultados dos caminhos apontados por ele, geraram lucros astronômicos para o banco, contribuindo para ampliar a fama de visionário e reduzindo a quase zero seus antagonistas. Klingelman sabia da pouca estima dedicada a ele por Arthur. Aparentemente o conselheiro o achava sem imaginação - expressão usada no passado — e pouco agressivo nos negócios. Samuel pregava a rigidez e a maximização da equação risco versus retorno e não achava nada de errado naquilo. Porém, era inteligente o suficiente para se adaptar quando necessário.

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Buscava ardentemente uma oportunidade de mudar aquela percepção e, daquela vez, parecia tê-la encontrado.— Chegamos ao final, Arthur. Só mais um item. Identifiquei uma excelente oportunidade, bem de acordo com o espírito audacioso implantado por você no conselho - mantinha o olhar confiante, tão importante neste tipo de apresentação.— Ora Sam. Será que finalmente consegui contaminá-lo? - ele sorria dubiamente, desviando levemente o olhar para MJ.— Trata-se da Lima Private, uma empresa brasileira com atuação mundial - enquanto falava, David entregava uma fina pasta aos participantes da reunião. - O resumo está na primeira folha da pasta. Cita as principais conquistas do grupo no último ano com ênfase especial à última semana. A gestora de fundos tem menos de um ano de vida e o grupo todo, a Lima World Investments, menos de dois. Possui um negócio peculiar na gestora de fundos, com destaque para o APMM, um fundo de private equity - todos os presentes conheciam a modalidade, dedicada a adquirir o controle de empresas e, após atuar em sua gestão, vender as ações correspondentes poucos anos mais tarde, auferindo lucros usualmente muito grandes. - Captaram neste primeiro ano cerca de 2 bilhões e meio de dólares e, na semana passada, anunciaram o primeiro IPO da BioTech a ocorrer no dia 19 do mês que vem. Estima-se a captação de 600 milhões de dólares para o percentual de ações a serem disponibilizadas.

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Enquanto Samuel falava, Arthur olhava atentamente para a segunda página do arquivo. Uma página de um jornal brasileiro havia sido digitalizada. A imagem mostrava um conjunto de pessoas posando sorridentes para a foto. No centro, um homem moreno de cabelos pretos e sorriso largo, aparentando 40 anos, era o líder do grupo. Informação obtida na legenda da foto. À sua direita, uma bela loira, um pouco mais jovem e mais baixa. Encostado nela, um homem mais alto e extremamente branco. O único sem gravata. Ao lado deste, um negro mais baixo, de traços finos. À esquerda, regulando com a altura do líder, um homem bem mais claro que ele e um pouco mais alto. Os cabelos eram mais crespos e, ao seu lado, uma linda mulher. Mais madura e elegante que a loira. Tinha cabelos encaracolados, parecia mais à vontade do que os outros, à exceção do líder. Aquele parecia gostar de se exibir em público. Diante da atenção dedicada ao recorte, Samuel interrompera a explanação momentaneamente.- Podemos continuar?— Por que o IPO ocorre no Brasil? A BioTech não é indiana? - Arthur questionou.- Fico feliz por ter tido tempo de ler o material — era o primeiro indicativo de que estava no caminho certo. — Bem, o movimento não deixa de ter sua lógica. Segundo o material de divulgação, o motivo é concentrar todas as emissões de ações em dois países: Brasil e Estados Unidos. Isso facilitaria o trabalho dos investidores. Também entendem que as sinergias

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entre as empresas do grupo serão mais fortes se a matriz e a principal filial das empresas estiverem concentradas nestes países.— No seu resumo estima-se a compra da BioTech por algo entre 300 e 500 milhões de dólares. Vão lançar 25% das ações e pretendem captar 600 milhões? Em tese significa um aumento de cinco a oito vezes no valor de mercado empresa — virou-se para David. — Sua equipe acredita nessa valorização?Embora tenha sido hábil em disfarçar, David Wheatford tomou um susto. Fora a primeira vez que Arthur lhe dirigira a palavra naquela ou em qualquer reunião. Era um inglês sério e circunspecto, tivera uma carreira sólida e, além do sucesso profissional, o fato de manter os cabelos e a forma física aos 54 anos ameaçava a autoconfiança de Samuel. Estava ciente de que sua presença ali era apenas um mal necessário segundo os valores do patrão e não esperava uma chance de se provar. Mesmo assim, a oportunidade se apresentou, estava ali, ao seu alcance.— A estimativa é conservadora. Nos últimos meses fizeram grandes avanços na estabilidade dos circuitos biológicos de memória. Talvez tenham reduzido de cinco anos para três o tempo de lançamento dos produtos de prateleira.— Algo suspeito no processo?— Os pareceres são de cientistas renomados. Mesmo sendo funcionários da BioTech tem um nome a preservar. Aparentemente as

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contratações e o dinheiro injetado pelo grupo fizeram a diferença.— Se a decisão fosse sua faria a aquisição?— Eu não acredito que estejam dispostos a vender, não a totalidade, pelo menos. Mandei meu segundo homem, Charles Farsno, fazer uma sondagem e a impressão foi de desinteresse por parte deles. Ficaria feliz com uma parceria. Representaríamos a gestora de fundos e outros interesses deles na Europa e faríamos empréstimos para as empresas aqui e nos Estados Unidos. Estaríamos bastante confortáveis neste tipo de operação. Assim, evitaríamos maiores riscos e garantiríamos a dianteira caso decidissem vender parte do negócio.— Excelente David. Gosto de pessoas assertivas. Vamos perseguir este caminho.— Discordo Arthur. A falta de interesse neste ponto da negociação não significa nada. Charles é um bom profissional, não me entenda mal, mas um contato direto meu com o... — Samuel folheou rapidamente o material em suas mãos — Bruno Cortes Lima, presidente da Lima World Investments e principal acionista, pode resultar em algo bem diferente — ele não estava disposto a ceder espaço para David em hipótese alguma. Além disso, conhecia suficientemente bem o estilo arrojado de Covet para apostar naquele curso de ação.— Não estou confortável com a jovialidade do negócio. Vamos prosseguir segundo as orientações de David. Se não mostrarem interesse não insista — virou-se para Samuel

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colocando uma mão em seu ombro. Abriu um sorriso sedutor enquanto forçava levemente o aperto, o suficiente para transmitir uma sensação de conforto. — Você fez um bom trabalho, Sam. Finalmente estamos nos alinhando. Ainda não foi este o nosso grande negócio juntos, contudo me deixou mais confiante no nosso futuro.O homem sabia seduzir, pensou Samuel. Saía frustrado e ainda assim não conseguia estar chateado. Aquilo não significava que a vida de David deixaria de ser um inferno de agora em diante. O miserável roubara-lhe o projeto e isso teria conseqüências.Pouco depois já estavam no saguão do elevador, Sam e David não se olhavam, quando uma mão tocou no ombro de Samuel. Ao se virar, deparou-se com MJ.- Preciso de uma palavra em particular com você, Sam.Aquilo era inusitado. Com exceção das conversas em eventos e almoços MJ só se dirigira a ele em reuniões programadas em substituição a Arthur quando este estava inacessível. Milton Jacobs era uma incógnita, alguém impossível de se interpretar e Samuel não gostava nada do desconhecido. Os dois se dirigiram para a sala de Jacobs sob os olhares curiosos de David Wheatford. Ao sentarem, um simpático Milton foi direto ao assunto.- Acredito no projeto, Sam e discordo de Arthur. Você deve ser o homem por trás deste negócio. Faça tudo para conseguirmos parte do capital da World Investments e, se não der, conquiste uma

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participação societária, ou, no mínimo, uma parceria.Samuel mantinha na fachada o rosto semi-sorridente de todas as reuniões, mas intimamente estava estupefato. Não apenas conquistara uma reunião inusitada com o principal valete, aliado, amigo e sócio de Arthur Covet, como ele estava lhe entregando uma chance de ouro.- Entenda — continuou. — O julgamento de Arthur é normalmente muito afiado, só que... E não me leve a mal... Ele não gosta muito de você. Já eu acredito em seu poder de adaptação e sua visão relativa a este negócio é prova disso. Vamos manter essa negociação entre nós por enquanto. Toque o barco e quando você for bem-sucedido eu digo a Arthur que a solicitação foi minha. Venderei a idéia como um teste. Assim fazemos um bom negócio e você cai nas graças de Arthur. Que tal?- Só posso agradecer MJ. Sempre soube que você era parte importante do sucesso de Arthur. — Samuel não era criança. Sabia que algum tipo de briga de poder ocorria entre os dois. Contudo, com o aval de MJ se sentia livre para agir como acreditava. Por via das dúvidas, gravaria a próxima conversa telefônica entre eles. Não fazia nada mal ter um seguro para o caso dele estar fazendo um jogo duplo. Se ele dissesse a Arthur que não existira a ordem para seguir com a tentativa de aquisição, estaria jogando a carreira na latrina. — Conte comigo. Vamos trazer este negócio para casa.

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Samuel saíra da reunião com a confiança renovada. Acreditava em MJ. Obviamente, ele queria provar algo a Arthur também, logo, seriam perfeitos aliados. David mal sabia o que lhe aguardava. Diante do desinteresse de Arthur, mandaria interromper quaisquer negociações com as organizações Lima. O subordinado ficaria chateado, estupefato, mas nem ele nem Arthur estranhariam muito. Já agira assim antes. Enquanto isso, trabalharia com sua própria equipe no caso, "correndo por fora". Quando conseguissem a sociedade, Arthur ficaria satisfeito e ele não teria dificuldade em demitir David. A vitória lhe garantiria mais alguns anos na presidência do Staton Union. Sorria sozinho e já montava na mente o time para a empreitada. Estava seguro do sucesso.

24. Enigmas

Descansando entre exercícios para os bíceps ele se percebeu em divagações... Ainda se empolgava ao acertar suas microprevisões na bolsa de valores. Compras e vendas em intervalos de alguns minutos, ganhos de centenas de milhares de reais em algumas horas, era adrenalina garantida nas veias. Para Bruno funcionava como uma terapia, um relaxamento. Não precisava mais fazer aquilo, não pelo dinheiro. Embora gerassem quantias significativas seu tempo seria mais bem utilizado na gestão do grupo. Ademais já haviam desenvolvido, com pouca participação dele e

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muita de Adrianna, novas equações capazes de replicar com aceitável grau de efetividade as operações de curto prazo ensinadas a ele quando se conheceram. Contudo, executá-las com as próprias mãos efetivamente se transformara em uma necessidade, uma terapia, por assim dizer, um pequeno vício, saudável, como seus exercícios matinais.Exceto em situações extraordinárias, todos os dias dedicava uma hora e meia às atividades físicas. Construíra uma miniacademia em uma das salas da mansão onde podia treinar sem ser observado. Não seria fácil explicar como alguém de oitenta quilos conseguia levantar o dobro de seu peso em exercícios de supino. Montara ele mesmo uma seqüência de alongamentos seguida de trinta minutos de corrida na esteira e quarenta de musculação. Finalizava com uma combinação de treinamentos básicos de artes marciais. Um mix harmonioso, pelo menos na opinião dele, das diversas modalidades nas quais fora treinado. No íntimo ele sabia que não havia harmonia em um conjunto de chutes e socos desferidos de forma aleatória e violenta. Na verdade precisava descarregar frustrações de alguma forma e aquela funcionava bem.O duro era agüentar as piadas de Adrianna. Depois do início do namoro ele lhe mostrara alguns filmes antigos dos quais gostava. Entre jóias preciosas como "O céu de outubro", "Coração Valente" e "Cinema Paradiso", acabara arriscando diversões como "O grande dragão branco" e a série "Rocky". Pareceu-lhe uma boa

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idéia na época. A partir daí ela passara a chamá-lo de Rocky, Van Damme ou Bruce Lee todas as manhãs. Fazia-o sentir-se ridículo e, curiosamente, também o divertia. Levou algum tempo para perceber o motivo. Adrianna agora se soltava, ria, brincava e aquilo era o verdadeiro motivo de sua alegria. Só podia imaginar a solidão e a perda em seu coração. Dividiria o fardo se pudesse, faria qualquer coisa para torná-la mais feliz. Infelizmente não era possível. Daí porque valorizava tanto os momentos entre o acordar ao seu lado e os treinamentos na miniacademia. Quando estavam sós e o dia apenas começava, ela era apenas a pessoa "Adrianna", o ser humano lindo e a mulher espetacular pela qual se apaixonara. Esta era uma Adrianna feliz, espontânea, brincalhona e sensual. No resto do dia, a mulher consumida por uma missão, ganhava terreno paulatinamente. Ele também admirava esse seu lado. O com-prometimento. A força e a perseverança. Doía-lhe, contudo, perceber a alegria esvaindo-se de seu semblante. Ao contrário de Bruno, sempre afeito aos negócios e à especulação financeira, ela era uma cientista. Os momentos de trabalho felizes eram aqueles passados nos laboratórios da Fênix ou da Cellular Growth e preenchiam hoje uma parcela mínima de sua vida.- Por que você não passa mais tempo na Fênix? As coisas estão andando bem. Temos conseguido seguir o rastro de Kerligan, estamos na cola dele. Ele nem imagina o que estamos fazendo, não sabe de você. Posso cuidar das coisas — ele

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havia interrompido uma seqüência de socos em um grande saco de pancadas balançando amplamente sob os efeitos dos fortes golpes. Sua frase impedia a concentração de Adrianna. Seus movimentos, semelhantes aos do Tai chi chuan, representavam uma forma de arte marcial comum em seu mundo chamada Hadji, dedicada à harmonização do homem e seu corpo. Na opinião dele, podia se chamar "tai ki yoga" pois parecia uma mistura de Tai chi, Aikido e Yoga.- Você sabe que não posso — respondeu, ainda mantendo os movimentos.- Não confia em mim? — provocou sorrindo.Ela finalizou as manobras Hadji e se virou para ele. Pressentia que a conversa não seria rápida.- Claro que confio. Confio minha vida a você - aproximou-se e repousou a mão direita em sua face suada. - Mas, neste mundo só eu o conheço realmente. Preciso estar atenta, vasculhando tudo a procura de pistas dos seus movimentos. E, a partir de agora, eles vão se intensificar. Precisaremos ser ágeis para perceber e não poderemos atacar em todas as áreas, será necessário definir prioridades. Este é meu principal papel hoje, usar o conhecimento de Aqua e de Kerligan para decifrar seu jogo.- Errado - puxou-a gentilmente colando seus corpos agora separados apenas pelas finas roupas esportivas. Com os braços envoltos em sua cintura, continuou. — Seu principal papel agora é ser feliz e vou fazer tudo para isso. Seu segundo papel é impedir Kerligan. Podemos nos reunir por algumas horas no final do dia para

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discutir e planejar. Você lê os relatórios, nós desenhamos os próximos passos e eu executo.- Eu te amo por me amar dessa forma. Por se preocupar comigo — sorria imersa em felicidade, fixando seus intensos olhos azuis nos dele. — Um par de horas minhas por dia é pouco, eu sei disso e você também. Sozinho não vai conseguir rivalizar a fortuna de Kerligan e sem dinheiro não conseguiremos nada.- Concordo plenamente. Por isso mesmo preciso de você nos laboratórios fazendo o que sabe fazer melhor. Descobrindo novas curas e novos produtos. Tornando a vida melhor na Terra e nos fazendo mais ricos no processo.- Se eu acelerar demais as coisas atrairei atenção indesejada. Kerligan não pode saber de mim. Além disso, o timing da ciência não é o mesmo do das finanças. Testes precisam ser conduzidos. Pacientes precisam passar alguns anos utilizando os medicamentos. Órgãos de saúde precisam aprovar os procedimentos... Enfim, não podemos nos dar ao luxo de esperar. Ele já está muito a nossa frente. Precisamos usar meus talentos na bolsa de valores e nos outros negócios do grupo. Não posso ficar fechada em um laboratório o dia todo. Em algum momento o muro entre nós e ele será suficientemente grande e forte para podermos descansar. Aí eu volto a me dedicar à ciência. Não se esqueça... Tenho bastante tempo.Terminou a conversa com um beijo intenso, quente e apaixonado. Enquanto um braço envolvia o pescoço do seu amado o outro acariciava seus cabelos. A discussão e o treino da

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manhã estavam acabados, consumidos rapi-damente pelo fogo queimando entre eles. Deitaram ali mesmo, sobre o tatame, o amor afastando temores, preocupações, tristezas ou arrependimentos.Algumas horas depois em seu escritório na marginal, contemplava os dois rios pela parede de vidro, o sujo rio Pinheiros e o rio de carros engarrafados ao seu lado, e pensava nas palavras trocadas mais cedo. Lamentavelmente Adrianna estava certa em quase tudo. Apesar disso um item seria pauta de discussão se a conversa não houvesse sido tão brilhantemente sepultada. Já outro, ele continuava preferindo evitar. O ponto de preocupação era se Kerligan aceitaria uma situação de guerra fria ou se morreria lutando. Se aceitasse ser apenas um bilionário feliz, confrontado por outro bilionário prometendo impedi-lo de expandir demais seu reinado, talvez Adrianna realmente pudesse relaxar e se dedicar à ciência. Se preferisse lutar e partir para tentativas de assassinato e outros crimes, se iniciasse uma guerra de fato, suas vidas nunca se acalmariam. A segunda opção traria uma publicidade perigosa, prejudicial aos seus planos, daí acreditarem na solução tipo paz armada. Não havia certezas e por isso defendia a importância de Adrianna tentar ser mais feliz hoje e não amanhã.O outro ponto era mais delicado. Ela sempre mencionava ter tempo. Ou seja, viveria bastante, mais do que ele, provavelmente. O quanto mais era a questão. Nunca perguntara sua idade e não

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pretendia fazê-lo. Não por educação ou falta de curiosidade e sim pelo receio da resposta. Não desejava fazer a conta do número de anos reservados a sua felicidade. Imaginava o quão duro seria para ela imaginar-se sozinha novamente, principalmente em um mundo ao qual não pertencia.- Precisamos conversar.Adrianna irrompera pela porta sem aviso e avançava a passos largos em sua direção munida de uma única folha de papel nas mãos.- Que houve?- Kerligan está comprando uma empresa de armamento militar — respondeu ao entregar- lhe o resumo do relatório dos investigadores.O papel não dizia muito, apenas apontava um conjunto de visitas de executivos da Revolutions Power a uma fábrica de armamentos pesados, basicamente mísseis de longo e curto alcance. Não entendia o interesse pela empresa. Além da nacionalidade americana e dos dados básicos como número de empregados e faturamento estimado, o documento não citava pormenores.- Não consigo nem cogitar o motivo desta aquisição, precisamos pesquisar mais.- Só isto? Você parece tranqüilo - ela não estava.- E estou. Não faz sentido ficar agitado sem maiores informações. Provavelmente eles possuem alguma tecnologia nova, mais uma parte do quebra-cabeças...- É uma grande quebra no padrão! - ela interrompeu mostrando-se alarmada. — Nem eu consigo imaginar como essa aquisição se encaixa

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no plano de Kerligan. Até agora tem se atido a energias não renováveis, marés, energia solar, eólica, baterias. Este é um projeto totalmente militar!- Acha que ele vai declarar alguma guerra? - brincou, porém o semblante dela continuava preocupado.- A melhor maneira de se tornar líder é gerenciando conflitos. Fiz uma pesquisa rápida e o único destaque da empresa é o longo alcance dos mísseis. Podem ser disparados do Brasil e atingir tanto a China quanto a Europa. E pode-se mudar a programação via satélite re-roteando o projétil para qualquer destino depois do lançamento. Se ele começar a vender armamento ilegalmente para determinados países...- Uou! Não está adiantando demais a história?- Pode ser, mas não estou disposta a arriscar. Gostaria de mandar Natan para lá o mais rápido possível.- Com que desculpa?- Não sei, por isso o mandaremos. Dará tempo para pesquisarmos mais e pensarmos em algo.- Está mesmo preocupada, não é?- Chame de instinto se quiser, mas eu sei que essa compra não faz sentido e quero impedi-la.- Tudo bem, falo com Natan. Nesse meio tempo busque mais informações. Peça para a equipe de novos negócios da Gestora de Fundos preparar um relatório preliminar para amanhã ao meio-dia.

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- Se não se importar, gostaria de falar eu mesma com Natan. Estamos nos dando bem melhor agora e se ele perceber minha preocupação pode funcionar como incentivo.- Natan não precisa de incentivo. Ele entende nosso objetivo.- Mesmo assim é sempre bom justificar, mostra consideração. E é uma oportunidade para fazermos algo juntos. Pode aproximar a gente.- Vendido!Naquele instante o telefone tocou. Instintivamente Bruno acionou o viva-voz. Mirela, secretária de ambos, anunciava Vilson Veiga, presidente da Lima Gestora de Fundos.- Vilson, estamos em viva-voz com Adrianna. Em que posso servi-lo? - Bruno gostava de minimizar a hierarquia dando importância implícita a todos os seus colaboradores.- Com a notícia que vou dar acredito que estou lhe servindo chefe. E muito bem. — Vilson era um homem de 60 anos com vasta experiência no mercado financeiro e pouco dado a rodeios. — O Staton Union está interessado em nós.Ao som daquelas palavras todos os alarmes internos de Adrianna dispararam, porém, como sempre, manteve a calma e aguardou as próximas palavras de Vilson.- Um grupo tem nos sondado há algumas semanas e as conversas se intensificaram depois do anúncio do IPO da BioTech - já faziam duas semanas do anúncio - obviamente não evoluímos para nada concreto e me limitei a passar informações de uso público. Foram basicamente

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vôos de reconhecimento por parte deles. Recebo visitas desse tipo o tempo todo de bancos nacionais e estrangeiros nos avaliando para seus portfólios de investimentos. Não tem porque envolvê-lo nisso, pois é coisa corriqueira.- Mas, dessa vez é diferente? - Adrianna não se conteve.- Ontem me informaram do interesse em uma parceria mais sólida conosco e não apenas compor um portfólio. Aparentemente o tradicionalíssimo Staton Union está buscando investimentos mais arrojados. Informei que precisávamos fazer uma reunião com você.- Não mencionou Adrianna, certo?- Não, você deixou bem claro que a existência ou participação dela nunca deve ser mencionada e gosto do meu emprego.- Desculpe-me Vilson, mas é da minha natureza checar. Prossiga, por favor.- Me ligaram agora. O CEO deles, Samuel Klingelman, está disposto a vir ao Brasil para se reunir com você. A coisa é bem mais séria do que pensei, confesso. Este definitivamente não é um procedimento usual. Como deseja encaminhar o assunto?Bruno insinuou abrir a boca apenas para ser cortado por Adrianna.- Marque o mais rápido possível. Ou melhor, deixe-os sugerir a data e aceite. Assim não mostraremos interesse e nem desinteresse. Moveremos a agenda para acomodar o encontro, se necessário.

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— Deixe fora apenas o dia do IPO, o anterior e o posterior Vilson. - Bruno fez a colocação repreendendo Adrianna com o olhar. Não era do feitio dela se portar assim, assumindo a liderança perante a equipe. Obviamente, estava agitada demais.— Ok. Depois de acertar com eles retorno a você.— Certo. E parabéns pela condução, primorosa como sempre. Ficamos no aguardo.— Obrigado chefe. Até logo Bruno e Adrianna.— Tchau.- Bye.Ao ouvir o desligar da chamada, Bruno se voltou para a sócia. A expressão era séria, porém condescendente.— Fique calma. Ficar nervosa não vai ajudar, além do mais náo faz sentido estarem agindo a mando de Kerligan, deve ser coincidência.— Não estou nervosa — o tom era decididamente nervoso. Ao perceber, tentou se recompor. - Estou com uma sensação ruim, só isso. E não dá para saber ainda se é ou não uma ação direta dele.— Se ele já soubesse de nós imaginaria que interpretaríamos a visita de Klingelman como um aviso antecipado. Estaria nos dando tempo para agir, o que não parece ser do feitio dele. Seria mais lógico uma aproximação direta ou atuar mais na surdina. De um jeito ou de outro nos atacando sem aviso.— A mente de um homem neurótico e obstinado como ele muitas vezes navega por caminhos incertos antes de chegar ao destino. Ele pode

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apenas estar fazendo uma sondagem inicial, avaliando o nível de perigo que representamos.— Se ele lhe conhece um pouquinho e até onde pude deduzir de nossas conversas, vocês se conheciam pelo menos profissionalmente, sabe o tipo de prejuízo que representamos.Ele a conhecia realmente muito bem. Fazia muito ela evitava aquelas lembranças. A proximidade do confronto entre eles fazia um belo trabalho em remexer nas gavetas antigas da memória.— Pode ser, mas não conhece você. Talvez esteja querendo descobrir se você representa uma ameaça.— Um detetive chinfrim e um estagiário infiltrado podem dizer isso a ele. Estamos evitando a imprensa e mantemos casas separadas, mas dormimos quase todas as noites juntos. Esta informação isolada já denuncia a sua importância para mim e, consequentemente, sua influência sobre mim. Se mapear nossos negócios, usando única e exclusivamente a internet, saberá onde estamos e pode bem deduzir onde queremos chegar. Embora façamos o máximo para não nos expor gratuitamente, é impossível esconder um grupo tão grande.— Você está certo. Precisamos aguardar e conseguir mais informações. Só não consigo evitar esta sensação...— Ocupe a mente e o espírito se acalmará — beijou-a na face, levemente, enquanto acariciava a outra. - Vá falar com Natan e me dê notícias.

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Apenas uma semana havia se passado. A quinta-feira era de chuva torrencial em São Paulo. A parede envidraçada do seu escritório mal permitia a vista dos carros na marginal Pinheiros tal era a sua força e violência. A visão, porém, era clara o suficiente para ressaltar a falta de movimento. Eram apenas 9h30. Previa mais um engarrafamento recorde na principal megalópole brasileira. Embora tivesse oferecido um helicóptero para buscar Samuel Klingelman - a empresa utilizava um serviço de táxi aéreo urbano quando necessário mantendo uma cota de tempo de voo paga a cada mês independente da utilização - ele recusara. Segundo sua assessoria, ele estaria em uma reunião bem cedo em um local suficientemente próximo para evitar dificuldades com o trânsito. Exceto estivesse em algum prédio de onde pudesse vir a pé a reunião teria de ser cancelada ou adiada por conta do mau tempo.Pensando bem, não culpava Klingelman. Seus primeiros passeios de helicóptero foram divertidos, pequenas aventuras. Depois se acostumara e, conforme a emoção diminuía e ficava mais atento aos efeitos das rajadas de vento sob a nave em movimento, percebia o quão frágil era o aparato e o quão dependente da perícia do piloto estavam. Ouvira certa vez em um seriado de TV sobre uma unidade de elite do exército que os helicópteros foram projetados para cair e um dia fatalmente cumpririam seu objetivo. Náo sabia o quanto aquilo representava apenas uma frase de efeito, sem correlação com

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a verdade objetivando tão somente ampliar a emoção carregada pelas imagens e aumentar a audiência, mas a cada minuto adicional de permanência no ar em uma daquelas máquinas, mais aumentava sua convicção quanto à lógica defendida pelo personagem. Provavelmente por isso nunca compraram um helicóptero a despeito das solicitações de alguns de seus CEOs e principalmente de Max.Conquanto a reunião se avizinhasse percebia em si sensações atípicas de nervosismo e talvez certa ansiedade. Reuniões de negócios não o agitavam mais. Fora-se o tempo quando negociações comerciais eram a parte mais emocionante de sua vida. Seu interesse primaz era descobrir se havia ou não a mão de Kerligan por trás daquilo. Neste ponto toda a informação era importante e gostaria muito de entender melhor o personagem Arthur Covet Goldwill. Avaliando melhor, acreditava ter sido contaminado por Adrianna. Após o fiasco da Strike Force Industries, a fabricante dos mísseis de longuíssimo alcance, estava segura de ter calculado mal os objetivos de Kerligan. O nome era ridiculamente apropriado para uma indústria de armamento, certamente o nome ideal se fosse parte de uma história em quadrinhos. A empresa de interesse de Kerligan fora o primeiro round perdido. Bom, tecnicamente o segundo, Bruno pensou, mas a empresa de predição meteorológica que Wagner não conseguiu comprar nunca foi absorvida como uma perda. Parte por Adrianna acreditar não ser um

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componente essencial ao sucesso de Kerligan e parte por ter sido Wagner o intermediário. Não sabia da importância e não fora bem preparado. O caso da Strike Force era diferente. Natan estava comprometido e fez o impossível para conseguir atrapalhar Kerligan. O que faltou mesmo foram dinheiro e preparação. Aquilo foi o golpe mais duro. Precisavam de quase um bilhão de dólares para bater a oferta da Revolutions Power e não era possível mobilizar aqúela quantia sem prejudicar toda a organização e, principalmente, sem chamar excessiva atenção da mídia. Ademais seria impossível explicar coerentemente isto aos outros membros do Infinito. Nem mesmo Adrianna se sentiu a vontade para autorizar a transação. Apesar de convicta, sem bases para tal na opinião de Bruno, do quão essencial o negócio era para Kerligan, de ser crucial impedi-lo, sabia ser inviável prosseguirem. Para piorar ainda mais a situação, Natan cruzou nos corredores com alguns enviados da Revolutions Power também envolvidos na tentativa de compra da Sun&Light levantando provavelmente algumas suspeitas. Deveriam afastá-lo de novas tentativas por algum tempo. Em resumo, Kerligan ganhou a batalha e precisariam mandar o melhor jogador para o banco de reservas.E como se não fosse bastante, Bruno agora compartilhava dos temores de Adrianna. Conforme ela o convencera aquele movimento redefinia as expectativas quanto aos planos de seu inimigo. Ela nunca havia incluído o caráter

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agressivo e ansioso dele na projeção feita dos seus planos. Inserir-se no mercado de armas lhe daria um impulso razoável para dominar política e economicamente a Terra. Sendo capaz de oferecer energia renovável barata, possuindo acesso a um gigantesco capital, e estimulando a guerra em regiões como no barril de pólvora geopolítico representado pelo oriente médio, ampliaria em muito as chances de se tornar a mente por trás dos governos. O racional era claro, a forma de execução nem tanto. Nada garantia ser este o caminho a ser seguido pelo adversário.Tentando manter a mente aberta na esperança da aquisição se prestar a fins mais pacíficos, Bruno e Adrianna se debruçaram por dias sobre os detalhes da pesquisa de sua equipe relativa à Strike Force. Contudo, não conseguiram vislumbrar qualquer tecnologia a ser aproveitada nos projetos de captação, armazenamento, ou geração de energia usuais da Power Innovations, holding controladora do grupo Covet. Consideraram fontes limpas como a eólica e solar, alternativas como a captura da energia cinética das correntes marinhas e até as tradicionais, nada enfim se encaixava. Isto não queria dizer muita coisa. Kerligan era especialista no assunto e Adrianna não. Muito menos Bruno.Uma possibilidade remota fora o estopim da angústia e preocupação de Bruno. Durante o estudo uma lembrança lhe veio à mente. A Blue Skies, a tal empresa meteorológica possuía apenas uma coisa realmente especial, um radar

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extremamente sofisticado e de longuíssimo alcance. Combinando esta tecnologia com a da Strike Force ele teria um míssil de longo alcance altamente preciso. Considerando que fossem capazes de adaptar adequadamente a tecnologia do radar, voltada ao espaço, mais precisamente aos movimentos da Lua, às complexidades e ruídos envolvidos na detecção de objetos na Terra. Apesar de remota a possibilidade, era assustadora o suficiente para incitar um sentimento de urgência e frustração em ambos.Seus pensamentos foram interrompidos pelo telefone sobre a mesa.- O Sr. Vilson Veiga está aqui, posso mandá-lo entrar?- Sim, Mirela. Alguma notícia do Sr. Samuel Klingelman?- O assessor dele ligou agora há pouco. Devem se atrasar apenas uns quinze minutos.- Ótimo.Bruno instruíra Vilson a fazer perguntas sobre o Staton Union e sua revolucionária saída do fundo do poço após a crise do "subprime" em 2008. Bem plantada a isca, levaria a conversa até Arthur Goldwill, o verdadeiro interesse daquela reunião. Partindo dele as perguntas gerariam menos suspeitas. Vilson fora convencido com certo ceticismo do interesse de Bruno em ser acionista do Staton Union e saber sobre Arthur, se não o principal certamente o mais influente acionista do banco, era chave no processo decisório caso resolvesse prosseguir com o intento.

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Às 10h39 Bruno adentrava o espaço de reuniões da Lima World Investments. A sala, bem parecida com a dos escritórios da Infinito, já contava com a presença de Samuel Klingelman e seu assessor, Bill Conway, quando Bruno e Vilson adentraram. Bill era mais jovem, mais magro e possuía mais cabelos que Samuel. Considerando a altura de quase dois metros e a pele negra poderia se dizer que os dois homens eram opostos absolutos. Contatos telefônicos haviam assegurado de que era desnecessária a presença de intérpretes, um benefício adicional considerando as preocupações com o sigilo em operações daquele tipo.- Bom dia, senhores - Bruno iniciou a conversação com um inglês perfeito imediatamente após abrir com rapidez a porta. O objetivo era estabelecer, pelo efeito, de quem era o domínio da situação.

Adrianna precisava se manter afastada da Lima World Investments naquela manhã. Efetivamente não utilizava muito as dependências daquele escritório. Passava mais tempo no escritório da Infinito, na torre anexa. Os sistemas de telefonia e computadores eram totalmente independentes, dando privacidade aos projetos e à exceção dela, Bruno e Mirela, não havia co-relacionamento freqüente entre as duas empresas. Mesmo assim eram fisicamente próximos demais e não arriscaria topar com pessoas da confiança de Arthur Goldwill no saguão ou em algum elevador. A premissa inicial de independência total entre

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os escritórios não seria prática após o início das aquisições e necessidade de movimentação dos membros do grupo entre suas "empresas projeto" e a holding, por isso garantiram a separação lógica e funcional e optaram pela pro-ximidade física.Diante da situação e, considerando seu estado de ansiedade, resolvera caminhar sozinha pela Avenida Paulista. Como principal via empresarial de São Paulo o calçadão, em ambas as margens, vive apinhado de gente movimentando-se freneticamente em todas as direções, especialmente no clima ameno de outono. De alguma forma a confluência de pessoas a acalmava. Seu cérebro curioso se distraía avaliando o comportamento das pessoas na Terra, tão diferente das de seu planeta natal. Era como um estudo antropológico para seu lado cientista. Adolescentes vestidos de forma excepcionalmente semelhante andando em bando. Rindo e fumando precocemente, buscando aceitação através da sensação de pertencer a um grupo, tivesse ele nome ou não, usando o cigarro para parecer mais adultos e experientes. Executivos de peito estufado, sempre em duplas ou trios, usando paletós e pastas como fardas na batalha dos negócios. Encaminhando-se para reuniões, esbanjando confiança, muitas vezes pautada na inocência de suas juventudes ou na certeza da necessidade de se usar sempre uma máscara no ambiente empresarial. Poucos tinham realmente confiança em si mesmo. Estranhamente os donos de

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bancas de revista pareciam ser imunes àquele habitat. Fosse pela rotina ou pela natureza calma do trabalho se confundiam com a paisagem como parte natural dela.Em Eiden as pessoas andavam mais calmamente, eram mais equilibradas e julgavam menos. Cresciam na sua maioria confiantes, certas, sobretudo, das oportunidades para errar e aprender, de poderem mudar de idéia e tentar novos caminhos caso desejassem. Em uma análise comparativa, atribuía esta diferença a três motivos principais. Primeiro a longevidade: não há tanta pressa quando se tem uma expectativa de vida de mais de duzentos anos. Mudar de profissão era normal, acumular experiências e usá-las em outro campo era visto com bons olhos. Certamente existiam médicos apaixonados por suas profissões, por exemplo, estes se especializavam cada vez mais e jamais cogitavam fazer outra coisa, mas eram exemplos raros. O mais comum era pelo menos uma ligeira mudança de rumo. Médicos se tornando administradores de hospitais ou gestores de clínicas. Engenheiros de obras derivando para consultorias. Arquitetos famosos se dedicando à pintura ou escultura e assim sucessivamente. De forma geral, não havia pressão para atingir rapidamente o sucesso e sim uma ênfase para se aproveitar ao máximo cada experiência. Por via de conseqüência, ao se deparar com um profissional medíocre em qualquer área, sabia-se que eventualmente ele se tornaria bem melhor ou mudaria de atividade. Evitava-se o rigor

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excessivo ao se julgar alguém. Um pintor exibindo pouco talento hoje poderia vir a ser um cineasta magnífico amanhã. Um engenheiro sem criatividade podia se tornar um grande empresário da construção. Aquela convicção tornava a todos mais tolerantes.O segundo ponto importante era um subproduto direto da superpopulação: há muitos anos não se podia ter mais de um filho por família. Após o parto as mulheres sofriam um processo de esterilização. Era passível de reversão, porém só se aprovado pela lei e concedido apenas em casos excepcionais. Com apenas uma criança e a certeza de um convívio longo com os filhos adultos, restava aos pais poucos anos para desfrutar da infância em família. A infância, tão curta e tão pouco numerosa, era respeitada e adorada por quase todos. Os pais dedicavam todo o tempo possível para o único filho ou filha. Era a chance de despertar neles as lembranças da inocência e de formar vínculos poderosos e duradouros. Explicar como o mundo funcionava, ajudar a torná-los fortes e confiantes, era tão parte da vida quanto respirar.Tudo isso poderia levar a uma legião de indolentes e preguiçosos não fosse pelo terceiro ponto considerado crucial por Adrianna. O sofrimento pelo qual o planeta passou em seu momento de recriação. A privação, a dor, a perda, as necessidades passadas quatro mil anos antes foram incrustadas em cada veia dos descendentes daquela geração. A história impregnava a cultura e a religião, moldadas pelo

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cinzel do destino em versões diferentes das anteriores àquele momento histórico. Da mesma forma que o holocausto mudara a vida dos judeus no planeta Terra, a vida em Aqua fora transformada pelos anos iniciais após a recriação. Havia respeito às instituições e, sobretudo pelo próximo e a natureza. A escassez de terra e seus frutos, ante ao crescimento vertiginoso da população, eram uma constante lembrança dos ensinamentos recebidos na infância. A história e os valores eram transmitidos nos lares e nas escolas e se mantinham vivos através da profusão de filmes sobre os anos iniciais.Distraída em seus pensamentos, se deixou esbarrar em um transeunte mais desajeitado. Na tentativa vã de se esquivar, deslocara o corpo para a esquerda com um giro sobre o tronco. Não detivera a trombada, porém pelo canto do olho pensou ter visto alguém conhecido alguns metros atrás dela. Ao se refazer do movimento, virou-se para trás. Não identificou mais a pessoa. Nem mesmo foi capaz de lembrar-se de onde a conhecia. Talvez fosse apenas impressão. De qualquer maneira não seria a primeira vez que um terráqueo a lembrava de alguém de Eiden.Infelizmente, o episódio destruiu suas tentativas de se distrair, fazendo sua mente navegar pelos relatórios recebidos naquela manhã. Desde a notícia do interesse de Kerligan pela Strike Force mandara dobrar a vigilância sobre o grupo Power solicitando relatórios semanais completos e resumos a cada dia. A notícia recebida em seu e-

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mail naquela manhã não era especialmente inte-ressante, porém a deixara estranhamente incomodada. A Revolutions Power adquirira uma enorme área de terra no Brasil, mais precisamente no estado de Goiás. Nada se sabia sobre o objetivo da compra. Situada na BR-60, a cerca de cinqüenta quilômetros da cidade de Anápolis e cem quilômetros de Brasília, a terra era aparentemente considerada pobre para criação de animais ou plantio de qualquer cultura específica da região.Apenas o excesso de zelo de um dos investigadores permitira tomarem conhecimento do fato. Intrigado pelas visitas constantes de uma corretora de imóveis, funcionária de uma imobiliária especializada em aquisições internacionais, à Olívia Whitelman, presidente da Revolutions Power e alvo principal de sua vigilância, o investigador resolvera invadir os computadores da corretora. Vasculhou todas as transações envolvendo a empresa e os principais executivos da Revolutions e o único negócio realizado fora aquele. A enorme soma de dinheiro paga mensalmente à agência de investigação de Londres, a Private Look Inc., se mostrara justificada.O que ele fará com o terreno? Por que o Brasil? Uma peça do quebra-cabeças que, definitivamente, não se encaixava em lugar algum. Repassara o e-mail para Bruno e pedira especial atenção a qualquer movimentação relativa àquele assunto tanto para a agência de Londres quanto à do Brasil. Por enquanto, nada

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mais podia ser feito, adicionando à pilha de frustrações, mais um item. As coisas estavam saindo do seu controle. Precisavam de mais dinheiro e rápido.

— Sr. Lima, não quero parecer pretensioso, mas, em pouco tempo, o Staton Union se tornará o primeiro banco da Inglaterra em ativos e estamos lhe oferecendo a oportunidade de uma parceria sem perda de controle. Este tipo de negócio não aparece todo dia. Estou certo de podermos chegar a um acordo quanto a qualquer detalhe necessário à evolução de nossas negociações.Passaram-se quase quarenta minutos desde o início da reunião e Samuel estava impressionado com a resistência de seu anfitrião. Não estava apenas dourando a pílula para vendê-la mais caro, simplesmente não desejava abrir o canal de negociações. Ainda assim o peso da experiência lhe provia confiança em sua capacidade de convencimento.- O grupo Lima conquistou muito, não há dúvida quanto a isso, contudo estamos falando de ativos da ordem de 3 bilhões de dólares. A quantia é inferior ao nosso lucro trimestral. Imagine a alavancagem que um banco como o Staton Union pode oferecer. Juntos poderemos crescer a taxas impressionantes, ampliando os pontos de presença da Lima em todo o mundo.Bruno ouvia atenciosamente apesar de o esforço do Sr. Klingelman ser inútil. Jamais poderia se aliar ao Staton Union, independente da necessidade ou de sua utilidade em seus planos

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de crescimento. Incapaz de oferecer o real motivo não lhe restava nada senão deixar claro não precisar de parceiros, mesmo sob o risco de parecer prepotente, ingênuo ou pouco ambicioso. Sempre poderia deixá-lo voltar para casa sem uma justificativa, porém impressionar o homem seria bom para os negócios futuros do grupo. Optou, portanto, por incorporar a prepotência tomando o cuidado de manter o alto nível do debate e temperando-o com um leve toque de condescendência.— Muito me honra o interesse e nada me deixaria mais feliz do que ter seu banco como investidor do APMM. Contudo não precisamos de parceiros e seria irresponsável de minha parte perante nossos associados dividir com mais alguém nosso potencial de crescimento. Veja bem, Sr. Klingelman — levantou-se e começou a falar em tom enfático, gesticulando e movendo-se em direção à parede de vidro, encenando uma coreografia desenhada para impressionar o interlocutor. - Temos hoje sete empresas as quais, garanto, irão mudar paradigmas em seus respectivos setores e se combinarão em diversas maneiras multiplicando seu valor intrínseco. Ofereceremos ao mundo, em poucos anos, computadores dez vezes mais baratos, vinte vezes mais potentes, pelo menos 40% menos poluentes. Tornaremos realidade no cotidiano dos cidadãos comuns o carro elétrico. Levaremos para todos os cantos a cura para doenças como a Leucemia e o Alzheimer e de forma acessível, devo acrescentar. Revolucionaremos o vestuário

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através das roupas autolimpantes em uma abrangência e penetração muito superior a de nossos concorrentes. E, prevejo, seremos grandes participantes no mercado de energia limpa. Em dez anos seremos um grupo de um trilhão de dólares.Bill Conway fazia anotações freneticamente enquanto Vilson esboçava sua expressão mais séria, exatamente o que fazia quando precisava esconder seus reais sentimentos. Estes variavam entre a certeza de Bruno estar causando grande impressão e a incômoda sensação de que ele realmente não estabeleceria nenhuma parceria com o Staton Union, algo considerado por sua mente de financista quase um sacrilégio.- Falando desta maneira o senhor me lembra muito Arthur Covet Goldwill, não sei se o conhece.A hora da verdade se aproximava, Bruno imaginou. Aquela era a chance e Vilson Veiga interveio magistralmente.— Um dos principais responsáveis pelo sucesso do Staton Union frente à crise do subprime? O visionário líder do grupo Power?— Gosto de pensar que tive alguma participação no sucesso do banco também, Sr. Veiga. Mas não posso negar a verdade em sua assertiva — retrucou Samuel.— Não tive o prazer de conhecê-lo pessoalmente — Bruno respondeu.— É um homem impressionante, Sr. Lima. Agregaria valor aos seus audaciosos planos, estou certo.

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— Podemos considerar que o interesse do banco tem não apenas o aval, mas também o interesse pessoal das indústrias Power?A intervenção de Vilson foi cirúrgica. Nem em suas previsões mais otimistas Bruno imaginara uma parceria tão sincronizada aos seus interesses.— Como conselheiro do banco, ele conhece nossas diretrizes gerais e a lista total de ativos de interesse, com a qual está de acordo - informar o pouco interesse de Arthur estava fora de questão e mentir era arriscado. Se o negócio prosseguisse havia uma pequena possibilidade de Bruno e Arthur se encontrarem e a história de como, inicialmente, ele se opusera à associação poderia parecer uma ótima piada prejudicial aos interesses de Samuel. Por outro lado, não gos-taria de perder o gancho. O nome Goldwill poderia fazer a diferença. - E meu convívio com Arthur me deixa seguro de que gostará de participar do negócio se avançarmos nas negociações.— Poderíamos dizer que, pelo menos no momento, o Sr. Covet não está a par dos detalhes desta negociação e não existe interesse declarado do grupo Power no grupo Lima?Vilson sempre fora duro com as palavras, nunca gostara de meios termos. Acreditava que aquele era um de seus maiores diferenciais. Seus opositores pensavam diferente. Seus parceiros o admiravam pela consistência e pela clareza. Não era homem de velar interesses e manter agendas

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ocultas. Naquele momento Bruno teve certeza do quanto seu papel na organização se ampliaria.— Sr. Lima, estamos lhe oferecendo facilidade na obtenção de empréstimos de grande vulto. Capacidade de intermediação financeira em toda a Europa. Contatos, e, sobretudo, um nome sólido, respeitado há quase um século em todo o mundo. A associação pelo menos indireta ao império de Arthur Covet seria uma conseqüência natural — imaginava se conseguira disfarçar o próprio incômodo. Pelo olhar do Sr. Veiga para o Sr. Lima percebera o fracasso.Do ponto de vista de Bruno a reunião já acabara. Klingelman não estava ali a mando de Kerligan.Saindo do elevador pediu a Bill para aguardar no carro estacionado à frente do prédio onde o motorista os esperava. Enquanto via o assessor se distanciar, munido de uma pasta grossa contendo um resumo dos planos estratégicos do APMM montado especialmente para potenciais investidores, sentiu o peso da frustração. Sabia reconhecer a derrota quando a via. Não conseguiriam nada além de um papel pequeno nos negócios da Lima World lnvestments. Bruno oferecera prioridade nas transações bancárias do grupo na Inglaterra caso se tornassem investidores de peso, mas aquilo não abrandava a acidez no estômago enquanto ligava para MJ. O homem lhe dera uma oportunidade de ouro e ele não fora capaz de aproveitar.

25. O primeiro dia da nova realidade

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O grande dia chegara. O lançamento da BioTech na bolsa de valores. Mesmo não sendo responsável pelo projeto queria estar preparada, sabia da importância do resultado para o sucesso dos próximos IPOs. A imprensa certamente arguiria suas impressões. Diante disso, passara no escritório da Infinito em São Paulo antes de se dirigir à sede da Bolsa de Valores. Revisava freneticamente os dados do prospecto preliminar comparando-o com o relatório detalhado preparado por Max. Deu graças a Deus pelo seu pendor em utilizar auxílio áudio-visual. Uma apresentação em PowerPoint estudada por ela na noite anterior destacava com clareza e objetividade os pontos principais do negócio, bem como as vantagens para os novos acionistas facilitando muito a revisão em curso. As esti-mativas iniciais eram de uma captação de 600 milhões de dólares por 30% do capital colocado à disposição para negociação em bolsa. Após os avanços extraordinários feitos nos últimos meses, os pessimistas apontavam para uma cap-tação de 1 bilhão de dólares. Diante das perspectivas, Bruno e Max decidiram disponibilizar apenas 25% do capital e mesmo assim as análises apontavam para uma captação ainda maior, da ordem de 1 bilhão e 200 mil dólares. Um fluxo de notícias positivas, estrategicamente disparadas através de especialistas convidados para visitar as instalações e auditar o protótipo, garantiu uma captação de 1,5 bilhão. Todas as ações ofertadas foram adquiridas. Agora a BioTech era uma

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empresa de capital estimado em 5 bilhões sem ter vendido sequer uma placa de memória. Revistas, especializadas em negócios ou tecnologia estampavam o rosto de Bruno ao longo do globo. As editorias de economia dos jornais exercitavam o escrutínio do negócio e da ascensão de seu líder ao limite. O dia de hoje, o primeiro pregão da Bio Tech, seria o teste final daquela primeira fase. Se houvesse valorização da ordem de 5% das ações estaria garantido seu lugar no pódio dos melhores negócios do ano.O relógio marcava 8h30. A despeito do dia de sol achava prudente se encaminhar para o prédio da Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros. A cerimônia de abertura começava às 9h45 e jamais se podia confiar no trânsito da megalópole. Ao colocar o celular e a caneta na bolsa notou um envelope azul sobre a mesa. Destacava-se pela cor e pelo fato de normalmente não receber correspondências naquele endereço. Talvez fosse um bilhete de Bruno ou Adrianna deixado por Angeluce, a secretária dos seis diretores de novos negócios. Sem remetente indicado, no verso apenas o nome "Rachel" escrito em letra cursiva. Ao abri-lo, ficou confusa. Uma colagem de jornal, como aquelas usadas por seqüestradores em filmes. Intrigada, discou imediatamente o ramal de Angeluce.— Olá, Rachel. Em que posso ajudá-la? - disse a voz profissional no outro lado da linha.- Tem um envelope azul na minha mesa sem remetente. Sabe quem o enviou?

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— Envelope azul? Realmente não sei. Quando verifiquei se estava tudo em ordem em sua sala mais cedo, ele não estava aí. Vou checar com o pessoal do malote se deixaram algo. A princípio tudo deve passar por mim, mas alguém pode ter se enganado. Retorno-lhe em seguida.— Obrigada — Rachel desligou. Alguns minutos depois, Angeluce informou não haver pista sobre o responsável pela entrega do envelope.— Quer que acione a segurança?— Não, não é nada demais. Obrigada.Certamente não era brincadeira de Bruno. Sempre fora sério demais em relação ao trabalho. Falaria com ele após a cerimônia. Era, provavelmente, uma brincadeira de mal gosto de algum funcionário descontente.Antes de entrar na escola, acompanhado por seu pai e a irmãs, Pedro sorriu apontando para o outdoor na esquina.— Seu nome, papai!Ao se virar, Max se esforçou para dissimular a estranheza.- Aí "Peu"... Seu pai é famoso, rapaz - todos riram da brincadeira. Deu um beijo estalado nos filhos e, em seguida, atravessou os portões adentrando os muros da instituição.Ao retornar andando as duas quadras entre a escola e seu prédio não conseguia parar de pensar no outdoor. Encontrou Cristiane na garagem de onde partiriam juntos para a BYME Se o trânsito estivesse normal chegariam em uma hora, pouco antes do horário da reunião com Bruno e os diretores da Bolsa às 9h. Max fez

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questão de passar em frente ao outdoor onde as palavras pintadas em branco, sob o fundo azul, se destacavam na paisagem. O texto caberia perfeitamente a ele e usava o seu nome e não era um nome tão comum assim no Brasil. Nenhuma logomarca, nenhuma pista do produto ou da agência de publicidade. Obviamente, embora extremamente curioso, não se referia a ele.Deram risada de sequer terem considerado a hipótese.

Na casa nova para onde finalmente se mudara com Milena e Alice, abandonando o hotel nos Jardins, Wagner recebia do porteiro uma encomenda pouco usual: uma caixa de trinta por cinco centímetros. Estava atrasado e deixou para abrir no carro. No sinal vermelho, durante um dos típicos engarrafamentos de início de dia, abriu o embrulho sem remetente. Dentro, um papel enrolado em forma de pergaminho com uma mensagem inesperada o deixou desconfortável. Aquilo não era normal. Ligou para a administração do prédio. Problemas com o encanamento do andar de cima, logo ao se mudarem, o fizera reservar um lugar cativo para o número da administração na agenda do celular. Aparentemente ninguém se lembrava do mensageiro responsável pela entrega da caixa. Decidiu dividir inicialmente o assunto com Marco. Imaginou se mais alguém havia recebido algo parecido.

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Ao sair do carro foram cercados pelos repórteres. Ficou feliz por não ser ele o centro das atenções. Odiava aglomerações. Sentia-se levemente desorientado naquelas situações. Remontava a um episódio vivenciado com Bruno, ainda adolescentes, quando foram atacados por um bando de moleques. Felizmente, o saldo negativo na ocasião foi de apenas alguns machucados leves, além da confusão incômoda que passou a sentir frente a multidões como aquele conjunto de repórteres munidos de canetas, filmadoras e máquinas fotográficas.Ao se aproximarem da entrada principal da BVMF, o corredor humano se afunilou. Marco sentiu uma mão vasculhando seus bolsos. Foi um intervalo de tempo curto demais para reagir ou conseguir localizar o intruso. Porém, teve certeza de que alguém tentara ou conseguira roubá-lo. Conforme adentraram o saguão os espaços se ampliaram o suficiente e ele tratou de checar os bolsos. Aparentemente nada havia sido roubado. Pelo contrário, puseram um pequeno envelope no bolso de fora do paletó. Enquanto Bruno se distanciava, conversando eloqüentemente com uma repórter, ele leu a mensagem cifrada em recortes de jornal. Não imaginava quem se daria ao trabalho de fazer aquele tipo de brincadeira.

Ao desembarcar, Natan ouvira o sistema de auto-falantes do aeroporto chamando seu nome. Às 8hl5 ainda havia grande risco de chegar atrasado. O percurso entre Guarulhos, na grande São Paulo, e o centro da cidade, podia levar

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facilmente duas horas. Portanto, correu para o balcão da companhia. Talvez fosse um recado urgente de Bruno. Ao se identificar lhe passaram um telefone.— Alô, aqui é Natanael Pontes.— Sr. Pontes - uma voz grave e indistinta o recebeu. Foram apenas alguns segundos, algumas frases curtas e incisivas e um "clic", seguido do tom constante denotando o fim precoce da conversa.Pego de surpresa, Natan não conseguiu falar nada antes do final abrupto. Questionou as atendentes furiosamente - sua paciência nunca fora grande. - O interlocutor misterioso havia entrado em contato com a companhia con-vencendo-os da importância de transmitir a notícia sobre o falecimento de um parente próximo. Segundo o ardil, o homem precisava que o Sr. Natanael voltasse imediatamente para cuidar das questões do enterro. Sensibilizados, os atendentes resolveram repassar a chamada.Precisava comunicar Bruno imediatamente. Ao acalmar-se, pensou melhor e reavaliou a ação, Bruno não devia se distrair agora. Com celular em punho, já se dirigindo para a entrada principal onde o motorista da Infinito o aguardava, discou rapidamente.— Natan — a voz respondeu prontamente.— Adrianna... Tenho más notícias.Do banco de trás da limusine da empresa, Olívia se perdia em pensamentos. Estava prestes a chegar à residência de Arthur, em Bishops Avenue. O endereço em si já funcionava como

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um cartão de visita em Londres espelhando o status de seu ocupante. Lá, uma festa acontecia cujo motivo seria revelado às 23h em ponto. Mais um mistério do Sr. Goldwill. Sem pistas, restava a ela se resignar com a face enigmática de seu amante e chefe, ou se afastar. Nunca fora mulher de se submeter a segredos ou agendas ocultas. Prezava a independência e a capacidade de realização, sua autoconfiança lhe impelia a correr riscos e buscar sempre um ponto mais alto a atingir. Com Arthur e seus segredos, se sentia tolhida, diminuída até. Quando iniciaram seu relacionamento estava segura de que partilhariam a partir dali uma cumplicidade crescente. Afinal, descobrira seu principal objetivo, desenvolver uma alternativa de produção de energia limpa e de baixo custo utilizando correntes marinhas, uma ruptura em qualquer conceito vigente, sob todos os ângulos. Um projeto no qual se engajara de corpo e alma. Infelizmente, havia mais. Nos meses subsequentes, ele realmente parecia confiar mais nela, designando-a para liderar os mais secretos projetos de aquisição. Nem sob obrigação da lei conseguiria descrever nada incoerente ou suspeito nas ações de Arthur, contudo sentia, no íntimo, que algo estava fora de lugar.A aquisição da Blue Skies era complementar ao projeto Space Vision desenvolvido na Revolutions Power e permitiria possuírem, em cerca de um ano, o melhor sistema de defesa anti-aérea conhecido pelo mundo moderno. Os mísseis produzidos na Strike Force Industries, empresa

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de armamentos recentemente comprada pelo grupo, se beneficiaria dos avanços do projeto Precision, também da Revolutions, ampliando o alcance e a assertividade dos projéteis. As orga-nizações Power se transformavam assim, do dia para a noite, em personagem importante no mercado de armamentos pesados. Poderiam vender para todos os lados de um conflito mundial ganhando mais dinheiro do que se pode contar. A presença do tipo de arsenal capaz de ser fornecido pelas tecnologias do grupo podia até, no limite, evitar uma guerra; e se ela acontecesse, as indústrias Power ganhariam também na reconstrução das nações através de seus projetos ligados à geração de energia.Financeiramente era perfeito, exceto por um pequeno detalhe. Ninguém fora da Revolutions sabia o quão intensamente estavam investindo no ramo militar. À exceção dos contratos já firmados pela Strike Force antes da aquisição, nada novo estava sendo anunciado aos potenciais compradores e a Blue Skies ainda era vista apenas como uma empresa de previsão meteorológica. Aquela altura, contratos ou pelo menos cartas de intenções, já deviam estar assinadas junto a governos nos cinco continentes. A cada minuto perdido avançavam as possibilidades da concorrência abocanhar o orçamento bélico dos futuros clientes, e aí, tendo ou não um produto melhor, o conglomerado Power perderia bilhões. Ela tentara argumentar, fora incisiva e, eventualmente, abusiva, sem conseguir mover um centímetro sequer a posição

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dele. Segundo o plano de Arthur deveriam anunciar os novos sistemas apenas quando estivessem 100% prontos. Sua atitude em si era suspeita, um argumento fraco e inconsistente com a agressividade das negociações nas recentes aquisições. Nenhum homem de negócios, muito menos Arthur Covet, perderia a oportunidade de vender os projetos antes de seu lançamento. Não no segmento militar.Ademais, a redoma de segredos envolvendo aqueles projetos era insana. Ele chegara a exigir uma checagem periódica das atividades externas dos principais cientistas utilizando detetives particulares. Visava garantir que ninguém estivesse vendendo informações à concorrência. Aquilo era ridículo e ela se recusou a fazer. Fora um dos raros momentos de forte tensão entre eles e ela sobrevivera, como funcionária e namorada, mas só por pouco. No final das contas ele reconheceu que estava exagerando e agradeceu por contar com ela como sua consciência. Olívia nunca considerara sua consciência uma qualidade de destaque, afinal era uma executiva do alto escalão e de muito sucesso. Infelizmente ninguém chegava naquele patamar com o julgamento moral em perfeito estado de preservação, pensou ela. No caso em questão, contudo, Arthur parecia estar certo. Do ponto de vista dele, ela tinha uma consciência. A gota d'água em suas suspeitas veio com a aquisição, absolutamente sem sentido e sem explicação, de 266 acres - 108 hectares, 1 milhão e 80 mil metros quadrados - absolutamente

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improdutivos e no Brasil. País em que eles, até então, não possuíam nenhum negócio em anda-mento. Ainda por cima, Arthur lhe pedira para não fazer perguntas. Apelou para que confiasse nele. Logo, disse ele, viriam todas as explicações necessárias.Tudo aquilo era absurdo. Queria se desligar daquela situação. Dar um fim àquele relacionamento. Mudar de empresa. Assumir de preferência alguma posição internacional na qual pudesse se dedicar ao trabalho e esquecer Arthur. Na verdade não faria aquilo. Ela sabia. Tinha orgulho em se conhecer, seus sentimentos, medos, fraquezas e sua força e, naquele momento, reconhecia que estava perdidamente apaixonada por aquele homem, por sua visão de futuro, sua inteligência superior, sua energia, e, sobretudo o toque de seus dedos. O calor de seus lábios e a força protetora de seu abraço. Mesmo contra a lógica, confrontando sua natureza desconfiada e cética, seguiria aquele homem até a o fim dos tempos.

A recepção começara há pouco. Já a festa havia começado cerca de quatro horas antes, no encerramento do pregão. As ações da BioTech subiram 7,23% no dia de abertura, movimentando cerca de 1 bilhão e 700 milhões de reais, quase 1 bilhão de dólares. Bruno estava esfuziante ao receber seus convidados. Era a primeira vez que abria a mansão a visitantes. Mesmo convidando apenas os funcionários mais graduados e os maiores parceiros de negócios,

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enchera a residência com quase trezentas pessoas.Ao se deparar com a escadaria de mármore carrara divisando a mansão em duas alas, todo convidado se enchia da certeza de que estava adentrando em um mundo de riqueza, Jennifer refletiu. O pé direito de seis metros no térreo atingia a altura, aproximada, de vinte metros no vão criado pela escada responsável por conectá-lo ao primeiro andar, tanto pela direita quanto pela esquerda. Era um imóvel relativamente novo, porém construído no estilo neoclássico e dotado de certo toque europeu. Os convidados eram encaminhados para a ala esquerda onde uma gigantesca sala provia o ambiente para sentarem, conversarem, ou simplesmente circularem, marcando presença nos diversos grupos. O mobiliário no estilo Luiz XV e os quadros remontando a paisagens impressionistas localizavam a decoração no estilo dos castelos franceses do vale do Loir. Normalmente os novos ricos tendiam para decorações modernas e casas de arquitetura futurista. Não era o caso. De fato, a casa lhe lembrava muito a de outro expoente dos negócios, um novo rico também, cujos passos ela acompanhava por motivos profissionais. Seguindo até o final do salão, uma porta de madeira de dois metros e meio de altura e dois de largura, aberta para os dois lados como a de uma igreja barroca, dava acesso aos jardins onde uma gigantesca fonte jorrava água através das mãos espalmadas de Hércules e dos raios lançados por Zeus, formando um majestoso

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conjunto de estátuas. Além dos esplêndidos jardins, toldos protegiam as mesas e o pequeno palco, onde uma orquestra provia a música instrumental clássica adequada ao ambiente.Jennifer Melrose, colunista do Financial Times, estava de férias no Brasil e náo resistira ao evento. Nenhum repórter estava na lista de convidados e ela comparecera como acompanhante de Carlos Milante, presidente da Bolsa de Valores de São Paulo. Carlos cavava uma boa cobertura para o Brasil, talvez como líder dos mercados emergentes. Em seus planos estava a consolidação das bolsas Latino Americanas sob sua bandeira e jamais subestimava o poder da imprensa. Jennifer prometera não escrever sobre o evento, queria conhecer o homem por trás do sucesso, como dissera. Na visão de Carlos, só podia ser bom para a Lima World Investments. Melrose não se impressionava fácil, mas a história de Bruno chamava atenção pela velocidade do sucesso. Perdia apenas para a fantástica história de Arthur Covet. Aparentemente os dois homens tinham duas coisas em comum: o talento para o sucesso rápido e o gosto para decoração. Estava realmente curiosa e uma repórter curiosa era com um cachorro com pulgas... Incansável.

- Quais foram as palavras exatas? - Bruno perguntou.Estavam em seu escritório no andar de cima. Envoltos por estantes de livros por todos os lados, exceto na parede emoldurando a janela

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atrás da estação de trabalho, Bruno, Adrianna e Natan debatiam os últimos acontecimentos sentados nos sofás. O jogo de estar preenchia o vazio entre a parede de estante mais distante, ao lado da porta e a estação de trabalho.- Eu anotei logo depois da ligação, mas não tenho certeza das palavras: "O senhor não me conhece, mas sou seu amigo. Ouça atentamente. Bruno está usando vocês. Adrianna tem uma agenda particular e Bruno a segue à risca. Vocês não representam nada além de meios para um fim. E vão sofrer as conseqüências por isso". Bom, seja lá como tenha sido exatamente, o sentido foi este — Natan comentou.- Você acha que foi Kerligan ou alguém seguindo suas ordens? - Bruno fixava o olhar em Adrianna.— Não sei. Nada até agora indicava isso.— Quem mais poderia ser? — Natan gesticulava fortemente, como sempre fazia quando estava nervoso - eu fiquei muito visível com essa história da Strike Force. Vacilamos. Devíamos ter mandado Marco ou Max.— Se for Kerligan ele sabe sobre Adrianna — Bruno virou-se para ela mais uma vez. — Se Kerligan soubesse de você acredita que ele faria ameaças ou lhe atacaria de vez pelas costas usando o elemento surpresa?Adrianna levantou-se e caminhou até a parede de vidro massageando o dedo anular direito enquanto pensava. Por um momento, seus olhos se mantiveram hipnotizados por uma lembrança. Levantou a cabeça e deu sua opinião, embora ainda relutante.

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- É difícil prever as atitudes de um psicopata. Porém acredito em duas hipóteses e as duas envolvem confrontação direta. Ou tentaria me matar ele mesmo ou tentaria me demover da idéia de interferir. Normalmente não se esconderia por trás de ameaças anônimas. Não é seu estilo, seu modus operandi. Ou pelo menos, não era. Isso não quer dizer que não tenha mudado.- Pelo menos neste planeta daqui as pessoas não mudam. Se o DNA de vocês é parecido com o nosso, um sociopata orgulhoso e prepotente, como você o descreve, não mandaria fazer esse tipo de ameaça vazia - Natan ponderou, agora ligeiramente mais calmo.- Mas quem, então? - a pergunta advinda dos lábios de Bruno ecoava na mente dos três.- Não tem como termos certeza de nada. Enquanto isso, precisamos assumir o pior e agir de acordo. De qualquer modo já perdemos terreno para Kerligan em dois negócios pelo menos e não identificamos ainda o que ele quer com a área adquirida em Goiás.- A melhor defesa é o ataque - Bruno interrompeu Adrianna. - Chegou a hora de deixar o excesso de cautela de lado. Precisamos de todo o dinheiro que pudermos. Não quero perder mais nenhum negócio para Kerligan. Está na hora de você tirar o pé do freio.- Não estou entendendo. — Natan estava confuso, mas pelas feições sérias do casal se encarando com seriedade a sua frente, eles se entendiam perfeitamente.

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Adrianna se libertou do olhar de Bruno piscando um pouco mais pausadamente que o normal, tomou fôlego e se dirigiu a Natan.- Como você sabe Natan, meus conhecimentos de biologia molecular e medicina são bem avançados em relação os patamares de hoje na Terra... Melhor dizendo, são mais avançados no meu campo de especialidade. Com o cargo de consultora especial, para a maioria dos nossos projetos envolvendo minha expertise, tenho conduzido as pesquisas com dicas, sugestões e opiniões em reuniões de equipe, tentando direcionar os cientistas para o caminho cuja história em Eiden me diz que será bem-sucedido. Eventualmente troco a ordem dos testes durante a madrugada ou insiro um componente a mais nos compostos fazendo parecer um acidente. Assim tenho conseguido alavancar nossos progressos.- Eu sei e entendo que está fazendo tudo para obtermos resultados o mais rápido possível. Não é mesmo? Afinal, nosso grupo e, de certa forma, toda a civilização aguarda essas descobertas.Adrianna percebia a mensagem subliminar. Entre a civilização, certamente, se incluía o próprio Natan e entre as descobertas, certamente, se encontrava a variação do Alphall ainda em desenvolvimento. Tomaria cuidado com as próximas palavras para não colocar em risco o ótimo relacionamento construído com Natan nos últimos meses. Fosse por Bruno ou por ela própria, pois já o considerava um amigo, se não íntimo, certamente leal.

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- Na maioria dos casos sim.- Não em todos?- Em todos estou no limite. Se quisermos avançar mais vou chamar atenção para mim.- Sempre preferimos evitar que a comunidade científica percebesse Adrianna — Bruno interveio. — Criamos credenciais médicas falsas, mas não são à prova de bala. Apesar disso, diante dos últimos acontecimentos, não podemos nos dar ao luxo de esperar mais.- Caso tivesse liberdade quais projetos poderia acelerar? - Natan arguiu Adrianna. Sua expressão não deixava dúvidas de que tinha algo em mente.- Podemos adiantar uns seis meses o lançamento do Revivit, talvez mais, dependendo da burocracia dos órgãos de saúde - Revivit, como Natan sabia, era o nome provisório da droga revolucionária da Fênix Farmacêutica capaz de inibir o Alzheimer em pacientes abaixo de 60 anos.Adrianna andava a passos curtos olhando para baixo enquanto mentalmente fazia projeções. Os homens aguardavam pacientemente.- Também podemos gerar uma versão bem próxima da fórmula definitiva do LFCF para testes quase imediatamente - era o nome código do composto principal da Cellular Growth voltado à cura da Leucemia. - Não tenho uma resposta definitiva, contudo se partirmos do composto que acredito que seja o adequado precisaríamos apenas de testes para ajustar sua eficácia às variações da doença na Terra. Embora

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claramente precisemos de uma bateria longa de testes e da aprovação do FDA — órgão americano responsável por autorizar a comercialização de remédios — e não temos total controle dessa etapa, em alguns meses já seria possível anunciar a redução pela metade do tempo previsto para a liberação da droga definitiva. Versões intermediárias ampliariam em muito a sobrevida dos pacientes e poderiam ser lançadas em cinco anos, talvez. É o suficiente para fazermos o IPO da empresa - fez uma segunda pausa mais rápida antes de finalizar - e podemos liberar o projeto da ADe? em quatro meses, acredito. Felizmente a FDA não se mete na limpeza de roupas, mesmo quando realizada através de agentes biológicos.- Em que está pensando Natan? Obviamente você tem algo em mente.Colocando a mão no ombro de Bruno Natan sorriu.- Às vezes todo mundo esquece que eu também sou médico. Amanhã vou solicitar os detalhes técnicos dos projetos da Cellular Growth e da Fênix. Depois sentamos juntos - falava olhando para Adrianna - e você me explica as soluções. Na próxima semana faço uma visita aos laboratórios e banco o prepotente, como quem quer provar alguma coisa e sugiro novos caminhos. Adrianna vai ser meu cicerone e estimular os chefes de laboratório a testar a teoria maluca do "doutor", sócio do "chefe", depois de eu ir embora. Podemos repetir a brincadeira algumas vezes, o quanto for

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necessário, assim tiramos um pouco o foco da nossa gênio particular - o sorriso se expandia pela sala.- É tão simples que pode até funcionar. Vale a tentativa - disse Bruno.- Só não resolve a questão da ADe. Ninguém vai acreditar em um chute tão fora da sua área — Adrianna ponderou.- É... Esta vai ficar com você mesmo. Pelo menos reduz sua exposição. Todos concordam? — pequenos balanços de cabeça selavam o acordo.- Ótimo! - disse Bruno. - Adrianna, quando você me der o "ok" coordeno com Cris e Vilson uma oferta secundária de ações da Fênix em três meses. Assim faremos caixa. Este ano as ações já subiram 100% e deve subir mais uns cem depois do anúncio do adiantamento do cronograma. Programamos o IPO da Cellular Growth para outubro e o da ADe para setembro. Considerando tudo, poderemos levantar uns 3 a 4 bilhões de dólares de caixa e ampliar o valor dos ativos em 7 a 8 bilhões. Já será o suficiente para criarmos muitos problemas para Kerligan.Adrianna sorriu para Natan e lentamente se aproximou.- Obrigado meu amigo por estar ao nosso lado — ela o abraçou com força e carinho. Depois, beijando sua face, se afastou. — Agora vamos para a festa, já devem estar perguntando por nós.Natan parecia um pouco constrangido. Normalmente ele acolhia bem aquele tipo de manifestação, no máximo falava algo bobo para

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amenizar o clima. Daquela vez ele apenas sorriu e seguiu de cabeça baixa em direção à porta, entre ela e Bruno. Provavelmente fora a primeira demonstração de carinho de Adrianna para com ele, Bruno pensou.Aproximadamente 100 convidados participavam do evento lotando o salão de estilo francês, remontando ao século XVIII. Ao chegar Olívia ficara intrigada pela heterogeneidade do grupo. Embora todos fossem ligados direta ou indiretamente às empresas do grupo Power, preenchiam posições hierárquicas díspares. Samuel Klingelman, presidente do Staton Union; Alvin Stone, presidente da Covet Power e diversos diretores de suas empresas assim como Olívia e os principais executivos da Revolutions Power, dividiam a cena com gerentes de projeto da Covet e cientistas líderes de projetos da Revolutions. Obviamente, Milton Jacobs também estava presente. Naquele ambiente, conversando com todos, era simpático e agradável, o oposto de sua personalidade cotidiana. Olívia se perguntava se algum dia entenderia aquele homem.Os principais fornecedores e clientes do grupo eram representados por nada menos que seus presidentes, ou, em um caso ou outro, se por motivo excepcional este não pôde comparecer, pelo segundo executivo da empresa. Todos os membros do conselho do Staton Union estavam lá. A ausência da imprensa, contudo, era notável a ponto de deixá-la intrigada. Era inédito, em um evento de Arthur, cujo gosto em ser o centro das

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atenções era conhecido de todos. Não apenas fora estritamente proibida a presença de jornalistas como o convite pedia gentilmente a cada convidado para trazer apenas o seu par.O tilintar agudo do talher se chocando ao cristal capturava rapidamente a atenção de todos impelindo-os a procurar a origem do som. Do alto dos três lances de escada, separando a entrada principal e o enorme salão onde os convidados se encontravam, um mordomo se destacava segurando uma taça de champanhe.- Senhoras e senhores, um minuto de sua atenção, por favor. Peço que sigam nossa equipe através da porta lateral, ao final do salão, até o jardim das flores. Lá, vosso anfitrião lhes fará um importante anúncio.Naquele momento portas de mais de dois metros foram abertas por dois membros do staff da mansão. O grupo explodia em comentários frente à aura de mistério criada por Arthur. O caminho natural conduzia ao jardim localizado no fundo da mansão. Muitos dos presentes já estiveram ali, ainda assim a imponência do lugar se fazia sentir. Um corredor de estátuas em tamanho natural, dispostas sobre pilares de meio metro, fora formado com réplicas de esculturas expostas no Louvre. Mercúrio, Netuno e Hércules dividiam espaço com o "Escravo" de Michelangelo e a "Vênus de Milo" em uma pluralidade estranhamente harmoniosa. Entre elas formavam-se corredores perpendiculares ao que seguiam onde o visitante poderia apreciar de perto a profusão de cores formada pelas flores.

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Branco, rosa e lilás predominavam, envolvidos pelo verde da grama e de arbustos podados em formato arredondado.Ao final do corredor de estátuas, o jardim se abria em um enorme gramado. Naquela noite, atipicamente quente de primavera, mesas e cadeiras preenchiam o espaço até uma estrutura tão única quanto às esculturas apresentadas anteriormente, porém certamente mais imponente. Uma escadaria em mármore elevava por sete lances um patamar culminado por cinco pilares em estilo greco-romano. Ligando-os na parte superior, uma estrutura alquebrada harmo-nizava a construção transmitindo a impressão de uma ruína grega, integrando-se perfeitamente ao estilo do jardim. No patamar à frente das colunas, Arthur esperava enquanto a maior parte do grupo se aproximava.- Senhoras e senhores, peço a sua atenção - a voz era grave, amplificada pelo microfone sem fio acoplado à orelha de modo a deixar suas mãos livres. - São 23h em ponto e, conforme prometido, chegou o momento de revelar o motivo dessa festa. - O silêncio pesava no vazio da noite.- O que vai acontecer agora poderá chocar alguns de vocês - Arthur fez uma pausa de efeito. - Alguns se sentirão ligeiramente traídos. Outros receosos, e, espero, alguns ficarão felizes — ele podia sentir a ansiedade aumentando, ressoando através da troca profusa de olhares logo abaixo. — Não obstante, hoje será um dia de celebração. E, ao final do meu anúncio, pedirei não apenas o

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voto de confiança de vocês, mas também a sua bênção.Sete degraus abaixo a maioria dos convidados ouvia pela primeira vez Arthur pedir alguma coisa a alguém. Os olhares se voltavam para MJ o qual, impassível, contemplava Arthur em seu altar.- Minha obstinação em tornar o grupo Power o maior do mundo não mudou - falava em tom de discurso elevando a voz a cada final de frase, compelindo a platéia a exaltar suas emoções, ainda que intimamente. Apesar de detestar a idéia, daquela vez precisava do apoio deles. - Minha visão de um mundo livre de energias poluentes não mudou. Porém, uma evolução se apresentou. Ganhei ainda mais combustível para perseguir minhas metas. E, como a maioria dos combustíveis, ele é volátil... Propenso a se incendiar. Contudo, sem ele o homem não teria alcançado a Lua ou o fundo dos oceanos. Este combustível senhoras e senhores, foi descoberto por acaso, um acidente inesperado.Ele representa a união de dois compostos já poderosos separadamente - uma pausa fermentava o efeito da expectativa. — Unidos, transformam-se em uma substância nova, cuja força se amplia com uma magnitude quase explosiva. Em breve, projetos de uma significância além de sua imaginação serão divulgados pela Revolutions Power. Eles mudarão a realidade em que vivemos.Agora os convidados tomados de ansiedade se viravam para Olívia, cujos olhos semiarregalados

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tentavam disfarçar o próprio espanto. Arthur iria divulgar o projeto Planeta Água e seu real objetivo? Não podia ser aquilo. Eles ainda não estavam prontos.- Estes novos projetos irão adquirir um momentum diferenciado, impulsionados pela energia revigorante de Olívia Whitelman.Olhares simpáticos eram complementados com acenos de cabeça na direção de Olívia. A maioria dos presentes permanecia séria fitando A.C. Goldwill em seu discurso. Eles nunca haviam ouvido o homem elogiar publicamente um executivo do grupo.- Jamais colocaria a Srta. Whitelman no comando desta empreitada estratégica caso não possuísse total confiança em suas habilidades. Como todos sabem, sou pragmático e focado em resultados. Isso jamais mudará. Está presente em meu DNA. E, baseado neste histórico, peço o seu voto de confiança.Por que diabos ele precisa justificar minha escolha? Olívia ponderava, esquadrinhando a mente em busca de respostas para aquele comportamento e tentando prever o desfecho da noite, quando, certamente, seria cobrada por seus pares após a referência à empresa comandada por ela.- Não se sintam traídos por receberem a notícia apenas agora. Preferi aguardar e poupá-los até ter certeza absoluta da minha decisão e de que as suas conseqüências seriam benéficas para todos os presentes. Em primeiro lugar, divulgarei as ações necessárias para evitar nuvens de

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insegurança pairando sobre as empresas Power após os próximos anúncios.A tensão era gigantesca. Até MJ parecia perdido. Stone disparava olhares inquisitivos para Olívia, assim como o Dr. Jacob Doyle, um dos poucos líderes de projeto também a par do Planeta Água. Olívia acenava de volta pedindo paciência, fingindo saber o desfecho da apresentação.- A partir deste momento Olívia Whitelman deixa a presidência da Revolutions Power. Ela se afastará de todas as atividades de influência direta no cotidiano operacional da holding Power Innovations ou qualquer de suas empresas.O burburinho subiu de volume vertiginosamente, todos se voltando para Olívia, cujo semblante já náo podia disfarçar a surpresa. Estava sendo demitida? Sentia as pernas fraquejarem levemente. Seu coração parecia explodir em batidas. Nada fazia sentido. Estava sendo punida? Já vira Arthur ser duro, mas humilhar um executivo daquela forma... Justo uma que o amava! Dividia-se entre a vontade de sair correndo dali e avançar em sua direção para esbofeteá-lo com toda a força capaz de reunir. Precisou das mesmas forças para se manter ali, impassível, profissional.— Tenho outros planos para a Srta. Whitelman e peço desculpas a ela pela surpresa — Arthur aumentou o tom de voz o suficiente para a platéia perceber que ainda viriam mais surpresas e silenciasse. — Olívia ainda chefiará alguns projetos de forma independente na Revolutions Power cuja importância e sigilo demandará sua

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total atenção. Adicionalmente ela se torna neste momento, efetivamente e imediatamente, membro do conselho da holding Power Innovations, na qual poderá nos ajudar ainda mais com sua paixão e brilhantismo.Instantaneamente passara de desempregada, demitida de forma humilhante, à promovida acima de praticamente todos os presentes. Olívia restabelecia as forças nas pernas enquanto as engrenagens em sua mente giravam furiosamente. Olhava a volta descartando os olhares e percebendo, afinal, algo em comum entre o grupo heterogêneo. Ou eram pessoas cuja opinião podia prejudicar a empresa e cuja simpatia era do interesse de Arthur ou eram pessoas com quem Olívia trabalhava hoje ou trabalhara no passado. Fora do primeiro escalão, todos os demais presentes eram pessoas do relacionamento dela, com as quais havia trabalhado. Pessoas capazes de atestar sua paixão e comprometimento, validando a escolha de Arthur, fosse como profissional ou como ser humano. As peças começavam a se encaixar, exceto pelo fato de Arthur nunca ter buscado aprovação de ninguém ao promover um funcionário. Também era estranho ela não ter sido consultada. A não ser que... Um pensamento assustador veio a sua mente. Explicaria o porquê de tanta preocupação com a opinião dos acionistas, fornecedores e clientes e também o motivo de não ter sido consultada. Se fosse aquilo, certamente, ela não estaria de acordo e ele sabia disso. Não... Ele não faria aquilo...

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Nunca sequer insinuara... O desespero crescia em seu interior.— O combustível do qual lhes falei há pouco senhores, é a Srta. Whitelman - enquanto falava descia os lances de escada. Ao tocar o chão, um barulho de motor zunia no céu distraindo os convidados - ela foi o feliz acidente.Ele prosseguia em direção à Olívia. Os convidados abriam caminho. Ela estacava, congelada. Menos de cinco passos o distanciavam agora. Estranhamente todos, exceto os dois, olhavam para o céu. Algo caía de lá. Despertada do transe, ela sentiu algo pousar em seu ombro, depois no chão. Era papel picado? Não, eram pétalas de rosas! Pétalas de rosas choviam em profusão enquanto uma música suave surgia, ela não sabia de onde. Com os olhos castanho-esverdeados fixos nela, a um passo de distância, ele se inclinou apoiado em apenas um joelho. Agilmente, puxou uma caixinha preta do bolso do blazer e a abriu expondo o anel de diamantes.— Olívia Whitelman, você é o combustível que me faz explodir de energia e felicidade. Dar-me-ia a honra de se tornar a Sra. Goldwill? De ser minha esposae dividir comigo, na alegria e na tristeza, toda uma vida?

Logo ao descer, Bruno, Adrianna e Natan se separaram. Embora para a maioria o evento fosse uma festa, o temperamento do anfitrião o fazia encará-lo mais como um trabalho. Portanto,

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partiu com o objetivo de entreter os convidados e, através da exaltação subliminar das qualidades da empresa, convencê-los a fechar novos negócios com a companhia. Vários executivos das organizações Lima foram convidados e Adrianna se encarregara de deixá-los o mais a vontade possível. Para a maioria deles, notadamente os gestores de projetos e cientistas, em nada ligados à área de vendas ou contato com clientes, aquela era uma genuína celebração, um lembrete das conquistas alcançadas. Ela se preocupava com as pessoas em geral e desejava tornar a noite especial para eles. Desfrutar da companhia de uma brilhante cientista, membro do conselho e sócia em todas as empresas do grupo era, sem dúvida, o algo mais capaz de dotar a noite de um encantamento especial.Em um canto da festa, no balcão do imenso bar montado no lado direito do jardim, sorvendo um copo de uísque, Natan exibia um semblante pesado e se assustou ao receber um forte tapa nas costas.— Fazendo as contas do dinheiro que ganhou hoje? — Max brincou.— Idiota, me fez derrubar o uísque. Não se derruba a bebida de um homem! — falou respondendo à brincadeira.— Quem disse que você é homem? - a fala foi imediatamente acompanhada de uma risada estrondosa, demonstrando não apenas a aptidão de Max pelas brincadeiras como também seu estado de felicidade naquele dia. Ambos riram.

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Os dois se conheciam desde os tempos de faculdade. Brincaram e beberam juntos muitas vezes ao longo dos anos. Tinham intimidade apesar de não serem tão amigos a ponto de trocar confidencias.- Como você está? Não temos tido tempo nem oportunidade para conversar ao longo deste último ano - Max perguntou.- Tudo ótimo, só não imaginava trabalhar tanto.- Fiquei um pouco surpreso quando você aceitou o convite de Bruno.- Por quê?- Você prezava muito a qualidade de vida. Gostava de ter suas noites e fins de semana reservados aos jantares, à praia e as namoradas, segundo me lembro. Este trabalho não deixa muito tempo para a vida pessoal...- É... Só que a oportunidade era imperdível, não é mesmo? Ficar milionário em poucos anos, talvez até bilionário? E interagindo com gente que con-fio, com amigos... Nos lugares onde trabalhei ninguém se importava de passar sobre o outro para galgar postos na hierarquia.- Faz parte do jogo, meu amigo - Max levantou o copo de uísque sugerindo um brinde. — Aos amigos leais e verdadeiros.Após o brinde, enquanto tomava o gole obrigatório, Max visualizou Rachel e Marco conversando em meio à multidão. Usou o copo para apontar para o casal.- Daquele mato sai coelho?- Quando conheci Marco o achei meio esquisito. Recluso demais. Depois passei a achar que era

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meio maluco. Daquele tipo de gênio distraído a ponto de esquecer de almoçar, sabe? Hoje penso diferente. Ele estava esperando a mulher certa e agora achou. Está realmente apaixonado por Rachel e confesso que estou impressionado pela persistência dele. Mesmo assim não sei se vão "fechar negócio". Não a conheço muito bem...- Você trabalha com eles em Salvador. Nunca rolou nada?- Nessa coisa do Infinito ninguém trabalha com ninguém. A gente está sempre viajando. Se aconteceu, eu não fiquei sabendo, mas não acredito e se não aconteceu até agora... Sei lá, não vejo acontecendo.- Nenhum de nós conhece Rachel muito bem, exceto Bruno, é claro. De qualquer maneira, vou ficar na torcida - e brindaram novamente.

- Recebi uma correspondência estranha hoje. Um envelope sem remetente falando algo do tipo: "Não confie em Bruno, ele está usando você" — fez uma voz de fantasma ao falar, brincando com o assunto. - Foi você fazendo alguma brincadeira?Rachel estava maravilhosa naquela noite, tanto quanto sempre. Segundo o pensamento de Marco, definitivamente se destacando sobre as outras mulheres no ambiente. Os cabelos dourados se derramavam sobre o vestido ver-melho colado ao corpo, brilhando sob a luz provida pelos lustres da tenda. Pregas no tecido levemente brilhante, provavelmente seda, desciam da região dos seios e se estendiam até a

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cintura. O vestido seguia dali colado ao corpo, folgando apenas abaixo dos joelhos onde finalizava elegantemente o desenho. Um colar de pérolas combinava com os brincos, pulseira e anel. Nada, contudo, deixava de empalidecer sob o seu sorriso ou de ser capturado pelo efeito hipnótico de seus olhos azuis. Como acontecia, freqüentemente, Marco se perdera em pensamentos.- E aí, foi você? - repetiu a pergunta.- Não - fez força para recobrar a coerência mental. Acabara de lembrar-se de algo importante cuja relevância subitamente se ampliara. - Para falar a verdade eu também recebi algo - tirou do bolso o bilhete ainda guardado no paletó.Rachel leu o texto: "Quem é Adrianna, realmente? De onde veio? Como sabe tanto? Que perigos a rondam? Quem com porcos anda..."; e não gostou.- Tem certeza de que isso não é uma brincadeira sua?- Alguma vez lhe preguei uma peça? - respondeu em meio a um sorriso.-Tudo bem... Foi mal. - Marco era brincalhão, do tipo irônico e capaz de rir de quase todas as brincadeiras feitas pelos outros. Não era de pregar peças. - Como isso chegou até você?Enquanto Marco descrevia a história, Rachel franzia o cenho. Instintivamente esfregou a testa desfazendo as rugas artificialmente formadas na esperança de desestimular sua formação

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definitiva. Considerava-se muito jovem para ter rugas.- Já falou com Bruno?- Não. Vou deixar para amanhã.- Quem poderia ter mandado essas mensagens. E por quê? - questionou, enrugando novamente a testa e, mais uma vez usando a mão para alisar o espaço logo acima do nariz.Marco lembrou-se do quanto achava adorável aqueles hábitos tão ligados à vaidade. Refletiu sobre o fato. Nunca imaginara se apaixonar por alguém tão vaidoso. Não fora aquele o atrativo nela. Fora a força combinada à ternura e feminilidade. Era inteligente, dinâmica e comprometida com o trabalho. Tinha opiniões fortes e de forma alguma podia ser considerada fútil. Por isso mesmo a vaidade lhe caia tão bem. Reforçava seu lado feminino mostrando ser possível sim, ser linda e excepcionalmente competente ao mesmo tempo. Dura e eficiente, sem ser cínica e falsa. Ele adorava aquilo.— Não tenho a menor idéia e, para ser franco, não me preocupa nem um pouco. Quem sobe rápido demais sempre angaria invejosos pelo caminho. Amanhã a gente informa Bruno e o problema passa a ser dele.— Vamos juntos. Assim ele recebe o pacote completo — ela sorriu.Ele conseguira acalmá-la. Fazia isso sempre. Era sua maior qualidade, ela pensou. Além do fato de estar sempre por perto quando ela precisava.

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— Com licença — Wagner colocara a mão direita no ombro de Bruno e adentrara a roda onde ele conversava com um casal.-Wagner. Excelente timing. Carlos Milante, presidente da BM&FBovespa, você já conhece. Essa é Jennifer Melrose, do Financial Times — falou em Inglês, dando a entender que Jennifer não era fluente em Português.Depois das amenidades costumeiras e da breve justificativa da jornalista, declarando que estava de férias, Wagner pediu desculpas a todos e se afastou do grupo levando Bruno.— Vou ter que sair. Alice está com febre, Milena não veio para ficar com ela e eu prefiro não deixá-las sozinhas tempo demais.- Claro. É algo grave? Posso ajudar?- Nada grave. Febre de criança mesmo. Além do mais, Milena é médica, lembra-se?- Então vá sossegado, meu amigo e mande um beijo para as duas.- Amanhã preciso lhe falar logo cedo. Vai estar no escritório? - queria lhe contar sobre o pergaminho.- No mesmo horário de sempre. Algo importante?— Não, só te colocar a par de alguns assuntos — trocaram um aperto de mão e um abraço e Wagner seguiu seu caminho.Wagner não queria deixar caraminholas na cabeça de Bruno. Ele era curioso e ia acabar insistindo para falarem ali mesmo e isso o atrasaria. Além do mais categorizava mesmo o assunto como bobagem. Só comunicaria Bruno por causa do método usado na entrega da

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mensagem. Alguém se dera ao trabalho de comprar ou fabricar um pergaminho, um objeto no mínimo, incomum. O texto em si era desprovido de substância, tentava criar um clima de dúvida sem nenhum conteúdo para subsidiá-lo: "Você é só um peão, Wagner. O tabuleiro é dele. O quanto você realmente conhece do novo Bruno? O quanto vai arriscar o futuro de sua família?" Talvez Bruno tivesse alguma suspeita de quem poderia ter mandado aquilo. Não lhe agradava a hipótese de um idiota com raiva de Bruno ter o endereço de sua casa.

Eram quase 2h30 da madrugada quando um levemente alcoolizado Max chegava em casa com sua esposa Cristiane. Embora o teor alcoólico fosse suficiente para apreender o carro caso fossem parados em uma blitz — era lei seca no trânsito brasileiro fazia mais de um ano - não o impediu de deixar a curiosidade levar a melhor. Pegou um caminho ligeiramente diferente do costumeiro apenas para passar próximo ao intrigante outdoor. Cristiane percebeu e riu ao cruzar olhares com o marido. Ao adentrarem no campo de visão da placa publicitária, sua feição assumiu de imediato um tom sério. Não estranhou quando o carro parou, também precisava de um minuto para refletir. A mensagem mudara, apenas para dar-lhes a certeza de que não havia nenhuma obra do acaso ali. Retirou o iPhone do bolso tirou uma foto. O já incômodo texto: "Não confie cegamente, Max. Ele está escondendo a

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verdade...", mudara para: "Cris... o perigo espreita... protejam-se".

RUPTURA, REVELAÇÕES E DOR

26. Perigo

- Droga! - a violência do punho sobre a mesa era uma revelação indesejada de sua frustração, mesmo tentando conter-se o barulho fora tremendo. O jornal fora jogado para o lado furiosamente. - Como se não tivéssemos problemas suficientes... Agora precisam ser públicos?Nas últimas semanas os problemas pipocaram das mais diferentes formas. Primeiro receberam a notícia incômoda sobre as mensagens e ameaças veladas recebidas por Max, Cris, Rachel, Marco e Wagner; depois uma seqüência inusitada de incidentes varreu as empresas. Se, inicialmente acharam pouco provável o envolvimento de Kerligan na ligação recebida por Natan no aeroporto, agora as impressões digitais do inimigo pareciam estar em toda parte. Era claramente um plano para desestabilizar o grupo e retardar os planos de Adrianna. Todavia, seu nêmesis não contava com a amplitude da confiança dos amigos em Bruno. Não só reportaram imediatamente as mensagens recebidas, como deixaram a condução do assunto para ele sem maiores perguntas. Além disso, exceto Natan, os outros cinco, aparentemente, não fizeram a conexão entre a

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"maré de azar" e os acontecimentos do dia 19 de abril, dia do IPO da Bio Tech.Três carregamentos importantíssimos de insumos transportados, via caminhão para a Fênix, foram roubados atrasando, substancialmente, a entrega de produtos cotidianos da empresa. Três roubos em apenas um mês! Embora o seguro cobrisse os danos materiais, foram perdidos alguns clientes importantes no processo forçando a revisão das receitas para o semestre. Em outro front, a ADe enfrentava um processo judicial na França. Uma empresa concorrente, desconhecida até então, alegava roubo de patente. Os advogados contratados por Rachel estavam seguros da vitória, e, muito embora isso fosse um alívio, nuvens negras foram lançadas sobre a idoneidade da empresa, tornando inevitável o adiamento da oferta pública inicial de suas ações por prazo indefinido. A situação mais preocupante aconteceu com a Cellular Growth em São Francisco, não fosse pela intervenção de Adrianna, uma "falha" no sistema de vedação de uma das câmaras limpas — sala onde todo o ambiente é esterilizado — provocaria um retrocesso de meses de trabalho. Ela foi obrigada a alterar toda a rotina de testes nos outros laboratórios não afetados para compensar o tempo perdido, gerando no processo desavenças com os chefes de projeto e suspeitas de cientistas colegas.A polícia foi mantida distante, investigadores particulares no Brasil não conseguiram rastrear

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as mensagens recebidas pelos seis amigos de Bruno, nem ligar os roubos de carga a nenhum grupo específico. Nos Estados Unidos e França os detetives contratados nem sequer acreditavam em ações coordenadas de sabotagem. Bruno, contudo, não acreditava em coincidências e estava certo da mão de Kerligan em tudo. A gota d'água fora a nota no Le Monde e no Times, dando conta do adiamento do IPO da ADe e o motivo. Não haviam protocolado o pedido, apenas conversado sobre o assunto com alguns bancos e nenhuma nota anterior havia sido publicada sobre o assunto. Estavam sendo observados, investigados por profissionais, ou pior, havia um espião na corporação.Sem muitas opções Bruno decidira por uma reunião com os oito. O objetivo seria tratar do ajuste fino nos planos para o IPO primário da Cellular Growth e o secundário da Fênix e a formulação de estratégias de contingência para diversos cenários futuros de forma a garantir o sucesso da empreitada. Tentava, simultaneamente, garantir a coesão do grupo. Por isto optara por uma reunião de dois dias em Salvador, prestigiando Natan, Rachel e Marco e fornecendo a todos uma oportunidade de se encontrarem em um ambiente familiar. Ficariam hospedados no Mediterranée da ilha de Itaparica, se reuniriam durante o dia e à noite confraternizariam. No terceiro dia podiam relaxar na piscina e retornariam apenas à noite para suas residências.

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Todos os planos e estratégias revisados consideravam o lançamento secundário de ações da Fênix em agosto e a abertura do capital da Cellular Growth em outubro. Inundariam o mercado com as notícias das novas descobertas referentes às duas empresas para ofuscar os recentes problemas e minimizar os efeitos de eventuais futuras sabotagens. Como efeitos colaterais, abarrotariam a agência de relações públicas de trabalho e a agenda de Cris com aparições nos meios de comunicação. Sob protestos ela se tornaria a personificação da face médica da holding Lima World Investments e coordenaria a presença dos cientistas líderes de projeto na mídia. Odiava não estar autorizada a dar a Adrianna o crédito merecido junto à comunidade médica e à imprensa. Contudo, agia assim a pedido da própria amiga e apenas por isso aceitara. Este contínuo desapego incomodava Cris cada vez mais.Bruno convidava a todos para um longo passeio pela praia todos os dias antes das reuniões. Na sexta, Cris e Max faltaram, no sábado Natan e Wagner dormiram um pouco mais e no domingo, após terem bebido bastante na noite anterior, a maioria desejava aproveitar a cama ao máximo deixando a caminhada apenas para Bruno, Marco e Rachel. Adrianna estava disposta, como sempre, mas achou importante deixar os antigos amigos a sós por algum tempo. Já haviam andado por mais de meia hora na direção norre da ilha, seguindo a orla pela praia e a conversa

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começava a fluir conforme a endorfina produzia seu efeito.- Sorte nossa todo esse sol em junho... Só na Bahia mesmo... - disse Bruno.- Só na ilha! Falei com minha mãe ontem e estava chovendo em Salvador - Marco complementou.- Por falar nisso como vai dona Madalena? — há tempos Bruno não a via, porém mantinha deliciosas lembranças tanto da simpatia quanto dos seus talentos culinários.- Está ótima, se gabando do sucesso do filho para todo mundo - Rachel tomou para si a resposta, aproveitando para brincar um pouco com Marco. Todos sorriam.- Então você conheceu tia Madalena? - Bruno perguntou. Tia era a forma carinhosa com a qual as crianças baianas normalmente se referiam às mães dos colegas e o tratamento normalmente permanecia conforme aumentava a intimidade entre os amigos.- Nossa... Ela é um amor e cozinha como ninguém! Fez um jantar no mês passado para Ticiana e Marco me convidou.- Minha irmã estava passando uns dias em Salvador - disse Marco.- Ela está morando em Ilhéus, não é mesmo? - Bruno também possuía boas lembranças da irmã mais nova do amigo. A última vez que a vira ainda era uma adolescente. Agora casada morava no interior do estado.- Isso, ela... Aaaa! — Rachel não conseguiu finalizar o raciocínio, não fosse a ação rápida de

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Bruno usando o braço para desviar a bola, ela seria atingida em cheio no rosto.A força do reflexo fez o projétil ser lançado ao mar. Eram quatro homens, todos mulatos e bem fortes, brincando com a bola na areia.- Porra!. Olha só o que você fez! — Bradava o homem gordo poucos passos à frente do grupo enquanto os outros também se aproximavam.- Vocês queriam o quê? Que a gente deixasse ela levar uma bolada? - Marco estava levemente exaltado.Bruno ia reclamar também quando percebeu o movimento estranho dos retardatários. Eles se abaixaram em determinado ponto e retiraram da areia, próximo ao local onde estavam suas sandálias e mochilas, três facões, um para cada. Marco e Rachel pararam instintivamente. O "time" inimigo agora avançava em sua direção.- Passem os relógios e as jóias, agora, caralho!O homem exaltava fúria, mas não deixou de lançar um olhar lascivo para Rachel. Ela estava vestida apenas com uma canga sobre o biquíni. O primeiro homem estava a três passos deles e os outros já quase os alcançavam. Com Rachel a sua esquerda e Marco à direita a situação era muito arriscada. Se chegassem mais perto, Bruno não poderia garantir a segurança dos amigos. Aquilo não parecia um assalto. Precisava decidir o que fazer.O chute de Bruno atingiu o primeiro homem bem no centro do tórax, arremessando-o sobre um dos companheiros.— Corram para o hotel! — Bruno gritou.

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O facão brandiu em sua frente enquanto ele se desviava. O golpe veio da esquerda para a direita e ao passar na linha do ombro Bruno usou a mão esquerda para segurar o pulso do homem neutralizando aquele braço. Um forte murro com a mão direita quebrou o nariz do oponente e o tirou de circulação temporariamente. O quarto homem avançou tentando golpeá-lo de cima para baixo. Bruno foi mais rápido, segurou o antebraço armado ainda no alto com a mão esquerda, usou a direita para segurar o mesmo braço próximo às axilas, girou e arremessou o agressor usando o próprio corpo como alavanca. Os dois primeiros tiveram tempo para levantar. Bruno jogou areia nos olhos deles e, aproveitando o momento de confusão, girou o corpo 180° arremessando a perna a toda velocidade sobre o rosto do primeiro na fila. Embora jamais ficasse sabendo desta conseqüência, seriam seis meses em um hospital para o sujeito por conta daquele golpe. O meliante mais afastado do grupo, ao se perceber praticamente sozinho na luta, correu na direção oposta ao hotel. Um último soco nocauteou o marginal remanescente quando este tentava se levantar, ainda tonto por conta do impacto de cair de costas sobre o próprio peso. Foi um murro cruzado no queixo, dado sem nenhuma piedade ou consideração pela própria força.Alguns momentos depois, as mãos de Bruno tremiam e ele cedeu, caindo de joelhos sob o impacto das próprias ações. Três seres humanos em frangalhos, esparramados a sua volta,

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cobertos de sangue. Estava horrorizado. Todo o treinamento em artes marciais não lhe valia de nada naquele momento. Não estava preparado para ser "ele" a origem de tanta violência. Em que estado estariam aqueles homens?Quando a polícia chegou, avisada pelo hotel, os três elementos ainda estavam desacordados. Os hóspedes envolvidos no incidente passariam a manhã toda na delegacia prestando queixa. Na seqüência, o almoço no hotel se transformou em uma interminável descrição dos acontecimentos com direito a arguições detalhadas. Os amigos se dividiam entre a descrença no acontecido e a alegria por ninguém ter se machucado. Não havia consenso sobre a forma como Bruno reagira. Marco estava furioso, na opinião dele os bandidos pegariam os relógios e iriam embora. A atitude "ninja", segundo suas palavras, o colocara, e, principalmente a Rachel, em perigo. Ainda abalada, ela preferiu ficar no quarto durante a tarde, aceitando apenas a companhia de Adrianna e dando ainda mais gás ao mau-humor de Marco. Natan e Adrianna, conhecedores das habilidades de Bruno e de como seria fácil desarmar os meliantes, o apoiavam. Max e Wagner tentavam ajudar o amigo, ponderando que, no calor do momento, as reações eram sempre imprevisíveis, mas Cris tomou o lado de Marco chegando a chamar o chefe de irresponsável. Bruno respondia mecanicamente, sem forças para retrucar, aba-lado e preocupado, um único pensamento constante em sua mente. Os ânimos melhoraram

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com o passar da tarde chegando mais ou menos bem ao final do dia. Max, Cris, Adrianna, Bruno e Wagner foram de helicóptero para a Pardal Linhas Aéreas, de onde pegaram o jato da companhia para São Paulo. Natan, Rachel e Marco usaram uma lancha alugada para retornar à Salvador.- Você fez o que achou melhor para mim, eu sei — foram as palavras de Rachel, seguidas de um beijo no rosto, antes de embarcar.

Um estrondo chamou sua atenção, embora um grunhido o tivesse precedido. Adrianna correu para o quarto principal da mansão onde avistou a porta do armário partida ao meio pela força de um murro.- Foi o desgraçado do Kerligan! - ele falou.Após três horas silenciosas e algumas doses de uísque, duas no avião e outra no trânsito paulistano, finalmente Bruno saía do estado de torpor. Ela lhe dera espaço, mas agora precisavam conversar.- Nós não sabemos isso.- Foi coincidência, então? - estava sendo irônico.- Pode ser ele e pode não ser. Isso tudo é muito estranho, não é do feitio dele errar. Se quisesse te matar daria um tiro ao invés de mandar quatro criminosos de quinta categoria fazer o trabalho armados com facões. Além do mais a polícia me ligou e os sujeitos não tinham ficha. Disseram que estavam mesmo jogando bola e depois iam vender coco. O carro com os cocos estava estacionado lá perto.

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— Ah, tá... Agora vamos levar em consideração a eficiência e sofisticação da polícia da ilha de Itaparica. O interesse deles neste caso deve ser próximo de zero. Os caras não têm recursos para prender traficantes e vão perder tempo com uma briga de praia? Só se eu fizer algumas ligações e eu não vou fazer. Isso é coisa para tratarmos sozinhos.— Só estou dizendo que não faz sentido.— E se a estratégia dele for desestabilizar o grupo?— Muito sutil para o estilo dele. E seria necessário conhecer bem você para saber o quanto isso lhe afetaria. Ele não é assim. É frio e calculista, nem compreenderia a possibilidade de alguém tão bem-sucedido ter relações emocionais tão fortes por causa dos amigos, principalmente aqueles trabalhando com você - ela o abraçou por um instante para depois se afastar, mantendo a mão direita em sua face. - Precisamos ficar calmos. Manter o plano andando.— Você está certa... Para variar — disse. O tom da voz denotava a crescente recuperação do autocontrole, conquistado parcialmente graças ao carinho e compreensão oferecidos pela amada. Ela possuía aquele poder sobre ele e umade suas qualidades estava em exercê-lo com tanta naturalidade e tato.

Marco se ofereceu para acompanhar Rachel até sua casa. Relutantemente ela aceitou ciente do quão abalada ainda estava. Ademais, Natan

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também se oferecera, era um ato de atenção normal entre amigos considerando a situação.— Me deixa dormir no sofá. Você vai se sentir melhor - percebendo a hesitação, ele insistiu - só quero deixar você tranqüila. Fico quietinho na sala, você não vai nem perceber a minha presença. Se você não deixar, eu vou ficar te ligando de hora em hora. Está "na cara" que você não está legal.A contra gosto ela aceitou, precisava admitir, estava com os nervos em frangalhos e ficar sozinha naquele apartamento enorme não ia ajudar.Ela pediu uma pizza. Queria comer algo e dormir cedo. Preparou o quarto de hospedes e a mesa de jantar enquanto conversaram amenidades. Eram 19h40 quando a pizza chegou. Ofereceu a Marco um vinho, precisava de uma ajuda para dormir mais rápido. Ele, normalmente, não bebia, mas aquela não era uma ocasião normal. Faria tudo conforme os desejos dela. Nunca a vira tão fragilizada. Retiraram os pratos e talheres da mesa e colocaram na lavadora deixando o resto do trabalho para a empregada no dia seguinte. Ele apreciava cada roçar de braços, cada risada, cada momento de intimidade. Àquela altura ela lhe parecia mais relaxada.Já se passara quase uma hora quando Rachel surgiu na porta do quarto de hóspedes. As lágrimas visíveis sobre o rosto.- Não consigo dormir, fica comigo na sala um pouco?

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- Claro — respondeu enquanto levantava com um salto.Pegou a mão dela e a guiou para o sofá. Aninhou-a em seu peito e beijou delicadamente sua testa. Ela estava encolhida, as pernas dobradas e as mãos cruzadas sobre o peito. Ele nada falava, entendia o momento e a compreendia como ninguém. Ele acarinhava levemente o seu braço com a mão direita apoiando suas costas com a esquerda, protegendo-a do inimigo invisível. Segundo a percepção dele, uma eternidade se passou, na realidade foram apenas alguns minutos, quando ela fechou a mão sobre seu peito prendendo a malha da camisa, puxando-a em sua direção, indicando o caminho. Os olhares se cruzaram por um segundo antes do beijo. Começou de forma serena e amorosa, evoluindo gradativamente, um beijo longo, poderoso, com a força de uma entrega. Fizeram amor de forma apaixonada ali no sofá. Depois seguiram para a cama onde descobriram quanto tempo haviam perdido. Amaram-se várias vezes durante a noite, limpando da memória os momentos daquela manhã e abrindo caminhos bloqueados, deixando à vista uma linda e promissora paisagem.

Max pisou no freio como uma reação automática. Estava distraído ao notar o sinal fechado. Os instantes de assombro antes da batida pareceram minutos enquanto furiosamente pedalava o freio na tentativa inútil de evitar a

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colisão. Quando cogitou o freio de mão, já não havia tempo. Instintivamente os braçosinsinuaram se elevar e proteger o rosto. Nem para isso houve tempo.

— Em que estágio do plano estamos? — Arthur perguntou.— Tudo conforme as expectativas — Olívia respondeu.Estavam sentados um ao lado do outro no sofá do escritório de Arthur quando MJ bateu na porta, entrando sem esperar resposta.- Desculpe-me, eu não sabia que estava acompanhado.- Sem problemas. Já estávamos terminando - ele respondeu.- Não, senhor. Estamos só começando - ela disse enquanto sorria, beijava-lhe rapidamente a face e se levantava. - Mas, podemos discutir o resto à noite - recolheu os documentos e se encaminhou para a porta. — MJ — acenou com um balanço de cabeça para o visitante e os deixou.Milton Jacobs estava bem mais simpático desde o anúncio do casamento, ela pensou, sem conseguir evitar a sensação de desconforto. Tudo nele parecia ligeiramente ensaiado, falso até. De qualquer modo precisava se dar bem com o único verdadeiro amigo do futuro marido. Aos poucos acreditava ser capaz de amenizar aqueles sentimentos e então, talvez, fosse possível construir um laço de amizade. Afinal, ele salvara a vida de Arthur. Devia pelo menos isso a ele.

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- O que foi? - Kerligan perguntou. Encontrando apenas em resposta um largo e enigmático sorriso em MJ. - Boas notícias, então?Marvolo virou-se, checou a porta fechada e retirou da pasta uma foto, entregando-a ao amigo já intrigado. Kerligan cerrou o punho e o levantou próximo ao rosto sacudindo-o levemente enquanto fechava os olhos e gargalhava.- Eu sabia... Eu sabia... Estávamos certos!- Você estava certo meu amigo, como sempre.- Vamos acelerar a construção do parque eólico e da fábrica. Temos todas as permissões?- Foram dois anos para convencermos a cidade e os órgãos ambientais da utilidade de criarmos mil empregos e gerarmos energia limpa. Que país...- E o abrigo? Vamos conseguir construir sem chamar atenção?- Vamos. Para eles será mais um depósito de equipamentos. Vamos precisar subornar alguns fiscais. Nada problemático.- Ótimo.Marvolo James Calve acenou antes de sair, depois parou alguns segundos próximo a porta e se voltou.- Você e Olívia estavam discutindo algo quando entrei. Alguns dos nossos projetos?Kerligan se ressentiu da implicação. Há muito haviam combinado deixar Olívia fora daquilo, porém seu humor estava bom demais para brigas.- Claro... Padrinho! Estávamos conversando sobre o casamento.

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- Ah! Em setembro não é mesmo?- Primeiro de outubro! É bom anotar.Ambos sorriram, forçadamente, enquanto Marvolo se retirava da sala. Ao fechar da porta, a feição do quarto homem mais rico do mundo tornou-se séria e pensativa.

- Não parece nenhum mistério, afinal — foram as palavras de Bruno para Adrianna, embora ele mesmo fizesse pouco delas.Estava estudando o material fornecido pelas agências de investigação na Inglaterra e Brasil indicando com certo grau de detalhe os planos para a implantação de um parque eólico no terreno comprado por Kerligan em Goiás. A terra improdutiva aparentemente podia ser um bom negócio. Estudos comprovavam o potencial eólico da região. A compra, finalizada por escritura em abril foi apenas uma formalidade. Um contrato anterior de promessa de compra e venda já dava a posse do terreno à Covet Power. Escavações já haviam começado um ano antes e prosseguiam sem pressa, no aguardo das autorizações de construção emitidas recentemente.- Mesmo assim me incomoda. Por este relatório não dá para saber. Mas, acredito que existam outros sítios melhores para a instalação da fábrica e do parque. Não havia nem intenção divulgada de edital por parte dos possíveis compradores da energia a ser gerada quando ele assinou a promessa de compra. Ninguém inicia

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uma obra deste tamanho sem um potencial cliente.- E quanto às outras investigações? Encontraram algo?- Nada sobre o acidente na Cellular Growth. Tudo indica falha humana. Ninguém ligado à Covet fez contato com os querelantes da ação da ADe e os roubos de carga pararam, esfriando a pista que os investigadores seguiam. Enfim, nada.- E os marginais que me atacaram na ilha?- Nada. Sem antecedentes. Disseram que queriam só assustar com os facões e pegar os relógios quando tudo se descontrolou.- Continuo com uma sensação muito ruim, amor. Esta calmaria não me convence.- Eu sei. Estamos seguindo o... - foi interrompida pela porta da sala do escritório sendo aberta abruptamente.Cristiane entrara agitada no escritório de Bruno sem bater. A expressão em seu rosto não podia ser pior.— Perdemos o Dr. Taub Schiller.- Como assim, perdemos? - Bruno olhava confuso para Cris.- Você náo contou para ele?- Foi só para não te preocupar, achava que íamos resolver - Adrianna respondeu se dirigindo a Bruno. Suas palavras foram seguidas por Cristiane.— Ele recebeu uma proposta para chefiar sua própria pesquisa com fundos gigantescos na universidade de Cambridge. Achávamos que iríamos reverter o quadro, mas não foi possível.

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Aparentemente a filha mora lá e isso passou a ser um apelo maior que o dinheiro.- Esta proposta veio do nada?— Aparentemente foi condição para uma doação recebida pela universidade. Eles não revelam a origem.Cristiane não deu importância àquela parte da informação, mas notou os olhares trocados entre Bruno e Adrianna.— É certo? Não podemos reverter? Se eu entrar no circuito ajuda?— Não — a resposta veio de Adrianna. — O relacionamento dele com Cris é excelente e ele está triste por abandonar o nosso projeto. Não tem relação com dinheiro ou fama. É pessoal, ele se formou em Cambridge e sempre sonhou em lecionar lá. Agora, adicionando a situação com a filha e esse projeto caindo do céu... Foi muito para ele.— Vamos poder usar o trabalho dele?- Vamos - foi a resposta rápida, porém relutante de Cris. - O que ele trouxe quando começou a trabalhar para nós e o material desenvolvido desde então para o projeto está seguro. Ademais, o acordo de confidencialidade e propriedade intelectual nos protege. Mas, vou precisar fazer um sério controle de danos junto à imprensa. O IPO da Cellular Growth é em outubro.- Pelo menos não vai chegar à imprensa até amanhã.O comentário de Adrianna era relevante. No dia seguinte seria o IPO secundário da Fênix e uma notícia daquela, indiretamente, podia gerar dúvi-

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das sobre o gerenciamento do capital intelectual das empresas Lima World Investments.

Percebeu as vozes ao seu lado e tentou dar conta de onde estava. No carro! Sim, o acidente... O botão da janela não obedecia... É claro, o carro havia morrido. Abriu a porta e foi ajudado por algumas pessoas a descer. Alguém lhe xingava. Era o motorista do carro da frente. De súbito se deu conta, a adrenalina fluía ajudando-lhe a recuperar a consciência total dos fatos.- Alguém machucado aí? - ele gritou.- Para sua sorte não, seu maluco irresponsável! — O homem fitava o fundo amassado do Gol com as mãos na cabeça. — É bom que tenha seguro, pois eu não vou pagar por isso!Um funcionário da Companhia de Engenharia de Tráfego chegava ao local coordenando a situação. Deu uma boa olhada nos carros, ouviu os gritos do motorista do Gol e se dirigiu para Max.- Tudo bem com o senhor? Está machucado?- Não. Acho... O air bag me protegeu. Não deu nem tempo de levantar os braços. Fiquei entalado. Só quando desinflou, eu consegui sair... E, parece... Ninguém está ferido — a julgar pela dificuldade em articular as frases, aparentemente, ainda estava atordoado. Olhava o dano na frente do carro sem acreditar ainda no acontecido. — Deu graças por gostar de carros grandes. O SUV Mercedes absorveu bem o impacto.

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- Por favor, entrem nos carros e encostem-se à calçada, aí preenchemos a ocorrência. Preciso liberar o trânsito.- É melhor empurrar - Max retrucou. - Faltou freio, foi isso... - a recordação lhe vinha agora. - Eu pisei e o freio não funcionou. Foi sorte o engarrafamento. Se a pista estivesse livre, ou se nenhum carro estivesse entre mim e o sinal vermelho, eu provavelmente não estaria aqui agora - de súbito, se deu conta.Foi uma longa manhã, entre o boletim de ocorrência e o guincho, até chegar ao trabalho. Minimizaria o acidente para Cris. Ela não precisava se preocupar. Já a concessionária e a fabricante teriam motivos de sobra para tal. Uma "porcaria" dessas não ficaria barato. Ele podia ter morrido.

Eram 14h quando entraram na "sala de guerra". Um quarto da mansão reservado para as discussões sobre Kerligan e o plano para neutralizá-lo. Bruno, Natan e Adrianna definiram como objetivo da tarde estabelecer os próximos passos. O IPO secundário da Fênix ocorreu em 30 de agosto e teve um resultado considerado por todos bastante bom. A notícia da liberação comercial do Revivit— medicamento para o Alzheimer — em primeiro de setembro, divulgada para a imprensa naquele mesmo dia, as promessas de liberação de novas drogas, patrocinadas sigilosamente pelos conhecimentos de Adrianna, e o excelente trabalho de comunicação de Cris conseguiram amenizar as

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últimas publicações negativas relacionadas a Lima World Investments. A empresa ganhara valor em, aproximadamente, duas e meio vezes ampliando o tamanho do império de Bruno e gerando um caixa de mais de 3 bilhões de reais através dos 25% da empresa disponibilizados para os investidores na operação. A equipe Infinito se energizara no processo. O sonho começava a se materializar. Entregavam ao mercado uma medicação revolucionária, capaz de mudar a vida de milhões de pessoas. Representava a cura em pacientes jovens e minimizava em até 80% a progressão do mal de Alzheimer em pacientes idosos. A proximidade do IPO da Cellular Growth, turbinado pelas informações sobre a redução do prazo de entrega para o LFCF - medicamento para a leucemia - roubava tempo de todos e os deixava orgulhosos de participar do APMM. Cristiane era a mais entusiasmada e estressada. Max não escondia o seu orgulho, compartilhado por todos, enquanto Marco e Rachel superavam a qualquer um do grupo no quesito felicidade. Juntos, finalmente, pareciam ter sido feitos um para o outro. Frente a tantas boas notícias os incidentes recentes sumiam gradativamente da memória dos amigos de Bruno.Apesar destes progressos estavam razoavelmente perdidos na batalha contra Kerligan, embora ninguém admitisse. O quarto fora configurado como uma sala de reuniões, com acesso a internet, TV, um pequeno ambiente de estar e uma lousa eletrônica de última

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geração. Nela, montaram um mural com os principais personagens da corporação Power, as empresas existentes, as dúvidas e as principais teorias sobre os rumos seguidos pelo "inimigo". Após alguma depuração, a matriz resultante continha na horizontal superior cinco nomes formando campos título de colunas. As três primeiras compunham as principais linhas de negócios, energia, energia alternativa e bélico. Outro campo era indicado pela sigla O.W., para Olívia Whitelman. O nome de Olívia surgia a cada transação importante e, gradualmente, substituiu e anulou todos os outros executivos das empresas do conglomerado. Obviamente, o futuro casamento com Arthur Goldwill não passou despercebido. Na vertical à esquerda os campos para cruzamento eram: C.P. (Covet Power), R.P. (Revolutions Power), B.S. (Blue Skies), S.T.F. (Strike Force Industries) e P.E.G. (Parque Eólico em Goiás). Natan foi inspirado ao sugerir uma coluna "$" onde colocariam observações sobre o fluxo de capital das empresas e percentual de representação na for-tuna de Kerligan. Duas horas mais tarde as pastas de pesquisas e investigações encomendadas por Adrianna haviam sido escrutinadas e jaziam espalhadas pelo ambiente. Fotos, observações escritas, setas, pontos de interrogação, relatórios digitalizados e imagens de jornal, eram indicadas por pinos virtuais nas intersecções da matriz. Ao tocá-los se expandiam ou se contraíam permitindo uma visão relativamente limpa do painel.

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— E então gente? Podemos parar e tentar chegar a um consenso? — Bruno questionou.— E precisa? — Foi a resposta confiante de Natan.— Como assim?— Para mim está cristalino - Natan retrucou novamente, diante do espanto de Bruno e do silêncio de Adrianna.— Desembucha!Natan se aproximou da lousa e desenhou com o indicador uma linha englobando a Revolutions Poiuer, seus pontos de interseção com "energia alternativa", "bélica", "$", e O.W.— É a maior concentração de pontos de interrogação e o maior sorvedouro de dinheiro. Não sabemos detalhadamente o que faz, não gera receita direta, só através da Blue Skies e da Strike Force. Arthur Goldwill tece comentários genéricos sobre a empresa. Promete revoluções e nada acontece - enquanto falava Natan arrastava os pinos virtuais correspondentes expandindo-os. - A segurança da empresa é insana. As agências de investigação rastrearam alguns experimentos relacionados provavelmente a correntes marinhas e nada mais. O que acontece lá dentro fica lá dentro — desenhou mais um círculo sobre as iniciais de Olívia. — Ou ela sabe de tudo e é cúmplice de Arthur ou é a nossa porta de entrada.— Faz sentido. É a única fora MJ e Kerligan com acesso a todos os projetos, pelo menos teoricamente. E eu duvido de amor entre eles, pelo menos da parte de Kerligan. Ele só ama a si mesmo. Ela deve ser parte de uma fachada,

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necessária para os planos políticos dele. Se quiser governar será mais bem aceito acompanhado de uma linda e competente mulher, sem manchas no passado. Ela pode nos ajudar. — Adrianna olhou diretamente para Bruno.— É arriscado. Não queremos expor você - comentou ainda inseguro.— Depois de todos esses incidentes existe uma boa chance disso já ter acontecido — ela respondeu assertiva.- Uou! Não foi você quem me convenceu da possibilidade de ter sido tudo um grande azar? Uma coincidência gigantesca entre os problemas recentes e os bilhetes e acusações?- Podem parar a briguinha de namorados? - Natan foi incisivo sem ser grosso. Voltou à lousa e, enquanto falava, salvou o trabalho anterior e iniciou um novo. — Vocês sabem a minha opinião. Acredito piamente em uma ação coordenada de Kerligan. E isto só reforça Olívia como melhor caminho. Nossas informações apontam para uma executiva dura, mas uma boa filha e irmã. Não pesam sobre ela acusações criminais ou éticas. Entrevistamos antigos colegas, chefes e subordinados através de empresas de Recursos Humanos e as palavras mais pronunciadas foram: carismática, leal, dura, justa e honesta. Três são as probabilidades: ou ela está por fora e ao saber da verdade nos ajudará. Ou está dentro e talvez às intenções de Kerligan não sejam tão ruins. Ou ela faz parte do

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"eixo do mal" - brincou, deixando no quadro os itens mencionados.— Está sendo otimista, mas concordo com o principal. É grande a chance de ela nos ajudar — reafirmou Adrianna.- E se ela estiver apaixonada realmente? - Bruno ponderou. - Pode não ser capaz de traí-lo, independente do motivo. Contudo, as nossas respostas estão com certeza na Revolutions Power. Podemos tentar comprar alguém lá dentro, algum cientista, deve existir alguém com problemas financeiros.-Tudo bem. Podemos tentar isso, mas se não der certo, este passa oficialmente a ser o plano B - Adrianna foi incisiva e buscou com o olhar o apoio de Natan. Ele correspondeu o gesto e maneou a cabeça cobrando de Bruno o aceite.— Tudo bem — o incômodo de Bruno era patente.— Mudando de assunto. E a nossa investigação interna?Natan havia sugerido, há algum tempo, proceder uma investigação minuciosa das finanças e ligações telefônicas de todos os funcionários envolvidos direta e indiretamente nos projetos da Infinito. Notara a coincidência entre os incidentes e os projetos prestes a sofrer IPO. Apenas eles sofreram e o ataque a Bruno ocorrera logo após a reunião de redefinição de ações marcada em função dos mesmos incidentes. Os problemas começaram depois das ameaças veladas recebidas pelos seis amigos e antes da divulgação oficial das novas ofertas públicas de ações. A localização do evento no Club Méd fora

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restrita aos participantes e uns poucos responsáveis pela organização. Tudo apontava para um trabalho interno. Bruno se recusara a investigar qualquer um dos seis, mesmo sob os protestos de Natan. Não acreditava na participação direta de ninguém, porém não descartava a hipótese de alguém ter sido usado. Bruno entendia essa possibilidade como remota e preferiu não escrutinar os amigos, já estava traindo demais sua confiança ao não lhes contar toda a verdade.- Nada suspeito - Adrianna respondeu e passou a pasta para Natan.- De qualquer sorte mantemos a vigilância, certo? - Os colegas acenaram confirmando as expectativas de Natan.

27. Discórdia

O Dr. Alvarez não fora talhado para aquele tipo de atividade. Suava sob os 22°C providos pelo ar-condicionado e maldizia as condições que o obri-garam a aceitar o trabalho. De fato, não havia escolha. Entre a vida do irmão e uma vida na cadeia, optaria pela primeira, sempre. Planejava derrubar um café no doutor Jacob para retirá-lo de sua sala por alguns minutos, contudo a sorte lhe favorecera. Poucos minutos após adentrar na sala do chefe solicitando uma avaliação do seu trabalho até então, Dr. Jacob fora chamado para tratar uma emergência, deixando-o sozinho. Rapidamente plugou o pen drive no laptop em cima da mesa. O arquivo autoexecutável rodou

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em poucos segundos copiando algo para o disco rígido. Retirou o dispositivo e sentou-se novamente na cadeira, despercebido.Eram 18h agora e não estava sozinho em sua sala, portanto precisava ser discreto. Um programa também fornecido pelo seu contratante rodava a partir de um pen drive conectado ao seu laptop e se comunicava pela rede local com o par no computador do chefe. As senhas usadas pelo Dr. Jacob eram exibidas em sua tela ao lado do nome do programa no qual foram utilizadas. Basicamente, podia acessar todos os programas da companhia como o nível de autorização do chefe. Não podia negar a beleza do processo. O acesso se fazia através de uma janela virtual remota, associada ao computador do Dr. Jacob. Assim, caso houvesse algum tipo de investigação, os registros na rede referentes àquela pesquisa mostrariam que o login e senha usados foram do líder de projeto, e, adicionalmente, que partiram do seu computador pessoal. Ficaria mais confortável se aquela pesquisa fosse conduzida por eles, mas tinham lhe explicado que esta era a única opção segura. Um acesso externo passaria pelo firewall e deixaria pegadas digitais possíveis de serem seguidas. O acesso interno era praticamente impossível de ser detectado. Mesmo se descobrissem o programa no computador do chefe, não poderiam incriminá-lo. Não havia vestígios em seu notebook já que o programa de acesso remoto rodava diretamente do pen drive sem precisar ser copiado no HD. Nada daquilo o

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deixava tranqüilo. Estava colocando em risco o sonho de uma vida.Um milhão de euros, metade antes e o restante depois depositados em uma conta nas ilhas Cayman garantiriam a operação do irmão e ainda ficaria com algo para a aposentadoria. Tivera sorte, conseguira escapar da pobreza da família em Angola por conta de um intelecto privilegiado. Somado a isso uma série de bolsas de estudo, culminando pela bolsa internacional de Cambridge, permitiu-lhe se formar, firmar residência em Londres, cursar seu PhD e conquistar aquela vaga na Revolutions Power. Quando soube do problema do irmão ficou desiludido. Não possuía ainda recursos suficientes para ajudá-lo, pelo menos não de forma efetiva. Ele precisava de uma cirurgia cardíaca muito específica, realizada apenas nos Estados Unidos e muito cara. A única opção era um procedimento pago. Sem recursos, só restava ao irmão se resignar e morrer. Foi quando o homem apareceu em sua casa. Dera-lhe um baita susto quando, ao entrar, se deparou com o intruso. Ele foi hábil. Pediu-lhe desculpas e explicou que a invasão fora para proteger a ambos. Ele trazia uma proposta capaz de salvar a vida de Carlos. Em troca, ele queria obter informações sobre os projetos da Revolutions Power. Nada complicado, ele dissera. Não queria saber o "como", não desejava roubar segredos industriais, só precisava saber quais eram os projetos, quem estava envolvido, como estavam organizados os grupos de trabalho, quais seus

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objetivos finais. Era tudo surreal para o Dr. Manuel Alvarez e ele, a princípio, se negou. Outros encontros aconteceram e aos poucos sua consciência foi abrandada. Ele só aceitou sob a condição de não entregar nenhuma planta, nenhum esquema, nenhum relatório detalhado. Ele obteria a informação e geraria relatórios, assim não haveria uma trilha de papéis a ser seguida e ele garantiria não passar nenhum segredo industrial para frente. Não esperava que aceitassem, mas aceitaram. Em certo ponto ele cedeu.Iniciaria pela lista de todos os projetos. Depois leria o memorial descritivo de cada um, apenas o resumo. Copiaria os nomes dos líderes e dos envolvidos. Este seria o primeiro relatório. A partir daí eles diriam em quais precisaria se aprofundar. O combinado eram três a cinco relatórios, no máximo. Já estava há uma hora pesquisando, quando algo saltou aos olhos. Felizmente, àquela hora, quase todos os colegas já haviam saído e ele podia continuar o estudo com tranqüilidade. Apenas o Dr. Jacob continuava na empresa, jamais saía antes das 21h. Quanto mais se aprofundava na pesquisa, mais intrigado ficava.Certamente, era aquele o objeto de interesse de seus contratantes.

Ao sair do restaurante na Rua Haddock Lobo, no bairro Jardins em São Paulo, Bruno e Cristiane avistaram o motorista estacionado no lado oposto da rua. Haviam jantado juntos para

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discutir detalhes do IPO da Cellular Growth que seria realizado simultaneamente nos Estados Unidos e no Brasil. Max e Adrianna estavam fora do país. Combinaram quais seriam as atribuições de cada um na data oficial, cabendo à Cris comandar o processo na Bolsa de Valores de Nova York, com o apoio de Max e a ele conduzir a operação na BM&FBovespa. Estavam atravessando a rua pouco movimentada quando, do nada, um Citroen C4 preto de vidros fume surgiu investindo acelerado na direção deles. Cristiane mal percebeu o carro quando, em um instante, se viu arremessada violentamente para frente. Levou alguns segundos para entender a seqüência de eventos. Bruno a empurrara para a calçada onde caíra com violência, porém evitara a batida. Ele tivera menor sorte. Foi atingido em cheio pelo carro, se chocou primeiro com o capô, depois com o para-brisa, rolando sobre o teto e caindo enquanto o motorista fugia. Cristiane vira tudo de relance, mas não esqueceria aquela cena facilmente.Embora ainda assustada, apoiou-se na adrenalina e forçou seus instintos médicos a sobrepujarem o nervosismo, permitindo a ela correr no auxílio do amigo. Bruno jazia inconsciente, deitado de lado, um braço nas costas e outro estendido acima da cabeça. As pernas levemente dobradas, separadas uma da outra. O sangue escorria de sua cabeça. Carlos, o motorista, já corria em dire-ção ao patrão.- Não toque nele! - Cristiane gritou. - Se a coluna tiver sido danificada e mexermos, ele pode ficar

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paralítico, ou até morrer. Ele precisa ser imobilizado. Ligue para o SAMU - serviço de ambulância da prefeitura - enquanto eu verifico o estado dele - ao se virar, notou Bruno tentando se levantar. - Não se mexa! Pode danificar a coluna.- Eu estou bem - ele insistia na tentativa de se colocar de pé. - Não preciso de ambulância — antes de qualquer possibilidade de restrição física por parte de Cris, ele já estava sobre as próprias pernas.- Bruno, não brinque com isso. Quem está falando é a médica e não a amiga. Faça o favor de me ouvir.Percebendo o nervosismo de Cris tentou encontrar um meio termo.- Cris, eu estou me sentindo bem. Vamos para o carro, lá você me examina - embora não precisasse realmente de apoio, passou o braço sobre seu ombro na tentativa de deixá-la menos estressada e seguiu para o carro. Ao chegarem ela o deitou no banco traseiro do Jaguar.Verificou primeiro o corte na cabeça onde o sangue jorrara. Era menor do que previra. Apalpou todos os pontos críticos e ele continuava dizendo não sentir nenhuma dor. A contragosto dele, seguiram para o hospital para uma bateria de exames.Aproveitou o tempo entre os exames para prestar queixa. Mas como ninguém anotou a placa do Citroen havia pouca esperança de encontrar o motorista. A polícia não acreditou muito na versão de Cristiane de o atropelamento

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ter sido intencional. O motorista de Bruno estava cochilando no carro e não viu nada e Bruno, estranhamente, alegou não se lembrar direito dos detalhes do acidente. Três horas depois, nem os exames de raios-X, nem a tomografia indicavam nenhuma lesão. Cris estava aliviada quando a plantonista do hospital veio lhe falar.- Estou dando alta para ele agora, Dra. Cristiane. Desculpe-me, mas preciso perguntar — estava visivelmente constrangida. — Ele foi realmente atropelado? Ou foi só um susto?- Como assim. Você não viu o corte na cabeça dele e o sangue?- Vi o sangue nas roupas e no cabelo, mas não tem nenhum corte. No corpo inteiro não tem nenhum hematoma. É um pouco estranho, não acha?- Não tem corte? - Cris já estava irritada com a incompetência da moça.- Vamos até o paciente, por favor - seguiram até a baia onde Bruno já se levantava para trocar de roupa.- Bruno, por favor, vire de costas — ele prontamente o fez enquanto Cris procurava o corte em sua cabeça. Nada. Examinou-lhe as costas, as pernas, o torso, os ombros, os braços e em todos não havia sinal de hematoma.- Eu não falei — disse a plantonista, segura de si.- Posso saber o que está acontecendo? — Bruno já tinha uma idéia. Ao aceitar ir para o hospital esquecera completamente dos poderes curativos do Alpha11. Não sabia bem como proceder e se deixou levar, torcendo para que o soro não

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agisse tão rapidamente ou pela desatenção da equipe do hospital. Esperanças vãs, ele sabia.- Eu tinha certeza de ter visto um corte em você... Teve um corte... Se não houvesse também não haveria sangue - Cris estava confusa, - E não tem nenhum hematoma...- Havia mais alguém no acidente? - perguntou a Dra. Carla.- Não - ambos responderam em uníssono.- Talvez o sangue fosse de algum cachorro ou gato que também estivesse no local — Dra. Carla sugeriu.- Vai ver foi isso - concordou Bruno, se agarrando à oportunidade.- Não tinha animal nenhum, tenho certeza. — Cristiane agora estava visivelmente irritada.- Cris, quem pode ter certeza, foi tudo rápido e confuso. O importante é que estou bem, sem cortes, sem hematomas. Dei sorte, sou um sujeito de sorte, vamos embora, por favor.Uma enfermeira apareceu convocando a Dra. Carla. Ela não podia ter ficado mais contente com a desculpa para sair dali. Preferia não permanecer em situação de confronto junto a uma colega, especialmente uma famosa como a Dra. Cristiane Templis. Colocou-se à disposição, reafirmou a liberação do paciente e se retirou.Cris passou todo o percurso de volta pensativa e calada. Bruno tentou engatar uma conversa sobre trabalho e ela pediu para deixarem para o dia seguinte. Apelou para o assunto preferido das mães e perguntou sobre Pedro, Bia e Ana. Nem

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assim conseguiu muito. Ela estava cismada, ele podia perceber.Ao chegar em casa ligou para Adrianna em Londres. Ela estava tão confusa quanto ele. Retornaria no dia seguinte com algumas informações novas e então decidiriam qual rumo tomar. Durante o dia ele recebeu ligações de todos. A notícia se espalhara rapidamente. A maioria queria entender os detalhes e saber se ele estava bem. Max exigiu dedicação de Bruno para pressionar a polícia. A dedicação foi prometida e adicionalmente informou ao amigo da sua intenção de colocar uma agência de investigação particular no caso. Natan estava nervoso ao telefone. Ficou muito preocupado com o ocorrido. Pressionado, Bruno se comprometeu a disponibilizar carros blindados e a contratar guarda-costas para todos os oito enquanto tentavam entender que diabo estava acontecendo. Marcou uma videoconferência no final do dia e explicou que se tratava de uma medida preventiva enquanto prosseguiam as investigações. A medida agradou a Max, Cristiane e Natan, deixando Rachel, Marco e Wagner desconfortáveis. Ficou combinada uma reavaliação da situação após o IPO da Cellular Growth no final de outubro.Adrianna chegou ao final da tarde e seguiu direto para a sala de guerra na casa de Bruno onde se reuniriam com Natan. Após certificar-se de sua integridade física e dos efeitos do Alpha11, fez um resumo dos relatórios em suas mãos.

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- Nosso espião tem sido rápido e eficiente. Ele trabalha em um projeto designado Planeta Água. Conforme imaginávamos, Kerligan pretende gerar energia a partir de correntes marinhas. Como adicional, utiliza a água do mar para gerar água potável. A energia gerada no sistema é suficiente para alimentar o processo e fornecer um considerável excedente. Não temos detalhes ou números, pois a "consciência" do nosso amigo não permite a ele informar. De qualquer maneira é irrelevante. Deve estar seguindo o modelo de Aqua. Utiliza o próprio peso da água bombeada para a plataforma marítima como fonte de energia, de forma que o consumo líquido do dessalinizador é mínimo. Em Eiden cada plataforma marítima variava de tamanho de acordo com a localização e potencial das correntes marinhas e nossas necessidades de energia eram diferentes. Então é difícil fazer uma estimativa do quão relevante este projeto vai ser para a Terra. Provavelmente será importante.- Impressionante... Temos uma data de lançamento? - Natan fez a primeira pergunta.- Primeiro de outubro, dia do casamento dele - o sorriso deixava clara sua crença na farsa representada pela união. — Vai anunciar a formação de uma empresa para conduzir os primeiros experimentos em campo.- Ele sabe fazer um espetáculo, isso sim. A ação conjunta vai lhe render dividendos em respeitabilidade, estabilidade e deixa claro que não está disposto a diminuir o ritmo das

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inovações — Bruno respeitava o movimento do adversário.- Bruno está certo. E uma baita jogada de marketing e funciona. Quais empresas compradas recentemente estão envolvidas no projeto?- Nenhuma e nossos investigadores não conseguiram rastrear novas aquisições nos últimos meses — Adrianna deixou um momento de suspense no ar antes de prosseguir. — Nosso problema não é o Planeta Água. Nosso homem descobriu algo muito mais preocupante. Existe um projeto catalogado no sistema deles chamado Gênesis. Formalmente a equipe é composta apenas por líderes de outros projetos. O resumo descritivo no sistema estava vazio. Os relatórios são protegidos por senha e só os participantes têm acesso. E adivinhem quem comanda a equipe?- Arthur Goldwill - Bruno e Natan responderam quase ao mesmo tempo, mas o segundo foi mais rápido ao desferir a pergunta seguinte.- De que projetos são os líderes envolvidos neste Gênesis?- Precision — se dirigiu à lousa eletrônica escrevendo enquanto falava, tentando facilitar a análise posterior. — Um sistema de controle para mísseis de longuíssimo alcance, atua inclusive em gravidade zero, permitindo o lançamento de projéteis a partir de estações satélites e Space Vision, radar de alcance longo, permite a detecção de corpos em movimento em velocidades supersônicas. Um membro da equipe

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é o cientista chefe da Blue Skies e outro é o equivalente na Strike Force - desenhou uma interrogação no final sob os olhares confusos dos companheiros.- Temos seguido todos os líderes de projeto da Revolutions Power. O que descobriram até agora? — pela expressão de Natan percebeu a própria falha por ter se esquecido de informar ao amigo sobre aquela linha de ação.- Nada. Ninguém pode levar material de trabalho para casa. Grampeamos os telefones e não conseguimos nada útil. Aparentemente não discutem assuntos da empresa fora dela - ela respondeu.- Tem alguma idéia de onde estão tentando chegar a partir desse quebra- cabeça? - Natan apontava para a lousa e olhava para Adrianna.- Não consigo pensar em nada específico. Só está claro que é algo de cunho militar - escreveu a palavra no quadro.Bruno mencionou o programa Star Wars. Diante da expressão confusa da namorada explicou que alguns anos atrás o governo dos Estados Unidos cogitou um programa de militarização do espaço. Salvo engano, devido a dificuldades tecnológicas, teria sido implantado apenas parcialmente.- No relatório existe indicação de algum contrato já firmado, algum cliente, alguma relação com o governo de algum país?Adrianna revirou as páginas do relatório por alguns instantes e retornou a Natan acenando negativamente.

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- Isso não significa muito. Pode estar relacionado a algum contrato pré- existente da Blue Skies ou da Strike Force — complementou.- Então precisamos subornar alguém nestas empresas também e alguém diretamente ligado a um destes projetos na Revolutions Power. Assim conseguimos as senhas para ler os relatórios e descobrir exatamente do que se trata - Natan passava a mão pelos cabelos, era sinal de cansaço, não físico e sim mental. Aquele assunto começava a lhe exaurir os nervos.Bruno estava pensativo, em pé absorto no quadro a sua frente não respondeu a Natan. Adrianna aguardava um comentário dele sobre o assunto. Lentamente, ele se virou e com a expressão preocupada, direcionou uma pergunta à namorada.- Esta tecnologia conjunta permitiria a uma base no espaço lançar mísseis capazes de atingir qualquer local no planeta? Com precisão?- Você está viajando. Ninguém consegue dominar o mundo usando poderio militar particular. Isso é coisa de filme, não seja idiota.A reação violenta de Natan o deixou surpreso. Há tempos não o via assim. Prosseguiu mantendo a calma.- Não é isso. Posso terminar? - Natan assentiu enquanto Bruno inquiria Adrianna com o olhar.- Não temos como ter certeza a partir do relatório — ela respondeu ainda pensativa. — Certamente, é uma possibilidade.- Independente de já ter firmado contratos ou não, ele possui ou está perto de possuir uma

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tecnologia de guerra capaz de atrair o interesse de todas as nações. Se ele vai negociar oficialmente e ganhar apenas dinheiro no processo, e seria muito; ou se ele vai vender por um preço bem maior no mercado negro para os países com os quais ele não pode negociar oficialmente, como o Irã ou a Coréia do Norte; ou se vai aguardar para quando conseguir manipular, de alguma forma, o presidente dos Estados Unidos ou o parlamento Inglês, isso é secundário. Precisamos pensar em como reverter o quadro.- E tem jeito de fazer isso sem informação? Precisamos de informação! E se ele estiver fazendo tudo legalmente? Caso o governo inglês ou americano já esteja envolvido não vamos ter nenhum trunfo nas mãos. Você está longe de ter o dinheiro ou o capital intelectual para se envolver neste setor da indústria. O cara é um físico com conhecimentos avançados...- Não nesta área - Adrianna interrompeu, tentaria amenizar a discussão. Nunca vira Natan tão agitado. - Mas, você está certo. Sem informação não podemos fazer muita coisa. Vou concentrar a vigilância nos membros do projeto Gênesis e tentar encontrar potenciais espiões.- Ou partimos logo para o plano B e contatamos Olívia Whitelman. O tempo está passando meu amigo — o olhar e o tom de Natan eram de cobrança.Para ele este era de longe o melhor caminho e não estava mais disposto a contemporizar. - Ele já sabe sobre você e Adrianna. Depois da

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tentativa de atropelamento você ainda tem alguma dúvida?Bruno não tinha mais argumentos. Adrianna concordava com o amigo e só ele resistia. Estava prestes a concordar quando recebeu mais uma cobrança.- E já passou da hora de contar para o resto do grupo a verdade. Esta história do carro foi a gota d'água. Cristiane podia ter se machucado. Eles têm o direito de saber onde se meteram. Você vai contar ou eu? Quando me chamou para esta "missão" - desenhou as aspas no ar - disse que precisava de amigos que lhe dissessem a verdade. Então ouça bem: você está traindo a confiança deles! - foi quase um berro. Tomou o cuidado de evitar os olhos de Adrianna. Provavelmente, estava assustada e ele não estava nem aí.Bruno estava pasmo. Por um segundo pensou em reagir, contendo-se em seguida. O amigo estava certo. Respirou fundo e recomeçou. A voz saiu fraca refletindo seu estado de espírito.- Você está certo... Em tudo. Adrianna, por favor, descubra a melhor oportunidade para confrontarmos Olívia. Vamos eu e você. Com o casamento deles neste sábado vai ser complicado. Vou marcar a reunião com todos nós na semana que vem quando Max e Rachel devem estar no Brasil. Vou pedir para ninguém mais viajar.Natan cedeu no braço do sofá, aparentemente exaurido. Abaixou a cabeça, passou as mãos lentamente por entre os cabelos e retornou o

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olhar para Bruno quando este colocava uma mão em seu ombro.- Obrigado meu amigo... De verdade.- Mas, você continua um idiota — respondeu.As palavras foram pronunciadas com um sorriso e recebidas da mesma forma. Estava tudo bem, como sempre foi, era o jeito deles.

Eram 3h da madrugada quando ela resolveu dormir. De acordo com a rotina usual reservava o horário mais tranqüilo para se dedicar à ciência. Sua conexão privada aos computadores da Fênix e da Cellular Growth permitiam a avaliação das experiências realizadas pelas equipes durante o dia e a posterior inserção de sugestões e comentários. Assim conseguia conduzir as pesquisas ao resultado desejado. Ao entrar no quarto se deparou com Bruno ainda acordado.Algo atípico, pois ele precisava de pelo menos quatro horas de sono normalmente e sempre se levantava às cinco. Imóvel junto à janela contemplava a fina chuva, costumeira na terra da garoa, certamente divagando sobre o desfecho da reunião e os próximos eventos. Ela caminhou silenciosa até ele, abraçando-o por trás e descansando a face em suas costas.- Eu estava me enganando. Convenci-me de que revelaria tudo quanto todos os IPOs tivessem sido realizados, estariam felizes, multimilionários e nós em pé de igualdade com seu conterrâneo. Assim haveria uma boa chance de me desculparem.- Eles vão te desculpar.

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- Talvez. Mas, se me perdoarem, será daqui a algum tempo. Estamos longe de poder enfrentá-lo de igual para igual e ele já está atacando pesado. Eles se sentirão em perigo, com razão, vão ter medo. Natan estava certo o tempo todo, devia ter contato logo no início - ele fechava os olhos. A mão direita espalmada sobre a testa, os dedos entrelaçados no couro cabeludo, sentia uma amargura há muito esquecida.- Você estava me protegendo, lembra-se? Eu insisti para ninguém ficar sabendo. Tinha medo. Se ele descobrisse minha presença podia tentar me matar antes de você estar preparado e capitalizado. Eu te implorei... Você queria falar.- No final a decisão foi minha e preciso assumir o erro. Houve inúmeras oportunidades antes da sabotagem geral começar, antes das ameaças e eu continuei mentindo...- Não adianta se torturar, talvez eu tenha errado, talvez você, provavelmente nós dois, pouco importa... - ela o conduziu, girando seu torço, for-çando-o a olhá-la de frente. - Você os ama, só quis o bem deles o tempo todo e ofereceu-lhes uma oportunidade maravilhosa. Por amá-los os quis próximos a você e, ao final, a verdade vai prevalecer. Este é o momento de olhar para frente e não para trás, de pensar na melhor maneira de dar a notícia.O telefone celular de Bruno tocou quando ela terminava a frase, algo definitivamente estranho àquela hora. Ao se entreolharem, instintivamente, uma sensação ruim cruzou o ar.

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Ele se adiantou e pegou o aparelho no criado mudo.- Cris?Ela o informou sobre um incêndio ocorrido na madrugada na sede da Cellular Growth, em São Francisco. Aparentemente estava sendo controlado enquanto falavam. As informações eram parcas e Cristiane as recebia do CEO da empresa diretamente do local. Por enquanto não havia notícias de funcionários feridos ou morros. Combinaram se reunir em uma hora na sede da Lima World Investments de onde coordenariam as ações emergenciais. Bruno convocaria a assessoria de imprensa e a agência de publicidade para uma reunião duas horas depois, quando já deveria estar em conferência com seus pares nos Estados Unidos. Precisavam criar um plano para tratar do dano à opinião pública. Nesse ínterim, Cris conseguiria compilar dados sobre os danos materiais.

Em áudioconferência na sala de reuniões da Lima World Investments, Bruno, Adrianna e Cris ouviram de um aliviado Patrick Murray, CEO da Cellular Growth, a informação do Departamento de Bombeiros de São Francisco confirmando o fim do incêndio. Estava controlado e não houve fatalidades ou feridos. O dano se resumiu à face norte do prédio de três andares, iniciando-se, provavelmente, no laboratório sete. Saberiam mais sobre as possíveis causas no decorrer do dia. O prédio precisaria ser interditado por dois ou mais dias.

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- Quais projetos eram desenvolvidos no laboratório sete? - Bruno perguntou.Patrick estava literalmente na rua em frente ao prédio e não podia responder de imediato. Cris possuía a informação em algum lugar em seus arquivos pessoais e já digitava em seu laptop a pesquisa quando Adrianna respondeu.- Nenhum projeto prioritário. É uma linha secundária de tratamento para o câncer ainda em estágio inicial de estudo.- Ao menos uma boa notícia. Patrick... Estou coordenando uma força tarefa entre marketing, relações públicas e assessoria de imprensa e em meia hora nos reunimos. A idéia é formatar um release para cada veículo da mídia. Vou forçar para divulgarmos anúncios na TV ainda hoje, especialmente aí na Califórnia - Bruno estava operando em modo "adrenalina", sempre fora especialmente bom no gerenciamento de crises. - A intenção é passarmos as seguintes mensagens - fez sinal para Cris tomar nota - primeiro, não houve vítimas, graças a Deus e ao excepcional corpo de bombeiros de São Francisco; segundo, não sabemos ainda as causas do incêndio, estamos e continuaremos dando total apoio às autoridades nas investigações e transmitiremos passo a passo todas as informações recebidas no intuito de garantir total transparência aos acionistas e funcionários dessa revolucionária empresa e à acolhedora comunidade local; terceiro, nosso banco de dados possui backup automático em um Data Center externo protegendo todo o nosso

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capital intelectual, de forma que não haverá prejuízo, a não ser, eventualmente, de curto prazo, no desenvolvimento do LFCF, nossa principal arma na luta contra a Leucemia; quarto, considerando a necessidade de destrincharmos as causas do ocorrido e esclarecê-las à potenciais investidores, por respeito a eles, estaremos cancelando o IPO programado para o dia 24 de outubro.A expressão de frustração era patente nos presentes, certamente se pudessem ver o rosto de Patrick Murray constatariam os mesmos traços em sua face. Contudo, a certeza de que aquele era o único caminho a seguir impediu qualquer comentário.- Concorda Patrick? Deseja acrescentar algo?- Não, apenas confio nas equipes para colocar tudo isso em um formato adequado. Vou cobrar o máximo de informação das autoridades de forma a consubstanciarmos o texto. Você vem para São Francisco hoje, Cris?- Patrick - Bruno interrompeu antes da resposta. - Não pode haver dúvida sobre quem está liderando a solução dos problemas. Você é o CEO e sua imagem já está associada ao evento. A imprensa também precisa saber que você tem o controle da situação. Se Cristiane aparecer aí, mesmo sendo a presidente do conselho, vão ser lançadas dúvidas sobre seu cargo e sua capacidade de administrar a situação. Não posso deixar isso acontecer.- Obrigado pela confiança, chefe.

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- Confiança merecida, Patrick. Cris vai apoiar daqui, assim como eu mesmo e Adrianna. Preciso de você no local durante todo o dia de hoje de modo a nos fornecer informações de meia em meia hora, ok? Não conceda entrevistas até liberarmos o comunicado, mas se deixe filmar e fotografar. Tente transmitir calma. Para todos os efeitos, você esta aí apenas para apoiar os profis-sionais do corpo de bombeiros, prover assistência aos funcionários e se manter a par dos fatos.Patrick concordou e todos se despediram rapidamente. Estavam prontos para continuar um árduo e triste dia de trabalho. Antes de iniciarem o próximo assunto, Adrianna entregou uma caneca de café para Bruno deslizando, discretamente, em conjunto, um bilhete de conteúdo incômodo. Estava escrito: "laboratório 7 = AlphaT-11".

- Filha, por favor, abra a porta!O apelo da mãe ressoava no vazio. Olívia não estava ouvindo. Sentada no magnífico quarto daquela mansão, vestida de noiva, ela se olhava no espelho sem se reconhecer. Em minutos deslizaria pelos jardins da mansão, estaria se casando, tomar-se-ia eternamente a Sra. Goldwill, não mais a executiva de sucesso, a líder carismática, muito menos a promessa de uma geração como certa vez a ela se referiram. Ao lado dele todos empalideciam. Frente à geniali-dade, ao magnetismo natural e ao seu império, quem podia competir? Entendia aquilo, aceitara o

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peso de viver a sua sombra, pois confiava em si, em sua capacidade de contribuir e compartilhava dos mesmos sonhos de futuro. Não contava, porém, com a força da barreira imposta sobre seu passado, a quantidade de mistérios o cercando, as conversas particulares com MJ, os negócios cuja justificativa empresarial se esvaia em desculpas esfarrapadas.- Olívia, pelo amor de Deus! Faltam trinta minutos para as 19h. O que está acontecendo?O pai soava distante. Ela amava o noivo, com todas as forças, aceitaria qualquer verdade, o apoiaria em tudo, confiava em seu julgamento, mas precisava se sentir uma parte visceral de tudo em sua vida. Amava não apenas o homem, mas o cientista, o empresário, o líder e, principalmente, o amigo. Deixara aquilo ir longe demais, voltaria a tomar as rédeas do seu destino mesmo se custasse o seu amor. Levantou-se lentamente e ao chegar à porta, sem a destrancar, pediu desculpa aos pais e fez o pedido.- Pai, por favor, chame Arthur - as lágrimas escorriam cruéis sobre a maquiagem. — Não vai haver mais casamento.

As duas semanas seguintes ao incêndio prosseguiram conturbadas. As dúvidas sobre os procedimentos de segurança na Cellular Growth levaram a uma série de reportagens sobre as empresas capitaneadas pelo fundo de Private Equity APMM e as recentes dificuldades enfrentadas por algumas delas. Por ser a mais

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bem-sucedida até então, a Fênix e sua seqüência de roubos de carga, tiveram atenção especial. Em seu entorno foram citados o processo de patente contra a ADe e a saída do Dr. Taub Schiller da Cellular Growth. Pela primeira vez as matérias colocavam em dúvida a genialidade do homem por trás do grupo, ou seja, o próprio Bruno. As cotações das ações de empresas ligadas direta ou indiretamente à holding levaram um golpe.Embora as características especiais do APMM impedissem uma fuga rápida de investidores, pois os sócios precisavam sinalizar a saída com pelo menos seis meses de antecedência, Bruno decidiu abrandar os ânimos fazendo ele próprio um aporte de 1 bilhão de dólares. A primeira informação concreta divulgada pela polícia confirmou as suspeitas iniciais. O incêndio fora de origem criminosa. Uma sofisticada bomba incendiária fora usada, colocada em um duto de ventilação da área comum do laboratório sete. As medidas de contenção da empresa funcionaram perfeitamente isolando o incêndio tempo o bastante para a chegada dos bombeiros. Fosse menos poderoso, o dispositivo teria iniciado o fogo e os sistemas de segurança o extinguiriam. Os danos foram pequenos considerando a situação. De forma geral, o caso apontava para sabotagem, algo raro na indústria farmacêutica. Nenhuma pista do sabotador foi divulgada, mas a percepção do mercado se amenizou e a companhia passou de vilã à vítima.

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Eram 9h de uma quarta-feira de céu especialmente claro, quando o primeiro convidado chegou à casa de Bruno. Marcara uma reunião com Rachel, Wagner, Marco, Max, Cristiane e Natan na qual desnudaria a verdade e enfrentaria as conseqüências. Adrianna estaria presente, passara a noite nervosa, temia pelo resultado e seus impactos sobre seu amado. Receava também por ela mesma, especialmente preocupada com a reação de Cris cuja amizade valorizava acima das próprias expectativas. Quando estavam juntas, não existiam planos nem missões, apenas o trabalho, a ciência e as conversas frugais sobre filhos, maridos e o cotidiano. Havia os deliciosos passeios pelas lojas, as concordâncias sobre a beleza especial de uma bolsa na vitrine ou as vantagens de mais um sapato para a coleção e tantas outras pequenas indulgências cuja importância minimizara até agora. Ao final da manhã, de um jeito ou de outro, nada daquilo seria o mesmo.Descartara falar com um de cada vez. A probabilidade de alguém não se conter e passar à frente a notícia antes dele era perigoso demais. Todos eram amigos entre si, naquelas circunstâncias um pedido seu não garantiria o sigilo. Ao divulgar os fatos a todos em um só momento, precisaria enfrentar, em conjunto, a revolta do grupo. Dessa forma, precisava de Natan não só presente, mas também atuando como mediador da crise. O amigo não gostou muito da idéia, em menor escala seria agora visto como traidor também. Contudo, aceitava

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sua parcela de responsabilidade em manter o segredo por tanto tempo e queria ele mesmo a oportunidade de se defender.Às 9h15 os amigos haviam chegado. Para um estranho podiam aparentar tranqüilidade e bom humor, mas a verdade era diferente, intrigados pela escolha do local, atípico para um dia de trabalho, e pela ausência de uma pauta divulgada, as especulações transcendiam em conversas sobre sabotagem e antigas ameaças. Conduzidos à "sala de guerra" estranharam a existência de um ambiente de trabalho coletivo na residência do amigo, adicionando mistério à aura do momento. Bruno, Adrianna e Natan entraram juntos, se de um lado o nervosismo trazia seriedade, da mesma forma a expectativa de uma notícia ruim fazia a platéia imitar os anfitriões. Após os cumprimentos de praxe, rapi-damente o dono da casa tomou a palavra.— Antes de qualquer coisa vou pedir a compreensão de vocês para não me interromperem, mesmo se sentindo incomodados e preocupados. O volume de informação será gigantesco e se eu for interrompido as discussões podem impossibilitar o término da explanação. E vocês vão querer dispor de toda a informação, acreditem. - Os olhares entrecruzaram a sala. Alguns sorrisos contidos davam conta da confusão do momento e ninguém falou. Bruno buscou acumular bastante ar ao respirar fundo, como se acreditasse poder prender o fôlego até tudo terminar. - Meus amigos, fora minha mãe, provavelmente vocês

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são as pessoas que eu mais amo neste mundo e, intencionalmente, jamais os colocaria em uma situação na qual corressem algum perigo relativo as suas carreiras ou a segurança pessoal. Infelizmente, não posso mais garantir proteção contra nenhum dos dois casos. Um grave erro de julgamento de minha parte colocou vocês em uma situação potencialmente perigosa. O que vou revelar para vocês hoje já devia ter sido exposto há muito tempo e, certamente, serei condenado por isso — ele andou um pouco pela sala, parou, fechou os olhos por alguns segundos e continuou. — Quando os convidei para participar dessa aventura o fiz e, esta é a pura verdade, por ter fé em vocês, acreditar que estariam felizes transformando o mundo, como, aliás, já estamos fazendo. Imaginei que estava oferecendo uma melhoria em suas carreiras. A oportunidade de ganhar muito mais dinheiro do que jamais planejaram. E, de fato, estão ganhando. Eu também disse que precisava de vocês, especialmente da sinceridade e da honestidade presente em cada um. Estava solitário e os queria ao meu lado. Vocês perceberam isso. Tenho certeza - embora mantendo o semblante preocupado, algumas cabeças balançaram em confirmação. - Contudo, essa não era toda a verdade. Sendo assim, me sinto obrigado deixá-los à vontade caso não se sintam mais dispostos a permanecer no negócio — Adrianna colocava nas mãos de cada um uma pasta relativamente grossa. - O primeiro

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documento os libera da exigência de permanência por dez anos na empresa.— Agora estou ficando assustada — Rachel se pronunciou. Bruno fez um gesto pedindo para que ela aguardasse e continuou. Natan ao lado dela colocou a mão em seu ombro sinalizando um reforço do pedido para aguardar mais um pouco.— Também vão encontrar na seqüência um acordo pré-assinado por mim para usarem caso desejem se retirar da empresa. Nele concedo, além do um milhão já recebido por vocês ao se juntar à Lima World Investments, devidamente convertidos em ações da APMM e já valorizados em, aproximadamente, 180% após o IPO da BioTech, mais 10 milhões em ações a preço de hoje. Ou seja, se e quando saírem da empresa, a critério de vocês, receberão este valor em cotas do fundo e podem vendê-las como qualquer acionista externo. - O burburinho foi inevitável. Bruno precisou insistir por alguns minutos até que se fizesse silêncio e ele pudesse dar prosseguimento à explanação.— Onde falhei em lhes dizer a verdade foi no motivo principal de todos os meus negócios. Está tudo relacionado a este homem - ao tocar a lousa eletrônica, uma foto ampliada de Arthur Covet Goldwill se iluminou. - Os dados sobre ele e seu império estão na pasta de vocês, assim como seu nome verdadeiro, Kerligan. Meu objetivo é impedir este homem de conquistar as ferra-mentas necessárias para se tornar algum tipo de líder ou soberano mundial. Ele é um assassino,

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um terrorista com um plano e é capaz o suficiente para executá-lo. Embora ainda não saibamos exatamente qual é o seu objetivo final, estou certo de que trará prejuízos gigantescos para todo o planeta.Max irrompeu em gargalhadas, olhava para os lados buscando apoio.— Ele está de sacanagem! É brincadeira. É uma peça! Que filho da puta! - Alguns começaram a sorrir e entrar na dança, a despeito da seriedade dos poucos conhecedores da verdade.Adrianna pegou um haltere guardado estrategicamente no canto da sala, era próprio para exercícios de bíceps, um braço por vez e seu peso exato não estava registrado em nenhum lugar visível. Com relativa facilidade ela o levantou e estendeu a mão entregando-o para Max.— Joga no canto do seu lado, por favor.Sem entender, Max usou as duas mãos para atender ao pedido. As risadas ainda fluíam sobre o clima nervoso quando ele se viu arremessado ao chão pelo peso do objeto. O estrondo chamou a atenção do grupo.— Este peso tem cinqüenta quilos e como puderam observar - ela pegou o haltere, o levantou e abaixou diversas vezes enquanto falava - não é problema para mim. Kerligan não é da Terra, nem eu.Max ainda ria seguro de que estava sendo vítima de algum truque. Wagner o acompanhava, porém com menor ênfase. Os outros igualmente incrédulos pareciam mais pacientes. Bruno

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retomou a palavra, comentou as principais características do diferenciado metabolismo e desempenho do corpo de Adrianna, e os expôs na lousa, incluindo detalhes técnicos em exames de sangue importantes apenas para Cris. Compelido a testemunhar sobre os testes e sua validade Natan foi obrigado a confirmar ter acompanhado sua execução, automaticamente se colocando no meio do campo oposto.Adrianna tomou a palavra e apresentou, com o arrastar de uma página virtual no quadro, um conjunto de fórmulas. Uma representava a cura definitiva para a Leucemia, outra para o mal de Alzheimer. Garantiu a Cris sua aplicabilidade não devido à sua genialidade e sim por conta de sua memória. Aquilo era história em sua terra natal e o único motivo de adiar a apresentação delas era o medo de ser descoberta, fosse pelo governo fosse por Kerligan. Assegurou que era capaz de fornecer a cura para todos os tipos de câncer e doenças degenerativas em cinco anos, caso pudesse testar sem restrições todas as fórmulas já presentes em sua mente. Ao continuar rindo, Max levou um murro na perna desferido por Cris.— Cala a boca! - ela estava terrivelmente séria. - Ela não está brincando!O ato compeliu todos a se calarem e prestarem ainda mais atenção.Adrianna contou sua história, incluindo com ênfase os momentos no laboratório principal do projeto "Nova. Aqua". Ela e Bruno se alternaram na oratória resumindo o caminho percorrido até o dia no Gulfstream em que foi feito o convite ao

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grupo para formar o Infinito. A descrição do projeto de enriquecimento celular, o Alpha11 e o AlphaT-11, foram detalhados ao máximo possível no curto espaço de tempo, especialmente para o benefício de Cris. A notícia dos avanços absorvidos por Bruno ajudou a entenderem muito dos acontecimentos passados e, em especial, o recente atropelamento. A todo o momento ele reforçava seu desejo de realmente mudar o mundo, ofertar através do conhecimento de Adrianna uma vida melhor para a humanidade. O clima na sala virou completamente ao começarem a perceber a extensão da guerra entre Bruno e Kerligan, dos bilhetes recebidos aos incidentes hoje atribuídos ao inimigo e seus efeitos sobre a vida de cada um. A percepção de insegurança aumentava a cada palavra dos anfitriões e a agressividade no tom de voz dos questionamentos crescia de forma proporcional. Marco concluiu rapidamente que estava conduzindo uma empresa fadada a perder na concorrência para as empresas Covet e cujo único papel era diminuir sua hegemonia, possuindo poucos diferenciais e potencial de sucesso se comparado a projetos como o da ADe, Fênix e Cellular Growth. Em algum ponto Max fez a associação entre a falta de freio no seu carro e as sabotagens deixando claro a todos não ter morrido por absoluta obra do acaso. O choque percorreu a mesa atingindo Bruno em cheio. Marco vociferou xingamentos direcionados ao dono da casa antes de sair furioso arrastando consigo uma Rachel confusa e decepcionada,

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indiferentes aos apelos do antigo amigo. Acusava-o de ter brincado com suas vidas. Wagner não foi tão violento, mas saiu sem dirigir a palavra a ninguém. Foi de Cris a pergunta mais difícil de responder:— Meus filhos estão em perigo?A resposta foi verdadeira e não agradou. Só podiam adivinhar, pensavam que não, porém a dúvida existia e, por isso, designaram os guarda-costas e acreditavam que era prudente estender a proteção às crianças também. Após mais de duas horas de discussão, Max e Cris abandonaram o recinto magoados e sem saber como proceder. O olhar de Max antes de atravessar a porta foi de decepção e raiva. No final o corpo de Bruno simplesmente cedeu em uma das cadeiras. Estava arrasado. Não tinha idéia de qual seria a decisão dos amigos, se é que ainda seriam seus amigos. Adrianna se posicionou atrás dele, as mãos em seus ombros na tentativa inútil de melhorar seu ânimo.— E agora? — Natan perguntou.Bruno levantou o olhar cabisbaixo e cerrando os dentes pronunciou sua decisão como uma sentença.— Vou para a Inglaterra tentar convencer a tal Olívia a nos ajudar. Se não der certo, vou conseguir pessoalmente as informações que preciso. Tenho um plano... E vocês não vão gostar.

28. A foto

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Às 21h o interfone tocou. Cristiane não acreditou quando o porteiro informou o nome da visitante, era muita audácia da parte dela. Adrianna não aceitou a recusa e pediu para falar com Dra. Cristiane. Relutante, ela cedeu. Por educação apenas. Ouviu a ex-amiga implorar por quinze minutos de seu tempo para ouvir o ponto de vista dela. Finalizados os minutos concedidos, se fosse da vontade da dona da casa, nunca a procuraria novamente.Adrianna não encontrou o resto da família quando foi encaminhada ao escritório pela empregada. Estava clara a intenção de se manterem o mais distante possível. Uma ordem clara deve ter sido dada a Pedro, Beatriz e Ana, senão estariam ali, pulando na "tia Dri". Seu coração, já pesado, dava-lhe um nó na garganta. A porta foi aberta por uma Cristiane sisuda e distante.— Seja rápida - disse apenas ao fechar a porta atrás de si, mantendo-se em pé. Max não está nem um pouco feliz.— Só quero apresentar todos os fatos antes de você definir os próximos passos.— Quanta surpresa... Mais revelações! - disse sarcasticamente. - E não estou dizendo que acredito em toda a história... Só para constar.— São apenas detalhes, contudo possuem relevância. E quanto a acreditar ou não, embora nem tudo possa ser provado, quando se acostumar com a idéia vai perceber o quanto tudo faz sentido.

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— Não vou me acostumar com nada! Diga logo o que veio dizer e vá embora.Concordou acenando com a cabeça. A raiva da amiga lhe doía a cada palavra, buscou forças e continuou.— Quando Bruno fez o convite para vocês nós já estávamos apaixonados, não admitíamos, lutávamos contra, mas estávamos. Eu tinha muito medo, não por mim e sim pelas conseqüências caso não conseguisse orientar Bruno a chegar onde estamos hoje, com dinheiro suficiente para, pelo menos, incomodar Kerligan. Já ele tinha medo por mim, Cris. Kerligan matou quase todo mundo naquele laboratório, hoje acredito que estou viva apenas por causa de Onan. Ele estava ferido e, com certeza, era a única pessoa com quem Kerligan se importava. Deixou-me sobreviver para cuidar dele. Ele atirou na pessoa mais importante do mundo para ele, não só o traiu como aceitou o risco de matá-lo. Bruno estava certo de que, se Kerligan soubesse da minha presença na Terra trabalhando contra ele, daria um jeito de me assassinar. E fui eu quem pediu sigilo. Nunca desejei ter meu segredo revelado para ninguém. Natan foi a única exceção, uma exigência de Bruno para continuar lutando.Em uma pausa para tomar fôlego, as duas mulheres se entreolharam e Adrianna percebeu a relutância de Cris. A despeito das palavras, os músculos do ombro se relaxavam, a face não estava mais contraída. Era a deixa para não perder o ritmo.

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- Ele brigou comigo várias vezes. Disse que confiaria a própria vida a cada um de vocês. Eu argumentava a possibilidade de não quererem se envolver e então seriam portadores de um segredo gigantesco e estariam longe, à mercê da mídia, distantes dele. Uma conversa no momento errado, um repórter na fila do supermercado, seria o suficiente para potencialmente chamar a atenção para mim. Quais cuidados você tomaria relativo a uma história na qual não acredita? Não está acreditando em tudo hoje, como seria se não tivesse experimentado este último um ano e meio? Eu dizia coisas assim para ele, Cris. Você pode me culpar? Pode culpar um homem apaixonado por querer me proteger?Cris sentou-se em uma cadeira. Os dedos pressionavam as têmporas e os olhos se fechavam diante do imenso fluxo de pensamentos e considerações jorrando em sua mente.- Tudo mudou agora. Eu não tenho mais razões para me esconder. Kerligan já sabe de mim e como Bruno sempre diz, a melhor defesa é sempre o ataque - ao ouvir as últimas palavras, Cris levantou imediatamente os olhos com uma expressão preocupada. Temia, certamente, uma escalada da violência. - Não me olhe assim, você me conhece, pode ter dúvidas nesse momento, mas acredite, jamais ameaçaria a vida de alguém. Estou falando do ideal por trás do Infinito, ele sempre foi verdadeiro. Nós vamos acelerar os testes da droga definitiva contra o câncer. Em cinco, anos no máximo, considerando

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todos os prazos do FDA, poderemos disponibilizá-la no mercado internacional. Leucemia, câncer de mama, de pulmão. Nós poderemos curar praticamente todos os tipos, Cris. Faça parte disso! E tem muito mais, o Alpha11 é a base de tudo, do Alzheimer ao Parkinson, só preciso de testes. Adaptar o princípio ativo para atacar cada região específica do corpo. É tudo estimulo e restrição. Estímulo à reprodução de células saudáveis e restrição à reprodução das doentes - as lágrimas escorriam em sua face. - Preciso de você, Cris. Em todo o planeta você é minha única amiga, amo seus filhos, me dê uma chance, por favor.Agora era ela quem se jogava na cadeira. Os olhos cobertos pelas mãos, nunca cogitara chorar. Pediu desculpas antes mesmo de abrir os olhos e quanto o fez encarou novamente a amiga cujos olhos vermelhos e as lágrimas denun-ciavam sua emoção.- Preciso de algum tempo — a voz era baixa e relutante. — Prometo pensar em tudo com calma, está bem?- Tudo bem, obrigado por me ouvir.Ela levantou e se dirigiu para a saída acompanhada pela dona da casa. Na porta, a despedida foi constrangida, porém o fio da amizade estava lá, tangível, havia esperança.

Tudo parecia infinitamente complexo, mesmo considerando seu intelecto turbinado pelo Alpha11. Se muito, os avanços em sua capacidade de raciocínio lógico e memorização

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lhe davam ainda maior ciência das possibilidades de erro em seus planos. Precisava confiar na capacidade de improvisação e de resposta rápida aos eventos. Passara-se uma semana entre planejamento e treinamento das invasões. A empresa de segurança e investigação, contratada deles em Londres para este fim, não fez muitas perguntas quanto aos treinamentos solicitados. Estavam felizes em poder receber tanto dinheiro por uma excentricidade dos clientes. Recorreram aos contatos extraoficiais, há tempos, parte da folha de pagamento de Adrianna, para os itens mais específicos incluindo os equipamentos necessários. Os relatórios de avaliação dos dois alvos foram preparados pela empresa de investigação usual, a Private Look, a mesma responsável pela vigilância à Revolutions Power e pelo contato com o Dr. Manoel Alvarez. Incomodava a idéia de Adrianna invadir sozinha a sede da empresa, porém sua lógica fora irrefutável. Precisavam ter acesso à companhia e a casa de seu dono e, se optassem por fazer aquilo em seqüência, caso algum problema ocorresse, a segurança seria dobrada em todas as instalações e suas chances diminuiriam substancialmente. Ademais, fazendo ao mesmo tempo, se uma invasão for percebida atrairá a atenção da central de segurança, deixando o outro local, momentaneamente, ainda mais acessível. Além disso, o fato de ela ser mais rápida, forte e preparada do que ele tornavam vazios quaisquer argumentos.

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A noite estava especialmente negra. Nuvens de chuva cobriam o céu e ocasionais trovões prenunciavam o mau tempo. Em suma, estava perfeito. Uma sorte, considerando que contavam com apenas uma janela de dois dias até o retorno de Arthur Covet Goldwill e Olívia Goldwill à sua casa após a lua de mel. As câmeras de segurança instaladas no alto do muro de três metros cobriam todo o perímetro da face norte da propriedade, onde estava posicionado atrás das árvores. Disparou na linha central entre duas delas e saltou agarrando a borda superior do muro com facilidade. A escuridão da noite, uma lâmpada quebrada no dia anterior, sua velocidade, a máscara de esqui e a roupa, completamente negras, proveriam a cobertura necessária. Os cansados seguranças, responsáveis pela central de segurança, nem perceberam uma sombra rápida passando em um dos monitores. O jogo dos Celtics estava muito mais interessante. As árvores ao longo da rua lateral e a falta de movimentação no bairro durante a madrugada permitiam-lhe usar o tempo sabiamente. Contraiu os braços elevando seu tronco o suficiente para monitorar o lado de dentro da propriedade. Podia ficar naquela posição por uma hora se necessário e não se cansaria. Um guarda andava vagarosamente perfazendo sua ronda. Bruno se abaixou por alguns minutos. Quando checou novamente, o guarda já estava fora de vista. Levaria tempo para ele retornar àquele ponto. Segundo os rela-tórios quatro homens faziam a ronda naquele

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horário. O responsável pela face norte se encontraria com o segurança fixo na frente da casa e só retornaria após alguns minutos de conversa, talvez mais se tivesse sorte. Passou o corpo para o outro lado deixando-se cair de quatro sobre a grama, provocando assim o menor ruído possível. Correu para a entrada de serviço tomando cuidado para evitar a câmera sob a porta. Com um aparelho especial, do tamanho de um celular comum, filmou a vista da entrada, segurando o dispositivo bem ao lado da câmera de segurança, trinta segundos depois usou uma pinça especial, na ponta de um fio conectado ao dispositivo, para envolver o cabo de saída de vídeo. Segundo lhe explicaram, aquilo sobreporia o sinal, repetindo a cada trinta segundos a cena filmada por ele. Enganaria os guardas por cinco minutos, talvez. Nada mais. Mostrou ser bom aluno e usou os dois pinos de metal de cerca de dez centímetros, retirados do cinto de "utilidades", para rapidamente abrir a fechadura. Entrou, fechou a porta com cuidado para não fazer barulho e procurou pela caixa do alarme. Tinha agora um minuto para digitar a senha correta. Um spray especial, pulverizado sobre o teclado exposto a uma luz azul, mostrava os últimos dígitos. Por sorte, havia cinco marcas e, como a senha era também de cinco números, isso significava que eles não haviam repetido nenhum, totalizando 120 possibilidades. Pré-programou os cinco números no último dispositivo que seria usado naquela noite e o anexou ao teclado do alarme através de dois

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clipes laterais. Ele faria o trabalho pesado tentando todas as possibilidades. Se não houvesse tempo suficiente, a operação estava terminada e ele precisaria correr para evitar os tiros. Ouvia seu coração batendo e não achava que fosse resultado de sua audição ampliada.

Os seguranças ouviram tiros e correram assustados para o portão da frente com armas em punho. Um pequeno alvoroço se formava. Logo cinco homens se juntavam ao responsável pela entrada principal montando uma linha de defesa. Os outros em alerta mantinham o foco na direção dos tiros. Aliviados perceberam uma caminhonete parada à frente do complexo. O escapamento era o atirador, isto é, o carburador entupido gerava os estalidos e o escapamento os amplificava. Juntos causavam o barulho semelhante ao provocado por uma arma. Apenas um veículo com defeito. O guarda do portão ofereceria ajuda, mas o proprietário com o celular no ouvido informaria que já estava falando com o guincho. Quando Adrianna pousou de paraquedas no topo do prédio principal da Revolutions Power, toda de preto, máscara de esqui, roupas e paraquedas negro, ninguém notou. A ação sincronizada funcionou perfeitamente. As câmeras, em vários pontos do topo do prédio de cinco andares apontavam para fora e para baixo, não contavam com uma invasão pelo alto. O prédio era grande o suficiente para o pouso. Ela precisava apenas ser rápida em recolher o tecido esvoaçante, colocá-lo

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novamente na sacola e deixá-lo junto ao resto do equipamento em um local acessível e fora de vista. Usou uma mini-desparafusadeira automática para abrir a saída de ar-condicionado e se arrastou com rapidez pelos túneis. Nos relatórios da investigação sobre a empresa constavam plantas detalhadas do sistema de ventilação. Ela seguia para a sala do Dr. François Pinot, líder de projeto e membro da equipe Gênesis. Felizmente, não havia medidas de segurança envolvendo os duetos de ar-condicionado e os sensores de movimento estavam instalados apenas nas salas de trabalho. Teoricamente, para chegar à sala do Dr. François um intruso precisaria antes passar pela sala de trabalho de sua equipe, segundo este raciocínio, portanto, ela estaria segura. Chegou lá com facilidade. A grade do ar-condicionado se encaixava por pressão. Com força e cuidado ela a desencaixou e prendeu um gancho em uma das palhetas deixando-a presa a seu cinto por uma pequena corda. A saída de ar estava no teto obrigando Adrianna a uma pequena acrobacia. Como não podia se virar dentro do pequeno dueto, se jogou de cabeça girando no ar e caindo sob os dois pés. Segurou a grade na mão para evitar um choque com ela ou outro objeto na sala. Não havia como prever a presença de um guarda do lado de fora e qualquer barulho era indesejado. Rapidamente, se posicionou na mesa, inseriu o CD no compartimento e ligou o laptop. Normalmente o processador procura o CD antes do HD, uma medida de segurança que

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permite a inicialização do computador quando o disco rígido apresenta algum defeito. O programa no CD foi acessado e, automaticamente, uma rotina de inicialização preparada, especialmente, para copiar o programa monitor no HD foi execu-tada. Ele se mascarava dividindo o código entre diversos programas inofensivos já existentes e estaria no ar na próxima vez que o Dr. Pinot digitasse sua senha. Aí então poderiam ter acesso aos arquivos do projeto. Desligou o laptop, retirou o CD e se preparou para sair quando notou uma única pasta sobre a mesa. Não resistiu. Com todo o cuidado para não alterar sua posição, abriu-a e passou a vasculhar o conteúdo. Eram páginas e páginas de relatórios oriundos de diversos observatórios astronômicos. Sem entender, limitou-se a tirar fotos das páginas título com o celular para posterior investigação. Colocou tudo de volta no mesmo lugar, se posicionou abaixo da entrada de ar, saltou na altura necessária para enfiar os braços de cada lado e foi se içando para dentro do duto. Encaixou cuidadosamente a grade e retornou ao ponto de entrada. Agora vinha a parte complicada.Gozando de certa liberdade, Bruno vasculhava a mansão à procura do escritório de Arthur. O mordomo e uma governanta moravam em quartos externos à casa principal, portanto, assim como os seguranças, estavam agora limitados a área externa. Como conseguira desativar o alarme a tempo, se não fizesse barulho ou acendesse uma luz, deveria ficar tudo

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bem. Contudo, precisava ser rápido. Logo os seguranças na central de monitoração perceberiam a repetição das imagens na porta da entrada de serviço. A planta estudada por ele aparentemente era fidedigna. Subiu as escadas e chegou ao escritório. Sua decepção foi enorme ao notar a ausência do computador sobre a mesa. Droga - praguejou em voz baixa. Não tinha onde implantar o programa "Cavalo de Tróia" - aquele capaz de capturar de forma invisível as senhas do usuário. Vasculhou as gavetas da mesa e as portas da gigantesca estante circundando a sala sem encontrar nada além de livros e material de escritório. Papéis em branco, blocos, canetas, pesos de papel... Nenhuma anotação pessoal, nenhum relatório. Havia uma impressora em um nicho da estante e um ponto de rede wireless indicando que ele, eventualmente, trabalhava ali com um computador. Aparentemente o homem não se afastava do trabalho nem na lua de mel, deve ter levado o laptop na bagagem. Seu tempo estava acabando. Portanto, decidiu por apenas mais uma tentativa. Correu para o quarto do casal. Talvez na cabeceira houvesse algo interessante, um relatório deixado para trás. No caminho notou uma porta na qual um dispositivo de segurança biométrico controlava a entrada. Estava explicado, era ali onde Kerligan trabalhava e não no escritório. Não havia tempo para burlar o sistema, não sabia dele e não estava preparado. Droga — sussurrou mais uma vez. A agência de investigação não fora tão

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eficiente, afinal. A invasão fora inútil. Contendo a frustração, verificou o quarto de dormir apenas por já estar quase lá, ficando feliz por tê-lo feito. Na gaveta de cabeceira, em um dos lados da cama, provavelmente o usado por Arthur, havia uma pasta. Ao abri-la, Bruno se viu chocado. Era um relatório não apenas sobre ele, mas contendo informações relativas a todos os seus mais íntimos amigos, com direito a fotos e um extenso detalhamento sobre a história de vida e as rotinas de dona Marta Lutz Cortes Lima. Nunca pensara naquela possibilidade, nem cogitara o fato de sua mãe poder ser um alvo. Sentiu a fúria preencher as veias a ponto de turvar sua mente. Usou o celular e gravou várias páginas do relatório. Antes de sair, deu uma olhada rápida no quarto, uma visão geral. Ao contrário do resto da casa, ele possuía uma decoração em estilo moderno. Uma TV de 55 polegadas e gravuras de pontos turísticos ao longo do planeta decoravam as paredes. Uma mesa e duas poltronas permitiriam ao casal tomar café da manhã no próprio quarto. No conjunto podia ser considerado espaçoso e impessoal. Do lado dela a cômoda era repleta de porta-retratos cujos personagens eram o casal, e, a julgar pelas feições, provavelmente, os pais dela. No lado de Arthur, apenas dois, um dele e Olívia e outro... Foi pego de surpresa. Era uma foto antiga, em preto e branco. Um homem caucasiano, usando paletó branco e gravata borboleta escura, montado em uma bicicleta e fazendo pose, sorrindo. Estava em uma praça. Ele já havia visto

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aquela foto antes em algum lugar. Pensaria naquilo depois. O cronômetro já marcava cinco minutos, precisava sair. Tirou uma foto do porta-retratos e correu para o ponto de entrada. Checou a presença de seguranças, abriu a porta, verificou novamente o perímetro, fechou a casa, se posicionou em um ângulo seguro, retirou o dispositivo e correu para o muro. Sobrepujou-o com facilidade no mesmo ponto por onde entrou e saiu da propriedade sem deixar pistas de suaoperação, ainda tentando se lembrar de onde reconhecia a foto.

Adrianna precisaria usar toda a sua força para lançar a sacola com o para- quedas e outros apetrechos, agora desnecessários, na direção das árvores ao lado do complexo. Ficaria apenas com uma corda e sua "passagem de saída". A distância aproximada entre a borda do prédio e a cerca mais próxima era de vinte metros. Precisava conseguir lançar bem mais longe. Pelo menos quarenta metros para minimizar a probabilidade de alguém conseguir visualizar o objeto depois da queda. Considerando a cor preta, a noite de céu fechado, a altura do prédio, o peso total de três quilos e meio do pacote e sua força, estava confiante em suas chances. Havia treinado a manobra, girou o corpo segurando na alça duas vezes, tal como em um arremesso olímpico de peso e soltou direcionando toda a força para os braços. Ficou impressionada ao ver com dificuldade a sombra negra caindo em meio à copa das árvores. O farfalhar não foi diferente

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do provocado por uma rajada de vento. A não ser que soubessem o que procurar, dificilmente encontrariam pistas nas gravações de vídeo das câmeras apontadas para a cerca.Por razões de segurança, além do prédio principal, havia um segundo prédio, menor, composto apenas de laboratórios de diversos portes e tamanhos. Entre os dois, ficava o ponto focal de sua estratégia de saída. Um estaciona-mento secundário sem nenhuma porta de acesso, diretamente voltada para ele, tornando a vigilância ali quase desnecessária. Um maravilhoso ponto cego para as câmeras. Pelas laterais do prédio monitorou o movimento dos seguranças. Quando encontrou uma brecha usou uma corda com um gancho na ponta para descer. O passo seguinte era simples, porém delicado. Precisava sacudir a corda para desprender o gancho e apanhá-lo antes de cair sobre um carro ou no chão. Sacudiu... Ele despencava na direção de um dos poucos carros estacionados. Quando teve certeza, saltou usando o teto do Ford Escort como degrau, agarrou o gancho no ar, caindo do outro lado na tentativa de evitar o impacto da própria corda sobre o automóvel. Estancou por um momento, ouvidos em alerta. Nenhum sinal de movimento, a manobra fora bem-sucedida. Recolheu a corda e a colocou dentro do macacão, o gancho se encaixou perfeitamente no espaço reservado para ele na cintura.Posicionou-se atrás da SUV Chevrolet do chefe de segurança e ajustou sua "passagem de saída". Era uma prancha de quarenta por setenta

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centímetros com rodas nas laterais feitas de um plástico emborrachado super-resistente e rolamentos, de baixo impacto, extremamente silenciosos. Conforme já havia testado, o carro era alto o suficiente para ela se posicionar com as costas na prancha embaixo dele, como se deitasse sobre um enorme skate. Precisaria de algum esforço para se segurar no eixo do carro e manter as pernas levantadas, algo relativamente fácil para alguém com as suas habilidades. Quando às 6h o cansado chefe do turno da noite fosse para casa, levaria consigo uma passageira. Agora era esperar pacientemente, torcendo para o motorista não deixar cair uma chave ou uma caneta ao entrar no carro.Quando um caminhão parou atrás da SUV em um sinal de trânsito, dez minutos após saírem do complexo, ela deslizou atravessando-o e surgindo "do nada" na sua traseira, para o espanto de um senhor grisalho sob o volante de um Toyota Corola. Levantou com a prancha na mão, abriu a porta traseira do caminhão baú, entrou e fechou a porta. Bruno a abraçou aliviado enquanto seguiam para um local seguro.Após trocarem de transporte, dirigiram-se em uma limusine ao hangar de onde partiriam para os Estados Unidos. No caminho, compartilharam entre si as emoções da noite e os resultados obtidos. Mal disseram a empresa de investigação responsável por fornecer-lhes a planta da mansão de Arthur e riram juntos da experiência como espiões. Nenhum deles jamais havia imaginado estar naquela posição. Adrianna

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também se revoltou ao saber do arquivo sobre dona Marta. As providências possíveis já haviam sido tomadas. Ele lhe garantiu. Havia acordado o chefe de segurança da Lima Gestora de Fundos, em Salvador e despachado dois guarda-costas armados para a casa da mãe. Um esquema de segurança 24 horas estaria pronto aos primeiros sinais da alvorada baiana. Quando mostrava as fotos no seu celular para Adrianna, ela tomou um susto.— O que a foto de Onan está fazendo aqui?— Onan? — Bruno tomou o smart phone de suas mãos de forma a se assegurar de estarem falando da mesma foto. - Este cenário não parece o de outro planeta. Você deve estar se confundindo.- Não estou, não - respondeu enquanto tomava novamente o celular. - Trabalhei anos com este homem. Foi meu mentor, meu amigo, praticamente um pai para mim. Pode ser uma pessoa idêntica a ele, mas acho pouco provável.- Ele já esteve na terra?— Sim. Ele foi o responsável por nossa única pesquisa de campo. Em última instância, foram os dados coletados por ele em um ano na Terra os responsáveis pela decisão de a abandonarmos como potencial salvação.- Esta foto parece da década de 1950 ou 1960, não estou certo. Seria coerente com a época em que ele veio?- Seria sim - ela respondeu após alguns instantes.- E qual a relação dele com Kerligan?

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- Muita, só não sei se justifica a foto. Nem imagino como ou porque ele a obteve...- Vamos por partes, me conte tudo.A história contada por Adrianna advinha de fofocas e fragmentos de informação coletados ao longo do tempo. Nenhum dos dois protagonistas se permitia falar sobre o assunto. Assim como ela, Kerligan Amnael fora pupilo de Onan Zuckman, seus estudos foram financiados por ele desde criança. Zuckman o conheceu através de um programa especial de apoio a crianças notáveis, fundado por ele mesmo. Tornaram-se ao longo dos anos amigos íntimos, segundo se dizia. Todos acreditavam que o mais jovem seria o sucessor natural do outro no Conselho dos Onze. Onde havia uma boa oportunidade de se sobressair no centro de pesquisas Excelcius, Onan encontrava uma vaga para o protegido. O progresso de Kerligan fora vertiginoso contribuindo para a fama de Zuckman como "homem de visão". Parecia uma simbiose perfeita, uma amizade tão admirada quanto invejada. Então algo aconteceu, ninguém sabe ao certo o motivo, e eles se desentenderam. Kerligan se desvinculou do centro de pesquisas. Conseguiu patrocínio próprio e montou um laboratório de estudos independente, dedicado à energia, geração, armazenamento e transmissão. O denominou de "Trindade da Força". Por seus próprios méritos, conseguiu então uma vaga no conselho. Em pouco tempo ficou claro a todos o ódio de Amnael por seu antigo mentor. Segundo consta, usou de artimanhas e ardis na tentativa

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de removê-lo do conselho. Em diversas ocasiões quase conseguiu. Ainda segundo a lenda, Onan nunca revidou, nunca tentou prejudicar o antigo amigo.- Bom... Não quero defender o inimigo, mas você parece ter a versão de Onan dos fatos.- Não, ele nunca falou sobre isso comigo. Quem trabalha com ele aprende, por experiência própria, que não se deve comentar o assunto. Além do mais, a maior parte eu soube antes de ser acolhida por Onan, ambos já eram famosos, então.- Talvez manter a foto na cabeceira seja um chamado da consciência. Uma forma de se conectar com as emoções do passado - Bruno cogitou.- Ele atirou em Onan! Pelo amor de Deus! - demonstrava espanto diante da sugestão.- Desculpe-me! Falei sem pensar - depois de uma pausa de incômodo, continuou: - Esta foto é importante, senão não estaria na cabeceira dele. Alémdo mais, eu posso jurar... Lembro-me desta foto de algum lugar.

EMPRESA PROMETE CURA CONTRA O CÂNCER

A manchete do jornal americano era a mais violenta, mas não a única a colocar em dúvida o release fornecido para a imprensa no dia anterior pela Cellular Growth. De seu avião particular Kerligan lia atentamente a matéria enquanto retornavam das ilhas Fiji. Olívia dormia

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profundamente ao seu lado. O sono de uma consciência pura, linda.

Na tarde do último domingo em São Francisco, Califórnia, o CEO da Cellular Growth, considerada uma das mais promissoras empresas do grupo Lima World Investments (LWL), Patrick Murray, reuniu a imprensa para uma entrevista coletiva com o objetivo de apresentar pontos relevantes de seu planejamento estratégico de longo prazo. No evento, a Cellular Growth, cujo acionista majoritário é o bilionário brasileiro Bruno Cortes Lima, prometeu fornecer comercialmente a cura para o câncer em cinco anos. Não apenas para a leucemia, conforme anunciado anteriormente pela companhia, mas para todos os tipos de câncer em seu estágio inicial. Segundo o cien-tista chefe da pesquisa, Dr. Jonathan D. Caplery, a solução foi descoberta durante os testes das variações do LFCF, droga já em processo de aprovação pelo Food and Drug Administration (FDA), para a cura da leucemia infantil. "Nos testes a variação apresentou resultados excepcionais, estimulando-nos a expandir seu escopo", disse o cientista. Segundo ele, o próximo passo será o avanço dos testes clínicos de acordo com as regras do FDA.Analistas de mercado, contudo, cogitam se o anúncio prematuro não seria uma tentativa desesperada da companhia de influenciar a opinião dos investidores em relação a Lima World Investments (LWL). Após um incêndio criminoso em um de seus laboratórios, a Cellular Growth

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cancelou o LPO previsto para outubro e até o momento não anunciou nova data. Após extensa investigação em que se especulou a hipótese de sabotagem industrial, nenhum fato novo foi anunciado pelas autoridades policiais. Em contrapartida, líderes empresariais das principais apostas do fundo APMM, gerenciado por uma subsidiara da LWI, se afastaram da empresa em um movimento sem precedentes. Marco Meltezer e Wagner Matos, vice-presidentes de novos negócios da Lima Gestora de Fundos, denominada Lima Private nos Estados Unidos, renunciaram sem explicações. Até o fechamento dessa edição, nenhum gestor da APMM foi encontrado para falar sobre o assunto. Segundo a assessoria de imprensa da organização, os vice-presidentes de Novos Negócios da Lima Gestora de Fundos, Max Templis e Rachel Martinez, estão de férias. A ADe, empresa foco do trabalho de Martinez, está correntemente sendo processada por roubo de propriedade intelectual. Max Templis foi um dos principais arquitetos do sucesso do IPO da BioTech, outra empresa do grupo. A ausência mais questionada na coletiva de hoje, contudo, foi a da Dra. Cristiane Templis, considerada a mãe do projeto LFCF e responsável pela aquisição da empresa pelo fundo APMM. Procurada por nossa redação, não quis falar sobre o assunto.

A matéria seguia traçando os perfis dos principais negócios da LWI e as expectativas do mercado. De forma geral, o tom era de dúvida.

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Exaltava, porém, o espírito empreendedor de Bruno e sua capacidade de fazer dinheiro em pouco tempo, dando ênfase a sua rápida ascensão ao primeiro clube de empresários do planeta. No final, a matéria assumiu um tom otimista.

Apesar da falta de transparência do grupo LWL lançar dúvidas sobre o futuro de seus projetos, seus defensores exaltam a credibilidade da empresa, capaz de cumprir todos os prazos e metas anteriormente divulgadas, normalmente superando as expectativas. Perguntado sobre a possibilidade de não cumprir o cronograma divulgado, Cortes Lima foi enfático: "Nossos concorrentes não têm idéia do quão comprometidos estamos com nossos objetivos. Em nenhuma hipótese nós falharemos".Se o grupo vai mesmo cumprir a promessa, resta esperarmos cinco anos. A uma taxa de 10 milhões de novos casos por ano, o câncer se tornou um dos flagelos da humanidade e um desafio para a medicina.

- Algum problema? - Olívia acordara e percebera as rugas na testa de seu amado.- A bela adormecida acordou? - seu sorriso desmanchava qualquer sombra de preocupação, jogou o jornal na mesinha da frente e a beijou.- Nada... Algo para resolver depois.

No jato da companhia, retornando de São Francisco, Bruno parecia cansado. Provavelmente

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era apenas uma reação normal às matérias pouco favoráveis ao redor do mundo.- Definitivamente não foi o melhor movimento - disse ele, virando-se para Adrianna. - Mas tenho a esperança que o anúncio provoque uma reação precipitada de Kerligan e ele cometa algum erro. Só temo por Cris e os outros, principalmente, por Cris.- Não tivemos escolha. Foi a condição dela para permanecer no projeto: colocarmos a roda em movimento e garantir a cura do câncer independente de mim ou de você. E ela concordou em trabalhar apenas no escritório da Gestora de Fundos controlando tudo remotamente. Não quer ter contato com a imprensa ou com você. A distância imposta por ela e o afastamento dos outros devem direcionar a ira de Kerligan para nós. Além disso, temos guarda-costas protegendo todos eles. Só Marco não aceitou e mesmo assim o estamos vigiando à distância.- Fiz de tudo para falar com Marco e ele nem me recebeu, Wagner ainda me deu uma chance de conversar, mas foi inútil. Na visão dele ficar significaria colocar vida de Alice em risco. Rachel e Max se acalmaram um pouco e tenho esperança de conseguir uma segunda oportunidade de provar minha amizade.- Estou confiante. Se eles concordaram em tirar férias e pensar no assunto... E você? Muito triste?- Estou, mas a raiva é maior. Este desgraçado tinha um arquivo de minha mãe! Ele não respeita nada mesmo, não? Precisamos de um cheque

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mate, descobrir exatamente o plano dele, construir um relatório suficientemente detalhado, capaz de colocá-lo na cadeia ou pelo menos mantê-lo em uma coleira. As informações sobre o projeto Gênesis foram mesmo desanimadoras? Revisou as informações recebidas na madrugada? Chegou algo mais?O "Cavalo de Tróia" plantado no computador do Dr. François funcionou perfeitamente. As senhas foram capturadas durante o dia anterior e no o horário de pico do acesso externo, no início da tarde, as informações foram prontamente transmitidas para Adrianna. Teoricamente, não usariam este recurso novamente por algum tempo de modo a evitar chamar a atenção dos responsáveis pela monitoração da rede da Revolutions Power. Bruno tinha ciência de tudo isso. As perguntas eram apenas reflexo de sua ansiedade.— Não. É como eu te disse, nada indica mísseis saindo de alguma estação espacial. Estão conduzindo testes de precisão e alcance, utilizando o projeto Precision para melhorar os resultados da tecnologia Strike Force. Nada ilegal.— E o projeto Space Vision foi utilizado para melhorar os resultados da Blue Skiesl— Exatamente.— Então, se entendi bem, a Strike Force pode enviar um míssil dos Estados Unidos para a China. Ele sai da atmosfera, atravessa meio planeta, penetra novamente na atmosfera e atinge o alvo? - Bruno argumentou.

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— Isso se a China não tiver a tecnologia da Blue Skies, pois se tiver, detecta o míssil com facilidade ainda no espaço - ela sacudia a cabeça em sinal de desacordo. - Ainda não faz sentido para mim. Ele pode ganhar muito dinheiro, mas é polêmico demais para não ser entregue apenas à própria Inglaterra. Vender no mercado negro apenas para angariar um lucro maior é um risco desnecessário.— Se causar uma guerra mundial ele pode ganhar com a reconstrução, um povo desiludido é fácil de manipular. Ele pode incluir medidas de segurança para a tecnologia não atingir determinados pontos do globo - ele provocou.— Para causar uma guerra mundial ele precisa envolver o mundo islâmico ou a China e dificilmente a CIA ou o MI6 vão deixar acontecer uma venda ilegal para estes países. Como disse, é muito risco.— E quanto aos dados dos observatórios astronômicos na mesa do Dr. Pinot?— Nenhuma referência a eles no projeto Gênesis.—Talvez estejam se certificando das condições adequadas aos testes no espaço...— Pode ser, mas por que relatórios de tantos observatórios?— Precisamos tentar o plano B. Falar com Olívia, apelar para o bom senso dela — ambos se entreolharam receosos. — Quando chegarmos, vou conversar com Natan, checar como ele está se virando. Não deve estar sendo fácil ser o ponto focai do APMM substituindo os outros e ele

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vai querer notícias. Enquanto isso tente planejar um encontro meu com a Sra. Goldwill.Foram interrompidos pela aeromoça oferecendo café ou chá, estavam prestes a pousar. Quase pediu café, ao abrir a boca mudou de opinião e solicitou o chá.— Minha mãe ficaria orgulhosa se me visse pedindo chá! - a imagem lhe veio em um estalo. A questão da foto o incomodava profundamente, pois estava certo de lhe ser familiar. Precisou esquecer o assunto por algumas horas para se recordar. - Lembrei onde vi a foto! Droga, não faz sentido... Devo estar errado...Levantou-se em um salto e, para a surpresa de Adrianna, correu para a cabine do piloto. Ao retornar, anunciou:— Vamos precisar fazer a alfândega em Salvador!

29. Mudança de perspectiva

— A senhora tem uma foto parecida com esta, não tem?Bruno exibia a imagem no smart phone para a mãe tentando interpretar suas feições. O apertar de olhos para enxergar o conteúdo do pequeno visor e a manipulação dos óculos, na tentativa de acomodá-lo melhor, mascarava qualquer expressão e um minuto se passou antes de dona Marta falar algo. Em um momento de agilidade, ela o encarou claramente espantada.— Onde você conseguiu essa foto?— Estava no escritório de uma pessoa em Londres. Eu não tinha intimidade para perguntar

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sobre ela, fiquei intrigado e tirei uma foto com o celular — mentiu. — Eu tinha certeza de já ter visto...Ela se levantou e foi para o quarto, prontamente seguida por Bruno. Adrianna se contentou em esperar no sofá, ainda não se sentia intima o sufi-ciente. O apartamento no edifício Mansão Marcus Pinho ficava no corredor da vitória e tinha uma bela vista para o mar. Dona Marta relutara em se mudar, principalmente para um apartamento tão grande, mas a paisagem e a possibilidade de receber visitas de outras localidades e as acomodar muitíssimo bem fizeram a diferença. O prédio de um apartamento por andar e moradores endinheirados tornou o trabalho da segurança mais fácil e aceito pelos vizinhos. Para eles, era uma tranqüilidade a mais. Um capricho bem-vindo dado a escalada de violência na cidade nos últimos anos.Ao voltarem Bruno trazia uma caixa de chapéu e a colocou sobre a mesa de jantar. Ambos aguardavam ao lado da mesa enquanto dona Marta vasculhava a montanha de fotos. Ao encontrar, pediu o celular do filho e comparou as imagens, eram idênticas.— Então mãe, quem é ele?— Ninguém importante, só um amigo de muito tempo atrás. O nome dele era John Goldwill, era americano, um cientista, estava no Brasil fazendo pesquisa sobre espécies vegetais - finalizou absorta em pensamentos, despercebida do cruzar de olhares intrigados entre o filho e Adrianna. Depois andou até o sofá sentando-se

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ainda com os olhos pausados sobre a foto. Os dois a acompanharam.— Tem mais alguma foto dele? — Adrianna perguntou.- Não.— Mãe - Bruno a encarava com seriedade segurando sua mão para enfatizar as palavras. - Preciso saber tudo sobre este sujeito. O escritório da pessoa onde vi a foto é de um inimigo. Achamos inclusive que ele é o responsável pela sabotagem em nossas empresas. Por favor, qualquer coisa pode ajudar.— Isso foi há mais de quarenta anos, que diferença faz, nunca mais vi John — dona Marta parecia ligeiramente contrariada.— Deixe-me ser o juiz disso, por favor. Faz isso por mim? — o balançar de cabeça da mãe dizia "não", mas o ajeitar dos curtos cabelos com a mão e o empertigar da postura era o sinal mais importante, e dizia "sim".— Conheci-o no ano de 1967 por acaso. Ele estava com dificuldade para falar com o pipoqueiro, embora falasse português o sotaque ainda era forte e eu tentei ajudar. Eu não sabia inglês também, mas era mais intuitiva. Dali nasceu uma amizade e passamos a nos encontrar de vez em quando. Ele me revelou que era americano, de Boston, se não me engano.— Mencionou amigos? Colegas de trabalho? - Adrianna tentava descobrir alguém na Terra, um possível contato capaz de lançar luz as suas dúvidas.

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— Não. Trabalhava sozinho. O dinheiro só financiava o trabalho de um pesquisador, eu acho.— Nunca o viu com outra pessoa, alguém com quem passasse algum tempo, uma namorada, um contato de trabalho aqui no Brasil?— Não. Só o encontrava aos sábados ou domingos e, às vezes, ele se ausentava de Salvador por mais de uma semana, então estávamos sempre sozinhos. Não me lembro de ele ter encontrado um conhecido sequer. Por que encontraria? Não era daqui e trabalhava sozinho — enfatizou, incomodada pela linha de questionamento.— Meu pai não tinha ciúmes? Naquela época eram namorados, ou noivos, não? — falou em tom de brincadeira, se arrependendo imediatamente de ter trazido o assunto à mesa.— E seu Pai tinha tempo para nada, menino. Ele era senador e já vivia em Brasília, aparecia de mês em mês... — estava furiosa pela lembrança, trazia à tona mágoas antigas.— Quanto tempo ficou no Brasil? - Adrianna interrompeu tentando evitar uma potencial discussão.— Sumiu em 1968, em maio.— Ele era uma boa pessoa? - Bruno inquiriu.— Maravilhosa. Nunca encontrei alguém tão bondoso, gentil e ao mesmo tempo tão inteligente. Eu já era formada em enfermagem e ele me pedia para explicar os diferentes tipos de drogas e seus efeitos. Dali a pouco ele mesmo fazia correlações e era capaz de criar sozinho fórmulas para as mais diversas enfermidades.

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Era como se já soubesse tudo e estivesse só me testando. No início, fiquei chateada, mas depois me explicou que não estava familiarizado com os nomes em Português e, quando eu dizia as funções de cada componente, ele conseguia associar às drogas americanas. Mas, não era só isso. Ele sabia falar sobre as estrelas, galáxias, asteroides. Ensinou-me até sobre buracos negros e teorias de Einstein. E quando menos se esperava ele desandava a divagar sobe o poder do sol de criar energia. Sobre os perigos da dependência do petróleo. Nada disso era sequer pensado na época, quanto mais discutido em voz alta - ela riu um pouco antes de continuar. - E tinha uma energia! Nunca vi um homem de 45 anos tão forte e ágil. Quero dizer, hoje é diferente. Todo mundo faz ginástica, musculação, academia, naquela época não existia isso.Bruno notava certo brilho nos olhos há tempos ausente do semblante da mãe e cogitou se Onan não havia estudado a biologia humana de forma mais pessoal. Imediatamente, afastou o pensamento como uma mosca incômoda, pois significaria uma traição ao pai e considerava a mãe uma mulher honrada. Decididamente não desejava mudar de opinião.Após deixar clara a admiração e carinho de outrora pelo personagem John Goldwill criado por Onan Zuckman, pois não havia dúvidas na mente de Bruno ou Adrianna sobre a questão, dona Marta passou a inquirir o filho, ferozmente, sobre as tais sabotagens e sobre o possuidor da outra cópia da foto de seu antigo amigo.

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— Mãe, você não pode repetir nem para o espelho nada sobre esse assunto, certo? - ele não estava disposto a colocá-la em estado perpétuo de preocupação contando-lhe toda a verdade, contudo ela merecia algo mais e não o deixaria em paz até obter alguma informação.— E eu vou falar para quem?— O nome dele é Arthur Goldwill...— Então pode ser filho de John! - estava genuinamente espantada, um pouco excitada demais até.— Este é o nome pelo qual ele é conhecido, dona Marta — Adrianna emendou. - Desconfiamos, ou melhor, temos quase certeza de que o nome verdadeiro é outro então é pouco provável serem parentes — tentava apaziguar o coração dela, tirar-lhe as ilusões. Percebera com certa clareza algo difícil para um filho avaliar.— Vocês são idiotas, é? O homem tem uma foto antiga de outro mais velho no escritório... Quantos anos têm o tal Arthur?— Deve ter uns 40 a 50 anos — o filho respondeu a contra gosto.— Então! Tem uma foto de um homem mais velho no escritório e usa o mesmo sobrenome, se não for filho é sobrinho ou algo parecido. Na pior hipótese é alguém a quem admira o suficiente para roubar o sobrenome."Dona Marta acertara em cheio daquela vez" - foram as palavras na mente de Bruno - aparentemente as desavenças não afetaram os sentimentos originais de Kerligan por Onan. Construída tantos anos antes e alimentada pela

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solidão típica dos imigrantes, fossem estes poderosos ou não, agora a admiração ressurgia ou sua manifestação passava a ser permitida.— Será que ainda está vivo? — a frase carregava esperança.— Não, dona Marta. Infelizmente não. Ele faleceu há alguns anos - Adrianna se apressou em responder, preocupada em não dar falsas esperanças à "quase" sogra.— Como você sabe? Não sabia nem quem ele era quando chegaram aqui? - dona Marta retorquiu.— Sabíamos sim, mãe. Só não conhecíamos a sua relação com ele. O nome dele não é John, é Onan. Ele mentiu para a senhora. Era um cientista e Arthur realmente trabalhou com ele. Achamos estranho ele ter esta foto, segundo consta, eles não mantinham boas relações entre si. Apesar disso, aparentemente, havia ainda algum tipo de admiração, como a senhora mencionou.— Ele não tinha filhos ou sobrinhos e era filho único — Adrianna completou.— Ele mentiu para mim... — a mãe parecia não acreditar. — Por quê?Eles não tinham resposta. Dona Marta insistiu muito para saber mais sobre as sabotagens e Bruno tratou de dourar a pílula, restringindo-se a comentar sobre os ataques às empresas, deixando claro não haverem feridos em nenhum deles, apenas prejuízos financeiros. Asseguraram a ela do quão convictos estavam da culpa de Arthur devido às investigações particulares, inadmissíveis junto à polícia. Ao longo da

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conversa, seguida de um lanche servido pelas empregadas, uma Sra. Cortes Lima cada vez mais triste surgia à frente deles. O filho tentou lhe tranqüilizar, tratava-se apenas de dinheiro e eles possuíam o suficiente para algumas gerações. Só se animou um pouco quando falavam da felicidade de estarem juntos, ele e Adrianna.— E quando vão se casar?

Sozinha na sala após a saída do filho e da futura nora, Marta estava hipnotizada pela foto. Sentia uma angústia profunda espremendo o coração. A dor distorcia suas feições e as lágrimas escorriam impunes. Olhava também para outro retrato no qual ela o ex-marido e o filho, ainda bebê, posavam sorridentes para o fotógrafo. Lembranças de um passado distante inundavam seus pensamentos.

No ano marcado pelo início da guerra do Vietnam, pelos assassinatos de Martin Luther King e do candidato à presidência dos Estados Unidos, Robert Kennedy, e pelos maiores protestos até então contra o presidente francês Charles de Gaulle; o Brasil vivia um período de medo, intolerância e isolamento. A ditadura militar encontrava seu ápice no presidente Marechal Arthur da Costa e Silva. Prisões, amigos desaparecidos, imprensa amordaçada, tudo contribuía para um clima de tensão permanente. A tarde de domingo ensolarada no final de abril de 1968, assim como a novela Sangue e Areia,

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de fanete Clair, funcionava para o cidadão comum não engajado na luta política como uma válvula de escape, uma bem-vinda fuga da realidade. Embora não fosse e nem cogitasse ser uma ativista política, a beleza daquela tarde na Praça do Campo Grande, em Salvador, não lhe apaziguava o espírito. Eram 14h45, John a encontraria às 15h em ponto. Ele nunca se atrasava e ela não tinha a menor idéia de como começar a lhe contar...Faltando apenas cinco minutos para o horário combinado, ele surgiu no centro da praça, do outro lado do monumento aos heróis das batalhas da Independência da Bahia. Avistou-a e acenou efusivamente, sorriso no rosto, postura impecável no paletó branco, distinguindo-se do público em geral que já não mais usava um traje completo para o passeio de domingo. Muito menos gravata borboleta e chapéu. Ela lhe alertara sobre a questão, de estar fora da moda, mas ele apenas sorria de suas preocupações. Dizia que precisavam se vestir conforme se sentissem melhor e pronto. Argumentava que a padronização era um erro e, inevitavelmente, todos perceberiam aquilo no futuro. Adorava aquele seu jeito de ser. Sentia-se aprendendo algo novo a cada dia. Ela queria começar a falar primeiro, porém logo ao chegar ele beijou-lhe o rosto, sentou ao seu lado no banco, segurou suas mãos e disse:- Quero me casar com você.Retirou do bolso uma aliança de noivado e a propôs em casamento. Ela não podia estar mais

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feliz, tudo se resolveria, suas angústias agora pareciam reminiscências tolas presas no passado. Beijaram-se e se abraçaram em público, um escândalo, tal era a emoção que os contagiava. Ele havia planejado tudo, abririam uma farmácia onde desenvolveria fórmulas para os grandes laboratórios americanos, teriam dinheiro suficiente para sustentar a união e a felicidade.Contudo, precisava resolver de forma imediata as questões pendentes com seus empregadores. Faria uma rápida viagem aos Estados Unidos, acertaria tudo, entregaria suas descobertas e então voltaria em definitivo. Uma semana, no máximo e estariam juntos para sempre. Na volta pediria oficialmente a sua mão aos seus pais, como devia ser. Haveria reação. Ele supunha. Um americano, desconhecido e, até certo ponto, excêntrico, desejando unir-se a uma moça de família cujos pais eram fazendeiros. Portanto, extremamente tradicionais. Como sempre, havia um plano. Ficariam noivos até ele se estabelecer e provar ter meios de sustentar com luxo à filha mais brilhante dos Silva Lutz. Aquilo deveria resolver. Marta repetia que tinha algo importante a lhe falar também. Ele, extasiado como estava, não lhe dava muitas chances de prosseguir, até olhar no relógio e perceber o quão atrasado se encontrava. Pediu desculpas e a beijou.- Seu assunto pode esperar? - ele perguntou.Ela aquiesceu, não era um assunto para se tratar de forma atribulada, uma semana não faria mal,

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sua felicidade já era completa. A distância ele se voltou e gritou:- Cheguei mais cedo e fiquei entediado, acabei tirando uma foto com o lambe-lambe do outro lado da praça, já está pago, guarde-a para mim. Já deixei seu nome registrado para a retirada!Ela acenou concordando enquanto sorria, possuída por um sentimento de realização, mil promessas e possibilidades desabrochavam no futuro a ser construído pelos dois. Abençoava o dia em que conhecera aquele homem encantador. Depois, pousou as mãos sobre o ventre, ainda sorrindo, inocente ao fato de aquele ser o último momento em que se veriam. A aliança, eventualmente, jogara fora, em um ato de raiva, com a foto não foi tão fácil.Dois meses depois, sem nenhuma notícia, a barriga já se tornava difícil de esconder. Quando se deu conta percebeu que não possuía um número de telefone ou um endereço sequer do amado nos Estados Unidos. Visitou o hotel e soube que eles também não tinham notícias. Seus pertences foram vendidos após um mês do sumiço e uma queixa crime fora formalizada quando se descobriu serem falsos todos os dados fornecidos por John Goldwill ao hotel. A polícia fora sensível à noiva abandonada e revelou ainda que não tinha existido, absolutamente, nenhum voo para os Estados Unidos, ou a partida de nenhum navio para aquele destino, na data de sua suposta viagem. Sentindo-se enganada e usada, Marta estava com os nervos à flor da pele, a ponto de desabar, escondendo a gravidez dos

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pais e dos irmãos. Estaria desgraçada para sempre, uma mãe solteira, seria vista com desdém por toda a sociedade.César Cortes Lima a amava e cortejava desde quando se conheceram na faculdade. Ele cursando Direito e ela, Enfermagem. Eram amigos e ele não escondia sua paixão. Ela o conhecia suficientemente bem para saber de suas indiscrições e sua ambição desmedida. Portanto, nunca cogitara um relacionamento duradouro. Quando confidenciou o problema para o amigo, por puro desespero, já contando com o olhar de desprezo por parte dele, teve uma surpresa. Não apenas entendeu sua situação como provou, naquele momento, ter por ela o maior amor possível. Propôs se casarem, imediatamente, ninguém estranharia demais, nenhum dos dois era profundamente jovem e ele já estava casa dos 50. Casariam em segredo e iriam morar em Brasília evitando, assim, parcialmente a fofoca. Seu status de senador da República abrandaria o descontentamento dos pais dela. A versão da história seria a de estarem namorando em segredo e, em função da gravidez, precisaram apressar as coisas. Não havia alternativa para a verdade neste item em particular. Assumiria como dele a criança e a criaria como um filho. Sua única condição fora de ela nunca revelar a verdade para absolutamente ninguém. Desolada pelas circunstâncias e, tocada pelo gesto do amigo, sentiu-se capaz de amá-lo e também por isso aceitou. Era a única saída para manter sua honra intacta e, ao

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mesmo tempo, flertar com a possibilidade de ser feliz novamente.Tantos anos depois ela se perguntava se estaria traindo a memória do ex- marido. Na realidade já havia decidido. Chegara a hora de contar ao filho. Algo dentro dela lhe sugeria que revelar a verdade era necessário e urgente. Talvez o tal Arthur recuasse ao saber do parentesco de Bruno com John. Ou, talvez, ela apenas não quisesse morrer sem lhe contar a verdade. Aos 82 anos a morte era uma realidade palpável em seu dia a dia. Pegou o telefone de forma tempestiva e discou.- Filho?- Oi, mãe. Tudo bem? Já está com saudades? - ele brincou.- Volte para cá, filho. Tem algo muito importante que eu não lhe contei... E venha sozinho.- Em uma hora estou aí - pelo tom de voz nem tentou descobrir mais, a conhecia o suficiente para saber que seria inútil. Teve um mau pressentimento.

29 de abril de 1968Estava viajando fazia doze horas quando passaram pelo ponto adequado. Eram 4h15 da manhã quand,o pediu ao motorista do ônibus interestadual para parar.— Aqui? No meio do nada? — perguntou o motorista, incrédulo.— Vão me pegar aqui às 4h30. Vou para uma fazenda próxima - explicou, tentando apaziguar

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as suspeitas e chamar o mínimo de atenção possível.O motorista aquiesceu, não antes de deixar claro que havia feito a sua parte, avisando dos perigos de ficar por ali, a cerca de cem quilômetros da cidade de Belmonte, no sul da Bahia. Ao redor havia apenas árvores, absolutamente nenhuma luz a não ser a provida pela lua e pelas estrelas em uma noite nublada. Ao perceber o solitário ônibus se afastar, retirou da sacola de mão uma lanterna e adentrou a floresta. Precisava andar cento e vinte e sete metros a partir da estrada floresta adentro. Se tentasse atravessar em outro ponto o SPPD - Sintonizador Portátil para o Portal Dimensional — não possuiria energia suficiente para o transporte. O retorno à Eiden era uma operação complicada e seria a primeira vez para um ser humano. Confiava na tecnologia, afinal fora desenvolvida por ele e testada em animais com sucesso, mesmo assim era ligeiramente assustador. Ao encontrar as três árvores marcadas por ele no seu primeiro dia na Terra, a chuva já começava a cair. Encontrou a posição central, anexou o dispositivo ao peito através de um colete, pesava cerca de dez quilos, basicamente por conta do módulo de energia, e o ligou. Se o portal não estivesse energizado no laboratório do projeto Nova Aqua, ele precisaria esperar pacientemente. Havia um protocolo de energização a cada duas horas. Contudo, como não havia correlação entre os horários da Terra e de Aqua, ele não podia prever o quanto esperaria. Por sorte, dali a pouco, a imagem a

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sua frente começou a se turvar, cerca de vinte minutos após a inicialização do SPPD. Primeiramente distorcida, a paisagem em seguida se tomou aquosa, como a superfície de um lago. Um pequeno reluzir ajudava a encontrar a delimitação das bordas do portal. No terço de hora de sua espera, a chuva se intensificou, contudo aquilo não faria diferença para o dispositivo, só para suas roupas.O plano era simples, atravessar, depositar o SPPD na sua mesa, junto ao último relatório e a carta de demissão explicando seus motivos e o quanto lamentava, mas deixando clara a característica irrevogável da decisão. Partiria em seguida em retorno a Terra. Uma sensação de felicidade o inundava. Limitada apenas por uma parcela de culpa por abandonar o planeta em sua pior hora. Estava convencido, contudo, de ter feito o possível e ter deixado como legado a tecnologia capaz de salvar seu mundo à disposição de outros tão ou mais capacitados quanto ele. Deu um passo à frente projetando-se para a membrana e iniciando a passagem. Não viu quando o raio caiu a suas costas atingindo uma das três árvores marcadas. Estava quase completamente do outro lado, apenas uma perna ainda não havia passado. Jamais havia pensado naquilo. Uma interferência eletromagnética tão próxima era inusitada e imprevisível. A explosão da árvore, partida pelo raio, não foi ouvida por ele, apenas um piscar de luzes teria sido percebido no portal, caso alguém estivesse prestando a devida atenção. O grito de dor de

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Onan ecoou pelos corredores do laboratório enquanto ele caía pelas escadas do portal, jorrando sangue por onde passava. Desmaiou quase instantaneamente.Na Terra teria morrido. Os recursos de Eiden e a pronta ação do funcionário de plantão do laboratório montando um torniquete com o próprio jaleco mantiveram-no vivo. Ao sair do coma, quatro meses depois, foi informado dos detalhes do acontecido. Os relatórios davam conta de uma sobrecarga de energia no portal por três milissegundos, ativada muito provavelmente por um raio do outro lado. Basicamente o portal parou de funcionar por aquele tempo causando o cisalhamento de sua perna direita. Foram mais tres meses de adaptação a perna biônica e aconselhamento psicológico antes de retornar ao laboratório. Por semanas usou horários alternativos para localizar Marta na Terra, se voluntariou para todos os plantões até o limite de suas forças. Usar o portal para fins pessoais seria considerado um abuso passível de exclusão do projeto, mesmo para ele. Ao descobrir Marta casada e prestes a ter um filho de outro homem, ficou arrasado. Em parte entendeu a situação na qual a colocou. Ele sumira, prometera casar, ser seu companheiro para todo o sempre e a abandonara. Certamente, sua ausência no hotel teria causado algum tipo de investigação e seu disfarce estaria comprometido. Talvez ela tivesse sido informada e o visse agora como um mentiroso. Só não entendia o bebê, ela teria se ligado a outro tão

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rápida e apaixonadamente a ponto de já estar grávida? Seu coração estava esmagado, cortado brutalmente. A dor de sua perna arrancada fora terrivelmente intensa, porém rápida, o coração ainda doeria por décadas, drenando sua vontade de viver. De uma forma ou de outra a amava o suficiente para não se sentir no direito de ameaçar a sua felicidade. Aparecer agora, depois de casada, mãe e feliz, não seria correto de sua parte. Por amor se manteria em Aqua e faria de tudo para proteger a Terra.

- Meu Pai não é o meu pai? É isso que você está me dizendo? O homem que me criou... Deu-me um nome, me ofereceu a mão quando mais precisei, não é meu pai? Aquele por quem sofri três semanas em uma UTI, por quem choro de saudades, não é meu Pai? Meu pai é um desconhecido? Uma memória de quarenta anos atrás em uma foto?A discussão já se estendia por quase uma hora, embora nos últimos trinta praticamente só se ouvissem os gritos de Bruno.- Meu filho...- Quantas vezes mãe, quantas vezes me viu repetir o quanto achava estranho ser tão diferente de meu pai, do quanto a prepotência dele me incomodava, a forma de olhar de cima para baixo, superior a todos... Tudo podia ter sido diferente se eu soubesse! - Bruno gritava perdido em sua raiva. - É claro... Ele só podia me tratar assim, não era filho dele! Eu devia ser mais agradecido, isso sim!

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— Pare com isso! - embora fragilizada Marta não podia ver o filho pensando daquela forma. - Seu pai era o César. Ele se via assim! Era prepotente com todo mundo, até com os próprios pais! Não misture as coisas! Não se diminua, não... Ele te amava mais do que a mim ou qualquer outro, acima dos próprios sonhos. Agradeceu-me um milhão de vezes por trazer você para a vida dele.— Também... Você não podia ter mais filhos... — o tom irônico era apenas mais uma maneira de extravasar sua raiva.— Havia possibilidade, sim. Eu tinha mais de 40 anos, então os médicos desaconselhavam. Mas, depois do primeiro filho, não era proibitivo. Seu pai não quis arriscar, sabe por quê? Porque estava feliz, bradava aos quatro ventos já ser pai, não precisava de um segundo filho se havia risco. Sempre te amou, desde o primeiro momento.— Mais um motivo para você me contar. Podíamos ter sido mais próximos, sempre fui tão duro com ele...— Meu filho... — ela tentava abraçá-lo e ele se retraía corroído pela raiva e decepção. Ela podia ler em seus olhos.— Até logo, não tenho mais nada para falar com a senhora — as palavras e as feições eram duras, os olhos em lágrimas apenas davam um ar mais assustador à sua explosão.Bruno se encaminhou para a porta sem olhar para trás. Sua mãe correu para segurá-lo, não queria deixá-lo assim, já se arrependera de ter revelado a verdade. Seu coração parecia que estava sendo torcido por mãos gigantescas e

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quando ele violentamente livrou o braço de seu aperto, ela se assustou soltando um pequeno grito. Nem assim ele se virou, estava transtornado. Ao ouvir o bater da porta, ela se deixou cair na poltrona mais próxima, chorando copiosamente. Preocupada a empregada mais antiga, ainda dos tempos anteriores ao enriquecimento de seu filho, correu para acudi-la, levando um copo de água com açúcar. Nunca havia visto briga tão feia entre os dois.

Após duas horas dirigindo a esmo, celular desligado, a culpa pela forma com que tratara a mãe lhe caía sobre os ombros. Ela não demonstrara nada além de amor e dedicação a ele em toda a sua vida. Jamais traíra a promessa ao pai e não fazia sentido que o fizesse considerando o desaparecimento do homem conhecido por ela como John Goldwill. Mesmo agora colocava o bem estar do filho à frente do seu, revelando o segredo apenas pela remota possibilidade de lhe ser útil, como se um parentesco fosse protegê-lo. O pai, o seu verdadeiro pai, César Cortes Lima, nunca lhe dera motivo para acreditar que ele não era amado. Fora infiel à mãe. Separou-se dela e mesmo assim continuou próximo, disponível, apesar das diferenças abismais entre eles. Como em todas as ocasiões quando precisava pensar, atravessara a cidade, de um lado a outro, sempre pela orla, aproveitando os poderes tranquilizadores do oceano. Estava no bairro de Itapuã quando fez a volta decidido a pedir

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desculpas à dona Marta e a lhe explicar quem era Onan. Engraçado como este fato definira seu destino, ele pensou. Ele fora o único cujo sangue apresentava as características adequadas para o Alpha11 ser efetivo. É claro, ele herdara esta característica do pai biológico. Não fosse por isso Adrianna nunca o teria encontrado e ele ainda estaria vivendo sem propósito e sem amor, passando pela vida sem deixar pegadas.Apesar de não concordar com o ponto de vista da mãe, tomou uma decisão, religou o telefone, 17 ligações perdidas e discou para o escritório.- Lima World Investments, Mirela, boa tarde.— Mirela. É Bruno. Por favor, preciso que marque um jantar no sábado com o Sr. Arthur C. Goldwill, CEO da Power Innovations, com sede em Londres... Em ambiente neutro, Paris, algum dos restaurantes de sempre, o Taillevent, de preferência, ou o La Tour d'Argent. Providencie as reservas e os detalhes da viagem.- Ele já esta esperando a ligação, Bruno?— Nem em sonho. Mencione o projeto Kerligan como motivo para o encontro. Ela vai lhe retornar confirmando tudo. E, preste atenção, vou te pedir outra coisa um pouco estranha, é melhor anotar com detalhes.Ficou curioso ao receber o envelope enviado pelo escritório da Lima Private de Londres em nome de Bruno Cortes Lima. Kerligan já concordara com o jantar, embora não imaginasse o objetivo de Bruno. De uma forma ou de outra já era hora de se conhecerem pessoalmente, para o bem ou para o mal.

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Ao abrir encontrou um cartão com os dizeres: "Já sei a sua carta. Portanto, nada mais justo senão lhe mostrar a minha". Em anexo uma carta semelhante à de um baralho, totalmente desconhecida para ele, cujo texto era incompreensível. Somente algumas horas depois, quando a secretária adentrou o escritório para tratar de compromissos urgentes, obteve uma pista.-Adorava esse jogo quando criança - ela disse ao perceber a carta sobre a mesa.— Como?— War. Eu jogava muito. Passava horas... - falou apontando para a carta.— Isto é de um jogo?— Não conhece?— Não acredito que fosse popular na Índia e se fosse, de qualquer sorte, eu não tinha dinheiro para brinquedos — a resposta séria repreendia a secretária no seu estilo costumeiro. - Me explique como funciona.Assumindo uma postura mais profissional, a Sra. Molly descreveu no melhor de sua memória o funcionamento do jogo. Cada jogador possuía diversas peças de uma determinada cor. Eram sorteadas cartas com o nome de países. O jogador então colocava peças suas demarcando o território correspondente em um tabuleiro contendo o mapa mundi. Também eram sorteados objetivos secretos como, por exemplo, "conquistar a Europa e África", para cada partici-pante. Através de disputas de dados, os domínios eram transferidos de um jogador para o outro.

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Ganhava quem atingia primeiro seu objetivo, mantido em segredo durante o jogo. Arthur sorriu da criatividade, na carta estava escrito: "destruir os exércitos vermelhos".

O Dr. Manuel Alvarez voltava à sua casa. Para variar já eram quase 22h quando abriu a porta. Embora cansado andava mais sossegado, o irmão já nos Estados Unidos operaria em uma semana, duas no máximo, a depender apenas dos próximos exames. Estava aliviado, não precisava mais preparar relatórios nem espionar seus empregadores. Os dias de tensão se afastavam e não deixavam saudades. Exatamente por isso não pôde conter o susto ao perceber um estranho em sua residência.— Quem é você? Como entrou aqui? - seria novamente o seu contato demandando mais um trabalho? Não o faria. Para ele aquilo estava acabado, pertencia ao passado.Sentado no escuro, o homem nada falou, enquanto Manuel tateava para ascender a luz. Ficou ainda mais surpreso quando reconheceu o visitante.- O senhor? É uma honra tê-lo aqui, foi o zelador quem abriu a porta? - apesar de confuso pela situação inusitada e do nervosismo, pois a visita só podia significar problemas, andou na direção do ilustre visitante para apertar a sua mão. Ele, imediatamente, fez sinal para que não se aproximasse.— Fique onde está. Quero olhar bem para sua cara. Nunca soube como um traidor se parecia.

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— Co, co, como? — gaguejou.— Achava mesmo que seria possível me enganar?— Não estou entendendo... — suava exibindo a falta de intimidade com a mentira.- Uau! Você deve ser um péssimo jogador depoker. Mas, não se preocupe, seu irmão vai viver, afinal precisamos de um rastro de dinheiro e um motivo, não é mesmo?- Motivo para quê?- Para ter se envolvido com drogas!— Mas, eu não estou... — o doutor tentava responder, em uma reação automática.- Claro que está! Está traficando para conseguir dinheiro para pagar a operação de seu irmão.Com um rápido movimento o estranho retirou uma arma do paletó e apontou para o Dr. Alvarez. Não houve tempo para gritar, apenas para a sensação desesperadora de estar encontrando seu fim. Não foi a pistola em si, mas a visão do silenciador e da luva na mão de seu algoz o motivo do terror. Um tiro preciso na testa deu fim à vida do funcionário da Revolutions Power. O estranho iniciou a desarrumação do local. Deveria parecer uma busca finalizada precocemente pela chegada do dono da casa. Com gavetas removidas, armários abertos, escrivaninhas movidas e com as portas deixadas escancaradas, o cenário estava perfeito. Retirou então de sua pasta um quilo de cocaína e espalhou farelos em um determinado armário. Depois escondeu o pacote na caixa acoplada ao assento sanitário. Apressado, o traficante não teve tempo de checar o banheiro, recuperando

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apenas a mercadoria guardada no armário. Seria a conclusão no relatório da polícia. Saiu sem deixar vestígios de sua presença.

— Onde estava? Senti sua falta. No escritório disseram que saiu às 17h e pediu para não ser incomodado - Olívia falou quando Arthur apareceu no quarto, por volta das 23h.— Tive uma reunião com Pinot na Revolutions. Eu precisava checar alguns pontos e depois resolvi ficar no escritório de lá trabalhando um pouco no Gênesis — tirou o paletó e sentou-se ao lado dela na cama. — Nenhum problema, só tentando apressar as coisas.— E como sempre desligou o celular para sua esposa ficar ainda com mais saudades - ela sorria despreocupada, apenas um objetivo em mente. O beijou, não planejava deixá-lo escapar. - Relaxe, o Gênesis vai ser um sucesso, como tudo mais, eu estou atenta - mais beijos.— Vai comigo amanhã para o Brasil?— Para a assinatura do acordo de compartilhamento de tecnologia com o governo de Goiás? - vários beijos no pescoço do amado mantinham claros seus propósitos.— Exatamente. Foi o único jeito de conseguirmos aprovação para o projeto do parque eólico e da fábrica de turbinas. A solenidade é à noite, mas vou pela manhã, considerando o tempo de vôo e o fuso horário, terei apenas a tarde para inspecionar pessoalmente as instalações.— Não será possível — ela respondeu, enquanto continuava a lhe fazer carinhos. Ele sorria, não

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desejava rejeitá-la, porém sua mente vagava por outros mares. — Preciso tratar de outros assuntos.A mão invadia uma abertura na camisa enquanto a outra desarrumava seus cabelos. Ele tentou falar mais uma vez e foi prontamente impedido pelo indicador dela selando seus lábios. Apesar da sedução, a mente lutava prendendo-o a outros assuntos. Incansável, ela foi vencendo gradativamente suas barreiras. De repente era absolutamente clara a vantagem de tratar dos problemas no dia seguinte. Os beijos e os carinhos se intensificaram, apenas o prelúdio de mais uma noite de amor, como eram todas desde o dia do casamento.

30. O coração do problema

Já estava próximo ao complexo Fênix em São Paulo, com o afastamento parcial de Cris ele precisava manter os ânimos elevados, por isso marcou uma visita relâmpago ao chão de fábrica seguida de uma reunião com a diretoria. Daria a eles a chance de expor suas preocupações e ao mesmo tempo tentaria se afastar do seu problema principal por algumas horas. Adrianna não parava de insistir nos perigos de um encontro de peito aberto com Kerligan nem entendia qual vantagem poderia advir dali. Também se mostrava preocupada pela intempestividade da decisão, tomada no calor da descoberta do pai biológico. Tratava os assuntos com tato e delicadeza, sensibilizada pela

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emotividade do tema. Com cuidado e certo constrangimento confessara se sentir ainda mais próxima dele dada sua admiração por Onan. Ele já havia feito as pazes com a idéia de ser filho de um virtual desconhecido, convenceu-se de não significar nada. Amou e foi amado pelo pai, a mãe sempre foi honrada e honesta, seu único erro fora se apaixonar e se entregar a esse sentimento em uma época de preconceito e rigor moral. Diante dos fatos admirou mais ainda dona Marta e o pai, o verdadeiro, César Cortes Lima, pelas atitudes tomadas frente às circunstâncias. As diferenças com o senador pareciam agora fazer algum sentido e considerava uma vitória do amor e do respeito entre eles a contínua superação delas. Estava mais feliz no final das contas.Seu plano era simples, deixar claro a Kerligan a disposição em dedicar sua fortuna e seu tempo a impedir qualquer avanço dele na direção de absorver poder político. Vigiaria constantemente todos os seus movimentos e do seu comparsa Marvolo James Calve e se encontrasse algo ilegal entregaria à polícia com provas documentais. Se encontrasse algo apenas impróprio, como as visitas constantes de James a prostitutas de luxo e seu prazer especial em infligir dor, presentearia de bandeja à imprensa. Deixaria claro serem recentes as investigações sobre MJ, de que ainda não o estava seguindo nem a Kerligan para não chamar atenção. Dado às últimas sabotagens e tentativas de assassinato a estratégia mudara e certamente muitos podres ainda surgiriam. Em

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última instância estavam dispostos, ele e Adrianna, a revelar a verdade sobre a origem dos três. Provavelmente poucos acreditariam realmente, porém a atenção sobre ele seria gigantesca por parte da mídia. Ficaria difícil dar um passo em falso. Não se importava com quanto dinheiro perdesse, não possuía aspirações de ser o homem mais rico do mundo e, graças a ele, seus amigos já haviam se afastado, deixando-o sem outros motivos de preocupação. Ademais, Adrianna não abandonaria seu objetivo por nada, mesmo no caso de ser esse o desejo de Bruno. Para completar ameaçaria matar pessoalmente Kerligan caso se aproximasse de sua mãe.Tal como no jogo de War, ter como objetivo destruir os exércitos inimigos pode esticar à exaustão a duração da partida e dificilmente esse inimigo consegue ganhar o jogo seja qual for seu objetivo. A carta enviada com antecedência devia deixá-lo pensando no assunto de forma a não receber as ameaças com ânimos exaltados. Seguindo os preceitos de Sun Tzu também não deixaria o oponente acuado. Tal atitude o levaria a reagir com emoção e não com a razão, deixando o resultado da batalha ao acaso. Forneceria uma saída heterodoxa ao impasse. Caso aceitasse Bruno como sócio em suas empresas de capital aberto ou fechado, de modo a lhe dar direito de acesso às informações sobre todo e qualquer projeto em andamento, sempre, ele consideraria que independentemente dos planos de Kerligan hoje não haveria espaço para

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dar cabo dos mesmos sobre a vigilância constante dele e de Adrianna. Assim se livraria da possibilidade de sua vida privada, seus segredos e os do seu comparsa serem expostos aos quatro ventos e ainda poderia aproveitar todos os sabores da vida na Terra com um poder econômico nunca antes atingido por alguém. De certa forma sairia impune da série de assassinatos e crimes cometidos em Aqua. Se fosse necessário negociar, estaria disposto a permitir a compra de ações da Cellular Growth e da Fênix por ele, mas apenas como último recurso. A estratégia era a "guerra fria", monitoração cerrada um do outro, munição bastante para se destruírem, um fino equilíbrio entre paz e destruição. Uma solução ruim para uma situação péssima. Uma vida na ponta da navalha para ele e Adrianna em troca de proteção para seus amigos e para o planeta, por assim dizer.Adrianna não estava convencida, o orgulho de Kerligan era grande demais para permitir um recuo em seus planos. Bruno contava com a mente racional do inimigo, se não funcionasse para sempre pelo menos uma trégua poderia ser benéfica, ganhariam tempo para o desenvolvimento de seus planos de crescimento financeiro. No pior cenário ele reagiria com mais ferocidade, propenso a cometer um erro.— Bem-vindo, Dr. Bruno.O segurança na guarita afastou seus pensamentos, já haviam chegado. Seria impossível saber naquele momento, porém em

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poucos minutos nenhum de seus planos faria mais sentido.

Uma investigação simples lhe provera data e hora quando os prepostos da empresa de manutenção do gerador, a Townsend Gen, chegariam ao complexo Fênix para uma verificação de rotina. Usava um bigode postiço, que combinado aos óculos escuros e ao boné o transfigurava em uma fisionomia completamente distinta. Por algum dinheiro um funcionário daquela empresa tirara o dia de folga, extra oficialmente é claro, permitindo a ele substituí-lo, e, com uma identidade falsa, penetrar na sala de máquinas do prédio sem nenhuma dificuldade. Uma vez lá bastava se livrar do segurança responsável por lhe acompanhar durante o serviço.- É aqui — disse o segurança mal-humorado enquanto abria a porta da sala de máquinas. — Você é novo, não?- Sou, é minha primeira semana, mas tenho bastante experiência, não se preocupe — sorriu um pouco para parecer o mais normal possível.Encarou o gerador simulando admiração enquanto o homem destrancava o cadeado da grade responsável por proteger o acesso ao equipamento, cuidado obrigatório dado à voltagem gerada pelo monstro eletromecânico ocupando quase trinta metros quadrados. Ele se concentrou e agilmente tocou a nuca do segurança. A pequena descarga elétrica o fez desfalecer imediatamente. Tomou o cuidado de

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amparar o sujeito de modo a evitar qualquer barulho. Uma injeção em sua maleta de ferramentas deixaria o homem inconsciente por quase uma hora, tempo esperado para a manutenção e suficiente para cumprir seu objetivo. Quando voltasse, após a conclusão do serviço, informaria à "bela adormecida" a sorte que tivera em ser amparado na queda por ele. A droga em seu sistema embaralharia a memória o suficiente para tornar a história crível e ele sairia dali sem deixar vestígios. De um compartimento da maleta retirou o saco plástico contendo o jaleco, a densa barba postiça e os óculos de grau, deixando nele o macacão, o bigode e os óculos escuros. O toque especial era o crachá falso colocado ao contrário, com a foto virada para dentro. Nem despertaria suspeitas nem o denunciaria.O conjunto serviria para a próxima parada, contudo um pesquisador não devia estar naquela parte do complexo. Portanto, precisava ser especialmente cuidadoso nesta etapa. Saiu da sala e seguiu o corredor dobrando à direita até atingir os elevadores sem encontrar ninguém. No segundo andar acenou para alguém na direção oposta apenas para parecer casual. Ao atingir o único corredor ligando os dois prédios do complexo o fluxo de transeuntes aumentou. Era a forma mais rápida de passar de um edifício ao outro. Recorreu ao celular no ouvido o tempo todo simulando uma conversa para evitar o contato com outras pessoas. Preferiu as escadas ao elevador e no terceiro andar, já no corredor

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principal, vislumbrou ao longe o grupo andando no mesmo sentido, de costas para ele.Eram estudantes de Medicina e Farmácia selecionados das diversas universidades do estado de São Paulo para um tour pela empresa englobando as bases do processo de pesquisa, testes e produção. Segundo seus cálculos eles deveriam ter acabado de chegar e devido a sua heterogeneidade contava em passar desperce-bido. Parecia incrível o tipo de informação passível de ser obtida em uma conversa de bar entre um segurança e um estranho pagando sua cerveja, ele pensou. Era a oportunidade ideal para descobrir o local perfeito para plantar a bomba, onde causasse maior dano. Dali a três dias, no domingo, colocaria o dispositivo. O plano estava traçado, bastava definir o local exato e confirmar as informações sobre as medidas de segurança. Apesar dos riscos inerentes a sua presença ali seria imprudente delegar a tarefa. Até dois dias atrás estava só brincando, sendo profilático, monitorando de perto, às vezes pessoalmente, os passos dos jogadores principais. Agora a guerra já estava em andamento. Por todo o percurso tomou o cuidado de evitar as câmeras virando ou abaixando o rosto ao atravessar seu campo de visão. Sempre um passo atrás do último estudante da turma ainda ouvia bem as palavras da guia. Passaram-se menos de vinte minutos, deslocavam-se para o elevador em direção ao quarto andar, sede dos principais laboratórios de pesquisa, quando o imprevisto aconteceu. Ao cruzarem os olhos não

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teve dúvidas sobre como proceder, não podia ser capturado ou estaria caracterizada a invasão e passaria a ser o principal suspeito das sabotagens.

Planejava visitar os laboratórios e cumprimentar os líderes de projeto antes do encontro com a diretoria e a visita ao chão de fábrica. Considerava um gesto importante de reconhecimento a sua dedicação e uma oportunidade de medir o nível de entusiasmo da equipe. Foram apenas três passos fora do elevador, estranhava o tamanho do grupo avançando em sua direção quando cruzou olhares com um homem que pareceu reconhecê-lo. Passaram-se dois ou três segundos, antes mesmo de Bruno associar o rosto às centenas de fotos escrutinadas nos últimos anos, e o falso médico já iniciava sua corrida.- Alguém chame a segurança, lacre o prédio, esse homem não pode fugir! - gritou enquanto disparava atrás do intruso.As paredes naquele andar eram do chão ao teto feitas de vidro tornando a confusão um chamariz à atenção dos cientistas e funcionários de cada laboratório. Um dos colaboradores estava de costas falando ao celular, alheio aos acontecimentos, ao se virar em meio à conversação foi arremessado pelo sabotador atravessando a parede de vidro e disparando uma seqüência de gritos assustados na sala correspondente. Não fosse pela reação do fugitivo sua velocidade o denunciaria. Em

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segundos já havia cruzado o longo corredor que dividia o andar em dois e dobrado à direita subindo as escadas. Apenas um pouco atrás Bruno perdeu bastante terreno ao parar por um segundo para perguntar se o funcionário estava bem, recebendo em troca um aceno de cabeça dele enquanto era atendido pela meia dúzia de médicos ao seu redor. Seguiu no encalço do inimigo, ao chegar às escadas estava decidido a descer quando um empregado da limpeza gritou indicando que ele estava seguindo na direção errada. Prontamente iniciou a correria escada acima, subindo três degraus de cada vez. Para onde ele estava indo? Ao atingir o terceiro andar ainda ouvia os passos frenéticos no piso acima, ele seguira para o quarto andar. Não conseguia diminuir a diferença entre eles nem entender aquele plano de fuga. Tentava encontrar um potencial refém naquele nível? Seguiria para o teto? Nem ele poderia pular quatro andares e sair ileso.Bruno chegou ao quarto andar a tempo de ouvir o estampido característico de metal se quebrando. Com certeza ele havia arrebentado o trinco da porta de metal e obtido acesso ao terraço. Ao atingir o último lance de escada avistou o sujeito cruzando o espaço por entre as saídas de ar-condicionado em direção ao outro prédio do complexo. Embora confuso, não hesitava um segundo, exigindo de seu corpo turbinado todas as forças. Em mente apenas um objetivo, pegar o desgraçado era a prova que precisavam. A invasão por um homem da

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importância dele traria todo o tipo de suspeitas, era o erro pelo qual estavam esperando. Embora não parasse nem reduzisse a marcha se assustou ao ver o falso médico pular, eram quase trinta metros até o outro edifício. Não achava o salto possível para ninguém. Quando estava quase na beira do terraço entendeu, não pulara para o outro prédio e sim sobre o túnel ligando os dois prédios, apenas dois andares, menos de dez metros. Dali para o chão seria uma distância equivalente. Os seguranças certamente não se antecipariam ao movimento. A responsabilidade de capturá-lo era toda dele agora. Não tinha a menor idéia se era capaz do salto, definitivamente não fizera parte de seu treinamento. Contudo, dispondo de apenas um segundo para pensar, parecia completamente exeqüível. Saltou na mesma direção de sua presa torcendo para ter imaginado tudo corretamente. Foi logo depois do último impulso que sentiu. O peito era esmagado por dentro, uma dor incalculável nublava sua mente enquanto o corpo girava no ar, sem controle. Sentiu o baque nas costas e depois o barulho de vidro explodindo. O dia sumia sob a escuridão, não viu ou ouviu mais nada.

A ordem era para Jonas permanecer em seu posto na lateral oeste do complexo. Apesar da agitação causada pelo intruso, já havia homens suficientes dentro do prédio e na entrada principal. O primeiro barulho estranho chamando sua atenção fora um conjunto de baques surdos,

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dois para ser preciso, seguido do som de passos apressados. Virou-se e correu para a interseção entre os edifícios, de onde vinha o barulho, quando ouviu um grito. Ao alcançar o espaço entre os prédios foi surpreendido pelo homem caindo sobre um Toyota Corolla. Os vidros se arrebentaram arremessando estilhaços em todas as direções. Instintivamente colocou os braços na altura do rosto e reduziu o passo momentaneamente. Só depois de passado o efeito da adrenalina perceberia quantos diminutos pedaços de vidro ficaram incrustados nas mãos e até mesmo em seu pescoço. Não notou o outro homem pulando a cerca naquele mesmo momento.- Central, Jonas falando, chame uma ambulância com urgência, estou na intercessão entre os prédios, na esquina oeste, alguém caiu do telhado. Repito: "ambulância urgente, homem caído" — fez o contato pelo rádio interno, ciente de que todos os outros seguranças estariam ouvindo e teria apoio rapidamente.Ao chegar mais perto acreditou reconhecer o senhor inconsciente sobre o carro, a quantidade de sangue era tremenda. Limitou-se a verificar se havia pulso colocando o dedo em sua carótida, como via nos filmes. Apesar do coração ainda estar trabalhando duvidou das possibilidades de sobrevivência do coitado. Já ouvia o passo apressado das botas padrão da empresa de segurança quando notou o crachá caído no chão. — Puta merda! — as palavras lhe escapuliram no susto. Em um lampejo de iniciativa, colocou o

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crachá em seu bolso. Atendendo à demanda dos colegas os colocou a par da cena presenciada e se afastou um pouco enquanto decidiam se moviam ou não o sujeito. No ínterim ligou para o supervisor e pediu para se falarem em um canal privado. Assim que informou a identidade do acidentado ao chefe soube ter feito a coisa certa. Ele deveria aguardar por instruções naquela freqüência. Quatro minutos depois vieram as instruções.- Jonas, o Dr. Brantes - referia-se ao presidente da Fênix - mandou mantemos a informação em sigilo. Quem está aí?- O Pedro, o Luiz e o Marcelo.- Se a notícia de um acidente envolvendo o presidente da holding vazar as ações da empresa vão para o chão, entende isso? Daí para as demissões é um passo.- Sim chefe. Mas não vai dar para esconder por muito tempo, o quadro é feio, não sei se vai sobreviver não.- Isso não é problema nosso. Dr. Brantes disse que está indo para aí e eu também. Avise a equipe para não comentar o caso com ninguém, nem amigos nem família, ok? - não esperou a resposta antes de completar. - O Dr. Brantes me autorizou a levar em consideração especial esse apoio quando estivermos avaliando as promoções e os aumentos de salário, entendeu?- Positivo chefe.- Desligando.- Desligando.

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As imagens vinham aleatoriamente e nesses momentos Bruno estava apenas parcialmente consciente. As vozes apareciam e sumiam de forma caótica e eram praticamente indiscerníveis. Percebia o movimento ao redor e o corpo sendo movido, ora para os lados, ora para baixo. O som da roupa sendo rasgada... Uma picada no braço... Algo em sua boca... Até apagar completamente mais uma vez.

Abriu os olhos como quem acorda lentamente de um sono profundo. Adrianna estava ao seu lado segurando sua mão, de cabeça baixa, pensativa. Primeiro moveu o polegar e o indicador, devolvendo as carícias e despertando-a do transe, depois falou percebendo os efeitos da garganta seca.- Estou em um hospital? - sentia-se fraco, mas não muito. Ficou espantado com a felicidade estampada no rosto dela ao lhe responder. Estaria ele tão mal assim?- No Albert Einstein, mas está tudo bem agora. O que aconteceu? Você caiu do terraço do prédio da Fênix? A quem estava perseguindo?Demorou um momento antes dos lábios libertarem o nome, a raiva ainda estava viva e moldava suas expressões.- MJ - os olhos dela se abriram além do usual denotando certa surpresa, embora provavelmente já esperasse por algo parecido. - O desgraçado devia estar tentando sabotar algum laboratório novamente. Precisamos

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ordenar uma varredura em todos os cantos, deve-se procurar por dispositivos estranhos...— Calma, vamos por partes. Chequei as filmagens de segurança, não dava para ver a cara do intruso, foi cuidadoso e já devia saber a posição das câmeras. Entrou pelo prédio B e depois foi para o A através do corredor de intercessão. Seguimos os movimentos, não deve ter dado tempo de colocar nada. Mesmo assim já mandei fazer a varredura.- Como ele entrou?- Disfarçado de técnico do gerador de emergência. Era uma visita de rotina, pré-programada, então alguém lá deve estar envolvido. Já informei a polícia e envolvi nosso pessoal. Também dobrei a segurança e vamos fazer uma varredura de rotina todas as noites até segunda ordem — com uma mão segurou a dele e com a outra acariciou seu cabelo, como sabia, o acalmava. — Seu corpo sofreu um bocado, vamos nos concentrar em você um pouco, tá? - já havia apertado o botão no painel acima da cama acionando a enfermeira.— Que horas são?— 9h35 — checara o relógio de pulso, ciente da próxima pergunta.- Da noite?— Não, da manhã, já é sexta — ela lhe dava tempo para processar a informação quando a enfermeira apareceu. — O paciente acordou, pode chamar o Dr. André Ribeiro, por favor? — ela acenou e saiu.

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— Nossa! Já saiu na imprensa? As ações devem ter tomado um baque — ele perguntou esfregando as mãos no rosto em sinal de preocupação.- Na realidade não, graças à presença de espírito de um de nossos seguranças e a sua mania de usar crachá na sua própria empresa - ela apreciou a risada de Bruno e continuou. - O segurança chamou o chefe e ele, por sua vez, ligou direto para o Brantes. Ele pediu sigilo e, pelo menos até agora, ninguém está sabendo. Bom... Pelo menos eu não recebi nenhuma ligação. E já pedi sigilo ao hospital também.Foram interrompidos pela entrada do Dr. André Gustavo Ribeiro. Após as apresentações de praxe e das perguntas sobre como estava se sentindo ele passou às informações sobre o quadro do paciente.- Dr. Bruno...- Só Bruno já é suficiente — o interlocutor aquiesceu sem sinal de reciprocidade. Não era típico de médicos, muito menos daquele.- Então, Bruno, você sofreu uma parada cardíaca na ambulância, precisou ser ressuscitado - pausou dando tempo ao paciente para absorver a má notícia - estamos trabalhando com a hipótese de ter sofrido um ataque cardíaco antes ou durante a sua queda, provavelmente antes, e esta seria a causa principal da parada. Pode me contar algo sobre o acidente?Bruno mediu bem as palavras antes de iniciar seu relato. Contou das sabotagens à Fênix, pediu sigilo, e explicou que estava perseguindo um suspeito, provavelmente o sabotador, quando ele

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pulou para o corredor externo entre os dois prédios do complexo. Em sua história não se lembrava da altura até o corredor e, de forma impulsiva, decidiu saltar seguindo o intruso. Foi quando sentiu a dor no peito e se desequilibrou.- Algo semelhante aconteceu antes?- Não, nunca.- Notamos ferimentos, duas costelas quebradas, um braço, alguns hematomas, um corte na cabeça e um no mesmo braço onde havia a fissura, todos coerentes com a queda, mas com duas ou três semanas de cicatrização. Nada recente. Havia sangue nas suas roupas e nenhuma ferida aberta. Fizemos uma tomografia e felizmente nenhum dano foi encontrado - parou um segundo fitando o prontuário em suas mãos. - Basicamente você conseguiu correr escada acima por dois andares apesar dos danos de algum acidente anterior, caiu de uma altura de quatro andares em cima de um carro e não sofreu nenhum outro ferimento - resumiu polidamente, finalizando com uma expressão inquisitiva de quem suspeita de algo - pode explicar isso?Um silêncio constrangedor tomou conta do quarto. Bruno e Adrianna se entreolharam, ele não havia tido tempo de pensar sobre a situação e depositava nela a esperança de uma resposta convincente.- Dr. Ribeiro, Bruno foi abençoado por uma condição de nascença, uma capacidade anormal de cicatrização. Ele não tem interesse em divulgar essa característica nem vai autorizar

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absolutamente nenhum teste dessa capacidade. Na qualidade de médica pessoal dele lhe fornecerei provas e todas as informações necessárias, contudo, e peço antecipadamente desculpas pela franqueza, caso a informação seja divulgada, seja para a imprensa seja para a comunidade médica sem nossa autorização, usaremos todos os recursos disponíveis para processar este hospital e os envolvidos no vazamento de informação - sua voz era suave, porém firme, e seus olhos estavam fixos no doutor. - Bruno é responsável por um império de bilhões de dólares incluindo empresas de capital aberto e um fundo de Private Equity. Toda e qualquer informação sobre sua saúde só pode ser divulgada através dos canais adequados no Brasil e nos Estados Unidos e as declarações precisam ser liberadas por nossos advogados.O rosto de André deixava clara sua contrariedade, não estava acostumado a ser ameaçado. A história era pouco convincente, porém era a única a se encaixar na situação. Infelizmente a Fênix e a Cellular Growth eram hoje empresas famosas dentro e fora da comunidade médica e o homem em questão realmente detinha poder para criar grandes problemas para ele e para o hospital. Portanto, fez um esforço para engolir o orgulho e apresentou um falso sorriso. Ademais seria um caso interessante.- Certamente. Faremos apenas os testes necessários, de qualquer sorte não é isso o que me preocupa agora e sim o seu coração. A

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situação requer sua presença no hospital por mais algum tempo - falou dirigindo-se a Bruno. - Precisamos fazer vários testes para determinar a causa do enfarto. Sugiro cancelar seus compromissos por uma semana, pelo menos.O paciente não quis tecer comentários antes de poder ficar a sós com a namorada. Trocaram mais algumas informações com o médico, respondeu perguntas sobre seu histórico familiar, deixando claro o fato de não possuir informações sobre o pai biológico e reforçando a importância da confidencialidade. Até onde pôde perceber sua sócia forneceu ao doutor apenas o mínimo necessário de informação médica sobre sua condição especial. Antes de sair Dr. Ribeiro prometeu se esforçar para abreviar ao máximo o tempo entre os procedimentos. O primeiro exame seria dali a alguns minutos. Uma vez sozinhos ele assaltou Adrianna com perguntas.- Que diabos está acontecendo? O Alpha11 não devia me deixar mais saudável?- Ainda não sei, não faz sentido. Olhei seu prontuário, mas nada conclusivo saltou aos olhos. Talvez uma condição genética tenha precipitado o problema ou tenha sido amplificada pela nova condição do seu corpo. Já deixei claro minha condição de médica e vou ter acesso às informações, tenha calma.- Preciso mesmo ficar aqui?- Por algum tempo, sim. E tem mais uma má notícia — a pausa não foi tão esclarecedora dos seus sentimentos quanto a fisionomia, a boca seca estava cerrada, ciente da dificuldade em

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pronunciar as palavras a seguir. — O Dr. Alvarez foi assassinado na casa dele na quarta à noite.- O quê?Embora tivesse a intenção de se manter afastada fisicamente das empresas, ao ser convidada para uma apresentação sobre os recentes avanços nos testes do PK101, nome provisório da possível cura para o mal de Parkinson, uma variação do Revivit, não conseguiu faltar. A fórmula também fora praticamente ditada por Adrianna deixando para a equipe apenas o trabalho de refinar a solução através dos testes protocolares. Após a reunião provavelmente poderiam fazer o anúncio para a imprensa provocando um novo frenesi na comunidade científica. Ao sair do carro no estacionamento externo foi abordada por Luiz, funcionário da segurança.- Dra. Cristiane, quanto tempo, como vai a senhora?- Bem, Luiz, e sua filha como vai? - havia dado alguns telefonemas pedindo uma atenção especial ao caso. A garotinha sofria de leucemia e ele a abordara alguns meses antes, implorando apoio para incluí-la no grupo de testes do LFCF no Brasil. Não podia interferir no programa médico, mas conseguiu uma entrevista com os responsáveis e depois de realizados os testes-padrão felizmente ela foi aceita.- Muito melhor, doutora, os médicos acham que está curada. Rezo pela senhora todas as noites em agradecimento, pode acreditar - os olhos do homem estavam marejados.

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- Deixe o agradecimento para Deus, Luiz, eu só dei um telefonema - sorria ao continuar caminhando em direção ao portão principal, acompanhada por ele. Era uma sensação boa a de ajudar aos outros, o tipo de experiência da qual sentia falta depois de ter se afastado do cotidiano da medicina.- A senhora é muito modesta, doutora, mas estarei eternamente em dívida e por isso mesmo gostaria de lhe contar algo. Não me importo se for demitido — ambos estacaram, ela lhe fixou o olhar, estava definitivamente intrigada.Luiz contou sobre o acidente de Bruno, fora um dos poucos cientes da identidade do homem levado pela ambulância um dia antes. Não tinha idéia da relação dele com a doutora ou se a questão a afetava. Contudo, se era importante o suficiente para pedirem sigilo, a responsável por salvar a vida de sua filha deveria saber. Após tranqüilizar o homem quanto a seu emprego e lhe assegurar ter agido corretamente ligou para Adrianna. Estava tudo bem, a estada no hospital era pró-forma para evitar suspeitas, não podia fornecer mais detalhes através do telefone e não havia motivo para preocupações. Considerando a situação especial do relacionamento dele com Cris o segurança não sofreria represálias, a amiga lhe garantiu. Ela não ficou convencida, algo estava estranho na voz de Adrianna. Decidiu ir ao Albert Einstein após a reunião.

Arthur Goldwill meditava sobre o relatório extemporâneo recebido minutos antes. Era

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composto por somente uma página e a ocupava apenas parcialmente. O escritório de investigação fora instruído a só fazer contato, fora das datas agendadas, em casos emergenciais.

O sujeito B da investigação foi internado emergencialmente no Hospital Albert Einstein de São Paulo, Brasil, na tarde do dia vinte e sete de outubro do corrente ano. As causas da internação não puderam ser apuradas. Apenas o sujeito A e a Dra. Cristiane Templis compareceram ao hospital. O Dr. André Gustavo Ribeiro, cirurgião cardiovascular, é o titular do caso levando-nos a crer que o sujeito B apresentou problemas no órgão correspondente. O hospital tem tratado o caso com sigilo e nenhuma divulgação oficial ou extra-oficial do ocorrido foi feita para a imprensa. Continuaremos a monitoração do assunto e informaremos quando descobrirmos a condição do paciente. Caso deseje, podemos vazar a informação para a imprensa de forma segura. Aguardamos instruções.

Por que diabos eles pensavam em divulgar para a imprensa? Precisava questionar MJ sobre aquela postura belicosa do escritório de investigação. A verdade é que a informação o incomodou, algo cheirava mal. Seria um engodo? Uma cortina de fumaça projetada para induzi-los a baixar a guarda? A mensagem de Bruno fora bastante clara e não havia dúvidas quanto a ser o próprio Kerligan o general dos exércitos

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vermelhos a ser destruído. Avisaria a Sra. Molly para liberar a agenda de sábado. Certamente a reunião seria adiada, estava apenas curioso em saber qual desculpa a outra parte daria. Já ia discar o ramal da secretária quando o aparelho tocou.- Sim, Sra. Molly...- A secretária do Sr. Bruno Cortes Lima, com quem o senhor teria um jantar amanhã, nos contatou cancelando o encontro.- Qual o motivo?- Ela afirmou que estava transmitindo as palavras exatas do Sr. Lima ao mencionar que "o senhor saberia o motivo". Perguntei se gostaria de agendar outra data e a resposta foi negativa. Mais uma vez alegou apenas reproduzir as palavras do patrão ao recitar: "o recado foi recebido e perfeitamente compreendido, portanto a reunião não mais será necessária".- Sr. Goldwill? - após alguns segundos atípicos de silêncio imaginou ter sido desconectada.- Sim? Ainda estou aqui — de fato estava em corpo, a mente, contudo, navegava nas possíveis interpretações daquelas palavras.- O Dr. François Pinot aguarda na linha, disse ser urgente.- Pode passar.- Arthur?- Novidades?- Não apenas novidades - a excitação na voz seguida pela pausa estratégica traduzia a importância do momento para ambos - temos uma data aproximada!

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Em mais de um ano trabalhando como motorista particular de Arthur Goldwill nunca vira cena igual. Ao abrir a porta da limusine utilizada cotidianamente pelo magnata dava passagem para dois homens diferentes do habitual. Sorrisos frouxos demonstravam uma felicidade inconteste, um ar de realização típico dos torcedores quando seu time segue invencível para a final do campeonato. Ele muitas vezes cogitava se o Sr. Goldwill era capaz de sorrir para alguém, senão sua esposa, e, até então, estivera absolutamente certo da incapacidade física do Sr. Milton Jacobs Splitzer, MJ, de demonstrar alegria ou felicidade. Algo muito bom deveria ter acontecido na Revolutions Power, de onde estavam saindo. Já dentro do carro, protegidos por uma barreira dos ouvidos curiosos do funcionário, retomaram a conversação.- Hoje afastamos meu maior temor — disse Kerligan balançando a cabeça e perfazendo um maneio, como quem espanta um mau pensamento, ainda mantendo o sorriso nos lábios.- O fato de conseguirmos a informação?- O fato de conseguirmos a informação em tempo de prosseguirmos como o plano!— Demos sorte...— Sorte é o nome dado à oportunidade quando ela o encontra suficientemente preparado para aproveitá-la, e nós estamos. Realizamos praticamente um milagre no pouco tempo desde

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nossa chegada, ultrapassamos todos os obs-táculos...— Quase todos. Ainda acho...— Esse assunto é meu — não havia mais sorriso na face de Kerligan ao encarar o amigo - eles não representam problema, siga minhas ordens e tudo vai ficar bem. Existem planos alternativos se for necessário - após um suspiro de insatisfação continuou: - Será que não consegue ficar feliz nem por quinze minutos?— Eu ainda estou feliz! - sorria usando ao máximo sua capacidade de esconder seus sentimentos, não havia sentido em discutir, ele se tornava irascível quando o assunto envolvia Adrianna. — Qual o próximo passo?— Você vai ver agora mesmo — pressionou apenas uma tecla em seu celular, era o número sete na discagem rápida. Após dois toques o homem no outro lado atendeu. — Senador Cartwright?- Sim?— Arthur Goldwill.— Que bom ouvir você Arthur. Como vai Londres?— Chuvosa. E os abutres no capitólio? Dando muito trabalho?— Sempre dão, são ossos do ofício. Mas, em que posso servi-lo? - uma ligação pessoal só podia significar um pedido. Considerando a ultrajante soma doada para seu fundo de campanha, já devia esperar. Haviam lhe assegurado que o bilionário apenas gostava de abrir as possibilidades, não havia uma agenda específica, lhe diziam. Após passar metade da vida na

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política sabia ler as entrelinhas, contudo precisava do dinheiro e pagou para ver. Nunca houve uma doação grande de campanha desvinculada de algum objetivo específico, agora era a hora de descobrir qual seria esse objetivo. Só esperava não haver uma razão direta de proporção entre o favor e o tamanho da doação, ou estaria em apuros.— Estou pensando em criar alguns milhares de empregos a mais nos Estados Unidos, o que acha? — sabia como deixar os políticos americanos interessados.— Se estiver falando do Texas vou lhe considerar meu herói pessoal, sabe dos efeitos da recessão em meu estado.— Pode até ser no Texas Sam, mas vou precisar conversar com um amigo seu antes.— Quem?— Preciso de quinze minutos com o presidente.Foi preciso vencer uma resistência inicial do senador, afinal estava fornecendo poucas informações e usualmente um encontro com o presidente dos Estados Unidos demandava uma pauta bem definida. A desculpa era a neces-sidade de entender os reais compromissos do Governo Federal com a utilização de energias renováveis a longo prazo antes de investir algumas centenas de milhões de dólares em projetos nessa área. Como a questão era passível de ser tratada por assessores, os quinze minutos em uma reunião privada seriam uma indulgência essencial ao prosseguimento dos negócios. Tradicional como era, precisava ouvir

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diretamente do líder da nação se ele estava disposto a sustentar os incentivos hoje existentes e, possivelmente, ampliá-los caso houvesse alternativas promissoras ao petróleo. Como contrapartida lhe revelaria seu mais novo e secreto projeto na área. Após alguns minutos de conversa sob os olhares e ouvidos atentos de Milton Jacobs, desligou.— Ele vai conseguir? - A dúvida de MJ era sincera, não confiava em políticos.— Não tenho a menor dúvida. A esta altura deve estar dando pulos de alegria pelo favor ser tão diminuto e com certeza já começou a maquinar uma forma de ganhar pontos com o presidente e o eleitorado com a minha visita.— Quando souber qual o real assunto...— Não vai saber, não por mim, e duvido que o presidente envolva alguém do Legislativo por enquanto.Alguns minutos depois Kerligan deixava MJ em sua residência, não muito distante de sua própria casa em Bishops Avenue. Sozinho os pensamentos vagaram para seu único obstáculo representativo. Se não houvesse tanto ressentimento entre eles talvez fosse capaz de convencer Adrianna da lógica maior por detrás de suas ações. Racional como era, mais cedo ou mais tarde se renderia à conclusão inevitável de não haver alternativa, uma solução ruim, porém a única. Para isso ela precisaria confiar nele, algo improvável, a não ser que... Era isto! A idéia lhe veio como um raio: ela precisava descobrir sozi-nha. Valia a pena tentar, caso não desse certo

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ele seguiria o caminho radical, seguro de ter tentado evitá-lo de todas as formas. O bem maior superava tudo, ele reforçava o mantra em sua mente. Acessou a lista de contatos no celular e discou.- Márcio, é Arthur Goldwill falando. - Márcio Drosten era um descendente iugoslavo, CEO da Covet Winds no Brasil e, segundo se recordava, seu inglês era perfeito.- Sr. Goldwill, em que posso ajudá-lo? — a fama de Arthur era ser objetivo e não esperava menos de seus subordinados.- Precisamos de um pouco de relações públicas. Ouça com atenção, antes de sua contratação, durante as escavações, encontramos uma pedra, um monolito contendo escritas simbólicas antigas. Enviamos para análise e foi constatado serem hieróglifos Maias, embora não haja registros históricos de presença Maia nesta região. O museu Madisonian de Washington estimou que os escritos foram esculpidos ao redor de 500 d.C.- Isso deve ter atrasado as escavações.- Vou mandar enviarem de volta a pedra para aí junto com o relatório do Madisonian - ignorou propositadamente o comentário - pesa quase meia tonelada, cubra com uma redoma de vidro para ser apreciada por todos no saguão principal do complexo. Anexe uma placa explicativa. O relatório deve ser disponibilizado para o público via internet. Vou pressionar para enviarem em uma semana, em duas quero tudo pronto. Consiga cobertura da imprensa mostrando o

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quanto nos preocupamos com as escavações após a descoberta, a despeito dos atrasos gerados por ela, e estabeleça nosso compromisso em trazer o "novo" sem desprezar a cultura. Prossiga obviamente com uma descrição completa dos benefícios resultantes da usina eólica em termos de energia limpa e segura. Sempre é bom falar de segurança após o desastre nuclear no Japão. E não se esqueça dos empregos a serem criados em conseqüência da fábrica de turbinas. Deixe claro nossa visão do papel do Brasil como celeiro de energia limpa para o mundo. Vou mandar os relatórios do período das escavações por e-mail. Alguma dúvida?- A princípio não - na verdade havia muitas, mas todas podiam ser resolvidas sem envolver diretamente um dos homens mais ricos do mundo — em uma semana informo se será possível reduzir esse prazo e lhe envio a data exata da matéria. O objetivo seria cobertura apenas no Brasil, se entendi corretamente.- Entendeu. Bom fim de semana.- Obrigado, igualmente — ao finalizar, a pergunta em sua mente era: por que agora? Não era o início nem o final da construção e ainda não estavam próximos da produção de turbinas. Já havia iniciado a importação dos materiais para a construção dos cata-ventos, mas nenhum estaria montado a tempo. Levantaria as preocupações por e-mail de forma cuidadosa depois, primeiro deixaria tudo à disposição. Dificilmente o chefe ignorava aquelas considerações e ele precisava

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mostrar serviço, afinal nunca recebera uma ligação do homem antes.

Era uma tarde de segunda-feira quando um sério Dr. Ribeiro adentrou o quarto de Bruno. O paciente e a namorada estavam no sofá, entretidos em uma discussão, provavelmente sobre trabalho. Os papéis e o laptop compunham a cena. Sua expressão o denunciara, a platéia agora o encarava também com seriedade. Eles se levantaram, Bruno sentou na beira da cama e Adrianna permaneceu em pé, ao seu lado.— Não gosto de rodeios, Bruno, e imagino que você também seja um homem pragmático.— A verdade e os detalhes primeiro doutor, a partir daí traçamos algum plano - pela quantidade de exames feitos e pela fisionomia de Adrianna após as discussões particulares com seu médico já imaginava que algo estava muito errado. O cirurgião balançou a cabeça e ajustou levemente os óculos antes de prosseguir.— Eu tenho notícias ruins e notícias piores - não estava brincando, desejava apenas preparar o espírito do paciente — não entendemos o motivo, mas seu coração apresenta sinais de fadiga compatíveis com um homem de mais de 80 anos, francamente não sabemos como sobreviveu até agora. Provavelmente em função de sua condição especial embora não tenhamos como avaliar isso em detalhe. Como é de seu conhecimento fomos expressamente proibidos de enviar sua coleta de sangue para nosso laboratório conveniado em Cleveland, onde

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poderíamos obter maiores respostas. — Esperava por um comentário ou talvez uma consideração indicativa da possibilidade de uma mudança de opinião. Não veio. - Seja como for o enfarto prejudicou muito a condição do músculo cardíaco e não vemos alternativa neste ponto senão um transplante. Essas são as notícias ruins.A cabeça de Bruno girava, como aquilo podia estar acontecendo? Tentou falar, mas faltaram-lhe palavras. Ao se virar notou o rosto sério da doutora ao seu lado, era a sua forma de lhe transmitir segurança. Fixando seus olhos nos dele ela sussurrou: — Tenha calma, vamos ouvir primeiro — ele não estava nervoso, estava apenas ligeiramente perdido no momento. Obviamente não podia considerar como definitivo nada dito ali, só Adrianna poderia lhe relatar a real situação, apenas ela conhecia a fundo a verdade de sua fisiologia. Os exames deviam estar repletos de "falsos positivos". Provavelmente ficaria tudo bem, repetiu para si mesmo. O médico respeitou o momento, aguardando um sinal para continuar.- Existe algum tratamento alternativo? — ele perguntou.- Neste ponto não, embora entendemos e até apoiamos a consulta a outros especialistas. Com seus recursos seria imprudente agir de outra forma, contudo não gostaria de lhes dar esperanças de um diagnóstico diferente. Os exames foram bem conclusivos.- Entendo e qual é a notícia pior? - foi a vez de Adrianna sair do transe.

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- As características do sangue de Bruno são extremamente peculiares e isso nos preocupa, além da sua condição diferenciada. Será difícil conseguir um coração compatível mesmo se conseguirmos encaixá-lo em algum critério. Obviamente neste estágio são apenas especulações, teremos mais informações em alguns dias.Não precisou muito para Bruno perceber o tamanho do problema, se realmente precisasse de um transplante, poderia se considerar morto. Nenhum coração comum agüentaria o esforço exigido pelo seu corpo repleto de Alpha11, não precisava ser médico ou cientista para deduzir isso.- Será colocado na lista de espera, é claro, uma funcionária trará os papéis mais tarde. Na minha experiência normalmente é preciso algum tempo para processar notícias tão ruins. Portanto, vou deixá-los a sós. Mais tarde eu retorno — estava pronto para sair quando o paciente fez a pergunta, cuja resposta cabia apenas a Deus.- Como disse, doutor, sou um homem pragmático. Quanto tempo tenho e quando posso ter alta?- Depois de preencher os documentos da lista de espera lhe darão um bip. Haverá uma sessão de aconselhamento psicológico, se for de sua escolha. Eu voltarei para lhe prescrever algumas medicações e orientar uma dieta e depois disso pode ter alta. Na verdade fora a possibilidade de outro enfarte, você está espantosamente bem —

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esperava ter escapado da primeira pergunta, mas não confiava realmente nessa possibilidade.- E o prazo de vida? Quero dizer, sem o transplante, o pior caso?Dr. Ribeiro respirou fundo, encarou o homem a sua frente com seriedade e prosseguiu.- O pior caso pode ser neste momento Bruno, é completamente imprevisível, podem ser dias ou meses, certamente não anos. A medicina atual só chega até aí - fez mais uma pausa em respeito ao momento - eu sinto muito.O doutor havia atravessado a porta do quarto quando Bruno se virou para ela, até então estava tranqüilo, certo de existirem inúmeras opções a sua disposição. O chão sumiu debaixo de seus pés quando vislumbrou a cena. A mulher por quem daria a própria vida e, estava seguro, correspondia seu amor em todas as medidas, lutava para lhe encarar. Dois veios de lágrimas jorravam de seus olhos. A boca, os doces e lindos lábios que almejava beijar por uma eternidade, tremiam. As mãos, tão fortes e ao mesmo tempo tão macias, se fechavam sobre o lençol e o colchão onde se amparava. Após um silêncio mortal, que pareceu durar para sempre, ela falou.- A culpa é minha... A culpa é toda minha... — ele se apressou para envolvê-la em um abraço, como se nunca a fosse soltar.Adrianna passara os últimos dias lendo cada resultado de exame, discutindo os aspectos do problema de seu amado com o Dr. André, mas também buscando a experiência de especialistas

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ao redor do mundo. Graças ao corpo de médicos e cientistas da Fênix e da Cellular Growth e da notoriedade assumida no meio após o sucesso das empresas, nunca fora capaz de retirar seu nome completamente da história da criação do Revivit ou do LFCF, conseguia ser atendida ao telefone por qualquer especialista de notoriedade no mundo. Precisava ser discreta nestes casos, porém usou de artifícios e insistência para obter as opiniões das quais necessitava. Também se afundara nos livros sobre cardiologia tentando entender ao máximo as nuances do diagnóstico. Embora todos os estudos apontassem para a obrigatoriedade de um transplante, até a noite anterior existiam dúvidas, exames precisavam ser refeitos, alguns resultados estavam pendentes, enfim, havia esperança. Agora, não mais, no âmago sabia ser inútil discutir outra hipótese.Alguns minutos depois ela se controlou. Receava abandonar seu abraço e seu carinho. Como ele reagiria ao saber ter sido ela a sua sentença de morte? Seria forte, precisava, por ele, nada era mais importante.- Não tinha certeza ainda, mas tudo apontava para a necessidade do transplante — confessou — os exames anteriores, as consultas e o material que li eram indícios grandes. Havia esperança de resolvermos com medicamentos e eu me agarrei a essa hipótese, contudo a vinda dele aqui dando a palavra final... - as energias lhe voltavam, posicionou-se de frente a ele, segurou suas duas mãos e as apertou com

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firmeza. — O Alpha11, ou melhor, os nano robôs não conseguiram fixar o soro no seu coração, é a única explicação. Enquanto seu corpo progredia a cada dia, melhorando a cada estímulo, o músculo do coração era exigido cada vez mais, levado à exaustão, até o ponto de ruptura. Não devia acontecer assim... Juro... Você era compatível... - começava a se descontrolar novamente. Fechou os olhos, respirou fundo e já ia continuar quando sentiu a mão acariciando o seu rosto. Abriu os olhos e viu apenas carinho, ele realmente a amava.- Vamos vencer esse desafio, não sei como ainda, mas vamos. Não te culpo meu amor, não se culpe também. Estava morto quando te conheci, enterrado em meu próprio corpo, sem destino, sem objetivo, à deriva. Você me salvou.- Vou colocar os melhores cientistas trabalhando comigo, não vou comer, não vou dormir, até encontrar a fórmula adequada para recuperar seu coração, eu juro! - as palavras soaram solenes, como devia ser. Ele viveria, nem que para isso precisasse lhe doar seu próprio coração.

31. Em quem confiar?

Uma mistura de desespero e revolta parecia dominar as emoções de Natan ao saber do estado de Bruno. Atarefado em substituir os outros, ele confiara nas indicações iniciais tranquilizadoras sobre o estado do amigo. Não pôde visitá-lo no hospital e não fora informado da

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gravidade de sua condição. Estava fora do Brasil e aquele era o primeiro encontro pessoal após seu retorno no dia anterior. A notícia parecia ter lhe caído como uma bomba.- Como? Você garantiu ter checado tudo antes de injetar esta droga nele! - gritava, perdido na própria raiva.No escritório da mansão Adrianna assimilava os golpes consciente de seus erros e Bruno deu espaço ao amigo e a sua amada para se entenderem. Se interferisse poderia destruir a amizade construída nos últimos meses entre os dois. Após uma troca incessante de informações médicas, o amigo pareceu convencido da aleatoriedade do efeito e da impossibilidade da previsão de um resultado como aquele. Mais calmo ele agora aparentava cansaço e desilusão.- Tem esperança de achar uma cura? Uma maneira de fortalecer o coração? Qual o plano?- Fizemos uma biópsia em alguns órgãos ontem e estou tentando encontrar moléculas residuais do Alpha11 nas amostras para confirmar as alterações na formulação de linha base. Depois vamos produzir em quantidade. Como sabe, a fórmula é teoricamente a ideal para ele e precisaremos de alguma engenharia reversa para deduzir suas especificidades - sua preocupação era deixar clara a impossibilidade de usar a resultante no próprio Natan. — Minha teoria é de que poucos nano robôs conseguiram se fixar no coração, a maioria foi catapultada para fora dele pela corrente sangüínea muito rapidamente ou nunca chegou lá. Utilizando o composto

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sintetizado vamos realizar uma seqüência de infusões para preparar o músculo e depois uma cirurgia de peito aberto, quando deixaremos o órgão embebido na solução por sete a oito horas.— Era esse o procedimento original em Aqua em casos semelhantes?— Sinceramente não sei. A minha geração nunca tomou o soro, herdou-o geneticamente de suas mães, e não sou cardiologista. Tenho uma recordação de algo parecido em minha mente, algo vago. É pouco, eu sei, mas é tudo o que tenho e vou me apegar a isso.— E o transplante? Não nos daria tempo?— Ninguém vai aprovar um transplante - considerando o tom mais ameno da conversa, Bruno resolveu participar - as características de meu sangue são únicas, aumentando a chance de rejeição - já contara ao amigo sobre a descoberta de seu pai biológico.Finalmente Natan sentou em uma poltrona, devastado mantinha as mãos no rosto. Um sinal tão raro quanto característico de grande preocupação e busca por respostas em sua mente. Os amigos respeitaram o momento de silêncio.— Como está se sentindo? - perguntou a Bruno, agora de pé a sua frente.— Forte como uma manada de elefantes. Não sinto nada, sério. Posso ter um ataque a qualquer momento, mas não estou sentindo nada - brincou, porém seu sorriso não contou com a companhia nem do amigo nem da namorada.

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A conversa evoluiu para a descrição da estratégia traçada para atrapalhar os planos de Kerligan. Se Olívia não aceitasse ajudar passariam ao jogo sujo, vazar para a imprensa marrom tudo sobre a vida privada sórdida de MJ com direito a fotos e vídeos. Divulgar para os concorrentes militares, para os Governos inglês e americano e para a mídia especializada em negócios e finanças tudo sobre o projeto Gênesis. E, em última instância, e apenas na eventualidade da morte de Bruno, apresentar a história de Adrianna para os meios de comunicação e a comunidade científica.Tudo parecia surreal a Natan naquele momento, milhões de pensamentos concorriam pela atividade de seus neurônios. Quando o amigo declarou os detalhes de seu testamento, uma contingência lógica e necessária diante da situação, o céu parecia cair em sua cabeça. A mãe ficaria com uma porcentagem suficiente dos bens para terminar a vida no mais absoluto luxo e ainda doar uma fortuna para a caridade se assim desejasse. Adrianna seria a beneficiária principal e, caso também estivesse morta, tudo iria para Natanael Arantes Pontes. O testamento de Adrianna era idêntico. Ao ouvir aquelas palavras ele não pôde resistir, usou uma mão para apoiar a cabeça e esconder os olhos enquanto escrevia com a outra em um bloco tentando não chamar a atenção. As lágrimas pingaram no papel ecoando no silêncio enquanto os outros aguardavam respeitosamente.

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O plano era simples, cada um alugaria um escritório virtual por algumas horas e, através de vídeo conferência, se reuniriam. Os computadores pessoais, mesmo de última geração, poderiam apresentar problemas de conexão via internet e Cris preferia não arriscar. Uma conexão direta entre escritórios virtuais era o ideal. Pela estabilidade e pela qualidade da imagem, eles utilizavam equipamentos e linhas de dados dedicados para a função. Marco fora o mais reticente, não fosse por Rachel provavelmente não compareceria. Às três da tarde estavam todos a postos, Cris e Max em São Paulo, Wagner também na terra da garoa, porém em outro escritório virtual, e Marco e Rachel em Salvador. O esquema deveria manter a reunião fora do radar tanto de Kerligan quanto de Bruno. Os seguranças pessoais faziam parte da folha de pagamento da Lima World Investments e o estratagema devia ser suficiente para iludi-los. Como podiam apenas suspeitar do tipo de vigilância escusa contratada pelo antagonista de Adrianna contentavam-se com a esperança na eficiência do ardil. Natan não fora convidado, alguns ainda se ressentiam de sua omissão no passado e, além disso, não podiam confiar em seu silêncio ou em sua imparcialidade.— Todos presentes? - Cris fora a responsável pela convocação, portanto nada mais natural do que ela conduzir o encontro. Todos responderam. Os rostos pareciam especialmente sérios na tela de 50 polegadas.

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— Então Cris, do que se trata? Se for para me convencer a voltar para a "Lies" World Investments — Marco ironizou, utilizando o sinônimo em inglês para mentiras ao invés do nome do amigo - nem perca seu tempo.— Não conversamos muito depois da última reunião e, francamente, foi um erro. Podemos tomar decisões individuais, mas trabalhamos juntos por mais de um ano e somos amigos há quase vinte, precisamos trocar informações. E se o tal Kerligan for mesmo uma ameaça à humanidade? E se Adrianna puder entregar as inovações, as "revoluções" na medicina prometidas? E... - Cris foi interrompida em meio a sua empolgada defesa de tese.— Pelo amor de Deus, não me diga que acredita nessa história! - o sarcasmo estava em cada palavra saída da boca de Marco. - ET's de outra dimensão? Ele não contou a verdade, obviamente.— E como explica a força dele e de Adrianna? A cura para o câncer está sendo testada enquanto falamos, sem mencionar o alzheimer, parkinson e a lista não para por aí. Conversei com Natan sobre os testes...— O traidor assistente? - não era desrespeito ou desinteresse, simplesmente Marco estava magoado demais para não interromper.— São duas coisas, Marco, a traição e o problema potencial, um não deixa de existir por causa do outro — Max resolveu intervir. — O objetivo aqui é entender se devemos ou não participar da

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solução do problema, independentemente do modo...— Se houver um problema - era a vez de Wagner ressaltar suas dúvidas.— Com certeza — Max respondeu tentando estabelecer um tom conciliatório. - O primeiro passo é falarmos sobre as informações que cada um tem, além das fornecidas na última reunião. Sugiro que Cris inicie e se necessário eu complemento, depois Wagner e, por fim, Marco e Raquel, ok?Todos concordaram, então após alguns segundos utilizados para se restabelecer o silêncio ela reiniciou.— Talvez eu tenha uma novidade e esse foi o principal motivo de ter solicitado a reunião com urgência. Ninguém me confirmou, mas suspeito... Não, tenho certeza. Bruno sofre de um grave problema de coração.Por alguns segundos as respectivas salas foram tomadas pelo zumbido silencioso do ar-condicionado. Quando Cris retomou, todos ouviram atenciosamente os motivos de sua suspeita. A matemática era simples: o estado de Bruno ao ser levado pela ambulância, o tempo despendido no hospital, o número de testes e sua natureza, os especialistas designados para o caso e a ordem de sigilo ao redor do fato eram fortes indicativos. Usara os privilégios no Albert Einstein para obter a maior parte das informações, algumas de modo formal, outras usando de amizades pessoais e, em alguns casos, um jeitinho bem brasileiro.

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Adrianna simplesmente desconversava e pedia para não se preocupar. Contudo, em nenhum momento afirmou não ser grave o caso ou não haver perigo. Ela não insistira e pelo mesmo motivo não chegara a ligar para Bruno, precisava continuar evitando contato por medo de novos atentados. O assunto aumentou o nível de interesse de todos apaziguando até mesmo o humor de Marco. Rachel assumiu a partir daí uma postura mais ativa na reunião deixando claro não só sua avaliação racional da situação como também seus sentimentos. Ao terminarem havia poucas conclusões e apenas uma certeza. O assunto não se esgotara e precisariam de novos encontros, até chegarem a um veredicto.

Como membro do conselho da Power Innovations, holding controladora do grupo Power e detentora de ações do Staton Union, era obrigação de Olívia comparecer às conferências para esclarecimento dos resultados do banco. No segundo trimestre do ano, período de referência para a divulgação, o lucro fora excepcional tornando o evento mais um escrutínio do "como" atingiram os números e se a estratégia permaneceria igual para o resto do ano. Após aproximadamente duas horas de apresentação para cerca de 300 acionistas e alguns repórteres, tudo filmado para divulgação no site do banco, ela se encaminhou para a saída do hotel, onde acontecia o encontro, sempre acompanhada por bajuladores de plantão quando foi abordada por um funcionário do hotel, cuja missão, além de entregar-lhe uma mensagem

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escrita, incluía ressaltar sua urgência. O pequeno envelope possuía escrito à mão os dizeres: "Por favor, leia imediatamente". Interpelada por perguntas dos mais diversos interlocutores sobre o grupo Power, incluindo alguns membros da imprensa, só teve oportunidade de abrir a mensagem após entrar na limusine. Precisou de apenas um minuto para refletir e ordenar ao motorista para retornar ao hotel. Fitava o texto em suas mãos escrito em letra cursiva em inglês perfeito, apesar da origem de seu remetente, enquanto decidia se ligaria antes ou depois para Artur.

"Olívia,Assumo diversas premissas ao lhe enviar este bilhete. A primeira, de que você sabe bem quem eu sou e minha relação com seu marido. A segunda, de que você é uma pessoa honesta e correta em sua essência. Portanto, não sabe exatamente a extensão das ações de seu marido, nem no passado nem no presente, ou já o teria deixado. A terceira, de que você é também, como todo executivo de primeiro nível, atenta a oportunidades de entender melhor e, se possível, administrar conflitos potencialmente prejudiciais aos planos da Power Innovations. Se estiver certo me encontre neste hotel no primeiro andar, na sala de reuniões oito. Este momento foi escolhido por ser de meu conhecimento sua preferência por manter afastada boa parte da equipe de segurança em locais onde é forte a presença da mídia, facilitando o seu gerenciamento do sigilo

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deste contato. Adicionalmente, para efeito das aparências e benefício mútuo, o local foi reservado sob o pretexto de um encontro de investidores. Seis atores estarão na sala ao entrar permitindo a seus guarda-costas fazer uma certificação do local e a você divulgar que está ouvindo propostas de possíveis parcerias, as quais por razões óbvias não podem ser explicitadas. Ao entrar eles sairão por uma porta lateral e eu entrarei. Tratarei de lhe revelar fatos relativos à vida de Arthur e MJ dos quais, acredito, você não tem a menor noção e responderei a qualquer pergunta relativa a meu passado ou de Adrianna. Sinto-me, contudo, na obrigação de lhe avisar, não vai gostar nem um pouco de saber a verdade.Bruno Cortes Lima"

Não acreditava em um plano para lhe atacar ou seqüestrar, mesmo assim pediu para os dois guarda-costas ficarem próximos à porta e atentos às outras salas, pois havia ligação entre elas. Considerando o pedido, eles mostraram interesse em fazer uma varredura no recinto, sendo tranqüilizados por ela. Fizera o alerta apenas para o caso de precisar sair com pressa. Não gostaria de perder tempo procurando por eles, caso saísse por outra sala. Relutou alguns segundos com a mão na maçaneta antes de abri-la. Deparou-se com uma perfeita reunião de investidores, todos voltados para uma projeção de slides enquanto um dedicado senhor destrinchava os gráficos de barras apresentados.

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Cogitou estar no lugar errado até o homem começar a fazer movimentos em círculo com o ponteiro laser em torno do nome da empresa no canto direito superior do slide: "Bruno&Adrianna Revelações". Ao som da maçaneta se fechando atrás de si, sem mais uma palavra, os homens e mulheres se encaminharam a uma porta lateral. Quando todos haviam passado, um homem moreno de cabelos pretos e traços bem masculinos entrou. Seus 1,80m eram bem distribuídos e formavam uma figura elegante no terno escuro. Era sem dúvida um homem bonito, embora mais baixo do que esperava. Mas ele não entrou sozinho, um leve calafrio percorreu seu corpo, finalmente conheceria Adrianna.— Muito prazer, Olívia, eu sou Bruno.Saudou-a em inglês e a partir daquele momento, instintivamente, tornou-se a língua oficial entre eles. Ele sorria ao estender a mão, tentaria ser o mais agradável possível, afinal estava ali sob a premissa da ignorância dela relativa aos atos do marido. Ela aceitou o aperto de mão retornando rapidamente o olhar fixo a Adrianna, um verdadeiro escrutínio na realidade. O rosto impassível não permitia interpretações.— Esta é Adrianna, de quem, estou certo, já ouviu falar.— A presença dela não fazia parte do bilhete — o comentário fora desferido contra Bruno, embora o olhar ainda não abandonasse a outra mulher, mal percebendo sua mão estendida no vazio.— Não imaginei que fosse problema - ele respondeu enquanto Adrianna desfazia o sorriso

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e recolhia a mão.— É claro que imaginou - virou-se para Bruno e continuou: - Se já vai começar mentindo talvez eu tenha errado em vir.— Você está certa, não havia como saber o que Arthur lhe contou e temia que a versão dele dos fatos a colocasse na defensiva quanto a Adrianna. Peço desculpas, mas não foi uma mentira, não afirmei estar sozinho — ela não parecia pronta a ir embora, então prosseguiu deixando para trás o mal-entendido. - Vamos sentar? — ele indicou a cadeira e a puxou para Olívia. Ela prontamente sentou em. outra cadeira deixando claro não estar disposta a ser direcionada a absolutamente nada. Eles se acomodaram no lado oposto da mesa redonda, na tentativa de não produzir sensação de ameaça à convidada.— Independentemente de suas hipóteses sobre meu marido, a presença dela só me estimularia a comparecer - ainda mantinha os olhos fixos na mulher a maior parte do tempo. Era a porção executiva tomando poder de seu corpo, auto-confiante, decidida a ganhar terreno desde o início e a sair do campo de batalha com o maior número de informações possível sobre o casal.— Posso perguntar por quê? - disse Bruno. Ela insinuava responder quando Adrianna interrompeu a tentativa.— Estamos aqui de boa fé, Olívia, só vamos lhe prover de informações. Como vai tratá-las será totalmente sua decisão, sem ameaças nem perguntas, apenas respostas - mantinha o

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semblante sereno e o olhar acompanhava a sin-ceridade das palavras.— De quanto tempo dispõe? - Bruno questionou.— Dou cinco minutos a vocês - anotou mentalmente a hora após um relance do relógio em seu pulso - e decido a partir daí - o rosto traduzia a seriedade das palavras.Nem Bruno nem Adrianna pareceram estranhar a postura, ele imediatamente arrastou uma pasta plástica repleta de documentos sobre a mesa em sua direção.— É um resumo dos fatos.Ela não se dignou a baixar o olhar sobre o material, então Adrianna iniciou.— O nome verdadeiro de Arthur é Kerligan Amnael e ele não é indiano, na realidade, por mais difícil de acreditar...— Ele e você vêm de outra dimensão - Olívia completou percebendo uma pequena surpresa na expressão dos dois - ou melhor, de outro planeta em outro universo parte de outra estrutura dimensional.

O dia do seu casamento foi, provavelmente, o mais importante na vida de Olívia por vários motivos. Não apenas pelo óbvio e sim, principalmente, pela nova realidade desvendada a sua frente. Disposta a cancelar a cerimônia justamente devido à da neblina circundando a vida de seu noivo, confrontaram-se, discutiram, brigaram, choraram enquanto ele revelava sua origem e seu destino e implorava sua aceitação. Os convidados esperaram pacientemente por

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quase duas horas pelo início do segundo evento social mais importante no ano, deixado para trás apenas pelo casamento Real de Kate e William. No princípio sua emoção foi canalizada para o ódio, a história dele parecia uma tentativa de ridicularizar seus sentimentos, até o momento desesperado quando em um rompante ele arregaçou a manga da camisa, dirigiu-se para o criado mudo, onde num prato jaziam restos de um lanche, tomou posse da faca e rasgou o antebraço num talho de quase quinze centímetros. Os gritos se misturavam, o pânico dela, as pancadas na porta dos pais assustados e a voz calma e volumosa de Arthur mandando-a olhar para a ferida. Seus olhos deviam estar arregalados ao notar a pele se fechar, partindo das pontas, segundo a segundo ganhando terreno. Ele usou o lençol da cama para enxugar o excesso de sangue, habilitando-a a visualizar cada detalhe do processo. Logo, apenas um risco formava a cicatriz e depois mesmo isso desapareceu. Quando finalmente acalmou os pais do lado de fora do quarro, passou a ouvi-lo atentamente. Ao entender o destino de seu amado, mesmo confusa e cheia de dúvidas, ofertou-lhe o benefício da dúvida. Diante da mera possibilidade de uma verdade tão assustadora era seu dever manter-se no jogo. Após o casamento, muitas conversas adicionais e provas circunstanciais avassaladoras, seu amor apenas aumentara e ao seu compromisso matrimonial somou-se o de, para sempre, fazer parte daquele destino.

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Cautelosa, Adrianna decidiu prosseguir de forma mais objetiva, reduzindo o ritmo caso a convidada fizesse perguntas. Descreveu sua vinda de Aqua para a Terra. Ao mencionar a morte dos colegas no laboratório não percebeu nenhuma emoção do outro lado da mesa. Continuou a narrativa, mas foi interrompida por Bruno.- Não lhe incomoda saber que ele é um assassino? - questionou Olívia sob o olhar repreensivo de Adrianna.- Me incomodaria... Se ele o fosse.- Não estava ouvindo ou não acredita?- Até agora vocês não mentiram, só escolheram tirar conclusões precipitadas.- Eu estava lá, não se trata de conclusões, são fatos — disse Adrianna.- Você viu Kerligan atirar nos seus colegas?- Não, mas só ele e MJ estavam lá.- Bingo! — o rosto permanecia sério. O pequeno sorriso de sarcasmo foi rápido e cirúrgico.- Que importa quem puxou o gatilho? — Bruno já havia considerado a questão. - Se não foi ele diretamente, também não foi contra. Se minha leitura dos jornais foi correta ou você casou com um assassino ou teve um como padrinho de casamento. — Foi um pouco mais abrupto do que gostaria.- Foi MJ quem puxou o gatilho e a ação foi condenada por Kerligan. Contudo, a situação é complexa, existem fatos fora do alcance de vocês e não me cabe comentar — diferente de

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suas expectativas, Adrianna era quem clara-mente acalmava Bruno e não o contrário. — Apenas para registro, ele não é meu amigo e nunca será. Considero-o um mal necessário. Pode prosseguir — comandou, disposta a dar um ponto final àquele capítulo.- Ele contou ter atirado em Onan, seu mentor no passado, alguém a quem considerou por muitos anos como um pai? Esse tiro eu vi com meus próprios olhos — dessa vez uma ligeira mudança na respiração ocorreu na "rainha de gelo".— Está me dizendo ter presenciado Arthur matar Onan? — Não acreditava nessa hipótese.— Não disse matar, disse atirar. Ele atirou na perna de Onan. Apesar disso, estou certa da sua morte. Se estivesse vivo já teria enviado alguém para me ajudar. Provavelmente algum de seus homens terminou o trabalho.— Isso é suposição - embora incomodada por desconhecer o tiro em Onan, não iria julgar. Podia ser uma pequena mentira da parte deles, ideal para plantar a semente da dúvida. Não funcionaria com ela. Resolveu tirá-los do pedestal. - As forças de Kerligan receberam ordem de se retirar imediatamente antes de ele atravessar o portal.— Espero que esteja certa, Onan era muito importante para mim, ainda o considero como um pai, mas peço sua compreensão por não guardar esperanças quanto a isso.Olívia sorriu da ironia. Ela provavelmente não sabia tanto quanto pensava. Por um instante Bruno foi o centro de suas atenções, então pediu

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para prosseguirem. Em momento nenhum consultara o relógio, detalhe percebido por todos na mesa.Adrianna descreveu o aviso de Onan. Não houve reação. Saltou no tempo para os eventos mais recentes descrevendo as sabotagens orquestradas por Kerligan e provavelmente executadas por MJ. Fez questão de informar do sucesso do plano em afastar os amigos de Bruno. A mulher no lado oposto da mesa começava a parecer desconfortável, um franzir de testa aparecia aqui e ali, embora ela tentasse disfarçar. Fazia perguntas objetivas sobre os elementos relatados e não tomava nota de nada. Incluía em alguns momentos a palavra "supostamente" durante a explanação, independentemente do orador. Se antes já a consideravam inteligente, agora estavam impressionados com sua habilidade de negociação. Afinal, todos na mesa estavam cientes do final inevitável do processo, fosse naquele dia ou em outro. Estabelecidos todos os detalhes, trocadas algumas informações, ou chegariam a um acordo ou retomariam a guerra em outros termos. Ela já plantava os alicerces desta negociação qualquer que fosse o resultado. Definia-se como um general e não como um soldado na guerra. Admirável, Bruno pensou. Partiram então para a última cartada.— Provavelmente você conheceu o Dr. Manuel Alvarez - apesar de conseguir se recompor rapidamente, dessa vez não conseguiu disfarçar a surpresa.

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— Sei quem é. - Acusariam Arthur disso também? Com que propósito?- Não sabe não - Bruno provocou. - Ele era nosso espião, nos deu informações sobre o projeto Gênesis — provavelmente, por antever uma revelação importante, ela não esboçou reação.- Ele não conhecia o projeto, estão blefando, eu disse que encerraria a...- Soube sobre o Gênesis depois de plantar um programa espião no computador pessoal do Dr. François Pinot - Adrianna a interrompeu, deixando-a sem fala.- No dia 26 de outubro ele foi assassinado em sua residência. A polícia encontrou cocaína no apartamento e acreditam no envolvimento dele no tráfico de drogas — ele continuou. — No dia de sua morte nosso programa espião parou de funcionar. Não acha muita coincidência?- Se fôssemos nós — Adrianna começou interrompendo a tentativa de Olívia em interpelá-los — faríamos parecer um acidente. Para que chamar a atenção para um espião?- Foi um recado de Kerligan para nós, alto e claro - Bruno completou.Olívia precisava retomar o comando da reunião. Em uma atitude inconsciente assumiu uma postura corporal desafiadora ao inclinar levemente o corpo para a frente e espremer apenas um pouco os olhos. Subiu o tom da voz ao fazer a próxima pergunta olhando fixamente para Bruno.- O que pretendem fazer quanto às acusações feitas aqui?

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- Prometi respondermos qualquer coisa sobre o passado e isso é futuro.- Ok. Então o que esperam de mim? Certamente não manterei este encontro em segredo.- Como disse no início, esta é uma decisão sua. Mas, na hipótese de estarmos certos - Adrianna relutou antes de continuar - você aceitaria viver com um assassino? Que tipo de mulher é Olívia Whitelman?- Não acredito que ele seja um assassino - o tom de desafio temperava a voz.- Tudo bem. Quem mais teria interesse? Nós fizemos isso a nós mesmos? Colocamos Bruno no hospital? Incendiamos nossos laboratórios? Roubamos nossas cargas? MJ atuou sozinho, sem o conhecimento de Kerligan? Confira os fatos, verifique onde eles estavam em cada situação. Você sabe que não estamos mentindo.Olívia sabia. Havia algo muito errado naquela história, se os fatos se comprovassem. Contudo, não os deixaria sentir o cheiro da dúvida, era cedo para desconfiar do amor de sua vida. Teria o destino de Kerligan, seu desafio, o cegado a ponto de perder a noção entre o certo e o errado? A maldita semente da desconfiança estava plantada.— Faça uma verificação, em uma semana nesta mesma hora e neste mesmo lugar estaremos te esperando - Bruno proclamou.Ela olhou para as cadeiras e deixou um sorriso irônico tomar posse de suas feições ao pedir para esperarem sentados. Quando se levantou Bruno

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e Adrianna notaram, satisfeitos, a pasta em suas mãos. Já na porta ela se virou.— Duas coisas. Primeiro, meu nome é Olívia Goldwill; segundo, uma pergunta - com os olhos nos de Adrianna, ela continuou. - Não está deixando seus antigos sentimentos por Kerligan te influenciarem? Ele te amou, sabe? Arrependeu-se da forma como agiu com você. E hoje você já encontrou um novo amor, assim como ele. Pense nisso.Ao ouvir a fechadura operando seu mecanismo já havia se afastado a passos largos, inocente do quanto suas palavras representariam, uma granada lançada sobre a mesa, o pino arrancado... Quanto estrago uma pequena omissão, um quase segredo, poderia fazer?— O que ela quis dizer com "novo" amor? Qual exatamente foi sua relação com Kerligan?— Amor - ela se aproximou, porém seu toque gerou um recuo instintivo em Bruno - eu prometi nunca mais mentir para você e não menti. Esse assunto apenas não surgiu.— Deixa de conversa mole, o que aconteceu entre vocês? - o tom subira um nível.— Nós estivemos juntos por pouco menos de um ano, chegamos a realizar uma cerimônia, cujo paralelo na terra seria um compromisso de noivado, mas nos separamos logo depois, mais de dois anos antes de eu vir para a Terra - a expressão dele era uma mistura volátil de espanto e raiva.— Você só pode estar brincando.

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— No início evitei o assunto, confesso, tive medo de você pensar que meu julgamento sobre ele pudesse ser influenciado pelo relacionamento que tivemos.— Você acha? - já estava gritando. - Agora só falta você dizer que tudo terminou por causa de uma traição - pelas palavras de Olívia era justamente essa a sua impressão, a ironia já era parte da provocação, motivada pela raiva. Ela hesitava, confirmando suas suspeitas. - Então ele era seu noivo, te traiu, e isso não afetou seu julgamento? Na sua cabeça esconder esse fato não é mentir? — gesticulava descontrolado. - O que mais está me escondendo?— Não estou escondendo nada! E se em algum momento isso me influenciou, hoje não tem a menor importância, faz parte de um passado distante. Amo você, nada é mais importante. Por favor, não fique tão nervoso, seu coração... — tentou tocar no braço dele sendo violentamente repelida por um repuxar brusco, afastando-se dela com o ódio refletido em seus olhos.— Não me fale de coração, tentou parti-lo quando nos conhecemos e pelo jeito está disposta a terminar o serviço - o coração estava sendo esmagado sim, mas pelo peso da traição, uma angústia asfixiante o envolvia.Ele caminhou rapidamente para a porta, virando-se apenas para ordenar que não o seguisse. Adrianna despencou na cadeira em prantos, mãos sobre o rosto, cotovelos apoiados na mesa. Quem mais amava, o único amigo em um mundo estranho, um verdadeiro parceiro em uma

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batalha inglória, estava morrendo. Por sua causa fora afastado dos amigos e agora se sentia traído. O choro não cessava, uma catarata de emoções parecia ter finalmente rompido a represa, audível, acompanhada de soluços e tremores por todo o corpo. De repente queria fugir, esconder-se do mundo, voltar no tempo, nunca ter partido de Eiden. Maldito Onan, dera-lhe uma responsabilidade, cujo peso era muito acima de suas capacidades. Estava se enganando. Um mal-estar tomou conta do momento, subitamente pressentiu. Vasculhou a sala a procura de algo, precisou correr e se jogar de joelhos ao lado de uma lata de lixo. Vomitou.Sentia-se frágil, ali ajoelhada em um canto, enfraquecida, sozinha.

As lágrimas do homem caíam ao fitar o horizonte da janela de seu escritório em Salvador, quando uma batida na porta prenunciou a entrada da secretária. Ele disfarçou antes de se virar.— Dr. Natanael, é um bilhete do Dr. Max Templis - após entregar o envelope ela saiu.

"Natan,Encontre-me às 16h na sala VIP da TAM no aeroporto. Eu já estarei lá. Não comente com ninguém, principalmente com Bruno ou com a equipe de seguranças. Queime este bilhete.Max."

Os guarda-costas nunca entravam nas salas VIP dos aeroportos, consideravam-nas um ambiente

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seguro. Já viajar de São Paulo para Salvador sem o acompanhamento da segurança era um feito e tanto. Max comprara a passagem pela internet, chegou ao aeroporto faltando menos de meia hora para o embarque e desfrutou da fila VIP para fazer o check-in. O procedimento da segurança no caso de o protegido se recusar a fornecer informações era comprar uma passagem qualquer, segui-lo até o embarque e informar à filial mais próxima do destino. Eles enviariam uma equipe local. Neste dia Max fez questão de mostrar o cartão de embarque para Brasília tornando desnecessário segui-lo. Considerando o horário de embarque, comprar uma passagem e fazer o check-in não seria viável de qualquer forma. Max não mostrou o segundo cartão de embarque, para Salvador, garantindo algumas horas livres para conversar com Natan.Depois de um aperto de mãos sóbrio, não se falavam desde a fatídica reunião na casa de Bruno, os dois homens se acomodaram na pequena sala de reuniões.— Queria começar pedindo desculpas. Devia ter pressionado mais para Bruno contar tudo para vocês. Só não pense que não tentei. Brigamos várias vezes.— Adrianna contou para Cris. Não sei se faria diferente, quero dizer, se não tivesse filhos. Qualquer pai daria um ultimato a Bruno, pela saúde dos filhos de seus amigos - sentenciou.— Se soubesse da possibilidade de estarem em perigo.— Em algum momento você soube disso.

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— E foi quando dei um ultimato a Bruno.Um breve momento se passou antes de continuarem enquanto os homens se mediam. Max quebrou o silêncio.— De qualquer forma não foi por isso que vim. Temos conversado, eu, Cris, Rachel, Marco e Wagner.— Marco?— Cris pode ser bem eloqüente e Rachel sabe lidar com Marco — um sorriso maroto tomou conta, acompanhado pelo amigo.— Quem diria... Marco e Rachel...- Precisamos de informação. Ainda não decidimos se vamos ajudar Bruno, nem como, nem quando. E até lá não terá outras notícias nossas, esta é a última chance. Está disposto a responder com a verdade absoluta a minhas perguntas?Relutou momentaneamente enquanto, cabisbaixo, refletia sobre o que isso significaria. Àquela altura e considerando os últimos acontecimentos, ponderou não haver traição em revelar tudo a Max e em meio a um suspiro balançou a cabeça em tom afirmativo. Logo em seguida recuperou o tom altivo, pronto para o interrogatório e suas conseqüências.

32. Inversões de polaridade

Foi o pior fim de semana de sua vida. Atormentada pelas possibilidades, Olívia passou a maior parte dos dias no escritório, mesmo o domingo, alegando acúmulo de trabalho. Nas noites de sexta e sábado ela fez questão de que

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comparecessem a jantares beneficentes, inicialmente recusados. Precisavam fazer mais pelas causas, ela defendeu. No domingo à noite disse estar exausta e foi se deitar mais cedo. Nada disso pareceu alarmar Arthur, acostumado a trabalhar em todas as oportunidades. Workaholic assumido, enfurnou-se no escritório particular nas horas extras conquistadas. Na segunda-feira ela concluíra a checagem dos dados no dossiê fornecido por Bruno. Os fatos foram confirmados, as acusações possuíam alto grau de lógica, principalmente considerando as informações que ela possuía, e eles, aparentemente, não. Gradualmente, probabilidades remotas se transformaram em possibilidades inegáveis. Precisava confrontar o marido e seria naquela noite, porém nenhum bem poderia advir dali. Foram três dias sem contar-lhe sobre o encontro com seus inimigos, desconfiando do homem com quem decidira passar o resto de sua vida, cujo destino prometera abraçar. Caso estivessem certos, seu coração seria partido. Se estivessem errados já o teria magoado, a primeira crise após o casamento estava prestes a eclodir.Quando chegou ao aeroporto, Bruno já havia partido. Deixou o Gulfstream para ela e seguiu em um voo comercial. Ao chegar a São Paulo soube que ele não voltou para o Brasil, ao invés disso seguiu para Paris, onde conduziu reuniões com a equipe da ADe. As notícias eram boas, um acordo deveria ser firmado na semana seguinte finalizando a contento a disputa de patentes. O

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caso era fraco para a outra parte desde o início, e ao perceberem se aproximar a data quando perderiam o caso, aceitaram receber uma quantia irrelevante, suficiente apenas para cobrir os custos do processo e encerrar a questão. Na segunda, visitou a fábrica e na terça retornou ao Brasil. Não atendeu a nenhuma ligação de Adrianna, se fosse importante teria de passar por Natan para chegar a ele. O amigo insistia para ele não permanecer fisicamente tão distante, se ocorresse uma crise não haveria a quem recorrer. Bruno argumentou que na hipótese de uma crise não havia realmente nada a ser feito.Natan era sua única conexão ao mundo real e com sua própria humanidade, sentia-se vazio e perdido. Incrivelmente o amigo defendeu uma reconciliação, passado é passado, disse ele. Se tivesse sido noivo de um assassino também se envergonharia, ele argumentou. Ela se provara diversas vezes e precisavam um do outro. Mesmo assim resolveu passar os próximos dias nos Estados Unidos. Visitaria as instalações da Bio Tech e da Sun&Light retornando a Londres para o encontro com Olívia. Estava confiante em uma mudança de opinião, notou algo em seu olhar a despeito da atuação convincente como dama de ferro. Enviou uma mensagem para Adrianna informando seu desejo em ir sozinho à próxima reunião. Ela lhe mandava recados pelo celular, pedidos de desculpa, mensagens de amor, juras de não haver mais nenhum segredo pendente. Ele respondeu exigindo mais tempo.

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Ao fechar a porta atrás de si, MJ ainda aguardava Kerligan se virar. Estavam sozinhos no escritório de Londres. A cadeira de assento alto do outro lado da mesa de trabalho estava virada para a parede de vidro mal se percebendo o seu ocupante. Após alguns segundos aguardando impaciente, ele iniciou a conversação.— Me chamou?A voz soou calma e grave ao mesmo tempo. Seria mais uma daquelas conversas, MJ pensou.— Você não aprende, não é mesmo? - fitava o Tâmisa buscando no fluir do rio a calma necessária.— Como é?— Quantas vezes — virou-se lentamente — lhe pedi para não interferir neste assunto? — arremessou-lhe com violência a pasta fornecida a Olívia sobre o amigo, fazendo com que as fotos e os papéis se espalhassem no chão. Marvolo se limitou a suspender uma sobrancelha enquanto escrutinava a bagunça. Nenhum outro músculo se pronunciou. — Que droga MJ, você sabe os meus motivos! — seu olhar era raiva pura. — Não ouse negar, sua assinatura está em tudo e ainda foi descuidado o suficiente para se deixar flagrar.— Alguém precisa cuidar de suas falhas - o rosto não podia demonstrar menos emoção.— Falhas?— Não existe nada mais importante do que o nosso destino e você reluta em cuidar dos problemas. Alguém precisa fazer isto.Kerligan levantou-se de pronto investindo na direção de James, parando a centímetros de

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distância. Mais uma vez ele demonstrou a frieza e controle de sempre, não esboçando reação.— Está me provocando? - gritou.— Não, estou falando a verdade. Se está disposto a deixar que ameacem a missão, eu não estou.— Se é assim não tenho outra escolha senão lhe anular da equação.Dessa vez o homem foi incapaz de manter as emoções completamente abaixo da superfície, a dúvida se traduziu em um manear de cabeça e um pequeno espremer de olhos.— Me anular? Nossa, estamos progredindo, então. De uma postura pseudopacifista passou a ameaçar de morte os próprios amigos, ou melhor, o único amigo.— Não é uma ameaça de morte e nunca fui pacifista. Sou contra suas ações emotivas e extremadas, isso sim. Se não interromper imediatamente qualquer ação contra Adrianna, Bruno ou qualquer pessoa relacionada a eles, destruo você.— Me destrói? - um sorriso de incredulidade foi inevitável.— Retiro você de todas as empresas, lhe declaro persona non grata para a comunidade empresarial e coloco um exército de investigadores particulares seguindo você 24 horas por dia.— Me excluiria da missão? Arrisquei tudo por ela e ainda arrisco e você me ameaça? Jamais teria chegado onde chegou sem mim! - agora ele também gritava, revoltado pela traição.— Talvez não tivesse chegado à Terra, mas definitivamente fui eu quem te carregou a partir

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daí, não se engane. Nunca teria ganhado o dinheiro necessário, você era um militar pelo amor de Deus. Como faria? Revolucionaria as técnicas de treinamento daqui através daquelas desenvolvidas em um planeta onde não havia guerras? Você ia se virar graças a nossa superioridade intelectual, teria uma boa casa, um bom carro, férias todo ano, e só! — bateu na mesa com força determinado a fazer barulho. — E quanto à missão, nem todos os esquemas e planejamentos do mundo lhe ajudariam, não é um cientista. Como adaptaria a tecnologia daqui para atender aos requisitos do nosso projeto? Posso saber?— Eu detenho ações de todas as empresas esqueceu?— Aproximadamente 5% de cada uma. Nunca se interessou por finanças, não é mesmo? As empresas cresceram, compramos outras, sua participação se diluiu. E nosso contrato me dá direito a comprar suas ações a qualquer momento.— Planejou isso, não foi? — as palavras continham sarcasmo e amargura.— Não planejei nada. Sua participação foi pequena desde o início, porque o capital intelectual sempre foi meu. Foi cômodo para você ficar fazendo poupança e deixar para mim a preocupação em multiplicar, eu reinvesti diversas vezes meu capital, algumas delas arriscando perder tudo. Não se preocupe, não lhe darei motivo para reclamar, vai acabar provavelmente com um bilhão nas mãos.

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— Vai me querer como inimigo?— Não vai arriscar a missão, eu e você sabemos disso. E por acaso mencionei "exército de investigadores"? Não seria difícil trazer à superfície algum de seus crimes.— Então é assim, vai cuspir na minha cara. Esqueceu que não estaria vivo se não fosse por mim?Kerligan apenas maneou a cabeça em sinal negativo e se afastou. Virou de costas e andou um pouco formando um semi-círculo, já antecipando as próximas palavras.— Foram cento e noventa horas! Quando a plataforma de testes explodiu durante a maldita tempestade nós fomos arremessados ao oceano. Como foi o termo usado? Coma instantâneo. Virou um trapo humano depois de ser atingido pelos destroços. Ninguém mais sobreviveu. As chances de se manter vivo naquelas águas eram zero. Quem me culparia se após um ou dois dias naquele inferno em alto-mar, agarrado em uma boia, eu deixasse de te carregar? Era uma boia em uma mão e você na outra, desgraçado, por oito dias, quase morri por você! Milagre foi o termo, não foi?— Sei que devo minha vida a você e só eu sei o quanto isso tem me custado. Tentei ser seu amigo, te incluí em meu plano, cuidei de você, agüentei seus descontroles, mas se não posso confiar na sua palavra minha dívida acabou. De um jeito ou de outro salvei sua vida também quando te trouxe.— Não pode ter certeza disso.

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- Você tem, ou não teria vindo comigo.- Só peço que pare com os ataques e confie em mim — o tom era mais brando, realmente sentia-se em dívida e jamais poderia lhe causar mal sem sofrer no processo. Colocou as duas mãos nos ombros de MJ para proferir as palavras seguintes. - Estamos tão perto, quero você ao meu lado em nosso momento de glória, contudo eu dou as cartas, amigo. E é por você também que peço, está ficando descuidado, arriscando demais. Matar um funcionário da Revolutions Roweri Onde estava com a cabeça? Nada vale esse risco, pode comprometer todo o projeto. Preciso resgatá-lo de seus próprios impulsos, James.Apenas ele o chamava pelo nome do meio, como apenas seu pai o fazia no passado, e já não lembrava quando fora a última vez. Ele estava certo quanto aos riscos, talvez o melhor fosse aquiescer, pelo menos por enquanto. Balançou a cabeça em sinal de concordância. Sua fisionomia e postura mudaram correspondentemente.— Deixa o assunto para mim? Tenho a sua palavra de que não vai causar nenhum problema?- Tem.

Era uma manhã de quinta-feira, as nuvens do dia anterior se dissiparam deixando o céu estranhamente claro para a primavera de São Paulo. O sol prometia brindar o dia com sua aparição poderosa e já iniciava a conquista de seus domínios adentrando a mansão janela por janela, palmo a palmo. Excepcionalmente,

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Adrianna permanecia na cama às oito da manhã. O desânimo tinha motivo, mesmo assim não podia deixar de pensar em causas alternativas. Fitava o café da manhã na mesa ao lado da cama lembrando-se de como Bruno gostava de tomar café ali. A lembrança lhe trazia solidão. Mesmo assim fez um esforço e alcançou a cadeira. Não tinha vontade de comer. Puxou o primeiro jornal da pilha, sempre preferira a versão digital, hoje o lento folhear de páginas lhe causava algum apelo. Quando chegou ao caderno de economia da Folha de São Paulo seus olhos se arregalaram. Endireitou-se na cadeira e passou a ler atentamente o texto ao lado da imagem. A reportagem sobre a Covet Winds fez o coração acelerar. Não podia ser. Era certamente uma mentira plantada para lhe desestabilizar. Subitamente voltou a si, rápida pegou o telefone celular e ligou para a agência de investigação. Precisava de uma pesquisa urgente, para ontem. Deviam contatá-la ao obter a confirmação. A próxima ligação foi para a secretária, Mirela, o Gulfstream precisava estar pronto em uma hora. Iriam para Goiás.A Covet Winds não estava aberta para visitação, era uma empresa em fase de implantação e não um shopping center, dissera o segurança no dia anterior. Podia ter forçado a entrada ou se esgueirado durante a noite, contudo preferia ter o tempo e a luz necessários para avaliar o monolito. De sua insistência com o homem da portaria descobriu que um grupo de estudantes de geologia da Universidade de Brasília, UNB,

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estaria visitando o complexo na manhã seguinte e teriam inclusive acesso a um pedaço da rocha para manipular. Passou a tarde com o reitor informando-o da doação da Lima World Investments, estavam interessados em apoiar iniciativas das instituições de ensino de primeira linha em energias renováveis. Pedia desculpas por um contato tão abrupto, porém sua agenda era difícil e preferiu aproveitar a oportunidade na cidade a adiar o encontro por um ano. O homem não poderia estar mais feliz em reorganizar sua agenda para recebê-la, e quando mencionou o interesse em ver de perto o monolito tão comentado nos jornais de circulação nacional, ele perguntou se estaria ocupada na manhã seguinte, pois haveria uma excursão à Covet Winds para visitar o local de escavação original e ver de perto a rocha. Ele a acompanharia, é claro. Deliciada pela oferta garantiu poder rearranjar seus compromissos.

No mesmo dia em outro fuso horário, às 10h20 em ponto, Arthur Goldwill se prostrou frente à mesa do agente do serviço secreto na entrada principal da Casa Branca. O senador Cartwright cumprira seu papel. Josh Brodin, diretor de Comunicações da Casa Branca, dirigiu-se a ele antes mesmo do agente conseguir perguntar o nome do visitante. Josh era, depois do chefe de Gabinete, o funcionário mais poderoso na administração do presidente Rafael Silva. Ser recebido por ele ali era um ótimo sinal.

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— Sr. Goldwill, sou Josh Brodin, diretor de Comunicações da Casa Branca - uma apresentação desnecessária, porém de acordo com o protocolo, imaginou Arthur.— Arthur, por favor - era todo sorrisos e simpatia, como devia ser.— O presidente está um pouco atrasado, já esteve na Casa Branca? — Embora perguntasse já conduzia o visitante a um tour pela famosa sede do governo americano.Josh o conduziu pelo edifício surpreendendo Arthur tanto pelo conhecimento histórico do lugar quanto por sua habilidade em tentar obter informações sem nunca exceder os limites. No ínterim conversaram sobre política e economia. Josh pareceu feliz em saber que o bilionário não era um republicano convicto e mais um simpatizante. Ao chegarem à sala de espera do salão oval, onde o presidente despachava, Arthur já reservara um lugar para o homem em sua própria administração no futuro. Ao adentrarem se intrigou pela figura de um jovem de menos de 20 anos, negro, sentado em uma mesa a sua frente. Não seria muito novo? ele pensou.— Este é o assistente pessoal do presidente, Sam Hill.Ao apertarem as mãos Josh explicou o conceito do cargo. Um jovem promissor e inteligente cuidando dos detalhes da vida do presidente, de abrir uma porta a carregar pastas e realizar atividades pontuais específicas. Um homem de confiança. Na outra ponta da sala foi apresentado à Sra. Treadgood, secretária pessoal

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de Rafael Silva e chefe do grupo de secretárias de suporte. Josh lhe fez companhia por alguns minutos até a Sra. Treadgood informar que podiam entrar. Estranhamente Arthur sentiu-se ligeiramente emocionado por estar ali no atual maior centro de decisão no planeta, encontrando o homem mais poderoso do mundo, apesar de saber muitíssimo bem o quão efêmero era tudo aquilo.Após as apresentações formais, uma foto para registro e posterior envio ao "convidado" e a saída do diretor de Comunicações do recinto, Arthur sentou-se no sofá ao lado da poltrona do presidente. A sala era realmente oval com algumas portas quase invisíveis entre os entalhes verticais e decorações compondo as paredes. A mesa e cadeira tão famosas em filmes e comunicados oficiais ficavam próximas à janela. Uma porta dava para uma saída lateral levando diretamente aos aposentos presidenciais sem necessidade de contato com nenhum funcionário, exceto os fuzileiros navais de prontidão do lado de fora e certamente os agentes do serviço secreto designados à família do comandante em exercício da nação.— Soube de seu interesse em ampliar investimentos em energia renovável nos Estados Unidos, contudo não seria necessário se encontrar comigo apenas para obter informações sobre nossos planos para o setor.O olhar denotava a seriedade do momento, o sorriso uma indicação de estar aceitando a encenação de bom grado até ali, mas Arthur não

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devia se exceder. Desde o aperto de mão forte ele aumentou a simpatia que já nutria pelo homem. Era claramente decidido e carismático. Agora mostrava sagacidade e inteligência. Não esperava menos de um descendente de mexicanos nascido pobre, cuja vida fora um conjunto de provações pessoais até ascender ao Senado. Em dois mandatos já era considerado um homem forte no partido democrata e depois de um bem-sucedido mandato como governador da Califórnia, um estado tradicionalmente republicano, passou a favorito na campanha presidencial. Não era um homem de meias palavras e inspirava confiança. Algo raro em políticos profissionais.— É verdade, presidente, e peço desculpas pelo ardil. Contudo, após me ouvir por cinco minutos tenho confiança de que me agradecerá. Não podia entregar essa informação a nenhum outro homem sem temer por um vazamento, o qual certamente causaria pânico.O famoso visitante ganhara sua atenção, pelo menos pelos próximos cinco minutos. Arthur lhe entregou uma fina pasta contendo fotos e documentos. Enquanto falava, a expressão de Rafael não se modificou, não esperava nada diferente. Em menos de quatro minutos, o discurso foi interrompido por um sinal do presidente.— Segundo fui informado, além de ser hoje o quarto homem mais rico do mundo e ter construído seu império em menos de dez anos, é considerado um gênio científico. Logo, presume-

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se um alto grau de seriedade e competência em suas ações. Considerando as ramificações e as conseqüências para você se algum dado aqui for falso, propositadamente falso - a pausa e o olhar adicionaram intencionalmente significância ao momento - vou perguntar apenas uma vez. Apostaria sua vida nisto? - apontava para o relatório resumo em sua mão.— Sim, e não tenha nenhuma dúvida disso - internamente achava irônica a pergunta considerando ter feito essa aposta já há tanto tempo, quando atravessou o portal e abandonou a vida em Eiden.As paredes pardas e insípidas despidas de quadros ou decorações, prontas para se moverem remodelando os espaços da sala de reuniões do hotel Huxley eram uma boa analogia para seus sentimentos. Sentia-se vazio e sem vida. Enquanto aguardava por Olívia na sala anexa, Bruno lamentava silenciosamente a omissão de Adrianna. Ele teria entendido, não havia motivo ou espaço para mentiras. Amava aquela mulher e nada mudaria esse fato, portanto era inútil lutar contra suas próprias emoções. Ademais, ele não tinha muito tempo de vida, seria burrice usá-lo sozinho. Quando retornasse ao Brasil ficariam juntos novamente, tentaria enterrar a mágoa, todavia seria diferente, algo se quebrara. O toque do celular interrompeu seus pensamentos.— Ela chegou. E está sozinha.Era um dos homens de sua segurança pessoal, finalmente Olívia chegara. Já estava duvidando

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se viria. Eram 1 lh de sexta, tecnicamente estava adiantada. Um bom sinal, ele pensou. Quinze minutos depois a rotina da semana anterior havia se repetido, os atores saíam da sala e ele entrava para encontrar, desta vez sozinho, a esperança de finalmente entenderem os planos de Kerligan. Estava impecável em uma calça preta, saltos altos, camisa de tecido bege brilhante, jóias dignas de uma festa parcialmente escondidas pelo cabelo louro sobre os ombros. Ela sorriu ao vê-lo, era a primeira vez, algo devia estar errado.— Bruno — estendeu a mão, mantendo o sorriso. — Adrianna?— Houve um assunto urgente - ele retribuiu o cumprimento à altura. Não havia notado quão bonita ela era na primeira vez e os olhos... Eram cor de mel. Sentados um de frente ao outro na pequena mesa, ele começou. — Fez suas verificações, imagino.— Fiz - ela queria continuar, mas hesitou, em dúvida sobre a melhor maneira de prosseguir.— Então sabe a verdade. Tem algumas opções a sua disposição, nenhuma delas é boa. Pode se afastar do problema ou participar da solução, evitando mais mortes... — ela levantou e sentou-se na cadeira ao seu lado, o movimento inesperado o fez pausar.— Os fatos são reais, contudo não refletem toda a verdade.Em um átimo ele entendeu, ela havia confrontado Kerligan. Esperava por isso, embora torcesse pela pequena probabilidade em contrário.

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— Entendo. Bom, era um direito seu. Provavelmente acreditou nas desculpas dele. O coração ganhou da mente - já se levantava quando ela colocou a mão firme sobre seu antebraço.— Você me pediu para ouvir e eu ouvi. Por favor, me estenda a mesma cortesia - sua voz era sincera e o olhar repleto de verdade.- Ok.— Qualquer um interpretaria os fatos como você fez. Gostaria de lhe oferecer mais dados, não desculpas, fatos e acontecimentos desconhecidos para você.— Está tentando dizer que Adrianna me omitiu algo? - Só faltava essa agora, pensou.— Não, são desconhecidos por ela também.— A palavra dele contra...— Não! Existem provas. É muito, muito maior e mais importante do que você pensa. Maior do que eu, você, ou ele.Ela ampliava a força do aperto em seu braço, a expressão era grave e o olhar traduzia de alguma forma preocupação. Desde o primeiro momento gostara dela e isso não era bom, não podia deixar as emoções superarem a razão. Verdade fosse dita, se ela estivesse atuando mereceria um Oscar.— Muito bem, estou ouvindo — ele respondeu. Ela se ajustou antes de continuar, parecia ganhando fôlego para o próximo discurso.— A verdade é complexa e espetacular em um nível acima de minha capacidade de justificar ou explicar em detalhes neste momento. Tentar

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seria correr o risco de não ter todas as respostas de que você necessita. Precisa ver com os pró-prios olhos. Mas antes gostaria de lhe fazer uma proposta. Arthur está disposto a lhe encontrar pessoalmente, revelar o motivo real de sua vinda para a Terra e qual plano tem seguido desde então.— Ficar cara a cara com um assassino? Acho que não — respondeu ironicamente.— Ele não matou nem mandou matar ninguém, foi tudo MJ. Ele não sabia.— Se não foi ele quem matou os cientistas em Eiden, ele estava na sala. No mínimo foi cúmplice.— Eu sei, e vi a tristeza em seus olhos quando conversamos sobre o episódio. Quando aconteceu ficou revoltado, contudo MJ salvou sua vida no passado e você pode imaginar o peso de algo assim. Dever sua vida a outro... Além disso, ao chegarem a este planeta estavam sozinhos, dependendo apenas um do outro, e responsáveis por uma missão, cuja relevância vai surpreendê-lo. Ele achou ser capaz de controlá-lo...— E agora que percebeu não ser capaz se afastou dele, certo? - a ironia estava em seu DNA, não podia evitar.— A melhor forma de monitorar e conter MJ é mantendo-o por perto. Longe, com o dinheiro que possui hoje seria uma ameaça maior. Arthur fez um acordo. Se ele tocar em você ou em alguém relacionado a você passará a tê-lo como inimigo, será excluído do projeto - Bruno não parecia nem um pouco convencido, considerava-a uma ingênua apaixonada, no mínimo. - Ele te encontra

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onde você definir, na sua casa, seu escritório, em local público, você dita as regras. Confia em você e nela. E eu vou mediar a reunião. Adrianna pode ir. Você não tem nada a perder. Estava certo sobre mim, nunca me manteria ao seu lado se não estivesse convencida da nobreza de suas ações. Jamais me associaria a um ato criminoso - considerou a hesitação dele um bom sinal.— Quando?— Está a sua disposição, pode ser agora ou em outro momento. Quanto antes melhor.Se fosse um encontro nos seus próprios termos realmente não havia nada a perder. Bastava tomar os cuidados adequados.— Está certo. Vou mandar um carro pegá-lo onde estiver. Diga para dispensar a segurança, será revistado por meu pessoal antes de entrar no veículo. Você vai comigo, também sem segurança, e nos encontraremos todos. Não vou dizer o local. É assim ou seguimos cada qual o seu destino.Para espanto dele, ela concordou e fez a ligação. Com dois telefonemas, ele iniciou os ajustes necessários, Kerligan não teria como atacá-lo aonde iriam. Nãocontaria a Adrianna, preocupada com seu estado de saúde, ela jamais concordaria.

Adrianna e Carlos Bonsigliaro, reitor da UNB, seguiram o micro-ônibus com os alunos na viagem de uma hora e meia entre Brasília e a Covet Winds. Desta vez os procedimentos na portaria foram rápidos e efetivos, em cinco

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minutos passaram pelo portão e estacionaram próximos ao único prédio completamente construído. Outro, maior em largura e comprimento, ficava bem próximo e já tinha o primeiro andar finalizado. Ao longe se viam as bases para dezenas, talvez centenas de cata-ventos sendo construídas. A implantação do projeto parecia avançar a toque de caixa. Foram recebidos ainda no estacionamento por uma jovem aparentando algo próximo aos 25 anos, era a gerente de Recursos Humanos e responsável pelo tour inicial. Após as apresentações seguiram em um ônibus da empresa para uma área distante apenas um quilômetro, onde escavações arqueológicas permaneciam em curso. Lá ela explicou a importância dada pela empresa à descoberta e como não pouparam esforços nem dinheiro para garantir a preservação do sítio arqueológico. A mudança do local para a construção do edifício sede e o acordo com o museu Nacional do México e o museu de Arqueologia da Cidade do Rio de Janeiro para estudos no local eram apenas exemplos do comprometimento das empresas do grupo Power com a cultura. Adrianna fingia interesse e, em alguns momentos, contida empolgação ao percorrer o sítio e vislumbrar pedaços de cabaças, pratos e até mesmo armas já encontradas no local. O grande objetivo era explicar a própria existência de artefatos maias no meio do Brasil. Foram quarenta minutos excruciantes para ela, ansiosa em atingir seu objetivo particular. A certa altura decidiu mandar

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uma mensagem de texto via celular para Bruno, diria apenas que estava seguindo uma pista, para o caso de precisar dela. Notou desanimada a ausência de barras no indicador de potência do sinal, pelo jeito a área remota ainda não possuía uma boa cobertura das operadoras. Talvez no prédio principal, próximo à rodovia, tivesse mais sorte.

Avistaram o homem na entrada da London Eye antes de chegarem à Westminster Bridge. O Sr. Arthur Goldwill, l,80m, cabelos castanhos levemente grisalhos, estaria sozinho usando sobretudo cinza-escuro. Deviam revistá-lo antes de entrar no carro e prosseguir com extrema cautela. Era um passageiro perigoso, foram avisados. Pararam a limusine, o motorista se manteve de prontidão com o motor ligado enquanto o guarda-costas saía.- Sr. Goldwill?O homem limitou-se a balançar a cabeça e seguiu em direção ao carro. Mike Rogers era um ex-atleta com experiência militar curta e fora treinado intensivamente antes de poder ser designado a clientes individuais, mesmo assim não havia dominado a arte da sutileza. Seus quase dois metros e cento e vinte quilos, músculos na maioria, moldaram-no em uma pessoa naturalmente truculenta. Fez um sinal breve para o convidado parar e tentou iniciar uma revista. Arthur foi ágil ao capturar a mão do homem no ar e envolvê-la em um aperto esmagador. Sua palma direita abraçava as costas

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da mão esquerda do guarda-costas, o polegar forçando o dedo mínimo, os outros quatro dedos prensando o indicador deixando livre apenas o polegar do oponente. Com um movimento leve de alavanca, torcia também o seu pulso. Frente à dor tão imediata quanto impossível caiu de joelhos. A mão direita de Mike correu em socorro da esquerda, incapaz de libertá-la, olhos arregalados, a voz presa na garganta, sem acreditar na força do homem a sua frente.- Se não revis... tá... lo... te... nho ordens - o aperto afrouxou - para ir embora — diante do aviso sua mão foi solta.Arthur torceu os lábios e em seguida levantou os dois braços indicando estar, então, pronto para ser revistado. Mike se recompôs, fingiu, sem muito sucesso, não sentir o latejar doloroso envolvendo os dedos e o pulso, e revistou o homem usando apenas a mão direita. No bolso de dentro do paletó havia algo, ele apenas apontou temendo outra retaliação. Seu convidado mostrou um celular.- Tenho ordens para guardar isto até a sua volta, ou seguir sem o senhor.A expressão de contrariedade agora foi mesclada com olhares de zombaria.O aparelho foi entregue. Mike deixou Arthur acomodado no banco de trás da limusine e foi sentar-se ao lado do motorista. Na primeira oportunidade tinha uma ou duas palavras a dar para o filho da mãe desatento. Se dependesse da ajuda dele poderia até estar morto.

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Bruno e Olívia seguiram de táxi até o hangar, onde esperaram pacientemente na sala de espera privativa pelo convidado de honra. O celular dela permaneceria desligado e sob sua custódia até o final da reunião. Espantava-se a cada momento com a complacência frente a suas exigências. Imaginava se Kerligan estaria agindo da mesma forma. Ao se deparar com o inesperado preencha os vazios com suspeita e senso de alerta, ele repetia freqüentemente a seus pares durante uma negociação. Enquanto esperava tentou ligar para Adrianna, mas a ligação caiu na caixa postal. Segundo Mirela, estaria em Goiás, uma informação incômoda considerando o único ponto de interesse deles naquele estado. Mantinha-se próximo à janela, atento a movimentações incomuns. A mulher sentada no sofá exibia um estranho contentamento, contido, e ainda assim aparente.- Parece satisfeita.- E estou, vislumbro uma luz ao final do túnel, uma chance de chegarmos a um consenso. Todos poderemos nos beneficiar disso, acredite - diante da expressão de descrença estampada na face dele, mudou de assunto. — Quando soube sobre você e Adrianna fiquei curiosa, desde então venho colecionando informações...- Seus detetives devem estar cheios de trabalho — zombou.- Tanto Arthur quanto você têm detetives e não esconderei ter me usado dessa fonte e de serviços de clipping disparados pelos seus nomes e de suas empresas. Mas, como estava tentando

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dizer, fiquei impressionada e admirada pelo trabalho que vem desenvolvendo. A linha de negócios é realmente inspiradora. Achei o nome APMM um pouco brega, confesso — um sorriso modificou o rosto. — Você me parece ser um homem de grande sensibilidade.- Não confunda sensibilidade com fraqueza.- De jeito nenhum, gosto de homens sensíveis. Vai achar difícil de acreditar, mas Arthur é muito sensível, apenas não deixa as pessoas perceberem.- Difícil é um eufemismo.- Vocês são muito mais parecidos do que pode imaginar. Ambos são fortes, determinados, apaixonados e ousados.- Agora só preciso de um amigo assassino e deixar ele tentar matar Kerligan, aí viramos almas gêmeas — ela baixou os olhos e levantou as sobrancelhas, as pernas cruzadas e a postura possuíam graça e classe, não participaria de confrontos, estava claro. Ele repensou a postura, suspirou e partiu para outra abordagem. - Sinto muito - disse enquanto se aproximava - você claramente o ama, posso perceber, quer acreditar nele e não vou usar isso contra você, não mais, nem agora nem depois. Pois bem, estou aqui e vou ouvi-lo, porém não tenha dúvidas, aceitei o encontro por dois motivos: primeiro, como você mesma apontou, não tenho muito a perder e tomei providências para evitar qualquer gracinha. Segundo, e talvez mais importante, por sua causa.- Minha causa?

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- Abra os olhos e ouvidos, se perceber a farsa nas lacunas do conto de fadas, estarei te esperando.O som do carro estacionando ao lado interrompeu qualquer tentativa de réplica. Bruno fez sinal e saíram da sala encaminhando-se para o ambiente aberto do hangar. Lá esperaram alguns segundos por Kerligan. Ele se aproximou sozinho e Olívia seguiu para abraçá-lo, beijaram-se rapidamente a dois passos de Bruno.- Não imagina o prazer em encontrá-lo pessoalmente.Sorria com a mão estendida. Bruno se manteve sério e relutou o suficiente em estender a própria mão para perder a chance. Não lamentou. Por que diabos ele estava sorrindo?- Está mesmo disposto a expor seu plano? - ele continuou sorrindo ao balançar a cabeça afirmativamente. - Então vamos? - apontou para o Gulfstream.- A reunião será no ar — Kerligan expressou seu pensamento em voz alta. — Se eu criar algum problema todos podemos morrer... Inteligente, não esperaria nada menos.Seu oponente continuava sorrindo, simpático e sedutor. Olívia se envolvia em seu braço esquerdo ao seguirem na direção da aeronave. Deu as costas para os dois, um sinal de confiança em si mesmo, mas manteve os sentidos em alerta, dali em diante tudo poderia acontecer.Kerligan nada dizia, parecia hipnotizado avaliando Bruno. Este por sua vez, após indicar onde deviam se sentar, um conjunto de quatro poltronas em torno de uma pequena mesa,

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afastou-se para instruir melhor os pilotos. Foi breve, ao retornar comunicou estarem partindo imediatamente em um passeio e retornando para aquele exato local ao final da reunião, seu tempo aproximado de vôo seria de uma hora e meia, conforme informado à torre de controle. Por razões de privacidade não haveria serviço de bordo, quem desejasse comer ou beber algo deveria se servir. Os pilotos se manteriam na cabine, exceto em caso de emergência. A aeronave já taxiava quando Bruno começou.- Estou esperando, Kerligan Amnael.O tom provocativo era intencional e não emocional, tentaria movê-lo de seu eixo forçando o brotar das emoções, talvez isso o conduzisse ao erro e, com sorte, de algum modo Olívia percebesse suas mentiras.- Prático e objetivo, mas sempre educado - nem piscou, mantinha-se sorrindo, ligeiramente presunçoso - as descrições perecem verdadeiras.- Nunca duvidei de sua capacidade de espionagem, você sim?- Não, ainda assim a avaliação correta da personalidade das pessoas não é o forte deles — estava decidido a não aceitar provocações — posso me servir de um uísque antes de começarmos?- Eu sirvo — Olívia náo esperou a permissão de Bruno, seria desnecessário. Era um homem educado ao extremo, ela já percebera. Antes de se levantar o comandante anunciou a decolagem forçando-a a aguardar. — Daqui a pouco — sentenciou. - Posso te trazer algo?

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- Uma água com gás, obrigado - Bruno respondeu.A decolagem foi incômoda, marcada pelas palavras não ditas e ansiedade. Ela não esperou o sinal de apertar os cintos se apagar, ao sentir-se segura levantou. Os homens se entreolhavam, Bruno escrutinava cada milímetro do oponente. Estava bem-vestido, elegante no paletó cinza feito sob medida, fugia levemente do clássico por não usar gravata. Cinto e sapato lustrosos combi-nando perfeitamente mostravam o cuidado da escolha. O corte de cabelo era impecável e não usava produtos químicos como gel ou similar, o fio grosso e farto lhe davam um ar jovial e o grisalho dos lados era mínimo. Podia notar uma corrente por baixo da camisa. Um volumoso anel de ouro na mão direita chamava a atenção, possuía algum tipo de brasão. Na esquerda apenas a aliança larga de ouro trabalhado. Aquele era um homem profundamente vaidoso, tomava seu tempo para garantir não apenas beleza, mas imponência. Gostava de causar sempre o maior impacto possível. Mesmo ali calado, em uma situaçãodesprivilegiada, o carisma se sobressaía.

Eram 9h50 e Mirela, secretária de Bruno, atualmente atendendo quase exclusivamente ao Dr. Natanael, dado seu acúmulo de atribuições, imaginava quantas broncas receberia no dia. O bom humor dele havia se esgotado há quase um mês e não prometia retornar tão cedo. Com Dra. Adrianna e Dr. Bruno quase não parando por lá e

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a leve, porém constante cobertura negativa pela mídia dos assuntos relacionados à Lima World Investments, todos andavam hipersensíveis. Não culpava Dr. Natanael pelas eventuais grosserias, ele atendia todos os dias investidores de alto calibre da Lima Gestora de Fundos e executivos das diversas empresas por vezes bem mais estúpidos. A pressão devia ser devastadora. Distraída em seus pensamentos, organizava a mesa quando ouviu um bom dia proferido por uma voz conhecida. Surpresa e feliz faltaram-lhe palavras por um momento.- O gato comeu sua língua, Da. Mirela? Sou eu mesmo. Estava distraída pensando no namorado, heim?Sentia falta do bom humor do Dr. Max, sempre brincava com ela e alegrava o ambiente. Para ele não havia tempo suficientemente ruim para desmerecer uma piada. Apreciava seu gargalhar franco e volumoso.- Que bom vê-lo, Dr. Max - sorria verdadeiramente contente - veio para ficar? Dr. Natanael bem que gostaria de uma ajuda.- Para ficar e fazer barulho, colocar esta budega nos eixos - sorria acompanhando a própria brincadeira - e não só eu. Reserve a sala de reuniões da presidência para o dia inteiro e avise a Natan. Provavelmente precisaremos de um brunch, ninguém vai sair antes do almoço.- Ótimas notícias! Se puder me dizer quem são os outros participantes...- Eu, Natan, Rachel, Wagner, e Cris. Ah, avise Angeluce, minha querida secretária, para ficar de

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prontidão, vamos disparar algumas ações urgentes durante a tarde. Também organize uma videoconferência com os CEOs da ADe, Sun&Light, BioTech, da Gestora de Fundos, Alpes, Cellular Growth, e Yenioio, para as 14h, horário de Brasília.- E a Fênix?Max pensou um pouco antes de responder à providencial alusão de Mirela. Embora a empresa não fizesse parte do portfólio da APMM fatalmente sentiria os efeitos colaterais e, portanto, deveria realmente participar.- Chame o Marcos também - presidente da Fênix - quem não puder comparecer deve indicar um representante. E agende o auditório do prédio para as 15h, se não estiver disponível encontre uma sala do mesmo porte em algum hotel próximo.Já ia se encaminhando para a sala de reuniões quando um pensamento lhe ocorreu. Virou-se para Mirela encontrando-a já atarefada ao telefone.- Se algum repórter ligar, diga que não podemos atender. Assegure-se de informar que estamos todos em reunião o dia inteiro — um sorriso foi inevitável, era a hora de virar o jogo.

Aproximadamente uma hora depois o ônibus levou o grupo por ruas construídas para dar acesso aos futuros cata-ventos, seriam 80 na primeira etapa, segundo o discurso proferido pela guia, com cem metros de altura cada, 140 se considerada a extensão máxima das hélices e capacidade para gerar 150 megawatts, o

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suficiente para alimentar uma cidade com 700 mil habitantes. A utilização de energia solar em menor escala também fazia parte do futuro da Covet Winds. Adrianna não sabia mais o quanto sua atuação agüentaria.Mais trinta minutos e retornaram ao ponto de partida, em frente ao pequeno prédio recém-construído da administração. Eram 10h30 quando foram recebidos pelo CEO Márcio Drosten. Fatalmente Kerligan saberia de sua ida ao complexo, mas ela não se importava mais. Retida entre Drosten e Bonsigliaro em conversas sobre o futuro da energia no Brasil agonizava enquanto os estudantes circundavam a redoma de vidro, onde se encontrava o monolito.

UMA ESTRANHA GUINADA DO DESTINO

33. A rocha- Qual o real objetivo do projeto Gênesis? - Bruno perguntou.- Não tem nenhuma idéia?- Aceitei este encontro para ouvir e não para falar. Caso tenha uma percepção diferente é melhor descermos agora, não sou muito paciente, sua investigação deve ter lhe dito isso.- Esse tipo de interpretação de seu temperamento seria demais para eles, suponho. Contudo, minha teoria é que você é tão paciente quanto necessário quando conduz um plano. E nós dois sabemos o motivo de ter aceitado minha oferta, você acredita ser capaz de mudar a

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opinião de Olívia se me flagrar em alguma contradição - o homem a sua frente não mostrou sinais de incômodo por suas palavras — portanto este avião não vai pousar tão rapidamente. Não pense que sou um tolo. Mas, vim disposto a dar respostas, é claro.- Tolo? Nunca. Assassino, traidor, frio e calculista, sim.Kerligan sorria, não como zombaria, mais como reconhecimento da tentativa do oponente em provocá-lo. Olívia chegou com uma bandeja, colocou na mesa, abriu a garrafa de água e serviu a Bruno primeiro. Derramou o uísque fartamente no copo com gelo, primeiro para o marido e depois para ela mesma. Causando estranheza a Bruno, sentou-se ao lado dele e aninhou sua mão entre as dela.- Tenho a sensação de que confia em mim, por isso vou jurar para você na frente de meu marido - ela o fitava direto nos olhos - se alguma mentira for dita aqui denunciarei imediatamente. Este é um dia para verdades - ao largar a mão dele buscou o copo, tomando um gole generoso da bebida. Estava ansiosa, não podia negar.- É uma mulher maravilhosa, mudou minha vida. Se não tivesse vindo e encontrado Olívia nunca seria realmente feliz — disse o orgulhoso marido.Era uma cena surreal para Bruno, confidências de amor? Seria ela parte do plano? Certamente parecia um ato ensaiado para deixá-lo suscetível. Começava a se decepcionar com ela, talvez o encontro não tenha sido tão boa idéia assim. Se

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Adrianna estivesse lá como estariam se portando? Ele se perguntou.- Para entender o Gênesis será necessário lhe contar um pouco do motivo de minha vinda, para a Terra, quero dizer. O Gênesis é a realização deste objetivo.- Vá em frente — tentou impor desdém na voz, porém na realidade estava interessado demais para ser bem bem-sucedido.Lentamente se aproximavam do objeto. A gerente de RH, cujo nome já esquecera, entregou-lhe e ao reitor uma pasta com panfletos sobre a Covet Winds e a holding Power Innovations junto com dados sobre a descoberta arqueoló-gica. Os homens confraternizavam enquanto ela verificava alguns dados como a datação de carbono da rocha e a validação pelo famoso museu Madisonian da natureza Maia dos escritos. Segundo o texto, essa civilização era especialmente valorizada por possuir o único sistema de escrita do novo mundo pré-colombiano capaz de representar completamente o idioma falado no mesmo grau de eficiência que o idioma escrito no velho mundo. Cogitava-se, pela natureza dos símbolos, serem originários entre 300 e 700 d.C. Seu nervosismo aumentava a cada passo, as conversas paralelas sumiam em seu entorno. Apenas duas questões martelavam em sua mente: a primeira, se as inscrições teriam sido forjadas na atualidade, foi respondida pelos documentos em suas mãos; a segunda dependia de uma confirmação visual que só ela podia fazer. Segundos pareciam minutos

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enquanto os jovens distraídos demoravam para abrir espaço para o grupo de executivos. O último garoto a sua frente devia medir quase 1,90m. Ao se deslocar para o lado, os ombros largos desnudavam a pedra, inicialmente seus contornos, depois os primeiros símbolos. Para Adrianna a cena se passava em câmera lenta, sentia o coração acelerar, ouvia suas batidas graves acima do ruído das vozes ao seu lado, a garganta seca gerava incômodo, o ar parecia mais pesado. Não ouviu a anfitriã descrever o texto gravado como uma possível profecia, cuja tradução não fazia muito sentido. O entendimento da escrita Maia gerava leituras com variados graus de certeza, de acordo com os especialistas, e podia-se apenas acreditar em sua precisão, ela disse. Separada agora da rocha esculpida apenas pela parede de vidro não teve dúvidas. A despeito das verificações pendentes relativas aos documentos sabia no coração a verdade, eram os mesmos símbolos. Milhões de pensamentos varreram sua mente em milésimos de segundo, padrões, informações e imagens conectavam-se freneticamente navegando furiosas através das sinapses cerebrais. O coração martelava ensurdecedoramente, não havia mais ar, a escuridão fechou-se sobre ela, sentia-se flutuando no vácuo enquanto seu corpo desmoronava sob os olhares atônitosde Márcio Drosten e Carlos Bonsigliaro.— Alguma vez Adrianna lhe falou sobre a história antiga de Aqua? — Frente à sinalização negativa do interlocutor Kerligan continuou. - A idade de

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nosso planeta é de aproximadamente 4,5 bilhões de anos.— Aproximadamente a mesma idade da Terra - Bruno completou.— Correto - ele tomou um gole do uísque. - Em certo momento, contudo, a vida em Aqua sofreu uma catástrofe sem precedentes, quase toda a vida foi aniquilada. Um meteoro, ou melhor, uma chuva de meteoros mudou para sempre o destino...— Como aqui, quando os dinossauros foram extintos? — interrompeu.— Não, infelizmente, não — o sorriso havia sumido, estava sério, levemente triste talvez. — É impossível ter certeza, as estimativas apontam para milhares, talvez milhões de meteoros, na maioria pequenos, daí a dificuldade em precisar quantos. Praticamente toda a vida foi aniquilada pelo impacto e pelos incêndios distribuídos por todo o planeta. No primeiro momento quem mais sofreu foi o polo norte, por conseqüência as geleiras derreteram e alimentaram os tsunamis que inundaram inicialmente boa parte do hemisfério norte. O planeta foi brutalmente surrado pelo cosmo mudando sua própria natureza. Montanhas foram destruídas, lagos foram vaporizados, vulcões foram acordados — ele pausou para mais um gole. — O centro do planeta é feito de rocha e minerais derretidos, um mar de lava girando embaixo de placas tectônicas. Rachaduras apareceram em toda superfície, novos vulcões surgiram - ele gesticulava tentando moldar uma bola imaginária

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com as mãos. Em um esforço inútil de transmitir uma imagem remotamente próxima aos fatos captava a atenção de todos, cientes de um envolvimento profundo entre ele e seus sentimentos durante a explanação - água, terra e lava se misturaram. A poeira gerada pelos impactos bloqueou parcialmente o Sol tornando algumas regiões mais frias, outras próximas aos polos esquentaram. O próprio eixo magnético do planeta se moveu, pouco, mas o suficiente para sustentar mudanças climáticas permanentes.Apesar de ligeiramente sensibilizado pela maneira com a qual seu interlocutor expunha os eventos e curioso quanto à história do planeta natal de sua amada, não havia tempo para aquilo e resolveu dar um basta.— E o que isso tem a ver com a Terra? — imprimiu gravidade às palavras, queria retomar o controle da situação. Quem lhe respondeu foi Olívia, com o olhar sincero e a voz levemente rouca e calma de sempre.— Tudo. Espere só mais um pouco, cada detalhe é importante.— Os mares subiram de nível e nunca mais baixaram, o planeta foi redesenhado, literalmente - Kerligan continuou - as nuvens de poeira se moviam levadas pelo vento, as temperaturas variavam repentinamente, um inferno lambia nosso mundo. O resultado foram apenas 15 milhões de metros quadrados de superfície seca separados em três continentes e uma centena de pequenas ilhas vulcânicas virtualmente inabitáveis.

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— Faz parte do processo de formação de cada planeta, eu suponho. A Terra já foi um mar de lava, teve duas eras do gelo e pelo menos duas extinções de suas formas de vida mais evoluídas durante esses eventos. Continentes se sepa-raram e se juntaram apenas para se separar novamente. E isso é só o que eu sei, e não é minha especialidade. — Bruno ainda tratava o assunto com desdém. Não entendia a encenação do oponente, estava lhe dando agonias.— Claro — sorria da ingenuidade, seu anfitrião não tinha realmente idéia de onde ele queria chegar — mas o evento em questão foi diferente. Havia vida, não vida animal apenas, não um bando de dinossauros de quem ninguém sente realmente falta. Seres humanos, Bruno, uma civilização desenvolvida, bilhões de pessoas - tomado aos poucos pela emoção aumentava o volume sem perceber, brandindo as mãos pelo ar - uma civilização pujante, inteligente, desenvolvida tecnologicamente - esmurrou a mesa, contendo-se o suficiente apenas para não quebrá-la. — Desculpe-me — relaxou na cadeira e finalizou o copo do destilado.— É um fato conhecido? Quero dizer, divulgado publicamente, faz parte do currículo escolar? - entendia agora um pouco a dramaticidade em seu discurso, embora ainda o considerasse exagerado.— Faz, e não havia como ser diferente. Existiram sobreviventes e as histórias passaram a fazer parte da cultura popular muito antes de a verdade ser cientificamente comprovada. Caso

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esteja se perguntando, Adrianna vai lhe confirmar — pelos olhares trocados ele confirmou ser exatamente esse o caso. - Não se sabe quantos foram os sobreviventes, provavelmente milhões de pessoas. Muito sobre os acontecimentos seguintes ao desastre ainda permanece obscuro. Alguns diários foram encontrados, poucos em condições de ser res-taurados, recorremos a simulações de computador para preencher a maioria das lacunas — pausou percebendo a aquiescência do interlocutor. — As difíceis condições ambientais e intempéries certamente ajudaram a debilitar a saúde da população - continuou retomando o relato dos eventos - lençóis freáticos foram contaminados e a água escassa se transformou em um veneno, epidemias antes controladas passaram a se espalhar pela falta de condições sanitárias adequadas, a falta de medicamentos e de médicos para prescrevê-los completou o ciclo vicioso e em pouco tempo apenas milhares de seres humanos restaram. Aí veio o pior, a fome. A vida vegetal perseverou, mas não o suficiente para gerar frutos em quantidade suficiente para pessoas e animais. Bandos de indivíduos formavam comunidades diminutas espalhadas umas das outras por centenas, às vezes milhares de quilômetros, desconhecendo quantos mais sobraram nem muito menos onde. Desprovidos de recursos ou treinamento, vivendo em uma selva sem remédios, com pouca comida e água, eram submetidos a invernos rigorosos quando nuvens de poeira pairavam entre eles e o Sol.

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Esses eventos podiam durar alguns dias, ou se estender por semanas. Quando as nuvens finalmente se afastavam, o clima era substituído rapidamente pelo calor escaldante dos trópicos. Estima-se que como saldo final desse purgatório apenas algumas centenas de heróis conseguiram se perpetuar.Bruno fora tomado pela curiosidade e, embora ainda não enxergasse uma conexão, sentia-se incapaz de interromper. Uma história tão fascinante e Adrianna nunca havia tocado no assunto. Apesar de provavelmente nunca ter discutido com ela a era do gelo isso era diferente, merecia algum tipo de menção, ele achava. O homem a sua frente decididamente não estava preocupado em se manter alerta, o segundo copo de uísque estava no fim e ele não dava sinais de reduzir o ritmo. A situação parecia mais esdrúxula a cada minuto.— Há quanto tempo foi isso?— Cerca de quatro mil anos - ele respondeu.— Qual era exatamente o estágio de desenvolvimento dessa civilização?— Vejo que se interessou.O sorriso irritante apareceu novamente. Não gostou de ser pego de guarda baixa e foi incapaz de disfarçar, instintivamente sua expressão o denunciou. Conseguiu conter as palavras ainda na boca e resolveu deixar o momento passar, instigar a dúvida no outro lado da mesa de negociação era o melhor recurso nesses casos. Calmamente serviu-se de um pouco mais de

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água e tomou um gole. Eventualmente Kerligan continuou.— Bastante. Sociedade, cultura, artes, ciência, domínio do espaço...— Do espaço? De quantos anos de civilização está falando?— Doze mil anos, aproximadamente. Mas acho que já é hora de pularmos no tempo para alguns anos antes de minha vinda, quando um brilhante cientista, Onan Zuckman, desenvolveu o portal dimensional e encontrou a Terra. Presumo que conhece bem essa parte da história.Mais uma vez o controle estava do outro lado da mesa e, embora a conversa finalmente se direcionasse para onde ele queria, permanecia incomodado.Ausente de outra opção limitou-se a balançar a cabeça afirmativamente.

Ainda zonza, sentiu-se carregada por mais de uma pessoa. Quis falar, se mover, porém a consciência lhe escapulia por momentos, afastando-se e retornando, sempre fora de alcance, flertando com o mundo dos sonhos e das memórias esquecidas.

Lembranças antigas da Adrianna menina, 10 anos, visitando museus junto à mãe e o pai a inundavam. Uma em especial, a presença carinhosa de seu herói e protetor, já tão longe, explicando os misteriosos objetos e sua história. Lmpressionou-se sobremaneira com um artefato, seu tamanho e imponência a atraíram.

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— Pai, o que é aquilo enorme lá no meio? Vamos lá, vamos.Arrastava o indefeso papai, totalmente a mercê da doçura e espontaneidade da filha. O guia fora especialmente eloqüente ao descrever suas origens. Achava os desenhos lindos, imaginava-os poéticos e o mistério fascinante. Os dizeres indecifráveis instigavam a imaginação fértil. Na saída a garotinha com seu sorriso faceiro e olhos brilhantes praticamente obrigou o pai a lhe comprar uma miniatura como souvenir. O pequeno objeto permaneceu em sua mesa de cabeceira durante anos, primeiro pela novidade, depois por achá-lo realmente bonito. Eventualmente foi guardado em alguma caixa, apenas para ser encontrado anos depois, quando seu melhor amigo já não mais podia estar ao seu lado, e restituído ao seu local de direito como um fragmento sólido de memória de um tempo delicioso e distante.

Colocaram-na em uma espécie de cama e a confusão diminuiu, alguém lhe falava, uma mulher.- Dra. Modrin? Dra. Modrin? Adrianna?Ela respondeu, sentia agora os olhos se abrindo na sala bem iluminada. Inicialmente fora de foco, a imagem melhorou após esfregar os olhos. De súbito se deu conta de ter desmaiado.- Onde... - levantou o tronco rápido demais e sentiu a tontura, colocou a mão na testa e percebeu a moça lhe amparando.

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- Calma, não levante tão rápido, doutora. Estamos na enfermaria da empresa, ficou ausente apenas um ou dois minutos. Coloquei todos para fora...— Você é médica?— Não, sou enfermeira, mas se necessário temos uma ambulância equipada de prontidão e um médico em Abadiânia. Chega aqui em quinze minutos - tentou deixar a paciente confortável com a informação antes de prosseguir. Ajeitou o travesseiro da maca e fez indicação para ela se encostar. — Se permitir gostaria de medir sua pressão — a paciente sinalizou concordando.

- O Conselho dos Onze estava propenso a aprovar a migração de pelo menos metade de nossa população para a Terra, aproximadamente 900 milhões de pessoas, quando Onan retornou de seu período de um ano estudando o planeta. Sabia disso, não? - Kerligan perguntou, tentando não parecer provocativo.Estaria se referindo a Onan ou à posição do Conselho? Balançou a cabeça e fez sinal para prosseguir, de qualquer sorte, era irrelevante.— Iríamos barganhar com os terráqueos a nossa vinda trocando tecnologia por terras, aceitaríamos qualquer ambiente, até as áreas glaciais ou desérticas. Com nossa tecnologia não seria problema. Seria provisório, enquanto buscávamos um local inabitado ou bem menos populoso em outro universo qualquer. Estávamos todos confiantes no interesse, especialmente da Rússia e do continente Africano, além de países

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grandes e isolados como o Brasil. Deve ter em mente a população da Terra naquela época, nos idos de 1968, pouco menos de 4 bilhões de pessoas. Havia espaço, um atraso ainda maior em relação à tecnologia de Aqua do que hoje e uma discrepância extraordinária de desenvolvimento entre os países. Dávamos como certo o resultado das negociações.— E por que não prosseguiram, conselheiro? — quase havia se esquecido de provocá-lo. - Perdeu na votação? - Bruno sorria, aparentemente divertindo-se com a tentativa.- Realmente perdi, por um voto, o placar foi de seis a cinco. O engraçado é que se Onan não tivesse retornado, como era seu plano original, eu teria ganhado. Além de desconsiderar o voto dele, sua ausência provavelmente me permitiria conquistar mais um ou dois conselheiros. O resultado bem podia ter sido sete a cinco a meu favor.Teve vontade de perguntar o motivo da foto de Onan em seu quarto, dada a divulgação da óbvia animosidade entre eles, mas isso seria revelar informação gratuitamente. Também ficara intrigado pela nova informação recebida. Então, seu pai biológico desejava ficar na Terra, talvez não tivesse abandonado sua mãe intencionalmente, afinal. Segurou a curiosidade, não era o momento.- Deve ter ficado bem zangado.- De fato, fiquei. A questão, contudo, meu caro Bruno, não é essa, e sim o motivo por trás da disputa. Onan trouxe de sua incursão em seu

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mundo mapas do sistema solar. Imaginávamos haver semelhança entre nossas galáxias...Kerligan exibia o sorriso presunçoso mais uma vez. Seu efeito em Bruno era maior do que suas provocações produziam no inimigo. Como resultado, foi compelido a interrompê-lo novamente.- Eram muito diferentes, e daí? Qual o problema para seu povo?- Não eram diferentes nem semelhantes - fez uma pausa de efeito - eram iguais.- E daí?- Ora Bruno, depois de tudo o que falei ainda não percebeu? Talvez nosso poderoso soro não tenha funcionado tão bem em você, afinal — se arrependeu da agressão antes de finalizar a frase. Olívia lançou-lhe um olhar de reprovação imediato. - Desculpe-me, talvez tenha bebido demais - tratou de emendar.- Ou talvez este seja o seu verdadeiro eu, e não o professor de história que está tentando personificar.- Talvez seja, não tenho o melhor temperamento do mundo e esse assunto é difícil para mim, acredite ou não. Contudo, sou capaz de perceber meus erros e estou genuinamente me desculpando.- Suas desculpas não têm a menor importância, meu interesse é pela verdade. Portanto prossiga, pois estamos voando há quase uma hora e não temos todo o tempo do mundo. Terra e Aqua têm idênticos sistemas solares, improvável, mas não impossível, e daí? - deu de ombros.

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- Suficientemente improvável para admitirmos outra hipótese. E se a Terra não fosse parte de outro universo? Se ela e Aqua apenas existissem em um tempo diferente? - o semblante era duro deixando clara a seriedade da afirmação.Bruno sentiu calafrios acompanhando as últimas palavras de Kerligan, entendeu perfeitamente aonde queria chegar e como toda a história se encaixava. O projeto Gênesis, mísseis extra-atmosféricos com capacidade de redirecionamento no espaço, radares de alta precisão e alcance capazes de detectar e rastrear objetos no espaço tais quais os meteoros da história de Aqua. Seu olhar devia ser expressivo, pois conforme encarava Kerligan ou Olívia o semblante de ambos mostrava a mesma impressão de reconhecimento e cumplicidade de pensamentos.— Está me dizendo que você e Adrianna viajaram no tempo? Para o passado? E ela nunca me contou a verdade?— Não exatamente. Nós três viajamos no tempo, mas até esta semana ela não tinha a menor idéia do fato, deve estar conseguindo uma confirmação mais ou menos - checou o relógio - agora.— Seja mais claro — bradou. Estava nervoso, já não fazia sentido esconder, mesmo se pudesse.— Quando essa suposição se tornou consenso ninguém soube como proceder. A decisão de considerar este planeta um destino viável, mesmo provisoriamente, foi suspensa pelo Conselho dos Onze pendente de maiores

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estudos. Dados comprovando a hipótese existiram e havia como conseguir mais, porém um paradigma complexo se apresentou. Se voltássemos à Terra e ela realmente representasse nosso passado, a nossa presença poderia mudar o futuro com conseqüências potencialmente desastrosas. O medo tomou conta e a observação passou a ser não invasiva, ninguém mais tinha permissão de atravessar o portal. Nem mesmo Onan. Ele nunca pôde voltar para sua mãe.Sentiu-se mergulhado em água fria, desarmado e à mercê do inimigo. Ele certamente percebeu a surpresa em seus olhos e não poderia ter lhe dado menor importância, continuando seu discurso.— Eu fui contra, é claro. Que diabos, permanecer inerte frente à catástrofe iminente? Assistir de camarote a nossa destruição um por um? Ar, água, comida? Eventualmente a nossa própria existência destruiria Aqua, não havia mais tempo! O Conselho parecia ter aceitado um destino inevitável. Isso não existe - esmurrou a mesa novamente - desistir não é uma opção para mim. Defendi a proposta de enviarmos outra pessoa, Onan obviamente não era mais apto, para obter dados mais precisos e fazermos uma avaliação a partir daí. Foi essa a votação que perdi. Ao invés disso decidiram direcionar o portal para outras buscas deixando o estudo da Terra em segundo plano. Não pude aceitar aquele veredicto. Rebelei-me sim, tentei expulsar Onan do Conselho, lutei por todos os meios legais e

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quando tudo mais falhou decidi tomar o assunto em minhas próprias mãos e vir para este planeta. Terei a prova e a solução em minhas mãos quando vierem atrás de mim. Se vierem — o punho fechado em riste exprimia e condensava sua determinação.Eram tantas perguntas rodopiando na mente de Bruno que mal sabia por onde começar. Por que Adrianna estaria confirmando algo agora? Poderia estar em perigo? Havia ido para Goiás, a Covet Winds teria alguma relevância nesse assunto? Se ele esperava companhia de Aqua por que não teriam chegado ainda? A qual solução se referia?— O projeto Gênesis é a solução? Destruir os meteoros? Sabe onde e quando vão cair? - Bruno questionou, visivelmente agitado. - Assumindo que a história seja verdadeira, é claro.— Eles virão, não tenha dúvida. E sim, o projeto Gênesis é o motivo de eu estar aqui. Eu vou salvar o planeta, esse é o meu destino. Quanto a ser verdade, como disse, Adrianna deve estar descobrindo isso enquanto conversamos.— Do que está falando?— A resistência de vocês à verdade seria o mais provável. Sendo assim, dei um jeito para ela descobrir por si mesma. Quando cheguei aqui havia duas hipóteses, ou estávamos no passado de Aqua ou não. Meu primeiro objetivo era desvendar esse mistério e tive a confirmação há alguns meses.— Como é possível ter certeza absoluta de uma questão dessa natureza?

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— Sorte eu acho. Há cerca de cem anos foi encontrada uma relíquia arqueológica em Eiden, uma rocha com um tipo de hieróglifo desenhado em relevo sobre ela. A maioria das culturas anteriores ao nosso apocalipse nos é misteriosa, principalmente aquelas naturais do hemisfério norte, hoje submerso. Só sabíamos ser bem antiga, algo entre um e três mil anos pré-armagedom e originária de alguma cultura não mapeada, provavelmente da região meso-indinia chamada por vocês de América Central. A rocha é muito específica, impossível de haver duas iguais por mera coincidência, portanto desenterrá-la aqui na mesma coordenada geográfica seria a prova. Em 29 de agosto a encontramos, no local exato. A escrita era Maia! - ele sorria confiante, satisfeito e feliz pela prova incontestável de seu sucesso.— E, suponho, Adrianna conhece o suficiente sobre a relíquia para reconhecê-la?— Oh sim... - era impossível não sorrir, ela também não havia dividido aquele momento de seu passado com ele. - Mandei expor o monolito na Covet Winds e divulgar o achado junto com os pareceres científicos fornecidos por institutos renomados, de forma a dar credibilidade à descoberta. Adrianna está lá neste momento, já deve ter visto o objeto. É possível estar tentando entrar em contato com você neste momento - notou o desconforto na forma como Bruno sacudiu levemente a cabeça. — Não fique incomodado por eu ainda acompanhar seus passos, ora, você está fazendo o mesmo...

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— Não colocaria dessa forma. Estamos reagindo a ameaças e atentados, cuja autoria você nega, suponho?— Não vai mais acontecer — ajeitou-se na poltrona e assumiu a postura mais séria possível. - Foi um erro de MJ como muitos outros. Entenda, não é apenas o fato de ele ter salvado a minha vida, sem o apoio do grupo paramilitar formado por ele eu não estaria aqui para evitar a extinção de 99,99% da população da Terra. Ele comete erros, mas seu objetivo é o mesmo que o meu.— Mesmo acreditando na sua "pseudo-inocência", as boas intenções não eximem MJ, os fins não justificam os meios.Olívia interveio. Mantivera-se alerta o tempo todo, pronta para evitar um desentendimento mais sério e aparentemente achava ser esse o ponto sensível.— Ninguém está dizendo isso, detesto este homem provavelmente mais do que você - dirigiu-se a Arthur por um segundo enquanto falava antes de retornar a atenção a Bruno - mas concordo com meu marido em mantê-lo próximo. E a posição mais segura.— Mais seguro seria jogá-lo em uma cela!— Não sou polícia nem traidor, de mim ele não vai receber uma faca pelas costas. Você, por outro lado, fique à vontade, se achar provas vá em frente.— Eu irei, não tenha dúvidas - cada palavra lhe soava como zombaria.— Arthur não está lhe provocando — Olívia interveio mais uma vez — ter sua vida salva por

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alguém o conecta de formas inimagináveis a esta pessoa. Estamos nos abrindo para você, não precisávamos lhe contar algo tão pessoal, mas queremos sua compreensão ou, pelo menos, o entendimento dos nossos atos.O pronome "nossos" não passou despercebido, claramente ela estava completamente convencida da honestidade e pureza de propósitos do marido. Bruno em hipótese alguma compartilhava o mesmo sentimento.— Se os seus objetivos eram tão puros por que não nos contatou antes?— Inicialmente não sabia da vinda de Adrianna, quando descobri fiquei confuso. Especulei que tinham consertado o portal antes do previsto e ela fazia parte de um grupo enviado pelo Conselho, se fosse assim já saberia do meu plano e apesar disso estava disposta a me deter. Com o tempo não apareceram outros e percebi que a premissa estava errada. Só aí deduzi como e quando ela veio. Achei prudente ter uma prova antes de procurar vocês...- Vamos deixar bem claro, eu não estou comprando essa história toda, sinto um cheiro podre exalando das rachaduras. Você é um terrorista, alguém capaz de violência e morte para atingir seus objetivos, traiu o Conselho dos Onze, participou de uma pequena guerra invadindo o Excelcius, certamente pessoas morreram no confronto, deixou seu amigo assassinar a sangue frio ex-colegas na sua frente e você mesmo atirou em seu antigo mentor — Kerligan fez menção de interromper, mas não lhe

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deu oportunidade - não é muito diferente de Bin Laden. Contudo, para os efeitos práticos dessa conversa - levantou o dedo indicador em riste —, vou lhe dar por um momento o benefício da dúvidae, uma oportunidade de provar suas nobres intenções.

Cerca de meia hora depois, sob protestos da enfermeira, Adrianna seguiu para Brasília. Bonsigliaro insistiu para irem todos a um hospital. Contudo, foi incapaz de argumentar contra a opinião de uma médica, apesar dela e a paciente possuírem a mesma identidade. Ela não estava preocupada, não com aquele mal- -estar, sabia bem o motivo do desmaio e se cuidaria melhor. O real problema era bem maior. Ao recuperar o sinal do celular percebeu diversas ligações perdidas, inclusive uma internacional, e uma estranha mensagem de texto originada por Natan: "não fale com a imprensa hoje antes de me encontrar, precisamos falar pessoalmente, me ligue". Não tinha tempo para a empresa. Tentou repetidas vezes contatar Bruno, sem sucesso. O coração de seu amor literalmente definhava. Ambos estavam afastados pelos erros e omissões dela. Kerligan seguia livre e acelerado em seu plano de dominação da Terra. Max, Cris, Marco, Rachel e Wagner mantinham-se distantes, abandonaram o amigo, mais uma vez por culpa dela. E agora um problema ainda maior surgia no horizonte. Meu Deus, ela pensou; a mente estava em branco, sentia-se vazia de

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esperanças. Na janela o cerrado do Centro-Oeste parecia imitar seus sentimentos, um solo de rala vegetação, uma imensidão de terra escura, seca e rachada varria a paisagem por quilômetros e quilômetros de onde brotavam aqui e ali pequenas árvores retorcidas, quase sem folhas. As lágrimas corriam silenciosas escorrendo sobre sua face.

A voz do comandante nos alto-falantes da aeronave informava aos passageiros da aterrissagem em aproximadamente trinta minutos. Kerligan se acomodara novamente na poltrona aguardando a próxima carta de Bruno, em seu semblante era fácil perceber o descontentamento. Ser comparado a Bin Laden era ruim. Na frente da mulher, cuja opinião mais lhe importava em todo o universo, ainda pior. Apesar da raiva era melhor deixá-lo desabafar. Olívia, agora sentada ao seu lado, usava as duas mãos para apertar a sua, uma por cima e outra por baixo, um abraço carinhoso contendo uma mensagem subliminar: "estou com você, tenha calma, agüente".— Se tudo, absolutamente tudo o que diz é verdade, você pode provar suas intenções — Bruno estava tenso e esperava soar pragmático.— Como?— Diga e faremos, se for razoável e racional e caso não prejudique o plano final... - Ela foi interrompida antes de terminar.— Não se apresse - disse Bruno olhando para ela - a resposta dele pode não ser a mesma da sua -

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de um jeito ou de outro sairia do avião em uma situação melhor do que entrou, já possuía muitas novas informações passíveis de validação e estava prestes a colocar o inimigo em uma encruzilhada.— Deixe de rodeios e fale logo, antes do avião pousar — Kerligan bradou, pouco consciente da ferocidade na voz.— A Revolutions Power é a líder do projeto, correto? — ele balançou a cabeça positivamente. - E a Power Innovations tem o controle acionário dela? — o mesmo gesto, dessa vez acompanhado de um leve pendor da cabeça para um lado, sinal de que estava intrigado. - Me venda 10% das ações, o suficiente para participar do conselho. Na compra estabelecemos como parte do acordo autonomia para acessar todas as informações sobre os projetos da empresa. Em contrapartida, vendo qualquer negócio em posição de competir com a sua holding.O sorriso de Olívia não foi acompanhado pelo marido. Ela esfregava sua mão confiante em um final feliz, mas ao se virar e encará-lo não encontrou a cumplicidade esperada. Após um momento de suspense deu uma gargalhada zombeteira.— Quer fiscalizar o projeto da minha vida, ganhar parte do crédito com o salvamento da Terra e ainda ganhar dinheiro no processo? Acho que não! — projetou-se para frente ao continuar. — Estou lhe oferecendo uma trégua, a verdade e proteção contra MJ, mas não é suficiente, não é mesmo?

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Não esperava atitude diferente, o desgraçado estava escondendo algo, mentindo, e a encenação até agora fora apenas para Olívia e mais ninguém. Contudo, estava preparado para aquela reação.— Não me importa o percentual só preciso do mínimo para fazer parte do conselho e conseguir a autorização para ter acesso às informações. Não tenho interesse em ganhar dinheiro com essa operação. Compro tudo com meu capital pessoal, assim podemos incluir um acordo de confidencialidade e os louros podem ser todinhos seus. De quebra, se achar que está perdendo dinheiro lhe vendo um percentual da Cellular Growth. Vamos curar todos os tipos de câncer, você conhece a capacidade de Adrianna, e dessa forma compenso qualquer perda potencial para você, passa a ser uma questão de números.Olívia esperava o desfecho sem esconder sua preferência, não havia por que Arthur negar, resolveria todos os problemas. Ainda assim ele estava pensativo, claramente participando de uma luta interna entre os prós e os contras. Finalmente maneou a cabeça negativamente antes mesmo de começar.— Não posso arriscar que suas intervenções atrasem o processo, não temos muito tempo, já captamos os meteoros, ou melhor, o Hubble captou.— E quando é?— Neste ponto já fiz o máximo possível para convencê-lo...

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— 21 de outubro de 2015 - ela não se importou de interrompê-lo para responder. Kerligan a olhava atônito, obviamente não gostara de ela ter liberado aquela informação. - Não me olhe assim, você prometeu responder tudo e eu estou aqui para garantir isso.Era a primeira mostra de desconfiança por parte dela, ou pelo menos de descontentamento, não estava "comprando" a desculpa dele, sentia também algo de podre no ar.— Não me parece tempo insuficiente para me dar acesso às informações.— Posso lhe mandar as informações, mas não vou lhe fazer sócio, seriam muitas explicações...— Não seriam não, basta dizer que é um ótimo negócio e será. Sabe muito bem o quanto vamos revolucionar a medicina e seus acionistas não sabem de sua capacidade para salvar o mundo. No futuro pode defender o movimento como uma contramedida. Caso algo desse errado em seu plano e o planeta ainda sofresse uma devastação parcial ser sócio das mais proeminentes indús-trias da área de saúde seria um negócio ainda melhor.As desculpas estavam se esgotando, Olívia agora parecia rezar pela concordância do marido, menos pela importância de Bruno no processo e mais pela necessidade quase visceral de ver eliminadas as dúvidas tão rapidamente plantadas.— Trouxe os planos de salvação de Aqua. Tem noção do tempo e recursos despendidos nesse projeto? Abandonei meu nome e minha

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reputação para vir à Terra! Depois disso dediquei todos os meus dias a esse sonho. Eu sou especialista em física, já era um dos cérebros mais proeminentes em Eiden, aqui nem se comenta, estou a anos-luz de distância da grande maioria dos cientistas. Você não tem a dimensão dessa operação, o tempo perdido nesta "quase fusão" prejudicaria sim o processo, ademais teria de gerenciar uma insatisfação gigantesca por parte de MJ resultando em mais tempo perdido. Estou em contato com o presidente dos Estados Unidos para montar uma força de trabalho. No último encontro eu assinei um documento, uma carta de intenções me comprometendo a não falar desse assunto com ninguém fora do alto escalão do governo americano e inglês, da Revolutions Power e da Power Innovations. Conversar com você neste momento já me coloca em posição difícil caso descubram e, pode ter certeza, estão me seguindo.— Bruno — Olívia interveio — desculpe-me, estamos em seu avião, mas seria possível nos dar alguns minutos a sós?— Vou dar uma palavra com os pilotos, lavo o rosto no banheiro e volto, vocês tem quinze minutos.Ele aproveitou para orientar o comandante sobre suas intenções. Diante dos fatos seu afastamento de Adrianna não poderia continuar. Também Natan e os outros mereciam saber, precisaria retornar ao Brasil trocar informações com Adrianna e definir os próximos passos. Após abastecer o jato e obterem liberação das

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autoridades partiria imediatamente. Se por um lado tinha agora mais informações, por outro a situação tornara-se crítica, a vida na Terra na balança. E nem podia começar a pensar nas conseqüências de mudar o futuro daquela forma, caso este futuro fosse realmente Aqua. No diminuto toalete, ele jogava água gelada no rosto e se encarava no espelho tentando encontrar no reflexo as respostas para as perguntas em sua mente. Embora preso pelo próprio amor àquela mulher não estava seguro totalmente da recíproca. Caso não estivesse tão sozinha, não precisasse dele, não fosse ele seu único amigo naquele universo, estariam juntos? Se o soro não o tivesse tornado melhor, ela se interessaria? Estranhamente, diante da morte iminente, quando o coração fragilizado desse o último sopro e da chegada do apocalipse dali a poucos anos, nada parecia tão importante quanto saber se era amado. Mas era um sentimento egoísta, se havia um momento para se esquecer de problemas pessoais o momento era aquele. A voz no alto-falante interrompeu sua linha de raciocínio, os passageiros deveriam sentar e apertar os cintos.Ao acomodar-se em frente ao seu oponente, sabia indubitavelmente qual seria a resposta. Oliva estava impassível, ausente de emoção quando um Kerligan frio reiniciou a conversação.— Fossem outros os prazos e não tivéssemos tão atrelados ao governo americano eu não hesitaria em lhe incluir no processo, como uma deferência a Adrianna. Na situação atual, contudo, receio

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ser impossível e é minha palavra final. Se quiser um tour do projeto posso arranjar e Olívia pode servir de ponte caso precisem de mais informações. Não entregarei cópias de projetos, isso está fora de questão também. E terá um custo — procurou as palavras por um instante - moral, por assim dizer. Acredito em sua palavra se a der. Vai precisar prometer que nem você nem Adrianna nem ninguém ligado a vocês vai interferir em meus negócios. Se romper o acordo o fluxo de informações para.Antes de responder ele encarou Olívia, cujo olhar de imediato fugiu, apontando para as mãos e depois se servindo de mais uísque para disfarçar. Definitivamente estava com a pulga atrás da orelha, porém ainda não daria o braço a torcer, afinal ele a avisara antes de tudo começar. O silêncio era incômodo, logo os diversos sons associados à aterrissagem dominavam o ambiente dando uma falsa impressão de normalidade enquanto os dois homens se encaravam. Bruno precisava abolir do pensamento as idéias surgidas da emoção, tinha certeza de que algo estava errado e por isso mesmo não era aquela a hora de desnudar seus pensamentos em acusações sem efeito prático. Estrategicamente era o momento de capturar mais informações antes de agir, deixá-lo de guarda baixa seria o ideal. Contudo, acreditar nessa hipótese seria subestimar o inimigo. As verdades parciais eram as melhores neste estágio de negociação, sem mentir não poderia

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ser desmascarado, sem confronto direto não poderia ser questionado.— Minha opinião não mudou, continua um terrorista. Porém, não existe motivo para não aceitar sua oferta, me mostre os planos e evoluímos a partir daí. Se não ficar satisfeito e a guerra começar vou informar antes de começar os ataques - estendeu a mão para selar o acordo - uma trégua.Kerligan hesitou, pareceu-lhe ser exatamente o que era, um elemento de vantagem para o oponente e talvez não estendesse a própria mão não fosse pela forma com a qual Olívia o encarava. Fizera a proposta por causa dela então precisava ir até o fim e firmou o pacto. Nenhum dos homens sorriu.Foi combinado um encontro entre Olívia, Bruno e Adrianna na semana seguinte, ali no Gulfstream da Lima World Investments, não necessariamente no ar de forma a terem acesso garantido a telefone e internet. Ela levaria em um tablet PC os dados criptografados sobre o projeto Gênesis. Se o governo americano tomasse conhecimento haveria problemas, portanto nada seria deixado com eles. Minutos depois estavam no solo. Ao desembarcar, os cumprimentos entre os membros masculinos do trio se restringiram a um balançar de cabeça. Oliva manteve sua postura oscilante e abraçou Bruno deixando-o desconcer-tado. Foi um abraço forte e eventualmente ele retribuiu, embora em menor intensidade. Ao se afastar, manteve a mão em seu braço e sustentou o olhar deixando um leve sorriso

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marcar o momento, então se afastou. A alguns passos além da escada de desembarque, Kerligan se virou e encarou o oponente na porta do avião.— A perna era biônica - ele gritou.— Que perna? - respondeu confuso.— A de Onan. Houve um acidente muitos anos antes e precisou de uma prótese. Ele era vaidoso e não comentava com ninguém, mas eu sabia. Só por isso atirei. Para mantê-lo parado, não para feri-lo. Não sentiu dor nenhuma.Virou-se e foi embora. Pela expressão neutra da esposa, já era de seu. Ponto para ele, Bruno pensou.

Antes de embarcar, ela recebeu uma mensagem de Bruno pelo celular: "devo chegar ao Brasil às 2h da manhã de amanhã, horário de Brasília, e sigo para casa. Precisamos falar com urgência. Esteja na mansão me esperando". Respondeu apenas com um "Ok", era melhor assim, seria arriscado demais falar-lhe de suas descobertas por telefone. Ficou ao mesmo tempo feliz e apre-ensiva por sua chegada.Não conseguiu tocar nos documentos recebidos na Covet Winds até bem depois de o avião decolar. Estava deprimida e confusa demais. Eventualmente se acalmou permitindo a seu lado prático reassumir seu lugar de direito. Automaticamente as decisões começaram a brotar. Independentemente de seus sentimentos ou dos de Bruno precisavam se unir como nunca, se fosse preciso reverteria sua posição no

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assunto evitado nos últimos dias. Se Olívia ainda não tinha se tornado uma aliada, de posse daquelas informações provavelmente sua postura mudaria. A não ser que Kerligan tivesse usado justamente aquilo para convencê-la. Quanto mais pensava mais o raciocínio fazia sentido. Aliás, tudo agora parecia se encaixar, desde os eventos anteriores a sua partida de Aqua até as atividades de seu inimigo naquele mundo. Imaginava inclusive a falsa promessa feita a Olívia. Kerligan estava jogando roleta russa e o cano do revólver apontava para bilhões de vidas. E o pior, provar seria quase impossível.

34. Fé e esperança

Saíram de braços dados e assim permaneceram até a porta do hangar se fechar atrás deles. Apenas um segundo depois Olívia se desvencilhou avançando o passo e adentrando o carro. A mensagem foi sutil, porém clara e Arthur Goldwill não tocaria no assunto em frente aos capangas de Bruno. Antes de fechar a porta o guarda-costas devolveu os celulares e lhe perguntou o destino. Embora uma conversa fosse necessária os compromissos urgentes precisavam ser tratados obrigando-o a indicar a sede da Power Innovations como destino.— Estão me esperando para uma videoconferência com os Estados Unidos, adiei após sua ligação, mas não posso cancelar.

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-Tudo bem, nos falamos em casa - o tom denotava seu descontentamento, embora tentasse minimizá-lo, afinal ele prometera dar o melhor de si no encontro e responder às perguntas e assim o fez.Os respectivos celulares foram os companheiros durante o trajeto, assuntos foram direcionados e decisões tomadas deixando-os ausentes um do outro. Sem sequer se tocarem o clima era incômodo para ela, tolerado apenas pela expectativa de um entendimento melhor durante a noite. Passaria o resto da tarde distraindo a mente com a grande quantidade de atividades pendentes no escritório. Nenhum dos dois se lembrou de não ter almoçado.

Enquanto aguardava a preparação do avião e a aprovação do plano de voo, usou a sala privativa do hangar para checar seus e-mails e fazer algumas ligações. O motorista traria um sanduíche na volta, após deixar Olívia e Arthur onde quisessem. Com a diminuição da tensão a fome aparecera e só então se lembrou de não ter almoçado, aliás, nenhum dos três. Ao ligar o celular recebeu uma enxurrada de mensagens, na maioria ligações perdidas. De relevante apenas um "Ok" de Adrianna para o pedido enviado antes do encontro revelador e um aviso de Natan para não falar com a imprensa e entrar em contato. Que diabos ele estava aprontando? Diante dos acontecimentos do dia certamente seria algo irrelevante. De qualquer sorte, confiava plenamente no amigo para resolver

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qualquer assunto relacionado à empresa, de fato lhe confiaria a própria vida. Graças a Deus tomara a decisão correta e o deixara a par de tudo desde o início, caso contrário estaria completamente só agora. A pressão sobre ele deveria ser descomunal naquele momento, agüentando o peso das responsabilidades antes pertencentes a Max, Rachel, Marco e Wagner. Sem mencionar os investidores furiosos de sempre. Embora prometendo a si mesmo assumir algumas das atribuições pesando sobre os ombros de Natanael, desligou o celular, não queria falar com ninguém, precisava pensar.O primeiro passo era verificar a história de Kerligan. Adrianna podia confirmar os fatos históricos de Aqua e a existência da rocha Maia em ambos os universos. A partir daí poderiam averiguar diretamente ou através de espionagem industrial a observatórios espaciais se haviam detectado realmente um ou mais meteoros vindo em direção à Terra e se chegariam aqui em 21 de outubro de 2015. O segundo passo era mais complicado, tentar descobrir o real plano de seu inimigo. Certamente as informações que receberia na semana seguinte seriam filtradas e ele não encontraria falhas, contudo talvez descobrisse onde procurar por elas. Além deste ponto um mundo de hipóteses se abria e nenhuma solução brilhante apareceria de forma fácil. E embora tentasse não pensar no assunto, imaginava ser impossível estar vivo em 2015. O pensamento lhe incitou um calafrio na espinha ao imaginar o número de vidas em jogo, bilhões de

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pessoas poderiam partir pouco tempo depois dele.

O avião de Adrianna ainda iniciava o procedimento de pouso e o de Bruno partira havia cerca de uma hora de Londres deixando, para a tristeza da imprensa reunida no auditório do prédio sede da Lima World Investments para a coletiva, ambos incomunicáveis. O fax anunciando o evento chegara ao final da manhã, algo pouco usual, e a maioria não teria comparecido não fosse referente a um dos mais importantes grupos empresariais do Brasil e sério candidato a se tornar o maior em pouquíssimo tempo. O comunicado sugeria novidades bombásticas e continha a assinatura de Max Templis, grande amigo de Bruno Cortes Lima e afastado da empresa há quase um mês, o que reforçava sua importância. Curioso para os membros da editoria de economia era a presença de colegas responsáveis pelo caderno de ciência e tecnologia. Preparada para acomodar bem 120 pessoas a sala contava com menos de 30 sentadas e alguns em pé com suas filmadoras e máquinas fotográficas prontas para buscar o melhor ângulo. As 15h15 Max despontou atravessando a porta principal evitando as perguntas prematuras dos repórteres. Felizmente a aparição da Dra. Cristiane Templis, Natanael Arantes, Wagner Matos, Marco Meltezer, e Rachel Martinez dispersou os ansiosos fotógrafos o suficiente para conseguirem atravessar com rapidez o espaço. Os assessores mal foram

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notados. Subitamente a coletiva ficou bem mais interessante. A primeira pergunta veio antes mesmo do grupo se acomodar adequadamente na mesa instalada em cima do pequeno tablado.- Dr. Max Templis, o Dr. Bruno Cortes Lima e a Dra. Adrianna Modrin participarão da coletiva?- Não, eles estão tratando de assuntos correlatos e nos confiaram a missão de estar aqui - diante do burburinho fez sinal para esperarem. - Por favor, me deixem ler o comunicado principal desta tarde depois responderemos a algumas perguntas - o grupo se acalmou enquanto ele abria a pasta e iniciava a leitura.O texto anunciava um resumo de plano de ação para a LWI com especial atenção ao futuro do APMM. Contando com segurança redobrada em seus laboratórios e escritórios, apesar das autoridades ainda não terem identificado o sabotador responsável pelo incêndio em São Francisco, a Cellular Growth retomaria os planos para o IPO com proposição inicial de acontecer em três meses. Mantinha-se o segundo semestre de 2016 para entregarem a droga definitiva capaz de oferecer a cura do câncer. Neste ponto a platéia irrompeu em perguntas e foi necessário um reforço da premissa original, precisariam aguardar o final da leitura para obter as respostas. A Dra. Cristiane Templis adicionaria mais informações após a leitura total do documento, inclusive a divulgação da mais nova linha de pesquisas da companhia. Em seguida continuou notificando os presentes do fim da disputa sobre patentes da ADe finalizada através

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de um acordo com a outra parte, cujos termos não poderiam ser divulgados em função de um contrato de confidencialidade. Contudo, as projeções financeiras para o ano corrente permaneciam as mesmas divulgadas anteriormente, sem impacto relevante das referidas negociações. Assim, retomariam os trabalhos para realização do IPO da ADe em aproximadamente três meses. Terminada a leitura a palavra foi passada para Cris.- Boa tarde a todos, é com enorme satisfação que anunciamos a quebra de uma nova fronteira, algo capaz de modificar o dia a dia de todos os seres humanos - em uma pausa para tomar ar percebeu a elevação automática no grau de curiosidade dos repórteres - partindo do princípio básico utilizado no desenvolvimento do LFCF, nome ainda provisório da nossa droga desenhada para reverter os efeitos da leucemia, já conseguimos evoluir sua ação de forma a ampliá-la para diversos tipos de câncer. Em testes foi percebido um efeito colateral do composto, o rejuvenescimento das células sadias e o aumento da capacidade imunológica da cobaia. Empolgados pela descoberta e ansiosos por acelerar a evolução desses estudos firmamos uma parceria inédita entre indústrias do ramo envolvendo a Fênix Farmacêutica e a Cellular Growth Pharmaceutical para o desenvolvimento do AlphaT, um suplemento de uso genérico para aumento da expectativa de vida e capacidade imunológica do indivíduo humano. Essa parceria permitirá a redução em 30% do prazo de

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desenvolvimento e testes da fórmula definitiva. Nosso prognóstico é oferecer o medicamento para a população em cinco anos.Abaixou o papel indicando ter acabado a leitura. A informação mais importante foi deixada para ser respondida e não citada, de forma a causar impacto. Diante da explosão de mãos e vozes ao ar apontou para um repórter da editoria de ciências e saúde do jornal de maior circulação de São Paulo.- Qual seria a ampliação prometida na expectativa de vida através da utilização dessa droga?- Trinta por cento inicialmente, com potencial para mais, dependendo do indivíduo. E uma capacidade de lutar contra infecções cotidianas e vírus comuns como gripes e resfriados pelo menos duas vezes maior.As perguntas se multiplicavam alternando de economia e negócios para ciência e saúde por mais uma hora até a finalização forçada da coletiva de imprensa. Subentendido nas palavras de Cris estava uma futura fusão entre Fênix e Cellular Growth, cujo impacto, somado à divulgação do AlphaT, deixariam o mercado financeiro em polvorosa. A inevitável pergunta sobre o afastamento de Max, Rachel, Marco e Wagner foi respondida evasivamente e entre brincadeiras por todos. Cada um a seu modo justificou o período como um retiro para reagrupar forças necessárias à nova fase da LWI, alguns dias foram de férias e outros de reuniões privadas para redefinição de rumos, segundo

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eles. Novidades estavam por vir. Lançavam mão da boa e velha técnica de mudar o foco da questão.Ao desembarcar, Adrianna tentou contato com Natan. O celular tocava sem ser atendido. Tentou a secretaria dele em São Paulo, Mirela. Em resposta, soube da entrevista coletiva e recebeu um recado do amigo, "não falar com a imprensa", ele ligaria após o evento. Antes de ser questionada, Mirela se apressou em contar do retorno dos quatro diretores afastados, a animação era perceptível por detrás da objetividade e profissionalismo. Entre o espanto e a falta de informação, se conformou em aguardar. De todo modo, faria uma parada importante antes de pensar em trabalho. Iria direto para uma clínica verificar se estava tudo realmente bem. Tratara o desmaio de forma displicente, aliás, estava tratando a questão como um todo inadequadamente e era hora de mudar isso. Quando sua saúde estava envolvida não podia confiar em clínicas convencionais, bastavam os problemas com o Dr. André Ribeiro. Nesta ocasião recorreria a uma colega médica apresentada por Cris com quem encontraram por acaso em um restaurante. A partir do dia seguinte iniciaria a montagem de uma clínica particular na Fênix contendo os equipamentos adequados.Foi recebida com atenção especial e presteza tanto por seu status na comunidade médica quanto pelo relacionamento com a Dra. Templis. A esta altura, entre sua posição acionária na Lima

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World Investments e a participação na coor-denação das pesquisas da Cellular Growth e Fênix seu nome já era conhecido e aclamado tanto na comunidade financeira quanto médica. Cuidara de todas as pontas soltas quanto a seu passado forjado e não precisava mais se esconder dos inimigos, estava despreocupada quanto a isso. Ao deixar o consultório estava mais tranqüila, a saúde estava perfeita, o desmaio deveria ter sido realmente causado pela emoção e pela sua fragilidade eventual, nada mais. Após ouvir pelo telefone o compêndio geral da coletiva de imprensa combinou conversar pessoalmente com Natan na Fênix e se encontrariam lá em seguida. Apesar de não concordar inteiramente com a divulgação do trabalho no AlphaT o retorno de todos era uma bênção, e não cometeria mais erros. Contaria ela mesma ao amigo sobre sua descoberta antes mesmo de despejá-la sobre Bruno. Marcaria também uma conversa com os membros da Infinito na sala de guerra da mansão às 10h, assim teria bastante tempo para apresentar as notícias chocantes e implorar novamente o perdão de seu amado.Natanael reagiu relativamente bem às péssimas notícias, estava centrado e menos emotivo que o usual, aparentemente crescera tanto intelectual quanto emocionalmente desde o início daquela crise. Claramente as responsabilidades foram absorvidas ao longo do tempo de forma positiva, tornara-se um excelente executivo, um conselheiro valoroso, e cada vez mais um amigo melhor e mais importante tanto na vida de seu

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amado quanto na dela. Após um debate prolongado ele se foi, reuniria todos para o encontro do dia seguinte. Ela ainda não podia deixar a empresa, era hora de se atualizar quanto aos últimos testes do Alpha11b, a versão especificamente desenhada para tratar Bruno.

Eram quase 21h quando Arthur Goldwill retornou a sua residência. Estava ciente da recepção pouco calorosa a sua espera e preparado para defender seus argumentos. Entre a pressão de MJ de um lado e a de sua esposa do outro, encontraria equilíbrio apenas em suas próprias motivações, crenças e valores, em seu processo decisório e na firmeza de sua personalidade. Faria sempre o imperativo, voltado ao bem maior, depois atenderia ao pessoal. Jamais ima-ginara encontrar o amor em sua jornada através do tecido interdimensional e agora sabia, era incapaz de abandonar esse sentimento. Todas as peças não coexistiam no mesmo plano, precisava manipulá-las no ar, ser um malabarista em tempo integral.Olívia o esperava na sala de estar principal, a lareira acesa nem de longe provia o calor necessário a seu coração espremido no peito pela angústia da dúvida. Ele chegou, beijou-a carinhosamente na bochecha e se sentou em uma poltrona. O mordomo apareceu imediatamente e após trazer o uísque solicitado por ambos deixou a garrafa e o balde de gelo à disposição e retornou para a copa sendo dispensado pelo dia. Uma copeira permaneceria

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de plantão para um jantar, caso desejassem. A decisão de romper o silêncio foi dela.- Por quê? Dê-me o motivo verdadeiro.Ele não titubeou, a expressão se tornou resoluta e a voz saiu de seus lábios grave e seca.- Confio na honestidade de Adrianna e posso estender a cortesia ao Sr. Cortes Lima, mas não posso trabalhar com alguém eternamente desconfiado e desconfortável ao meu lado, questionando cada passo do meu caminho, cada detalhe do meu plano. Não os condeno, James tratou de garantir essa situação, porém em nenhuma hipótese vou incluir uma variável dessas no projeto de maior magnitude que a humanidade já concebeu. Não interessa o quanto essas pessoas foram ou são importantes para mim. Se imaginou algo diferente fez um erro de julgamento sobre o tipo de homem que sou.Sentiu um baque no peito, um empurrão invisível, uma sensação física precedendo a confusão emocional. Engoliu em seco, a frase possuía duplo sentido. Estaria errada em suas dúvidas? Teria sido dura demais? Afinal o homem estava tentando salvar o mundo, amava-a e ela correspondia o sentimento. E ele já dera provas de sua tolerância e paciência para com ela em relação a esse assunto ao acatar diversos de seus pedidos. Seus pensamentos foram interrom-pidos quando ele continuou.— Você é mais importante para mim que o oxigênio no ar, e por isso vou conviver com suas dúvidas na esperança dessa nuvem negra se afastar de nós. A partir de amanhã suas senhas

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darão acesso a todos os detalhes do projeto Gênesis, o Dr. Pinot tem ordem de fornecer os detalhes e explicações respondendo suas requisições. Mostre tudo a Bruno, a única restrição é não permitir cópias do material, já orientei a prepararem um tablet PC com um sistema de proteção contra cópias, você o leva e traz de volta. Reúna-se com ele quantas vezes quiser, é problema seu - colocou o copo sobre a mesa de centro e levantou. — Mais alguma coisa? - naquele momento ela parecia uma criança desprotegida, apenas disfarçada no corpo de uma adulta linda e sofisticada, teve o ímpeto de abraçá-la, tomá-la em seus braços. Sua vontade, contudo, era de ferro. Diante do silêncio, finalizou. - Vou trabalhar mais um pouco, estou sem fome.Ao vê-lo se afastar seu impulso foi implorar perdão, abraçá-lo, beijá-lo e nunca mais abandonar o calor de seu aconchego. Não houve tempo, em segundos estava fora de seu campo de visão, as lágrimas desciam desobedientes. Milhões de emoções fluíam desconcertadas e desconexas por seu corpo, razão e sentimento se desalinhavam. A semente da dúvida encolheu, espremida pelas emoções e pensamentos contraditórios, mesmo assim permanecia lá, ali-mentada por uma discrepância mínima entre este Kerligan fechado e seco e o Arthur com quem se casou, aquele capaz de discorrer dias e dias sobre todos os detalhes de sua vida, feliz por dividir com alguém tantos segredos, alguns omitidos inclusive de seu não tão fiel escudeiro.

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A porta principal se abriu às 4h20 acordando Adrianna de seu sono. Estava no sofá aguardando e prontamente se levantou, instintivamente correu ao encontro dele. O abraço o pegou de surpresa, o rosto apoiado em seu ombro e a força nos braços não davam sinal de aceitar uma recusa. Ele gentilmente a separou de seu corpo, apenas alguns centímetros, uma mão em cada face forçando os olhares a se encontrar. Depois um beijo forte e apaixonado. Como estava com saudade... Era inútil resistir. Quando finalmente se afastaram o suficiente falaram quase ao mesmo tempo.- Eu te amo.Ela estava chorando. Ele secou as lágrimas alisando delicadamente sua pele com os polegares. Conduziram-se mutuamente ao sofá onde ela ameaçou falar, sendo vencida, porém, pela eterna eloqüência de seu namorado.- A hora de brigar passou, eu te perdôo, não vou passar o final de meus dias sem você.- Não fale assim, tenha fé, o Alpha11b está pronto, vamos começar o tratamento hoje. No mínimo vamos ganhar tempo até outra solução aparecer.- Meu amor, não quero me enganar. Se der certo ótimo, mas não posso contar com isso, os riscos são grandes demais. Tenho novidades terríveis.- Precisamos contar com isso, também tenho novidades ruins, mas temos um novo motivo para viver, um melhor do que qualquer um - lentamente conduziu a mão dele para seu ventre

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- vamos ter um filho - ela voltou a chorar, gotas de felicidade escorrendo frente ao olhar surpreso de sua alma gêmea. Um semblante rapidamente transformado em alegria misturando sorrisos e lágrimas em um abraço que pareceu durar séculos.O enriquecimento celular, parte da evolução em Aqua, trazia como efeito colateral uma gravidez mais curta, segundo Adrianna seriam cinco e não nove meses se tudo corresse bem. Ela estava no final do segundo mês. A barriga ainda não mostrava grande mudança, normalmente o crescimento se acentuava a partir do início do terceiro mês. A partir dali tudo seria muito rápido. 14 de fevereiro seria a data mágica. A alegria precisaria ser guardada em local precioso por algum tempo, era necessário trocar informações e cada um achava ter mais revelações a fazer do que o outro. Duas horas depois perceberam se completar. Já haviam alinhavado um plano geral de ação a ser compartilhado e discutido com os membros da Infinito quando subiram para um banho, juntos. Trocaram juras, tomaram café no quarto e prepararam tudo para a reunião com os amigos pródigos.

Às 9h45, começaram a chegar. O abraço mais caloroso veio de Rachel, clara era sua preocupação pela saúde do amigo. Max foi, como sempre, o mais expansivo, o abraço de urso dos tempos de faculdade, igualmente preocupado. Wagner e Marco mostraram estar ainda

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ressabiados enquanto Cris lhe deu uma bronca por não tê-la procurado quando o problema começou. Assentados na sala de guerra, cafés servidos, Marco pediu a palavra.- Queria deixar claras algumas coisas. Não posso falar pelos outros, mas o meu retorno não significa um perdão, representa o resultado de uma ponderação entre as opções. Todos queremos participar de um movimento, cujo objetivo é melhorar a vida de milhões de pessoas pelo mundo, salvar vidas e, segundo Cris, é verdade que Adrianna pode prover isso. Apesar das mentiras e ardis envolvidos na criação deste grupo chamado Infinito, meu objetivo, o nosso espero - olhou rapidamente para todos buscando cumplicidade - é retirar dele a gordura incluída para desestabilizar o grupo de Arthur Goldwill e trabalhar no restante. Se o resultado lhe gerar dinheiro e alavancar suas chances de continuar sua luta ótimo, mas não vou participar diretamente de uma incógnita. O cara é ruim, ok, sem dúvida. Daí a afetar o poder geopolítico do mundo existe uma grande diferença.- Entendo perfeitamente, aceito e agradeço. Não vou reclamar pela minha condição cardíaca ser o principal motivo da presença de vocês. Não queria que soubessem justamente para não se sentirem empurrados na direção contrária a de seus verdadeiros desejos. Porém, preciso de vocês e não vou negar o fato, mais como amigos do que como profissionais. Rogo apenas para terem certeza da decisão tomada. Tenho esperanças de sobreviver a este problema, por

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um milhão de razões preciso conseguir e vou lhes contar em seguida cada uma delas. Adrianna tem um plano para me curar e o tratamento começa hoje. Não precisam se expor se não quiserem, vou ficar profundamente feliz se apenas me aceitarem como amigo novamente — estava emocionado e tentava controlar as mudanças posturais associadas, não gostaria de provocar piedade ou algum sentimento semelhante.Vários falaram ao mesmo tempo em uma convergência de idéias em diversificados tons. Foi Max quem dominou a palavra finalmente.- Não. Viemos para ficar. Temos uma chance de promover algo bom e grandioso, deixar nossos nomes na história e resolvemos abraçar a oportunidade. Não foram poucas nem calmas as discussões para atingirmos um consenso, portanto pode ficar certo de nossa vontade. Mas não estamos deixando as preocupações de lado. Assim, por uma questão de segurança pessoal, não vamos nos envolver diretamente no confronto entre vocês. Queremos ficar por dentro dos fatos novos o tempo todo. Se mentir, esconder ou minimizar qualquer informação saímos e fazendo barulho.- Eu estou pessoalmente cuidando da segurança - Wagner tomou a palavra - redobramos todas as medidas nas empresas e em nossa vida privada, é um preço alto e vamos pagar. Colocamos sistemas de reconhecimento facial em todos os escritórios e fábricas. Se MJ ou Kerligan aparecerem o alarme toca.

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Bruno agradeceu novamente, jurou não esconder mais nada e tentou prepará-los para a próxima etapa. Para aliviar começou discorrendo sobre o tratamento a ser feito utilizando o Alpha11b passando em seguida para o anúncio de um casamento privado com Adrianna. Seria apenas para a família e os íntimos, praticamente secreto. Impediu que se levantassem para os parabéns anunciando uma novidade maior e melhor. Ao falar da nova vida no ventre de sua futura esposa não se conteve, os olhos lacrimejaram e, por um momento, foi como antigamente, uma alegria envolveu a todos. Até Marco o abraçava com carinho novamente.Após todos se acomodarem iniciou em tom sério a nova etapa da reunião. A partir dali só haveria notícias terrivelmente ruins. Preparou o espírito o quanto pôde e então passou a discorrer sobre os eventos dos últimos dias: a reunião com Kerligan e Olívia, a visita de Adrianna à Covet Winds, viagem no tempo, e o Armagedom a se aproximar. Diante de tantos choques, a reunião se perdeu. Quem mais se abalou foi Rachel e faltando menos de meia hora para as 14h precisaram interromper. Tempo se fazia necessário para absorverem os impactos. Um almoço na mansão, planejado para durar uma hora, se estendeu por mais de duas entre ligações de trabalho e passeios no jardim, onde Marco tentou acalmar sua namorada.Aproximadamente às 16h subiram para a sala de guerra decididos a só sair quando um plano estivesse delineado. A ordem do dia era "foco".

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Precisariam de dinheiro, de confirmar os dados apresentados até agora e de expertise em uma área complexa, a aeroespacial. Sem necessidade de brigar nos campos onde eram fracos foi decidida a venda da Yenioio, era a empresa mais cara e na qual possuíam menos chances de sucesso. A Alpes com seus tomógrafos e aparelhos de ressonância portáteis era promissora e estrategicamente sinérgica junto a Sun&Light e, portanto, ambas permaneceriam apesar do conhecimento de Adrianna não ser útil para garantir o seu sucesso. Marco cuidaria da venda da Yenioio, felizmente não faltavam compradores, e assumiria a representação da Alpes no fundo APMM, liberando Natan. Trabalharia para realizar o IPO no mais tardar no meio do ano seguinte. Os recursos da venda da Yenioio deveriam retornar ao fundo e ser dispo-nibilizados para investimentos nas atuais empresas. Marco trataria dos trâmites, dos anúncios e procedimentos legais associados. O IPO da Sun&Light deveria acontecer um mês antes ou um mês depois. Rachel e Cris teriam muito trabalho com suas próprias aberturas de capital e Max, cujas responsabilidades diminuíram bastante quando a BioTech se tornou pública, sendo o mais experiente do grupo depois de Bruno, apoiaria a todos os processos.Adrianna deveria dedicar seu tempo ao bebê, ao tratamento do noivo e à coordenação das pesquisas na Cellular Growth, Fênix e ADe. Sob protestos foi convencida mediante garantia de participação em todas as decisões envolvendo

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Kerligan. A Natan e Bruno caberiam as atividades de montar um grupo de profissionais de qualidade internacional para confirmar e discutir os dados existentes e os adicionais trazidos por Olívia. Alguém deu a idéia de criarem uma empresa particular de viagens turísticas ao espaço como fachada para justificar as contratações. Cris fez questão de adicionar às atividades do líder do grupo a compra de uma aliança de noivado. Foi o único momento minimamente descontraído da tarde. Apesar dos esforços e da tensão, intimamente uma crença os unia, a esperança de Kerligan ter dito a verdade, de estarem seguros e donos de um futuro. Foi Marco quem trouxe o assunto incômodo, estranhamente evitado por todos até aquele momento.- Adrianna, até onde eu sabia, a viagem no tempo era uma fantasia, as probabilidades eram bem maiores de ser impossível do que o contrário. Aparentemente as probabilidades estavam erradas, mas uma questão debatida hoje não perde a validade. Queria sua opinião.- Sobre?- O paradoxo do avô.- O quê?A pergunta de Cris foi repetida por outros. Foi seu próprio marido quem respondeu.- O paradoxo do avô discute questões relacionadas às conseqüências de se voltar no tempo. Um exemplo seria o caso de se matar o próprio avô antes do pai ter nascido. O que aconteceria então? Você deixaria de existir?

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Nada? - deu um suspiro incômodo antes de prosseguir. - O que Marco quer mesmo saber é se isso pode causar um rompimento no tecido do espaço tempo e acabar com este universo — o tom de voz misturava humor contido e resignação.Em meio ao silêncio, todos se viraram lentamente para Adrianna, cujo semblante acusava uma vontade clara de não estar ali para responder a pergunta.- Não sei, não foi um assunto que me interessou ao longo de meus estudos em Eiden. Claramente o Conselho dos Onze achava perigoso demais uma pessoa sequer estar aqui. As probabilidades não são boas.- Pelo seu conhecimento os cientistas de sua época consideravam a viagem no tempo possível? - Wagner questionou.- Possível sim, provável... Não.- Seja como for, o futuro não pode ser mais igual, Adrianna, Kerligan e MJ estão aqui há anos, provavelmente o paradoxo já foi quebrado, se o tecido espaço-tempo tiver que se romper em função de mudanças, está feito, não podemos voltar atrás, não temos a tecnologia para tal. Neste ponto só podemos recorrer à objetividade. Uma pedra gigante vai cair do céu e eu quero evitar isso, ponto. Alguém discorda?As palavras de Rachel tiveram o efeito de um martelo de juiz, um apito de final de um jogo empatado. Talvez pela sensatez ou mesmo por representar a primeira quebra de seu silêncio desde a manhã, elas preencheram o vazio na

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sala. Bruno sorriu para ela e alguns balançaram a cabeça em concordância enquanto outros denotavam, através de expressões corporais distintas, a clara tentativa de espantar as dúvidas. Decerto houve o fim da discussão e com ela a reunião também chegava ao seu desfecho.Enquanto se movimentavam para deixar a sala, quase todos de pé, em tom frugal Natan fez uma última pergunta.- Depois do almoço subi um pouco mais cedo e dei uma geral nos dados compilados até agora. Nos materiais de divulgação da Covet Winds aparece a tradução dos escritos Maias na rocha. É a mesma tradução feita em Aqua?- Não. A linguagem Maia nos era desconhecida, embora soubéssemos ter havido uma civilização na região correspondente. Em Aqua a área da América Central está quase totalmente submersa, dificultando em muito os estudos, e os escritos encontrados na maioria estavam deteriorados demais para permitir a sua utilização no aprendizado da língua.- Tem o texto da tradução aí? — Rachel perguntou. Natan balançou positivamente a cabeça.- Lê para a gente — Wagner solicitou. O amigo abriu o panfleto e leu em voz alta.- "Quando dois irmãos forem um só e os mundos se misturarem, um novo paraíso será formado. O fogo não encontrará a água e da magia nascerá uma nova vida para salvar o jardim".Max chegou a pensar em uma piada envolvendo o fogo como um meteoro e os tais dois irmãos,

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mas mesmo ele não possuía o ânimo necessário. Foi Cris quem fez a próxima pergunta.- Significa algo para vocês? — se referia aos anfitriões. Diante da expressão negativa quase perguntou se achavam que o fogo significava o meteoro, porém estava cansada demais e não acreditava em profecias.Eram 20h11 e todos estavam exaustos. Ao fechar a porta para o último convidado Adrianna acomodou o noivo para a primeira da série de trinta injeções do Alpha11b. Murmurou uma prece ao aplicar o medicamento sem saber se o fazia corretamente, nunca rezara antes. Se havia uma boa hora para começar, não tinha dúvidas, aquela era a melhor candidata até então.

35. Ovelhas e lobos

Olívia foi ao encontro de Bruno na data combinada e desta vez não foi revistada na entrada do hangar, os seguranças de prontidão nem mesmo solicitaram seu celular. Limitaram-se a sorrir e a tratá-la com distinção, conduzindo-a à aeronave. Ao entrar no avião se deparou não apenas com seu dono e seu sorriso receptivo, mas também com Adrianna, algo esperado, e um estranho. E aquilo estava fora do acordo. Cumprimentou rapidamente os dois primeiros e iniciou a conversação.- Quem é ele?- É meu sócio e melhor amigo, Dr. Natanael Arantes.

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Natan estendeu a mão para um aperto. Oiívia hesitou por um momento sendo vencida pelo senso de educação. Não bastasse a quebra do acordo os olhos negros e penetrantes do homem a incomodavam.- É um prazer ele disse - seu inglês havia melhorado substancialmente nos últimos meses, se não estava perfeito estava bem próximo disto.- Pensei termos deixado clara a necessidade de sigilo? — voltou-se para Bruno.- Ora, você não esperava que eu avaliasse sozinho informações sobre bombas, foguetes espaciais e meteoros?- Claro que não. Imaginava uma equipe de especialistas tentando resolver um quebra-cabeças sem necessariamente saber os detalhes. Cenários hipotéticos - todos se sentaram enquanto falavam.- Exatamente. E para isso precisaremos de gente coordenando o trabalho e estas pessoas precisam saber. Todas estão neste avião - Adrianna mentia conforme o combinado com os membros do Infinito.- Natan é meu amigo desde o colégio, são trinta e dois anos de amizade, é alguém a quem confiaria minha vida, além do mais soube de tudo desde o início e eu preciso dele. Adrianna tem um conjunto de pesquisas para coordenar em nossos laboratórios, deve ter lido sobre nossos avanços, e só é possível graças à genialidade dela e à memória de Aqua - não divulgaria a gravidez enquanto fosse possível disfarçar.

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Com relutância ela concordou e passaram ao objetivo da reunião. Explicou sobre as restrições de cópia no tablet PC e passaram a examinar os dados e diagramas. Fez uma explanação geral sobre o problema. Estranhamente haviam detectado até agora um grande meteoro em rota para a Terra. Segundo ela, considerando as informações sobre o evento correspondente na história de Aqua, a hipótese mais provável é ter se despedaçado próximo à atmosfera em milhares de pedaços depois de ser atingido por mísseis em uma tentativa malsucedida de destruí-lo. Daí no futuro os registros geológicos indicarem vários impactos. Simulações e diagramas auxiliavam a apresentação. Foi mencionada a idéia de uma TV de tela plana, onde pudessem conectar o tablet e ter uma visão melhor dos diagramas. O asteroide possuía estimados cem quilômetros de diâmetro. Para efeito de comparação o responsável pela extinção dos dinossauros contava com algo em torno de doze quilômetros. Se atingisse diretamente a superfície liberaria a energia equivalente a 10 bilhões de bombas de Hiroshima. Claramente, mesmo sem a influência de Kerligan, a humanidade tinha feito um bom trabalho em diminuir substancialmente o estrago ou nenhuma vida teria se perpetuado para formar um novo planeta.O plano nas mãos de Olívia teria sido desenvolvido ainda em Eiden por Kerligan e outros cientistas do seu grupo. Na verdade foram vários, para cada cenário um projeto. Não sabiam

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o grau de desenvolvimento preciso da civilização quando o meteoro foi percebido nem quanto tempo tiveram depois disso. Considerando o estágio atual, foi feita uma filtragem. O mais provável seria os Estados Unidos, onde ocorreria o ponto de impacto caso nada fosse feito a res-peito, terem lançado mísseis por meio de uma força conjunta entre países. Um projétil traçaria a partir dali a menor distância, portanto significaria o ponto de lançamento ideal. A tecnologia de hoje, sem o projeto Gênesis, sugeria um ataque frontal, cuja força teria sido insuficiente resultando em milhares de asteróides em um grau de dispersão impossível de rastrear e pulverizar a tempo. O Gênesis não previa um ataque frontal.Bruno notava com incômodo o entusiasmo de Olívia, assim como a quantidade de vezes nas quais se expressou em termos de "nós" e "nosso", deixando implícita a sensação de fazer parte daquilo. Não era mais a mensageira, se algo estivesse errado estaria cega para o fato e incapaz de reagir. Aparentemente a perdera como aliada. Imerso nesses pensamentos, notou os olhos do amigo grudados não na tela, acompanhando a apresentação, e sim na apresentadora. Não parecia um flerte, até por não haver espaço algum para tal. Contudo, seu jeito sugeria no mínimo estar impressionado, algo raro de se ver nos últimos tempos.— Um ataque lateral, afastando os fragmentos ou pelo menos parte deles? - Adrianna inferiu, interrompendo Olívia.

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— A 32° para ser mais exata — um vídeo foi acessado e mostrava em simulação o impacto no espaço e, como conseqüência, a Terra permanecia a salvo. — Este é apenas um de uma lista de dezenas de simulações, elas variam de acordo com o ângulo previsto de descida do asteroide e posição da Terra no momento do impacto.— Mas ele já não foi detectado? Uma data e hora de impacto foram previstas, então o ângulo pode ser garantido assim como a posição do planeta, não? - Bruno questionou.— Ainda está muito longe, os equipamentos disponíveis possuem erros de precisão e a esta distância a projeção da trajetória amplia o erro a cada quilômetro. Na verdade, existem cenários em que não somos atingidos. Não fosse o conhecimento histórico de Kerligan, MJ e agora de Adrianna, ninguém prestaria atenção ao caso até daqui a um ou dois anos.— Entendo - Adrianna concordava anotando mentalmente a hipótese de aquele nem ser o meteoro que realmente os atingiria. Porém, não teve tempo de expressar seu pensamento, Natan foi mais rápido.— Pode nem ser este o Asteróide que vai atingir a Terra!— Sim, por isso continuamos a vigília nos observatórios. Mas esse não é o ponto mais importante. A questão é, seja qual for a hipótese, em todos os cenários em que somos atingidos as simulações mostram sucesso em destruir este gigante de pedra e, efetivamente, apenas a

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tecnologia Gênesis permitirá tal resultado - respirou fundo e continuou, voltando-se para Bruno. - Não existe falha, não precisa mais se preocupar.-Temos um ditado no Brasil... Se corre como um leão, ruge como um leão e parece um leão... Então, fuja — disse Bruno.— Parecia um leão. Agora estou apresentando outra realidade, ele é o domador do leão, deixou o leão fazer coisas erradas. Portanto errou, mas aprendeu com isso e está mantendo sua palavra.— Não sei se o Dr. Manuel Álvares concordaria com seu ponto de vista — Adrianna pontuou sarcástica.— Quem sabe não está treinando o leão para atacar quando houver mais gente por perto? Talvez esteja ensinando a fera a ficar mais inteligente — Natan se arrependeu assim que as palavras voaram para fora da boca.Olívia se virou para ele, teve vontade de responder àquele estranho. Com certo esforço conseguiu conter a raiva, percebia a inutilidade do argumento diante daquela platéia. Respirou fundo, maneou a cabeça negando talvez os próprios pensamentos e se assentou na poltrona relaxando o corpo.— Continue me dando um voto de confiança, não sou uma idiota. Avaliei tudo cuidadosamente. Não pode imaginar como gostaria que todos estivéssemos juntos nesta empreitada — olhava com sinceridade para Bruno — mas entendo Arthur, é orgulhoso, centralizador e profundamente comprometido com isto —

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apontava para o tablet — o chama de "seu destino". Coloquei meu casamento no fio da navalha e até agora não encontrei absolutamente nenhuma contradição, nenhum erro, nada sequer suspeito.— Ele pode usar quantas desculpas quiser e vão continuar sendo apenas isto, desculpas - Bruno argumentou. - Digamos que sim, por hipótese, esteja sendo honesto, partamos daí. Quem mais no planeta estaria disposto a usar toda a fortuna para apoiar o projeto Gênesis, se necessário? Quem teria o dinheiro e a dimensão da importância de seus resultados? Outros podem acreditar em cenários contraditórios concebidos pelas Nações Unidas em que a Terra não é atingida, talvez tenha sido esse o problema na primeira vez. Ninguém tem as informações vindas diretamente da fonte como nós. Vai contar para alguém ter vindo do futuro? Caso acreditem não estaria instalado o pânico? Se abrir a boca os governos vão calá-lo. Quem mais vai ajudar quando houver divergências de pensamento entre ele e o governo? Até onde sei, ele já conversou com o presidente dos Estados Unidos e com o primeiro ministro da Inglaterra. E seria impossível construir bases de lançamento de mísseis com ogivas nucleares do tamanho necessário sem o apoio deles.— Kerligan conhece minha capacidade - Adrianna interveio - sabe onde e como posso ajudar. Precisarão de planos de contingência, construção de abrigos subterrâneos, armazenamento de remédios, desenvolvimento de planos de

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atendimento de emergência, não vai faltar trabalho. Eu estou trazendo para esta Era a cura para o câncer e uma série de outras enfermidades, criando uma versão do Alpha11 para tornar a todos mais resistentes a infecções e doenças. Imagine o quanto posso ajudar criando soros e vacinas em caráter emergencial caso o pior aconteça e estiver envolvida. Ele sabe disto — encarava a outra mulher em um esforço para transmitir o máximo de sinceridade.— As justificativas de Kerligan me lembraram da fábula do lobo e da ovelha. Conhece? — ela sinalizou negativamente, embora o modo com o qual comprimisse os lábios denotava a contrariedade em ser obrigada a ouvir mais. - Embora não lembre as palavras exatas o sentido será o mesmo. Uma ovelha bebia água em um riacho quando, acima de um pequeno morro, um lobo a avistou. Ele se dirigiu a ela e falou: "você está sujando a água do rio que eu bebo, por isso vou ter de matá-la. Não é nada pessoal, mas se eu deixar isso acontecer todas as ovelhas vão fazer o mesmo e eu nunca mais terei água limpa". A ovelha retrucou: "mas seu lobo, eu sou a única ovelha por aqui assim ninguém vai me copiar. Além disso, o rio corre de sua casa para este ponto, de modo que nunca a água que sujo poderá chegar ao senhor". Sem argumento, o lobo não desanimou: "tenho certeza de que sua família e seus ancestrais já sujaram meu rio e, como eles não estão aqui, vou me vingar comendo você". "Mas seu lobo", a Ovelha disse, "meus avós são de planícies bem distantes

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daqui, nunca estiveram nesta região e meus pais moram para lá daquele morro, seguindo o rio para bem longe deste ponto. Nenhum deles jamais esteve por aqui, pois nós acabamos de nos mudar". Após pensar mais um pouco a fera pulou sobre a ovelha e a devorou - a expressão de Bruno deixava claro ter chegado ao final da história.— Está perfeitamente cristalina a sua desconfiança, ele é um predador com um objetivo e tudo o mais é cortina de fumaça, é desnecessário recorrer a analogias - ela respondeu, estava emocionalmente exausta.— Confesse que também tem dúvidas, podem estar enterradas sob o seu amor por ele, mas estão lá — embora lhe desse alguns segundos ela não se pronunciou. — Deram-lhe tudo pronto, não foi?— Tenho todas as senhas e acesso irrestrito.— Mesmo assim recebeu tudo pronto, não foi? — a contragosto ela balançou a cabeça. — Se ele lhe deu as senhas, qual o problema em obter as informações você mesma sem receber tudo mastigado? É só isso o que peço, faça sua própria investigação, sem hora marcada, sem aviso. Apenas pesquise. Mate de uma vez a semente de dúvida enterrada em seu peito.Secretamente, tinha esperança de Bruno aceitar as informações e se tranqüilizar, ajudando-a a enterrar de vez suas desconfianças antes de perder o homem de seus sonhos. Infelizmente ele tinha este poder, o de definir suas opiniões com uma lógica poderosa, difícil de refutar. Entre

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pensamentos, vislumbrou algo diferente em Adrianna. Embora só a tivesse visto uma vez, algo parecia fora do lugar. Natan se inseriu na conversa deslocando sua atenção.— Verifique os outros cenários.— Como?— Você disse que ele trouxe vários planos para vários cenários. Como ele trouxe? Em um computador de bolso?— Não, em um caderno, tinha medo de a passagem corromper os dados.— Então peça para ver o livro, verifique esses planos e cenários...— Ela não vai entender, nossa língua é diferente — Adrianna acrescentou.— Então peça para digitalizar. Traga para vermos no seu tablet - Natan retomou — não representaria uma traição, é um pedido razoável vindo de nós. Ele abriu a possibilidade de novos pedidos.Internamente relutava, sendo vencida por sua própria lógica. Foi combinado o retorno com a informação em mais uma semana, na mesma hora e local. Ao sair, cumprimentou a todos o quão rápido foi possível. Se tinha dúvidas sobre o próprio marido também não podia abrir tanto a guarda frente àquele grupo. Reteve-se apenas por um momento a mais tentando entender sua própria impressão sobre Adrianna, definitivamente algo estava diferente. Já na porta da aeronave, cujas rodas não deixaram o solo durante a reunião, ela se lembrou de um último comentário.

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— Os Estados Unidos ainda estão rodando suas próprias simulações, assim como a Inglaterra. Quando finalmente chegarem à conclusão inevitável de estarmos certos a vigilância vai se ampliar e os riscos para mim crescerão na mesma magnitude. Até agora não assinei nenhum documento do governo, quando o fizer posso ser acusada de traição. Portanto, apague a gravação após anotar o necessário — mirava Natan, o resto do grupo parecia espantado tro-cando olhares entre os dois - e não tentem me enganar novamente ou podem me esquecer — e se foi.Os olhares de Natan eram na realidade uma distração, uma forma de deixá-la incomodada, assim talvez não percebesse o smart phone ligado gravando suas palavras, explicou aos amigos.O telefone tocava incessantemente enquanto o outro lado o ignorava, ou pelo menos relutava em atender. Seis toques foram necessários para uma voz ser ouvida em um tom claramente incomodado, raivoso até.— Que tom é este, nem parece que sentiu minha falta.Pela resposta o outro lado não aceitou bem a brincadeira, exatamente como esperava. Quanto mais irritado mais fácil obter informações, com sorte seriam cuspidas junto com a raiva.— Nem perca seu tempo, está cansado de saber da falta de alternativas para o seu caso. Ou vai preferir que entregue nossas gravações para Arthur e Olívia? Posso até levar uma bronca, mas

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você... Tse, tse, tse... - desdenhava. - Devia estar satisfeito, lhe dei um bom tempo de férias, não foi? Agora é hora de voltar ao trabalho, afinal já recebeu o pagamento.Insultos voaram pela linha telefônica e foram prontamente ignorados. Marvolo dava tempo para a raiva crescer em seu informante. Não fora aquele o trato, ele mentira nisto e naquilo, bradava o outro lado. A reação só tornava as coisas mais deliciosas. Quanta ingenuidade, ele pensou.— É muito simples, quero saber de tudo agora - mais questionamentos foram levantados pelo raivoso interlocutor. — Este celular é impossível de rastrear. Foi entregue hoje e quando acabarmos pode jogar fora. Outro vai cair em suas mãos de alguma forma em mais alguns dias. E aviso, se tentar me enganar, mentir de alguma forma, vou saber.Ouviu o suspiro e aguardou a informação começar a fluir pincelada de relutância. Era clara a tentativa de minimizar o impacto de cada evento ou ação relatada. Pressionou um pouco mais, blefou ao mencionar a certeza de ele estar escondendo algo, mas no fundo acreditava, afinal não havia mesmo muito a ser feito pelos inimigos. Na outra ponta as mesmas desculpas dos últimos meses: estão todos relativamente afastados, só cuidando das empresas. Ao desligar fez um balanço satisfatório, embora estivesse mais feliz se pudesse manter o mesmo nível de vigilância de seis meses atrás, de forma a confirmar pelo menos parcialmente os dados

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recebidos. Infelizmente não era estratégico desafiar Kerligan agora e usar outros detetives era arriscado demais. Jogou o aparelho fora e programou mentalmente a data da próxima ligação.Eram quase 2h e ela permanecia acordada rolando de um lado para o outro. Se boa parte do motivo era a ausência do marido em sua cama, inspecionando pessoalmente a Strike Force Industries nos Estados Unidos, as palavras de Bruno ressoando em sua mente eram as verdadeiras culpadas. Assumindo a noite perdida se levantou, colocou um penhoar de seda e seguiu pelos corredores da mansão. Agradeceu pela decisão de instalarem o escritório particular ou sala privativa, como Arthur gosta de chamar, próximo ao quarto. Detestaria atravessar os corredores da mansão àquela hora. Digitou a senha e o sinal vermelho piscou. Ele mudara a senha? Não, ela ainda estava parcialmente adormecida, tinha usado o código da porta principal da casa. Tentou novamente e desta vez o sinal verde a agraciou. Considerou isso o primeiro bom sinal, as portas estavam, conforme prometido, abertas para ela. E obviamente estava sendo idiota e ingrata em sequer pensar algo diferente. Mesmo assim adentrou a sala. Estivera ali poucas vezes, evitando aquelas quando MJ acompanhava o trabalho. Detestava o homem cada vez mais. O quarto representava uma pequena fortaleza, paredes e porta de aço forradas respectivamente de tijolos e madeira do lado de fora para não chamar a atenção, sistema

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de monitoramento de segurança na tela de 40 polegadas ao lado da porta, reserva de oxigênio, energia e ar-condicionado independentes em caso de pane e alarme ligado diretamente à empresa de segurança. Além de local de trabalho era um refúgio seguro em caso de invasão. Possuía três mesas, uma para seu usuário principal onde um terminal permitia acessar não apenas o servidor no local como também se conectava diretamente ao sistema da Revolutions Power e da Power Innovations. A estação local era especializada em cálculos científicos, o terminal usava três telas de 20 polegadas e era capaz de transferir a imagem para uma TV de 50 polegadas no seu lado esquerdo, na parede oposta à porta. As outras duas mesas ocupavam o outro lado da sala em posição perpendicular com a principal, uma de frente para a outra.Após sentar-se na mesa de Arthur e ligar toda a parafernália teve a primeira surpresa, além da senha o programa solicitava uma verificação biométrica. Como nunca havia usado aquele computador não representaria surpresa se sua impressão digital não fosse válida, afinal o normal seria usar os computadores da Revolutions Power, fosse este o caso não deveria necessariamente motivar sua desconfiança. Ao passar tranqüilamente também por esta etapa imaginou o quanto o marido se preocupara em liberar absolutamente todos os caminhos, garantindo seu acesso independentemente da porta pela qual entrasse. Sobrepujada pela vergonha suas dúvidas encolhiam a cada minuto

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quase a fazendo desistir no meio do caminho. Porém, alerta como estava não dormiria mais, era melhor ir até o fim e matar a maldita sombra de dúvida de uma vez por todas.

Ela estava de costas ajoelhada na cama, dorso ereto, enquanto ele também de joelhos a penetrava por trás tentando infligir o máximo de dor a cada estocada, vibrando com seus gemidos, misto de prazer e agonia. Em uma alteração rápida prendeu o corpo dela usando o braço esquerdo e alcançou seu pescoço com a mão direita. A cada movimento cadenciado pressionava mais, amplificando o sufocamento. Em determinado ponto a prostituta se desesperou. Em uma luta inútil contra sua superioridade usava todas as forças para se libertar. Milton Jacobs se extasiava com a sensação inebriante de poder experimentada naqueles momentos, segurando um pouco mais até atingir o limite. Quase a ponto de deixá-la inconsciente, soltou a mão direita mantendo-a trancada em seu abraço enquanto explodia em gozo. Ao terminar ela arfava e tossia, lágrimas impossíveis de conter escorrendo sobre a face. Derrotada, de quatro sobre os lençóis, recuperava lentamente a consciência de si mesma. Ele apreciava a cena sorrindo de satisfação, imaginando se aquela voltaria para uma nova rodada na próxima vez. Na verdade não tinha dúvidas, as marcas vermelhas do chicote em suas ancas durante as preliminares deixavam claro o poder do dinheiro sobre a linda

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mulher. Tal como tantas outras em cada cidade ela voltaria, afinal recebiam em uma noite mais do que faziam em um mês. Uma fortuna do ponto de vista das caríssimas acompanhantes de luxo, uma gota-d'água no oceano para ele, um prazer raro do qual não imaginava se distanciar. Além disso, "acidentes" não aconteciam mais, era coisa do passado distante, de quando ainda não conhecia sua força frente à fragilidade feminina. Logo ao chegar não possuía dinheiro para as mais caras, foi melhor assim. Mulheres de outro círculo, ou melhor, de círculo nenhum, perdidas nas ruas em busca da sobrevivência. Loiras esculturais como Lídia jamais tomariam conhecimento sobre vadias desaparecidas, cujos parcos prazeres na vida envolveram ter feito sexo com ele e com quem nem a polícia se importava. Mesmo naqueles tempos soube cobrir seus rastros.Estava remetido àqueles pensamentos em períodos passados ao ser despertado pelo toque atípico no smart phone na cabeceira. Mandou a moça aguardar e saiu levando o aparelho nas mãos. Na sala serviu-se de uísque enquanto pensava. O aplicativo indicava a presença de alguém no sistema "Gênesis K", cujo acesso só era possível pelo terminal na casa de Arthur e para o qual apenas ele, o próprio Kerligan e Olívia, esta apenas recentemente, tinham acesso. Não havia dúvida de tratar-se da esposa de seu "amigo". Ele se transformava quando o assunto era ela, o imbecil apaixonado estava colocando tudo em risco. Implorara para não lhe

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dar acesso, inventaria algo caso necessário, mas ele insistira na estratégia de ganhar sua confiança, "esconder em plena vista" ele disse. Antes dela seu líder jamais correria tal risco, nada seria deixado ao acaso. Imaginava ter realizado algum tipo de alteração nos arquivos para se proteger, algo sutil, porém nunca tivera chance de checar e achou melhor não questionar. Felizmente o aplicativo detector de atividade no "Gênesis K" havia sido projetado e implantado muito antes, quando da criação do sistema. Dadas às circunstâncias cabia a ele uma atitude. Seria necessário matá-la, era o único jeito, um acidente aleatório e sem vestígios, não rastreável. Só precisava da oportunidade ideal. E uma vez terminado esse assunto o informante também deveria sumir do mapa, representava uma prova de não estar cumprindo a palavra empenhada ao chefe.

Olívia gastou quase meia hora para decifrar a lógica do sistema de arquivos. Partindo de uma pasta designada "problema" conseguiu navegar até o nível "simulações", onde encontrou um subdiretório para cada possível cenário hipotético. Nele era possível encontrar um relatório detalhado sobre a simulação e um vídeo de animação computadorizado construído com base nele. As imagens eram impressionantemente realistas a ponto de ela não poder evitar o impulso de assistir a cada um dos 23 arquivos.

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Segundo havia entendido da leitura rápida de alguns relatórios, aquelas eram as finalistas de centenas de aproximações variando o ângulo da descida, posição da Terra, capacidade destrutiva dos mísseis, quantidade de mísseis e ângulo de impacto. As outras foram descartadas por resultarem em aniquilação extremamente superior ou inferior aos parâmetros sugeridos. Estes representavam a realidade de Aqua segundo informações fornecidas por Arthur e MJ. De acordo com o texto repetido na introdução de cada relatório, o descarte dessas suposições precisou ser manual por não terem trazido um mapa detalhado em sua jornada. Os 23 cenários coincidiam com os estudos realizados em Eiden. Contudo, em apenas um a calota polar norte era completamente derretida com efeitos permanentes graças ao deslocamento do eixo da Terra. Estava impressionada, através de um método de engenharia reversa, seu amado havia encontrado o correto ângulo de impacto e a posição correspondente do planeta.As imagens eram chocantes, o asteroide atingido despedaçando-se em milhares de partes suficientemente grandes para destruir a maior parte da superfície. O hemisfério norte sofria mais, os pontos vermelhos sinalizavam a colisão com o solo e se espalhavam como sangue sobre um corpo cravejado de balas. Na seqüência o nível da água subia tomando rapidamente o litoral e se estendendo a ponto de afogar completamente toda a metade superior da tela. América do Norte e Central, Europa e Rússia

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simplesmente sumiam do mapa, nem ilhas despontavam. A Ásia sofria impactos dispersos, suficientes para fragmentá-la em dezenas de ilhas de dimensões semelhantes às da Jamaica, com exceção apenas da China, transformada em algo próximo a duas vezes o Japão atual. Apenas a América do Sul e África se sustentavam, embora parcialmente tomadas pela água em todo o perímetro e significativamente marcadas pelos terríveis pontos vermelhos. Por um efeito em cascata pouco depois dos primeiros choques sobre o globo a geleira no polo sul diminuía elevando ainda mais os mares, levando ao completo desaparecimento do Japão e deixando apenas parte da Austrália viva na Oceania. Repetia automaticamente o filme, duas, três, quatro vezes, até parar de contar. Sem se dar conta, enfurnada na sala cofre, o dia estava amanhecendo. Deu-se conta da hora apenas às sete e pouco da manhã graças ao relógio na tela do computador. Anotou mentalmente o número da simulação, 19, e saiu deixando tudo ligado, não iria para a empresa naquela manhã. Ao finalizar um banho rápido tomaria café e ligaria avisando.Passou boa parte da manhã tentando, sem sucesso, imprimir ou salvar os arquivos da simulação. Para impressão foi necessária uma senha e a sua não servia. Nem se incomodou em ligar para Arthur, pois o acordo não incluía levar material nenhum sobre o Gênesis para outros lugares. Já ia ligar pedindo apoio ao Dr. Pinot quando conectou os pontos, ele não sabia da

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existência daqueles estudos, nem podia, ninguém devia saber a verdade sobre a origem das informações. Por isso ele carregou várias simulações no tablet PC, não conhecia sobre a simulação do problema de número 19. A tarefa era só dela e, dada a certeza em sua mente de nada estar fora do lugar e a importância de sigilo, não cabia solicitar o envio daqueles arquivos para outra mídia. Como última e fútil tentativa pressionou em conjunto as teclas Shift e PrtScr antes de se dar por vencida. Conforme esperado a tela não foi capturada ou impressa e assim se esgotavam seus conhecimentos de informática. Dispondo ainda de algum tempo antes do almoço e dos compromissos inadiáveis da tarde, passou a anotar todos os dados que pôde. Confiava na capacidade de Bruno e Adrianna em conseguir, ao utilizarem aquelas informações, construir um simulador onde os resultados vistos por ela pudessem ser validados afastando de uma vez por todas as desconfianças e libertando-a moralmente do compromisso de atuar como ponte. Talvez até representasse um novo começo, a possibilidade de aproximação para todos, algo desejado há muito por ela. Quando seu marido retornasse à noite faria a ele um último pedido relativo ao caso e, caso aceitasse, faria naquela sexta-feira a última reunião sobre o assunto.

Arthur Goldwill desceu as escadas do avião particular em passo acelerado como era seu estilo e cuidou de apressar os trâmites da

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alfândega abusando de sua influência. Se algo lhe faltava era o poder político, a possibilidade de pular aquelas etapas mundanas da burocracia. "Não falta muito", ele repetia mentalmente. Em tempo recorde entrava na limusine surpreendendo-se ao sentar, Olívia o esperava no canto oposto, divina em um vestido jovial azul-escuro, ombros nus e cabelos soltos, lindas jóias reluzindo ofuscadas por seu sorriso.- Pensei em fazer uma surpresa.- Certamente estou surpreso - respondeu relutante.- Tenho muito a falar, mas por hora... - aproximou-se dele tomando seu beijo de assalto, intensa e apaixonada. Ao se afastar percebeu os olhos dele ainda cerrados. — Estava com saudades.- Eu também - disse arrebatando-a em um abraço e beijo entorpecedores, disposto a não deixá-la escapar, nunca.Os lençóis foram testemunha do seu incansável amor naquela noite, em sua entrega sentiu-se feliz e completa, tranqüila quanto aos valores e decisões de seu amado. Juras de amor foram costuradas nos intervalos de sua paixão. Quase à meia-noite um lanche leve foi levado à mesa no quarto. Durante o arremedo de jantar ele tocou no assunto meticulosamente evitado até então.- Estou livre da guilhotina? É por isso que estou sendo tão bem tratado?Ela baixou os olhos levemente envergonhada, suspirou e reassumiu sua força sustentando o olhar com um sorriso contido. Revelou sua

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expedição ao escritório particular e as descobertas realizadas. Traduziu da melhor forma possível as emoções experimentadas assegurando-se de incluir os sentimentos de admiração por seu trabalho. Discorreu sobre a incapacidade de imaginar a dificuldade e sofrimento dele ao se debruçar por anos e anos sobre as imagens de destruição e o quanto isso ampliava ainda mais seu valor. Ele se mostrava feliz e aliviado por finalmente recebê-la de volta. Por isso mesmo relutou antes de mencionar o pedido especial.- O que foi? Tem algo mais? Fale, vamos matar de uma vez por todas esse assunto.- E que eu gostaria de finalizar estes encontros com Bruno e para tal me sinto moralmente obrigada a dar-lhes algo conclusivo, para deixá-los tão confiantes quanto eu estou. Entenda, eles não viram o que eu vi e reconheço os perigos de transferir os arquivos para um computador móvel — ele assentia curioso. — Eles me fizeram um pedido complicado. Porém, se você confiar em mim, é algo que pode representar para eles a mesma certeza, a mesma paz que estou sentindo.- O que é?- O caderno de notas trazido de Eiden por você e MJ onde anotou os estudos feitos por sua equipe lá, de onde se originou o projeto Gênesis — a expressão pensativa nele era neutra, impossível de traduzir. Nos segundos seguintes teve medo de ter destruído aquele momento de retomada da felicidade.

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- Tudo bem - finalmente respondeu. - Mas eles não podem ficar com ele nem copiá-lo.- Claro que não! Vou levar comigo e deixar que leiam apenas, quero dizer, que Adrianna leia. Imagino que deve estar em...- Unimorn — ele completou.- Isso, a língua falada em Eiden.- Em Aqua na realidade, só existe uma.- Só uma?- Após todo o sofrimento e da dificuldade em sobreviver vários dialetos surgiram, um em. cada planície, em cada montanha, em cada foco de vida. Quando perceberam que não estavam sozinhos os povos formados se mesclaram, era necessário para perpetuarem. Em um grupo quase não havia homens, em outro as mulheres eram escassas, em outro só sobreviveram as crianças mais velhas e assim por diante. Encontravam-se e formavam grupos maiores, lutando em conjunto contra a natureza. Religião, cor, raça e língua eram apenas barreiras a serem transpostas e se representassem problema eram naturalmente eliminadas. A certeza da necessidade de se ajudarem uns aos outros era o conector universal entre todos. Quando as pequenas sociedades se criaram apenas uma lei se manteve, nada devia distanciar os homens. Um grande respeito e tolerância às crenças de cada grupo prevaleceram, mas foram mixadas, remodeladas e poucas diferenças permaneceram no futuro. As raças se miscigenaram tanto que as diferenças hoje são mínimas, imperceptíveis a olho nu. E a língua foi se transformando junto, se

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atualizando, conforme os grupos se misturavam. Ao longo do tempo três dialetos passaram a coexistir, um para cada país. Quinhentos anos atrás uma língua universal foi proposta e aceita.Estava impressionada, contaminada pela sugestão das dificuldades enfrentadas pelos homens frente a tal adversidade. Amou-o ainda mais.- Te entrego na quinta, está bem? - ele continuou. - Preciso pegar pessoalmente no cofre da Revolutions Power, porque a fechadura usa um sensor biométrico. E amanhã não será possível, pois viajo para o Brasil. Só retorno na quinta.- Perfeito. Exceto pelo fato de ainda não ter matado completamente minha saudade - o arrastou para a cama, plena de alegria e disposta a recompensá-lo regiamente.

36. Desilusão

Considerando as severas críticas de Adrianna quanto à falta de hospitalidade na reunião anterior, desta vez um brunch seria oferecido. Torta de frango e camarão estariam à disposição no avião acompanhados de mini-sanduíches de patê de foie gras ou queijo. Tudo seria servido por eles mesmos evitando interferências e pausas. Estava decidido ser aquele o último encontro no avião, um lugar com maiores recursos seria necessário e menos suspeito. Bruno sugeriria seu escritório e uma história sobre interesse em seu fundo de investimentos poderia ser vazada caso a imprensa viesse a tomar conhecimento. Uma

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TV de 40 polegadas fora colocada de modo improvisado no corredor sobre um móvel de dimensões mínimas. Se necessário poderiam ligar o tablet a ela para melhor visualização de imagens e simulações. Natan não se conteve e ridicularizou a situação, não podia pensar em uma imagem em que o jeitinho brasileiro fosse mais patente. Apesar da crítica, Bruno ficou feliz. Se apareciam motivos suficientes para brincar podiam ter esperança.Pela primeira vez, Olívia se atrasou chegando quase às 12h, faltando dezesseis minutos para ser exato. Ao avistá-la, Natan se sentiu incomodado, no ombro apenas a bolsa, pequena demais para conter o tablet PC, nas mãos apenas uma agenda. Após os cumprimentos de praxe se desculpou e fez um comentário elogiando a disponibilidade de um lanche, previa ter fome em breve. Belíssima em um sobretudo de couro preto, revelou-se ainda mais reluzente ao deixá-lo de lado exibindo o tailleur cinza-escuro e a camisa clara de tecido, na qual fios de ouro dançavam em volta de listras azuis, perfeita combinação para seus cabelos loiros presos em um coque. Dois botões abertos valorizavam o colar de pérolas preenchendo harmoniosamente o quadro. Os óculos escuros também retirados na entrada eram apenas o toque final em uma figura de puro requinte. Apesar da imagem o que chamou a atenção de todos foi o bom humor revelado em um sorriso suave e constante.- Está de bom humor — Adrianna comentou retribuindo a simpatia.

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- Excelente. Este será nosso último encontro, pelo menos para tratarmos deste assunto - disparou incisiva após sentar-se, tentando dar ênfase ao fato e percebendo pelos olhares trocados ter atingido o objetivo. Sentia-se feliz e disposta a manter aquele estado finalizando o mais rápido possível a reunião e assim dissipando de uma vez por todas a nuvem negra entre ela e o homem de sua vida.-Aconteceu algo? - Bruno inquiriu, tomando especial cuidado com o tom da voz, nem provocativo nem indulgente.- Aconteceu sim. Não existe mais absolutamente nenhuma dúvida em minha mente nem em meu coração da pureza de objetivos de Arthur, nem de sua capacidade em salvar nossa civilização. Portanto, não há motivos para manter uma situação tão incômoda tanto para mim quanto para ele.Temendo o rompante do resto de seu grupo, Bruno tomou a dianteira. Precisava entender a questão primeiro e só depois avaliar as opções de cursos de ação.- Certo. Então nos conte tudo e, quem sabe, talvez fiquemos tão seguros quanto você - ele sorriu encenando compreensão, duvidando seriamente de seu talento naquela performance específica. Detestava ser pego de surpresa.Olívia detalhou suas descobertas descrevendo cada etapa e suas conclusões, empolgando-se visivelmente ao comentar a estratégia de trabalho adotada por seu marido para encontrar o ângulo de descida mais provável do meteoro e

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a posição da Terra no momento. Explicou o motivo pelo qual trouxera tantas simulações na reunião anterior e durante uma pausa, quando o total silêncio imperou, ela buscou na bolsa um pequeno caderno de notas, quinze por dez centímetros talvez, onde anotara os dados exatos. Ditava a latitude e longitude do ponto de impacto previsto caso nenhuma ação fosse tomada, data, hora, minutos e segundos correspondentes, velocidade do elemento etc. Os três amigos processavam mentalmente as informações e suas ramificações, confusos sobre onde estaria o furo em tudo aquilo. Nenhuma interrupção ocorreu.— E isso é apenas parte do motivo pelo qual estou segura e confiante, o melhor ainda está por vir — disse enigmática. — Usem estes números, realizem suas próprias simulações e vão chegar ao mesmo resultado - passou para Bruno, sentado ao seu lado, o bloco inteiro. Ele recebeu sem manuseá-lo, ainda prestando grande atenção à convidada. - Antes, porém, se não se importarem, vou pegar uma torta daquelas.Fez menção de levantar sendo prontamente vencida por Natan. Ele se ofereceu para servi-la e indicou as opções. Apesar da escolha da torta de camarão ele incluiu no prato também dois sanduíches, um de cada tipo. Ela deu a primeira garfada na torta enquanto ele buscava um suco para acompanhar o lanche. Quando o odor inconfundível atingiu Adrianna ela não resistiu. Com a mão na boca levantou-se agitada, pediu licença e voou para o banheiro situado próximo à

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cabine do piloto. Ante a curiosidade e preocupação de Olívia, Natan se apressou em tentar uma distração.- Não foi a comida, ela ainda não provou - todos riram, mas não o suficiente para dissuadi-la de investir no assunto.- Algum problema? Ela está bem? Não seria melhor dar uma olhada? - Olívia questionou. Estava verdadeiramente preocupada com a situação da antiga rival.— Não é nada, ela já está voltando — Bruno respondeu.— Alarme falso, me desculpem — manteve-se em pé, distante do cheiro da torta, tentando dar pouca importância ao fato. — O que é o "melhor", ao qual se referiu? - perguntou em uma tentativa para, ao mesmo tempo, mudar de assunto e se esquecer do odor enjoativo.Olívia não respondeu, olhava intrigada para Adrianna, algo estava diferente e seu cérebro se agitava lutando para agarrar um pensamento escorregadio, estava ali, ao alcance, embora lhe fugisse. Talvez a escolha da roupa, bem folgada considerando as opções usuais da anfitriã.- Vai manter o suspense? — inquiriu Natan. Na seqüência tomou o caderninho de anotações das mãos do amigo.De súbito a expressão da convidada se iluminou, um sorriso largo tomava de assalto seu semblante em uma demonstração espontânea de alegria. Apenas nas mulheres tal naturalidade de sentimentos podia conviver harmoniosamente com a dureza do espírito agressivo dos negócios.

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Mesmo assim eram raros os casos em que os extremos eram exercidos com tanta primazia a ponto de serem ambos fontes de admiração no mesmo indivíduo.- Você está grávida! E isto, tem aquele brilho, estava tentando entender desde a última reunião e agora quando passou mal... Não está nem sentando perto do camarão, não é? É isto - virou-se para Bruno passando o prato ainda pela metade - tire isto daqui homem, que tipo de marido é você?Bruno e Natan pareciam desconcertados com a demonstração de humanidade e perspicácia, não estavam errados sobre ela, era uma pessoa "do bem", independentemente de seu amor por Kerligan. Ambos se completaram na missão de transportar para longe a causa do enjôo. Adrianna enrubesceu, nunca pareceu tão constrangida.- Desculpe-me por não ter comentado, não... — realmente não sabia o que dizer. — Não foi por você, me senti um pouco nua...- Não se importe por isso, parabéns. É para quando?- Fevereiro, as gestações duram cinco meses por causa do nosso metabolismo acelerado.- Fico feliz por vocês, de verdade - afirmou com sinceridade. Secretamente desejava filhos também, ela e Arthur tentavam, porém ainda não haviam sido premiados. Neste aspecto não existia conflito entre a executiva e a mulher, jamais cogitara abandonar a maternidade, tinha

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apenas aguardado pelo homem correto, pelo amor verdadeiro.- Acredito em você — ela respondeu — se quiser a de frango... Não tenho problemas com o cheiro do frango — as duas riram. Olívia acenou positivamente.- Se preferir não conto para Arthur, é algo pessoal, não me compete...- Já estamos lhe pedindo demais... Pode contar, todos vão ficar sabendo logo — puxou um pouco a camisa descobrindo a barriga, onde o início da vida já se pronunciava aos olhos atentos.- Peço desculpas por interromper, porém a curiosidade está levando a melhor. Qual é a sua revelação Olívia? - foi Natan quem ousou quebrar o momento enquanto a servia novamente e o fez da forma mais educada possível.Ela pegou o caderno guardado abaixo da bolsa sobre a mesa e, mantendo uma expressão confiante, estendeu o braço apontando-o na direção da futura mãe. Em um movimento lento, intrigada, ela o pegou.- O que é? - antes da resposta, quando o abria, percebeu do que se tratava.- O caderno de Kerligan? Trazido de Eiden? - comentou espantada.- Exatamente. Sabia que vocês ainda precisariam de mais provas, entendo isso, então pedi a ele. E ele me entregou - fez uma pausa de efeito sob os olhares do grupo, exceto os de Adrianna, hipnotizada pela peça em suas mãos - provando assim não estar escondendo nada. Obviamente não posso deixar vocês copiarem nem muito

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menos ficar com ele. Seria uma quebra patente do acordo com os governos tanto americano quanto inglês. Sem mencionar ser uma prova, de certo modo, de Arthur não ser daqui ou deste tempo. Seja como for, não é interessante termos isto fora de nosso alcance. Mas posso esperar o quanto quiserem pela leitura do material e podem anotar os dados principais se considerarem necessário.Mais uma vez Bruno se sentiu no dever de conter a situação, era certamente um baque na tentativa de levar Olívia para o lado deles. Contudo, a argumentação forte não permitia um questionamento imediato. Se os amigos levantassem hipóteses relativas às diversas formas de fraudar aquelas informações seria imprudente, ele avaliava.- Vamos levar em consideração a forma como ele conduziu o processo e neste momento tudo aponta para as suas conclusões. Só peço que entenda a necessidade de utilizarmos os dados e fazer as nossas próprias simulações. Que tal deixarmos Adrianna estudando o material enquanto andamos um pouco pelo hangar? Pode checar, não temos copiadoras e não perderemos a aeronave de vista.- Tudo bem, não está tão frio.- Se não se importam gostaria de ficar avaliando as suas anotações - Natan se referia às notas com dados sobre as simulações, desejava entender os mapas desenhados por Olívia referentes ao resultado de algumas delas.

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Concordando prontamente, Bruno e Olívia se agasalharam e desceram a escada. Cientes do vento característico do inverno inglês se encaminharam para as proximidades do prédio, cuja extensão barrava parcialmente seus efeitos. Tendo subestimado o frio adentraram o escritório reservado diante dos olhares curiosos de alguns mecânicos, visivelmente atraídos pela beleza da mulher.

Kerligan ordenou ao motorista que o levasse para casa, estava cansado, almoçaria e descansaria pelo menos meia hora. Passara os últimos dois dias e duas noites criando a versão do caderno original entregue a sua esposa. Jamais poderia deixar os olhos de Adrianna pousarem sobre o verdadeiro, além de descobrir suas omissões possivelmente deduziria seus objetivos. Perderia Olívia e reativaria o grupo de Bruno em sua potência total. A guerra fria teria fim e uma verdadeira batalha se iniciaria. O provável próximo passo dos seus inimigos seria denunciar as indiscrições de MJ, acusá-lo formalmente de assassinato, revelar a verdade sobre o asteroide aos governos envolvidos e, possivelmente, em um ato desesperado, contar sobre Aqua e sua viajem no tempo. Acreditassem ou não, as ramificações causariam estrago suficiente para danificar seu projeto. Ademais não conseguiria conter Marvolo e vidas estariam automaticamente em risco. O delicado balanço de forças precisava perdurar, era a única opção, não importava

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o quanto o incomodava mentir para sua amada.

A conversa trafegou inicialmente por amenidades, sempre no âmbito dos negócios e da economia, eram muitos os interesses comuns. Ele conheceu o lado intelectual da executiva, admirou seus ideais e a firmeza com a qual os defendia. Ela percebeu a rapidez de raciocínio e o volume de conhecimentos do rival de seu marido, imaginou se tudo vinha do maravilhoso soro tomado por ele, algo nunca comentado, porém presente nos diversos relatórios sobre o grupo.- Posso lhe fazer uma pergunta pessoal? — ela iniciou relutante.- Claro.- Qual foi a sensação quando tomou o soro? Quero dizer, foi bom? Foi rápido? Causou uma transformação palpável? — a reação dele, clara em suas expressões faciais, denotava a percepção de jamais terem sequer comentado aquele assunto. Ponderou se ele aceitaria discutir a questão sem receios.- Transformou sim - respondeu pensativo enquanto ela tomava um café da cafeteira disponível na sala. Uma conexão visual se firmou, o interesse dela não era especulativo, era particular. - Sou um homem diferente, é estranho até. Quando se passa da pobreza para a riqueza isso em si já modifica profundamente o modo de pensar de um indivíduo, imagine ser muitas vezes mais inteligente, mais forte, mais rápido, mais perspicaz. Sinto-me falso às vezes...

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Ela não esperava uma resposta tão pessoal e gostou de ter recebido a demonstração de confiança.- Mas imagino não ser exatamente esse o ponto de vista da sua pergunta.- Não, mas apenas por não esperar uma resposta tão profunda. Fico contente por se sentir à vontade para falar sobre isso comigo - as palavras pareceram incentivá-lo.- Meu caso foi diferente, a solução possuía nano robôs programados para aplicar o Alpha11 diretamente nos órgãos principais, acelerando o processo. Tive febres, passei muito mal no primeiro momento e os resultados apareceram rápido. Posso fazer coisas impressionantes. Imagino não ser tão forte ou ter um raciocínio lógico tão desenvolvido quanto seu marido, mesmo assim me assusto às vezes com essas habilidades. O AlphaT é uma formulação diferente, mais suave, vai requerer aplicações constantes em pequenas doses, assim o processo será indolor, sem efeitos colaterais. Infelizmente, como conseqüência o resultado será mais lento e de menor amplitude.Ele não tinha como saber por onde andava seu pensamento. Não era no AlphaT e sim na outra alternativa, uma variação desenvolvida por Arthur. Estava prestes a confidenciar suas opções quando Natan entrou, seguido de Adrianna.- Acabamos - ela disse entregando o caderno para a loira.- Posso ficar com este, certo? — Natan questionou, recebendo em resposta um balançar

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de cabeça de Olívia.- E então? Satisfeitos? - ela perguntou.- O caderno de Kerligan confirma sua interpretação, mas... - buscava as palavras sem sucesso — ainda não é uma prova definitiva, você...- Você só pode estar brincando — Olívia elevou o tom de voz, a desconfiança de Adrianna superava a razão — não é o caderno que importa, é o fato de ele não o ter escondido, ter permitido minha entrada em todos os sistemas, sem supervisão, eu contei para vocês, pelo amor de Deus!- Ela só quis dizer que precisamos checar os dados, rodar as simulações... - Bruno tentava contemporizar quando foi interrompido.- Não é só isto, não percebe? — Adrianna gesticulava agitada, as emoções não eram mais tão controladas, seu corpo não permitia. — Se está tudo como previsto por que não permitir nossa participação? Podemos ajudar, criar planos de contingência...- Dezenas de países vão participar desse esforço, acha que são melhores do que todos eles juntos? Ele ainda precisa agüentar seus maiores inimigos em uma sala de reunião duvidando de todos os seus passos? Você faria isso Adrianna? - estava furiosa.Adrianna abria a boca para retrucar quando em tom altivo Bruno a interrompeu.- Adrianna, pare! Olívia é nossa amiga, está fazendo bastante, ela ama Kerligan, vamos ter calma. Além do mais você não deve se agitar

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tanto — a última frase possuiu um tom ameno e foi finalizada por um toque suave da palma da mão em seu ventre.A defesa tocou Olívia, assim como a menção da gravidez. Ela fechou os olhos por um instante e pediu desculpas sinceras, ouvindo o mesmo da morena. Reassumindo o autocontrole combinaram um novo contato quando finalizassem as simulações a partir dos dados recebidos e da confrontação com o monitoramento atual do meteoro pelos observatórios. O time de especialistas estava quase montado nos Estados Unidos, porém seria prematuro definir já uma nova data para conversarem. Olívia se mostrou satisfeita com o arranjo, um contato seria feito em nome da Lima Private de Londres supostamente para discutir propostas de investimento quando na realidade a ligação teria o objetivo de marcarem a próxima reunião.Natan, ainda envolvido na tarefa de melhorar o clima do final de encontro, fez elogios sobre os novos projetos da Power Innovations relacionados a fontes de energia renovável. Quando durante as despedidas o amigo foi retido por uma ligação urgente, forçando todos a aguardar, ele tomou para si a responsabilidade de buscar novos assuntos e entreter a convidada.- Imagino como não se sentiu ao assistir as simulações do asteróide atingindo a terra, só de ver seus desenhos já fiquei bastante impressionado.

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Bruno, um pouco afastado do grupo, fez sinal para Adrianna se aproximar, precisava tirar uma dúvida.- Ver a Europa sumindo - ele continuou enquanto ela balançava a cabeça provavelmente perdida nas lembranças - e a Rússia, o Japão...- A China quase sumiu, foi reduzida a uma extensão tão pequena, talvez menor do que o Japão de hoje — ela comentou, recordando-se das imagens.Adrianna retornava para eles tendo aparentemente resolvido a questão com o futuro marido. Com a atenção dividida, capturava apenas parcialmente o assunto em discussão.- A Nova Zelândia some e a Austrália se reduz... — Natan dizia ao ser interrompido inadvertidamente pelo amigo.- Desculpem-me - disse Bruno ao retornar.Durante as despedidas finais Adrianna parecia confusa, imersa em pensamentos.- Vocês estavam falando de que quando me aproximei?- De como ficou a Terra no seu tempo, a julgar pelas simulações — Natan respondeu.- Pela simulação 19 na realidade, foi a que desenhei com mais detalhes - Olívia corrigiu o novo amigo.- Posso dar uma olhada? - Adrianna recebeu de Natan o caderno, nem ela nem Bruno haviam dado atenção àquelas anotações até então.O grupo esperava curioso pelo escrutínio repentino do ralo material, incapazes de imaginar o que ela acreditava encontrar ali. Levou menos

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de um minuto para levantar novamente o rosto e, com uma expressão de descoberta, tomar a palavra.- Esta não é Aqua!Era a terceira ocasião na qual tentava contato sem sucesso. O informante resolveu aparentemente ignorar suas ameaças, ou talvez, em uma tentativa fútil de adiar o inevitável, fingir-se de morto. Não iria adiantar, precisava de informações, o momento era crucial. Encaminhou-se para o quadro e segurando no canto direito inferior da moldura o separou da parede. Como uma janela ele girou sobre o eixo na moldura no lado esquerdo revelando o cofre da casa. Digitou a combinação e o abriu. Retirou um pen drive, fechou novamente o conjunto e dirigiu-se ao escritório conectando o dispositivo no laptop sobre a mesa. Tocou o arquivo de áudio à exaustão até encontrar as melhores partes, selecionou alguns trechos específicos e o salvou em separado. Reproduziu o conjunto para mais um teste.

"Os integrantes da organização chamada Infinito são, além de Bruno Cortes Lima, Max e Cristiane Templis, Marco Meltezer, Natanael Arantes, Adrianna Modrin, Rachel Martinez e Wagner Matos. Formam o círculo mais fechado, se mexer com eles desestabiliza Bruno.""Os primeiros IPOs previstos são os da BioTech, Cellular Growth e ADe, se atrapalhar esses atrasa bastante os planos. "

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"A reunião acontecerá neste fim de semana, da sexta ao domingo, no Mediterranée da ilha de Itaparica, na Bahia. Todos estarão lá.""E estou, dizendo MJ, não me ligue mais, não vai ter mais nenhuma informação vinda de mim, você não está cumprindo sua parte, vá para o inferno. "

Estava perfeito. Anexou o arquivo em um e-mail sem assunto ou corpo de texto e mandou diretamente para a conta principal de seu informante. O recado seria claro, se não atendesse às próximas ligações a mensagem iria para outro destinatário da próxima vez. O blefe devia funcionar, contudo de um jeito ou de outro a situação era por demais volátil. Caso Kerligan realmente viesse a saber sobre sua "desobediência" poderia retirá-lo do Gênesis e isso seria inaceitável. A solução era apressar o extermínio do seu relutante agente duplo, cederia a ele o primeiro lugar na fila, Olívia teria de esperar.

Por telefone combinaram um jantar íntimo. Após dois dias afastados um do outro, a lembrança do amor ardente na última noite ainda queimava em suas memórias. Foram ao restaurante de sempre onde conseguiam privacidade. Para deixar o assunto para trás contou sobre a reunião e como ela provavelmente não aconteceria novamente tão cedo. Propositalmente deixou de fora a última parte, a seqüência da acusação de Adrianna. Arthur notou uma ligeira diminuição do

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entusiasmo anterior na esposa. Olívia atribuiu o ligeiro desânimo exclusivamente a não ter se alimentado bem durante o dia em função da reunião, causa provável do enjoo experimentado à noite.— Existe outro motivo — ela afirmou. Tomou um gole de vinho para reforçar a coragem de cruzar uma barreira ainda virgem. — A princípio veio o espanto, depois a percepção crescente da magnitude do seu trabalho, a felicidade de ter as provas de suas intenções para entregar a Bruno... Mas agora tenho dificuldade de deixar de pensar em todas as vidas perdidas...— Elas não vão mais ser perdidas - interrompeu segurando forte em sua mão - nós vamos garantir isso.- Eu sei, é bobagem minha pensar assim e estou certa de encontrar meu eixo em alguns dias, principalmente se você não viajar tanto - ela sorria um pouco nervosa. — Quando entramos vi aquele grupo de chineses e lembrei-me de como Aqua, quero dizer, de como a Terra será, ou seria, se não fosse por você. Pela simulação, a China virou um pedaço de terra pouco maior do que o Japão. Não foi?Ele vacilou ante o próximo passo, algumas hipóteses lhe vieram, apesar disto, em qualquer circunstância não podia se contradizer.— Meu amor, os orientais não sumiram, eles habitavam outros países também, as raças se miscigenaram, nos tornamos um pouco de cada uma, mais completos e unidos. E isso não vai mais acontecer.

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- Pior foi o Japão... Sumiu completamente — tomou um gole do vinho exprimindo no semblante a confusão em sua mente enquanto divagava. — Ou o Hemisfério Norte reduzido a centenas de ilhas... Bom, pelo menos uma parte considerável da China prevaleceu, não foi? - ela notava sua relutância em confirmar tacitamente a afirmação.— Sim - disse por fim, sorrindo de modo a reconfortá-la, ainda segurando sua mão.- Vamos deixar esse assunto de lado. Daqui a alguns dias me livro dessa lembrança, ou me acostumo com ela — afirmou condescendente.

Nos primeiros dias de dezembro um pensamento fixo tomou conta de Bruno, precisava se casar, oficializar a relação com Adrianna, garantir-lhe não apenas por herança a transferência de sua fortuna, mas também por direito de matrimônio. Assim dificultaria ainda mais qualquer ação espúria de contestação de testamento por um parente distante qualquer, capaz de influenciar sua mãe a participar de um conluio dessa natureza. Também agora precisava garantir a transferência de seus bens a sua filha. Ficara deliciado com a notícia, secretamente torcera por uma menina desde o primeiro dia quando soube da gravidez. Imaginava uma versão criança de sua alma gêmea e contava com a força dos genes dela para dar àquele bebê não só beleza e inteligência, mas uma vida saudável e longa.Os bons motivos estavam todos lá, porém a verdade era ligeiramente diferente. Ele queria

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casar, a proximidade da morte lhe afligia e uma união, mesmo sem a pompa católica, inadequada considerando as diferenças entre eles nesse assunto, representava a celebração de uma felicidade que, poucos anos antes, considerava inatingível. Uma felicidade personificada pela mulher única e impressionante com quem vivia um amor ainda maior e mais importante do que todos os desafios e conquistas, passadas, presentes e futuras de sua existência. Um amor capaz de lhe gerar uma filha, por quem já se apaixonara imediatamente ao ouvir as primeiras batidas do coração.Incapaz de dissuadir seu noivo, Adrianna a contragosto concordou em uma cerimônia fechada extremamente privada. No dia 17 de dezembro, na própria mansão, foi realizado o casamento civil seguido de uma pequena festa. Presentes apenas os membros do Infinito, seus pares e filhos, e um punhado de amigos bastante íntimos de Bruno do período anterior ao seu enriquecimento. Obviamente, sua mãe e familiares estavam lá, primos e primas, tios e tias, tudo para a felicidade de dona Marta Lutz Cortes Lima. Um avião fretado fora disponibilizado para trazê-los e foram acomodados nos melhores hotéis da cidade, tudo sem custos, obviamente. Da Lima World lnvestments apenas os líderes de cada companhia foram chamados. Para todos, sem exceção, foi solicitado tratarem o assunto como segredo de estado, por respeito à condição da noiva e

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àqueles não convidados. A imprensa não devia tomar conhecimento.Uma grande festa foi prometida para celebrar o nascimento de sua filha. Espantosamente, a noiva sentiu-se acolhida por todos aqueles estranhos, muitos dedicando a noite a conhecê-la, genuinamente felizes pela oportunidade. Dona Marta era a mais esfuziante, orgulhosa em expor aos conhecidos e familiares o sucesso do filho e a beleza e inteligência da noiva, além de deixar claro quão ansiosa estava para conhecer a futura neta. Foi uma noite especial, um oásis no deserto de dúvidas e desesperança em que viviam. A futura mamãe quase se esqueceu de sua maior preocupação e angústia. Apesar de seus esforços e das injeções diárias do Alpha11b, nenhuma melhora aparecia nos exames semanais de Bruno. Ausente de grandes idéias aprendera a rezar todas as noites.

MJ estava satisfeito, seu espião retomara o contato conforme esperado. A esta altura já se acostumara ao excesso de impropérios proferido por ele, importava-lhe apenas o fluxo de informações e este voltara a se ampliar. As reuniões semanais com o grupo chamado Infinito continuavam a acontecer semanalmente e todos estavam a par da evolução dos projetos individuais, fora um compromisso assumido pelo líder da holding. Soube do casamento, embora pudesse perceber algo não revelado concernente à união quase secreta. Os preparativos para os IPOs da Cellular Growth, ADe, Alpes e Sun&Light

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corriam conforme esperado e os contatos com Olívia cessaram temporariamente. No ínterim uma empresa estava sendo formada nos Estados Unidos, uma fachada para permitir ao grupo de cientistas contratados avaliar os dados sobre o asteróide. Nenhuma conclusão oficial poderia ser obtida antes do final de janeiro. Podia notar a raiva e relutância do agente duplo a cada ligação e imaginava quanta pressão poderia suportar antes dele próprio revelar a verdade ao amigo. Estrategicamente, resolveu dar algum tempo de sossego ao seu joguete, talvez um mês. Decidiu também o "quando" para seu assassinato. Imediatamente após qualquer notícia realmente relevante sobre o inimigo ele eliminaria aquela "ponta solta".

Vários dias se passaram e a ausência de um método capaz de determinar quem estava com a verdade lhe consumia. Fingia não ter dúvidas quando estava com Arthur, algo cada vez mais difícil. Sentia-se falsa e cansada, considerava um milagre permanecer eficiente em suas funções, embora soubesse ser este um padrão em sua vida, afogar-se de trabalho quando a vida pessoal se complicava. O inferno da dúvida a consumia. Estava distraída no final da manhã desenhando um mapa de Aqua, primeiro a versão de Adrianna, depois a da simulação 19, um hábito crescente nos últimos tempos, quando a secretária anunciou Milton Jacobs. A contragosto o deixou entrar. Odiava o homem com todas as suas forças.

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— Não viria pessoalmente se não fosse urgente. Arthur está fora e preciso de mais uma assinatura neste documento para ser enviado ao conselho. Acredito que ele tenha lhe avisado.- Avisou, por isso mesmo não entendo a necessidade de vir pessoalmente, seria preferível confiá-lo a sua secretária.— Não seria colocado no final de uma pilha de documentos? - disse sarcástico.— Quem disse que não será? - não se deixaria abalar.— Preciso disto para hoje, ou melhor, Arthur precisa. Senão perdemos o prazo e o assunto terá de ser levado à reunião como "outros assuntos" e não vão querer votar de imediato.— Deixe-me ver se entendi, você deixa um assunto desta importância para a última hora e eu seria culpada se houvesse problemas para votação?— Não vamos deixar nossas diferenças atrapalhar o projeto Gênesis, precisamos deste aumento de investimentos, não seja infantil.Agora ele a irritou. Antes infantil do que assassino, teve vontade de dizer. Com algum esforço se conteve. Havia alternativas. Pegou o telefone e discou para a secretária.— Helen, por favor avise aos membros do conselho para estarem presentes na sala de reuniões às 19h. Peça desculpas pela inconveniência e explique que o Sr. Milton Jacobs só agora terminou uma moção para inclusão de um item na pauta da próxima reunião. Infelizmente, só terei disponibilidade de revisá-la no final da tarde. Precisaremos que todos

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assinem o recebimento ainda hoje. Não deixe de reforçar o quanto o Sr. Jacobs sente por causar este inconveniente.Embora seu semblante em nada o denunciasse, MJ estava furioso. Suas relações com o conselho já eram ruins e não precisava de ajuda para piorá-las. Se ela assinasse logo o documento havia tempo para um mensageiro entregar a cada membro ou seu representante uma via sem a necessidade de arrastá-los para o escritório. O "incômodo loiro", como gostava de se referir em suas conversas mentais, tomara aquela atitude apenas para provocá-lo.— Bravo — ele não iria lhe dar a satisfação. Sorriu comedidamente fingindo não se importar. Deu de ombros e já se virava para sair quando notou o desenho sobre a mesa.— Seu marido anda lhe dando aulas de geografia?Em um átimo de segundo o estratagema se montou na mente de Olívia, era um presente caído em seu colo, afinal ele era o único capaz de realizar o desempate. Contava com a falta de contato recente entre os dois, tanto pelo clima após as últimas ameaças de Arthur quanto por sua própria agenda, lotada de viagens nos últimos dias.— Ora, ora, não é que você pode ser útil em alguma coisa - ela provocou. Retirou a primeira folha contendo o desenho do resultado da simulação 19, levantou-se e quase imediatamente colocou o documento trazido por MJ sobre o rascunho com a versão de Adrianna. A manobra hábil aparentemente funcionou. Com os

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olhos presos entre ela e o papel entregue em suas mãos ele pareceu nada perceber. - Estou pensando em mandar fazer um conjunto de anéis e abotoaduras com o mapa de Aqua gravado neles, um símbolo do motivo de sua luta. Na caixa quero um desenho maior com os nomes de cada país.- Um presente de Natal?- Isso mesmo.- Então vou ganhar também? Afinal a luta é tanto minha quanto dele — sorria de modo malicioso, respondendo a provocação.- Para isso vai precisar encontrar alguém que goste de você - respondeu séria. — Pode me dizer se está tudo correto e colocar os nomes nos lugares certos ou é trabalho demais? Não se preocupe, direi a ele que pedi sua ajuda.Ele não tinha vontade alguma de fazer aquilo. Contudo, o passo correto para não levantar suspeita, considerando suas intenções para com ela, era mostrar interesse em se reaproximar. Pegou uma caneta sobre a mesa e fez alguns rabiscos.- Depois não diga que nunca fiz nada por você. E como bônus, dou-lhe minha opinião, ele não vai gostar, as memórias do passado não são tão agradáveis.Virou-se e foi embora, incapaz de ver a tristeza patente nas feições da inimiga ao comparar o desenho corrigido por ele e a versão de Adrianna. Eram idênticos.

37. O Fim do Mundo

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O governo americano se recusava a acreditar em um apocalipse. As chances de o asteróide atingir a Terra, considerando o grau de precisão dos equipamentos de medição dos observatórios espaciais, eram próximas a 1% e só obteriam dados adequados dali a um ano. Mesmo assim, aceitaram o pedido de autorização de Arthur para construir sua própria base de lançamento de mísseis em solo americano. Sob supervisão militar, obviamente. Se o bilionário queria gastar o dinheiro lá gerando empregos, não iriam impedir. Contudo, acordos de confidencialidade rigorosos foram firmados e, embora não anunciado, todos os envolvidos agora seguramente sofreriam pesado escrutínio do FBI, NSA e CIA. Um grande risco considerando as reais origens de Arthur e MJ. Grande, porém inevitável. Confiava na rede de políticos em seu bolso para obter informações a tempo de tomar as atitudes necessárias caso fosse suspeito de algo. Alguém com origens duvidosas "brincando" com mísseis nos Estados Unidos poderia facilmente ser confundido com um terrorista. Seu conterrâneo não podia, em hipótese alguma, fazer parte do Gênesis nos Estados Unidos. O assassinato do Dr. Manuel Alvares o colocara em um patamar de risco acima do aceitável. Portanto, ficaria fora do processo "oficialmente". Extraoficialmente Arthur lhe passaria todas as informações e ele seria responsável por supervisionar a construção dos abrigos

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subterrâneos de contingência e por sua extração caso fosse erradamente detido.Aquele cenário deu a Olívia a desculpa perfeita para o grau de ansiedade apresentado nas últimas semanas. Uma das principais cabeças à frente do Gênesis, a quantidade de trabalho crescia exponencialmente. Praticamente cuidava de todos os aspectos não científicos do projeto, incluindo acordos com o governo Inglês, para a utilização de uma de suas bases de lançamento de mísseis para testes e futura contingência. Também lhe deu a oportunidade para questionar Arthur sobre o local de guarda de seu livro de notas trazido de Eiden. Para lhe permitir negar seu conhecimento de forma plausível, se algo acontecesse a ele nos Estados Unidos, limitou-se a garantir que estava seguro. Um original e duas cópias, cada um em uma localidade e país diferentes, acessado apenas por ele e Marvolo. Por prudência, não insistiu. Passou, contudo, a investigar em segredo todos os sítios pertencentes direta ou indiretamente a eles, excluindo todos os locais onde ela própria teria acesso e estava ciente da existência de um cofre. A quantidade era enorme. Excluiu todos onde a segurança era parca ou inexistente. Pensando melhor, eliminou todos no Hemisfério Norte. Se algo desse errado e um pequeno meteoro atingisse seu local de guarda, o caderno poderia ser exposto. Seu marido era suficientemente detalhista para prever essa possibilidade. Estranhamente encontrou apenas dois locais e não três. Talvez estivesse mentindo ou, quem

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sabe, houvesse instalações totalmente secretas inclusive para ela. A sede da Covet Winds, em Goiás, e um escritório filial, recentemente criado em Brasília, eram as opções. Na Winds um abrigo subterrâneo estava sendo construído tornando-o a aposta mais provável. Por ser o primeiro, serviria de modelo. Uma bela desculpa para uma visita na semana seguinte, a terceira de janeiro. Hipoteticamente estaria conhecendo a estrutura e vistoriando o andamento das obras. De lá, ligaria para Bruno de um telefone público diretamente para a linha segura fornecida por ele e passaria adiante seus achados. A partir dali seria responsabilidade dele o próximo movimento.O grupo da Infinito estava em reunião na mansão confirmando as datas de 27 de fevereiro para o IPO da Cellular Growth e 19 para o da ADe, quando Olívia ligou. Recebidas as informações básicas, ele anunciou a intenção de invadir o complexo Covet Winds.- Se fizer isso vai me comprometer. Eu forcei esta visita — ela defendeu.- Não se preocupe. Se nos disser onde procurar, não perceberão a invasão. Se o caderno estiver lá vamos tirar fotos e sair sem deixar rastros.- Não pode ter certeza disso.- Eu estive em sua casa e você não ficou sabendo, ficou?- Impossível.- Tem um porta-retratos com a foto de Onan na cabeceira da cama de vocês. Adorei a decoração. Vocês têm ótimo gosto - brincou.

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- Estou impressionada. Não vou negar. Mas, sempre pode acontecer algo inesperado.- Claro — imediatamente pensou na fraqueza de seu coração. Não podia negar o risco intrínseco associado a sua condição. Todavia, não confiaria em mais ninguém para aquela missão. — Tem razão. Mas se eu for descoberto dificilmente deixarão de te acusar estando ou não no Brasil. Sua melhor defesa é alegar que se fosse parte de algum complô, seria ilógico concordar com uma invasão durante sua estada - a pausa do outro lado da linha denotava sua insegurança quanto àquele plano. - Fazemos o seguinte. Inicio a operação quando você estiver voando. Que tal?- Seria louco pensarem termos planejado um timing desses. Você tem uma mente bastante criativa, vou lhe dizer. Tudo bem. Hoje é meu primeiro dia, à tarde começo a inspeção, só retorno na sexta às 20h, horário de Brasília. Esta noite telefono com a localização do cofre, se estiver lá.- Preciso do modelo também.- Ok — e desligou.Conforme prometido as novas informações foram passadas ao grupo. Apreensivos com a saúde do amigo tentaram convencê-lo a usar outro recurso para a invasão. Estava irredutível. Não confiava em ninguém e não sofrerá mais nenhum ataque ou qualquer desconforto. Estava tomando o soro criado por Adrianna religiosamente e se poupara até agora justamente para uma situação como aquela. Quando mencionaram a filha respondeu estar justamente tentando garantir um futuro

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para ela. Caso estivesse destinado a morrer daquela enfermidade, que fosse lutando. A barriga da esposa correspondia a quase sete meses tornando inviável sua participação ativa. Não existiam outras opções. Encerrada a reunião, os donos da casa tiveram a primeira briga de casados.

— Algo importante vai acontecer.MJ não esperava a ligação do espião. Uma surpresa e surpresas o incomodavam.— Continue.— Não. Você já provou que pode matar a sangue frio e não vou expor ninguém a isso. Um local vai ser invadido, mas não direi onde nem quando. Se quiser saber vai ter que me levar junto.— Não tem medo de se expor?— Tenho mais medo do que você pode aprontar. Esteja em Brasília na sexta às 16h. Tenho uma reunião lá. Faça arranjos para seguirmos as 20h para os Estados Unidos, não importa o estado de destino. Lá forneço novos dados.Uma longa discussão se seguiu, provando apenas que nenhuma ameaça faria diferença. Tão intrigado quanto incomodado MJ aceitou. Internamente, contudo, decidiu também ser naquela data, no dia de seu encontro, o início da contagem regressiva para a morte do informante. O plano estava traçado aguardando apenas a ordem. Um assalto forjado a um restaurante onde jantava regularmente em São Paulo, uma rajada de submetralhadora disparada por um marginal nervoso causaria várias

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fatalidades, entre elas, estaria o alvo. O assas-sinato dos contratados aconteceria em seguida, supostamente devido a uma guerra de gangues e estaria acabado. Sem pontas soltas.

A terceira sexta-feira do ano marcava o dia 13, um mau presságio, e Bruno não ignorava os sinais. Sentira algo estranho durante todo o dia. Os preparativos foram checados, o plano revisado e as ferramentas testadas na medida do possível. Segundo as informações detalhadas providas por Olívia, o único cofre ficava no escritório reservado a Arthur Goldwill e só fora utilizado uma vez por seu dono. Ficava no andar mais alto, o terceiro, com vista para a fazenda de cata-ventos. A enorme extensão da propriedade a tornava vulnerável em pontos distantes, pois os seguranças não podiam checar todo o perímetro. Adrianna o levou até o local onde subiu na caminhonete e saltou para o outro lado. Não havia câmeras ali, apenas próximo ao prédio principal. Uma moto foi deixada escondida do lado de fora sob uma manta cor de terra coberta com folhas para sua fuga. Seguiu a rota pré-definida evitando os pontos visíveis pelos guardas e câmeras de vigilância do complexo. Trotou por quase cinco quilômetros antes de avistar o prédio principal. A noite sem lua e o traje preto, incluindo máscara, o tornavam difícil de ver, mas não impossível, precisava correr quase duzentos metros sem ser avistado pelos seguranças da área e pelas câmeras até atingir um ponto cego, isso em um trecho próximo ao

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estacionamento repleto de holofotes. A solução era uma distração. As 20h45 em ponto o helicóptero contratado apareceu e pairou sobre a face oposta do prédio por alguns segundos, tempo suficiente para ele correr feito louco até se encostar ao ponto cego do edifício, aonde nem seguranças nem câmeras normalmente iam. Rezou para os rapazes no centro de controle terem colado os olhos no monitor voltado para a aeronave, enquanto ela parecia querer pousar, antes de sumir tão rapidamente quanto apareceu. Retirou da mochila um lançador de corda e o usou para atingir o topo do edifício, onde um gancho múltiplo fez sua função se prendendo à borda. Tomou cuidado para fazer o disparo no momento em que o helicóptero fez sua segunda passagem programada, mais breve e menos suspeita, porém não menos barulhenta. Em segundos, usando apenas a força dos braços, chegara ao terraço. Recolheu a corda e monitorou o próprio coração, conforme prometera à esposa. Não estava acelerado, nenhuma dor. Uma olhada rápida para baixo confirmou a falta de movimentação suspeita, nada fora percebido.Uma hora antes, Olívia subia a rampa do avião particular disposta a deixar o Brasil o mais rápido possível, quando o celular tocou, era Arthur.— Oi amor, tudo bem? Estava quase desligando o celular, estou entrando no avião agora, por pouco não me perdeu.- Jamais aceitaria lhe perder — ironizou — olhe para trás.

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Ao se virar ela o avistou a poucos passos de distância. Um milhão de coisas lhe passaram pela cabeça, nenhuma delas boa, enquanto fingia um sorriso autêntico e descia as escadas. O rápido beijo nos lábios obteve uma recepção fria. De perto percebeu o quanto estava sério.— Venha comigo, explico no carro, é uma emergência.Não se falaram até o motorista da limusine iniciar o movimento do carro, ele parecia já ter recebido instruções quanto ao seu destino. Aguardou ansiosa por alguns minutos, observando a dúvida em suas feições ao encará-la.— Apesar do meu acordo com MJ sempre tive certo receio dele não cumprir sua parte — a separação acústica entre eles e o funcionário ao volante lhe permitia falar livremente - preocupava-me especialmente com você.— Comigo?— É. Ele jurou nunca tocar em um fio de cabelo seu, mas sei o quanto ele a considera uma ameaça.— Ameaça?— Ele acha que você me amoleceu. Que poderia colocar tudo a perder por sua causa — pausou ainda relutante, estava atipicamente sensível naquele dia, temia por ela, por perdê-la, uma sensação tão irracional quanto viva. — Não posso culpá-lo, o amor por você é superior a minha determinação, o sentimento se sobrepõe à razão — o olhar dela voltou-se para baixo, parecia envergonhada ou triste. - Isso na realidade não é ruim, me torna mais completo, capaz de

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entender coisas anteriormente misteriosas ao meu olhar puramente cartesiano - maneou a cabeça, negando a si mesmo, passou a mão direita agitadamente sobre o cabelo. - Não há tempo para isso agora - seu corpo se afastou alguns centímetros, o suficiente para, por analogia, dar-lhe perspectiva - a questão é que o venho mantendo sob certa vigilância e quando soube de uma viagem para o Brasil durante sua estada aqui, me preocupei. Tentei entrar em contato e não obtive resposta, o que me deixou em alerta, então resolvi seguir meus instintos e vim também. Não imagina a minha surpresa quando ao desembarcar recebi esta foto da agência de investigação responsável por segui-lo - ele lhe entregou o smart phone onde uma foto já estava selecionada tomando conta do visor. - Este é um dos sócios da Lima World Investments.Olívia olhava pasma para a imagem no celular do marido, percebendo imediatamente existirem apenas duas hipóteses viáveis. Ou o outro homem junto a Milton Jacobs era seu espião junto a Bruno ou estava sob perigo imediato. Talvez as duas coisas. A foto mostrava ambos entrando em um carro.— Não sei bem o que isto significa, mas não é bom. O carro deles seguiu para a estrada e pela direção parecem estar indo para a Covet Winds - o espanto no rosto dela foi claro. Sabia de algo. — Olívia, que diabos está acontecendo?Ela já não sabia dizer se estava mais perdida em suas emoções naquele momento do que estivera no passado. Tanto acontecera desde o início de

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sua relação com Arthur. Apaixonara-se a ponto de esquecer-se de si mesma e preterir suas ambições ante as de seu amado. Sua vida profissional mudara vertiginosamente. Seu status econômico fora catapultado ao topo do mundo. Descobrira a verdade sobre a identidade do marido e, por fim, adentrara em uma realidade paralela, na qual a ficção fantástica era palpável e o fim do mundo estava ao alcance de seus anos. Aceitara a incerteza do futuro e o peso da responsabilidade de forma estóica, podia dizer, até o câncer da desconfiança ser plantado em suas células, as mesmas onde a certeza de seu amor por ele residiam. Miraculosamente, convivia preenchida por essas unidades de vida onde o mal e o bem ocupavam espaços distintos, impedidos de se misturar por uma película fina, a certeza em seu íntimo do amor dele por ela. O amor ainda era maior apesar do medo das reais intenções de um homem tão poderoso quanto dúbio, cujas palavras apaixonadas soavam tão verdadeiras quanto às mentiras contadas desde o dia do primeiro beijo. Alguém tão leal a um assassino e ao mesmo tempo tão preocupado com ela. Não havia esperança, jamais seria capaz de superar completamente as dúvidas, de confiar plenamente. Como uma derradeira pitada de álcool em um coquetel de fogo, os últimos acontecimentos colocavam no mínimo a vida de Bruno em risco. A qualquer custo tentaria ligar para avisá-lo do perigo. Chegara a hora de contar toda a verdade ao marido, destruir de uma vez por todas o conto de fadas e se separar, não

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suportaria mais viver uma vida dupla. O coração tomado de angústia apertava no peito, o ar lhe faltava e ao ouvir os primeiros sons de sua decisão escaparem dos próprios lábios não conteve as lágrimas, o auto-controle se perdeu e as emoções explodiram ao sabor da sorte.

Passando pelos dutos de ar-condicionado Bruno imaginou a dificuldade enfrentada por Adrianna ao invadir a Revolutions Power. O lento processo era apertado, claustrofóbico e cansativo. Nada parecido com os filmes em que se podia engatinhar, ele literalmente se arrastava metro a metro. Durante a noite, o sistema de refrigeração ficava desligado tornando o calor insuportável. Deu graças a Deus pela instalação não se situar no nordeste do país, onde certamente seu suor estaria deixando rastros por onde andasse. A ausência do mar tornava a temperatura mais amena à noite naquela região, permitindo as con-dições mínimas para a empreitada.Levou quase meia hora para atingir as proximidades da boca do ar-condicionado na sala de Arthur. Quase lá, um mal-estar lhe acometeu, a dor começou no braço, diferente do episódio anterior, porém ele bem sabia do que se tratava. O ar faltava enquanto retirava da mochila a sua frente um comprimido e o colocava sob a língua. As ordens médicas eram claras, se isso acontecesse, após a medicação devia chamar uma ambulância e correr para o hospital. Obviamente, diante de uma postura tão correta quanto inviável, só lhe cabia prosseguir. Em

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cinco minutos estava melhor, pronto para descer. Abriu a tampa do sistema de ventilação, cujo fechamento felizmente era sob pressão, desceu-a ao chão junto à mochila usando uma corda fina e um gancho sem fazer barulho. Avançou para adiante da abertura e iniciou a descida de ré, primeiro as pernas e depois o tronco, escorregando até cair sobre os pés. O impacto gerou um som abafado e impossível de ser ouvido a distância. Embora o ambiente contasse com uma parede de vidro, uma cortina do tipo blackout o mantinha escuro como breu. A lanterna, desligada quando iniciou a descida, foi novamente ligada para inspecionar o local. Em uma reação instintiva quase se jogou para trás quando o feixe de luz se refletiu na parede próxima à porta. Não estava sozinho e uma arma apontava para sua cabeça.A distância entre os dois tornava uma reação deveras perigosa. A luz foi acesa pelo homem sentado a sua frente. Vestia paletó e camisa pretos, sem gravata, e não se deu ao trabalho de se levantar. As luvas eram um péssimo sinal, não deixaria impressões digitais. Era Marvolo James Calve. Ao seu lado outra pessoa estava sentada em uma cadeira, o capuz preto sobre o rosto e a cabeça pendendo para o lado indicavam estar morto ou desacordado. O sangue seco no colarinho ampliava as apostas na primeira opção. Contudo, as mãos nas costas mostravam uma preocupação adequada aos vivos.— Ora, ora, se já não era tempo de nos conhecermos pessoalmente.

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O português era impecável, devia admitir. Precisava pensar rápido, ele não estava ali para flagrá-lo e depois prendê-lo. A intenção era matar, estava certo, e o silenciador na ponta da pistola era a prova cabal. Contudo, a decisão de acender a luz era contraditória, chamaria a atenção dos vigias.— Não vai responder? Que falta de educação.Pensando bem, não chegou realmente a ver os seguranças, apenas assumiu a sua presença. Quem era a outra pessoa? Precisava de mais informação antes de definir como agir. A qualquer momento poderia sofrer outro "ataque", logo não podia confiar plenamente em seus reflexos.— Tudo bem para mim - ele disse enquanto se levantava e mantinha a arma apontada para a cabeça de Bruno.— Quem é seu amigo? - a pergunta provocou uma risada em seu algoz.— Meu amigo? Na realidade é seu amigo.— Voltou à tática de atacar aqueles a quem amo? Uma vez covarde... Sempre covarde - não estava certo se a tática da provocação lhe faria ganhar tempo ou abreviaria sua morte, na dúvida, seguia seus instintos. Ele parecia se divertir.— Não é bem assim. Nunca se perguntou como soube exatamente onde e quando promover meus ataques cirúrgicos, especificamente desenhados para atrasar cada passo importante de seus planos?— Sabíamos haver um espião, mas nada mais foi revelado após limitarmos o círculo de

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informações. Seja quem for, se me traiu, não é alguém importante — mentia, independentemente do grau de separação não aceitaria ver alguém ser assassinado.— O fato de eu não agir não significa ignorância, meu caro, e sim estratégia. Apenas esperei o momento exato - sorria satisfeito - sua ingenuidade e prepotência o tornam patético sabia? Ganhou um presente, se tornou infinitamente superior ao que era, conseguiu até uma namorada, não a considero grande coisa, mas para um ninguém como você era!De frente para o inimigo e a porta atrás dele, avaliava as possibilidades. A sua direita, o escritório era composto por uma mesa em "L" em cuja perna menor ficava um laptop. Sobre a perna maior apenas material de escritório, papel e caneta. Atrás dela, uma cadeira giratória de espaldar alto e na parede uma gravura representava no mapa-múndi a presença da Power Innovations. O cofre ficava atrás dele. Encostado no chão, uma pasta de alumínio destoava. No lado oposto, um conjunto de estar em estilo moderno e as suas costas uma TV de 60 polegadas. Nada muito útil. Mesmo assim, lentamente passou a circundar a mesa na direção da pasta, talvez pudesse arremessá-la em sua direção, fazendo-o errar o primeiro tiro e conquistando os segundos de distração necessários.— E ao invés de aproveitar resolveu se meter na primeira divisão. Acreditou estar à altura da tarefa, não? Você não me atrapalhou muito,

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porém tomou meu tempo. Uma pedra minúscula no meu sapato se recusando a sair, eventu-almente mereceu atenção, e vai pagar o preço. Vou saborear o momento.Já estava no lado oposto da mesa, mais um ou dois passos lentos e poderia agarrar a pasta, o homem a sua frente, imbuído em si mesmo, interpretava seu movimento como sinal de medo. Girava correspondentemente do outro lado, mantendo-se próximo sem romper um perímetro de segurança. Com um rápido recuo ele se colocou ao lado do espião.— Se nem mesmo os seus amigos mais próximos confiam em você — retirou o capuz - de onde tirou a ilusão de ser capaz de nos deter?Todos os pensamentos foram banidos de sua mente, a mala, o cofre, o caderno, tudo era papel amassado jogado em um canto da memória diante da visão. Era Natan quem sangrava atrás da máscara, um filete escorria da nuca, contornando o pescoço e pintando a gola originalmente azul da camisa.— Espantado com a própria imbecilidade? Deixa-me feliz. Por sua causa quase perdi meu único amigo, logo, é uma vingança a altura — desferiu dois sopapos no rosto de Natan, o qual prontamente passou a recobrar a consciência. — Considerando a morte iminente de ambos, vou deixar trocarem as últimas palavras. Depois não diga que não fui generoso.Acordando em meio ao caos foi preso pelo olhar de Bruno. Algo saía de sua boca, porém os sons ainda eram confusos. Sofrendo uma dor de

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cabeça excruciante tentou levar a mão à testa, percebendo estar preso pelos pulsos atrás da cadeira de madeira estilo Luiz XV. Finalmente, entendeu as palavras do amigo.— O que este desgraçado fez a você? - já perguntava pela terceira vez. - Está muito ferido?— O que ele realmente quer saber, Natan, é por que traiu seu melhor amigo? Bem, deixe-me responder por você — retirou do bolso um gravador e tocou o arquivo cuidadosamente selecionado para a apresentação da noite. Em sua opinião todo assassinato precisava do devido glamour e aquela seria sua obra prima.Ao ouvir a própria voz saindo do aparelho contendo as mensagens anteriormente enviadas a ele por correio eletrônico, Natan desviou olhar, tinha vergonha demais. Subitamente a raiva o dominou.— Seu desgraçado! - dirigia-se a Marvolo. - Você me enganou! - virou-se para Bruno. — Ele jurou as melhores intenções, falou sobre o noivado de Adrianna e Kerligan e da raiva entre eles, informou já terem produzido uma versão do Alphall, disse que se Adrianna quisesse já teria feito também, bastava usar engenharia reversa no próprio sangue dela. Foi como eles conseguiram, ele garantiu — de novo olhava para MJ com ódio expresso em cada músculo da face. — Só se esqueceu de mencionar o fato de nunca ter sido testado, nunca tiveram coragem de dar nem para Olívia. Forneceram uma amostra, depois outra, a cada aplicação eu me sentia melhor e os efeitos eram mais duradouros. Nada

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como a revolução experimentada por você - um rápido olhar para Bruno completava o raciocínio - mas o suficiente para me fazer desejar cada vez mais. Passei a ser reconhecido por todos como seu sucessor, me transformei em um executivo brilhante da noite para o dia e a energia... Quanto vigor eu sentia nas veias, em cada músculo. Era como uma droga — a cabeça pendia envergonhada. - Eu estava com muita raiva, achava que você não me ouvia, entendia Adrianna como um perigo e tive inveja — as lágrimas desciam ao enfrentar o olhar do amigo. - Não conseguia encontrar nada errado em Kerligan e suas atividades, para mim estavam levando a vida deles, e este miserável me jurou não machucar ninguém. Queria só assustar, ele disse, para os deixarmos em paz. Semear a discórdia para você se ver obrigado a contar a verdade para todos. Você não aceitava meus conselhos, guardava segredo de tudo.— E continuou me traindo? Contou a ele sobre minha missão hoje, não foi? — Bruno retorquiu.Marvolo se deliciava tanto a ponto de sentar no braço do sofá para apreciar melhor quando Natanael retomou sua defesa.— Há muito tempo deixei de passar informações e de usar a porcaria do soro dele. Há um mês e meio retomou o contato e ameaçou enviar este arquivo para você, então bolei um plano. Passei uma informação falsa sobre uma invasão nos Estados Unidos e prometi entrar em mais detalhes apenas quando estivéssemos fora do país. Como estava em Brasília por causa da

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reunião no Ministério da Saúde, marquei um encontro com ele lá. Levei um gravador, ia provar a intenção dele de continuar sabotando a gente e ia te entregar, eu juro! Levei até uma arma tranqüilizante e quatro guarda-costas para tentar contê-lo se fosse necessário.— Como se isso adiantasse. Prepotência parece ser um traço comum em vocês. Para mim, não faz diferença se ele se arrependeu — Marvolo provocou ao encarar Bruno - se é que se arrependeu. Um traidor é um traidor. Mas, de fato, confesso, ele tentou me gravar. Uma péssima idéia. E, se algum lugar ia ser invadido, deduzi facilmente qual seria. Olívia e o caderno verdadeiro contendo o projeto Gênesis estavam na Covet Winds esta semana e você — apontava para Natan com a pistola — tentava me levar para outro lugar. Foi meio óbvio, não? Poderia me contar do roubo depois, sem colocar o amiguinho em perigo. Estava ansioso demais para esperar, não é mesmo? Tremendo de medo de o chefinho descobrir a traição. Não foi muito inteligente... Não mesmo — zombou.- Quando me mostrou o testamento - Natan continuou ignorando o carrasco - deixando tudo para mim se algo acontecesse a vocês, eu morri por dentro de tanto remorso. Eu o amo como a um irmão, mas estava cego pela desconfiança. Senti-me abandonado quando sumiu por um ano e depois voltou tão diferente, distante, cobrando um mundo de dedicação e em troca oferecendo dinheiro. Por um tempo não o reconheci, amigo,

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estava perdido, afogado em meu próprio rancor. Hoje eu daria minha vida por você, juro.- Como é? O testamento dele deixa tudo para você?MJ quase saltava de tanto deleite, gargalhava a ponto de fechar os olhos, lembrando Bruno da possibilidade de arremessar a pasta.- Não faria isso se fosse você - Marvolo rosnou para Bruno, retomando instantaneamente a seriedade — tem uma bomba aí dentro.Tomados de espanto os prisioneiros o encararam avaliando se havia ou não verdade na ameaça.

Ao se aproximarem do complexo, Olívia e Arthur já não mais falavam, a discussão terminara no momento quando ela confessou sua traição. Ela desabafou, desdobrou as próprias entranhas expondo suas emoções. Ele ouvia desapontado sem proferir uma palavra. Quando finalmente ela desistiu de esperar por uma reação, ele pegou o telefone e passou a tentar diversas ligações. Transcorridos alguns minutos, voltou-se para ela, frio e objetivo.— Marvolo desligou o celular e na Covet Winds ninguém atende. Tem como contatar Bruno e avisá-lo?Enxugou as lágrimas e lutou para se recompor. Discou para o número seguro e foi direcionada para a caixa postal. Não armazenara o telefone de Adrianna nem o de Natanael.— Nada. E a essa hora não encontraremos ninguém nos escritórios daqui ou de Londres para localizar Adrianna.

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— Existe uma alternativa.Ela percebeu pelo transcorrer da conversa com quem ele falava, era a agência de investigação responsável pelos dossiês periódicos sobre os adversários.- Localizem os números de telefone celular de Adrianna Modrin, por favor, é uma emergência - disse após as identificações de praxe - com sorte ainda teremos um número válido - colocara a mão tampando o fone enquanto dirigia o comentário à esposa.- O dela não! - não podiam ligar com aquela notícia. - Ela está quase no último mês de gravidez, pode se emocionar demais — o espanto foi patente, ele não sabia, e demonstrou o desprazer de descobrir apenas naquele momento.— Ele ouviu o número prioritário no telefone e desligou — voltou-se para a mulher e prosseguiu. - Não temos opção, informe-a que estou chegando ao escritório da Covet inesperadamente e existe o risco de flagrá-lo, peça para abortar. Assim o impacto é menor.Olívia tentou, porém o sinal tocava sem resposta. Ela continuou tentando por alguns minutos até chegarem à entrada principal.

Do outro lado o gerente da noite do hotel cinco estrelas dirigia e falava no aparelho com a Dra. Cristiane Templis, informando sobre as contrações da Dra. Adrianna Modrin e pedindo seu apoio. Ignorava solenemente o bip de fundo anunciando outra chamada pendente, a mulher

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no banco de trás não parecia nada bem. Avançava todos os sinais desconsiderando os diversos radares da cidade em direção ao hospital mais próximo. Por Deus, por qual motivo uma mulher tão rica, uma médica, viajara no último mês de gravidez? Ao entrar no carro estava calma, agora gritava implorando para acelerar, algo estava errado. Arrependido por ter insistido em dirigir ele mesmo, acompanhando a importante hóspede, temia pelo resultado da noite.

O portão aberto e a ausência de alguém na cabine do vigia dispararam os alarmes internos dos dois. Arthur a mandou permanecer ali e saiu acompanhado do motorista. Quando voltou a expressão era de aflição ao abrir a porta do carro para falar-lhe.— O vigia está nocauteado, ele usou algum tranqüilizante e esse não é seu estilo. Está aprontando alguma. Fique aqui com o motorista. Mandei a empresa de segurança enviar todo o contingente disponível e pedi duas ambulâncias. Vão trazer um helicóptero também.— Vou com você — disse já se movimentando em direção à porta.— Você fica aqui — segurou seu pulso fazendo pressão, a raiva lhe fugia ao controle. Ao perceber a soltou. - Ele te detesta, eu tenho melhores chances sem ter de me preocupar com sua segurança.Era um soco no estômago, a dor emocional era infinitamente superior à sensação física no pulso

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espremido pela mão forte de Arthur. Balançou a cabeça concordando.- Pode usar qualquer medida para mantê-la aqui. Está armado? - ele disse que sim. — Defenda-a com sua vida. Se ela deixar este carro ou se machucar eu o mato pessoalmente.O motorista e segurança já ouvira histórias sobre o chefe fazer homens tão grandes quanto ele chorar de dor e considerando sua fortuna certamente se livraria da cadeia por matar um pé-rapado como ele. Em hipótese nenhuma considerava desobedecer àquelas ordens.- Se alguém sair daquela porta antes do reforço chegar - apontava para a entrada do prédio principal onde ficava seu escritório - e não for eu, entre no carro e leve-a embora daqui, entendeu? — o homenzarrão de quase dois metros balançou a cabeça assustado.Ao correr para o portão notou corpos caídos no caminho, todos os seguranças pareciam ter sido vítimas do mesmo tipo de tranqüilizante usado no vigia da entrada. Marvolo provavelmente fizera o mesmo com os responsáveis pela central de controle ou os prendera em algum lugar, por isso o telefone não atendia. Se bem conhecia o comparsa sua benevolência para com aqueles homens só podia significar uma coisa. Tentava culpar outro pelo estrago.

A seqüência de eventos parecia se sobrepor, o apito da fechadura de código anunciando seu destravamento iminente e a porta escancarada abruptamente, arremessando a cadeira de

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madeira um metro à frente. O conjunto pegou a todos de surpresa. Bloqueando o campo de visão de MJ, Kerligan deu a Bruno a chance de reagir. Desconectara minutos antes, durante o excesso de riso de seu algoz, o laptop do cabo de força, deixando-o livre para a primeira oportunidade. Em um movimento desesperado, arremessou o aparelho na direção do inimigo. O dono do escritório parecia perdido em meio ao triângulo, porém foi suficientemente perspicaz para se desviar do objeto voando em sua direção. Infelizmente, Marvolo também se esquivou e o computador se espatifou na janela, cuja cortina amenizou o impacto provocando em conseqüência apenas algumas rachaduras na vidraça. Em sua corrida para desarmar o vilão, gastou tempo demais evitando Kerligan, o suficiente para perder a chance e ser atingido na perna caindo sobre o sofá e tombando com ele, acertando em cheio a parede e sucumbindo ao chão. Gemeu contendo ao máximo a dor. Natan enlouqueceu, ainda amarrado nas costas se levantou arremessando o corpo e a cadeira atada a ele na direção do atirador posicionado a centímetros da parede oposta. Livre do bloqueio oferecido pelos móveis de estar MJ já apontava a arma para ele.— Não! Pare! — Kerligan se jogara na frente de Natan contendo com uma mão seu avanço ao tempo em que encarava o sócio e fazia sinal para parar. — Ninguém vai mais se machucar aqui! — após alguns segundos virou-se para Natan. — Confie em mim — disse em um tom mais baixo.

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Girou a cadeira e passou a desamarrar o médico ainda atônito ante os acontecimentos. - Vá cuidar de Bruno - ordenou em português definindo implicitamente a língua a ser falada a partir daquele momento, queria ter certeza do grau certo de entendimento por todos na sala em relação ao decorrer dos próximos eventos. Em seguida, voltou-se aos gritos para o responsável pela confusão. — Você enlouqueceu? Vá embora, depois conversamos, eu resolvo isso — em retorno recebeu apenas o cano da pistola apontado para sua testa.— Desta vez não! Estão próximos demais. Se pegassem suas anotações e denunciassem nosso plano tudo iria por água abaixo. Você está se deixando levar pelas emoções e colocando a vida de bilhões em risco.— E vai fazer o que? Me matar?— Claro que não — sorria — não seja ridículo.Bruno não acreditou quando viu o braço se abaixando e a arma disparando, dois tiros, um em cada coxa. Kerligan desabou urrando de dor e ódio.— Se mover um músculo atiro no braço - completou.— Desgraçado, vai se arrepender por isso.— Apesar de lhe considerar como um irmão estou decidido a tomar as atitudes necessárias independentemente do custo emocional. Eventualmente cairá em si e me dará razão.- Até este dia chegar vou dedicar o máximo possível de tempo e recursos a te caçar e te destruir. Tolerei além da razão suas loucuras,

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arranjei desculpas, criei uma "persona" fantasiosa a quem poderia amar, um ser imaginário capaz de possuir sentimentos. Lamentavelmente, se em algum momento esta pessoa existiu, já morreu faz tempo, corroído pela solidão e pelo egoísmo.Marvolo James Calve pareceu não ligar para o discurso, adentrou o espaço formado pelo sofá à esquerda e o par virado durante o ataque anterior a sua frente e chutou a mesa de centro para o lado direito, longe da janela, liberando seu percurso. Apontou o silenciador para Bruno quase disposto a finalizar o assunto, porém ainda precisaria do médico. Estavam no canto da sala encostados na cortina. Natanael arrancara um pedaço da camisa e o usava como uma gaze para pressionar o local perfurado pela bala.— Levante e leve-o para detrás da mesa, depois vá ajudar Arthur — diante da relutância do doutor, foi mais enfático. — Se não me for útil pode morrer agora— apertou o gatilho atingindo a parede a dez centímetros de seu rosto.— Se vai terminar assim pode pelo menos dizer pelo que estamos morrendo - Bruno falava entre gemidos, enquanto se moviam com dificuldade atendendo ao comando do carrasco.- Meu bom humor acabou. Só me sinto moralmente obrigado a dizer como será o fim. Depois de minha saída com Kerligan vou acionar a bomba. Vão pensar que vieram roubar segredos industriais e sabotar o complexo e, devido à inexperiência dos dois, algo deu errado.

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Usei a arma de tranqüilizantes graciosamente fornecida por você e repleta de impressões digitais suas, meu caro espião — lançou um olhar zombeteiro na direção de Natan — e vou deixá-la do outro lado da sala, longe o suficiente para não ser destruída pela explosão.- Vai concordar com isto, Kerligan? - Bruno perguntou.— Não tem escolha — Marvolo se apressou em responder no lugar do antigo amigo.- Não tenho? - em seu rosto o desprezo era patente.— Estava lhe poupando dessa notícia, chefe. Aconteceu uma pequena confusão — balançava a arma ao falar em sinal de desdém — sem querer acabei usando uma arma registrada em seu nome e contendo impressões digitais suas para assassinar o Dr. Alvarez. Pensando bem, não devia deixar uma arma no cofre do seu escritório na Covet Power, passa tão pouco tempo lá ultimamente... Tse, tse, tse, muito descuidado de sua parte, não? E você não tem álibi, me asse-gurei disso desmarcando na última hora um compromisso falso. Fiz você passar uma hora no carro sem testemunhas. Exceto o motorista, é claro, mas sinto informar que ele faleceu recentemente - arrastando o próprio corpo em direção à mesa o parceiro parecia atônito. - Se me denunciar vai cair junto comigo e a Terra nunca será salva.Kerligan segurou as emoções o quanto pôde, precisava ganhar tempo enquanto tentava chegar perto da mesa.

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— Não é um meteoro, são dois — ele respondeu tardiamente, talvez o assunto prolongasse o suficiente a estada de MJ.- O quê? - perguntaram em uníssono, atentos ao ocasional aliado.- A única explicação para a diferença de geografia entre a Terra e Aqua é se houver outro asteroide escondido atrás do primeiro. Foi a única hipótese conduzida por mim e minha equipe em Eiden, cujos resultados são compatíveis - diante da expressão de incompreensão dos interlocutores, ele lutou por outra forma de explicação. Usando a mesa como apoio, suspendeu o corpo até conseguir ficar de pé, apesar da falta de firmeza nas pernas. — Não existe ângulo de entrada da pedra, cujo impacto com mísseis nucleares, em qualquer distância, provoque a mudança do eixo magnético nem o desaparecimento total da China ou a inundação quase total da Austrália e de metade da América do Sul. A única solução matemática plausível é esta, dois objetos, um escondendo o outro de tão próximos - gostaria de usar as mãos para o exemplo, porém se as retirasse da mesa desmoronaria no chão. - Ao destruir o primeiro, o segundo passaria a ter caminho livre. Caso só percebêssemos o fato depois, não existiria tempo para agir.— E qual o problema? Por que esconder isso? Para não dar explicações ao governo?Marvolo explodia em risadas novamente ante a inocência de Bruno.

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No estacionamento, Olívia fingiu medo e convenceu o motorista a deixá-la ficar no banco da frente, no carona. Quando se viu distraído pelo som de um carro veloz na estrada e colocou a cabeça para fora da janela, ela teve sua oportunidade. Bastou um minuto para pegar o revólver no porta luvas e apontá-lo para o homem.Apesar de sua superioridade em força e destreza, a mão da mulher tremia demais para desconsiderar o risco de um disparo acidental, não valia a pena reagir. Já fora do automóvel, ela descalçou os saltos, ameaçou atirar se ele a seguisse de imediato, e correu para o edifício de arma em punho. Uma criança correndo com uma tesoura, ele não pode deixar de pensar.

— Viu? São imbecis, está arriscando sua vida por imbecis! — MJ bradou para Kerligan. Voltou-se para eles em seguida. — Não vamos destruir o segundo asteroide, gênio. Se todo mundo sobreviver nem todo o intelecto dele ou de sua preciosa Adrianna farão diferença. Os recursos deste planeta não serão suficientes e todos vão morrer em poucas centenas de anos. Principalmente com sua namorada distribuindo o Alpha11 por aí. Já vimos esse filme.Embora a dor fosse lancinante e as calças já se tingissem de vermelho, Kerligan ainda tentaria algo. Planejava conseguir uma ação coordenada usando os dois homens atrás da mesa.— Meu amigo aqui precisa ser o novo líder político, econômico e intelectual do mundo — continuou

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— se ninguém podia prever o segundo impacto, pelo menos ele nos salvou do primeiro - sorria e dava de ombros, orgulhoso do próprio estratagema. - Explodiremos a segunda pedra também, porém infelizmente, não em pedaços pequenos o suficiente. Deixaremos uma boa por-ção atingir pesadamente os Estados Unidos e parte do resto do Hemisfério Norte, assim eliminamos a maior potência da atualidade e, em meio ao caos, a perda de digamos 1 a 2 bilhões de pessoas, proveremos o exemplo e a solução. Construiremos um novo país sobre os escombros, ressurgindo através da tecnologia e liderança capaz de evitar a proliferação desordenada e de criar um novo Éden.Se passassem rapidamente a mala para ele e a jogasse na direção da janela com força suficiente, talvez explodisse atravessando a noite na direção oposta. Era literalmente um tiro no escuro dado seu desconhecimento da natureza ou poder do explosivo. Todavia, não podia assistir aquilo parado. O ódio já percorria suas veias como um veneno, se pudesse mataria Marvolo com as próprias mãos. Tentava sinalizar para algum dos dois as suas costas sem sucesso.Entrementes, Bruno confessava a Natan em sussurros a volta da dor, tanto no duto do ar-condicionado quanto naquele exato momento. Sentia-se fraco pela perda de sangue e com alguma dificuldade para respirar. O amigo entrou em pânico e, diante da proximidade da morte certa, qualquer ação era permitida. Segurou a mão do irmão sobre o próprio ferimento

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sugerindo a pressão necessária, girou o corpo colocando um pé sobre a mesa e saltou sobre o inimigo atento mais às próprias palavras do que esperando um ataque tresloucado.Neste exato momento, a porta se abriu obrigando Marvolo a decidir entre as duas ameaças. Levou um segundo para reagir direcionando a mira por puro instinto. Sem visualizar o potencial oponente por detrás da porta se abrindo, diante do desconhecido optou por atirar em quem entrava, seguro de poder lidar com Natan logo em seguida. De frente para a porta, Kerligan viu Olívia antes do disparo e, prevendo o pior, ignorou a dor. Firmando as pernas o quanto pôde, usou toda a força dos braços para lançar-se em sua proteção usando o próprio corpo como um escudo humano. O assassino precisou de menos de um minuto para se livrar de Natan, arremessando-o violentamente contra a parede e o deixando atordoado. Ao recobrar parcialmente o controle uma vertigem percorreu seu corpo. No chão, encostada na porta escancarada, Olívia urrava enlouquecida frente à visão do amor de sua vida deitado sobre o colo banhado de sangue. O líquido vermelho partia da têmpora esquerda. Ao cruzarem o olhar, sem parar de chorar ou gritar, buscou o revólver, agora caído ao seu lado, e disparou contra aquele a quem mais odiava na face da Terra. Ainda atônito, Marvolo só pôde correr dos tiros inexperientes. Podia ouvir a TV e a parede sendo atingidas pela seqüência de projéteis enquanto corria para a única saída

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viável. Arremessou-se contra a janela rachada, espatifando-a, e caindo acompanhado das cortinas ao longo dos três andares até o estacionamento.

38. Memórias Póstumas

O motorista não via mais motivo para obedecer a ninguém, tudo dera errado. Assim, o melhor era seguir seus instintos. Pegou emprestada a arma de um dos seguranças caídos e seguiu cauteloso pelas escadas. Achou o elevador muito visado. Quando ouviu tiros e o barulho do vidro se quebrando acelerou o passo. Não estava preparado para o quadro desolador no qual encontrou seus empregadores e o som do helicóptero levou algum tempo para ser reconhecido plenamente.Olívia, ainda na porta, coberta de sangue nas mãos e em partes da camisa e banhada nele da cintura para baixo, chorava copiosamente e cobria de beijos incessantes o rosto de Arthur Goldwill em seu colo. Nem levantou o olhar para reconhecer a chegada do reforço, não importava mais. Natan se levantou ainda tonto, batera a cabeça e o sangramento causado pelo ferimento anterior recomeçara. Enfrentando a própria dor se apressou em verificar as condições reais de Kerligan, o pulso, embora fraco, estava lá. A mulher estava em choque e não reconhecia as palavras. Orientou o assustado motorista a tampar o ferimento, impedindo maior perda de sangue enquanto uma bandagem foi

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improvisada. Correu, então, para o amigo irmão. Seu coração acelerou ao vê-lo caído no chão, não havia pulso. Imediatamente, iniciou as manobras de ressuscitação. Quando os homens do helicóptero chegaram um fiapo de vida retornara a Bruno. Apenas ele pôde seguir com os dois enfermos na aeronave, seguiram direto para o hospital de Base, em Brasília. Após detalhar no melhor de sua capacidade médica a situação de cada um, tentou falar com Adrianna. Foi o gerente do hotel quem atendeu o celular deixando-o a par da situação e revelando estarem todos no mesmo hospital. Ela estava melhor, porém houvera uma complicação e os médicos a examinavam naquele momento. Uma Dra. Cristiane Templis voava ao encontro deles, vinda de São Paulo.As 6h do dia seguinte apenas Max não pudera se deslocar para a capital do país. Ficara responsável por gerenciar a crise, pois a mídia certamente faria daquilo um circo. Precisava definir uma estratégia de trabalho sobre como responder, passá-la aos líderes de cada empresa e preparar um comunicado oficial para a Comissão de Valores Mobiliários (CVM), uma obrigação no caso de empresas de capital aberto ou em processo de abertura.Para a polícia, os dois sobreviventes da noite combinaram uma versão improvisada da verdade, a de que Bruno Cortes Lima descobriu sobre as sabotagens feitas por Milton Jacobs por vingança, relativa a disputas empresariais perdidas, e pretendia denunciá-lo. Várias

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conversas entre Bruno e Olívia culminaram em uma parceria para a verificação dessas informações, atestando a isenção de culpa de Arthur Goldwill nos referidos eventos. Na noite anterior, haveria um encontro entre eles quatro para definirem os próximos passos. Jacobs temendo a prisão planejou culpar Bruno por sabotagem armando uma situação em que todos morreriam em uma explosão. Ele viraria os fatos ao contrário dando pistas para enganar a polícia e fazê-la crer que Cortes Lima fora pego em flagrante por acaso e a explosão da bomba teria sido acidental. Embora fantástica, a história possuía o trunfo da existência da bomba, coletada pela própria polícia e desarmada durante a noite. Ademais, era certificada por pessoas de lados opostos da balança. Além disso, estavam certos da possibilidade dos componentes do dispositivo explosivo poderem ser ligados a Milton Jacobs de alguma maneira após o envolvimento das autoridades inglesas. Embora incomodados, dentre outras coisas pelo fato de não encontraram ninguém no local onde, segundo descreveram, o Sr. Jacobs, vulgo MJ, deveria estar, os investigadores responsáveis foram forçados pelos advogados mais caros da cidade a dar bastante espaço ao grupo. No ínterim não mediriam esforços para encontrar o acusado, afinal era o tipo de caso capaz de transformar carreiras.

Olívia passava agora todos os minutos junto ao leito do marido em coma. Segundo os médicos, o

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dano ao cérebro fora extenso demais, mesmo se sobrevivesse seria um vegetal. O coma fora induzido para dar chance à futura viúva de se despedir e decidir sobre a doação de órgãos. Se pudesse, arrancaria com as próprias mãos a força vital de dentro de seu ser e a entregaria ao amado. Fora culpa dela a sua morte e não via sentido algum em continuar respirando quando fora responsável pelo fim de um gigante como ele. Além da combinação com Natan elaborada para proteger a imagem de seu marido e garantir a ruína do demônio com quem fora obrigada a conviver por tanto tempo, se permitira apenas a falar com Adrianna. Era muito cedo para o parto e os médicos, após controlarem a situação, tentavam ganhar tempo e evitar o nascimento prematuro. Em condições de conversar, aceitou analisar a ficha médica de Arthur e discutir com os médicos. Seu conhecimento único da fisiologia dele podia trazer alguma esperança. Sem revelar muito à equipe do hospital responsável por seu tratamento, foi capaz de avaliar o caso na extensão necessária o suficiente para garantir à amiga que não havia esperanças. Bastava a ela agora apenas o peso de desligar os equipamentos. Ninguém acreditou na capacidade de Adrianna de tratar daquilo, porém subestimaram a conexão entre duas mulheres prestes a perder aqueles considerados não apenas maridos, mas a melhor parte de seus corações e almas.A situação de Bruno era de total desesperança. Sem mais tempo para roubar, era mantido sob

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pesada sedação e monitoramento constante enquanto esperavam pelo milagre de um doador viável nas próximas horas. Como o Alpha11b não deu resultados, a idéia de banhar seu coração no líquido durante algumas horas em cirurgia de peito aberto fora descartada. No limite entre a insistência e as ameaças de Adrianna, concordaram em colocar os amantes em maças lado a lado por alguns minutos. Era provável sua entrada em trabalho de parto dali a algumas horas e queria ter a certeza de ter se despedido. A cena destruía os corações dos amigos. Rachel era um "caco" humano, aninhada no peito de Marco a maior parte do tempo. Milena permanecia a não mais de um palmo de distância de Wagner, provendo o esteio mínimo para o marido suportar o momento. Cris era a mais forte de todas, a vasta experiência com pacientes terminais lhe dava a lucidez necessária para garantir o fluxo de informações médicas entre o Hospital de Base de Brasília e os especialistas responsáveis pelo tratamento do amigo em São Paulo. Ela lutava para conter as dúvidas levantadas quanto ao quadro de Adrianna. Datas de exame não batiam com os resultados correspondentes trazidos diretamente da clínica montada na Fênix. Pintou a amiga como excêntrica e para justificar as inconsistências culpou a precariedade da estrutura criada dentro de uma indústria especificamente para a sua dona. Apenas o peso de seu nome e a fama da amiga preveniram maiores interrogatórios.

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Natan dera apenas pinceladas de informação sobre as ocorrências na Covet Winds para o grupo até todas as terríveis situações paralelas estarem administradas. Às 8h ele se reuniu com Wagner, Cris, Rachel, Marco e Adrianna no quarto desta, em completo desrespeito às orientações médicas, alegando ser urgente passar-lhes todas as informações. Em uma preleção inicial, anunciou sua renúncia da Lima World Investments, prometeu se entregar às autoridades e se submeter a quaisquer exigências definidas pelo grupo quando pudessem deliberar. Contudo, rogou que o ouvissem com atenção e silêncio, em todos os detalhes, pois seriam necessários. Não poupou absolutamente nada de seus erros nem os tentou justificar em demasia, pois no íntimo desejava ser punido por seus pecados. Discorreu sobre os eventos da noite e das alegações falsas feitas à polícia. Ninguém pronunciou uma palavra sequer, nenhum xingamento ou soco foram desferidos. Fosse por estarem todos anestesiados pelas más notícias ou preocupados em manter Adrianna calma, todos esperaram pela sentença a ser proferida por ela. Ao terminar, ele se retirou deixando claro que, embora não merecesse, não suportaria deixar o hospital até o último momento, porém tentaria ficar longe do caminho de todos. O silêncio permaneceu por alguns minutos banhado pelas lágrimas da moça sobre a maca.

Ela voltava do centro de atendimento daquele andar quando ele a avistou. A loira sofisticada e

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cuja beleza exuberante não passaria despercebida nem em um desfile das modelos mais lindas, agora lembrava um farrapo humano, um ser destroçado pela culpa e arrependimento, cujas cicatrizes marcavam a pele e descoravam a face. O olhar antes altivo e seguro de si fora substituído pelos ombros caídos, cabelos despenteados e andar trôpego, sempre mirando o chão. Ao se cruzarem no corredor ele a abordou.- Desculpe-me - ela parou e lentamente levantou o olhar - só queria avisar que já contei tudo para Adrianna e meus outros sócios, conforme lhe prometi - Natan prometera confessar sua traição quando combinaram a história a ser contada aos oficiais.- Não que eu vá acreditar, mas preciso ouvir assim mesmo — acabara de dar permissão para desligarem os aparelhos e preferia não estar perto quando acontecesse. Qualquer coisa servia para afastá-la dos pensamentos mais negros.- Conte-me os detalhes.Ele não retrucou ou se defendeu, apenas pediu para entrarem em uma sala mais privada. Adentraram um quarto, cuja cama estava vazia, ainda no aguardo de um paciente, onde ele passou a detalhar cada acontecimento. Ao final, Olívia declarou sua avaliação.- Quando a polícia liberar o local pego o caderno no cofre. Não vai ser difícil saber se está falando a verdade. Tenho certeza de que eu e Adrianna poderemos encontrar uma forma de prever o pior na remota hipótese de você não estar mentindo.

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Ele absorveu os golpes com honestidade, em silêncio, só podia ter raiva dele mesmo. Quando ela prenunciou deixar o quarto ele não se conteve.- Se eu puder fazer algo...Parada com a mão na maçaneta da porta, ela hesitava. Sabia não poder confiar nele. Todavia, sua curiosidade e preocupação pelo novo amigo levaram a melhor e pensando não haver motivos mais para mentiras, ela se virou, olhando-o novamente.- Qual é exatamente o problema com Bruno? Só estou ciente de ser algo grave, um tipo de enfermidade do coração. Pelo meu entendimento, o Alpha11 seria capaz de curar qualquer problema dessa natureza, ou pelo menos fortalecer o coração o suficiente para superar uma enfermidade congênita, então deduzi que a situação não é propriamente esta. O que está acontecendo realmente? Ele vai sobreviver?Ele suspirou, tinha dúvidas sobre o direito de falar sobre aquilo. Contudo, não possuía mais em suas células o poder de mentir para as pessoas de quem gostava. Fosse pelo próprio sentimento de culpa nos eventos, cujo desfecho levou à morte de seu marido, ou talvez pela admiração cultivada pela mulher desde o primeiro encontro, ou quem sabe pela simpatia natural para com seu estado de fragilidade, a verdade é que sentia pela inglesa uma grande afeição. Decidiu contar os motivos circundando a enfermidade do amigo, suas causas prováveis e o motivo pelo qual

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ninguém mais encontrava energias para susten-tar esperanças.Em determinado ponto da narrativa seus olhos se arregalaram, um súbito estado de consciência a dominou. Como em um passe de mágica, Olívia recuperou o brilho nos olhos e a expressão aguçada tão característica de sua personalidade. Deixando o interlocutor sem pistas, saiu consternada pela porta em direção ao quarto onde Arthur Goldwill passava os últimos minutos sobre a Terra. Um médico e uma enfermeira estavam presentes, de costas para a entrada, os aparelhos pareciam desligados, com exceção de um. Ela gritou receosa de não ter chegado a tempo.- Pare! Pare! Ele precisa ser mantido vivo!Ela falava em inglês e o médico, embora não fosse fluente, entendeu o pedido. Com a ajuda de Natan, logo atrás dela, uma conversação se estabeleceu. Funcionando como tradutor, rapidamente percebeu a intenção de Olívia. Por sorte, a respiração artificial ainda permanecia ativa. Portanto, não havia impedimento algum para a tentativa.

Adrianna e Olívia conversaram em particular, apenas Cris também teve permissão de participar após a insistência da primeira. Natan foi solenemente excluído. A esposa de seu inimigo de tantos anos oferecia doar seu coração, caso fosse compatível. Consideradas as características únicas do sangue dele, independentemente do lugar de Bruno na fila de

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transplantes, era certo não existirem outros candidatos compatíveis. Ou serviria a seu marido ou a mais ninguém. Parecia uma esperança vã, porém tanto ela como Cris se agarraram a ela com unhas e dentes. Imensamente agradecida, a Dra. Cristiane saiu apressada na intenção de iniciar o mais rapidamente possível os testes. Ciente de precisarem de sua assinatura, Olívia pediu apenas alguns minutos antes de segui-la.— Deus lhe abençoe, Olívia — estendeu a mão para encontrar a da amiga — tenho consciência de ser um tiro no escuro, as chances de compatibilidade são irrisórias - ambas permitiam às lágrimas a liberdade merecida - de qualquer modo, seu gesto não tem preço. Serei eternamente devedora.— As chances podem ser pequenas, não irrisórias.— Não precisa me animar.— Não se trata disso — ela tomava coragem para o próximo passo. — Fiz uma promessa a Arthur de nunca revelar um segredo, porém hoje tudo mudou, ele mesmo o faria se pudesse - a outra esperava atenta a amiga puxar uma cadeira e sentar a seu lado para reiniciar a narrativa. — Quanto sabe sobre a briga entre Arthur, quer dizer Kerligan, e Onan?— Onan foi seu mentor, conseguiu bolsas de estudo nas melhores instituições, em ocasiões foi tutor em outras orientador, de acordo com a situação. Eventualmente o levou para trabalharem juntos no centro de pesquisas avançadas Excelcius. Basicamente, fez o mesmo comigo. Quando identificava indivíduos de

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grande capacidade não poupava esforços para apoiar o desenvolvimento deste potencial.— Era exatamente essa a interpretação de Kerligan e, embora não seja inteiramente errada, no caso dele também não refletia a verdade. Quando Onan retornou da Terra, disposto a finalizar seu relatório e em seguida voltar para os braços de Marta, mãe de Bruno, um acidente mudou tudo.— Só fiquei sabendo deste acidente por Kerligan e, confesso, nunca tive certeza...— Pois pode ter, e logo vai entender o motivo. Ele perdeu a perna e com ela muito sangue quando passou pelo portal dimensional. Não faltaram doadores de sangue voluntários e Kerligan foi um deles. Por algum tempo não sabiam se sobreviveria, então, o diretor do hospital onde estava sendo tratado tomou uma decisão de ética dúbia, embora imbuída provavelmente das melhores intenções. Conhecendo o relacionamento dos dois chamou Arthur... Kerligan...— Fique à vontade, chame-o como preferir - Olívia pareceu agradecida.— Enfim, mostrou um relatório das transfusões de sangue mostrando os testes padrões realizados.— É procedimento usual testarmos não apenas por doenças e tipo sangüíneo, mas também compatibilidade de DNA. A evolução genética sofrida devido às gerações de pessoas utilizando diferentes versões do soro Alpha nos obrigou a esse tipo de cuidado. É necessário um mínimo de

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compatibilidade para uma transfusão de sangue segura.— Acontece que um dos doadores teve um grau de compatibilidade muito grande.— Quão grande?— Não me lembro exatamente o percentual, porém um dos doadores era certamente...— Filho de Onan? Kerligan é filho de Onan? - Adrianna tentou se levantar um pouco por causa do susto, parando imediatamente, impedida pela dor. O gemido preocupou a amiga. - Não é nada, só não posso me mexer bruscamente. Meu Deus! Ele é irmão de Bruno!— Isso mesmo, por isso as chances estão do seu lado.Adrianna estava feliz, completa de esperança, tentava apesar disso mascarar os sentimentos em respeito à amiga.— Por favor, continue.— Quando Arthur ficou sabendo enlouqueceu, encarou aquilo como uma traição pessoal e reviveu todo o ódio pelo pai.— Como assim? Só me lembro dele ter sido criado pela mãe, o pai nunca esteve presente. Cresceu em uma comunidade pobre no litoral de Eiden, embora não haja pobreza lá na mesma medida daqui, existiam diferenças sociais.— É, a mãe nunca casou, foi amante de Onan. Segundo a versão dela, ele prometeu deixar a esposa, mas nunca o fez, nem quando Kerligan nasceu. Ela tomou-se de ódio e o proibiu de participar da vida da criança, ou contaria tudo à esposa dele. Ela teve diversos relacionamentos,

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nenhum fixo, e alimentou no filho a raiva do pai ausente. Ele não entendia a ausência por tantos anos, um verdadeiro pai não aceitaria viver afastado do filho por nenhum motivo. Quando teve chance, Onan jurou ter se arrependido de sua fraqueza de caráter. O casamento não durou muito, perdido no mar de infidelidades. Era famoso, mulherengo e imaturo. Quando se deu conta do erro, sem ter coragem para falar a verdade, e após a morte de sua mãe, imaginou poder de alguma forma compensar as faltas passadas, dedicando-se ao futuro de Kerligan.— Mas ele nunca o perdoou — quanto mais Adrianna vasculhava a memória, mais a história fazia sentido, não tinha dúvidas quanto a sua veracidade. Explicava até a foto de Onan na cabeceira da cama de Kerligan.— Nos últimos anos, já aqui na terra, talvez o tenha perdoado no íntimo. As mortes no laboratório, aquelas presenciadas por você, pesavam em sua consciência e a percepção de suas próprias imperfeições o tornou mais apto a aceitar os erros do pai. Foi por isso que quando teve chance mandou localizar dona Marta, pretendia explicar a ela as verdadeiras intenções de seu pai quando partiu, quarenta anos antes. Um ato simbólico de redenção. Ao receber os primeiros relatórios imaginou a possibilidade de ter um irmão em Bruno e quando pôde confirmar ficou extasiado. Queria conhecê-lo, ajudá-lo, compartilhar...- E aí eu apareci — sorria com certo constrangimento. Era ridículo, porém sentia ter-

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lhe roubado o irmão.- Foi. Com seu ódio por ele...- Decidiu esperar.As duas mulheres ainda estavam de mãos dadas quando Olívia foi arrebatada pelos sentimentos e iniciou um choro compulsivo. Entre soluços e lágrimas colocou o coração para fora nas palavras seguintes.- Ele era um bom homem, Adrianna, mesmo se Natanael tiver falado a verdade, mesmo se pudesse ser responsável pela morte de bilhões, ainda assim visava o bem maior. Estava errado, mas era capaz de mudar, estava mudando. Ele deixou tudo para trás para construir uma utopia. Eu o faria mudar. Ele morreu para salvar Natanael e Bruno, entenda isto, ele me fez ir à Covet Winds na noite passada. Se não se importasse garantiria apenas a minha segurança e a dele. Ele se jogou em frente às balas para me salvar.Não pôde mais falar, a dor lhe consumia enquanto chorava no colo da amiga. Adrianna não tinha mais raiva de Kerligan, embora repleto de máculas fora um homem muito superior à imagem construída por ela e propagada aos quatro ventos. Natanael lhe veio à mente, ainda não sabia que caminho tomar em relação a ele e sua traição, porém não sabia se era capaz de condená-lo ao exílio. Quem entre eles não havia errado.

Meia-noite em ponto os médicos olhavam hipnotizados e tensos para o coração sobre o

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peito aberto. Gentilmente, o cirurgião pressionava o órgão com a mão direita, cheio de expectativa e receio aguardava pelo pulsar do músculo. Foi na terceira tentativa, sincronizado aos acontecimentos de outra sala, no mesmo hospital, quando aconteceu. Em uma delas um som abafado e baixo, o bater cadenciado do coração de Kerligan no peito de Bruno colocava os dois irmãos em um só corpo, trazendo à luz uma vida dada como perdida.Na outra um choro de menina brindava o mundo, provocava sorrisos nos médicos e lágrimas mudas na mãe, ansiosa por pegar nos braços seu rebento. Uma rajada de esperança percorreu distâncias soprando na alma de seis amigos. Perdidos no momento ao receberem de Cris as notícias já compartilhadas com Adrianna, Max, Cris, Wagner, Rachel e Marco se viram abraçados a Natan, chorando de alegria pela velha e pela nova vida e, principalmente, por um futuro. Quando perguntaram, Cris revelou o nome até então mantido como um mistério, a menina se chamaria "Milianna". Apenas os amigos ali presentes saberiam seu significado, "a estrela mais brilhante", segundo a poética língua de Eiden.

Dias depois, acompanhada apenas por seu bebê, enquanto a amiga Cris buscava uma atualização sobre a recuperação pós-operatória de seu marido, considerada até então surpreendente, Adrianna sorria pensando na profecia Maia.

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"Quando dois irmãos forem um só e os mundos se misturarem, um novo paraíso será formado. O fogo não encontrará a água e da magia nascerá uma nova vida para salvar o jardim".Finalmente a entendia, tudo ficaria bem a partir de agora, os detalhes se resolveriam de alguma forma, estava predestinado. Possuíam o caderno trazido de Eiden contendo os planos para evitar o apocalipse e o apoio de Olívia, agora uma irmã e aliada. Constava ali também a hipótese capaz de dar alento a todos os envolvidos, de a Terra ser afinal parte de outro universo, tão idêntico ao de Aqua a ponto de os acontecimentos em um poderem ser mapeados no outro, uma improbabilidade estatística, porém nunca uma impossibilidade segundo os cientistas de sua terra natal.As fortunas combinadas, a tecnologia acumulada graças ao esforço de Kerligan, e os acordos firmados junto aos Estados Unidos e Inglaterra prometiam superar quaisquer outras dificuldades imprevistas. A sombra de Milton Jacobs se dissipava rapidamente na memória. Culpado de diversos crimes, foragido da justiça, tivera os bens congelados e dificilmente representaria empecilho ao salvamento da humanidade.Em meio a esses pensamentos custou a perceber quando Bruno entrou, conduzido na cadeira de rodas por Cris. Em meio à surpresa percebeu sua felicidade materializada em abraços, lágrimas e beijos desordenados. Mais tarde ao ver Milianna nos braços do pai teve a certeza de pertencer

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àquele lugar ou àquele tempo, nada podia ser mais correto ou perfeito.

Livro Escaneado, Formatado e Revisado por Lucia Garcia